Jorge Nóvoa é Professor Adjunto IV do Departamento e Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, Coordenador do grupo de pesquisa Oficina
Cinema-História, Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-História (www.oficinacinemahistoria.ufba.br) e Editor da Revista O Olho da História
(www.oolhodahistoria.ufba.br).
O ponto de partida da nossa elaboração historiografia sim. É o seu principal objetivo. seu discurso se dirija, tanto quanto suas
sobre a relação cinema-história diz respeito ao Suas “narrativas” não fariam sentido se não representações, a um passado tão longínquo
fato de que ela é, ao mesmo tempo, um tivessem, além da descrição, a explicação quanto a aurora do homem. Qual seria,
objeto de investigação e uma problemática como objetivo. A descrição é assim, muitas portanto, nossa dificuldade diante da mais
que interroga perma-nentemente a vezes, a própria explicação. O cinema é arte bela escultura de Da Vinci ou do O Aleijadinho
investigação. É desse ponto de vista que e como tal não pretenderia outra coisa senão nas igrejas Barrocas das Minas Gerais brasileiras,
podemos elaborar sua dimensão educativa. A o deleite estético. Mas será realmente essa a em explicá-las como se pudéssemos destituí-
importância que o discurso cinematográfico, realidade? E se estendermos a dimensão de las de suas historicidades? A mesma dificuldade
sobre os processos históricos adquiriu ao longo tal fenômeno à relação literatura-história e às experimentaríamos ao tratar a obra de um
do século XX superou, ao menos em impacto, relações da história com as outras linguagens Goya ou de um Monet, ou também a música
todas as outras formas de expressão estéticas de todos os tempos. Elas visariam de um Mozart ou de um Stravinsky, ou ainda
historiográfica, sociológica ou pedagógica. Não apenas divertimento, passatempo ou deleite um “romance” como Hamlet ou um outro
é por acaso que o século XX é denominado o estético? como Dom Quixote de la Mancha. Todas essas
século das imagens. Isto já é um grande Essa é bem a realidade de muitas manifestações podem ser objetos de pesquisas
indicativo de que o cinema não é, nem pode obras. Mas mesmo aquelas que visam apenas históricas. Interferiram, e ainda interferem, na
ser, uma linguagem que se nutre de si mesma, o entretenimento, no ponto de partida se “história”, simultaneamente no que concerne
o belo, do belo, pelo belo! A historiografia e debruçam, quer seja, sobre um fragmento da à representação do “seu” tempo e aos valores,
as ciências sociais, mas também as ciências vida, da história natural e/ou social. Mesmo a à cultura e à consciência social e histórica do
naturais, se utilizam, por sua vez, de teorias, obra cinematográfica mais “ilógica”, menos nosso tempo. Portanto, são ao mesmo tempo
métodos e linguagens diversas – inclusive a linear, mais abstrata ou surrealista, O cão plenas de historicidade e presentistas! Em
cinemática - com a finalidade de comunicar andaluz, do grande Luis Buñel, por exemplo, alguma medida elas modificaram os seus e o
suas inquietações, investigações e explicações através de múltiplas mediações, é “filha de nosso mundo. Mas não testemunharam
dos fenômenos da realidade social, histórica e seu tempo”, é condicionada por esse tempo, apenas. Todas elas formularam interrogações,
natural. O cinema, em geral, não visaria em quer dizer algo sobre ele, é provocada por interpretações, conclusões transcendentes às
primeira instância à explicação dos fenômenos, ele e o diz, esteja seu autor consciente ou suas historicidades.
sobretudo quando se trata de ficções. A inconsciente desse fato. E isto mesmo que
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A relação cinema-história é, portanto, transcendência que experimentados em consciência histórica (falsa ou verdadeira) foi
dialética. Ela não é “sempre” um objeto outros contextos históricos adquirem novos adquirida pelo cinema, a rigor o cinema
passivo, vez que é também sujeito. sabores, guardando os antigos, renovando- mundial produziu muito mais “ilusão”, no
Problematiza, portanto, o mundo, seu tempo os, transmutando-os. sentido de ideologia, do que conhecimento
e seus fenômenos. Interpreta-os, representa- Contudo, o mais perturbador para o real. Mas o impacto que os filmes citados (e
os e em muitas medidas, explica-os. O cinema, historiador e para o cientista humano é que outros) produziram na consciência histórica
em grande medida por sua capacidade de as referidas “obras de arte” - e o cinema mais crítica de várias gerações não tem comparação
produzir discursos sobre a história, por sua que todas do século XX, não somente com nenhuma obra escrita, historiográfica ou
capacidade ontológica e epistemológica de procuraram explicar os fenômenos históricos, não. Em alguns casos a escrita cinematográfica
representar a historicidade de uma época ou como em muitos casos foi mais além que o da história ultrapassa a historiográfica e em
de um fenômeno, constrói, de uma só vez, discurso e a representação cine-historiográfico. outros, a ultrapassagem traz conseqüências
uma narrativa na qual se acha imbricada uma Este é o caso de filmes como, por exemplo, concretas, políticas, históricas imediatas. Mas
explicação, que por mais que queira ser O Nascimento de uma nação, JFK e Terra e em muitos outros o resultado é uma verdadeira
descritiva, é explicativa. E é também Liberdade , para citar três exemplos dentre “falsa consciência” da realidade histórica. Este
pedagógica, educativa e ética. A muitos. Grandes questionamentos “cine- foi o caso do filme de Oliver Stone que reabriu
especificidade de uma verdadeira obra de arte historiográficos” do século foram realizados o caso tabu do assassinato de Kennedy. Às
e da linguagem estética é que, passado os pela filmografia (A Batalha de Argel, O Grande vezes as conseqüências ficam no nível mais
eventos e as condições que lhes deram Ditador, Cidadão Kane, Metrópolis, Ladrões de interpretativo, provocando o historiador e as
origem e sobre os quais buscou interferir, Bicicletas , Rocco e seus Irmãos , Longe do gerações posteriores ao fenômeno, como no
representar e explicar, guarda o mesmo gosto Vietnam, Morrer em Madri, e tantos outros) caso de Amém de Costa Gavras ou mais
metafísico pelo “belo”. Transcende a seu e o impacto que produziram foi maior do recentemente em O Labirinto do Fauno de
mundo, a seu objeto e a seu tempo, sem que qualquer clássico da historiografia Guillermo Del Toro. No primeiro, a colaboração
perder suas especificidades, suas ou das ciências sociais. da igreja católica com o nazismo é levada às
particularidades e sua historicidade. Adquire - Contudo, também se deve observar o consciências de milhares de espectadores em
já tendo potencialmente desde seu outro lado desse processo. Poder-se-ia inverter todo mundo através de um fato real. No
nascimento, os elementos de sua seus resultados. Se oitenta por cento da segundo, as resistências ao poder franquista
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na Espanha pós-1939, fica como que exigindo inclusive a própria, é adotar uma a perspectiva argumentos esteticistas o historiador
dos historiadores que se debrucem sobre este anti-relativista. A abordagem competente é penetraria num mundo que não é o seu ao
acontecimento, pois normalmente é dado que aquela que nos revela aspectos que passariam estudar a plasticidade, a forma de uma obra
depois da derrota dos Republicanos - e dos despercebidos ao “olho nu”. As realidades de arte. Ele seria admitido apenas enquanto
revolucionários - se instaurou um poder não latentes, às quais se referi Freud para a historiador da arte no tempo, em suas
apenas absolutista, mas também absoluto. psicanálise, Peter Gay para a história e Marc cronologias. Mas o belo deveria permanecer
Ferro para cinema-história, não se revelam de um santuário sagrado para especialistas do
A dimensão transdisciplinar imediato ao observador. De fato, cada disciplina belo pelo belo, para o belo . Para tais
Cinema-história como problemática- realiza concomitantemente o esforço coletivo perspectivas, mesmo ao abordar o processo
objeto exige na pesquisa e realiza na mais ou menos consciente – ou mais ou menos histórico investigando ou comunicando
exposição, inevitavelmente, uma abordagem inconsciente, e “inalcançável” da busca através das imagens e do cinema tratando-o
transdisciplinar. Não se trata de estratégica da não menos alcançável totalidade seja como fonte, agente social, como suporte
interdisciplinaridade cordial. Nesta se histórica. Cada disciplina realiza - através da ou lugar de memória, de imaginário e de
reconheceria a existência das outras divisão de trabalho que existe entre elas, de ideologias etc., cometer-se-ia uma espécie de
disciplinas, mas sem admitir a legitimidade de um só golpe, a admissão de suas relatividades sacrilégio. Mas a estética do nada é a
trocas de percepções e fusões de visões com (ou relativismos) e a possibilidade de natureza sem consciência de si mesma.
essas alteridades. Os olhares respectivos não transcenderem através das sínteses e das Toda estética é histórica, por
são santuários sagrados. Não admitem apenas fusões em direção a uma saber mais completo. conseguinte. Cineastas e historiadores querem
os que se submeteram aos ritos de passagem Mas sua completude só pode ser totalizante, explicar as relações sociais e psicológicas dos
dessa ou daquela perspectiva ou disciplina. jamais total. homens. Com suas narrativas o cineasta será
Posição ainda mais complicada é a daqueles Distinto é exigir do historiador e do competente, sobretudo, quando conseguir
que expressam a crise maior na qual a história cientista humano que se limite ao seu divertir ou envolver o público ou mostrar-lhe
se encontra hoje. Assume aparentemente o conhecimento parcial ou no extremo oposto o belo do ponto de vista estético. Esse é seu
tão propalado e referido “diálogo” ao admitir que se contente numa espécie de relativismo objetivo maior e afora isso não tem que
a relatividade de cada posição, menos a agnóstico e absoluto, para o qual a realidade prestar conta à não ser àqueles que
própria. Admitir a relatividade de cada posição, histórica será sempre impenetrável. Para os financiaram seu filme. Já com a narrativa
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historiográfica o historiador busca a cada Ao dominar latim ou grego, o historiador torna- imagens especificidades estéticas e de
passo comprová-la através da se possuidor de um instrumento linguagens e querem vê-las apenas como
documentação, portanto, através do inegavelmente potente com a finalidade de produtos de uma sociedade e de uma
método indutivo, mas também através elaborar conhecimentos históricos mais época. Ao historiador e ao pensamento
da imaginação lógico-dedutiva à sua precisos. É inegável a necessidade da histórico é necessário - além de considerar o
disposição. Não cabe, portanto, nem uma apreensão dessa “tecnologia” para um cinema como agente histórico, documento e
posição esteticista, nem uma outra historicista, pesquisador da antiguidade greco-romana. Mas testemunha do “presente” ou como discurso
sobretudo se buscarmos o diálogo. Seria um isto não tornará alguém em historiador, nem ou representação do passado - é preciso que
encontro de surdos. A recusa de tal cacofonia este num lingüista, etc. considere que a transposição dos fenômenos
reconhece a necessidade de outros olhares. históricos para a tela tem uma outra dimensão
Adota um princípio metodológico correto para A dimensão didático-pedagógica que “ultrapassa” a estética. É preciso se admitir
o diálogo: a transdisciplinaridade. Mas tais da relação cine-história a dimensão estética, mas também tais
pressupostos não são suficientes. Mesmo Estudar a história através de suas especificidades.
aprendendo as diversas linguagens e imagens em movimento se tornou algo mais Uma delas é o potentíssimo poder de
reconhecendo suas importâncias, tampouco visível. Mas muita confusão ainda paira entre comunicação e sua dimensão pedagógica
será garantia para um melhor resultado. O os historiadores ou entre estudiosos das artes extraordinária. Mesmo quando uma obra
historiador procede muitas vezes como o visuais. Se os historiadores tradicionais já não de cinema não tem valor estético
arqueólogo. No processo da leitura de tábuas mais rejeitam com a antiga força a legitimidade superior, mesmo assim, sua dimensão
com inscrições obscuras, se adquire de estudos históricos que utilizem fontes pedagógica pode ser muito grande. Isto
informações e se ilumina o real, mesmo que visuais, persiste o que poderíamos chamar de seria suficiente para arrebatar o interesse de
parcialmente através de conquistas sobrevivência positivista. Existem aqueles que muitos cientistas sociais e induzi-los a
fragmentárias. É legítimo, e é mesmo requerem as imagens apenas como objetos admitirem todo o tempo perdido. Mas porque
necessário ao historiador aprender a “partitura” da história da arte, ou como objeto da o cinema consegue esta performance que
dessa especificidade, sua sintaxe. No entanto, sociologia ou mesmo psicologia da nenhum outro mecanismo de linguagem
o historiador, enquanto tal, não pode comunicação. De outro lado, sempre consegue? Nenhuma outra linguagem ou
confundir seu ofício com o do gramático. aparecem aqueles que negam a essas suporte é capaz dar a sensação de vida e de
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processo histórico como o cinema. A ilusão é a nossa vida. Só o cinema pode proporcionar novas possibilidades para se reconstruir as
que o filme provoca é aquela da história com isto da maneira tão real, verossímil, como o formas de pesquisar, de representar, de narrar
todas as suas contradições. Mas se como diz faz. Uma fotografia já nos dá uma boa idéia e de comunicar os resultados dos
o poeta “a dor da gente não aparece no da complexidade da sua relação com o real. conhecimentos em geral (e históricos em
jornal”, na escrita da história Observe-se a imagem, o fotograma particular) e isto quer seja analisando a relação
cinematográfica ela não apenas aparece, leitmotiv do I Congresso de História e cinema-história pelo seu aspecto didático-
como é a tônica da particularidade de sua Cinema. Temos numa única imagem, o real pedagógico-comunicativo, quer seja à partir
linguagem. Em nenhuma outra forma de (o sete de filmagem do qual Chaplin faz da própria produção do conhecimento. O
expressão algo que é imanente na parte), a imitação do real-histórico (Chaplin cinema e as imagens criaram as condições para
comunicação entre os seres humanos, algo como O Grande Ditador) e a reprodução dessa uma gigantesca revolução na educação, da
que é inerente à condição humana adquire múltipla realidade pela imagem capturada pelo qual temos ainda uma pálida imagem.
tanta verossimilhança e fidedignidade. O câmera-man na qual Chaplin é ele mesmo e o Cinema-história é o lugar por excelência
cinema é uma forma de expressão onde Ditador que ele quer representar em um único da razão-poética e um verdadeiro laboratório
a razão aparece mesclada a tudo mais instante, um piscar de olhos. para a reconstrução do paradigma da
que é humano como pensamento e como educação, da história e da ciência. A maior ou
sentimento. Em A Rosa Púrpura do Cairo Cinema, razão-poética e a menor capacidade de produzir “verdades”
Wood Allen conta a história de um reconstrução do paradigma da história sobre os fenômenos através de graus variados
personagem que sai da tela e vai à platéia, ao A capacidade do cinema de capturar a de verossimilhança empurra o historiador não
público, e se apaixona por um outro objetividade do real, assim como a dor, o apenas a se debruçar sobre a relação cinema-
personagem. A cinéfila – interpretada por Mia prazer e o desejo, constitui um aspecto da história como objeto de investigação, mas
Farrow - entra no “filme” e o filme entra nela, relação cinema-história tão rico quanto também, através de uma ciência que
e a partir de então, a realidade se confunde inexplorado e de conseqüências inevitavelmente deve admitir sua
para “nós” expectadores e para tais transcendentes. Trata-se do modo como o subjetividade, a fazê-lo admitir a legitimidade
personagens, com a transferência e a imitação pensamento é constituído físio, bioquímica e da escrita da história através das imagens em
da vida que eles próprios e “nós” mesmo neuro-psiquicamente. Essa base “material” e movimento (cinema, cd-rom, sites, museus
vivemos, no interior do verdadeiro “filme” que a descoberta de seu funcionamento abre virtuais, etc.). No extremo, ao historiador é
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colocada, pelo menos “teoricamente”, a por exemplo, nunca foi assumida como pesquisadores. Mas permaneceu
possibilidade de ele inverter a relação cineasta- pertinente ao trabalho do historiador e extraordinariamente revolucionária em
historiador, fundando a prática do historiador- portanto, ela se expressa nos documentos, particular no que concerne à perspectiva de
cineasta. Assume assim total coerência na pesquisa e nos discursos, representações reconstrução do paradigma científico em geral
perquirir a partir da relação cinema-história – e narrativas que construímos, por mais e do historiográfico em particular. O método
expressão particular da razão-poética - qual o objetivistas que queiramos ser. A crise dos analítico de Descartes separava os conceitos
verdadeiro estatuto da história. A idéia da paradigmas da história inclui também isto que das sensações. A história do século XIX
utilidade social da história pode ser medida ou é uma aquisição da psicanálise, assim como as reproduziu o espírito cientificista, cartesiano,
examinada a partir do mesmo prisma das descobertas das neurociências, das novas erudito e factualista de Ranke, Comte, Langlois
ciências naturais? Qual o conceito de ciência tecnologias, ou ainda o lugar de algo que e Seignobos. Mas no século XX, antes dos
que temos e qual o que aplicamos para tratar parece antípoda ao trabalho científico: a historiadores, os cineastas foram os maiores
a história? Ela é tão somente representação, imaginação. Cinema-história permitiu-nos “críticos” sem a devida consciência de causa
“literatura bem informada” como na perceber que se os documentos são da posição positivista e naturalista. O cinema
conceituação de Veyne no seu Como se indispensáveis, a imaginação é, não apenas nos permite, de imediato, ver em dois níveis
escreve a história . Em que o cinema e as imprescindível. Muito pelo contrário. Ela é o pelo menos, o quanto a crítica da razão pura
imagens podem nos ajudar a elucidar a ponto de partida e também o de chegada (Kant: 1980: 87-90), guardava uma
questão dos estatutos respectivos e ao em sentido amplo! A relação cinema-história potencialidade extraordinária. Trata-se da
mesmo tempo, permitir compreender a tese ajuda-nos a criticar o paradigma maior do melhor pedagogia e que está a exigir a
de Rosenstone, para quem cineastas como pensamento ocidental e do seu ensino: o da reformulação total dos currículos pedagógicos.
Oliver Stone têm sido verdadeiros historiadores razão pura. Uma primeira crítica que foi Toda a estrutura dos nossos currículos
(Rosenstone: 1995: 120-131). elaborada por Kant. Para ele o conhecimento acadêmicos – e não só nas ditas ciências
As imagens, e o cinema em especial, científico é o resultado da colaboração entre humanas- acha-se fundado no paradigma da
produziram ao longo do século XX uma as sensações e os conceitos. A transcendência razão pura, cartesiana.
experiência fabulosa e impar que precisa ser dessa hipótese não encontrou, de imediato, Portanto, não podemos deixar sem
pensada em todas as suas conseqüências e nem mesmo ao longo do século XIX, base reflexão sua abordagem ou tratar da história
transcendências. A questão do inconsciente, empírica sistemática acumulada pelos real admitindo em todas as suas conseqüências
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imanentes a emoção. A relação cinema-história Nietzsche, resgatado pelos relativistas cinematográfica, é fundadora de um novo
exige isso. Nem as classes sociais, nem as – e irracionalistas, pelos estruturalistas, pós- paradigma: o da razão poética ou sensitiva.
ideologias são rejeitadas, quer seja como estruturalistas e pós-modernos como
objetos de investigação, quer seja como inspirador, foi de fato critico do eruditismo que
categorias da análise. Mas, os sonhos, os sons, dominou a história do século XIX. A sociedade Referências bibliográficas
a oralidade, os odores, a multiplicidade dos urbano-industrial e mercantil transformou a
DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes: emoção, razão
tempos históricos e de suas narrativas na busca do fato histórico documentado, num
e cérebro humano. São Paulo, Companhia das Letras,
história, também não os são. São tratados fim em si mesmo (Nietzsche: 1999: 273-287). 1996.
como elementos constitutivos da realidade Ele teve razão ao buscar apoio nos pré-
exterior (e interior) à nossa percepção, como socráticos ionianos. As descobertas das FERRO, Marc. Cinema et histoire. Paris, Gallimard,
elementos que interferem na realidade neurociências mostram que os sentimentos 1977.
enquanto agentes condicionantes ou são indissociáveis daquilo à que chamamos de
KANT, Emmanuel. Critique de la raison pure. Paris,
transformadores e mantenedores dos razão (Damásio: 1996: 23-76). Suas
Gallimard, 1980.
processos históricos. São suportes ou conseqüências mostrarão que o século XXI
elementos constituintes das novas linguagens será aquele da conquista de novas formas de NIETZSCHE, Friedrich.Da utilidade e desvantagens da
narrativas. narrativas e representações da história e de história para a vida, capítulo de A Filosofia na época
Para aqueles que não se rendem às um novo paradigma educativo baseado não trágica dos gregos.in Obras Incompletas. São Paulo,
Nova Cultural, 1999.
evidências é preciso dizer que o artista, ele mais na razão pura, mas na razão-sentimento,
mesmo, não é senhor absoluto da sua na razão poética . Se mais de 80% das ROSENSTONE, Robert. Visions of the past : the
linguagem ou da especificidade que ela informações (que são também formadoras) challenge of film to our idea of history. Londres, Harvard,
encerra. Mesmo querendo só fazer obra de são estruturadas pelas imagens, se a 1995.
arte “pura”, ela escapa ao seu criador lhe proliferação das novas tecnologias são mais
transcendendo. Assim, se o ato de criar não que incontornáveis, como poderão os VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa,
Edições 70, 1987.
é senhor de tudo, como o ato de pensar historiadores permanecer à margem desses
criticamente, ou historicamente, a criação novos processos sobretudo considerando que
poderia ser completo? a razão histórica, como a razão
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