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LIVROS DIDÁTICOS
1. Introdução
O presente texto, derivado do Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso do autor,
almeja estabelecer o nível de relação entre a historiografia sobre a Guerra dos Mascates (1710-
11) e as narrativas sobre ela encontradas em dois livros didáticos atuais do Ensino Básico
brasileiro. Essa problemática se apresentou para nós a partir da observação de que diversos
livros didáticos subestimam a relevância do conflito civil pernambucano: a maior parte lhe
concedia cerca de meia página ou sequer o discutiam, citando-o apenas, preferindo pôr em
destaque os conflitos do Ciclo do Ouro e as revoltas com caráter independentista.
Em relação a nossa metodologia, primeiramente, procuramos consultar a historiografia
disponível acerca do fato histórico, discorrendo sobre e analisando criticamente diferentes
obras. Devido às limitações de espaço para esse artigo e nosso próprio recorte referencial,
elencamos para nossa análise historiográfica os seguintes autores: Robert Southey, Francisco
Adolfo de Varnhagen, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Evaldo Cabral de Mello.
Seguindo, nos utilizamos de dois conceitos para caracterizar o que o Ensino de História
(e os seus materiais didáticos) deveria objetivar em sua configuração escolar-formal:
Consciência Histórica e Literacia Histórica, respectivamente concebidos por Jorn Rüsen e Peter
Lee. Outrossim, pautamos nossa concepção de Livro Didático a partir de Kazumi Munakata e
Circe Bittencourt, que tecem críticas tanto para sua confecção, aspectos e usos como para uma
história da pesquisa sobre o mesmo.
Por fim, selecionamos duas obras didáticas aprovadas pelo último Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD) para o Ensino Médio, válido para o triênio 2018-20. E, desse modo,
analisamos os trechos que tratavam da Guerra dos Mascates em cada uma delas, objetivando
enxergar justamente as linhas historiográficas que construíam as narrativas e como os discursos
estavam ou poderiam estar relacionados às nossas visões do Ensino de História e Livro
Didático.
Antes, contudo, pensamos ser prudente explanar brevemente sobre a Guerra dos
Mascates em si. Destarte, cabe dizer que sua ocorrência está em íntima relação com a Guerra
de Restauração dos luso-pernambucanos contra a Companhia das Índias Ocidentais e os
holandeses. Na segunda metade do século XVII, os senhores de engenho passaram a pleitear
muitos privilégios frente a Coroa, advogando que tinham reconquistado os domínios a El Rei
sem ajuda alguma da metrópole. Nesse contexto do post-bellum, Olinda, sede administrativa da
capitania de Pernambuco, estava sendo ofuscada pelo crescimento demográfico e econômico
do povoado do Recife, importante praça comercial e porto, mas que ainda era subordinado à
câmara olindense (MELLO, 2003, p. 141).
Recife havia atraído muitos migrantes da metrópole portuguesa, pessoas geralmente de
origem humilde e não-nobre (MELLO, 2003, p. 144) mas que encontraram no burgo
pernambucano uma forma de fazer riqueza (mascatear, comercializar) e reclamar para si certos
direitos. Os senhores de engenho, que monopolizavam a gestão municipal olindense, não viam
com bons olhos ceder tais direitos aos recifenses, com quem estavam em débito constante
devido à crise do açúcar, aos seus gastos ostentativos e suntuários e aos elevados juros cobrados.
Os mascates, na outra ponta, desejavam controlar os impostos municipais, arrematações e
cargos fiscalizantes. Os dois lados justificavam a briga política no esteio dos defeitos do Antigo
Regime: os nobres acusavam os mascates de possuírem defeito mecânico enquanto estes
acusavam aqueles de terem perdido a pureza de sangue na miscigenação com indígenas e negros
(MELLO, 2003, pp. 188-189).
Tendo isso em mente, uma das alternativas mascatais era separar-se do concelho
municipal de Olinda, erguendo câmara própria no Recife. Após muitas querelas, em 1709 a
Coroa portuguesa despachou ordem para se elevar o burgo portuário à condição de Vila com
termo próprio (MELLO, 2003, p. 244). Chegando a frota com o documento em 1710, o
governador Sebastião de Castro e Caldas fez levantar o pelourinho recifense, o qual gerou
insatisfação entre os nobres, que fizeram-no atentado falho e depois pegaram em armas e
puseram-no em debandada para a Bahia. Assim, discutiram quem deveria substituir o
funcionário fugido: alguns cogitaram formar uma república aristocrática, separada de Portugal;
a maioria dos pró-homens decidiu, entretanto, dar o poder ao bispo, Manuel Álvares da Costa,
como estava na lei e se fazia de costume.
Alguns meses se passaram e em 1711 os mascates organizaram o seu levante tomando
algumas posições importantes no Recife (MELLO, 2003, pp. 377-380), que foi posto sob cerco
dos olindenses. Algumas escaramuças aconteceram no litoral sul da capitania, mas o conflito
só se resolveu com a chegada do novo governador apontado pela Coroa, Félix José Machado,
que, a priori, se mostrou imparcial, mas logo impôs devassas para condenar os revoltosos de
Olinda e elevou permanentemente Recife à condição de Vila (MELLO, 2003, p. 411). Desse
modo, a cidade duartina continuou ofuscada pelo desenvolvimento do Recife, mas este alçou à
capital de Pernambuco somente no século XIX.
5. Considerações finais
Dessa maneira, verificamos que os dois livros didáticos analisados seguem um fio
explicativo comum: destacam os fatores econômicos e políticos que motivaram os dois
estamentos a se defrontarem mediante a sombra dos dois povoados, Recife e Olinda. Contudo,
não abordam fatores de cunho étnico-social, deixando de inserir os sujeitos históricos no seu
tempo e nas mentalidades desse tempo. Os autores também não comentam a tentativa de
secessão em forma republicana discutida por alguns senhores de engenho em 1710, cuja
ocorrência é ponto pacífico segundo a historiografia mais recente (MELLO, 2003).
Porém, pensamos ser positiva a ausência de caracterizações nativistas/nacionalistas e de
consciência cívica, já que podem ser consideradas termos de um paradigma historiográfico já
superado. Apesar disso, houve falhas nas consultas à bibliografia por parte dos autores dos dois
livros analisados, talvez por limitações editoriais e formativas, recortes historiográficos que
naturalmente acabam privilegiando outras obras, o simples desconhecimento ou a não-
importância dada deliberadamente ao conflito do Pernambuco Setecentista. Por fim,
ressaltamos que o Livro Didático é uma obra imperfeita, e é entendendo seus limites que todos
os sujeitos que o confeccionam, distribuem e utilizam podem utilizá-lo para um ensino histórico
significativo e transformativo.
6. Referências bibliográficas
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