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SILVA ALVARENGA
lírica retornou aos prelos, Quando a Verdade apare-
com os rondós e os madri- ce em sonhos ao preguiçoso
gais amorosos de Glaura. A “herói” de O desertor, começa
volta de O desertor – quase
MANUEL INÁCIO DA SILVA ALVARENGA a se esclarecer a postura de
150 anos depois da última Manuel Inácio da Silva Al-
edição integral – pode dar varenga, ao compor seu am-
início à redescoberta das bicioso poema satírico. “Eu
demais facetas do poeta. sou quem de intricados labi-
Neste caso, trata-se de
um poema herói-cômico, que
almeja provocar o riso ao
Que esperas tu dos livros?
Crês que ainda apareçam grandes homens
O DESERTOR rintos / Pôs em salvo a Ra-
zão ilesa, e pura” – diz ela,
mas sem ocultar seu estreito

Poema herói-cômico
dar tratamento épico a si- Por estas invenções, com que se apartam vínculo com o poder: “Se
tuações e personagens tidos são firmes por mim o Esta-
Da profunda ciência dos antigos?

O DESERTOR
como ridículos. Publicado do, a Igreja, / Se é no seio da
em 1774, tem como ponto Morreram as postilas, e os Cadernos: paz feliz o Povo, / Dizei-o
de partida a celebração da Caiu de todo a Ponte, e se acabaram vós, ó Ninfas do Parnaso”. A
reforma da Universidade pretendida pureza racional
de Coimbra empreendida
As distinções, que tudo defendiam, aparece diretamente ligada
com mão de ferro pelo mar- E o ergo, que fará saudade a muitos! à conservação das institui-
quês de Pombal. O protago- Noutro tempo dos Sábios era a língua ções político-religiosas, e
nista, Gonçalo, é o “desertor assim enfeixa de uma vez as
das letras”: dissoluto e mal-
Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba, noções de bom senso, boa
acostumado com os “intri- Ou se muda em pior. conduta e bom governo.
cados labirintos” da velha Isso basta para reconhe-
escolástica, agora banida, o cermos em O desertor um dos
rapaz não tem outra escolha textos mais importantes
senão fugir das salas de aula. Edição preparada por para o estudo e o desvela-
Assim se iniciam as peri- RONALD POLITO mento das especificidades
pécias do poema, entre as da ilustração luso-america-
quais não será das menos na no século XVIII. Silva
curiosas o fazer a sátira dos Alvarenga, no entanto, é o
costumes se confundir com ISBN 852680621-1 menos conhecido e divulga-
o elogio do poder. do dos árcades “ultramari-
nos”. Em todo o século XX,
Sérgio Alcides 9 788526 806214
praticamente só a sua poesia
O DESERTOR

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Reitor
FERNANDO FERREIRA COSTA
Coordenador Geral da Universidade
EDGAR SALVADORI DE DECCA

Conselho Editorial
Presidente
P AULO F RANCHETTI
A LCIR P ÉCORA – A RLEY R AMOS M ORENO
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J OSÉ R OBERTO Z AN – M ARCELO K NOBEL
S EDI H IRANO – Y ARO B URIAN J UNIOR

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Manuel Inácio da Silva Alvarenga

O DESERTOR
Poema herói-cômico

Edição preparada por


Ronald Polito

Notas ao poema
Joaci Pereira Furtado
e Ronald Polito

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO

Alvarenga, Manuel Inácio da Silva, 1749-1814


AL86d O desertor: poema herói-cômico / Manuel Inácio da
Silva Alvarenga; notas ao poema Joaci Pereira Furtado,
Ronald Polito. – Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2003.

1. Alvarenga, Manuel Inácio da Silva, 1749-1814 –


Crítica e interpretação. 2. Poesia brasileira – História e
crítica. 3. Sátira brasileira – História e crítica.
I. Polito, Ronald. II. Furtado, Joaci Pereira. III. Título.

CDD B869.126
e- ISBN 85-268-1198-3 B869.126

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia brasileira – História e crítica B869.126


2. Sátira brasileira – História e crítica B869.126

Copyright © by Editora da Unicamp, 2003

1a reimpressão, 2010

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www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
Este trabalho seria irrealizável sem a ajuda de diversos
amigos, que de lugares os mais distantes se prontificaram ime-
diatamente a me auxiliar.
Quero agradecer em primeiro lugar a Carlos Fico por
sua plena disponibilidade diante de cada solicitação que lhe
fiz. E não foram poucas as minhas demandas. Em segundo, a
Joaci Pereira Furtado, que tão prontamente aceitou o meu
convite para que dividíssemos a autoria das notas ao poema,
bem como revisou partes deste trabalho.
Lembro ainda Júlio Castañon Guimarães, Luciana
Inhan, Duda Machado, Jardel Dias Cavalcanti e Marli Elias
Veisac, que pesquisaram textos, providenciaram e enviaram
fotocópias indispensáveis.
Sou grato também a Júlio César Vitorino, que localizou
em edições atuais as citações em latim do poema e as traduziu.
Igualmente colaboraram outros amigos, providencian-
do materiais, contactando instituições, sugerindo leituras, che-
cando dados e fornecendo informações valiosas: Sérgio Alcides,
Fabio Weintraub, Andréa Lisly Gonçalves, Marcelo Módolo,
Márcia Arruda Franco, Ana Jardim e Suely Maria Perucci
Esteves.
A todos, meus melhores agradecimentos.

Ronald Polito
Fuchuu-shi, 27 de novembro de 2002

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S UMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 9
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 15
SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO ............................................................................................... 57

O DESERTOR

Discurso sobre o poema herói-cômico ....................................................................... 71

Canto I ............................................................................................................................................. 75
Canto II .......................................................................................................................................... 88
Canto III ........................................................................................................................................ 96
Canto IV .................................................................................................................................... 105
Canto V ....................................................................................................................................... 119

Soneto ........................................................................................................................................... 130


Soneto ........................................................................................................................................... 131

NOTAS E VARIANTES ............................................................................................................ 133

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A PRESENTAÇÃO

A importância de O desertor: poema herói-cômico (1774),


de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, é grande para a história
do gênero e para a história da cultura da época, que marcou,
tão profundamente, o devir da cultura moderna do Brasil, não
obstante esta obra ter sido eclipsada pela fama de outras pos-
teriores do autor, mais próximas da nova sensibilidade do sé-
culo XIX, especialmente por Glaura: poemas eróticos (1799),
que deu a este poeta arcádico fama como introdutor de um
novo erotismo lírico, “correto na linguagem, poético nas ima-
gens, natural, sensível e melodioso nas redondilhas”, como já
o avaliava Francisco Adolfo de Varnhagen em seu Ensaio his-
tórico sobre as letras no Brasil (1847).1
Embora O desertor fosse sempre citada entre as obras de
Manuel Inácio da Silva Alvarenga, estava à espera de uma edi-
ção crítica que a restituísse, com dignidade, à historiografia
da literatura brasileira. A presente edição, apegada aos mais
autorizados critérios filológicos, amplamente anotada e pre-
cedida duma pertinente e documentada “Introdução”, vem preen-
cher um vácuo da história da literatura luso-brasileira do pe-
ríodo neoclássico. Por isso seu aporte é grande tanto para
novas pesquisas como para o ensino universitário, tanto no
Brasil como em Portugal e, ainda, na América Hispânica, onde
o interesse pela sátira ilustrada é crescente.

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À diferença das literaturas hispânicas, nas quais o pró-
prio nome “herói-cômico” é desconhecido e rarissimamente
usado, optando-se comumente pelo de “poesia burlesca” para
designar esta categoria de poemas,2 na literatura luso-brasilei-
ra configurou-se uma tradição que perdurou ao longo do sé-
culo XIX e passou inclusive ao século XX, com obras já maio-
res da literatura no Brasil. Com certa razão chegou-se a con-
siderar Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928) um
“poema herói-cômico” e, segundo testemunho do próprio
Mário de Andrade, seu primeiro ensaio poético (1904) teria
sido uma tentativa de escrever um “poema héroi-cômico”.3
Mas talvez o exemplo mais notável como paródia do
modelo clássico, em plena literatura moderna brasileira, seja
O Almada, de Machado de Assis,4 obra que merece ser estu-
dada como leitura crítica e paródica, e porventura como pon-
to culminante desta longa tradição satírica. Seguramente
seriam encontradas nesta fase do poeta Machado de Assis cha-
ves importantes para novos estudos sobre sua enorme e ines-
gotável obra narrativa.
Com a devida perspectiva histórica, por outro lado, re-
sultaria interessantíssimo comparar O Almada com O desertor,
tanto pelo que se refere a suas fontes ou modelos como a sua
estrutura, a carga de sentido do gênero e a forma diferente de
interpretá-lo. Ambos os autores, com distância de mais de um
século, em suas respectivas introduções, adotam uma atitude
inaugural; Silva Alvarenga ao discorrer sobre o gênero, Ma-
chado mais explicitamente. Ambos evocam sobretudo o gran-
de modelo: Le lutrin de Boileau, ainda que mais notadamente
Machado que Alvarenga. Não sabemos com certeza, por ou-
tro lado, se este último teria lido O hissope (1772), de Antô-
nio Diniz da Cruz e Silva.5 Em caso afirmativo, o que pare-
ceria mais provável,6 a omissão que Alvarenga faz desta obra

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precursora resultaria altamente significativa, por pertencer
Diniz ao grupo contrário dos poetas de então. Machado de
Assis, em troca, faz de Le lutrin e de O hissope as “duas com-
posições célebres que me serviram de modelo”.
Escreve Silva Alvarenga em seu “Discurso” preliminar:

Uns sujeitaram o poema herói-cômico a todos os precei-


tos da Epopéia, e quiseram que só diferisse pelo cômico
da ação, e misturaram o ridículo, e o sublime de tal sor-
te, que servindo um de realce a outro, fizeram aparecer
novas belezas em ambos os gêneros. Outros omitindo,
ou talvez desprezando algumas regras, abriram novos ca-
minhos à sua engenhosa fantasia, e mostraram disfarçada
com inocentes graciosidades a crítica mais insinuante,
como M. Gresset no seu Ververt.

De que se poderia deduzir que o árcade inclina-se mais


para a sátira — à custa inclusive de desprezar algumas regras
— que para a mera imitação paródica da epopéia, como seria
o caso de Paul Scarron7 e ainda de Boileau. Machado de Assis
pensará de maneira diferente. Escreve:

Um pouco de ambição me levou contudo a meter mãos


à obra e perseverar nela. Não foi a de competir com Diniz
e Boileau; tão presunçoso não sou eu. Foi a ambição de
dar às letras pátrias um primeiro ensaio neste gênero di-
fícil. Primeiro digo, porque os raros escritos que com a
mesma designação se conhecem são apenas sátiras de oca-
sião, sem nenhumas intenções literárias. As deste são
exclusivamente literárias.

Torna-se também interessante a omissão que, por seu


turno, faz Machado de O desertor, considerando-a seguramente
mais uma dessas “sátiras de ocasião”; assim como o fato de

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fazer de O hissope um de seus dois principais modelos, talvez
também porque, como a obra de Diniz, O Almada é, em gran-
de medida, um ataque ao clero corrupto, neste caso um infa-
me prelado do século XVII.
O Almada conheceu sorte pior que O desertor, pois, se
esta última obra é sempre mencionada, ainda que subestima-
da, entre as obras de Alvarenga, aquela não costuma nem se-
quer ser lembrada em meio à extensa produção de Machado
de Assis. Recentemente seu manuscrito foi resgatado e restau-
rado por uma benemérita instituição, um bom augúrio de que,
por esse destino imanente da vida histórica, a obra volta a vir
à superfície e espera revelar seu oculto sentido, com a neces-
sária distância crítica, ao estudioso de hoje. Esse sentido po-
derá ser melhor revelado ao compará-la com O desertor, do
qual é também um bom augúrio esta autorizada e pulcra edi-
ção devida ao conspícuo pesquisador Ronald Polito e à cola-
boração prestada por seu colega e discípulo Joaci Pereira Fur-
tado, jovem e já laureado pesquisador da sátira colonial.
Tanto O desertor como O Almada pertencem a essa ín-
dole de obras que, por longo tempo, permanecem sepultadas,
mas que, pelas poderosas correntes subterrâneas da cultura que
as nutrem, um dia saem à flor da terra e que, como escreve
um crítico moderno, costumam dar-nos, melhor que outras
obras maiores, as chaves de uma literatura.8
A distância que vai de O desertor a O Almada é a dis-
tância onírica que vai do letrado colonial, que sonha ainda com
o projeto ilustrado, ao despertar amargo e descrente do escri-
tor brasileiro moderno. E essa distância é a que permite resti-
tuir ao gênero sua primitiva condição literária, pois talvez o
auge do poema herói-cômico tenha começado a se dar com
o desencanto da epopéia, em franca decadência já em fins do
século XVII. Em meio às contraditórias vertentes do Ilu-

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minismo, como assinala Paul Hazzard, estão aqueles que,
como Boileau, aspiram a uma vida sedentária e aprazível, e
os de espírito aventureiro e reformista.9 Boileau, no Canto III
do Arte poética, fustiga os poetas épicos modernos, que mais
que assombro inspiram riso. Porém, ao mesmo tempo, estão
aqueles outros empreendedores, construtores e arquitetos da
“Restauração”, que fazem dos recursos da cultura clássica, e
com eles dos gêneros literários, um tour de force, como
Alfieri com a tragédia, na Itália. 10 E se, com a consolidação
política das nações européias nos séculos XVII e XVIII, a epo-
péia perdia sua razão de ser, não acontecia o mesmo com as
velhas metrópoles que estavam no momento decisivo de afir-
mar suas já frágeis fronteiras em seus vastos domínios, como
Espanha e Portugal; ou com as emergentes nações latino-
americanas que começavam a nascer. Particularmente para
estas, ainda prospectos de países, a cultura da ilustração pro-
jetava-se na esfera do desejo, do sonho dourado, como preci-
samente projeta-se no Canto IV de O desertor, quando ao po-
bre Gonçalo, “pedagogicamente” moído a pauladas (lembre-
se de O Ateneu de Raul Pompéia), defraudado, encurralado,
é-lhe representada em sonhos essa outra universidade onde rei-
nam a física e as ciências naturais. Talvez neste simbolismo se-
ria possível reconhecer a verdadeira brasilidade de O desertor,
e não, como se quis ver tradicionalmente, em algumas notas
de cor local.

Jorge Ruedas de La Serna


Facultad de Filosofía y Letras, UNAM

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N OTAS

1
Para a “fortuna crítica” de O desertor, ver o documentado estudo de Ronald
Polito, nesta edição.
2
Entre os panoramas históricos espanhóis que tratam da “épica burlesca”,
uma das raras exceções que define o gênero “herói-cômico” são os
Princcipios generales de literatura e historia de la literatura española, de
Manuel de la Revilla e Pedro Alcántara García (Madri: Librería de Fran-
cisco Iravedra, 1877). Ver também o que a respeito escreve Ronald Polito
em seu estudo preliminar a esta edição.
3
Cf. Homero Senna, República das letras. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1996.
4
Machado de Assis, O Almada. Em Obra completa, vol. III. Rio de Janei-
ro: Nova Aguilar, 1994.
5
Como lembra Ronald Polito, Antonio Candido crê que Silva Alvarenga pôde
ter-se familiarizado com o poema herói-cômico de Boileau através de O hissope
de Antônio Diniz da Cruz e Silva. Ver adiante, nota 53, p. 54.
6
Ronald Polito, na “Introdução” a este volume, indica diversas coincidên-
cias textuais que poderiam apoiar esta hipótese.
7
Ver adiante, p. 27.
8
Roger Picard, El romanticismo social, 2 a ed. México: Fondo de Cultura
Económica, 1987.
9
Paul Hazzard, La crisis de la conciencia europea (1680-1715). Madri:
Pegaso, 1952.
10
George Steiner, La muerte de la tragedia. Caracas: Monte Ávila, 1991.

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INTRODUÇÃO

Pequena fortuna crítica

Dentre os mais reconhecidos poetas árcades ligados à li-


teratura brasileira, Manuel Inácio da Silva Alvarenga é, sem
dúvida, o menos estudado. Basta consultarmos as vastas bi-
bliografias sobre Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel
da Costa ou Basílio da Gama, por exemplo, para nos darmos
conta disto. Do mesmo modo, se verificarmos a história edi-
torial das obras destes autores, notaremos que Silva Alvarenga
é o menos reeditado, ao passo que os demais têm merecido
edições recentes, cuidadas e anotadas. De Silva Alvarenga, ape-
nas o livro Glaura: poemas eróticos mereceu várias reedições,
sem que nenhuma possa ser considerada efetivamente crítica.
E com respeito a longos e minuciosos estudos contemporâ-
neos de sua obra, eles são praticamente inexistentes, resumin-
do-se ao livro Silva Alvarenga: antologia e crítica, de Fritz
Teixeira de Salles,1 que apresenta uma introdução mais alen-
tada sobre o poeta. Não obstante, as reedições de Glaura e es-
tudos como o de Fritz Teixeira de Salles servem, ao menos,
para contrariar algumas opiniões, como a de Nelson Werneck
Sodré, para quem toda a obra literária de Silva Alvarenga “não
oferece nenhum interesse à leitura atual”.2

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Especificamente com relação a O desertor: poema herói-
cômico, sua fortuna crítica é bem pobre se comparada com a
de Glaura. Estamos fadados a comentários de poucas linhas,
ou a nenhum comentário, nas histórias gerais da literatura bra-
sileira, com raras exceções, como é o caso de Antonio Candido,
afora um ou outro ensaio breve que oportunamente será ci-
tado. A recepção crítica do poema também não é homogê-
nea, ressaltando-se três posições mais freqüentes: as que ne-
gam ao poema praticamente qualquer validade estética; as que
adotam um meio-termo e verificam nele alguma relevância
estética ou histórica; as que tentam retirá-lo do limbo a que
foi lançado, buscando afirmar sua importância. De longe, a
primeira postura é a mais freqüente, tanto quanto são raros
os que pertencem às outras orientações. Resenhemos breve-
mente a história de sua recepção.
O esquecimento da obra de Silva Alvarenga não é fato
recente, podendo ser reportado ao século XIX. Dos vários histo-
riadores e críticos do Romantismo, apenas Sismonde de Sis-
mondi e Ferdinand Wolf citam Silva Alvarenga — o primeiro
o livro Glaura, o segundo também esse livro, além de dois poe-
mas: Poema das artes (assim intitula o poema Às artes) e À mo-
cidade portuguesa. Nenhum dos dois se refere à obra satírica do
autor. E Friedrich Buterwerk, Ferdinand Denis, Almeida Garrett,
Gama e Castro, C. Schilichthorst e Alexandre Herculano nem
sequer chegam a mencionar o nome do poeta.3
Exceção entre a crítica estrangeira do XIX foi Adrien
Balbi, certamente o primeiro a comentar O desertor, em 1822,
e já lhe alterando o título:

Il a composé un grand nombre de poésies, parmi les-


quelles les poèmes o Desertor das Letras (le Déserteur des
lettres) et la Glaura se distinguent par un mérite réel.

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Ses satires contre les vices, la traduction en vers portugais
d’Anacréon et d’autres poésies, ont été imprimées. Une
belle versification, des pensées vraiment philosophiques,
et une critique aussi fine que délicate, se font remarquer
dans toutes ses compositions.4

Cremos que o primeiro comentador brasileiro mais sis-


temático da obra de Silva Alvarenga tenha sido Joaquim
Norberto, que organizou, em 1864, a edição das Obras poéti-
cas de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, até hoje a única pu-
blicação que busca reunir o maior número de textos do au-
tor. Do poema nos diz Joaquim Norberto, também interfe-
rindo no título:

ficou o Desertor das letras muito aquém dos seus mode-


los, talvez por nada ter de cômica a ação que escolheu
para assunto do poema. Todavia convém não esquecer
que semelhante casta de composições perde com o tem-
po e a localidade todo o seu interesse intrínseco e por-
ventura o seu maior mérito. [...] Boa e mesmo excelente
é a metrificação; claro e expressivo o estilo, sustentando-
se em altura conveniente sem que desça e degenere em
baixo e vil a mais não poder ser, como nas sórdidas com-
posições de José Agostinho de Macedo. São bonitos e
engraçados muitos de seus lances e agradam pela cor lo-
cal de que os soube repassar o autor.

Note-se que, em passagem anterior, o mesmo Joaquim


Norberto expressará opinião diversa sobre a fatura do poema,
ao considerar que “a versificação é desigual senão desleixada”.5
Como comentaremos mais adiante, com esta citação se inicia
também uma interpretação sempre recorrente na crítica: a pre-
sença da “cor local” no poema como índice de sua validação
para a história literária brasileira.

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Sílvio Romero é ainda mais taxativo na desqualificação
do poema. Para ele, O desertor é “uma composição insípida”,
“quase intolerável”, que nada vale como produto humorísti-
co.6 José Veríssimo não se distancia deste veredicto, ao consi-
derar que “fraco é o mérito literário deste poema”. Mas acres-
centa: “Não é, todavia, despiciendo como documento de um
novo estado de espírito, mais liberal e desabusado, da socie-
dade portuguesa sob a ação de Pombal, e do caminho que ha-
via feito em espíritos literários brasileiros o sentimento pátrio,
manifestado no poema em alusões, referências, lembranças de
cousas nossas”.7 Aqui importa menos observar a retomada do
tema da “cor local”, já presente em Norberto, do que anotar
o surgimento de outros temas também recorrentes na fortu-
na crítica do poema: o de sua caracterização como documento
e como crítica liberal.
As observações destes três autores serão praticamente re-
petidas ad infinitum pela crítica posterior. Senão vejamos.
António José Saraiva e Óscar Lopes entendem que o poema
tem pouco interesse literário, mas anotam que conheceu al-
guma celebridade em sua época.8 Antônio Houaiss acentuará
a presença do liberalismo nas sátiras de Alvarenga, que “reve-
lam o homem voltado para o futuro, preocupado com as ino-
vações tendentes ao liberalismo em suas diversas manifesta-
ções, interessado nas questões didáticas de renovação da menta-
lidade intelectual e apegado aos problemas do seu meio”.9
Alfredo Bosi vai ainda além, considerando Silva Alvarenga um
“militante ilustrado”, sem estar se referindo especificamente a
O desertor, mas ao conjunto de sua obra e à sua biografia.10
José Guilherme Merquior baterá na mesma tecla: se o poema
tem “pequena importância artística”, “baseia seu humor na vi-
são do triunfo ilustrado sobre a universidade obscurantista,
reformada por Pombal. A verdade aparece, personificada, ao

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herói iluminista, adepto fervoroso do ‘invicto marquês’”.11 A
observação de Merquior é extremamente confusa, pois no poe-
ma o herói (ou anti-herói, melhor dizendo) é mostrado exata-
mente como contrário à modernização dos estudos e em ne-
nhum momento é caracterizado como adepto do marquês de
Pombal. Esses atributos, ou melhor, o segundo atributo pode
ser conferido ao narrador do poema.12 Com respeito ao pri-
meiro, o de iluminista, o poema é muito mais ambíguo do
que supõem estas leituras ligeiras. Massaud Moisés, comen-
tando O desertor e Às artes, dirá que “esses poemas enfermam
das limitações históricas inerentes a tal gênero de poesia”. E
ainda acrescenta:

Lástima que a patente habilidade artesanal de Silva Alva-


renga fosse posta a serviço de uma produção poética vi-
zinha do jornalismo e que possui mérito ou interesse
quando violenta o estatuto poético: à proporção que
avulta o fato merecedor de sátira, mais informações de
natureza histórica e cultural são carreadas para o interior
do poema; em contrapartida, a poesia tende a dissipar-
se, pois quanto mais próxima de realizar-se como sátira,
e por isso interessar mais à História da Cultura, menos
interesse exibe do prisma literário. 13

O argumento é improcedente, pois são raras no poema,


como se depreende de sua leitura, as aludidas informações de
natureza histórica, residindo o efeito satírico em outro lugar.
Afora este aspecto, o autor subestima o gênero satírico atre-
lando-o à história cultural e retomando a velha hierarquia dos
gêneros poéticos que, hoje como ontem, privilegia o registro
épico e o lírico. Citemos ainda a opinião de Waltensir Dutra,
para quem o poema “merece o esquecimento em que se en-
contra”, não tendo sequer “interesse histórico”.14 Pode-se ainda

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chegar ao absurdo de uma afirmação como esta: “por causa de
sua finalidade áulica, [O desertor] perde totalmente a signi-
ficação”.15
Mais raros são os que atribuem alguma importância a
O desertor. Além de Balbi, já citado, merece menção Varn-
hagen, para quem “não falta merecimento” ao poema. 16
Haroldo Paranhos anotará que o poema “tem a forma elegan-
te, o estilo elevado e fluente, contendo algumas irreverências,
só explicáveis pela influência que exercia sobre os espíritos cul-
tos da época a política reacionária de Pombal”.17 Joaquim
Ferreira dirá que “a fluência neles [dos versos do poema] é
aprazível e a ironia discreta, as pinturas coloridas”.18 Mas tal-
vez o intérprete mais favorável ao poema seja Ivan Teixeira.
Sua abordagem é incisiva: “iniciou-se, desde os primeiros ro-
mânticos, um processo de desconsideração sistemática de poe-
mas inteiros, como deixa ver a fortuna crítica de O Desertor”,
que foi “integralmente esquecido”. Ressalta também que o
encômio foi o “responsável pela evolução do gênero narrati-
vo em verso que, no mínimo, gerou poemas híbridos da
maior importância na experiência da língua portuguesa”, den-
tre os quais O Uraguay, O desertor e O reino da estupidez. Para
Teixeira, Silva Alvarenga, “em certo sentido, faria um dos me-
lhores textos pombalinos, O Desertor”, incorporando “postu-
ras identificadas com algumas idéias importantes da ilustra-
ção francesa e da poética setecentista portuguesa”.19
Talvez um meio-termo esteja em leituras como as de
Fritz Teixeira de Salles e Antonio Candido. O primeiro ob-
serva que O desertor, “sendo muito longo, apresenta certas pas-
sagens de efeito, mas no conjunto é monótono”.20 Candido,
cujos comentários críticos são bem mais importantes, abor-
dará o “pombalismo literário” e o “pombalismo educacional”21
de Alvarenga e assinalará o retrato bastante engraçado dos ti-

20

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pos estudantis, além do “otimismo que fura por entre os ver-
sos e o bom humor sadio das peripécias”. E dirá ainda:

os decassílabos brancos são fluentes, mas o poema não é


muito bem composto, faltando clareza na configuração
e articulação dos episódios, muitas vezes desprovidos de
interesse. Embora dê uma visão dos costumes e estado
de espírito do momento, perdeu no correr do tempo
bastante força cômica, ligada a circunstâncias que a tor-
nariam significativa para os contemporâneos.22

Como se vê, a fortuna crítica sobre o poema, mesmo que


em alguns comentários seja de alta qualidade, é contudo mí-
nima, havendo ainda muito por ser feito no que se refere à
sua interpretação. Há outros trabalhos que merecem ser refe-
ridos, o que faremos adiante, mas ainda está por ser escrito
um trabalho de fôlego que estabeleça em minúcias as relações
do poema com seus congêneres e sua época, caracterizando-o
também do ponto de vista literário e mais estritamente ideo-
lógico. Esta breve Introdução pretende apenas fornecer algu-
mas pistas para futuros pesquisadores.

O poema herói-cômico

Uma boa definição do poema herói-cômico talvez seja


a de Nicolas Boileau Despréaux, um dos grandes mestres no
gênero, em Le lutrin: “C’est un Burlesque nouveau, dont je
me suis avisé en notre langue. Car, au lieu que dans l’autre
Burlesque Didon et Enée parloient comme des Harengeres et
des Crocheteurs; dans celui-ci une Horlogere et un Horloger
parlent comme Didon et Enée”.23 O poema herói-cômico rea-

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liza, portanto, algo novo no âmbito do poema burlesco tal
como era praticado. No poema burlesco, geralmente, os deu-
ses e heróis são apresentados de forma trivial e em linguagem
comum, enquanto neste novo burlesco que é o poema herói-
cômico abordam-se um assunto trivial e personagens ridícu-
los de modo solene e em tom épico. Como nos lembra An-
tonio Candido, retomando Nicolas Boileau, consiste “a maes-
tria em elaborar praticamente no vácuo”.24 Aparentemente,
ainda segundo Candido, a sátira ficava em segundo plano e a
jogralice poética assumia o proscênio, “mas o que poderia sig-
nificar abdicação do espírito crítico importava algumas vezes
em disfarce cômico para dizer certas verdades em regimes de
opressão”.25
O primeiro que empregou o termo herói-cômico (em
italiano, eroicomico) foi Alessandro Tassoni, no poema La
secchia rapita (O balde roubado), publicado em 1622, mas
escrito em 1614 e 1615. O poema herói-cômico, ao menos
na Itália, surge como reação ao poema épico-cavalheiresco, que
prolifera a partir de Ariosto e de Tasso. O poema herói-cô-
mico, pelo contrário, trata um sujeito ou uma matéria fúteis
e ligeiros com tom solene e linguagem do poema épico, como
já dissemos, de modo que do contraste entre conteúdo e for-
ma nasce o riso, como esclarecem o Lessico universale italia-
no, sob direção de Umberto Bosco, e a Enciclopedia europea.
Insere-se na inclinação seiscentista e barroca por tudo que é
grotesco, bizarro e dessacralizante. No Setecentos o herói-cô-
mico adquiriu conteúdo de sátira social, política, ideológica
e anticlerical, tanto na Itália quanto em outras partes.
Já na França, é possível datar com precisão o apareci-
mento do termo héroï-comique, empregado como adjetivo em
1640, por Saint-Amant (ver a este respeito o Trésor de la lan-
gue française e o Dictionaire de la langue française, de Émile

22

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Littré). O principal poema herói-cômico francês é o Le lutrin:
poème héroï-comique, de Nicolas Boileau Despréaux, cuja pri-
meira parte foi publicada em 1674, contendo os Cantos I a
IV, e a segunda em 1683, com os Cantos V e VI.
Em língua inglesa não localizamos datas exatas. Geral-
mente, o seu surgimento é relacionado ao The rape of the lock:
an heroi-comical poem, de Alexander Pope, iniciado em 1711
e publicado entre 1712 e 1717 (The Oxford English dic-
tionary). Mas talvez o heroicomic tenha surgido um pouco an-
tes, em 1705, como informa o Random house unabridges
dictionary, na segunda edição. Note-se que heroicomic é sinô-
nimo de mock-epic, e Jonathan Swift, em seu Battle of the
books, de 1704 (que é uma variação em torno do tema de Le
lutrin, de Nicolas Boileau Despréaux), produz um texto em
prosa denominada mock-heroic (Britannica).
Em língua espanhola, esta questão é um pouco mais de-
licada. A palavra mais próxima do termo “herói-cômico” se-
ria “burlesco”, que, contudo, designa um gênero literário de
grande amplitude, abarcando desde a epopéia à inscrição, com
o objetivo de produzir o riso através de dois procedimentos
básicos: pintar personagens elevados e ações grandiosas com
cores e em situações comuns, ou, pelo contrário, pintar com
pompa e solenidade coisas pequenas, vulgares e até baixas.
Neste segundo sentido, e se o burlesco associa-se ao tratamen-
to épico, teremos o poema herói-cômico.26 A palavra “bur-
lesco” deriva da palavra “burla” (nos sentidos de zombaria,
brincadeira, gracejo), presente no catalão a partir do século
XIV e na língua portuguesa desde pelo menos 1446. Ao que
parece, foi adotada pelos italianos, que criaram o derivado
“burlesco”, em uso na Itália já na metade do século XVI. Da
Itália teria retornado para a Espanha, onde passou a ser em-
pregado possivelmente em princípios do século XVII.

23

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Talvez os primeiros que utilizaram na literatura em lín-
gua espanhola o termo “burlesco” tenham sido Lope de Vega
e Miguel de Cervantes. O primeiro, na comédia Santiago el
Verde, possivelmente escrita em 1615, segundo a ordem cro-
nológica das comédias de Lope de Vega fixada por Griswold
Morley e Courtney Bruerton. Cervantes também empregou
o termo em Don Quijote de la Mancha, na segunda parte
publicada em 1615, precisamente nos capítulos 22 e 36. Por
fim, ele aparece dicionarizado pela primeira vez por Francisco
Sobrinho, no Diccionario nuevo de las lenguas española y fran-
cesa, de 1705. 27 Por outro lado, o termo herói-cômico ou
sinonímias, como epopéia burlesca ou poema épico-burlesco,
ainda que sejam empregados em dicionários espanhóis de ter-
mos literários ou em estudos sobre os poemas herói-cômicos
espanhóis, praticamente não constam nos dicionários em ge-
ral da língua espanhola.28
Os exemplos mais célebres especificamente de poemas
herói-cômicos em língua espanhola são o poema La mosquea,
de José de Villaviciosa, publicado em 1615, que por sua vez
emula o poema em dísticos macarrônicos La moschaea, do ita-
liano Teofilo Folengo, publicado em 1521 e em edição defi-
nitiva em 1552. Possivelmente, o poema de Villaviciosa seja
o primeiro herói-cômico a ser editado, já que antecede em sete
anos a La secchia rapita, de Alessandro Tassoni. Alguns anos
depois, em 1634, Lope de Vega publica o volume intitulado
Rimas humanas y divinas de Tomé de Burguillos, no qual in-
clui seu famoso poema herói-cômico “La gatomaquia”.
Tal como no caso da língua inglesa, também não é pos-
sível determinar com rigor o surgimento do termo em língua
portuguesa, pois ainda não possuímos dicionários etimológicos
realmente detalhados e com datações precisas. Raphael Bluteau
não registra o termo, mas Moraes Silva, em seu Dicionário da

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língua portuguesa, publicado em 1813, já o introduz. Pro-
vavelmente, o primeiro poema herói-cômico escrito em lín-
gua portuguesa seja A monocléia, de frei Simão Antônio de
Santa Catarina (1676-1733). Ainda que só tenha sido publi-
cado em 1894, tal como informa Alberto Pimentel, em seu
livro fundamental sobre o assunto, intitulado Poemas herói-
cômicos portugueses, o poema de frei Simão é do princípio do
século XVIII. “Jornada às cortes do Parnaso”, de Diogo de
Sousa, é possivelmente o segundo poema herói-cômico por-
tuguês, tendo sido publicado no tomo V de A fênix renascida,
em 1728.
Aqui entendemos o poema herói-cômico como um tipo
de sátira e não como um gênero específico.29 Segundo João
Adolfo Hansen, a sátira

não tem a unidade prescrita de outros gêneros; é mista,


como mescla de alto e baixo, grave e livre, trágico e cô-
mico, sério e burlesco. Basicamente inclusiva — “depen-
dente” ou “polifônica” —, a sátira mistura tópicas varia-
das da invenção retórico-poética, amplificando formas e
procedimentos da elocução. Ressalta, na sua voz fantás-
tica, o hibridismo, na medida mesma em que é construída
de citações eruditas, de sentenças irônicas, de descrições
hiperbólicas, de agudezas e vilezas de estilo baixo e sór-
dido, de paródia dos gêneros elevados etc. Constitui-se,
parte por parte, de sinédoques de gêneros oratórios e
poéticos, e pode assumir qualquer forma.30

Uma delas, segundo nosso entendimento, é o poema


herói-cômico.
Mais de um autor já salientou a importância que o gê-
nero satírico assumiu durante o período moderno, particular-
mente no século XVIII. Para Luís de Sousa Rebelo, em Por-

25

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tugal, no século XVIII, principalmente no interior do neo-
classicismo, ele se torna o gênero mais importante:

Nas mãos dos pensadores e filósofos burgueses, imbuí-


dos do racionalismo, ela iria servir os interesses de classe
e abrir caminho, pela mofa e por uma zombaria impla-
cáveis, à transformação mental que as circunstâncias so-
ciais impunham. O ataque frontal é dirigido contra a
antiga nobreza, que governava o País à sombra do poder
real absoluto, e estende-se ao clero, que é não só um for-
te proprietário fundiário como também o zelador e pro-
motor da ideologia oficial.31

E neste contexto, o principal poema português herói-


cômico-satírico foi O hissope, de Antônio Diniz, que ataca cor-
rosivamente o clero da época.
No prefácio a O desertor, Silva Alvarenga busca legiti-
mar o poema herói-cômico referindo-se a vários poemas an-
tigos e modernos que dele seriam exemplos:

Esta poesia não foi desconhecida dos antigos. Homero


daria mais de um modelo digno da sua mão, se o tempo,
que respeitou a Batracomiomaquia, deixasse chegar a nós
o seu Margites, de que fala Aristóteles no cap. 4 da Poé-
tica, dizendo que este poema tinha com a comédia a
mesma relação que a Ilíada com a tragédia. O Culex, ou
seja de Virgílio, ou de outro qualquer, não contribui
pouco para confirmar a sua antiguidade.

Entre os modernos, cita La secchia rapita, de Alessandro


Tassoni, Le lutrin, de Nicolas Boileau Despréaux, Hudibras,
de Samuel Butler (poema em três partes, publicadas respecti-
vamente em 1663, 1664 e 1678), e The rape of the lock, de
Alexander Pope, além de Jean Baptiste Louis Gresset, com seu

26

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Vert-Vert (cuja primeira edição é de 1734). Curiosamente, e
como já havia notado Antonio Candido, deixa em parágrafo
à parte a seguinte anotação: “Não faltou quem tratasse comi-
camente uma ação heróica; mas esta imitação não foi também
recebida, ainda que a paródia da Eneida, de Scarron, possa ser-
vir de modelo”. Aqui Alvarenga está se referindo a Paul Scarron
(1610-1660), escritor francês que publicou, entre 1648 e
1653, o Virgile travesti en vers burlesques, epopéia burlesca de
enorme sucesso na época, constituída de oito cantos, que são
a paródia dos oito primeiros cantos da Eneida, de Virgílio.
Scarron, entre outras fontes, emula L’Eneide travestita, de G.
B. Lalli, publicada em 1633. Esta obra de Scarron parece não
ser um poema herói-cômico em sentido estrito, talvez perten-
cendo a outra variante do gênero satírico, o poema burlesco.
É muito curioso o fato de Alvarenga não citar nenhum
poema herói-cômico em língua espanhola em sua lista de
exemplos. Tanto La mosquea, de Villaviciosa, quanto “La
gatomaquia”, de Lope de Vega, eram textos “clássicos” neste
campo literário. Talvez isto se explique, em parte, pela forte
reação da teorização neoclássica e arcádica ao seiscentismo li-
terário espanhol, particularmente de Góngora, mas também
de Lope de Vega, buscando com isto restaurar o “bom gos-
to”.32 Cabe mencionar ainda que, em Portugal, a Arcádia Lu-
sitana e o grupo da Ribeira das Naus, ainda que divergissem
em vários aspectos, o que retomaremos mais adiante, estavam
unidos por temas admitidos como verdades incontestes: “sua
adoração a Horácio, a idéia do bom gosto como antítese do
Seiscentismo, que sobretudo os árcades consideravam uma
aberração infecciosa, enquanto os filintistas e depois os
elmanistas (ou partidários de Bocage) reivindicavam em par-
te, pelo lado de sua contribuição à poesia popular, particular-
mente Quevedo”.33 Filinto Elísio, por exemplo, escreve um

27

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longo poema satírico no qual Quevedo é inclusive seu inter-
locutor, o “Debique, oferecido ao senhor H. J. B.”. E o “Corvo
do Mondego”, como Garção chamava Francisco de Pina e
Melo, outro membro do grupo da Ribeira das Naus, mante-
ve-se apegado não só ao conceptismo como aos elementos da
cultura popular. Como se vê, os “dissidentes da Arcádia”, na
expressão de Teófilo Braga, mantiveram uma relação mais
matizada com a herança espanhola do século XVII, mas isto
não se percebe claramente em Silva Alvarenga, sempre irôni-
co em relação ao gongorismo.
Como já dissemos, o poema herói-cômico em língua
portuguesa surge possivelmente na primeira metade do sécu-
lo XVIII, havendo notícia de pelo menos três obras deste pe-
ríodo: A monocléia, a Jornada às cortes do Parnaso e o Fo-
guetário, já referidos. Na segunda metade do século, o poema
herói-cômico ganha grande impulso, havendo no mínimo 16
obras conhecidas. A maioria delas ainda permanece manuscri-
ta até hoje: Benteida, poema herói-cômico em três cantos de
Alexandre Antonio de Lima (1752), O chumacinho furtado e
Sapatos de cetim azul ferrete, de João Pedro Xavier do Monte
(1767), Logração da Prelazia Regular de Santarém, também
de João Pedro Xavier do Monte (1769), O hissope, de Antô-
nio Diniz da Cruz e Silva (escrito possivelmente entre 1770
e 1772), O desertor, de Silva Alvarenga (1774), Gaticânea, ou
crudelíssima guerra entre cães e gatos, de João Jorge de Carva-
lho (1781), O reino da estupidez, atribuído a Francisco de Me-
lo Franco (possivelmente escrito no início dos anos de 1780),
A malhoada, de Anacleto da Silva Morais (possivelmente an-
terior a 1786), A máquina aerostática, de João Robert du Fond
(1787), Mondegueida, poema estrambótico, de Antonio Cas-
tanha Neto Rua, pseudônimo de Francisco Manuel Gomes da
Silveira Malhão (1788), “Bisnaga escolástica” e “Calouríados”

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(publicados na Macarrônea latino-portuguesa, de 1791),
Santarenaida, de Francisco de Paula Figueiredo (1792), Os
toiros, de Antonio Joaquim de Carvalho (1796), e O momo,
de Francisco Joaquim Bingre (possivelmente do fim do sécu-
lo XVIII). 34 O século XIX em Portugal é ainda mais fértil na
produção de poemas herói-cômicos, chegando quase a uma
centena as obras produzidas. Somente no século XX veremos
a queda da produção de poemas deste tipo.
O desertor, de Silva Alvarenga, tem o mérito de ser o
primeiro poema especificamente herói-cômico que tematiza
a vida estudantil. Evidentemente, não foi elaborado por aca-
so, mas seguindo já uma pequena tradição da produção sa-
tírica dos estudantes da Universidade de Coimbra que, no
mínimo desde 1746, passaram a publicar poemas, vários deles
macarrônicos, ironizando a vida do universitário coimbrão.35
Note-se que, segundo Joaci Pereira Furtado, os poemas
macarrônicos (textos irônicos e satíricos que misturam a
língua original com frases e expressões em latim ou de ou-
tra língua), então em voga, em Portugal constituíram-se
“num subgênero praticamente exclusivo dos estudantes de
Coimbra, que também se presta à correção dos costumes —
os quais devem ser adequados ao modelo de conduta do es-
tudante coimbrão”. 36
Desde O desertor, foram escritos diversos poemas herói-
cômicos sobre a vida estudantil, entre os quais englobaríamos
também aqueles que se referem a escolas e professores. A par-
tir do levantamento de Alberto Pimentel, pelo menos uma
quinzena deles pode ser compulsada, relativa principalmente
ao século XIX. Citemos alguns, como: A cabulogia, de An-
tónio Maria do Couto Monteiro (1844), que tematiza as tor-
turas e pesadelos da vida estudantil; Calouríados, já referido,
que trata das experiências de um estudante montesino; Camões

29

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em Coimbra (1881), que satiriza os estudantes que promove-
ram os festejos do tricentenário de Camões na universidade;
A niveleida (século XIX), escrito contra os estudantes que que-
riam elevar o “nível” da universidade; e Viagens no sistema pla-
netário, de Patrocínio da Costa (1875), que aborda os estu-
dos e o ensino em Portugal, principalmente na Universidade
de Coimbra.
O desertor, contudo, é um poema bastante híbrido, pois,
a rigor, pouco aborda a vida universitária, sendo muito mais
uma crítica satírica dos hábitos e comportamentos de certa
parcela da juventude do período. Também porque a trama do
poema não se passa dentro da universidade, mas na longa via-
gem que um grupo de estudantes faz exatamente para se afas-
tar dela. Neste sentido, emula igualmente os poemas satíri-
cos que têm a viagem como tópico. Este subtipo no âmbito
da poesia herói-cômica é raro, cabendo aqui relembrar o já ci-
tado Jornada às cortes do Parnaso, bem como um poema pos-
terior, Uma jornada ao Douro, de F. A. M. S., de 1855.

O desertor: imagens e ideário

A reforma da Universidade de Coimbra gerou diversas


reações. Uma delas foi o elogio do projeto de Pombal, expres-
so em mais de um autor do Arcadismo luso-americano. Não
apenas Silva Alvarenga homenageia a reforma, como também
Antônio Diniz da Cruz e Silva o faz em vários poemas, nos
quais se posiciona contra a filosofia peripatética e defende o
experimentalismo no ensino. Também Tomás Antônio Gon-
zaga defende a reforma, no soneto “Ao ilustríssimo e exce-
lentíssimo marquês de Pombal reformando a Universidade de

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Coimbra”. Mesmo O reino da estupidez, que satiriza a deca-
dência da universidade após a Viradeira, é indiretamente um
elogio à reforma promovida pelo marquês.37
Tendo em conta, por outro lado, o conjunto de textos
que nos legou Silva Alvarenga, O desertor também não é uma
peça isolada, mas se insere no âmbito das diversas produções
encomiásticas ou satíricas do autor. Como já foi observado,
Alvarenga praticou “quase todos os gêneros característicos da
poesia neoclássica, a saber: madrigal, ode, écloga, poema he-
rói-cômico, poesia didática, satírica e, finalmente, o rondó
criado por ele”.38 Afora seu poema herói-cômico, Alvarenga
escreveu pelo menos outros dois textos nos quais tematiza a
transformação dos estudos e das ciências em Portugal. Ante-
cedendo a O desertor, e certamente o preparando, citemos sua
ode À mocidade portuguesa, por ocasião da reforma da Uni-
versidade de Coimbra. Além dessa ode, o poema Às artes, pos-
terior a O desertor, compendiando o avanço das ciências do
tempo e perfazendo seu elogio.
No que se refere especificamente ao gênero satírico,
Alvarenga também se distingue dos outros poetas árcades li-
gados à literatura brasileira, pois manteve-se próximo de cria-
ções deste tipo durante largo período da vida. Seu poema he-
rói-cômico, portanto, deve ser disposto ao lado de outras sá-
tiras suas ou poemas que, sem ser propriamente sátiras, ad-
quirem esse teor em seu desenvolvimento. No campo das sá-
tiras em sentido estrito, lembremos aqui do poema Os vícios,
sátira alegre sobre um usurário e seu sobrinho perdulário, além
de uma centena de sonetos atribuídos a ele e que se perde-
ram. Esses sonetos foram escritos contra um frei chamado
Raimundo, quando Alvarenga já morava no Rio de Janeiro, e
se tornaram peça fundamental para sua prisão e acusação de
jacobinismo. No entanto, em outros poemas também se ve-

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rifica a mesma veia mordaz, como nas quintilhas Ao vice-rei
Luiz Vasconcelos e Souza no dia dos seus anos, em que, atacan-
do os poetas bajuladores, parece antes zombar do próprio vice-
rei. E ainda na Epístola a Basílio da Gama, na qual satiriza não
apenas a decadência do gongorismo como também certos tre-
jeitos e cacoetes do próprio Arcadismo.39
Cabe aqui uma palavra sobre as poesias panegíricas ou
encomiásticas e satíricas, dada a relação que O desertor man-
tém com estes registros literários. Longe de se caracterizarem
como textos bajulatórios ou meros gracejos trocados entre
poetas, como uma crítica apressada insiste em repetir, talvez
prisioneira da grade de categorias do Romantismo para a in-
terpretação de objetos que por via de regra resistem a elas, es-
ses poemas têm de ser repostos no âmbito da economia dis-
cursiva a que pertencem, sob risco de acabarem totalmente
treslidos ou incompreendidos. Deve-se considerar, portanto,
a pesquisa pioneira de Jorge Antonio Ruedas de La Serna,
quando combate o lugar-comum de que os árcades bajula-
vam os poderosos, sem que os críticos se lembrem de que,
“como assinala Curtius, desde o helenismo [o panegírico]
havia tido mais importância que os outros tipos de discurso
e depois se sistematizou rigorosamente”. 40 Aliás, “essa idéia
comum, acerca de sua artificialidade e bajulação, explica, em
grande parte, a escassa disposição para entregar-se à árdua ta-
refa de voltar aos velhos materiais”. 41 Mais ainda, ao elogiar
o rei, “esquecemos que o rei representava ou encarnava a ‘pá-
tria’, daí por que louvar o monarca era honrar a nação”. “Não
basta conhecer as leis da retórica, é preciso abandonar os te-
mas mesquinhos e encaminhar os esforços às ações ‘notoria-
mente grandes’ do soberano.”42 Isto vale, evidentemente, pa-
ra o elogio de seus ministros, como, no caso, o marquês de
Pombal.

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A mesma coisa deve ser pensada no que se refere à sáti-
ra no XVIII. Ela não apenas se insere no projeto de uma poe-
sia que se inscreve no campo de preocupações da filosofia
moral e, portanto, está comprometida com a crítica das ins-
tituições e dos costumes visando ao governo dos povos —
como já havia salientado, talvez pioneiramente, Péricles Eu-
gênio da Silva Ramos43 — como igualmente não pode ser to-
mada em bloco, pois os estudos contemporâneos dissolvem
uma interpretação do Arcadismo como uma unidade mo-
nolítica. Jorge Antonio Ruedas de La Serna mapeia em deta-
lhes, como já apontamos antes, “duas posturas políticas e cul-
turais divergentes” — a da Arcádia ortodoxa e a dos dissiden-
tes (o grupo da Ribeira das Naus, liderado por Filinto Elísio, a
quem Basílio da Gama e os demais brasileiros, talvez incluin-
do Silva Alvarenga, filiaram-se): “estes eram plebeus e aven-
tureiros, aqueles, aristocratizantes e sedentários; estes liam
Rousseau e Voltaire, aqueles, Boileau e Luzán”.44 Lembremos
ainda que o grupo da Ribeira das Naus retoma os quinhen-
tistas, contra a Arcádia ortodoxa. Ao que parece, Pombal “to-
lerava e, até pode-se dizer, simpatizava com os poetas plebeus
que lutavam contra o estilo acadêmico dos árcades”.45 Esses
poetas, assim, aproximavam-se do pombalismo entendido
como índice de modernização das instituições e da cultura.
O desertor constitui-se de cinco cantos, que perfazem um
total de 1.439 versos decassílabos brancos distribuídos em es-
trofes irregulares. Tem o mesmo número de cantos de O Ura-
guay, de Basílio da Gama, e praticamente a mesma extensão,
pois O Uraguay totaliza 1.377 versos. Segundo o primeiro
biógrafo de Silva Alvarenga, o cônego Januário da Cunha Bar-
bosa, o poema fora impresso por ordem do marquês de Pom-
bal e “contra a vontade de seu autor, porque ainda o não ha-
via suficientemente corrigido”,46 informações estas que nun-

33

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ca puderam ser comprovadas. Saliente-se que a edição princeps
apresenta raríssimos problemas ortográficos e apenas um ver-
so que pode ser lido como de nove sílabas, talvez por decor-
rência de uma gralha editorial, o que vem anotado. Contu-
do, considerando a variação de critérios para a grafia de vocá-
bulos com iniciais maiúsculas e minúsculas, parece realmente
que a prova final do poema não foi corrigida pelo autor. Após
os cinco cantos, Silva Alvarenga incluiu dois sonetos, o pri-
meiro assinado por E. G. P. e o segundo por L. F. C. S. Até
hoje, ninguém conseguiu resolver o problema da atribuição
desses sonetos. Com respeito ao primeiro, incluímos em nota
uma informação que pode ser uma pista sobre o autor.
Geralmente, a crítica posterior, tanto no Brasil quanto
em Portugal, salienta como os principais traços do poema a
defesa da universidade, o alvoroço pela ilustração e o ataque
da filosofia escolástica ainda hegemônica no ambiente univer-
sitário. Estes são sem dúvida traços presentes no poema, sendo
os dois últimos, referentes à ilustração e à filosofia escolástica,
pouco claros, como problematizaremos mais adiante. Como
já dissemos anteriormente, a quase totalidade do poema não
aborda estes aspectos, oferecendo melhor rendimento se des-
locarmos nossas lentes e o observarmos da perspectiva de uma
crítica dos costumes de parte da juventude da época.
Grande parte da crítica literária no Brasil, sempre igual-
mente ciosa de valorizar tudo aquilo que no nosso passado li-
terário possa lembrar, mesmo que de longe, alguma pálida “cor
local” (referências a um Brasil suposto em frutas, flores, bi-
chos e particularismos culturais), na perspectiva daquele “nacio-
nalês” já tão duramente criticado por Décio Pignatari,47 cos-
tuma igualmente elogiar no poema de Silva Alvarenga preci-
samente a presença destes índices. A este respeito, há um tex-
to lapidar de Hélio Lopes, “Séria brincadeira de estudantes”,48

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01olho-introducao.PMD 34 14/1/2010, 16:10


que sistematiza todos os elementos do poema referidos a este
tópico do nacional. A rigor, esses elementos a custo ultra-
passam meia dúzia de pequenas passagens que não chegam a
totalizar três dezenas de versos: as penas vermelhas e amare-
las enlaçadas às palmas e aos louros tradicionais na dedica-
tória a Pombal; uma citação sobre o tatu no Canto II; outra
sobre o papagaio no Canto III; uma menção ligeira ao filho
de um certo Afonso que veio enriquecer no Brasil; outra
menção a um velho índio, chamado Chagas, caçador de
quilombolas e que cobre a arma com a pele da guariba e o
peito com a pele da pantera e do jacaré; o jaguara (onça) no
rio Ingaí; e, por último, uma referência ao Pão de Açúcar
do Rio de Janeiro. É incrível, contudo, que dessas parcas ci-
tações Hélio Lopes conclua, ufano, que o poema é mais que
entusiasmo pelas reformas de Pombal, pois “integra-se na li-
nha reveladora e transfiguradora da terra, em especial da terra
mineira”, “é a nascente consciência da terra”.49 Ora, essas ilus-
trações, absolutamente periféricas no contexto do poema, não
admitem a centralidade ou o relevo que Hélio Lopes e outros
lhes conferem. 50
Inúmeros críticos também afirmam a influência de José
Basílio da Gama e O Uraguay para a fatura de O desertor. Este
entendimento é razoável, mas por vezes aparece superdi-
mensionado pelos intérpretes. O representante mais contun-
dente desta via de leitura talvez seja Ivan Teixeira. Para o au-
tor, não só o poema de Silva Alvarenga, mas também O reino
da estupidez são “derivados diretamente do magistério poéti-
co de Basílio da Gama”. Referindo-se especificamente a O
desertor, dirá:

destaque-se que esse poema, em especial, recebeu suges-


tões marcantes de Basílio da Gama, emulando com ele

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01olho-introducao.PMD 35 15/1/2010, 11:23


em diversos sentidos: na fluidez do ritmo, na flexibili-
dade do decassílabo branco, no processo caricatural das
personagens, no uso moderado da mitologia clássica, na
euforia pela reforma pombalina e, ainda, por inúmeros
procedimentos estilísticos e imagens hauridas em O
Uraguay, como é o caso da recorrência de alusões a ele-
mentos típicos da América.51

E, mais adiante, ainda afirma que “O Desertor, não é de-


mais repetir, seria impensável senão como uma espécie de va-
riante poética de O Uraguay”, ou “uma espécie de continui-
dade de O Uraguay”.52 Parece factível que Silva Alvarenga te-
nha encontrado em Basílio da Gama (mas não apenas nele,
pois este tópico já estava presente em outros autores do Bra-
sil que Silva Alvarenga podia conhecer) o modelo a seguir para
suas referências a elementos americanos, bem como comun-
gava ideologicamente com ele no que se refere ao pombalismo.
Os outros aspectos, contudo, ficam na dependência de uma
demonstração clara, sendo que a menção ao processo ca-
ricatural dos personagens nos parece inapropriada, pois Silva
Alvarenga encontraria muito mais facilmente em Boileau ou
em Pope, que cita, este procedimento, ou mesmo no gênero
satírico em geral. Não é de todo impossível que ele também
conhecesse O hissope, que circulava em cópias manuscritas.53
Opinião contrastante neste contexto é a de Hélio Lopes, para
quem é a Cláudio Manuel que devemos nos reportar para a
análise da construção dos versos de O desertor, embora ele ime-
diatamente pondere “não sejam os modismos de ambos sim-
ples modismo da escola literária”.54
Contribuição muito importante de Joaci Pereira Furta-
do são suas observações sobre o estatuto do poema herói-cô-
mico no interior da teorização poética neoclássica. Como vem
dito, “é difícil avaliar a resistência que os demais preceptistas

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lusos do século XVIII ofereciam ao subgênero herói-cômico,
pois sobre ele praticamente não há nenhuma teorização”. Mas
a partir da condenação de Francisco José Freire (Cândido Lusita-
no) de vários poemas que podemos chamar de herói-cômicos,

não há como negar que houve ao menos alguma forma


— ainda que tênue ou ínfima — de oposição a essa es-
pécie de poema. A censura de Freire, porém, está essen-
cialmente calcada na noção de decoro, já que poemas com
enredos similares ao que arrola — produtos do “capri-
cho” e da aberração dos “engenhos” — não podem pre-
tender guardar qualquer relação com o épico e talvez nem
mesmo com o cômico, uma vez que Freire não se preo-
cupa em imputar-lhes uma rubrica. 55

E complementa com uma observação que nos parece


fundamental neste contexto: “A justificativa que Manuel
Inácio da Silva Alvarenga antepõe ao seu O desertor, poema
herói-cômico é, até onde esta pesquisa alcançou, o esforço mais
sistemático contra reações como a de Francisco José Freire, ser-
vindo-se também do mesmo artifício de buscar legitimação
entre os antigos”.56 Ficam evidentes, portanto, as diferenças
internas entre os árcades do período, ressaltando-se que os bra-
sileiros, como Silva Alvarenga e Francisco de Melo Franco, ou
mesmo o português Tomás Antônio Gonzaga, optaram por
não seguir a ortodoxia da escola e enveredaram por esta nova
prática literária em emergência na época. Informação valiosa
talvez seja a fornecida também por Joaci Pereira Furtado, ao
observar que certos tópicos do poema “podem ter sido
buscad[os] a novelas picarescas como Vida de um estudante
pobre, de Diogo de Sousa Camacho, publicada em 1761”,57
mas infelizmente não conseguimos localizar este texto a tem-
po para um cotejo detalhado.

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Importa ainda notar que Silva Alvarenga parece ter fun-
damentalmente como modelo para a crítica satírica a obra de
Horácio, algumas vezes citado, e não Juvenal, que também
comparece nas notas ao poema. Aproxima-se, portanto, do
ridentem dicere verum (“dizer, rindo, a verdade”) horaciano,
recomendado por Verney e pelos preceptistas árcades, afastan-
do-se, assim, do modelo da sátira desabusada de Juvenal.58
Não é o caso, aqui, de oferecermos em detalhes um re-
sumo das peripécias do poema, 59 mas anotemos brevemente
o argumento central. Gonçalo é o desertor das letras, o herói
que reunirá um grupo de amigos que juntos marcharão rumo
a Mioselha, onde mora seu tio, abandonando a árdua tarefa
dos estudos universitários, para ele incompreensíveis. Guiados
pela Ignorância, os estudantes enfrentam toda sorte de ridí-
culas dificuldades no percurso e, para surpresa de todos, são
recebidos a bordoadas pelo tio quando chegam a Mioselha, o
qual ainda passa em Gonçalo uma severa reprimenda, exigin-
do que volte para a universidade. O modelo da viagem pare-
ce dialogar tanto com as aventuras de dom Quixote e com a
História do imperador Carlos Magno e dos doze pares de Fran-
ça quanto, numa relação inversa, com a Odisséia de Homero.
Se em Homero a viagem de volta a Ítaca acarreta uma série
inumerável de percalços grandiosos que implicam ações real-
mente heróicas, em O desertor temos o contrário: ações ignó-
beis e pequenos incidentes a serem dissolvidos com meia dú-
zia de pedras ou pauladas.
Novamente parece ser a Homero que Silva Alvarenga irá
recorrer, pois, como no poeta grego, a invocação das musas e
a proposição estão fundidas. O desertor, assim, seria um “anti-
Ulisses”.60 Se, como quer Silva Alvarenga, no seu “Discurso
sobre o poema herói-cômico”, que antepõe ao poema propria-
mente dito, o herói-cômico, “porque imita, move, e deleita:

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e porque mostra ridículo o vício, e amável a virtude, consegue
o fim da verdadeira poesia”, os vícios que deveriam ser pur-
gados em seus personagens seriam a ignorância61 e também a
preguiça.
Com respeito ao título do poema, ele se distancia das
formas cômicas adotadas em outros poemas herói-cômicos,
como Os burros (animais), O hissope (um objeto) ou O reino
da estupidez, que operam uma clara inversão do valor do tí-
tulo da poesia épica, em que geralmente se adota o nome do
herói ou do lugar em que se desenrola a ação, num registro
grave. O título O desertor, ainda que carregue na aparência
conotações negativas, não move imediatamente ao riso, sen-
do mesmo enigmático a princípio. Silva Alvarenga também
parece se distanciar, em parte, do preceito herói-cômico refe-
rente à futilidade do tema básico. Pelo contrário, um dos ob-
jetivos do poema é precisamente a defesa do valor do estudo
e da reforma da universidade, como bem observou Antonio
Candido.
Outro traço distintivo do poema é a presença das mu-
lheres ao longo de toda a trama, fato que chamou a atenção
de Alberto Pimentel. Elas, contudo, são extremamente vul-
gares e seus retratos são precisas inversões dos atributos femi-
ninos tipicamente presentes na poesia lírica árcade de enal-
tecimento da mulher. Basta pensar nos inúmeros retratos de
Marília, pintados por Dirceu, para percebermos a distância que
os separa de uma imagem como esta, referente a Narcisa, na-
morada de Gonçalo:

Faz ajuntar de partes mil à pressa


Cordões, e anéis, e a pedra reluzente,
Que os olhos desafia: os seus cabelos,

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Que desconhecem o toucado, empasta
Coa cheirosa pomada: a Mãe se lembra
Da própria mocidade, e lhe vai pondo
Com a trêmula mão vermelhas fitas.
Simples noiva da aldeia, que ao mover-se
Teme perder o desusado adorno,
Nunca formou mais vagarosa os passos.

Ou este outro retrato, ainda mais veemente nos traços


negativos, referente a Marcela, uma velha que lê nas mãos o
futuro:

Aparece Marcela, conhecida


Entre todas as velhas por mais sábia
Em penetrar olhando para os dedos
Tudo quanto já dantes lhe contaram.
Sobre pequeno pau, a que se encosta,
Ela vem debruçada pouco a pouco,
O semblante enrugado, os olhos fundos,
Contra o nariz oposta a barba aguda:
Os dous últimos dentes balanceiam
Co pestífero alento, que respira.

Aqui Silva Alvarenga parece seguir de perto os passos de


Nicolas Boileau Despréaux e mesmo de Antônio Diniz, pois
em Le lutrin encontramos a consulta oracular a Sibila Chi-
cana, bem como o mocho sinistro; em O hissope, a consulta
ao astrólogo Abracadabro e a presença do grilo profético.
Os retratos físicos ou psicológicos da turba dos anti-he-
róis que seguem na viagem para Mioselha também não se afas-
tam do procedimento básico que consiste em inverter o re-

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gistro alto presente na lírica e na épica. É assim que Cosme
“Ama, e não sabe a quem”, Rodrigo “É de índole grosseira, e
gênio bruto”, sempre melancólico e semelhante a um tatu, ou
ainda o “Iracundo Gaspar”, que quando perde no jogo não
hesita em “Meter à mão a ferrugenta espada”. Mas sem dúvi-
da o retrato mais ridículo é o de Bertoldo, por meio do qual
Silva Alvarenga faz a crítica contundente da nobreza sem me-
recimento, no que ecoa tanto os poemas de Tomás Antônio
Gonzaga como os de Alvarenga Peixoto que tematizam o mes-
mo tópico. Contra o domínio da aristocracia de sangue, o que
se verifica em Silva Alvarenga e em outros poetas do Arca-
dismo é a defesa da aristocracia letrada, culta, que, pelo seu
saber, está mais apta para gerir os negócios do Estado que a
nobreza decadente:

Também vinha Bertoldo, e traz consigo


Carunchosos papéis por onde afirma
Vir do sétimo Rei dos Longobardos.
Grita contra as riquezas, a Fortuna,
Segundo o que ele diz, não muda o sangue:
Pisa com força o chão, e empavesado
De ações, que ele não pode chamar suas,
Aos outros trata com feroz desprezo.

O retrato intelectual do personagem Gonçalo é também


implacável. Dele é dito que se delicia lendo e relendo “Ora
os longos acasos de Rosaura, / Ora as tristes desgraças de Flo-
rinda”. O primeiro é um romance do padre Mateus Ribeiro,
cujo título é Retiro de cuidados, e vida de Carlos, e Rosaura.
O segundo, uma novela parenética intitulada Infortúnios trá-
gicos da constante Florinda, do padre Gaspar Pires de Rebelo.
Estes livros são dois exemplos já praticamente “clássicos” da

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subliteratura do período moderno, publicados no século XVII,
mas que mereceram sucessivas reedições, até mesmo ao longo
do século XVIII, o que atesta sua grande popularidade. Am-
bos são citados por Verney, no Verdadeiro método de estudar,
como exemplos, entre outros, da mediocridade literária do sé-
culo do conceptismo e do cultismo. No Canto III de O
hissope, Antônio Diniz também se refere ao romance de
Florinda na mesma chave crítica, bem como nas Cartas chile-
nas, precisamente na sexta carta, é dito do Fanfarrão Minésio
“Que ele tem muito estudo de Florinda”. Na nota de rodapé
de Silva Alvarenga aos versos citados, ele ainda inclui um ter-
ceiro romance, que intitula Carlos Magno. No caso, trata-se
da obra História do imperador Carlos Magno e dos doze pares
de França, um romance de cavalaria e, no gênero, das obras
as mais editadas ao longo dos séculos XVIII e XIX, havendo
ainda edições no XX. Sua popularidade foi enorme, não só
em Portugal, mas também no Brasil, como afirma Câmara
Cascudo. Antônio Diniz, em O hissope, também faz referên-
cia a este livro no Canto III. É provável que Silva Alvarenga
realmente conhecesse o poema de Diniz, pois, tal como ele,
cita ainda a ponte de Mantible (que aparece no Canto V de
O hissope), um dos episódios do referido romance.
Igualmente no Canto IV, vv. 84-91, vem dito que as
“Valentes expressões em crespa frase” de Gonçalo roubam a
glória do Alívio de tristes e ressuscitam as hiperbólicas finezas
de Gerardo. Com respeito ao livro mencionado, trata-se do
Alívio de tristes, e consolação de queixosos, do padre Mateus
Ribeiro, publicado em Lisboa, por Manuel da Silva, em 1648.
Teve inúmeras reedições, o que confirma sua grande popula-
ridade. Esse livro é ridicularizado por Verney em Verdadeiro
método de estudar. O segundo, Gerardo de Escobar, pseudô-
nimo do frei Antonio de Escobar, escreveu o livro Cristais

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d’alma, frases do coração, retórica do sentimento, amantes de-
salinhos etc., publicado em Lisboa, por João da Costa, em
1673, com diversas reedições. É esse livro que Antônio Diniz,
em O hissope, moteja no Canto III, tal como Verney no Ver-
dadeiro método de estudar.
O ataque ao ensino escolástico também é nítido em uma
passagem do poema, que vale a pena transcrever:

Morreram as postilas, e os Cadernos:


Caiu de todo a Ponte, e se acabaram
As distinções, que tudo defendiam,
E o ergo, que fará saudade a muitos!

Aqui, toda a comicidade decorre da palavra ponte, que


no jargão acadêmico da época significava mais precisamente
“ponte de asnos”, para se referir à lógica silogística, cada vez
mais desacreditada para a nova ciência em função de sua sim-
plicidade e redundância. Com efeito, só mesmo os asnos têm
dificuldade para atravessar pontes.
Mas é no último canto do poema que se encontra a pas-
sagem mais espinhosa para caracterizarmos o retrato intelec-
tual, o ideário do próprio narrador do poema. Interessante
observar que nenhum intérprete jamais se debruçou sobre ela,
certamente em função da grande dificuldade que implica sua
decifração. Aqui sugeriremos apenas uma primeira e breve
aproximação das questões que ela suscita. Descrevendo a es-
tante de livros de Tibúrcio, tio de Gonçalo, o narrador cita
algumas dezenas de obras e escritores, alguns absolutamente
esquecidos hoje em dia, tendo sido virtualmente impossível
localizar certos autores e títulos para o estabelecimento desta
edição.62 Em primeiro lugar, note-se que o procedimento de
descrição de uma estante de livros certamente Silva Alvarenga

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encontrou em O hissope, no qual podemos verificar a mesma
coisa no Canto III. Aliás, alguns dos autores citados por An-
tônio Diniz também estão presentes na estante de O desertor,
como Tamburino, Pegas, Ferreira e Baldo. Ou por vezes An-
tônio Diniz cita outra obra de um mesmo autor referido em
O desertor, como Roda da fortuna, do padre Mateus Ribeiro,
do qual Silva Alvarenga cita outras duas obras: Retiro de cui-
dados, e vida de Carlos, e Rosaura e Alívio de tristes, e consola-
ção de queixosos, já citadas. Sobre a Roda da fortuna, note-se
que nas Cartas chilenas, na sexta carta, ela também compare-
ce como texto de formação intelectual de Fanfarrão Minésio.
Talvez apenas a estes livros possamos chamar, com alguma
imprecisão, de “literatura de cordel”, bem como ao livro His-
tória do imperador Carlos Magno e dos doze pares de França,
anteriormente citado. Mas consideremos a passagem da estante
quase que linha a linha, ou melhor, prateleira a prateleira.
Inicialmente, Silva Alvarenga se refere a um conjunto
extenso de casuístas. Em O hissope, alguns deles compõem a
livraria “rançosa e indigesta” dos canonistas. A casuística pode
ser definida como o modo prático ou o método para resol-
ver “casos de consciência” ou conflitos de deveres. A partir
do século XVI, com o florescimento da teologia moral e a
produção de obras destinadas à formação de confessores, ori-
ginou-se a casuística propriamente dita. Os cursos de teolo-
gia moral eram chamados de aulas de “casos de consciência”.
A partir do século XVII, a casuística começou a decair. Des-
de então, o termo tomou sentido pejorativo, passando a
equivaler a sutileza excessiva, probabilismo e laxismo. Os
autores citados são os “Dianas, Bonacinas, Tamburinos, /
Moias, Sanches, Molinas, e Larragas”. No caso, Alvarenga está
se referindo a Antonino Diana, Martino Bonacina, Tommaso
Tamburini, Mateo de Moya, Luis de Molina e provavelmen-

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te a Tomás Sanchez e ao padre Francisco Larraga, em seu tem-
po famosos casuístas italianos e espanhóis, defensores quer
do probabilismo, quer do laxismo. Uma breve palavra so-
bre ambos.
O probabilismo é o sistema moral que admite como nor-
ma legítima de conduta, perante a incerteza da obrigação, uma
opinião provável. O termo só apareceu na segunda metade do
século XVIII, nas discussões teológicas sobre o modo de re-
solver a dúvida prática quanto à licitude de uma ação. O
laxismo poderia ser caraterizado como um probabilismo ex-
tremado, por admitir a mais tênue probabilidade como nor-
ma suficiente para a ação a se seguir. Contra os probabilistas
e laxistas levantaram-se os chamados rigoristas, de que talvez
o maior representante seja Daniele Còncina, citado por Alva-
renga na nota à palavra Casuístas (verso 132 do Canto V).
Destaca-se em sua enorme produção teológica exatamente o
livro referido por Alvarenga na mesma nota, a Theologia chris-
tiana dogmatico-moralis, em 12 volumes, editada entre 1749
e 1751, em que sistematiza suas críticas ao probabilismo. O
rigorismo se propôs como doutrina moral que se opunha ter-
minantemente ao probabilismo e ao laxismo.
Pareceria que estamos nos distanciando cada vez mais de
uma caracterização do ideário do narrador. Muito pelo con-
trário, esta passagem do poema é realmente fundamental para
vislumbrarmos este aspecto. Note-se que Silva Alvarenga uti-
liza-se de Còncina precisamente como abonação contra os
probabilistas, os laxistas e o molinismo, exemplos, para o au-
tor, de uma

Criminosa Moral, que em surdo ataque


Fez nos muros da Igreja horrível brecha,

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Moral, que tudo encerra, e tudo inspira,
Menos o puro amor, que a Deus se deve.

Ora, sabemos, por outro lado, que Còncina foi não só


um rigorista, mas também um dos principais adversários do
programa ilustrado, ressaltando-se em seus textos os sucessi-
vos ataques desferidos contra Montesquieu e sua obra princi-
pal, o Esprit des lois. Não é casual, portanto, que na segunda
metade do século XVIII cresça por todo lado a oposição à aus-
tera e opressiva teologia moral de Còncina, quanto mais triun-
fa o espírito da Encyclopédie e dos philosophes. Este aspecto,
evidentemente, torna bastante problemática a caracterização de
Silva Alvarenga como um “militante ilustrado”, por exemplo,
ao menos nesta obra de juventude ou neste período de sua
vida e formação. A não ser que mitigássemos ao máximo o
conceito de “ilustração” para o contexto português, o que di-
versos intérpretes já fizeram. Mas acreditamos que há poucos
ganhos substantivos adotando-se este procedimento.
Mudando de prateleira, a seguir o narrador se refere a
um conjunto de textos como Eva e Ave, Báculo pastoral, Aca-
demia de humildes e ignorantes e Teoremas predicáveis, entre
outros, todos ligados direta ou indiretamente ao seiscentismo
literário que o poeta visa combater. Note-se que os dois pri-
meiros aqui citados conheceram grande popularidade ainda
durante o século XVIII, o que atestam suas sucessivas ree-
dições. Mais surpreendente é que eles, na estante, ocupam um
lugar que não lhes é devido, pois no mesmo espaço devem
ficar as obras de Baldo degli Ubaldi, Manuel Álvares Pegas,
Kess e Manuel Lopes Ferreira. Em oposição a esta literatura
geralmente religiosa e edificante, o narrador cita um conjun-
to de autores ligados fundamentalmente à jurisprudência, al-
guns deles comentadores do direito do fim do medievo ou

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do princípio do período moderno, como é o caso, respecti-
vamente, de Baldo e Pegas.
Prosseguindo na vistoria da estante, o narrador cita cin-
co autores que são visivelmente de seu apreço: Francisco Soa-
res, o Lusitano, Francisco Suárez, o Granatense, ambos jesuí-
tas, e possivelmente o frei Tomás Aranha ou Boaventura Ma-
ciel Aranha, António dos Reis e Pedro José Supico de Moraes,
quase todos teólogos eminentes do período. Novamente cau-
sa espanto que Silva Alvarenga cite os dois Soares, principal-
mente o jesuíta Francisco Suárez, o Granatense, um dos maio-
res expoentes da neo-escolástica do período moderno. Como
se pode depreender, se no início do poema ele ataca ironica-
mente o ensino escolástico, no final retoma positivamente um
dos principais autores da neo-escolástica, gerando novamente
ambigüidade em relação a seu ideário. Note-se, ainda, que Sil-
va Alvarenga não se posiciona em bloco contra os jesuítas, re-
cortando no interior da Companhia de Jesus os “bons” e os
“maus” autores.
Continuando a passagem, finalmente são citados diver-
sos livros, entre os quais Sol nascido no Ocidente, Mística ci-
dade, Peregrino da América, Fênix renascida, Segredos da na-
tureza, Lenitivos da dor, Crisol seráfico (em nota), Imperatriz
Porcina etc., quase todos exemplos da mesma literatura seis-
centista contra a qual o poeta se levanta. Note-se que algu-
mas destas obras foram muito populares na época e mesmo
posteriormente, como é o caso da Imperatriz Porcina, que me-
receu sucessivas reedições no século XIX e mesmo no XX, bem
como o Peregrino da América. Mas a maioria delas está hoje
praticamente esquecida.
Não é objetivo desta ligeira Introdução alcançar conclu-
sões indubitáveis sobre o perfil ideológico do narrador do poe-
ma. Antes, o que pretendemos foi problematizar certas asser-

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tivas em geral repetidas na fortuna crítica. Esta problema-
tização talvez possa servir como norteamento para uma incur-
são realmente vertical ao interior do poema, restituindo-o ao
confuso universo mental de seu período, por via de regra ca-
racterizado, possivelmente de modo um tanto insolvente,
como o da ilustração portuguesa.

48

01olho-introducao.PMD 48 14/1/2010, 16:10


N OTAS

1
Brasília: Coordenada, 1973, Coleção Antologia e Crítica, 2.
2
Nelson Werneck Sodré, História da literatura brasileira: seus fundamen-
tos econômicos, 4a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 116.
3
Guilhermino César, Historiadores e críticos do romantismo — 1: A con-
tribuição européia, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Téc-
nicos e Científicos, 1978, passim, Biblioteca Universitária de Literatu-
ra Brasileira, Série A: Ensaio, Crítica, História Literária, vol. 5.
4
Adrien Balbi, Essai statistique sur le royuame de Portugal et de l’Augarve.
Paris: s.ed., 1822, Appendix, p. 174, apud Joaquim Norberto de Sousa
Silva, “Introdução”, in Manuel Inácio da Silva Alvarenga, Obras poéti-
cas de... Rio de Janeiro: H. Garnier, 1864, t. I, p. 12, Biblioteca Brasília
dos Melhores Autores Nacionais Antigos e Modernos.
5
Idem, op. cit., respectivamente pp. 81-82 e 70.
6
Sílvio Romero, História da literatura brasileira. Tomo segundo: Formação
e desenvolvimento autonômico da literatura nacional, 3a ed. aum. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio, 1943, pp. 96-97 e 105.
7
José Veríssimo, História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601)
a Machado de Assis (1908), 3a ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1954, pp. 121-22.
8
António José Saraiva e Óscar Lopes, História da literatura portuguesa,
5 a ed. corrig. e aum. Porto: Porto, s.d., pp. 649-50.
9
Antônio Houaiss, “Sobre Silva Alvarenga”, in Seis poetas e um problema.
Rio de Janeiro: MEC, Serviço de Documentação, 1960, p. 13, Os Ca-
dernos de Cultura, 125.

49

01olho-introducao.PMD 49 14/1/2010, 16:10


10
Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, 2 a ed. São Paulo:
Cultrix, 1976, p. 86.
11
José Guilherme Merquior, De Anchieta a Euclides: breve história da lite-
ratura brasileira, 2 a ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1979,
pp. 41-42, Documentos Brasileiros, vol. 182.
12
Entre outros, ver Antonio Candido, Literatura e sociedade: estudos de teoria
e história literária, 7 a ed. São Paulo: Nacional, 1985, p. 99, Biblioteca
Universitária, Série 2: Ciências Sociais, vol. 49.
13
Massaud Moisés, História da literatura brasileira: origens, barroco,
arcadismo. São Paulo: Cultrix, 1983, p. 284.
14
Waltensir Dutra, “O arcadismo na poesia lírica, épica e satírica”, in Afrâ-
nio Coutinho (dir.), A literatura no Brasil, 2 a ed. Rio de Janeiro: Sul
Americana, 1968, vol. I, pp. 332 e 362.
15
José Brasileiro Vilanova, A literatura no Brasil colonial. Recife: U FPE ,
1977. A proposição é não apenas preconceituosa, por desqualificar o
aulicismo poético, como igualmente anacrônica, por desconhecer total-
mente a função da poesia áulica no período moderno. O mais espantoso
é que o autor, ao que parece, nem sequer leu o poema de Alvarenga, ci-
tando-o a partir de outras leituras, pois ele não vem referido na biblio-
grafia que utilizou para escrever a obra.
16
Francisco Adolfo de Varnhagen, “Manuel Inácio da Silva Alvarenga”, in
Florilégio da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 1946, t. I, p. 345, Coleção Afrânio Peixoto, I — Literatura.
17
Haroldo Paranhos, História do Romantismo no Brasil: 1500-1830. São
Paulo: Cultura Brasileira, s.d., vol. I, p. 250.
18
Joaquim Ferreira, História da literatura portuguesa, 3a ed. Porto: Domin-
gos Barreira, 1964, p. 689.
19
Ivan Teixeira, Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama
e a poética do encômio. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1999, respectivamente pp. 55, 163, 472, 48.
20
Idem, op. cit., pp. 50-51.
21
Antonio Candido, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos,
6a ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, vol. 1, pp. 69 e 155, Biblioteca Bra-
sileira de Literatura, vol. 1; e idem, Literatura e sociedade, op. cit., p. 96.
22
Idem, Formação da literatura brasileira, op. cit., vol. 1, pp. 155-56.

50

01olho-introducao.PMD 50 14/1/2010, 16:10


23
Nicolas Boileau, “Préface pous la première édition du Lutrin”, in Œuvres
complètes. Introd. Antoine Adam. Ed. fixada e anotada por Françoise
Escal. Paris: Gallimard, 1966, p. 1.006.
24
Idem, op. cit., p. 153.
25
Idem, op. cit., pp. 153-54.
26
Ver, a este respeito, Demetrio Estébanez Calderón, Diccionario de tér-
minos literários. Madri: Alianza, 1996, verbetes “burlesco” e “épica”, pp.
107-8 e 335-38, respectivamente, Alianza Diccionarios; Federico Carlos
Sainz de Robles, Ensayo de un dicionario de la literatura. Tomo I: Térmi-
nos, conceptos, “ismos” literarios, 2 a ed. Madri: Aguilar, 1954, verbete
“burlesco”, pp. 155-56.
27
Ver J. Corominas e J. A. Pascual, Diccionario crítico etimológico castellano
e hispánico, 4a reimpr. Madri: Gredos, 1984, vol. I, verbete “burla”, pp.
702-3, Biblioteca Románica Hispánica, vol. Diccionarios, 7; Martin
Alonso, Enciclopedia del idioma. Madri: Aguilar, 1958, t. I, verbetes
“burla” e “burlesco”, p. 800.
28
Consultei cerca de 40 dicionários de língua espanhola e alguns dicioná-
rios espanhóis de termos literários. Neles, não há o termo ou correlatos.
Além dos referidos nas duas notas anteriores, citaria ainda: o chamado
Diccionario de autoridades (1726), da Real Academia Espanhola; Este-
ban de Terreros y Pando, Diccionario castellano con las voces de ciencias y
artes (1786-1793), em quatro volumes; o Diccionario de la lengua
española, da Real Academia Espanhola (edições de 1956, 1984, 1992 e
2001); e Manuel Alvar Esquerra (dir.), Diccionario general ilustrado de
la lengua española (1987). A única exceção é o Diccionario ilustrado
Durvan de la lengua española (1990), que registra o termo “heroico-
cómico”. Curiosamente, em diversos dicionários bilíngües, o termo ou
correlatos podem ser encontrados. Cito alguns exemplos: Julio Martínez
Almoyna, Dicionário de português-espanhol (s.d.), no qual equivale “he-
rói-cômico” a “heroicómico”; Edwin B. Williams, Diccionario inglés y
español (1963), que define “mock-heroic” como “heroicocómico”; Ramón
García-Pelayo y Gross, Dictionaire moderne français-espagnol (1967), que
indica “héroï-comique” como equivalente de “heroicocómico” e “heroi-
coburlesco”; e Collins spanish-english/english-spanish dictionary (1988),
que define “mock-heroic” como “heroicoburlesco”, mas na parte refe-
rente às palavras em espanhol estranhamente não cita o termo “heroico-
burlesco”, mas o termo “heroicocómico” como equivalendo a “mock-
heroic”. Isto se explica, certamente, pela necessidade que estes dicio-

51

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naristas tiveram de estabelecer uma sinonímia para o termo presente em
outras línguas ao compilarem seus dicionários bilíngües.
29
Para uma interpretação que busca fundar o poema herói-cômico como
um gênero à parte e distinto da sátira, ver Joaci Pereira Furtado, A cali-
grafia dos afetos: o poema herói-cômico e a sociedade luso-americana.
Tese de doutorado em história social, Departamento de História, FFLCH,
USP. São Paulo, 2001, passim. É o trabalho mais detalhado que possuí-
mos sobre o poema herói-cômico, abordando alguns poemas herói-cô-
micos em língua portuguesa: o Foguetário, de Pedro de Azevedo Torjal,
escrito possivelmente entre 1729 e 1742; O hissope, de Antônio Diniz
da Cruz e Silva, escrito possivelmente entre 1770 e 1772; O desertor, de
Silva Alvarenga, publicado em 1774; as Cartas chilenas, atribuídas a
Tomás Antônio Gonzaga e escritas provavelmente nos anos de 1780; O
reino da estupidez, atribuído a Francisco de Memo Franco e possivel-
mente escrito no início dos anos de 1780; e Os burros, ou o reinado da
Sandice, de José Agostinho de Macedo, publicado em 1827. O traba-
lho tem o mérito de estabelecer algumas balizas para a análise retórica de
O desertor e será retomado mais adiante.
30
João Adolfo Hansen, A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do
século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 225-26.
31
Luís de Sousa Rebelo, “Da sátira renascentista à sátira moderna”, in A
tradição clássica na literatura portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982,
p. 153, Coleção Horizonte Universitário, 30.
32
Entre outros, ver, a este respeito, Antonio Candido, Formação da litera-
tura brasileira, op. cit., vol. 1, pp. 43 e 48-49; Ivan Teixeira, op. cit.,
pp. 23, 136, 150-55 e 213-14; Jorge Antonio Ruedas de La Serna,
Arcádia: tradição e mudança. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1995, p. 2.
33
Jorge Antonio Ruedas de La Serna, op. cit., p. 142.
34
Alberto Pimentel, Poemas herói-cômicos portugueses (verbetes e apostilas).
Porto: Renascença Portuguesa, 1922, passim.
35
Joaci Pereira Furtado, op. cit., pp. 55-56. O autor cita uma passagem de
A. G. da Rocha Madahil, em sua introdução ao Palito métrico e correlativa
latino-portuguesa, que reproduzimos aqui: “algumas gravuras e desenhos
nos apresentam [os estudantes] envergando volta e loba fechada, meia e
sapato de fivela, capa de clérigo acobertando a guitarra de trovador e não
poucas vezes a espada ou a pistola de desordeiro, barba intonsa, gorro

52

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descendo abaixo dos ombros, simultaneamente generoso e impertinen-
te, beberrão e sentimental [...]” (grifos no original). Como pode ser vis-
to em O desertor, a caracterização dos personagens do poema segue em
alguns aspectos essas gravuras da época.
36
Idem, op. cit., p. 57.
37
Ver, a este respeito, o excelente trabalho de Maria Helena da Rocha Pe-
reira, “Ecos da reforma pombalina na poesia setecentista”, in Novos en-
saios sobre temas clássicos na poesia portuguesa. Maia: Imprensa Nacional,
Casa da Moeda, 1988, pp. 171-91, Temas Portugueses.
38
Fritz Teixeira de Salles, op. cit., p. 6.
39
Certamente o primeiro a indicar este aspecto de crítica ao próprio
arcadismo foi José Veríssimo (op. cit., p. 123). José Aderaldo Castelo
investigou-o com maior profundidade nas quintilhas Ao vice-rei Luiz de
Vasconcelos e Souza no dia dos seus anos (José Aderaldo Castelo, Manifes-
tações literárias da era colonial, 3a ed. São Paulo: Cultrix, 1967, pp. 148-
49, 153 e 159). Ver ainda a este respeito Fritz Teixeira de Salles, op.
cit., pp. 16, 47-48 e 57, e Massaud Moisés, op. cit., p. 281.
40
Jorge Antonio Ruedas de La Serna, op. cit., p. 15.
41
Idem, op. cit., p. xviii.
42
Idem, op. cit., p. 17.
43
Péricles Eugênio da Silva Ramos, “Poesia neoclássica”, in Do barroco ao
modernismo: estudos da poesia brasileira. São Paulo: Conselho Estadual
de Cultura, 1968, Coleção Textos e Documentos, n o 9. Cândido Lusi-
tano, seguindo Horácio e Muratori, dizia que a poesia devia não apenas
deleitar, mas também instruir, “como filha que era da filosofia moral”
(p. 38). A este respeito, Ivan Teixeira aborda em profundidade a
vinculação entre filosofia moral e poesia ao longo de todo o seu traba-
lho. Ivan Teixeira, op. cit. Entre outros, leia-se, por exemplo: “antes da
poesia, colocavam-se as verdades da filosofia moral, que se confundia
com a ética sancionada pelo Estado e pela Igreja, não raro impregnada
de declarados propósitos políticos, como demonstram O Uraguay, de
Basílio da Gama, e O Desertor, de Silva Alvarenga” (p. 162).
44
Essa generalização, contudo, não nos deve fazer esquecer que Silva
Alvarenga foi exatamente atrás do Boileau satírico quando escreveu seu
poema herói-cômico. O próprio Filinto Elísio não deixará de elogiar o
mestre francês em seus poemas.

53

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45
Jorge Antonio Ruedas de La Serna, op. cit., pp. 138-41.
46
Januário da Cunha Barbosa, cônego, “Doutor Manuel Inácio da Silva
Alvarenga”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. III.
Rio de Janeiro, pp. 338-39.
47
Décio Pignatari, “Contra o sotaque ‘nacionalês’”, O Globo. Rio de Janei-
ro, 22 out., 1995, Segundo Caderno, p. 5.
48
Hélio Lopes, “Séria brincadeira de estudantes”, in Letras de Minas e ou-
tros ensaios. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997,
pp. 141-45, Ensaios de Cultura, 9.
49
Idem, op. cit., p. 146.
50
Neste sentido, não procede a afirmação de José Aderaldo Castelo a res-
peito de O desertor, quando diz (grifo nosso): “devemos ressaltar de qual-
quer forma as reminiscências nativistas do poeta, tão freqüentes mesmo
ao tratar [...] de assunto definitivamente português” (op. cit., p. 156).
51
Ivan Teixeira, op. cit., pp. 52-53.
52
Idem, op. cit., respectivamente pp. 410 e 482.
53
Antonio Candido sugere que a possível influência de Boileau na obra
de Silva Alvarenga tenha sido “coada através de Diniz” (Formação da li-
teratura brasileira, op. cit., p. 154).
54
Hélio Lopes, op. cit., p. 142.
55
Idem, op. cit., p. 159.
56
Idem, op. cit., p. 164.
57
Joaci Pereira Furtado, op. cit., p. 223, nota 201.
58
Ibidem. Verney rejeita a sátira juvenaliana e faz a apologia da horaciana,
porque repreender os vícios requer “muita delicadeza”, como em Horácio,
p. 178.
59
Ver, a este respeito, a minuciosa paráfrase da ação, ou narrativa, do poe-
ma realizada por Joaci Pereira Furtado (op. cit., pp. 195-202), muito
eficaz para a compreensão de sua trama complexa.
60
Idem, op. cit., p. 226. O mesmo procedimento se verifica em O Uraguay,
de Basílio da Gama. A este respeito, ver Basílio da Gama, Obras poéticas
de... Ensaio e edição crítica de Ivan Teixeira. São Paulo: Editora da Uni-
versidade de São Paulo, 1996, p. 110, Texto e Arte, 12.
61
Joaci Pereira Furtado, op. cit., p. 222.

54

01olho-introducao.PMD 54 14/1/2010, 16:10


62
São precisamente 35 as referências a autores e livros. Pudemos localizar,
na maioria dos casos com razoável precisão, 29 delas. Lembremos aqui
um dos raros autores que se referiram à passagem, Sílvio Romero (op.
cit., p. 106), por considerá-la a única digna de citação de todo o poema.
No entanto, a respeito dela formula uma interpretação absurda, ao cha-
mar os livros citados de “literatura de cordel, então em voga”. Como se
verá, esta generalização é improcedente no que se refere à maioria dos
livros que vêm indicados no poema.

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SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO

Ainda que de forma breve, pretendemos não apenas tra-


tar dos critérios que presidiram a preparação desta edição, mas
igualmente reunir elementos em torno das publicações de O
desertor: poema herói-cômico, visando sistematizar sua breve
história editorial.
Para o estabelecimento de texto, utilizamo-nos da edi-
ção princeps, publicada em 1774, em Coimbra, “na Real Ofi-
cina da Universidade” e “Com licença da Real Mesa Censória”,
como vem especificado na folha de rosto, que estampa ainda
o brasão da Real Oficina, com as cinco quinas da monarquia
lusitana, rodeadas por sete castelos. A folha de rosto também
traz a informação de que Silva Alvarenga, na “Arcádia Ultra-
marina”, possui o codinome de “Alcindo Palmireno”. O vo-
lume tem 71 páginas, as duas últimas sem numeração, in-oi-
tavo. Trabalhamos com o microfilme e com fotocópias do
exemplar pertencente à coleção do bibliófilo José Mindlin,
possivelmente o único existente no Brasil, já que a edição é
raríssima. Como já dissemos, ao que parece, a primeira edi-
ção saiu autorizada pelo marquês de Pombal e contra a von-
tade de Silva Alvarenga, que ainda não considerava o poema
completamente corrigido, segundo o cônego Januário da Cu-
nha Barbosa, seu primeiro biógrafo.

57

02 sobre a presente.PMD 57 14/1/2010, 16:10


Visando à fatura de uma edição crítica, cotejamos a
princeps com as demais edições que o poema recebeu. No caso,
somente outras duas, até onde pudemos averiguar: a segunda
edição, provavelmente publicada em 1788, em Portugal, e a
terceira, organizada por Joaquim Norberto em 1864 e pu-
blicada pela editora Garnier.
A segunda edição apresenta na folha de rosto os mes-
mos dados da princeps, exceto o brasão da Real Oficina da Uni-
versidade de Coimbra, a informação sobre licença para publi-
cação e indicações referentes a local de impressão, editor e data.
É um volume de 66 páginas, in-oitavo.1 Trabalhamos com fo-
tocópias do exemplar pertencente à Biblioteca do Instituto de
Estudos da Linguagem da UNICAMP. A inexistência de notas
tipográficas levou Rubem Borba de Moraes a duvidar que fos-
se a segunda,2 mas entendemos que Heitor Martins dirime to-
das as dúvidas a este respeito.3 Tal como Inocêncio Francisco
da Silva já havia indicado, esta realmente é a segunda edição,
posterior, portanto, a 1774 e provavelmente impressa no iní-
cio de 1788. O exemplar que Heitor Martins possuía, dife-
rentemente do que pertenceu a Rubem Borba de Moraes (que
tem a última página em branco), apresenta no final a folha
de rosto de um outro livro já referido neste trabalho, a
Mondegueida, de Francisco Manuel Gomes da Silveira Ma-
lhão, cujo apelido era “Malhão Velho”. A Mondegueida foi
publicada, segundo Alberto Pimentel, Teófilo Braga e Ino-
cêncio, no ano de 1788. Muito possivelmente esta edição te-
nha sido feita em Coimbra, por ordem do Malhão Velho,
como recurso para ajudar a custear seus estudos jurídicos na
universidade.
Por pertencer à tradição do Palito métrico4 e descrever
situações ligadas à Universidade de Coimbra, é possível que a
obra tivesse boas possibilidades de venda, ajudando-o finan-

58

02 sobre a presente.PMD 58 14/1/2010, 16:10


ceiramente a manter os estudos. A diferença entre os exem-
plares de O desertor pertencentes a Heitor Martins e Rubem
Borba de Moraes se explica, por certo, pelo aproveitamento
de papel pelo editor pobre. Dificilmente a publicação seria
posterior a 1788, pois Malhão Velho abandonou Coimbra
em 1789, mas também porque em fins de 1788 morreu
dom José, príncipe herdeiro citado duas vezes no poema, o
que tornaria bastante constrangedora a publicação depois des-
ta data. A inexistência das indicações tipográficas, segundo
ainda Heitor Martins, explica-se pelo fato de que Malhão
Velho é um estudante pobre que não tem recursos para as
aprovações da censura oficial. Por isso todos os seus folhe-
tos foram publicados anônimos ou com pseudônimos e sem
indicação de procedência. “A semiclandestinidade desta lite-
ratura ‘underground’ estudantil é que explica a ausência de
identificação bibliográfica.”5
Heitor Martins, em sua refinada análise, vai ainda mais
longe, perguntando-se sobre a importância ideológica dessa
segunda edição, aspecto mais significativo do que sua consi-
deração como expediente econômico para o estudante: ela afi-
nal indicia que, após a queda de Pombal, ainda havia leitores
de espírito “progressista” em Portugal. “Saindo a público du-
rante o período de desgraça do marquês de Pombal, o poema
indica a existência de um núcleo de resistência que não aderiu
nem se rebaixou ao reacionarismo que toma conta de Portu-
gal e do Brasil após a queda do grande ministro.”6 O reino da
estupidez, atribuído a Francisco de Melo Franco, possivelmente
divulgado manuscrito em 1782, também se inseriria neste
mesmo espírito de resistência.
Somente em 1864 veio a público a terceira edição do
poema, e ao que parece a última, quando Joaquim Norberto
de Sousa Silva organizou as Obras poéticas de Manuel Inácio

59

02 sobre a presente.PMD 59 15/1/2010, 09:53


da Silva Alvarenga, para a editora Garnier. O desertor cons-
ta do Tomo Segundo, junto com os madrigais e rondós de
Glaura: poemas eróticos, ocupando as páginas 3 a 81. 7 A edi-
ção do poema organizada por Joaquim Norberto é muito
problemática, o que será abordado logo a seguir. Desde en-
tão, nunca mais foi reeditado na íntegra, havendo apenas edi-
ções de fragmentos seus em antologias diversas. Observe-se
ainda que, sistematicamente, o poema vem citado ou impres-
so em parte com o título O desertor das letras, como em al-
guns comentadores que consideramos na “Introdução” deste
trabalho. E isto desde as antologias do século XIX até os inú-
meros textos de história da literatura portuguesa e brasileira
mais recentes, o que também contribui para sua desca-
racterização e seu desconhecimento. Como ocorreu tal coi-
sa? Possivelmente porque o título O desertor não esclarece
imediatamente o seu conteúdo. Os analistas optaram, por-
tanto, por seguir o que vem dito no primeiro verso do poe-
ma: “Musas, cantai o Desertor das letras”. No entanto, nada
justifica esta interferência, pois inúmeras obras não possuem
títulos evidentes.

***

No que se refere ao estabelecimento de texto propria-


mente dito, são dois os maiores problemas. O primeiro é que
Silva Alvarenga não emprega nenhum sinal para indicar iní-
cio de estrofe, à exceção de um único caso que vem assinala-
do em nota. Seguimos o padrão da princeps. Nem sempre é
possível saber com certeza se, com a mudança de página, ini-
cia-se uma nova estrofe. A segunda edição adotou o recuo para
a direita do primeiro verso de cada estrofe e nos serviu geral-
mente de guia para definirmos a estrofação nos raros casos

60

02 sobre a presente.PMD 60 14/1/2010, 16:10


ambíguos. A edição de Joaquim Norberto adota, geralmente,
a disposição gráfica da princeps no que se refere ao primeiro
verso de cada estrofe, ou seja, o primeiro verso não possui ne-
nhuma disposição especial. Mas como Norberto chega a di-
vidir versos, a segunda metade vem disposta na linha seguin-
te e com acentuado recuo para a direita.
O segundo, bem mais complicado, diz respeito ao fato
de que diversas palavras, na princeps, aparecem grafadas com
letra maiúscula, certamente com função expressiva ou de per-
sonificação. No entanto, não são homogêneos os critérios da
primeira edição para grafar palavras com iniciais maiúsculas
ou minúsculas. De qualquer modo, seguimos exatamente as
indicações da princeps a este respeito, deixando para o leitor a
percepção clara de como a primeira edição se apresenta.
Alguns títulos de obras que na princeps estão grafados
sem nenhum destaque especial aqui aparecem em itálico. Note-
se que na princeps os critérios a este respeito também não são
homogêneos, mas a grande maioria dos títulos aparece em itá-
lico. Títulos de obras estrangeiras citadas foram mantidos tal
como estão na princeps, sendo atualizados e por vezes esclare-
cidos em notas.
A pontuação da princeps foi geralmente mantida, em
decorrência de seu valor expressivo. Respeitamos, portanto, a
vírgula que antecede o e como conectivo vocabular ou ora-
cional, empregada sistematicamente por Silva Alvarenga, ain-
da que possam ser localizadas raríssimas exceções. Em alguns
casos em que não há pontuação alguma na princeps, tivemos
de acrescentá-la para tornar o texto compreensível. Em outros,
mudamos a pontuação com o mesmo objetivo.
O uso de reticências na princeps é muito irregular, po-
dendo-se encontrar três, quatro e até cinco pontos. Adotamos
o padrão atual. Algumas abreviaturas menos comuns foram

61

02 sobre a presente.PMD 61 14/1/2010, 16:10


desdobradas. Outras, mais comuns, foram mantidas. A abre-
viatura “&c.” foi desdobrada para “etc.”.
O texto foi atualizado ortograficamente, mas em raros
casos mantivemos a ortografia da princeps, por nos parecerem
correntes na época e que devem ser preservados. Os nomes
próprios foram atualizados. Não mantivemos as formas sin-
copadas (c’o, co’a etc.), atualizando-as segundo os critérios
atuais (co, coa etc.). Buscamos também, até onde foi possí-
vel, respeitar integralmente a disposição gráfica da primeira edi-
ção, mantendo, portanto, as notas de Silva Alvarenga no
rodapé das páginas. Seguimos ainda a princeps para a disposi-
ção dos versos dos dois sonetos que vêm depois do poema, já
que as outras edições alteram bastante sua visualização.
As citações em latim aparecem no texto tal como cons-
tam na edição princeps. Nas “Notas e variantes”, vêm apresen-
tadas as citações segundo edições atuais, seguidas de sua tra-
dução. Para não saturar o texto do poema de números refe-
rentes a nossas notas e variantes, preferimos colocá-las depois
do poema, com a indicação do canto e antecedidas do núme-
ro do verso a que se referem.
A segunda edição é, geralmente, bastante fiel à princeps,
distinguindo-se apenas pelo recuo para a direita do primeiro
verso de cada estrofe e pela variação ortográfica de algumas
palavras, o que vem indicado no final deste texto.
Edição realmente problemática é a preparada por Joa-
quim Norberto. Entre as intervenções mais gritantes, o fato
de que ele cria uma epígrafe para o poema (que não possui
epígrafe), pegando a última citação (de Horácio) do “Discur-
so sobre o poema herói-cômico” e deslocando-a para a página
de rosto. Também bastante discutível é a opção de Joaquim
Norberto por eliminar os dois sonetos que encerram o poe-
ma, transferindo-os para outra parte das Obras poéticas, na qual

62

02 sobre a presente.PMD 62 14/1/2010, 16:10


reúne todos os sonetos do autor. Com isso, descaracteriza o
texto, pois os sonetos são parte integrante do ideário do poe-
ma. Por fim, Joaquim Norberto não se utilizou da princeps
para o estabelecimento de texto, como ele próprio esclarece,
mas a segunda edição, reproduzindo, assim, os pequenos er-
ros e as variantes ortográficas que ela estampa na maioria dos
casos. As raras exceções vêm indicadas nas variantes. Como se
vê, na época de Joaquim Norberto já era raro um exemplar
da princeps, tanto quanto da própria segunda edição, como es-
clarece Rubem Borba de Moraes.
Outras intervenções, bastante injustificáveis, alteram subs-
tancialmente a aparição gráfica do poema. Joaquim Norberto
não respeita as maiúsculas das personificações ou com função
expressiva. No entanto, mantém as maiúsculas nos nomes dos
povos citados, como Longobardos, Italianos, Franceses, Ame-
ricanos etc.
Divide também versos e cria estrofes inexistentes na
princeps, estabelecendo uma dinâmica que o texto não possui.
Quando em um verso se conclui uma frase, com ponto final,
no primeiro hemistíquio, e a segunda parte é a fala de um per-
sonagem, ele desloca o segundo hemistíquio para a linha se-
guinte com um grande recuo para a direita e introduz aspas,
o que também a princeps não possui. Aliás, todas as falas dos
personagens recebem aspas na edição de Norberto. Altera bas-
tante, ainda, a pontuação da primeira edição e elimina todos
os parênteses constantes na princeps e na segunda edição. In-
troduz números no corpo do poema, deslocando as notas para
o final do Canto V, sem repetir os versos a que elas se refe-
rem, como na princeps e na segunda edição. Este procedimen-
to, evidentemente, tem implicações significativas para a
apreensão do texto, pois elimina a percepção imediata preten-
dida pelo autor, advinda da leitura das informações e comen-

63

02 sobre a presente.PMD 63 14/1/2010, 16:10


tários que fez nas notas de rodapé. Por fim, abre uma página
a cada início de canto, ao passo que na princeps e na segunda
edição os cantos vêm simplesmente seguidos: o canto seguin-
te se inicia, havendo espaço, na mesma página do anterior.
Rubem Borba de Moraes, ainda que considere as Obras
poéticas organizadas por Joaquim Norberto a melhor edição
existente dos textos de Silva Alvarenga, já havia assinalado,
contudo, que Norberto nem sempre consultou as primeiras
edições nem cotejou os textos, tendo também modernizado
a ortografia e alterado a pontuação “sem critério seguro”.8
Nas anotações que fizemos ao poema, vêm indicadas
todas as variantes mais substanciais da segunda e da terceira
edição em relação à princeps.

***

Com respeito à ortografia de certas palavras nas edições,


há uma diferença notável entre a princeps e as demais. Quase
todas as ocorrências do ditongo “oi”, na princeps, aparecem
grafadas como “ou” nas outras. É o caso dos seguintes vocá-
bulos: “loiros” (Canto I, v. 25; Canto III, v. 231; Canto IV,
v. 168; Canto V, v. 174; Soneto de E. G. P., v. 14); “loiro”
(Canto I, v. 162; Canto IV, v. 76); “doiradas” (Canto I, v. 67);
“doirada” (Canto V, v. 267; Soneto de E. G. P., v. 11); “oiro”
(Canto I, v. 206; Canto IV, v. 121); “Moiros” (Canto II,
v. 183); “oiteiros” (Canto III, v. 34; Canto V, v. 91); “dois”
(Canto III, v. 43; Canto IV, vv. 96 e 278; Canto V, vv. 147 e
178); “thesoiros” (Canto III, v. 117; Canto IV, vv. 31 e 140);
“foices” (Canto III, v. 175); “toiro” (Canto IV, v. 364); e “The-
soireiro” (Canto V, v. 113), vocábulos que nas demais edições
aparecem respectivamente como “louros”, “louro”, “douradas”,

64

02 sobre a presente.PMD 64 14/1/2010, 16:10


“dourada”, “ouro”, “Mouros” (com inicial minúscula na edi-
ção de Joaquim Norberto), “outeiros”, “dous”, “thesouros”,
“fouces”, “touro” e “Thesoureiro” (com inicial minúscula na
edição de Joaquim Norberto). Há, contudo, algumas exceções,
como é o caso de “loiro” (Canto I, v. 5), “Moiros” (Canto I,
nota ao v. 55), “dois” (Canto I, v. 291; Canto IV, v. 366) e
“foices” (Canto II, v. 174), que são mantidos nas demais edi-
ções; e “dous” (Canto IV, v. 57), também mantido nas demais
edições. Esta última ocorrência possivelmente seja uma gra-
lha da princeps, pois trata-se da única vez em que se verifica
tal ortografia para a palavra “dois”.

65

02 sobre a presente.PMD 65 14/1/2010, 16:10


N OTAS

1
Note-se que no Dicionário bibliográfico brasileiro (sexto volume, p. 101),
de Sacramento Blake, certamente por um descuido tipográfico, consta
que esta edição tem 16 páginas. O Dicionário também informa que a
edição foi feita no Rio de Janeiro. Estes erros depois serão repetidos por
Artur Mota (História da literatura brasileira: época de transformação; sé-
culo XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1930, p. 304), de
onde deduzimos que Mota não chegou a ver um exemplar da edição.
2
Rubem Borba de Moraes, Bibliografia brasileira do período colonial: ca-
tálogo comentado das obras dos autores nascidos no Brasil e publicadas antes
de 1808. São Paulo: IEB–USP, 1969, p. 19, Publicações do Instituto
de Estudos Brasileiros, 9.
3
Heitor Martins, “A segunda edição de ‘O Desertor’. Silva Alvarenga e o
‘Malhão Velho’”, in Do barroco a Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Itatiaia,
1983, pp. 67-72, Coleção Ensaios, vol. 12.
4
O poema Palito métrico, assinado por Antônio Duarte Ferrão, pseudô-
nimo do padre João da Silva Rebello, foi publicado pela primeira vez
em 1746 e teve diversas edições no século XVIII. Narra as aventuras do
novato João Fernandes, parodiando o registro épico. É um exemplo de
poema macarrônico sobre a vida estudantil.
5
Heitor Martins, op. cit., p. 71.
6
Ibidem.
7
Sacramento Blake (op. cit., p. 102) informa que estes volumes prepara-
dos por Joaquim Norberto tiveram ainda uma edição com o título Obras
completas de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, que no entanto não con-
seguimos localizar em nenhum dos acervos pesquisados. Esta informa-
ção também será repetida por Artur Mota (op. cit., p. 304) e Afrânio

66

02 sobre a presente.PMD 66 14/1/2010, 16:10


Peixoto, em seu Panorama da literatura brasileira. São Paulo: Compa-
nhia Editora Nacional, 1940, p. 229, Livros do Brasil, vol. 2, Coleção
de Obras-Primas da Literatura Nacional. Note-se que Rubem Borba de
Moraes (op. cit.), sempre tão minucioso em seu levantamento biblio-
gráfico, não cita esta edição.
8
Rubem Borba de Moraes, op. cit., p. 22.

67

02 sobre a presente.PMD 67 14/1/2010, 16:10


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O DESERTOR
Poema herói-cômico
por
Manuel Inácio
da Silva Alvarenga,
na Arcádia Ultramarina
Alcindo Palmireno

03 o desertor.PMD 69 14/1/2010, 16:10


70

03 o desertor.PMD 70 14/1/2010, 16:10


D ISCURSO SOBRE O
POEMA HERÓI - CÔMICO

A imitação da Natureza, em que consiste toda a força


da Poesia, é o meio mais eficaz para mover, e deleitar os ho-
mens; porque estes têm um inato amor à imitação, harmo-
nia, e ritmo. Aristóteles, que bem tinha estudado a origem
das paixões, assim o afirma no cap. 4o da Poética. Este inato
amor foi o que logo ao princípio ensinou a imitar o Canto
das Aves: ele depois foi o inventor da Flauta, e da Poesia, como
felizmente exprimiu Lucrécio no liv. 1o v. 1378.

At liquidas avium voces imitarier ore


Ante fuit multo, quam levia carmina cantu
Concelebrare homines possent, aureisque juvare.
Et Zephyri cava per calamorum sibila primum
Agrestes docuere cavas inflare cicutas.

O prazer, que nos causam todas as artes imitadoras, é a


mais segura prova deste princípio. Mas assim como o sábio
Pintor para mover a compaixão não representa um quadro ale-

71

03 o desertor.PMD 71 14/1/2010, 16:10


gre, e risonho, também o hábil Poeta deve escolher para a sua
imitação ações conducentes ao fim que se propõe: por isso o
Épico, que pretende inspirar a admiração, e o amor da virtu-
de, imita uma ação na qual possam aparecer brilhantes o va-
lor, a piedade, a constância, a prudência, o amor da Pátria, a
veneração dos Príncipes, o respeito das Leis, e os sentimentos
da humanidade. O Trágico, que por meio do terror, e da com-
paixão deseja purgar o que há de mais violento em as nossas
paixões, escolhe ação, onde possa ver-se o horror do crime
acompanhado da infâmia, do temor, do remorso, da
desesperação, e do castigo: enquanto o Cômico acha nas ações
vulgares um dilatado campo à irrisão, com que repreende os
vícios.
Qual destas imitações consegue mais depressa o seu fim,
é difícil o julgar, sendo tão diferentes os caracteres, como as
inclinações; mas quase sempre o coração humano, regido pe-
las leis do seu amor próprio, é mais fácil em ouvir a censura
dos vícios, do que o louvor das virtudes alheias.
O poema Chamado Herói-Cômico, porque abraça ao
mesmo tempo uma e outra espécie de poesia, é a imitação de
uma ação cômica heroicamente tratada. Este Poema pareceu
monstruoso aos Críticos mais escrupulosos; porque se não
pode (dizem eles) assinar o seu verdadeiro caráter. Isto é mais
uma nota pueril, do que bem fundada crítica; pois a mistu-
ra do heróico, e do cômico não envolve a contradição, que
se acha na Tragicomédia, onde o terror, e o riso mutuamente se
destroem.
Não obsta a autoridade de Platão referida por muitos;
porque quando este Filósofo no Diálogo 3 da sua República
parece dizer que são incompatíveis duas diversas imitações, fala
expressamente dos Autores Trágicos, e Cômicos, que jamais
serão perfeitos em ambas.

72

03 o desertor.PMD 72 14/1/2010, 16:10


Esta Poesia não foi desconhecida dos Antigos. Homero
daria mais de um modelo digno da sua mão, se o tempo, que
respeitou a Batracomiomaquia, deixasse chegar a nós o seu
Margites, de que fala Aristóteles no cap. 4 da Poética, dizen-
do que este poema tinha com a Comédia a mesma relação que
a Ilíada com a Tragédia. O Culex, ou seja de Virgílio, ou de
outro qualquer, não contribui pouco para confirmar a sua an-
tiguidade.
Muitos são os poemas herói-cômicos modernos. A
Secchia rapita de Tassoni é para os Italianos o mesmo que o
Lutrin de Boileau para os Franceses, e o Hudibraz de Butler,
e o Rape of the lock de Pope para os Ingleses.
Uns sujeitaram o poema herói-cômico a todos os pre-
ceitos da Epopéia, e quiseram que só diferisse pelo cômico da
ação, e misturaram o ridículo, e o sublime de tal sorte, que
servindo um de realce a outro, fizeram aparecer novas belezas
em ambos os gêneros. Outros omitindo, ou talvez desprezan-
do algumas regras, abriram novos caminhos à sua engenhosa
fantasia, e mostraram disfarçada com inocentes graciosidades
a crítica mais insinuante, como M. Gresset no seu Ververt.
Não faltou quem tratasse comicamente uma ação herói-
ca; mas esta imitação não foi também recebida, ainda que a
Paródia da Eneida, de Scarron, possa servir de modelo.
É desnecessário trazer à memória a autoridade, e o su-
cesso de tão ilustres Poetas para justificar o Poema Herói-cô-
mico, quando não há quem duvide que ele, porque imita,
move, e deleita: e porque mostra ridículo o vício, e amável a
Virtude, consegue o fim da verdadeira poesia.

Omne tulit punεtum, qui miscuit utile dulci.


Horat. Poet. v. 342.

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Discit enim citiùs, meminitque libentius illud,
Quod quis deridet, quam quod probat, ac ve-
neratur.
Horat. Epist. I. l. 2. v. 262.

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O DESERTOR

Canto I

Musas, cantai o Desertor das letras,


Que, depois dos estragos da Ignorância,
Por longos, e duríssimos trabalhos
Conduziu sempre firme os companheiros
5 Desde o loiro Mondego aos Pátrios montes.
Em vão se opõem as luzes da Verdade
Ao fim, que já na idéia tem proposto:
E em vão do Tio as iras o ameaçam.

E tu, que à sombra duma mão benigna,


10 Gênio da Lusitânia, no teu seio
De novo alentas as amáveis Artes;
Se ao surgir do letargo vergonhoso
Não receias pisar da Glória a estrada,
Dirige o meu batel, que as velas solta,
15 O porto deixa, e rompe os vastos mares
De perigosas Sirtes povoados.

Que depois dos estragos da Ignorância. Depois de abolidos os velhos Esta-


tutos pela criação da nova Universidade.

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03 o desertor.PMD 75 18/1/2010, 16:01


Quais seriam as causas, quais os meios
Por que Gonçalo renuncia os livros?
Os conselhos, e indústrias da Ignorância
20 O fizeram curvar ao peso enorme
De tão difícil, e arriscada empresa.
E tanto pode a rústica progênie!

A vós, por quem a Pátria altiva enlaça


Entre as penas vermelhas, e amarelas
25 Honrosas palmas, e sagrados loiros,
Firme coluna, escudo impenetrável
Aos assaltos do Abuso, e da Ignorância,
A vós pertence o proteger meus versos.
Consenti que eles voem sem receio
30 Vaidosos de levar o vosso nome
Aos apartados climas, onde chegam
Os ecos imortais da Lusa glória.

Já o invicto Marquês com régia pompa


Da risonha Cidade avista os muros.
35 Já toca a larga ponte em áureo coche.
Ali junta a brilhante Infantaria;
Ao rouco som de música guerreira

E tanto pode a rústica progênie! Virg. En. l. I. ... Tantæ ne animis cœlestibus
iræ. M. Despreaux no Canto I do Lutrin.
Tant de fiel entre-t-il dans l’ame de Devots!

Já o invicto Marquês com régia pompa. O Ilustríssimo, e Excelentíssimo


Senhor Marquês de Pombal entrou em Coimbra como Plenipotenciário,
e Lugar-Tenente de Sua Majestade Fidelíssima, para a criação da Univer-
sidade em 22 de setembro de 1772.

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03 o desertor.PMD 76 18/1/2010, 16:01


Troveja por espaços: a Justiça,
Fecunda mãe da Paz, e da Abundância,
40 Vem a seu lado: as Filhas da Memória
Digna imortal coroa lhe oferecem,
Prêmio de seus trabalhos: as Ciências
Tornam com ele aos ares do Mondego;
E a Verdade entre júbilos o aclama
45 Restaurador do seu Império antigo.
Brilhante luz, paterna liberdade,
Vós, que fostes num dia sepultadas
Co bravo Rei nos campos de Marrocos,
Quando traidoras, ímpias mãos o armaram
50 Vítima ilustre da ambição alheia,
Tornai, tornai a nós. Da régia stirpe
Renasce o vingador da antiga afronta.
Assim o novo Cipião crescia
Para terror da bárbara Cartago.
55 Possam meus olhos ver o Ismaelita
Nadar em sangue, e pálido de susto
fugir da morte, e mendigar cadeias;

Co bravo Rei nos campos de Marrocos. O Senhor Rei D. Sebastião ficou em


África no ano de 1578, e se perdeu com ele a liberdade Portuguesa, de
donde nasceram as funestas conseqüências, que até agora se fizeram sentir.

Renasce o vingador da antiga afronta. O Sereníssimo Senhor D. José,


Príncipe herdeiro.

Assim o novo Cipião crescia. Públio Cornélio Cipião vingou a morte de


seu Pai, e Tio destruindo Cartago.

Possam meus olhos ver o Ismaelita. Os Moiros são descendentes de Ismael,


filho de Agar.

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03 o desertor.PMD 77 18/1/2010, 16:01


E amontoando Luas sobre alfanges
Formar degraus ao Trono Lusitano.
60 Dissiparam-se as trevas horrorosas,
Que os belos horizontes assombravam,
E a suspirada luz nos aparece.
Tal depois que raivoso, e sibilante
Sobre o carro da Noite o Euro açoita
65 Os tardios cavalos do Bootes,
E insulta as terras, e revolve os mares,
Raia a manhã serena entre doiradas,
E brancas nuvens: ri-se o Céu, e a Terra:
O Vento dorme, e as Horas vigilantes
70 Abrem ao claro Sol a azul campanha.

A soberba Ignorância entanto observa,


E se confunde ao ver o próprio trono
Abalar-se, e cair: o seu ruído
Redobra os ecos nos opostos vales,
75 E o Mondego feliz ao mar undoso
Leva alegre a notícia, porque chegue
Das suas praias aos confins da Terra.
Ela abatida, e só não acha abrigo,
E desta sorte em seu temor suspira.

80 Verei eu sepultar-se entre ruínas


O meu reino, o meu nome, e a minha glória;

Sobre o carro da noite o Euro açoita. Euro, o vento vulgarmente chamado


Leste. Bootes, constelação na cauda da Ursa, ou a Guarda.

Os tardios cavalos do Bootes. Juvenal. Sát. 5. v. 23.


Frigida Cirgumagunt pigri Sarraca Bootæ.

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03 o desertor.PMD 78 18/1/2010, 16:01


Depois de ser temida, e respeitada?
Pobre resto de míseros vassalos
Não há mais que esperar. Já fui rainha:
85 Já fostes venturosos: não soframos
As injúrias, que o vulgo nos prepara:
Injúrias mais cruéis do que a desgraça.
Deixemos para sempre estes terríveis
Climas de mágoa, susto, horror, e estrago.
90 Mostrai-me algum lugar desconhecido,
Onde oculta repouse, até que possa
Tomar de quem me ofende alta vingança.
Mas onde, se um Prelado formidável,
Esse Argos, que me assusta, vigilante
95 Ao lugar mais remoto estende a vista?
Monstros do cego abismo, em meu socorro
Empenhai o poder do vosso braço;
Que se entre os homens me faltar asilo,
Ao triste vão dos ásperos rochedos,
100 Onde o Tenaro escuro, e cavernoso
Da morada sombria as portas abre,
Irei chorar meus dias sem ventura:

Mas onde, se um Prelado formidável. O Ilustríssimo, e Excelentíssimo Se-


nhor Bispo de Coimbra, Reitor, e Reformador da Universidade.

Argos fingiu a fábula ser pastor de Tessália, que tinha cem olhos, a quem
Juno deu a guardar Jó, filha de Inacho, Rei dos Argivos.

Onde o Tenaro escuro, e cavernoso. Promontório de Lacônia, onde há uma


cova profundíssima, que os antigos chamaram a porta do Inferno. Virg.
Georg. l. 4. v. 467.
Tanarias etiam fauces alta ostia Ditis.

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03 o desertor.PMD 79 18/1/2010, 16:01


Irei... Assim falando misturava
Gemidos, e soluços, que sufocam
105 Dentro do peito a voz, e umedecia
Co pranto amargo a face descorada.
Mas logo, serenando o rosto aflito,
Corre por entre sustos, e esperanças
Ao caro abrigo do fiel Gonçalo.
110 A sonolenta, a pigra Ociosidade
Por esta vez deixou de acompanhá-la:
E a lânguida Perguiça forcejando
Pôde apenas segui-la com os olhos.

Toma a forma dum célebre Antiquário


115 Sebastianista acérrimo, incansável,
Libertino com capa de devoto.
Tem macilento o rosto, os olhos vivos,
Pesado o ventre, o passo vagaroso.
Nunca trajou à moda: uma casaca
120 Da cor da noite o veste, e traz pendentes
Largos canhões do tempo dos Afonsos.
Dizem que o tempo da mais bela idade
Consagrou às questões do Peripato.
Já viu passar dez lustros, e experiente
125 Sabe enredos urdir, e pôr-se em salvo.
Entra por toda a parte, e em toda a parte
É conhecido o nome de Tibúrcio.

Gonçalo, que foi sempre desejoso


Da mais bela instrução, lia, e relia
130 Ora os longos acasos de Rosaura,

Ora os longos acasos de Rosaura. Carlos, e Rosaura, constante Florinda, e


Carlos Magno são romances muito conhecidos.

80

03 o desertor.PMD 80 18/1/2010, 16:01


Ora as tristes desgraças de Florinda,
E sempre se detinha com mais gosto
Na cova Tristiféia, e na passagem
Da perigosa ponte de Mantible.
135 Repetia de cor de Albano as queixas
Chamando a Damiana injusta, ingrata;
Quando Tibúrcio apaixonado, e triste
Ralhando entrou. Que esperas tu dos livros?
Crês que ainda apareçam grandes homens
140 Por estas invenções, com que se apartam
Da profunda ciência dos antigos?
Morreram as postilas, e os Cadernos:
Caiu de todo a Ponte, e se acabaram
As distinções, que tudo defendiam,
145 E o ergo, que fará saudade a muitos!
Noutro tempo dos Sábios era a língua
Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba,
Ou se muda em pior. Que alegres dias
Não foram os de Maio, quando a estrada
150 Se enchia de Arrieiros, e Estudantes!
Ó tempo alegre, e bem-aventurado!
Que fácil era então o azul Capelo
Adornado de franjas, e alamares,
O rico anel, e a flutuante borla,
155 Honra, e fortuna, que chegava a todos!
Hoje é grande a carreira, e serão raros
Os que se atrevam a tocar a meta.
Ah Gonçalo! Gonçalo! que mais vale

Caiu de todo a ponte. O método escolástico. Quem conheceu a Lógica


peripatética, não ignora qual seja esta ponte.

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03 o desertor.PMD 81 18/1/2010, 16:01


Tirar coa própria mão no fértil Souto
160 Moles castanhas do espinhoso ouriço!
Quanto é doce ao voltar da Primavera
O saboroso mel no loiro favo!
Ó alegre, e famosa Mioselha
Fértil em queijos, fértil em tramoços!
165 Só lá de romaria em romaria
Podes viver feliz, e descansado:
Quem te obriga a levar sobre os teus ombros
O desmedido peso, que te espera?
Não tenhas do bom Tio algum receio:
170 Comigo irás: bem sabes quanto posso.
Se te envergonhas de ser só, descansa;
Fiel parente, amigo inseparável,
Eu farei que abraçando o mesmo exemplo
Muitos se apressem a seguir teus passos.

175 Assim falava: quando um ar de riso


Apareceu no rosto de Gonçalo.
Tudo o que se deseja se acredita;
Nem há quem o seu gosto desaprove.
Ele porque já traz no pensamento
180 Poupar-se dos estudos à fadiga
Não vacila na escolha, e se aproveita
Da feliz ocasião, que lhe assegura
O meditado fim de seus desejos.

Convocam-se os heróis, e deliberam


185 Em pleno consistório, onde Gonçalo
Silêncio pede, e assim a todos fala.

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03 o desertor.PMD 82 18/1/2010, 16:01


Heróis, a quem uma alma livre anima,
Que desprezando as Artes, e as Ciências,
Ides buscar da Pátria no regaço,
190 Longe da sujeição, e da fadiga
Doce descanso, amável liberdade:
Se algum de vós (o que eu não creio) ainda
Tem na alma o vão desejo dos estudos,
Levante o dedo ao alto. Uns para os outros
195 olharam de repente, e de repente
Rouco, e brando sussurro ao ar se espalha:
Qual nos bosques de Tempe, ou nas frondosas
Margens, que banha o plácido Mondego,
Costuma ouvir-se o Zéfiro suave,
200 Quando meneia os álamos sombrios.
Nenhum alçou a mão, e a Ignorância
Pareceu consolar-se, imaginando
Sonhadas glórias de futuro império.

Dispõe-se a companhia, e se aparelha


205 Para partir antes que o Sol desate
Sobre a Terra orvalhada as tranças d’oiro.
Tibúrcio tudo apronta. Mas Janeiro
Loquaz, traidor, doméstico inimigo
Voa de casa em casa publicando
210 Da forte esquadra a próxima partida.

Guiomar, velha que há muito que insensível


Às delícias do amor, aferrolhando

Qual nos bosques de Tempe. Lugar de Tessália célebre pela amenidade de


seus bosques.

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03 o desertor.PMD 83 18/1/2010, 16:01


Emagrece nos míseros cuidados
Da faminta ambição, e é na Cidade
215 Uma ave de rapina, que entre as unhas
Leva tudo o que encontra aos ermos cumes
Da escalvada montanha, onde a festejam
Coa boca aberta os ávidos filhinhos:
Triste agora, e infeliz ouve, e se assusta
220 Das notícias cruéis, que o Moço espalha.
Ó Ama desgraçada! Ó dia infausto!
Agora que esperava mais sossego
Principiam de novo os meus trabalhos!
Estas, e outras palavras arrancava
225 Do peito descontente, enquanto a Filha
Amorosa, e sagaz estuda os meios,
Com que possa deter o ingrato amante:
Faz ajuntar de partes mil à pressa
Cordões, e anéis, e a pedra reluzente,
230 Que os olhos desafia: os seus cabelos,
Que desconhecem o toucado, empasta
Coa cheirosa pomada: a Mãe se lembra
Da própria mocidade, e lhe vai pondo
Com a trêmula mão vermelhas fitas.
235 Simples noiva da aldeia, que ao mover-se
Teme perder o desusado adorno,
Nunca formou mais vagarosa os passos.
Narcisa chega entre raivosa, e triste,
E fingindo esquecer-se da mantilha
240 Para mostrar-se irada, desta sorte
Em alta voz lhe fala. Será certo
Que pertendes fugir, e que me deixas

84

03 o desertor.PMD 84 18/1/2010, 16:01


Infeliz, enganada, e descontente?
Assim faltas cruel, pérfido, ingrato
245 Dum longo amor aos ternos juramentos?
Não disseste mil vezes... mas que importa
Que os meus males recorde? enfim, perjuro,
As tuas vãs promessas me enganaram.
Justiça pedirei ao Céu, e ao Mundo:
250 O mundo tem prisões, o Céu tem raios.

Falava; e o herói, que arrasta ainda


Dum incômodo amor os duros ferros,
Parece vacilar; quando Tibúrcio
Dá conselhos a um, a outro ameaça
255 Pondo irados os olhos em Narcisa.
Diz-lhe que em vão suspira, que em vão chora
E que sempre tiveram as mulheres
Para enganar aos míseros amantes
As lágrimas no rosto, o riso na alma.
260 Gonçalo então, que o seu dever conhece,
Dá provas de valor, e de prudência.
Ouve Narcisa bela, (lhe dizia)
Serena a tua dor, e os teus queixumes:
O teu pranto me move, injusto pranto,
265 Que o meu constante amor de ingrato acusa:
Sossega: a nova herança dum morgado
É quem me chama, a ausência será breve.
Tempo depois virá que em doces laços
Eterno amor as nossas al mas prenda,
270 E então farás tibornas e magustos.

Tiborna. Comida feita de pão e azeite novo.


Magusto. Castanhas assadas, e vinho.

85

03 o desertor.PMD 85 18/1/2010, 16:01


Nem sempre cobre o mar a longa praia:
Nem sempre o vento com furor raivoso
Do robusto pinheiro o tronco açoita.

Acaba de falar, e lhe oferece


275 A leve bolsa, que Narcisa aceita
Como penhor sincero de amizade,
Bolsa, que deve ser na dura ausência
Breve consolação de tristes mágoas.

O experto Amigo, que se mostra em tudo


280 Companheiro fiel, com os olhos tristes,
Pondera os longos, e ásperos caminhos:
Lembra funestas noites de estalagem,
E adverte em vão, que ao menos por cautela
Deve fazer-lhe a bolsa companhia.
285 Deixando enfim inúteis argumentos
Remete a decisão ao próprio braço.
Não se esquecem das unhas, nem dos dentes,
Armas, que a todos deu a Natureza.
Ouvem-se pela casa em som confuso
290 As troncadas injúrias, e os queixumes.
Assim dois cães, se o hóspede imprudente
Lança da mesa os ossos esburgados,
Prontos avançam; duma, e doutra parte
Se vê firme o valor: mordem-se, e rosnam;
295 Mas não cessa a contenda. Amigo, e amante,
Que farias, Gonçalo, em tanto aperto?
Concorre a plebe, e o férvido tumulto
Vai pelas negras Fúrias conduzido
Despertando nos peitos a desordem.

86

03 o desertor.PMD 86 18/1/2010, 16:01


300 Ninguém sabe por quê, mas todos gritam.
Já voam as cadeiras pelos ares:
Pedras, e paus de longe se arremessam.
E se a cândida Paz com rosto alegre
Serenou as desgraças deste dia,
305 Os teus dentes, intrépido Gonçalo,
Viste voar em negro sangue envoltos.
Torna alegre Narcisa, e cinco vezes
Abriu a bolsa, e numerou a prata:
Fez diversas porções, que num momento
310 Tornou a confundir: não doutra sorte
O menino impaciente, e cobiçoso,
Quando alcança o que há muito lhe negavam,
Repara, volta, move, ajunta, espalha,
E neste giro o seu prazer sustenta.

315 Entanto a mãe, que já por experiência


Os enganos conhece mais ocultos,
Busca novos pretextos de vingança
Fingindo torpes, e horrorosos crimes,
E espera ouvir gemer em poucas horas
320 O mancebo infeliz em prisão dura.
Mas Rodrigo, que ouviu o rumor vago,
À pressa chega, e desta sorte fala.

Que desgraças te esperam! foge, foge


Gonçalo, enquanto há tempo: gente armada
325 Vem logo contra ti. Guiomar convoca
Todo o poder do mundo: um só momento
Não percas, caro amigo; os companheiros
Com alvoroço esperam. Ah deixemos,

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03 o desertor.PMD 87 18/1/2010, 16:01


Deixemos duma vez estas paredes,
330 Onde co próprio sangue escrita deixas
De teu trágico amor a breve história.
É já outro o Mondego: a liberdade
Destes campos fugiu, e só ficaram
A dura sujeição, e o triste estudo.
335 Enfim hei de apartar-me desta sorte?
Ó sempre tristes, sempre amargos sejam
Os teus últimos dias, velha infame.
Gonçalo, sim, chorando, monta, e parte.

Canto II

Com largo passo longe do Mondego


Alegre a forte gente caminhava.
Gonçalo excede a todos na estatura,
Na força, no valor, e na destreza.
5 Sobre um magro jumento se escarrancha
Tibúrcio, e já dum ramo de salgueiro
Desata ao Norte fresco, que assobia,
Por vistoso estandarte um lenço pardo.
Cosme infeliz, e sempre namorado
10 Sem ser correspondido, vai saudoso,
Ama, e não sabe a quem: vive penando,
E se consola só porque imagina
Que tem de conseguir melhor ventura.
Rodrigo, que de todos desconfia,
15 É de índole grosseira, e gênio bruto,
Não conhece os perigos, nem os teme:

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03 o desertor.PMD 88 18/1/2010, 16:01


Melancólico sempre, vai por gosto
Viver na choça, aonde foi criado.
Qual o Tatu, que o destro Americano
20 Vivo prendeu, e em vão depois se cansa
Por fazê-lo doméstico, que sempre
Temeroso nas conchas se recolhe
E parece fugir à luz do dia.
Também vinha Bertoldo, e traz consigo
25 Carunchosos papéis por onde afirma
Vir do sétimo Rei dos Longobardos.
Grita contra as riquezas, a Fortuna,
Segundo o que ele diz, não muda o sangue:
Pisa com força o chão, e empavesado
30 De ações, que ele não pode chamar suas,
Aos outros trata com feroz desprezo.
Iracundo Gaspar, que te enfureces
No jogo, e quando perdes não duvidas
Meter a mão à ferrugenta espada,
35 Tu não ficaste: as noites sobre os livros
Não queres suportar, porque não temes
Da já viúva mãe as frouxas iras.
Nem tu, Alberto alegre, e desejado
Das vistosas funções das romarias,
40 Que és vivo, pronto, e ágil, e nos bailes
Tens fama de engraçado, e garganteias
Coa viola na mão trocando as pernas.

Qual o Tatu, que o destro Americano. Lin. Sist. nat. Zool. edição 10. tomo I.
pág. 50. Dasypus.

Vir do sétimo Rei dos Longobardos. Povos de Escandinávia, e Pomerânia,


que se apoderaram da parte da Gália Cisalpina em 568.

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03 o desertor.PMD 89 18/1/2010, 16:01


Os que aprendem o nome dos autores,
Os que lêem só o prólogo dos livros,
45 E aqueles, cujo sono não perturba
O côncavo metal, que as horas conta,
Seguiram as bandeiras da ignorância
Nos incríveis trabalhos desta empresa.

O Sol já sobre os campos de Anfitrite


50 Inclina o carro, e as nuvens carregadas
Importunos chuveiros ameaçam;
Quando a velha estalagem os recebe.

Mesa de tosco pinho se povoa


De negras azeitonas, e salgado
55 Queijo, que estima a gente que mais bebe.
Dum lado, e doutro lado se levantam
Pichéis, e copos, em que o vinho abunda.
Corriam para aqui desafiados
Rodrigo, o triste, e o glutão Tibúrcio.
60 Este instante fatal é que decide
Da dúbia sorte dos heróis cobrindo
Um de eterna vergonha, outro de glória.

A feia Noite, que aborrece as luzes,


Desce dos altos montes com mais pressa
65 Por ver este combate, e afugentada
Pela sombria luz duma candeia
De longe observa o novo desafio.
Um, e outro ocupando as mãos, e a boca
Avidamente a devorar começa.
70 Assim esse animal grosseiro, e pingue,

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03 o desertor.PMD 90 18/1/2010, 16:01


Que de alpestres bolotas se sustenta,
À pressa come, e tendo uma nos dentes,
Noutra tem o desejo, e noutra a vista.
Rodrigo quase certo da vitória
75 Coas mãos ambas levanta um grande copo,
Copo digno de Alcides, e à saúde
De todos os famosos Desertores
De uma vez esgotou: então Tibúrcio
Cheio de nobre ardor, fechando os olhos
80 Toma um largo pichel, e assim lhe fala.

Vasilha da minha alma, tu que guardas


A alegria dos homens no teu seio,
E tu, filho da cepa generoso,
Se estimas, e recebes os meus votos,
85 Derrama sobre mim os teus encantos.
Já tinha dito muito: e enquanto bebe
Voa a cega Discórdia, que se nutre
De sangue, e de vingança, e sobre os copos
Três vezes sacudiu as negras asas.
90 Viam-se já nos lívidos semblantes
A raiva sanguinosa, a má tristeza.
A Noite, a quem o Acaso favorece,
Estende a fusca mão, e a luz abafa.
Veloz passa o furor de peito em peito,
95 Perturba os corações, e inspira o ódio.

Só tu, Gonçalo, descrever puderas


Os terríveis estragos desta noite,
Tu, que posto debaixo duma banca
(Por não manchar as mãos no sangue amigo)

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03 o desertor.PMD 91 18/1/2010, 16:01


100 Sentiste pela casa, e pelos ares
Rolar os pratos, e tinir os copos.
Range os dentes Gaspar, e pelo escuro
Não acerta coa espada, nem coa porta:
Quando Ambrósio, que tinha envelhecido
105 Da Estalagem na mísera oficina,
Coa candeia na mão assim falava.
É crível, que entre vós jamais se encontre
Um gênio dócil, sério, e moderado?
Isto deveis às letras? respondei-me,
110 Ou insultai também os meus cabelos
Da triste, e longa idade embranquecidos.
Julgais acaso, que o saber se infunde
Deixando o vosso nome assinalado
Pelos muros, e portas da Estalagem?
115 Ó néscia mocidade! é necessário
Muito tempo sofrer, gastando a vista
Na contínua lição, e sobre os livros
Passar do frio Inverno as longas noites.
E quando já tivésseis conseguido
120 De tão bela carreira os dignos prêmios,
Muito pouco sabeis, se inda vos falta
Essa grande Arte de viver no mundo,
Essa, que em todo o estado nos ensina
A ter moderação, honra, e prudência.
125 Eu também já na flor da mocidade
Varri coa minha capa o pó da sala:
Eu também fui do rancho da carqueja,

Eu também fui do rancho da carqueja. Esta Companhia de Estudantes


cometeu muitos crimes, e foi dispersa, e castigada.

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03 o desertor.PMD 92 18/1/2010, 16:01


Digno de fama, e digno de castigo.
Era então como vós. Jamais os livros
130 Me deveram cuidado, e me alegrava
Das noturnas empresas, dos distúrbios:
Os dias se passavam quase inteiros
Nos jogos, nos passeios, nas intrigas,
Que fomentam os ódios, e as vinganças.
135 Por isso estou no seio da miséria:
Por isso arrasto uma infeliz velhice
Sem honra, sem proveito, sem abrigo.
Tempo feliz da alegre mocidade!
Hoje encurvado sobre a sepultura
140 Eu choro em vão de vos haver perdido!
Assim suspira, e geme, e continua:
Conservai sempre firme na memória
Dum velho desgraçado o triste exemplo,
E aprendei a ser bons, que a vossa idade
145 As indignas ações não justifica.
Mas se vós desprezais os meus conselhos,
Nunca gozeis o prêmio dos estudos:
Aflições, e trabalhos vos oprimam,
Enquanto o mar das Índias vos espera.

150 Então Gaspar, tomando o caso em brio,


Aceso de ira com valor responde,
Traça o capote, e tira pela espada.
O velho grita, e foge: às suas vozes
De rústicos um povo se enfurece,
155 E toma as armas, e bradando avança.
Qual nos imensos, e profundos mares

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03 o desertor.PMD 93 18/1/2010, 16:01


O voraz Tubarão entre o cardume
De argentadas Sardinhas: elas fogem,
Deixam o campo, e nada lhe resiste;
160 Assim Gonçalo, a quem já todos temem,
Faz espalhar a turba, que o rodeia,
E só deixa a quem foge de encontrá-lo.

Gaspar, que o rosto nunca viu ao medo,


A todos desafia, e não perdoa
165 Duma oliveira ao carcomido tronco,
Que ele julga broquel impenetrável,
Vendo estalar da sua espada a folha.

Da noite a densa névoa favorece.


Receosos de nova tempestade,
170 Salvam as vidas os Heróis fugindo
Por entre o mato espesso. Ouvem ao longe
Da vingativa plebe a voz irada.
À clara luz das pinhas resinosas
Aparecem as foices, e aparecem
175 Chuços, cacheiras, trancas, e machados.
Levanta-se o clamor; e a crua guerra,
Que o sangue dos mortais derrama, e bebe,
Gira por toda a parte, e move as armas.
Entanto a valerosa companhia
180 Amparada da sombra feia, e triste
Voa por longo espaço sobre as asas
Do pálido terror. Não doutra sorte

À clara luz das pinhas resinosas. Costumam os rústicos acender de noite as


pinhas.

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03 o desertor.PMD 94 18/1/2010, 16:01


Rasos xavecos de piratas Moiros,
Quando aos ecos do bronze fulminante
185 Vêem tremular as vencedoras Quinas
sobre a possante Nau, que oprime os mares,
Fogem à vela, e remo, e não descansam
Sem ter beijado as Argelinas praias.
Ouvem-se então diversos sentimentos.
190 Chora Gaspar de se não ter vingado,
E ainda aqui colérico assevera
Que a não faltar-lhe a espada não fugira.
Espada, que ao romper as linhas d’Elvas,
Se dos velhos Avós não mente a história,
195 Abriu de meio a meio um Castelhano.

Teme Bertoldo, que o encontre o Povo;


E no meio daquela escuridade
Chega-se aos mais com pânico receio.
Cosme quase insensível aos perigos,
200 E aos amargos momentos desta noite,
Aproveita o silêncio, o sítio, a hora
Para chorar saudades sem motivo.
Só Gonçalo pensava cuidadoso
Em salvar os aflitos companheiros.
205 Assim o astuto assolador de Tróia,
Quando os Gregos heróis ouviu cerdosos

As linhas d’Elvas. Gloriosa batalha, que ganhou D. Antônio Luís de Me-


neses, Excelentíssimo Conde de Cantanhede, no ano de 1658. A este
herói também se deve o triunfo de Montes Claros.

Assim o astuto assolador de Tróia. Ulisses, cujos companheiros foram trans-


formados por Circe. Homero. Odiss. l. 10. v. 238.

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03 o desertor.PMD 95 18/1/2010, 16:01


Grunhir nos bosques da encantada Circe,
Ou quando viu a detestável mesa
Na vasta cova do Ciclope horrendo.
210 Onde estarás fiel, e caro amigo!
(Dizia o condutor da stulta gente)
Se tu me faltas como irei meter-me
Nas mãos dum Tio rústico, inflexível?
Voltarei? mas ó Céus! quem me assegura
215 Que essa velha cruel, nefanda harpia
Não tenha urdido algum funesto engano?
E se o Povo indignado, e ofendido
Nos vem seguindo, e ao surgir da Aurora
Neste inculto deserto... Céu piedoso,
220 Longe, longe de nós tão graves danos.

Gonçalo assim falava, e vigilante


Tristes horas passou, até que o dia
Apareceu entre rosadas nuvens
Sobre as altas montanhas do horizonte.

Canto III

A Fama sobre o carro transparente,


Que arrastam ao través do espaço imenso
O sonoro Aquilon, e o veloz Austro,

Ou quando viu a detestável mesa. Polifemo devorou dois Gregos em pre-
sença de Ulisses. Odiss. l. 9. v. 289.

O sonoro Aquilon, e o veloz Austro. Aquilon, vento setentrional, e Austro,


meridional.

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03 o desertor.PMD 96 18/1/2010, 16:01


Cantava o caro nome, a imortal glória
5 Do Augusto Pai do Povo. Entre milhares
De ações dignas dum Rei, Europa admira
O soberbo Edifício levantado,
Que o saudoso Mondego abraça, e adora:
Edifício, que o tempo doravante
10 Vê de longe, rodeia, teme, e foge:
Que sustenta em firmíssimas colunas
Da ciência imortal o Régio Trono.

Se longe da feroz barbaridade


Os olhos abre a forte Lusitânia,
15 Grande Rei, esta ação é toda vossa.

Entanto a Fama heróica vão seguindo


As velozes, e incógnitas notícias,
Que trazem, e que levam os sucessos
De país em país, de clima em clima.
20 Elas voam em turba, enchendo os ares
Dos ecos dissonantes, a que atendem
Crédulas velhas, e homens ociosos.
Qual no fértil Sertão da Ajuruoca
Vaga nuvem de verdes Papagaios,
25 Que encobre a luz do Sol, e que em seus gritos
É semelhante a um povo amotinado:
Assim vão as Notícias, e estas vozes
Pelo campo entre os rústicos semeiam.

Qual no fértil Sertão da Ajuruoca. Ajuruoca, na língua dos Índios, soa o


mesmo que casa de Papagaios. Este vasto país nas Minas do Rio das Mortes
é abundantíssimo destas aves.

97

03 o desertor.PMD 97 18/1/2010, 16:01


Gente inexperta, alegre, e sem cuidados,
30 Fero esquadrão, que os vossos campos tala,
Vem destruindo as terras, e os lugares.
O povo indócil, cego e receoso,
Que as funestas palavras acredita,
Toma os caminhos, e os oiteiros cobre.
35 Por onde irás, intrépido Gonçalo,
Que escapes ao furor da plebe armada?
Mas já os desgraçados companheiros
Desciam por incógnitas veredas
Para o fundo dum vale cavernoso,
40 Que o Zêzere veloz lavando insulta
Coas turvas águas do gelado inverno.
Há um lugar nunca dos homens visto,
Na raiz de dois montes sobranceiros.
Suam as frias, e musgosas pedras,
45 Que dos altos cabeços penduradas
Ameaçam ruína há tempo imenso.
Jamais do Cão feroz o ardor maligno
Desfez a neve eterna destas grutas.
Árvores, que se firmam sobre a rocha,
50 Famintas de sustento à terra enviam
As tortas, e longuíssimas raízes.
Pendentes caracóis coa frágil concha
Adornam as abóbadas sombrias.
Neste lugar se esconde temerosa
55 A Noite envolta em longo, e negro manto

Que o Zêzere veloz lavando insulta. Este pequeno, e arrebatado rio perde o
nome no Tejo, e faz a maior parte do seu curso por penhascos inacessíveis.

Jamais do Cão feroz o ardor maligno. A Constelação chamada a Canícula.

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03 o desertor.PMD 98 18/1/2010, 16:01


Ao ver do Sol os lúcidos cavalos:
Fúnebre, eterno abrigo aos tristes mochos,
Às velhas, às fatídicas corujas,
Que com medonha voz gemendo aumentam
60 O rouco som do rio alcantilado.

Rufino por seu mal sempre extremoso,


E sempre escarnecido, suspirando
Aqui se entrega ao pálido ciúme,
Dum puro amor ingrata recompensa.
65 Contam que nestas hórridas cavernas
De míseras angústias rodeado,
Vinha exalar os últimos suspiros
Queixando-se de Amor, e da Fortuna.
Entre os braços do sono repousava
70 Este infeliz já de chorar cansado;
Quando a inquieta Ignorância, que se aflige,
De ver nestas montanhas escabrosas
Os tímidos amigos, em que funda
De novo império a única esperança:
75 Por que Rufino os acompanhe, e guie
À pingue, e suspirada Mioselha,
Que é de tantos heróis Pátria famosa,
Finge o rosto da bela Dorotéia,
Dorotéia a mais nova, a mais humana
80 De quantas filhas teve o velho Amaro.
Ela a roca na cinta, as mãos no fuso
Em sonhos lhe aparece, e mais corada,
Que a rosa na manhã da Primavera,
A falar principia. Se até agora

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03 o desertor.PMD 99 18/1/2010, 16:01


85 Ingrata me mostrei a teus amores,
Se inconstante, e perjura me chamaste,
Dá-me nomes mais doces, e ouve atento
Duma alma amante a confissão sincera.
Sempre te amei, e espero ver unidos
90 Os nossos corações em fortes laços
Do casto amor, que o Céu não desaprova.
Mas eu sem nada mais, que a lã, que fio,
Tu rico só de afetos, e palavras,
Onde iremos, que a sórdida miséria
95 Não seja em nossos males companheira?
Vai-te, e longe de mim segue a ventura,
Que firme te hei de ser em toda a idade.
Do velho Afonso o triste, e pobre filho,
Pela dura madrasta afugentado,
100 Também deixou a suspirada Pátria,
E veio em poucos anos o mais rico
Dos bens imensos, que o Brasil encerra.
Vês tu quanto cresceu, que não cabendo
No paterno casal, ergue as paredes
105 Até chegar ao Céu, que testemunha
A ditosa união com que ele paga
O firme amor da venturosa Ulina?
Vai pois, Rufino meu, que muitas vezes
Muda-se a terra, e muda-se a Fortuna.

110 Assim falando os braços lhe oferece.


Ó que instante feliz, se Amor perverso,
Dos últimos favores sempre avaro,
Não firmasse esta sombra de ventura
Sobre as asas de um sonho lisonjeiro!

100

03 o desertor.PMD 100 18/1/2010, 16:01


115 Desperta o triste, e desgostoso amante,
E não duvida que a pressaga imagem
Noutro lugar tesoiros lhe promete.
Futuros bens na idéia se apresentam,
E ele crê possuí-los. Ó dos homens
120 Contínuo delirar sem fundamento!
Que bela, e fácil se nos pinta a posse
Dum incógnito bem, que desejamos!

Já se ajuntava o esquadrão famoso


Pela mesma Ignorância conduzido,
125 E Gonçalo primeiro assim falando,
Os mais em roda todos escutavam.

Benigno habitador de incultas brenhas,


Se um desgraçado errante, e peregrino
Dentro em tua alma a compaixão desperta,
130 Os meus passos dirige, antes que a fome
Com ímpia mão nos deixe frio pasto
Às bravas feras, às famintas aves.

Falava ainda: alguns estremeceram,


Outros amargo pranto derramaram.
135 Da boca de Rufino todos pendem.
Ele os lânguidos olhos levantando
Já do longo chorar enfraquecidos,
Estas vozes soltou do rouco peito.
Que Fortuna cruel, maligna, incerta
140 Vos trouxe a penetrar o intacto abrigo
Destes lugares ermos, e escabrosos?

101

03 o desertor.PMD 101 18/1/2010, 16:01


Vós em mim achareis amigo, e guia:
Que pode dar alguma vez socorro
Um desgraçado a outro desgraçado.
145 Duros casos de amor me conduziram
A acabar nesta gruta os tristes dias;
Mas hoje volto por feliz presságio
A tentar noutra parte a desventura.

Acaba de falar movendo os passos


150 Pelo torcido vão das nuas pedras.
Todos o seguem com trabalho imenso.

Depois que largo tempo caminharam


Por ásperas montanhas, aparecem
Ao longe a estrada, e o lugar vizinho.
155 Qual a nau sofredora das tormentas,
Que, depois de tocar o porto amigo,
Sente fugir-lhe as arenosas praias,
E dos hórridos ventos açoitada
Volta a lutar co pélago profundo:
160 Assim Gonçalo, quando ver espera
Tranqüilo fim de míseros trabalhos,
O povo o cerca, e dos confusos gritos
As montanhas ao longe retumbaram.
Vós ó Musas, dizei como a Discórdia
165 Com o negro tição, que acende os peitos,
Mostra o rosto de sangue, e pó coberto,
Seguindo os passos do homicida Marte.
Aqui não aparecem refulgentes
Escudos d’aço, e bronze triplicado:

102

03 o desertor.PMD 102 18/1/2010, 16:01


170 Não assombram a testa dos guerreiros
Flutuantes penachos, que ameaçam,
Como tu viste, ó Tróia, ante os teus muros;
Mas o valor intrépido aparece
A peito descoberto. O povo armado
175 De choupas, longos paus, e curvas foices,
É semelhante a um bosque de pinheiros,
Que o fogo devorou, deixando nuas
As elevadas pontas. Animoso
Dispõe Gonçalo a forma de batalha
180 Posto na frente: à sua voz a um tempo
Todos avançam, todos se aproveitam
Das perigosas, e terríveis armas,
Que o terreno oferece em larga cópia.
Voa a cega Desordem, e aparece
185 No meio do combate. Por um lado
Gaspar se opõe arremessando pedras
Com força tal, que atroam os ouvidos.
Gonçalo doutra parte invicto, e forte
Abre co ferro agudo amplo caminho.
190 Já pendia a balança da vitória
Contra a tímida gente, que se espalha;
Quando chega atrevido Brás, o forte.
(Gigante Ferrabrás lhe chama o povo
Pela enorme estatura, e força incrível)
195 Ergue a pesada maça sem trabalho,
Qual nos montes de Lerne o fero Alcides:
Gonçalo evita a morte com destreza:

Qual nos montes de Lerne o fero Alcides. Lerne, lago de Acaia, onde Hércules
matou a Hidra.

103

03 o desertor.PMD 103 18/1/2010, 16:01


Ele renova os formidáveis golpes;
Mas o irado mancebo ao desviar-se
200 Tropeça, e cai. Neste arriscado instante
Serias morto, intrépido Gonçalo,
Se Gaspar cum rochedo áspero, e rombo
Não atalhasse do inimigo a fúria,
Quebrando-lhe com golpe repentino
205 Ambas as canas do direito braço.
Rangem os ossos, e a terrível maça
Caindo sobre a terra ao longe soa.
Torna a juntar-se a fugitiva plebe,
E o prudente Gonçalo, que deseja
210 Mostrar o seu valor noutros perigos,
Finge-se morto: a turba irada o pisa,
Mas ele não se move. Contra todos
Então Gaspar em cólera se acende:
Ameaça, derriba, ataca, e fere;
215 Até que já sem forças, rodeado
Vê de seus companheiros os opróbrios.

Soa nas costas dos heróis valentes


O duro azambujeiro, e são levados
Ao som terrível de insultantes gritos
220 Para a escura prisão, que os esperava.
Gonçalo, o bom Gonçalo as mãos atadas,
Os olhos para o chão, porque era terno
Não refreou o compassivo pranto.
A par dele Bertoldo em vão lamenta
225 A falta de respeito, que devia
Rústica plebe ao neto de Alarico.

Rústica plebe ao neto de Alarico. Alarico, Rei dos Godos, que alcançou
muitas vitórias contra os Romanos no tempo de Honório.

104

03 o desertor.PMD 104 18/1/2010, 16:01


Com vagaroso passo todos marcham,
Como as ovelhas por caminho estreito.
Tal depois da ruína de um Quilombo
230 Vem a indômita plebe da Etiópia,
Quando rico dos loiros da vitória
O velho Chagas sempre valeroso
Cobre o fuzil da pele da Guariba,
E forra o largo peito cos despojos
235 Da malhada Pantera, e do escamoso
Jacaré nadador, que infesta as águas.

Canto IV

Tibúrcio, que nas guerras da estalagem


Soube abrandar os inimigos peitos,
Pondo-se como em êxtase profundo
Com os olhos no Céu, e as mãos no peito,

Tal depois de ruína de um Quilombo. Fortificação de escravos rebelados,
que muitas vezes se fazem temidos pelas suas hostilidades.

O velho Chagas. Este famoso Índio foi dos que mais se assinalaram nas
ocasiões de ataques contra os escravos.

Cobre o fuzil da pele da Guariba. Guariba, espécie de mono, cuja pele


serve aos viajantes dos Sertões para livrar o fuzil da umidade, e costu-
mam estes homens forrar-se com a pele dos animais, que matam. Pode
ver-se M. Buff. no tomo 4, edição de 4 vol. pág. 378. Lin. Sist. nat.
anim. edição 10. tomo I. pág. 26. Paniscus. Maregr. 226.

Pantera. Lin. Sist. nat. anim. edição 10. pág. 41. Pardus.

Jacaré. Crocodilo Brasiliense. Maregr. 242. Lin. Sist. nat. pág. 200.
Crocodilus.

105

03 o desertor.PMD 105 18/1/2010, 16:01


5 Vem a empenhar a força das intrigas.
Que não farás, intrépida Ignorância,
Por libertar os tristes prisioneiros!

Tem o cuidado das ferradas portas


Amaro vigilante, inexorável;
10 Mas crédulo, e medroso; e tem ouvido
Não sem horror pela calada noite
Grasnar nos ares, e mugir nos campos
Feias bruxas, e vagos lobisomens.
Com ele o Antiquário se acredita
15 Por um devoto, e santo Anacoreta,
Que passa os breves dias deste mundo
Entre os rigores duma austera vida.
Amaro, que se fia de aparências,
Para nutrir o frágil penitente
20 Vai degolando os patos, e as galinhas.
Entanto (quem dissera!) a própria filha
Inocente era o móvel deste enredo,
Seu nome é Dorotéia, e no semblante
Gênio se lhe descobre inquieto, e leve.
25 E como estes momentos preciosos
Não se devem perder, depois que a fome
Afugentou do estômago vazio,
Com branda voz em tom de profecia
Humildade afetando assim começa.

30 Pois tanta caridade usais comigo,


O Senhor, que reparte os seus tesoiros,
Vos encherá de mil prosperidades.

106

03 o desertor.PMD 106 18/1/2010, 16:01


A vossa filha... mas convém que eu cale
Os segredos, que o Céu me comunica,
35 Inda vereis nascer entre riquezas
Os venturosos netos, doce arrimo
Aos fracos dias da caduca idade.
O velho então coas lágrimas nos olhos
Assim falou: Ó filho abençoado,
40 Que pela débil voz já me pareces
Habitador do Céu, quanto consolas
As pecadoras cãs, que te estão vendo!
Assim talvez seria o meu Leandro,
Se as bexigas em flor o não roubassem!
45 Dez anos tinha, quando a morte avara
Cortou coa dura mão seus tenros dias.
Então suspira, e segue passo a passo
A longa enfermidade; e enquanto narra
Aparece Marcela, conhecida
50 Entre todas as velhas por mais sábia
Em penetrar olhando para os dedos
Tudo quanto já dantes lhe contaram.
Sobre pequeno pau, a que se encosta,
Ela vem debruçada pouco a pouco,
55 O semblante enrugado, os olhos fundos,
Contra o nariz oposta a barba aguda:
Os dous últimos dentes balanceiam
Co pestífero alento, que respira.
Em segredo lhe mostra Dorotéia
60 A esquerda mão por que ela decifrasse

Em penetrar olhando para os dedos. Esta superstição tem tido grande uso,
vulgarmente dizer a buena dicha.

107

03 o desertor.PMD 107 18/1/2010, 16:01


As confusas palavras de Tibúrcio.
Ela observa, e depois de mil trejeitos
Franzindo a testa, arcando as sobrancelhas,
Com voz trêmula, e fraca assim dizia.

65 Ó que grande ventura o Céu te guarda!


Por esposo terás um cavalheiro
Que te ama, e te deseja. Mas ai triste!
Em vão chora infeliz o terno amante
Nessa escura prisão desconhecido
70 Por casos de fortuna. Criai filhos,
Ó desgraçadas mães, para que um dia
Longe de vós padeçam mil trabalhos!
Aqui suspira a boa velha, e chora.
Duas vezes começa, e depois fala.
75 O seu nome é Gonçalo: é rico, e nobre,
E mancebo gentil, robusto, e loiro.
Estas, e outras palavras lhe dizia,
E Dorotéia já se sente amante,
Excogitando os mais seguros meios
80 De abrir a porta, e dar-lhe a liberdade.
Na molesta prisão o novo engano,
De imperceptível arte pronto efeito,
Sabe o Herói, e assim consigo fala.
Ó amigo tão raro como a Fênix,
85 Que podendo deixar-me entre estes ferros,
Vens encher-me de alívios, e esperanças!
Valentes expressões em crespa frase,
Que ao Alívio de Tristes rouba a glória,

Que ao Alívio de Tristes rouba a glória. Romance vulgar.

108

03 o desertor.PMD 108 18/1/2010, 16:01


Pensando, felizmente ressuscita
90 Aquelas hiperbólicas finezas,
Que em seus escritos prodigou Gerardo.
Num pequeno papel como convinha
A triste, e desgraçado prisioneiro,
Viu Dorotéia as letras amorosas,
95 Que os ditos confirmaram de Marcela,
E dois grandes presuntos, que jaziam
Intactos na despensa do bom velho,
Vão levar a resposta acompanhados
Do roxo néctar, que dissipa os males.
100 Mensageira fiel então afirma,
Que virá Dorotéia abrir-lhe as portas
Nas horas, em que o plácido sossego
Dos cansados mortais os olhos cerra.
Gonçalo espera tímido, e confuso
105 Vem-lhe à memória o seu antigo afeto;
Qual leve sombra: escuta, arde, e deseja
Sentir no coração novas cadeias.

Já com a fria mão a noite escura


Entre o miúdo orvalho derramava
110 Papoilas soporíferas, que inspiram
O brando sono, e o doce esquecimento.
Reina o vago silêncio, que acompanha
De amor furtivo os trágicos transportes.
Gonçalo então, cansada a fantasia
115 Sobre os meios, e os fins de seus projetos,

Que em seus escritos prodigou Gerardo. Gerardo de Escobar fez uma obra,
que intitulou Cristais d’alma, cheia de ridículos hipérboles.

109

03 o desertor.PMD 109 18/1/2010, 16:01


Pouco a pouco se esquece, e pouco a pouco
Cerra os olhos, boceja, dorme, e sonha.
Quando voa do leito, onde deixava
Nos braços do Descanso ao Pai da Pátria
120 A brilhante Verdade, e lhe aparece
Numa nuvem azul bordada d’oiro.
A Deusa ocupa o meio, um lado, e outro
A severa Justiça, a Paz ditosa.

Benignos Céus, enchei meus puros votos:


125 Fazei que esta celeste companhia,
Como do terno Avô rodeia o trono,
De seu Neto imortal orne a Coroa.

Gonçalo viu, e pondo as mãos nos olhos


Receia, e teme de encarar as luzes.
130 Abre os olhos, mortal, (assim lhe fala
Do claro Céu a preciosa filha)
Abre os olhos, verás como se eleva
Do meu nascente Império a nova glória.
Esses muros, que a pérfida Ignorância
135 Infamou temerária com seus erros,
Cobertos hão de ser em poucos dias
Com eternos sinais de meus triunfos.
Eu sou quem de intrincados labirintos

Como do terno Avô rodeia o trono. O Augusto e Fidelíssimo Rei de Portugal.
De seu Neto imortal orne a Coroa. O Sereníssimo Príncipe Herdeiro.
Do meu nascente Império a nova glória. A Universidade de Coimbra
novamente criada.
Eu sou quem de intrincados Labirintos. A Filosofia Racional sem os enredos
dos silogismos Peripatéticos.

110

03 o desertor.PMD 110 18/1/2010, 16:01


Pôs em salvo a Razão ilesa, e pura.
140 Eu abri aos mortais os meus tesoiros:
Fiz chegar aos seus olhos quanto esconde
No seio imenso a fértil Natureza.
Pode uma destra mão por mim guiada
Descrever o caminho dos Planetas:
145 O mar descobre as causas do seu fluxo:
A Terra... mas que digo? Que ciência
Não fiz tornar às margens do Mondego,
Ou dentre os braços da Latina Gente,
Ou dos belos países, cujas praias
150 O mar azul por toda a parte lava?
Se são firmes por mim o Estado, a Igreja,
Se é no seio da paz feliz o Povo,
Dizei-o vós, ó Ninfas do Parnaso.
Ilustres, imortais, vós que ditastes
155 As poderosas leis a vez primeira,
Vós, que ouvistes da lira de Mercúrio
Os úteis meios de alongar a vida.
Eu vejo renascer um Povo ilustre
Nas armas, e nas letras respeitado.
160 O seu nome vai já de boca em boca
A tocar os limites do universo.
O pacífico Rei lhe traz os dias
Dignos de Manuel, dignos de Augusto.

Eu abri aos mortais os meus tesoiros. A Física.
Fiz chegar aos seus olhos quanto esconde. A História Natural.
Ou dentre os braços da Latina Gente. Os ótimos, e famosos Professores,
que El-Rei Fidelíssimo atraiu de diversas partes da Europa.
Dignos de Manuel, dignos de Augusto. O Senhor Rei D. Manuel, chamado
o Feliz.

111

03 o desertor.PMD 111 18/1/2010, 16:01


E tu enquanto a Pátria se levanta
165 Sacudindo os vestidos empoados
Coa cinza vil de um ócio entorpecido:
Enquanto corre a mocidade alegre
A colher loiros ávida de glória,
Serás o frouxo, o estúpido, o insensível?
170 Sacrificas o nome, a honra, a Pátria
Aos moles dias de uma vida escura?
Cego, errado mortal, vê que te enganas.
Disse: e cerrada a nuvem luminosa,
Estremece Gonçalo: foge o sono:
175 Por toda a parte lança incerto a vista,
Busca assustado, mas já nada encontra.
As mesmas impressões em seus sentidos
Vivas imagens pintam, e não sabe
Se então dormia, ou se inda agora sonha.
180 Sente a suave força da Verdade;
Mas recusa abraçá-la. Triste sorte
D’alma infeliz, que ao erro se acostuma!

Entanto sem receio o Velho dorme,


E a filha vem as sombras apalpando
185 Com as chaves na mão: e quantas vezes
Segue, vacila, e pára, e lhe parece
Ouvir a voz do Pai: escuta, e treme;
Move os passos, tropeça, e ao ruído
Acorda Amaro, e grita. Ela se apressa,
190 E torna a tropeçar. Aqui Tibúrcio
Em casos repentinos pronto, e destro
Em um lançol se embrulha, e corre ao leito,

112

03 o desertor.PMD 112 18/1/2010, 16:01


Onde jazia o Velho espavorido,
Que cuida que vê bruxas, e fantasmas:
195 Então lhe diz em tom medonho. Ó filho,
Ingrato filho, que de um Pai te esqueces!
Que mal, que mal cumpriste os meus legados!
Hoje comigo irás... Ao Velho o medo
Corre as medulas dos cansados ossos:
200 A voz lhe falta, eriça-se o cabelo.
Entanto as portas Dorotéia abrindo
(Amor a fez intrépida) abraçava
O prometido esposo: ele se apressa,
Acorda os miserandos companheiros,
205 Que se alegram deixando solitárias
As vagas sombras da prisão funesta.
Passa o resto da noite entre temores
Amaro, quanto pode o prejuízo!

Apenas matizava a branca aurora


210 Da Tíria cor o véu açafroado,
Quando o Velho ao través da luz escassa
Viu abertas as portas. Dorotéia,
Dorotéia onde estás? Assim clamava,
E entregue à sua dor consulta os olhos
215 Do profeta, que pronto a pôr-se em marcha
Com rosto de candura, e de inocência
Brandamente o consola. O Céu, Amigo,
Tudo faz por melhor, e muitas vezes
Com trabalhos cruéis aos bons aflige.
220 Disse, e deixando ao Pai desconsolado,
Caminha na esperança de encontrar-se

113

03 o desertor.PMD 113 18/1/2010, 16:01


Co valente esquadrão dos fugitivos.
O Sol já com seus raios luminosos
Tinha roubado às folhas dos arbustos
225 O frio gelo do noturno orvalho.
Eis à sombra de fúnebre arvoredo
Rufino, o melancólico, chorando.
Quem és, que em tua mágoa inconsolável
Pareces abalar estas montanhas?
230 Compassivo pergunta o Antiquário,
E depois de chorar por largo tempo,
Estas vozes o triste lhe tornava.
Eu sou aquele amante sem ventura,
Sempre extremoso, e sempre escarnecido,
235 Sofredor das ingratas esquivanças,
Que vi (ai dura vista!) face a face
Do tardo Desengano o feio rosto.
Ah Dorotéia, um sonho lisonjeiro
Meus dias dilatou para que agora
240 Te visse em outros braços, insultando
O meu fiel amor? Ó noite infausta,
Noite terrível, noite acerba, e dura!
Quanto eu fora feliz, se a tua sombra
Eternamente os olhos me cobrisse!

245 Tibúrcio, que já tudo penetrava,


Do caminho se informa, e dos lugares,
Por onde fora a incerta companhia,
Que em tanto risco o seu conselho espera.

Não distante se eleva antigo bosque


250 Horroroso por fama: já nos tempos,

114

03 o desertor.PMD 114 18/1/2010, 16:01


Em que torrente Bárbara saindo
Do seio da Meotis inundava
As províncias d’Europa, aqui se via
Arruinado Templo. Os vivedoiros
255 Ciprestes se levantam sobre os pinhos:
Heras, e madressilvas enlaçadas
Ali fazem curvar a crespa rama
Dos velhos, e infrutíferos carrascos.
Três fontes misturando as puras águas
260 Mansamente se envolvem, e oferecem
À vista cobiçosa os alvos seixos,
E os verdes limos, que no fundo nascem.
Os amigos fiéis aqui se encontram.
Qual em noite funesta, e pavorosa
265 Perdido caminhante, que receia
Achar em cada passo um precipício,
Se acaso a dúbia luz divisa ao longe,
A esperança renasce, e de alegria
Sente pular o coração no peito;
270 Assim o Desertor constante, e forte
Ao ver o companheiro, que prudente
Sabe evitar, e prevenir os males.
Eles se reconhecem, e derramam
De alegria, e ternura o doce pranto.
275 Ó vínculos do sangue, e da amizade!
Menos unidos viu o Lácio antigo
Aos dois Troianos, que uma cega noite,
Espalhando o terror no campo adverso,

Em que torrente Bárbara saindo. A irrupção dos Bárbaros foi no século V.
Aos dois Troianos que uma cega noite. Niso e Euríalo. Virg.

115

03 o desertor.PMD 115 18/1/2010, 16:01


Levou às turvas margens de Aqueronte.
280 Gonçalo se retira pelo bosque;
Com ele vai Tibúrcio, e mil projetos
Formavam sobre o fim da grande empresa;
E a muito fácil, e infeliz donzela
Do seu profeta o rosto, e a voz conhece,
285 E pensa, e teme de se achar culpada.

Então o Amor, que na sonora aljava


Esconde setas de mortal veneno,
E setas doutro ardor mais grato, e puro,
Fazia escolha das terríveis armas,
290 Para vingar-se da cruel Marfisa:
Marfisa ingrata, pérfida, inconstante,
Peito de bronze, a quem a natureza
Não formou para ternos sentimentos.
E por ver se os seus tiros correspondem
295 Sempre fiéis à mão, e ao desejo,
Faz no teu peito, ó Dorotéia, o alvo,
As forças prova, e a destreza ensaia.
Encurva o arco ebúrneo, solta, e voa
Sequiosa de sangue a ponta aguda
300 Tinta no Averno. Ao golpe inevitável
Tremeu o coração, e um vivo lume
Nos olhos aparece: do seu braço
Admira a força Amor. Vai outra seta
Ao brando peito incauto, e descoberto
305 Do mancebo infeliz. A vez primeira
Soube de amor o namorado Cosme.
Que violenta paixão pode encobrir-se!
Os olhos falam: seguem as palavras;

116

03 o desertor.PMD 116 18/1/2010, 16:01


E depois o delírio. O tempo é surdo
310 Aos votos dos amantes. Eles viam
Crescer ditoso em rápidos momentos
De uma nova esperança o belo fruto;
Mas Gonçalo a favor dos arvoredos
Oculto chega, pára, e ceva as iras.
315 Tal pode ver-se o rápido Jaguara
Do fértil Ingaí nos vastos campos,
Se tem defronte o cervo temeroso;
Encolhe-se torcendo a hirsuta cauda,
Tenta, vigia, espera, e lambe os beiços
320 Formando o salto sobre a incauta presa.
Cegos amantes, aprendei agora
Os perigos da nímia confiança.
O zeloso Gonçalo investe; acodem
Os companheiros duma, e doutra parte.
325 Triste ruído! pedras contra pedras
Ali se despedaçam: ao seu lado
Acha Cosme a Rodrigo, acha a Bertoldo.
Enquanto dura o férvido combate,
Dorotéia, que vê sem uso a espada,
330 De que o Herói em fúria se não lembra,
(Que não farás, Amor, tu que transformas
Uma donzela num feroz guerreiro!)
Desembainha: a Morte insaciável
Lhe afia o gume, e o furor sanguíneo
335 Ergue, e dirige o ferro: já pendente
Sobre Gonçalo o golpe, falta, e chega

Jaguara. Maregrav. Hist. Brasil. p. 235.


Ingaí. Rio d’América nas Minas do Rio das Mortes.

117

03 o desertor.PMD 117 18/1/2010, 16:01


O amigo a tempo de salvar-lhe a vida,
Pelos braços o aperta, e neles grava
Roxos sinais dos dedos. Em derrota
340 Correm os três, e o campo desamparam.
O mísero, infeliz, e novo amante
As negras fúrias levam, que despertam
No aflito coração desesperado
Ciúme, raiva, amor, ódio, e vingança.
345 Assim o invicto domador dos monstros,
Quando por mão da crédula consorte
Recebeu o vestido envenenado
No sangue infausto do biforme Nesso
Os rochedos, e os montes abalava:
350 Soaram os seus fúnebres gemidos
Por longo tempo nas Ismárias grutas.
Valentes, e indiscretos vencedores
Tarde conhecereis, e muito tarde,
Que um amigo ultrajado é perigoso.

355 Para soltar os oprimidos braços


Dorotéia se empenha; mas Tibúrcio,
Lançando a esquerda mão à ruiva trança,
A fez voltar, torcendo-lhe o pescoço,
Ao claro Céu a vista ameaçante.
360 Gaspar o ferro dentre as mãos lhe arranca:
Este um braço sustenta, outro Gonçalo,

Assim o invicto domador dos monstros. Hércules, que recebeu de Dejanira


o vestido tinto no sangue do centauro Nesso, e agitado das Fúrias se lan-
çou no fogo.

Por longo tempo nas Ismárias grutas. Ismaro, monte de Trácia.

118

03 o desertor.PMD 118 18/1/2010, 16:01


E ela presa, e sem forças grita, e geme.
Não doutra sorte o toiro da Chamusca,
Quando três cães o cercam atrevidos,
365 Dois pendem das orelhas, e um da cauda;
A cornígera testa em vão sacode;
Contra a terra se arroja a um lado, e outro,
E depois que não pode defender-se,
Mugindo exala a indômita fereza.

Canto V

Alto conselho aqui se faz, aonde


Infeliz Dorotéia, o teu destino
Cruel, e dúbio dum só voto pende.
Dos três heróis discordam as sentenças.
5 Um deseja que fique em liberdade,
E do Pai ultrajado exposta às iras:
Inexorável outro pensa, e julga
Que a sua morte deve dar exemplo,
Que encha d’horror as pérfidas amantes.
10 Gonçalo, que era o único ofendido,
Consulta o coração, e se enternece.
Mas o ardente Ciúme, que se alegra
De pintar como crimes horrorosos
Inocentes ações, então lhe mostra
15 A feia Ingratidão, e o torpe Engano.

Não de outra sorte o toiro da Chamusca. Todos sabem, que desta Vila são
bravíssimos os toiros.

119

03 o desertor.PMD 119 19/1/2010, 10:39


A vingança cruel, e o vil Desprezo,
Ainda mais terrível que a Vingança,
Ganham do coração ambas as portas.
Mimosa Dorotéia, e como ficas
20 Coas mãos ligadas a um pinheiro bronco
Sem outra companhia, que os teus males!
É este o prêmio, filhas namoradas,
Este o prêmio de Amor, quando imprudente
Os termos passa, que a razão prescreve.
25 De quando em quando um ai do peito arranca,
Que ao longe os tristes, magoados Ecos
Desperta, e faz sentir os duros troncos.
E espera sem defesa (forte ingrata!)
Que a devorem os lobos carniceiros.
30 Assim ligada aos ásperos rochedos
A filha de Cefeu ao mar lançava
A temerosa vista, e lhe parece
A cada instante ver surgir das ondas
A verde espalda do marinho monstro.

35 Sem esposo, sem pai, sem liberdade


Mísera Dorotéia chora, e geme.
Ai, Marcela cruel, que m’enganaste
Com teus belos, fantásticos agouros!
Queira o Céu que outras lágrimas sem fruto
40 Mil vezes tresdobradas te consumam
Os encovados olhos! Que inda a Morte
Às tuas vozes surda correr deixe
Piorando em seu curso vagaroso
Os momentos de dor, e de amargura!

A filha de Cefeu... Andrômeda foi exposta a um Monstro marinho. Ovid.


Metamorf.

120

03 o desertor.PMD 120 19/1/2010, 10:39


45 Assim falava: a leve Fantasia
Com as cores mais vivas lhe apresenta
D’escarpados rochedos no alto cume
O palácio da cândida Inocência
Cercado de funestos precipícios.
50 Ó morada feliz, onde não torna
Quem uma vez rodou entre as ruínas!
Giram no plano do elevado monte
Cruas dores, remorsos devorantes,
As três Irmãs, a Peste, a Fome, a Guerra,
55 O pálido Receio, o Crime, a Morte,
As Fúrias, e as Harpias, que s’envolvem
No turbilhão dos míseros cuidados.

Então de tantas lágrimas movida


A mãe soberba do propício Acaso,
60 A mudável Fortuna, e já cansada
De ouvir as tristes queixas de Rufino,
Tais palavras ao filho dirigia.

Esse amante infeliz, que em vão suspira,


Ache a dita uma vez, e enxugue o pranto.
65 Acaba de falar, e ao mesmo tempo
Rufino para o bosque s’encaminha,
E o Acaso o conduz por entre as sombras
Da pavorosa Noite, que já desce.
À rouca voz da mísera donzela
70 Palpita o coração: o Amor, e o Susto
Quiméricas imagens lhe afiguram;
Mas ele chega: o próprio crime, e o pejo

121

03 o desertor.PMD 121 18/1/2010, 16:01


Cobrem de roxas nuvens o semblante
De Dorotéia ao ver-se ainda amada
75 Por aquele, que foi há poucas horas
Alvo de seus insultos, e desprezos.
A mole vista, as lágrimas em fio,
Que aos corações indômitos abrandam,
Que fariam num peito namorado?
80 Tu lhe ensinas co fraco rendimento
Os meios de vencer. Ó sete vezes
Venturoso Rufino, s’ela um dia
Não quiser renovar os seus triunfos,
E medir a fraqueza do teu peito
85 Pelo grande poder das suas armas!

Depois de longa, e trabalhosa marcha,


Cansado de sofrer enfim respira
O Desertor, e mostra aos companheiros
Os conhecidos montes. Fuma ao longe
90 A fértil Mioselha, e pouco a pouco
Os oiteiros, e as casas aparecem.

Tibúrcio, que uma antiga, e voraz fome


Sofreu nestes aspérrimos trabalhos,
Com gosto espera de afogá-la em vinho,
95 E já se apressa alegre, e transportado.
Qual o novilho, que perdeu nos bosques
A doce vista do rebanho amigo,
E depois de vagar a noite, e o dia
Por vales sem caminho, a Mãe conhece,
100 Alegre salta, e berra, e por momentos

122

03 o desertor.PMD 122 18/1/2010, 16:01


Espera umedecer entre carícias
Co leite represado a boca ardente.

Mas Cosme, que conserva na memória


As passadas injúrias, por vingar-se,
105 Ao Tio de Gonçalo narra as causas
Da funesta derrota. Determina
Gaspar que os fatigados companheiros
Achem na própria casa um doce abrigo.
De os ver a Mãe s’aflige; mas espera
110 Que obrigados da fome se retirem.
Leve foi o Jantar, mais leve a Ceia,
E Tibúrcio com pena assim chorava
Os dias, em que fora Tesoireiro
Duma rica, e devota Confraria.
115 Ó santa ocupação, tu nunca viste
A magra mão da pálida Miséria,
Que os fracos membros do mendigo apalpa.
Sem trabalho em teus próvidos Celeiros
A ditosa Abundância se recolhe.
120 Se torno a possuir-te, quantas vezes
Dos cuidados tenazes, e importunos
Lavarás a minha alma nas perenes
Purpúreas fontes do espremido cacho!

Mostra Gaspar vaidoso a livraria,


125 Donde o Tio Doutor sermões tirava.
Mau Gosto, que à razão não dás ouvidos,
Vem numerar as obras, que ditaste:
Seja a última vez, e eu te asseguro

123

03 o desertor.PMD 123 19/1/2010, 10:39


Que não vejas fumar nos teus altares
130 Do Gênio Português jamais o incenso.

Geme infeliz a carunchosa Estante


Co peso de indulgentes Casuístas,
Dianas, Bonacinas, Tamburinos,
Moias, Sanches, Molinas, e Larragas.
135 Criminosa Moral, que em surdo ataque
Fez nos muros da Igreja horrível brecha,
Moral, que tudo encerra, e tudo inspira,
Menos o puro amor, que a Deus se deve.
Aparecei famosa Academia
140 De humildes, e Ignorantes, Eva, e Ave,
Báculo pastoral, e Flos Sanctorum,
E vós, ó Teoremas predicáveis,
Não tomeis o lugar, que é bem devido,
Ao Kess, ao Bem Ferreira, ao Baldo, ao Pegas,
145 Grão-Mestre de forenses subterfúgios.
Aqui Tibúrcio vê o amado Aranha,
O Reis, o bom Supico, e os dois Suares:
Dum lado o Sol nascido no Ocidente,
E a Mística Cidade, doutro lado,
150 Cedem ao pó, e a roedora traça.
Por cima o Lavatório da consciência,
Peregrino da América, os Segredos
Da natureza, a Fênix renascida,

Casuístas... Pode ver-se o que deles diz Concina. Appar. ad Theol. Christ.
c. 6. §. 5.

Teoremas predicáveis... Coleção de Sermões.

Suares. Lusitano, e Granatense.

124

03 o desertor.PMD 124 19/1/2010, 10:39


Lenitivos da dor, e os Olhos de água:
155 Por baixo está de Sam Patrício a cova,
A Imperatriz Porcina, e quantos Autos
A miséria escreveu do Limoeiro
Para entreter os cegos, e os rapazes.
Rudes montões de Gótica escritura,
160 Quanto cheirais aos séculos de barro!
Falta ainda uma Estante; mas Amaro
Seguindo os passos da roubada filha
Caminha aflito, e de encontrar receia
O valente esquadrão, que procurava.
165 Tanto a fama das bélicas proezas
O seu nome fazia respeitado!

Que novas desventuras se preparam!


O povo cerca da Viúva as portas;
Quando a triste Ignorância, que deseja
170 Arrancar dentre os ásperos perigos
Aos seus Heróis, por boca de Gonçalo
Começou a falar. Se tantas vezes
Mais que heróico valor tendes mostrado,
É este o campo, ide a cortar os loiros
175 Para cingir a vencedora frente.

Olhos de água. Obra que tem este título = Fluxo Breve, desengano pere-
ne, que o Pégaso da Morte abriu no monte da contemplação em nove
olhos de água para refrescar a alma das securas do espírito etc.
Todas as obras nomeadas neste lugar são conhecidas, e quando o não fos-
sem bastaria ver os títulos para julgar do seu merecimento, e da barbari-
dade do século, em que foram escritas. Talvez não sejam estas as mais ex-
travagantes à vista do Crisol Seráfico, da Tuba concionatória, Sintagma
comparístico, Primavera Sægrada, etc. Limoeiro. A cadeia pública da Corte.

125

03 o desertor.PMD 125 14/1/2010, 16:10


Não se diga que fostes oprimidos
Por fraca, e rude plebe: este combate
Não se pode evitar: só dois caminhos
Em tanto aperto aos olhos se oferecem.
180 Escolhei ou a Índia, ou a Vitória.

Disse, e depois abrindo uma janela,


Arroja de improviso sobre o povo
De informe barro uma espantosa talha.
Seco trovão, que faz gemer os Pólos
185 Quando vomitam as pesadas nuvens
Do oculto seio a negra tempestade,
Não causa mais pavor: ao golpe horrendo
Muitos feridos, muitos assombrados
Mancham de negro pó as mãos, e o rosto.
190 Amaro anima aos seus, e enquanto voam
Contra a janela mil pesados seixos,
(Que novo estratagema!) o Antiquário
Finge da capa um vulto, que aparece
De quando em quando, com que atrai as armas,
195 Que hão de servir depois para a defesa.

Novo furor os corações acende.


Qual a grossa saraiva ao sopro horrível
Do Bóreas turbulento embravecido
As searas derrota, os troncos despe,
200 E o triste lavrador contempla, e chora
A perdida esperança de seus frutos:
Assim de pedras vaga, e densa nuvem
Sai da janela a devastar o campo.
As que arroja o Herói já se distinguem

126

03 o desertor.PMD 126 14/1/2010, 16:10


205 Pelo som entre as mais, já pelo estrago.
A confusão, e o susto ao mesmo instante
Pelo povo s’espalha: então Gonçalo
Valeroso saiu por um postigo:
Depois Gaspar; o intrépido Tibúrcio
210 Metendo o braço, e a cabeça clama
Que o não deixem ficar naquele estado.
O Herói as mãos firmando nas orelhas
Ainda mais o aperta, e deixa exposto
Da plebe ao riso, a cólera de Amaro.
215 Quantas vezes Tibúrcio desejaste
Não ser de grosso peito, e largo ventre!

O Desertor enfim cansado chega


À presença do Tio formidável,
E a teimosa Ignorância, que se aferra,
220 E que afirma, somente porque afirma,
O coração de novo lhe endurece.
A sofrer o trabalho dos estudos
O Tio o anima, roga, e ameaça,
Mas o Herói inflexível só responde,
225 Que não há de mudar do seu projeto.
Não é mais firme a carrancuda roca,
Com que Cintra soberba enfreia os mares:
Nem tu, ó Pão de Açúcar, namorado
Da formosa Cidade, Velho, e forte,
230 Que dás repouso às nuvens, e te avanças
Por defendê-la do furor das ondas.
Cintra... Serra, que acaba na foz do Tejo com nome do cabo da Roca.

Pão de Açúcar... Grande rochedo na barra da Cidade do Rio de Janeiro.

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Então falando o Tio em torpes crimes,
E em furtadas donzelas, ergue irado
Coa mão inda robusta o pau grosseiro,
235 E a paixão desabafa: a longa idade
Proíbe-lhe o correr; mas não proíbe
Que o pau com força ao longe acompanhe.
Ai, Gonçalo infeliz, que dura estrela
Maligna cintilou quando nasceste!
240 Depois de mil trabalhos insofríveis,
Onde o gosto esperavas, e o sossego,
Viste nascer estragos, e ruínas.
Assim depois dos últimos combates,
Que as margens do Scamandro ensangüentaram,
245 O Rei potente d’Argos, e Micenas,
Esperando abraçar saudoso os Lares,
Abraça o ferro de uma mão traidora.
Fechadas tem o experto Tio as portas:
Volta Gonçalo, encontra novos golpes,
250 E jaz enfim por terra. Ferve o sangue
Da boca, e dos ouvidos: sem acordo,
Apenas se conhece que inda vive;
Mas tem glória de trazer consigo
A derrotada estúpida Ignorância.
255 Ela reina em seu peito, e se contenta
De ter roubado aos muros de Minerva
De fracos Cidadãos o preço inútil.

Goza, Monstro orgulhoso, o antigo império


Sobre espíritos baixos, que te adoram;

Rei potente... Agamenon, que voltando do Cerco de Tróia foi assassinado
por Egisto.

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260 Enquanto à vista de um Prelado ilustre,
Prudente, Pio, Sábio, e Justo, e Firme
Defensor das Ciências, que renascem,
Puras as águas cristalinas correm
A fecundar os aprazíveis campos.
265 Brotam as flores, e aparecem frutos,
Que hão de encurvar co próprio peso os ramos
Nos belos dias da estação doirada.
Possa a robusta mão, que o Cetro empunha,
Lançar-te num lugar tão desabrido,
270 Que te sejam amáveis os rochedos
Onde os coriscos de contínuo chovem.

Onde os Coriscos... Os Montes Acroceraunos de Épiro, onde freqüen-


temente caem raios.

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SONETO

A Terra oprima pórfido luzente,


E brilhante metal, que ao Céu erguidos
Os altos feitos mostrem esculpidos
Do Rei, que mais amou a Lusa Gente.

5 Esteja aos Régios pés Dragão potente,


Que tanto os povos teve espavoridos,
Cos tortuosos colos suspendidos
No gume cortador da espada ardente.

Juntas as castas filhas da Memória


10 As brancas asas sobre o Trono abrindo
Assombrem a doirada, e muda História.

Ao Índio livre já cantou Termindo.


Que falta, grande Rei, à tua Glória;
Se os loiros de Minerva canta Alcindo?

E. G. P.

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SONETO

Enquanto o grande Rei coa mão potente


Quebra os grilhões do Erro, e da Ignorância,
E enquanto firma com igual constância
À Ciência imortal Trono luzente,

5 Nova Musa de clima diferente


Canta do Pai da Pátria a vigilância,
Vingando a Mãe das luzes da arrogância,
Com que a despreza o estúpido indolente.

O Monstro de mil bocas sem sossego,


10 Que a glória de José vai repetindo
Ou sobre a Terra, ou sobre o imenso Pego:

Com ela o nome levará d’Alcindo


Desde a invejada margem do Mondego
Ao pátrio Paraguai, ao Zaire, ao Indo.

L. F. C. S.

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NOTAS E VARIANTES

Discurso sobre o poema herói-cômico

At liquidas avium voces imitarier ore


Ante fuit multo, quam levia carmina cantu
Concelebrare homines possent, aureisque juvare.
Et Zephyri cava per calamorum sibila primum
Agrestes docuere cavas inflare cicutas.

Silva Alvarenga informa que esta citação de Lucrécio está no


Livro I, v. 1.378. Fritz Teixeira de Salles informa que, na rea-
lidade, tratar-se-ia de um erro do autor, pois a citação se en-
contra no Livro V e os versos seriam os de 1.377 a 1.381 (Sil-
va Alvarenga: antologia e crítica, p. 60). Na edição utilizada
para a atualização e tradução aqui constantes, a numeração dos
versos não é a mesma. Eis a referência: Lucrécio, RNat., V,
1.379-83 (ed. Alfred Ernout. Paris: Les Belles Letres, 1948):

At liquidas auium uoces imitarier ore


1380 ante fuit multo quam leuia carmina cantu
concelebrare homines possent aurisque iuuare.
Et Zephyri, caua per calamorum, sibila primum
agrestis docuere cauas inflare cicutas.

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Tradução: Muito antes que os homens pudessem cultivar os
doces versos com o canto e deleitar os ouvidos, procuravam
reproduzir com a voz o límpido gorjeio das aves. E o silvo
do Zéfiro pelas cavidades das canas foi o primeiro que ensi-
nou os camponeses a tocar as ocas flautas rústicas.

Quinto parágrafo: na segunda edição lê-se: “no Dialogo 3. de


sua Republica”. Na edição de Joaquim Norberto lê-se:
“No Dialogo 3 de sua Republica”.

Sexto parágrafo: o Margites, poema atribuído a Homero. Os


especialistas gregos de hoje não admitem mais que o
Margites tenha sido escrito por Homero. Trata-se de
um poema cômico a respeito de um homem imbecil,
no qual se dramatiza o ridículo. Margites é o nome do
protagonista do poema, um homem simples e sem
tino. Comumente é descrito como tolo ou louco en-
fastiado de si mesmo. O Culex, poema atribuído a Vir-
gílio, narra um pequeno incidente com um pastor. A
cena ocorre imaginariamente em Tebas, na Grécia. Um
pastor leva o gado até uma fonte e lá adormece. Surge
então uma grande cobra que se prepara para dar o bote.
Neste momento, um mosquito pica o pastor no olho.
Enquanto esmaga o mosquito entre os dedos, ele vê a
cobra. Salta para o lado, quebra um galho grosso e bate
na cobra até matá-la. O pastor então recolhe o gado e
vai dormir. Enquanto dorme, o fantasma do inseto apa-
rece e o repreende por sua ingratidão em matá-lo, já
que ele estava salvando sua vida ao acordá-lo. Quando
o pastor se levanta, perturbado pelo sonho, decide er-
guer um túmulo para o mosquito, faz um grande mon-

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te de terra, contorna-o com pedras e ali planta muitas
flores e frutos. E acrescenta ainda um epitáfio para o
mosquito.

Sétimo parágrafo: seguem indicações dos títulos das obras ci-


tadas por Alvarenga. La secchia rapita, de Alessandro
Tassoni, publicado em 1622. Le lutrin: poème héroï-
comique, de Nicolas Boileau Despréaux, publicado em
duas partes: a primeira, de 1674, contém os Cantos I a
IV; a segunda, de 1683, traz os Cantos V e VI. Na pri-
meira edição, o poema intitulava-se apenas Lutrin, o que
justifica a ortografia de Alvarenga tanto nesta passagem
quanto na nota ao verso 22 do Canto I de O desertor.
Hudibras, de Samuel Butler, poema em três partes
publicadas respectivamente em 1663, 1664 e 1678. The
rape of the lock: an heroi-comical poem, de Alexander
Pope, com três edições fundamentais: a primeira, de
1712, que é uma versão apenas em dois cantos; a segun-
da, de 1714, com o poema constituído de cinco can-
tos; a terceira, de 1717, com modificações importantes
feitas pelo autor.

Oitavo parágrafo: Alvarenga está se referindo ao poema atual-


mente conhecido como Vert-Vert, de Jean Baptiste Louis
Gresset, publicado pela primeira vez em 1734. Note-se
que Alvarenga denomina o autor M. [monsieur] Gresset.
A ortografia adotada por Alvarenga explica-se pelo fato
de que o poema, na primeira edição, bem como em
muitas posteriores, aparece intitulado Ver-vert, e assim
continua sendo citado em inúmeras referências até os
dias de hoje. Note-se, ainda, que o poema conheceu
muitas edições em sua época, apresentando diversas va-

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riações no título, como: Vair vert ou les voyages du
perroquet de la visitation de Nevers: poeme heroi-comique
(outra edição de 1734), Ver-vert ou les voyages du
perroquet de la visitation de Nevers: poëme héroïque (edi-
ção de 1735), Vairvert ou les voyages du perroquet de la
visitation de Nevers: poëme héroï-comique (edição de
1736), entre outras.

Nono parágrafo: na princeps vem escrito: “esta imitaçaõ naõ


foi tam bem recebida”. Na segunda e na terceira edição
do poema, aparece “tambem”, tal como no livro de Fritz
Teixeira de Salles, Silva Alvarenga: antologia e crítica, que
reproduz o “Discurso sobre o poema herói-cômico”. En-
tendemos, portanto, que se trata de um erro de impres-
são da princeps e corrigimos para “também”, até porque
Alvarenga nunca emprega a forma “tam” (tão) ao longo
do poema, mas sempre “taõ”. Scarron: Paul Scarron
(1610-1660), escritor francês que publicou, entre 1648
e 1653, o Virgile travesti en vers burlesques, epopéia
burlesca de enorme sucesso na época, constituída de
oito cantos, que são a paródia dos oito primeiros can-
tos da Eneida, de Virgílio. Scarron, entre outras fon-
tes, emula L’Eneide travestita, de G. B. Lalli, publicada
em 1633.

Omne tulit punεtum, qui miscuit utile dulci.


Horat. Poet. v. 342.

Atualização: Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci.


Tradução: Merece todos os pontos, quem une o útil ao
agradável.

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Discit enim citiùs, meminitque libentius illud,
Quod quis deridet, quam quod probat, ac ve-
neratur.

Horat. Epist. I. l. 2. v. 262.


Atualização:

Discit enim citius, meminitque libentius illud,


Quod quis deridet, quam probat, ac
ueneratur.

Tradução: Na verdade aprende mais rapidamente e recorda de


mais bom grado aquilo que o faz rir que aquilo que aprecia e
venera.

Canto I

8 Tio: trata-se do tio do personagem principal Gonçalo,


o desertor das letras. O tio voltará a ser citado no Can-
to I, v. 169, Canto II, v. 213, e em diversas passagens
do Canto V.
12 letargo: letargia.
16 Sirtes: s. f., do grego syrtis pelo latim syrte, recifes ou
bancos movediços de areia; escolhos; perigos (fig.).
22 Na nota ao verso: Virg. En. l. I. ... Tantæ ne animis
cœlestibus iræ. Atualização: ... Tantaene animis caelestibus
irae! Tradução: Certamente tanta ira existia nas almas dos
deuses! Note-se que, na edição de Le lutrin que consul-
tamos, este verso recebe ponto de interrogação, e não

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de exclamação. Nicolas Boileau Despréaux, Le lutrin,
Canto I: Tant de fiel entre-t-il dans l’ame de Devots?
33 Esta é a única estrofe na princeps que possui deslocamen-
to para a direita do primeiro verso. Mantivemos esta
disposição, pois parece que o autor intenciona demar-
car o princípio propriamente dito da “narração”, na ter-
minologia de Candido Lusitano, separando-a da “pro-
posição” e da “invocação”, que no poema aparecem fun-
didas nas estrofes antecedentes. Note-se que, como in-
forma Maria Helena da Rocha Pereira (“Ecos da refor-
ma pombalina na poesia setecentista”, in Novos ensaios
sobre temas clássicos na poesia portuguesa, p. 171), a en-
trega dos Estatutos Novos à Universidade de Coimbra,
por Pombal, deu-se uma semana depois, no dia 29 de
setembro de 1772.
48 Na nota ao verso, na segunda edição lê-se: “Portuguesa,
donde”; na edição de Norberto: “portuguesa, donde”.
50 Nas outras edições lê-se: “ilustre de ambição”.
51 stirpe: variante de estirpe, segundo Raphael Bluteau.
52 o vingador: provável referência ao príncipe herdeiro dom
José (1764-1788), filho de dona Maria e neto do rei
dom José I.
55 Ismaelita é a designação genérica dos árabes muçulma-
nos (mouros) e assim também vem citado em Os lu-
síadas. Ismael era filho de Abraão e Agar, escrava egíp-
cia a serviço de Sara, que era mulher de Abraão e esté-
ril. Sara ofereceu-a a Abraão para dela terem filhos. Pou-
co depois do nascimento de Ismael, Agar é expulsa da
casa de Abraão e leva o filho consigo. Escapa milagro-
samente da morte no deserto de Faran, onde vive por
muito tempo. Segundo o livro do Gênesis, os árabes eram

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descendentes de Ismael e por isso foram chamados de
ismaelitas. Ver, a respeito, Gn, 16: 1, 12 e 15; 21: 8-21;
25: 12-18.
65 Nas outras edições lê-se: “cavalos de Boótes”.
Na nota ao verso: Juvenal. Sát. 5. v. 23. Frigida Cir-
gumagunt pigri Sarraca Bootæ. Atualização: Frigida
circumagunt pigri serraca Bootae. Tradução: Lentos cir-
culam os frios carros de Bootes.
69 Horas: deusas que, para alguns, eram filhas de Júpiter e
de Têmis, as quais presidiam as estações. Eram três e re-
presentavam-se ordinariamente junto de Têmis, com
quadrantes ou relógios, que seguravam. Seus nomes eram
Eunômia (a Boa Ordem), Dicéia (a Justiça) e Irene (a
Paz). Pausânias deu-lhes outros nomes e Higino enume-
rou dez. As Horas eram porteiras do céu e tinham a in-
cumbência de cuidar do coche e dos cavalos do Sol.
100 Na segunda edição, na nota ao verso, lê-se: “Lacaonia”;
na edição de Joaquim Norberto lê-se: “Licaonia”.
Ainda na nota ao verso: Virg. Georg. l. 4. v. 467. Tanarias
etiam fauces alta ostia Ditis. Atualização: Taenarias etiam
fauces, alta ostia Ditis. Tradução: Até mesmo nas caver-
nas tenárias, profundas covas de Dite (i. e., Plutão).
110 pigra: no latim, temos pigre (adv.), preguiçosamente,
vagarosamente; e pigreo, es, ere, ui, ser vagaroso, pre-
guiçoso.
112 Na segunda edição lê-se: “Preguiça”. Na de Joaquim
Norberto lê-se: “preguiça”.
113 Nas outras edições lê-se: “Póde”.
121 Largos canhões do tempo dos Afonsos: canhões: extre-
midades da manga do vestuário, da luva ou da bota, re-
viradas ou não; Afonsos: provável referência aos reis por-

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tugueses dom Afonso Henriques ou Afonso I (1109-
1185), dom Afonso II (1185-1223), dom Afonso III
(1210-1279), dom Afonso IV (1291-1357) e dom
Afonso V (1432-1481).
123 Peripato: perípato (do grego perípatos), o sistema filo-
sófico de Aristóteles.
130 Na nota a este verso: Carlos, e Rosaura, constante Flo-
rinda, e Carlos Magno:
Carlos, e Rosaura: romance do padre Mateus Ribeiro
(c. 1619-?), cujo título é Retiro de cuidados, e vida de
Carlos, e Rosaura, publicado em Lisboa, em três volu-
mes. Os dois primeiros em 1688, na oficina de Manoel
Lopes Ferreira e de Antonio Correia da Fonseca. O ter-
ceiro, na oficina de Manoel Lopes Ferreira, em cuja fo-
lha de rosto encontra-se a data de 1647, o que é uma
gralha. Possivelmente tenha sido publicado em 1697,
data atribuída a partir das licenças para impressão. Este
romance foi novamente publicado em 1750.
constante Florinda: referência à novela parenética Infor-
túnios trágicos da constante Florinda, do padre Gaspar Pi-
res de Rebelo (?-1635), publicada em 1633. Trata-se de
uma novela erótica e mística, escrita para deleite das frei-
ras. Teve algumas reedições, como em 1672, 1707 e
1761.
Carlos Magno: referência ao romance de cavalaria His-
tória do imperador Carlos Magno e dos doze pares de Fran-
ça. A primeira parte foi traduzida por Jerônimo Moreira
de Carvalho e publicada em 1728 (novamente em
1732), a partir da versão em castelhano de Nicolao de
Piamonte, possivelmente editada em 1631. Em 1737,
sai a segunda parte em tradução de Domingos Gonçal-
ves. Em 1799, é publicada uma edição que inclui uma

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terceira parte. Esta obra foi reeditada inúmeras vezes, tan-
to no século XVIII quanto no XIX, havendo ainda edi-
ções no século XX. Citem-se, entre outras, as edições de
1750, 1759, 1784, 1814, 1846, 1851, 1854, 1858,
1863, 1875, 1885, 1919 e 1940.
133 cova Tristiféia: não conseguimos localizar referências à
cova com este nome. Mas no romance História do im-
perador Carlos Magno e dos doze pares de França (edição
de 1732), no Livro II, capítulo XL, há menção a “uma
grande cova”, onde habitam Anfaim, Amiota e seus dois
filhos, todos gigantes. Anfaim e Amiota são mortos pelo
grupo de Carlos Magno; os dois filhos, bebês de qua-
tro meses, são batizados por Carlos Magno, mas acabam
morrendo também, para tristeza do imperador. Talvez
seja essa a cova que Silva Alvarenga menciona no poe-
ma. Nas outras edições lê-se: “Tristifea”.
134 ponte de Mantible: mais conhecida como ponte de Al-
conétar, situada sobre o rio Tejo, no termo municipal
de Garrovillas, em Cáceres (Espanha). Foi construída na
época de Adriano (século II d. C.). Tinha originalmen-
te 16 arcos, mas sofreu várias destruições, tendo sido
controlada pelos muçulmanos. Em uma gravura do sé-
culo XVIII, de Alexandre de Laborde, surge representa-
da com apenas três arcos. Atualmente só possui dois. A
“passagem / Da perigosa ponte de Mantible”, a que Sil-
va Alvarenga se refere, está no Livro II da História do
imperador Carlos Magno e dos doze pares de França (edi-
ção de 1732). Não é possível precisar a que capítulo ele
está se referindo, pois um dos episódios com a ponte
de Mantible é narrado no capítulo XXXVIII. Nele, a
ponte serve para guardar a vila, controlada pelo almi-
rante Balam, adorador de Maomé. A ponte tem uma

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porta, guardada pelo gigante Galafre, auxiliado por três
mil turcos guerreiros, e ultrapassá-la é muito difícil.
Um grupo de cristãos seguidores de Carlos Magno con-
segue enganar Galafre e passar pela ponte, mas acaba
prisioneiro. No capítulo seguinte, o XXXIX, um dos
pares de Carlos Magno, Richarte, faz-se passar por mer-
cador e consegue entrar na ponte, enganando o gigan-
te. Carlos Magno e seus companheiros conseguem as-
sim passar pela porta da ponte. Matam então o gigan-
te e os turcos e afinal conseguem entrar na vila. Pro-
vavelmente é a este capítulo XXXIX que Silva Alvarenga
se reporta.
137 apaixonado: arrebatado, exaltado.
142 postilas: de postila, da expressão do latim escolástico post
illa (verba auctoris), “após aquelas palavras do autor”;
explicação ditada pelo professor e anotada pelo aluno.
143 Ponte: referência à teoria do silogismo, que na gíria aca-
dêmica da época recebia o nome de ponte de asnos, tal
como é empregada por Verney, no Verdadeiro método de
estudar. A este respeito, há uma nota muito esclarecedora
de António Salgado Júnior, na edição que organizou da
obra de Verney (Lisboa: Sá da Costa, 1950), no vol. III,
Estudos filosóficos, e que aqui vem em parte reprodu-
zida: “Parece que a origem [da expressão ponte de asnos]
está no fato de serem tais coisas consideradas dificulda-
des apenas para asnos (dada a dificuldade de os fazer atra-
vessar pontes). É com um tal sentido que Arsénio da Pie-
dade retruca nas Reflexões Apologéticas: ‘Arma logo uma
grande bateria contra a ponte de Aristóteles, que chama
dos Asnos, e com boa razão, porque nela se dão a conhe-
cer os que o são’. Certo é que não era só Verney quem
lho chamava. Numas postilas setecentistas que possuí-

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mos, ao chegar o caso do Silogismo, o estudante que as
escrevia ilustrou o texto com o ingênuo desenho duma
ponte onde se vêem caindo alguns asnos. Era geral o uso
da alcunha, está claro”.
144 distinções: distinção: em filosofia, noção que significa
originariamente a nitidez da visão ou das imagens vi-
suais, ou a discernibilidade tátil. O termo passou, por
analogia, a aplicar-se à visão intelectual. A distinção pode
ser de várias espécies: distinção real; distinção lógica ou
de razão; distinção formal. Esta noção foi profunda-
mente transformada por Descartes, que a considera
essencialmente uma qualidade da percepção e do co-
nhecimento. Leibniz aprofundou ainda mais a concep-
ção de Descartes.
145 ergo: termo escolástico, tomado do latim, que significa
o mesmo que a conjunção ilativa “logo” e precede a con-
clusão de um argumento.
150 Arrieiros: condutores de bestas; almocreves, tropeiros;
indivíduos rudes; arreadores.
152 Capelo: espécie de murça usada pelos doutores em cer-
tas solenidades.
153 alamares: galões de fio metálico, ou de seda etc., que
guarnecem e abotoam a frente de um vestuário, passan-
do de um lado a outro da abotoadura.
154 borla: obra de passamanaria formada por um suporte em
forma de campânula, do qual pendem inúmeros fios; bar-
rete doutoral.
Nas outras edições lê-se: “anel, e fluctuante”.
159 Souto: mata de castanheiros; bosque espesso que ladeia
qualquer rio; mata de árvores frondosas que constituem
um sítio próprio para passeio.

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160 Moles castanhas do espinhoso ouriço!: ouriço: o invó-
lucro da castanha; p. ext., casca externa, dura ou espi-
nhosa, de certos frutos.
163 Mioselha: comentando o verso em que surge o termo
“Mioselha”, dirá Antônio Houaiss: “O regime das letras
maiúsculas no texto é tão arbitrário, que não se pode
asseverar que Mioselha seja nome próprio. Mas parece.
E sendo, tanto pode ser topônimo, quanto intitulativo
de local, estabelecimento, tasca, em que os estudantes
comessem seu queijo e seus tremoços e bebessem seu vi-
nho”. In Silva Alvarenga, Poesia, 2a ed. Apresentação de
Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Agir, 1968, p. 60
(Nossos Clássicos, vol. 24). Note-se que Antônio Houaiss
parece não ter lido todo o poema, ou o leu apressada-
mente, escolhendo um fragmento, que nem é tão inte-
ressante, logo do Canto I para sua antologia, pois fica
evidente na continuidade do poema que Mioselha é a
localidade onde mora o tio de Gonçalo (ver Canto III,
vv. 76-77; e Canto V, vv. 89-91). Para Hélio Lopes,
Mioselhas (assim ele grafa, sem razão para tal) é uma
localidade não identificável (“Séria brincadeira de estu-
dantes”, p. 141). Ainda que não tenhamos conseguido
confirmar nossa hipótese, cremos que Mioselha é a an-
tiga grafia da atual freguesia de Miuzela, pertencente ao
município de Almeida, no distrito da Guarda, em Por-
tugal, que, pelas características, parece ser o referido
lugar.
164 tramoços: variante de tremoços, grãos de tremoceiros.
185 consistório: assembléia de cardeais presidida pelo papa;
qualquer assembléia ou reunião de pessoas onde se tra-
tem assuntos magnos; lugar onde se realiza assembléia
ou reunião.

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193 Nas outras edições lê-se: “n’alma”.
212 aferrolhando: no sentido figurado, significa obstinando.
266 morgado: propriedade vinculada ou conjunto de bens
vinculados que não se podiam alienar ou dividir e que
em geral, por morte do possuidor, passavam para o fi-
lho mais velho.
290 troncadas: part. pass. do verbo troncar; troncar as pala-
vras, períodos, cláusulas, tirar alguma parte que os fazia
inteiros.
292 esburgados: esburgado: a que se tirou a casca; a que se
retirou a carne dos ossos.
298 Fúrias: no mundo latino, divindades infernais (Alecto,
Megera e Tisífone) que personificavam o remorso e a
vingança dos deuses.
315 Na segunda edição lê-se: “Entanto à mãe”.
323 Nas outras edições lê-se: “desgraça”.
338 Nas outras edições lê-se: “Gonçalo assim chorando”.

Canto II

19 Tatu: referência ao nome científico do tatu (dasypus),


segundo a décima edição (1758) do Systema naturae,
sive regna tria naturae systematice proposita per clas-
ses, ordines, genera, & species, obra do naturalista sueco
Carl Von Linné — ou Lineu (1707-1778) —, cuja
primeira edição é de 1735, com a qual o cientista in-
troduziu o moderno sistema para classificação das
plantas e animais.
29 empavesado: empavesar: pavonear-se, ensoberbecer-se.

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46 O côncavo metal: sino. Termo poético. Empregado, por
exemplo, em Segundo cerco de Diu, de Jerônimo de Cor-
te Real.
47 Na princeps e na segunda edição lê-se: “seguiraõ”. Na
edição de Joaquim Norberto lê-se: “seguirão”. Adotamos
o pretérito perfeito do indicativo.
49 Anfitrite: na mitologia grega, a deusa do mar.
57 Pichéis: pichel: antiga vasilha empregada para tirar vi-
nho das pipas ou dos tonéis; vaso antigo, geralmente de
estanho, para beber vinho. Na segunda edição lê-se:
“Picheis, e copos, em o vinho abunda.” Joaquim Nor-
berto percebeu o erro e corrigiu-o, intuindo a lição da
princeps.
70 pingue: gordo.
71 alpestres bolotas: alpestre: rude, rústico, montês; bolo-
ta: fruto do gênero Quercus (carvalho); fruto do feitio
de boleta, que se produz na enzinheira (azinheira,
azinheiro, carvalho). É doce e come-se. Serve para a ceva
dos porcos.
76 Alcides: cognome ou sobrenome de Hércules, ou Héra-
cles. Derivado, na opinião de alguns autores, de Alceu,
seu avô, ou de Alcy, que em grego significa força extraor-
dinária. Camões emprega o mesmo termo para se refe-
rir a Hércules, em algumas passagens de Os lusíadas
(Canto III, est. CXXXVII; Canto IV, est. XLIX e LXXX;
Canto IX, est. LVII). Ver, adiante, no Canto III, v. 196
e nota ao mesmo verso.
78 esgotou: esgotar: beber ou engolir até a última gota. Nas
outras edições lê-se: “De uma vez o esgotou”.
127 rancho da carqueja: a respeito desta companhia de estu-
dantes, António Francisco Barata (1836-1910) publicou

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o livro O rancho da carqueja: tentativa de romance his-
tórico: baseado nos acontecimentos académicos do século
dezoito, impresso em Coimbra, na Imprensa Literária,
em 1864. Posteriormente foi reeditado, em 1904.
141 Nas outras edições lê-se: “Assim suspira, geme”.
168 Nas outras edições lê-se: “Da noite a densa nevoa os fa-
vorece.”
173 pinhas resinosas: pinha: fruto do pinheiro, é um agre-
gado de caroços muito densos e aconchegados, dentro
dos quais estão os pinhões, que têm massa oleosa mui-
to branca. Os pinhões espetados acendem-se e fazem
chama, e dão luz como candeia bem clara.
175 Chuços, cacheiras, trancas: chuço: vara ou pau armado
de aguilhão ou choupa, arma que consiste numa ponta
de ferro encastoada em um bordão; cacheiras: cacheira:
pau tosco; trancas: tranca: barra de ferro ou de madeira
que se põe atrás das portas para segurá-las.
183 xavecos: xaveco: do árabe “xabeca”, navio mourisco, de
formas finas, proa e popa lançadas, com dois ou três
mastros que envergam velas redondas ou latinas, o qual
nos séculos XVIII e XIX adquiriu fama pelo intenso
emprego que teve na pirataria contra o comércio marí-
timo no Mediterrâneo; navio pequeno, sem resistência
e mal construído ou velho; embarcação ordinária.
206 cerdosos: possivelmente derivado de cerdo, sinônimo de
porco.
207 Circe: filha do Sol e de Perleis, que era filha do Ocea-
no, foi uma famosa feiticeira, cruelmente maligna. Pela
ambição de reinar, envenenou o rei dos sármatas, seu
marido. Desterrada, foi morar numa ilha perto da Tos-
cana, em um promontório, que foi chamado o cabo de

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Circe. Transformou em porcos os companheiros que
Ulisses mandou para reconhecer a terra.
209 Ciclope: na mitologia grega, gigante de um só olho no
meio da testa.
211 stulta: de stulto, louco (Bluteau). Note-se que Bluteau
não registra estulto, mas apenas estultícia. Moraes Silva
já indica o termo como pouco usado e registra estulto.
215 harpia: na mitologia greco-romana, monstro alado com
corpo de abutre e rosto de mulher.

Canto III

1 Fama: filha de Titão e da Terra e irmã de Encelado e do


Caos. Dizem que nasceu para divulgar os crimes dos
deuses, que mataram os gigantes. Pintam-na como mu-
lher, com asas semeadas de olhos, e com uma trombeta
na boca. Virgílio (Eneida, I, 4) disse que ela tinha tan-
tos olhos, orelhas, bocas e línguas quanto penas.
5 Augusto Pai do Povo: o rei dom José I.
7 soberbo Edifício: o prédio da Universidade de Coimbra.
23 Na nota ao verso lê-se, na primeira ocorrência, “Aiuruoca”.
30 tala: talar: destruir, assolar, devastar.
40 Na nota ao verso, nas outras edições lê-se: “e faz a maior
parte ao seu curso”. Ainda na mesma nota, na princeps e
na segunda edição, lê-se: “Zézere”.
53 Na segunda edição lê-se: “obobadas”. Joaquim Norberto
grafou como na princeps.
162 Nas outras edições lê-se: “O povo cerca”.
167 Marte: na mitologia romana, deus da guerra, filho de Ju-
no e pai de Rômulo e Remo.

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175 choupas: choupa: ponta de ferro ou de aço com que se
armam garrochas, chuços etc.; ferro de dois gumes usa-
do para abater as reses nos matadouros.
193 Na princeps grafa-se: “Ferabras”. Adotamos a grafia das
outras edições.
202 rombo: que não é aguçado, que não tem ponta aguçada,
que não perfura.
208 Nas outras edições lê-se: “ajuntar-se”.
218 azambujeiro: espécie de oliveira brava, de madeira rija.
233 Guariba: nome de origem tupi, com que no Brasil generi-
camente se designam os símios do gênero Alouata, tam-
bém conhecidos como “barbado” e “bugio”. Silva Alvarenga
fundamenta-se provavelmente na Histoire naturelle génerale
et particuliére, em 44 volumes, publicada entre 1749 e
1804, de George-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-
1788), e no Systema naturae, de Lineu (ver nota de mi-
nha autoria ao verso 19 do Canto II).
Na nota ao verso: Paniscus é o nome científico da espé-
cie de primata a que pertence, por exemplo, o Ateles
paniscus, ou “macaco-aranha”, animal cuja distribuição geo-
gráfica se estende do sul do México ao estado do Mato
Grosso, no Brasil. Sobre Maregrav, ver nota ao verso 316
do Canto IV. Alvarenga parece confundir as referências.

Canto IV

35 Nas outras edições lê-se: “riqueza”.


67 Na segunda edição lê-se: “Mas ai triste?” Na edição de
Joaquim Norberto vem como na princeps.

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81 Na segunda edição há uma gralha e parece vir grafado:
“molestia”. Na edição de Joaquim Norberto vem como
na princeps.
87 crespa: crespo: de estilo crespo: de construção difícil e
escabrosa, áspero ao ouvido, duro, insonoro, sem har-
monia.
88 Alívio de Tristes: obra do padre Mateus Ribeiro (c. 1619-?),
cujo título é Alívio de tristes, e consolação de queixosos,
publicada em Lisboa, por Manuel da Silva, em 1648.
Teve várias reedições: 1672, 1688-1689, 1734, 1754 e
1764. A edição de 1688-1689 parece ser a mais com-
pleta. Suas indicações são: Alívio de tristes, e consolação
de queixosos, seis partes em dois volumes. Esta terceira
impressão é acrescentada “com dous índices muito co-
piosos, e as quatro partes primeiras com anotações às
margens, que nunca tiveram”. Foi editada em Lisboa, na
oficina de Miguel Deslandes e na oficina de Miguel
Menescal, à custa de Manoel Lopes Ferreira e Antonio
Correia da Fonseca.
91 Na nota ao verso, nas outras edições lê-se: “ridiculas
hyperboles”. No entanto, mantivemos o gênero mascu-
lino para “hipérboles”, tal como consta na princeps, ado-
tando a definição do Dicionário da língua portuguesa, de
Antônio de Moraes Silva (edição de 1813), que consi-
dera a palavra “hipérbole” do gênero masculino, quan-
do relativa a figura retórica. Gerardo de Escobar é, na
realidade, o pseudônimo do frei Antonio de Escobar
(Coimbra, 1618-Lisboa, 1681). O título da obra refe-
rida é Cristais d’alma, frases do coração, retórica do senti-
mento, amantes desalinhos etc., tendo sido publicada em
Lisboa, por João da Costa, em 1673. Teve diversas ree-
dições, como as de 1677 e 1721.

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98 Nas outras edições lê-se: “reposta”.
119 Pai da Pátria: o rei dom José I.
122 Na segunda edição lê-se: “A Deoza occupa ao meio”. Na
de Joaquim Norberto, lê-se: “A deosa occupa ao meio”.
127 Neto: provavelmente o príncipe dom José (1764-1788),
primogênito de dona Maria I (portanto, neto do rei dom
José I), morto precocemente, vítima de varíola.
138 Nas outras edições lê-se: “intricados”.
150 Nas outras edições lê-se: “O mar azul por toda a parte
lava!”
186 Nas outras edições lê-se: “Segue, vacilla, pára”.
192 lançol: variante antiga e popular de lençol.
197 Nas outras edições lê-se: “Que mal, que mal cumpriste
os meus legados?”
208 prejuízo: no sentido de “preocupação por informação
prévia, que inabilita para julgar livremente” (Moraes
Silva).
210 Tíria: tírio: purpúreo, purpurino, púrpuro.
253 Meotis: lagoa Meotis, que recebeu este nome por causa
dos povos meotes, seus vizinhos; é também conhecida
como mar de Azof, Azov, Azow. É um grande golfo ou
pedaço de mar e se chamou lagoa porque é muito rasa
em algumas partes, podendo-se andar por ela apenas com
barcos. Recebe as águas do Don, antigo Tanais, separa a
Europa da Ásia e comunica com o mar Negro pelo es-
treito de Cafá. Também foi chamada lagoa Temerinda,
mar de Zabache e mar de Tana, da cidade deste nome,
que hoje se chama Azof, Azov ou Azow (ver Camões,
em Os lusíadas, Canto VII, est. VII: “alagoa Meotis”).
259 carrascos: carrasco: mata anã, de arbustos de caule e ra-
mos duros e esguios.

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278 dois Troianos: Alvarenga está se referindo precisamente
à Eneida, Livro IX, vv. 371-449. A passagem se inicia
mencionando que na semi-obscuridade da noite (daí a
referência de Alvarenga à “cega noite”) Euríalo tornou-
se visível para seus inimigos, traído que foi por seu ca-
pacete brilhante (vv. 371-74). Atacado por Volscente,
Euríalo é morto. Em seguida, Niso também morre em
combate.
280 Aqueronte: um dos quatro rios do inferno na mitolo-
gia grega. Ou outros são os rios Cocito, Estige e Fle-
getonte. Nas outras edições vem grafado: “Achronte”; na
princeps, “Acheronte”.
309 Nas outras edições lê-se: “seguem-se”.
316 Na nota ao verso: embora não tenha estado na América
portuguesa, Gaspar Van Baerle — ou, como veio a ser
conhecido, Gaspar Barlaeus (1584-1648), professor do
Athaeneum Illustre de Amsterdã — foi contratado pelo
conde João Maurício de Nassau, em 1644, para escre-
ver sobre os oito anos de seu governo em Pernambuco
(1637-1644). Para tanto, Nassau franqueou seus arqui-
vos e correspondência, e o restante da documentação foi
coletado por pessoas que estiveram na América portu-
guesa. O trabalho de Barlaeus foi impresso em Amster-
dã, em 1647, com o título História dos feitos recente-
mente praticados durante oito anos no Brasil e noutras
partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, conde
de Nassau. Impresso na tipografia de Joannis Blaeu, o
livro é composto de 340 páginas, com 56 gravuras, das
quais 24 são mapas de autoria de George Maregrav
(1610-1644) e plantas de sítios e fortificações; as ou-
tras são cenas da frota holandesa, combates navais, pai-
sagens e vistas marinhas; 27 levam a assinatura de Frans

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Post (1612-1680). A referência de Silva Alvarenga, por-
tanto, diz respeito a um dos ilustradores da obra men-
cionada.
328 Nas outras edições lê-se: “acha Bertoldo”.
346 Na nota ao verso, na segunda edição grafa-se: “Deianira”.
364 Na nota ao verso, na princeps e na segunda edição, lê-
se: “de outra”.

Canto V

31 A filha de Cefeu: Alvarenga está se referindo precisamen-


te ao Livro IV, vv. 663-764, das Metamorfoses, de Ovídio.
Andrômeda era filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de
Cassiopéia. Esta se gabava de ser mais bela que as Nereidas,
que pediram vingança a Netuno. Ele então inundou a ter-
ra e mandou um monstro marinho devastá-la. Con-
sultando o oráculo de Amon, Cefeu mandou atar An-
drômeda a um rochedo, expondo-a ao monstro para
aplacar a ira divina. Perseu, regressando do país das
Górgonas, viu a princesa, enamorou-se dela e liber-
tou-a, matando o monstro. Os últimos versos do
fragmento citado narram o casamento de Perseu com
Andrômeda.
34 espalda: espádua.
44 Nas outras edições lê-se: “Os momentos de dôr, e de
amargura?”
80 rendimento: ato ou efeito de render ou render-se, ren-
dição.
100 Nas outras edições lê-se: “Alegre salta, berra”.

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132-156 Toda esta passagem, em todas as edições utilizadas, é
bastante confusa no que diz respeito ao emprego de ca-
racteres em itálico, o que tentamos normalizar no pre-
sente estabelecimento.
132 Casuístas: de “casuística”: pode ser definida como o
modo prático ou o método para resolver “casos de cons-
ciência” ou conflitos de deveres. Há sempre uma exce-
ção a todo preceito moral. Como diz Aristóteles, a re-
gra das coisas indeterminadas deve também ser inde-
terminada. Este é o único princípio de toda a casuística.
É necessário, portanto, uma casuística para decidir, no
caso de conflito entre deveres, qual deles vale mais e
qual deve ser sacrificado. Em geral, os moralistas fize-
ram também casuística, como Aristóteles ou santo To-
más de Aquino. Mas no século XVI, com o enorme flo-
rescimento da teologia moral e a produção de obras des-
tinadas à formação de confessores, origina-se a casuística
propriamente dita. Os cursos de teologia moral eram
chamados igualmente de aulas de “casos de consciência”.
No século XVII, a casuística decai, incorrendo alguns
autores casuístas em certo laxismo. Desde então, o ter-
mo tomou sentido pejorativo, passando a equivaler a
sutileza excessiva, probabilismo e laxismo.
Na nota ao verso: Concina: Daniele Còncina (Clauze-
tto, Udine, 1687-Veneza, 1756). Dominicano, distin-
guiu-se sobretudo como polemista, adepto e um dos
principais representantes do rigorismo, contra o pro-
babilismo e o laxismo, propugnados, entre outras or-
dens religiosas, por vários teólogos pertencentes à Com-
panhia de Jesus, da qual foi severo adversário. Sua obra
mais famosa é Storia del probabilismo e rigorismo, mas
sua produção teológica e de controvérsia é imensa, des-

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tacando-se o livro citado por Silva Alvarenga, a Theologia
christiana dogmatico-moralis, em 12 volumes, editada
entre 1749 e 1751, na qual sistematiza suas críticas ao
probabilismo.
133 Dianas, Bonacinas, Tamburinos:
Dianas: Antonino Diana (Palermo, 1585-Roma, 1663).
Teatino, dedicou-se principalmente ao estudo da teolo-
gia moral, investigando os mais variados casos de cons-
ciência na obra intitulada Resolutionum moralium par
prima et secunda, editada em 1628. Um dos principais
casuístas do período, contribuiu decisivamente para a
afirmação do laxismo e do probabilismo na Itália e no
exterior. Sua obra foi atacada duramente por Daniele
Còncina.
Bonacinas: Martino Bonacina (Milão, 1585-Viena, 1631).
Ensinou direito canônico e civil no seminário de Milão.
Suas principais obras foram De morali theologia, et
omnibus coscientiae nodis, em dois tomos, publicada em
1624, e De clausura, publicada em 1626. É sobretudo
na primeira que elabora suas teses probabilistas.
Tamburinos: Tommaso Tamburini (Caltanissetta, 1591-
Palermo, 1675). Teólogo moralista, jesuíta, sua obra foi
dedicada sobretudo à prática dos sacramentos. É o mais
completo tratadista da casuística do Seiscentos, sendo
muito reconhecido em sua época. Em virtude de sua
orientação probabilista e laxista, foi duramente atacado
pelos antiprobabilistas.
134 Moias, Sanches, Molinas, e Larragas:
Moias: Mateo de Moya (El Moral, Toledo, 1610-Ma-
dri, 1684). Teólogo controversista, jesuíta. Seu livro po-
lêmico, publicado sob o pseudônimo de Amedaeus Gui-

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menius e intitulado Adversus quorumdam expostulationes
contra nonnullas jesuitarum opiniones morales, de 1661,
em defesa do laxismo em matéria moral, provocou vio-
lenta censura da Sorbonne, o que ficou conhecido como
o “caso Guimenius”, que agitou o mundo religioso na-
quele decênio.
Sanches: provável referência a Tomás Sanchez (Córdo-
ba, 1550-Granada, 1610), padre da Companhia de Je-
sus, teólogo, professor de teologia, probabilista, que se
celebrizou como moralista e foi acusado de laxismo por
Pascal e outros. Sua principal obra foi De sancto ma-
trimonii sacramento, em três volumes, publicada em Ma-
dri, em 1605, que abriu novos caminhos no campo da
moral matrimonial.
Molinas: Luis de Molina (Cuenca, 1535-Madri,
1600). Jesuíta espanhol que inventou o sistema teo-
lógico conhecido como “molinismo”. Ensinou teolo-
gia em Coimbra, depois em Évora. Voltou para a
Espanha, em decorrência da polêmica provocada por
sua doutrina. Célebre na ciência jurídica por sua obra
De iustitia et iure, publicada entre 1593 e 1600, tor-
nou-se conhecido sobretudo por sua obra Concordia
liberi arbitrii cum gratiae donis, divina praescientia,
providentia, praedestinatione et reprobatione, pu-
blicada em 1588, com um apêndice em 1589. Os
dominicanos combateram veementemente o mo-
linismo jesuíta por mais de três séculos.
Larragas: provável referência ao padre Francisco Larraga,
espanhol e catedrático de teologia na Universidade de
Pamplona. Era o tratadista geralmente indicado para o
estudo da teologia moral. Escreveu o Promptuário de teo-
logia moral (em castelhano), traduzido para o português

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pelo padre Manuel da Silva de Morais e publicado em
1723, 1735 e 1749. Teve outras duas traduções para o
português. Verney, no Verdadeiro método de estudar, con-
siderou esta obra perigosa.
139-140 Academia de humildes, e Ignorantes: talvez por razões
de métrica, Silva Alvarenga tenha alterado ligeiramen-
te o título, que na íntegra é: Academia dos humildes e
ignorantes. Diálogo entre um teólogo, um filósofo, um
ermitão e um soldado no sítio de N. S. da Consolação.
Obra utilíssima para todas as pessoas eclesiásticas e secu-
lares que não têm livrarias suas, nem tempo para se apro-
veitar das públicas. Esta obra começou a ser publicada
periodicamente em folhetos de oito páginas, tendo o
primeiro saído em setembro de 1758. Continuou nos
anos seguintes, e cada 52 números ou conferências for-
mam um volume. A obra completa é composta de oito
volumes e um Índice das cousas mais notáveis de que
tratam os seis tomos da Academia, etc., publicado em
1764. Na folha de rosto destes volumes vêm as iniciais
D. F. J. C. D. S. R. B. H. No entanto, o livreiro por-
tuguês João Henriques informou em um de seus catá-
logos ser o autor da obra o frei Francisco de Santa
Rita, agostiniano. Parece erro do referido livreiro, pois
as iniciais não coincidem.
140 Eva, e Ave: obra de António de Sousa de Macedo (1606-
1682), cujo título completo é Eva, e Ave, ou Maria Triun-
fante: teatro da erudição & filosofia cristã, em que se re-
presentam os dous estados do mundo: caído em Eva, e le-
vantado em Ave, no patrocínio da majestade augustíssima
da Rainha dos Céus. Impressa em Primeira e Segunda Par-
te, em Lisboa, à custa de Antonio Craesbeeck de Mello,
impressor da Casa Real, em 1676. Posteriormente, essa

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obra teve ao menos mais três edições: em 1700, 1711 e
1716.
141 Báculo pastoral: obra de Francisco Saraiva de Sousa
(Trancoso, ?-?), cujo título completo é Báculo pastoral
de flores e exemplos colhidos de vária e autêntica história
espiritual sobre a doutrina cristã, utilíssimo não só para
pregadores e pastores d’almas, mas para todo o cristão que
procura salvar-se, e instruir seus filhos com bons exemplos,
editada em Lisboa, por Pedro Craesbeeck, em 1624.
Teve várias reedições, algumas com acréscimos: 1628,
1657, 1676, 1682, 1698, 1719, entre outras. Possivel-
mente, em 1682 já havia saído reimpressa uma Segun-
da parte do Báculo pastoral de flores e exemplos, etc., no-
vamente reeditada em 1703 e 1708.
Flos Sanctorum: segundo Aires A. Nascimento, na en-
trada “Hagiografia” do Dicionário de literatura medie-
val galega e portuguesa (Caminho, 1997), a primeira re-
colha de hagiografia medieval em língua portuguesa tem
provavelmente origem na tradução do original cas-
telhano, Flores seu legenda sanctorum, de Jacobo de Vo-
ragine, do século XIII. Mas Silva Alvarenga pode estar
se referindo a outra, dentre as inúmeras obras intituladas
Flos sanctorum e publicadas em Portugal a partir do sé-
culo XVI.
142 Teoremas predicáveis: obra do frei Boaventura de Barce-
llos (Paços, ?-?), cujo título completo é Teoremas pre-
dicáveis, ou especulações por arte predicativa, políticas,
panegíricas e morais, publicada em Coimbra, na Oficina
de Luis Secco Ferreira, em 1745.
144 ao Bem Ferreira, ao Baldo, ao Pegas:
Bem Ferreira: ao que tudo indica, trata-se de um erro
da princeps, pois Silva Alvarenga está se referindo a Ma-

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nuel Lopes Ferreira (Lisboa, ?-?). Tal como se lê a se-
guir no verso 147, “bom Supico”, aqui também deveria
ser “bom Ferreira”. Este qualificativo é muito comum
nos poemas do período. Como exemplo, veja-se o se-
guinte verso de Antônio Diniz da Cruz e Silva, retirado
do Canto IV de O hissope: “Do bom Phebo, bom Men-
des, e bom Pegas”. Manuel Lopes Ferreira era doutor em
direito canônico; foi ouvidor no Algarve e corregedor
em Lamego. Sua principal obra foi a Prática criminal
expendida na forma da praxe observada neste nosso reino
de Portugal, e ilustrada com muitas ordenações e leis ex-
travagantes, regimentos e doutores, impressa em Lisboa,
em quatro tomos, de 1730 a 1733. Foi reimpressa no
Porto em 1767.
Baldo: Baldo degli Ubaldi (Perúgia, 1319-Pavia, 1400),
jurisconsulto e expoente máximo da escola dos comen-
tadores, foi aluno e discípulo de Bartolo de Sassoferrato.
Ensinou nas universidades de Bolonha, Perúgia, Pisa,
Florença, Pádua e Pavia. Dominou todo o campo do
direito, civil e canônico, deixando diversas obras, den-
tre as quais um amplo comentário a todo o Corpus iuris
civilis.
Pegas: Manuel Álvares Pegas (Extremoz, 1635-1696),
bacharel em direito civil pela Universidade de Coimbra.
Exerceu em Lisboa por muitos anos o ofício de advo-
gado da Casa de Suplicação, com privilégios de desem-
bargador. Foi procurador de diversas mitras, como as de
Lisboa, Braga, Évora e Lamego. Suas obras principais
são os 14 volumes de Comentários às ordenações do rei-
no e os seis tomos de Resoluções forenses.
146 Aranha: é possível que Alvarenga esteja se referindo ao
frei Tomás Aranha (Coimbra, 1588-Lisboa, 1663), do-

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minicano e formado em teologia pela Universidade de
Coimbra, que deixou um variado número de sermões.
Ou então a Boaventura Maciel Aranha (Darque, 1702-?),
contador da Fazenda da Mitra Primacial de Braga e se-
cretário da Relação do mesmo arcebispado, o qual es-
creveu, entre outros, os Cuidados da morte, e descuidos
da vida, etc. e os Cuidados da vida, e descuidos da mor-
te, etc., publicados em Lisboa respectivamente em 1743
e 1761.
147 O Reis, o bom Supico, e os dois Suares:
Reis: possível referência a António dos Reis (Pernes, 1690-
Lisboa, 1738), teólogo e humanista oratoriano; mestre
em teologia moral, ditou o Tratado da Bula da Cruzada,
que não concluiu. Compunha epigramas com facilidade
e publicou os Epigrammes latinos, em dois volumes, tra-
duzidos por J. de Sousa Caria e publicados em Lisboa em
1731 e 1733, além de sermões e elogios fúnebres, entre
outros. Foi qualificador do Santo Ofício, examinador das
três ordens militares e sinodal do Patriarcado, além de
consultor da Bula da Cruzada.
Supico: possível referência a Pedro José Supico de Moraes
(?-antes de 1760), autor da Coleção política de vários apo-
tegmas, em duas partes, ambas lançadas em Lisboa, por
Antônio Pedro Galrão, em 1720. A segunda edição foi
impressa também em Lisboa, na Oficina Augustiniana,
a primeira parte em 1732 e a segunda em 1733. Foram
republicadas depois, em um único volume, em 1761.
Na nota ao verso: Lusitano: referência a Francisco Soa-
res (Torres Vedras, 1605-Juromenha, 1659), chamado
Lusitano, para o distinguir de seu homônimo Francis-
co Suárez, chamado Granatense. Jesuíta, professor, en-
sinou latim em Lisboa, filosofia no Colégio das Artes e

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teologia no Colégio de Jesus e na Universidade de Évora.
Dentre sua obra editada, destacam-se o Cursus phi-
losophicus in quatour tomos distributus, publicado em
1651, e o De virtute et sacramento poenitentiae, publi-
cado em 1678.
Granatense: Francisco Suárez (Granada, 1548-Lisboa,
1617), teólogo, filósofo e jesuíta espanhol. Ensinou fi-
losofia em Segóvia e, a partir de 1576, teologia em
Valladolid, Alcalá, Salamanca e Coimbra. Representan-
te central da nova escolástica, seguiu santo Tomás de
Aquino, mas se distanciou dos tomistas em vários pon-
tos, sobretudo na doutrina da graça divina. Seu tratado
Ius gentium é a primeira exposição teórica do direito
público, antecipando-se a Hugo Grócio. Publicou em
1597 suas Disputationes metaphisicae, primeira constru-
ção sistemática e independente da metafísica depois de
Aristóteles, que influenciou decisivamente o pensamento
posterior.
148 Sol nascido no Ocidente: obra do frei Brás Luís de Abreu
(1692-1756), cujo título completo é Vida de s. António
(português) ou sol nascido no Ocidente e posto ao nascer
do sol: obra útil, instrutiva e deleitosa, escrita no ano de
1725, editada em Lisboa.
149 Mística Cidade: obra da sóror Maria de Jesus (1602-
1665), abadessa de Agreda, publicada em castelhano, em
Portugal, cujo título completo é Mystica ciudad de Dios:
historia divina, y vida de la Virgen Madre de Dios, em
três partes, em Lisboa, por Antonio Craesbeeck de
Mello, possivelmente em 1681. Já traduzida para o por-
tuguês, essa obra teve ao menos mais duas edições em
Lisboa, em 1730 e 1738, com o título ligeiramente
modificado.

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150 Nas outras edições lê-se: “e à roedora traça.”
152-153 Peregrino da América: obra de Nuno Marques Pereira
(1652-c. 1731), cujo título completo é Compêndio narra-
tivo do peregrino da América em que se tratam vários dis-
cursos espirituais com muitas advertências e documentos con-
tra os abusos que se acham introduzidos pela malícia diabó-
lica no Estado do Brasil, publicada em Lisboa, na Oficina
de Manuel Fernandes da Costa, em 1728. Teve várias
reedições, como as de 1731, 1752, 1760 e 1765.
Segredos da natureza: provável referência à obra de Je-
rónimo Cortes (15–-16–), cujo título completo é, na
tradução para o português de Antonio da Silva de Brito
(16–17–), Fisiognomia e vários segredos da natureza: con-
tém cinco tratados de diferentes matérias todos revistos &
melhorados nesta última impressão. Publicada em Lisboa,
na oficina de Miguel Menescal, em 1699, recentemen-
te essa obra mereceu duas reedições, em 1993 e 1995.
153 Fênix renascida: coleção de poemas portugueses do sé-
culo XVII e princípio do seguinte, intitulada A fênix re-
nascida ou obras dos melhores engenhos portugueses,
publicada em cinco tomos, de 1715 a 1728, e reeditada
em 1746.
154 Lenitivos da dor: obra de Francisco da Natividade (1648-
1714), da Ordem dos Carmelitas, cujo título comple-
to é Lenitivos da dor, na morte da sereníssima rainha d.
Maria Sofia, propostos ao augusto, e poderoso monarca el-
rei d. Pedro II, nosso senhor. Publicada em Lisboa, na
Oficina de Miguel Deslandes, em 1700.
Na nota ao verso: crisol seráfico: crisol: cadinho, vaso de
cinzas leves e ossos calcinados, tudo amassado, no qual
se purificam e afinam o ouro e a prata. No sentido figu-
rado, aquilo em que se apuram os sentimentos; seráfico:

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de serafim, do hebreu seraphim, plural de seraph, “aquilo
que queima e se purifica com o fogo”; Serafim: anjo do
primeiro dos nove coros celestes da hierarquia superior;
de onde se pode deduzir: cadinho beatífico, cadinho
místico; tuba concionatória: tuba: no sentido figurado,
o que anuncia, o que proclama; concionatório: o mes-
mo que concional, relativo ou pertencente a assembléia
pública, a auditório popular, deriva do verbo concionar:
falar ao povo, em comícios, proferir em público; sin-
tagma: tratado de algum assunto dividido em classes e
números.
Crisol Seráfico: obra de João António da Costa e
Andrade (1702-?), cujo título completo é Crisol seráfico
em que se apuram as verdades do Instituto da Ordem
Terceira; foi publicada em Lisboa, na Oficina da Mú-
sica, em 1739.
Primavera Sægrada: obra de João de São Francisco (16–
-1675), da Ordem dos Frades Menores, cujo título com-
pleto é Primavera sagrada ordenada de flores espirituais
de doutrina católica: repartida pelos domingos da Qua-
resma, em manhãs, tardes, & mistérios da Semana San-
ta, até dia de Páscoa: ilustrada nos Evangelhos com dous
proêmios, com quatro elencos. Publicada em Lisboa, na
oficina de Domingos Carneiro, em 1675.
155 Sam Patrício a cova: não conseguimos encontrar dados
sobre o autor desta obra, nem elementos referentes a sua
publicação. No entanto, Hélio Lopes informa que o tí-
tulo original era Covas de São Patrício. Silva Alvarenga
inverteu o título certamente por razões de métrica.
156 Imperatriz Porcina: obra de Baltasar Dias (15–-16–), cujo
título completo é Imperatriz Porcina: história novamen-
te da imperatriz Porcina, mulher do imperador Ludonio

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de Roma. Possivelmente a primeira edição seja de 1718,
publicada em Lisboa, na Oficina de Manuel Fernandes
da Costa, à custa de Miguel de Almeida e Vasconcelos.
Essa obra teve inúmeras reedições, dentre as quais as de
1738, 1789, 1859, 1885, 1930 e 1936.
189 Na segunda edição lê-se: “Manchaõ do negro”; na edi-
ção de Norberto: “Manchão do negro”.
192 Nas outras edições lê-se: “Que novo estratagema?”
214 Nas outras edições lê-se: “á colera”.
237 Nas outras edições lê-se: “ao longe o accompanhe.”
244 Scamandro: também chamado Scamander ou Esca-
mandro. Pequeno rio da Tróade (Ásia Menor), primeira-
mente conhecido com o nome de Xanto (“louro”), pois
acreditava-se que suas águas tornavam louros os cabelos
de quem nelas se banhava. A mudança de nome foi
explicada pelo fato de o príncipe Scamandro, que jun-
to às suas margens estabelecera uma colônia de cretenses,
nelas ter se precipitado durante um combate. Conside-
rado uma divindade, era adorado em Tróia, onde se atri-
buía às suas águas a virtude de tornar fecundas as noi-
vas que nelas se banhassem, ao mesmo tempo em que
fossem defloradas pelo príncipe. Está ainda ligado a um
dos mais cruentos episódios da guerra de Tróia (Ho-
mero, Ilíada, XXI, vv. 1-382). Scamandro tomou o par-
tido dos troianos e atacou Aquiles, que fugiu persegui-
do pelas águas e protegido por vários deuses. Travou-
se, então, duro combate entre o fogo de Hefesto e as
águas do Scamandro, acabando com a vitória do pri-
meiro.
253 Nas outras edições lê-se: “Mas tem a gloria”. Note-se
que este é o único verso da princeps que pode ser consi-

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derado de nove sílabas, talvez em decorrência de uma
gralha da edição. No entanto, é possível que Silva Al-
varenga estivesse admitindo hiato na palavra “glória”.
Mas, aceitando esta hipótese, os acentos tônicos do verso
permanecem imperfeitos.
261 Na segunda edição lê-se: “Sabio, Justo”; na edição de
Norberto lê-se: “sabio, justo”.

Soneto

1 pórfido: variante de “pórfiro”, designação comum às ro-


chas extrusivas e aos diques que se apresentam com tex-
tura porfirítica; p. ext., qualquer mármore que apresenta
cristais muito brancos, em contraste com o fundo.
2 Nas outras edições lê-se: “E o brilhante”.
12 Termindo: provável referência a José Basílio da Gama,
autor de O Uraguay, cujo codinome árcade era Termindo
Sipílio. Na edição de Joaquim Norberto lê-se: “Temindo”.
14 Minerva: Palas ou Atena entre os gregos, na mitologia
romana era a deusa da sabedoria.
15 E. G. P.: no exemplar da princeps pertencente à coleção
do bibliófilo José Mindlin, no rodapé da página 70, em
que consta este soneto, vem manuscrita uma informação
possivelmente preciosa, que aqui reproduzimos respeitan-
do a ortografia antiga: “Estacio Galante Pereira? / nacido
no Rio de Janeiro, colega / de Alvarenga em Coimbra”.

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Soneto

6 Pai da Pátria: o rei dom José I.


7 Na segunda edição lê-se: “Vingando a Má”. Joaquim
Norberto adotou a lição da princeps, possivelmente por-
que conhecia outras edições deste soneto.
9 Monstro de mil bocas: provável referência à Fama (ver
nota de minha autoria ao v. 1 do Canto III).
11 Pego: pélago, mar profundo, abismo marítimo. Na edi-
ção de Joaquim Norberto lê-se: “immenos”.
14 Zaire: grande rio da África, entre o antigo Reino do Con-
go e o de Loango. Nasce no antigo Reino de Macoco e
deságua no Oceano Atlântico. Indo: rio Indo (Índia).

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Título O desertor: poema herói-cômico

Autor Manuel Inácio da Silva Alvarenga

Assistente técnico de direção José Emílio Maiorino


Coordenador editorial Ricardo Lima
Secretária editorial Eva Maria Maschio Morais
Secretário gráfico Ednilson Tristão
Preparação dos originais e revisão Ana Paula Gomes
Finalização Vilma Aparecido Albino
Editoração eletrônica Rossana Cristina Barbosa
Design de capa Ana Basaglia
Formato 14x21 cm
Papel off set 75 g/m 2 – miolo
Cartão Supremo 250 g/m 2 – capa
Tipologia AGaramond
Número de páginas 168

ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA GRÁFICA ASSAHI


PARA A EDITORA DA UNICAMP EM JANEIRO DE 2010 .

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desertor 100114 1/14/10 3:39 PM Page 1

SILVA ALVARENGA
lírica retornou aos prelos, Quando a Verdade apare-
com os rondós e os madri- ce em sonhos ao preguiçoso
gais amorosos de Glaura. A “herói” de O desertor, começa
volta de O desertor – quase
MANUEL INÁCIO DA SILVA ALVARENGA a se esclarecer a postura de
150 anos depois da última Manuel Inácio da Silva Al-
edição integral – pode dar varenga, ao compor seu am-
início à redescoberta das bicioso poema satírico. “Eu
demais facetas do poeta. sou quem de intricados labi-
Neste caso, trata-se de
um poema herói-cômico, que
almeja provocar o riso ao
Que esperas tu dos livros?
Crês que ainda apareçam grandes homens
O DESERTOR rintos / Pôs em salvo a Ra-
zão ilesa, e pura” – diz ela,
mas sem ocultar seu estreito

Poema herói-cômico
dar tratamento épico a si- Por estas invenções, com que se apartam vínculo com o poder: “Se
tuações e personagens tidos são firmes por mim o Esta-
Da profunda ciência dos antigos?

O DESERTOR
como ridículos. Publicado do, a Igreja, / Se é no seio da
em 1774, tem como ponto Morreram as postilas, e os Cadernos: paz feliz o Povo, / Dizei-o
de partida a celebração da Caiu de todo a Ponte, e se acabaram vós, ó Ninfas do Parnaso”. A
reforma da Universidade pretendida pureza racional
de Coimbra empreendida
As distinções, que tudo defendiam, aparece diretamente ligada
com mão de ferro pelo mar- E o ergo, que fará saudade a muitos! à conservação das institui-
quês de Pombal. O protago- Noutro tempo dos Sábios era a língua ções político-religiosas, e
nista, Gonçalo, é o “desertor assim enfeixa de uma vez as
das letras”: dissoluto e mal-
Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba, noções de bom senso, boa
acostumado com os “intri- Ou se muda em pior. conduta e bom governo.
cados labirintos” da velha Isso basta para reconhe-
escolástica, agora banida, o cermos em O desertor um dos
rapaz não tem outra escolha textos mais importantes
senão fugir das salas de aula. Edição preparada por para o estudo e o desvela-
Assim se iniciam as peri- RONALD POLITO mento das especificidades
pécias do poema, entre as da ilustração luso-america-
quais não será das menos na no século XVIII. Silva
curiosas o fazer a sátira dos Alvarenga, no entanto, é o
costumes se confundir com ISBN 852680621-1 menos conhecido e divulga-
o elogio do poder. do dos árcades “ultramari-
nos”. Em todo o século XX,
Sérgio Alcides 9 788526 806214
praticamente só a sua poesia

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