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Uma pesquisadora na metrépole: identidade e socializa¢ao no mundo da politica Karina Kuschnir Em 1995 e 1996, realize trabalho de campo na cidade do Rio de Janeiro, concentrando minha atencio sobre os vereaderes Marta Silveira e Ricardo Alves.'Estive em campo durante cerca de cem dlias nao consecutives, dos quais 70% foram passados junto 3 fami- lia Silveira. Partcipetditetamente do cotidianocdesses politicos, registrando em um didrio de campo acontecimentos, conversis & ‘observagdes. Acompanheiatividades em gabinetes, encontros pi- bilicos, reunioes, audiéncias, vida familiar, panfletagens, atendi mento a eleitores, festa, inauguragdes e eleigdes, entre outros ‘eventos. Gravei entrevistas € reunides com os vereadores, seus assessores¢ eleitores. Coletei também material de divulgacio campanha,além de fazer um levantamento das inciativas legisla- tivas, oficos, cartasenviadas e recebidas por esses parlamentares. Como veremos adiante, fo essencial dversificar as fontes da pes- uisa para melhor compreender os universos estudados?> ‘A escolha de Marta Silveira e Ricardo Alves foi guiada pelo objetivo de realizar uma etnografia comparativa sobee a vida poli: tica da cidade, evando em conta diferengas de filiagio partidria, estilo de formagio,trajetiria eatuagao politica, Pré-nogbes Desde o inicio, eu estava decidida a procurar Marta Silveira. Por conta da pesquisa de mestrado, ji havia observado sua atuagio no plenério, ldo seus discursose intervengdes nas publicacoes inter- ras da Cmara Municipal feito com ela uma entrevista de quase Luma pesqusodra na merpole a “nas horas. Na época, Marta foi um dos poucos parlamentares que se dispds a falar mais longamente comigo. Além do interesse pela iE _pesquist, Marta €uma pessoa que gosta de pensar efalarsobre seu ‘proprio trabalho — caracterstiea fundamental para um infor- frante de uma pesquisa antropoldgica.Além diso, eu procurava _propositadamentealguém que pudesse me levar a entra em con {ato com universos diferentes dagueles com os quais eu estava - abituada. 'A maior parte dos outros vereadores que pareciam ser bons informants apresentavam um perfil — pelo menos aparentemen- — muito semelhante ao meu: tinham estudado na Zona ul do de Janeiro, gostavam dos mesmnos livros, jornas e filmes e efendiam ideias de esquerda. Naquele momento, pelo menos, "Marta signticava um mundo diferente. Ela se apresentava como ~herdeira politica de seu paie suas baeseletoras estavam concen- " radas em Rosciral, importante baieo do subisbio carioca. Seu {eresse pela politica patria ra muito pequeno quando com ‘parado& dedicagio que tinha ao trabalho de atendimento da co- " Iunidade. Além disso, logo no nosso primeito contato, la me ‘onvidou para conheceroescritio da familia em Roser Acescolha de Ricardo Alves como segundo paslamentar a ser ‘studado em maior profundidade se dew em fungfo do contrase de seu perl com o de Marta. Nio haviaconseguido entrevsté-lo durante a pesquisa de mestrado, mas conhecia osuicente de sua biograta para saber qua principio, muita caractristcas distan- siavar-no de Marta Ricardo Alves reebeu voto de quase todas 8 zonas eleitorais da cidade, com predominio da Zona Sul, onde ‘mora. Sua carrera politic esteve sempre igada a partidos de e- queda, e ele proprio jé ocupou diversas posigdes na estrutura do partido ao qual esti iiado desde ciago.Além diss, Ricardo ‘Alves dedica boa parte de seu tempo ao trabalho legislativo ¢, diferentemente dos Silveira, no tem esetitério fora da Camara Municipal, Escolhendo-o como objeto de etudo, eu esperavaob- terdados que permitissem relativiraro material de pesquisa levan- {ado junto 20s Silveira, pssbilitando contastar e compara seus estlos de atuasto, ‘Como se pode ver antes mesmo de conhecer esses parlamen- ‘ares mais profundamente,eu i tinha uma série de premissasa seu respeito, A dificuldade de “afastarsistematicamente todas a8 pré- nogoes’, como nos recomenda Durkheim,’ talvezseja ainda mais dificil quando se trata de estudat um tema como a politica, prinei- palmente em nossa pripria sociedad, Desde o inicio do trabalho dle campo, esforce-me para ter consciéncia dos meus valores e de sua influéncia sobre pesquisa, como relatoa seguir. Por indicagao de meu orientador, Gilberto Velho, meses de- pois deter defendido a dssertagao de mestrado, fui procurada pela produgio do programa Globo Ciéncia, da TV Globo, para falar sobte 0 tema "ética na politica’. Além de dar uma pequiena entre- vista, indiquei 0 nome de Marta 3 repérter que procurava um cexemplo de“politico tradicional” Segundo a dfinicao da repérter, este seria alguém que fizese atendimento pessoal ao eleitor, com trabalho concentrado em certos bairros. A gravasao foi fit, e ‘Marta apareceu no programa, Um ano e meio depois desse episs- dio, estive novamente no gabinete da vereadora na Cimara para propor realizagdo da pesquisa em seu escritorio de Roseral Para faciltar 0 contato, falei de nossa entrevista e da indicagio para 0 Globo Ciéncia,achando que isso contariaa meu favor. Bla lembrava cde mim ¢aceitou o pedido sem hesitagao, Depois dessa aceitagio, a pergunta que eu e muitos me fze- ‘ram foi por que uma politics “como cla" deixaria que eu circulasse observasselivremente 0 seu trabalho? Tanto ex, quanto, por cexemplo, a reprter do programa e outros vereadores que rotuls- ‘vam Marta come “tradicional” achivamos, mesmo sem admit abertamente, que politicos “como el” tinham muito a esconder. ‘final, Marta tinha um compromisso com seu pai, Fernando, um politico “conhecido” por um trabalho de “asistencia” aos eleito res, com a “fama’ de estar sempre mudando de partido, de acordo ‘com a convenincia do momento, pouco interessado no trabalho legislativ. ‘Todos esses dados “sabidos’, “conhecidos’, por “fama” sto parte de um repertério que se explicitainformalmente nas conver: 535, nos jornas, na literatura politica eem outros tipos de informa- «lo que chegam eventualmente as nossas mios. O rétulo “tradi- ional’ aplice-egeralmentea politicos também chamados de “an Gdemocriticos’ “fsoldgicos "populstas’ ou outras classifica foes depreciatvas, mas muitas wees estende-seaqules que pro- Frovem os mais dverostpos de prtias gas, como corrupso, fraudes eetoraise desvo de dinheio public. Até 0 inicio da pesquisa, porém, eu nunca tnha visto Femando atendendo a ne- Shum cleitos, ndo havia acompanhado suas votag6es, analisado Getidamente suas mudanas de partido, assim como no tinha qualquer indicio ou provade que ele tivssecometdo qualquerato ‘icto em sua vida, O mesmo valia para Marta. Enfatizo aqui, portato, que havia uma pré-nogio negativa sobre perf “trai- ional” dos Siveira Desdeo primeito dia que passeiem seu escrito, Marta disse ‘ave eu povera fequenti-o quantas vezes e por quanto tempo uisese. Minha liberdade em campo era Vista por mim e por alguns de meus pares com rescrvas. Muitos pareciam surpresos pela oportunidade que eu hava obtido e sugeriam que devahaver Alguma cosa “escondida’Eutinha que descobrircomo-a vereado- ra conseguiadinheiro, como as coisas se passavam nos “bastido- tes ica clato assim, que, ene as pessoas eas informagbes que fazem parte do meu mundo cotiiano, meu objeto de pesquisa estava fortementeassciado a priicassocas de valor neatvo. ‘Aldi das pré-nogies relacionadas a idea de “politico tradi ional ca leva para o campo, junto aos Silvera, uma série de stengasarespeito da Zona Norte e do subibio em geral. A nica vez quecuhavia estadoem Rosciraltinha sido na infants, aos ito 11 nove anos, quando pasei um fim de semana na casa de uma ba que morava emuma favela dobatzo. A lembranca era boa, de Drincadeiras na rua e muito sorvete de saquinho, mas impressio- rnci-me com as latas iguana eabega e o pequeno quarto onde todas as mulheres da casn dormiam juntas. Antes da primeira 20 esriério de Marta, eu enfrentava—e em parte compat- tilhava —o ceticismo eo espanto de amigos, familiares e colegas: “Roseiral? © que voet vai fazer esse fimde-mundt"; “Politico em RoseialtPuxa, deve ser barra pesada..”; "Tome cuidado" Esse € 0 tom de meus interlocutores. Quase nenhuma das pessoas 2 ina Kasehoie mais proximas do meu circulo de convivéncia conhecia Roseial,e todas pareciam te tantasfantasias sobre o lugar quanto eu mesma. ‘A maioria dos meus amigos sequer conseguia guardar o nome do bairro onde eu estava fazendo pesquiss, confundindo Roseiral ‘com outos bairros da Zona Norte. Com o sentimento de medo e ‘espanto, vem, acompanhando-o, em alguns casos, um certo r0- -mantismo, Depois que eu dizia que “volte viva’, “que as pessoas de 1 sao legais’, a imagem de Roseital passava a ser a do suburbia bbucélico, onde todos sio mais puros e amigos. Fica-se entre dois extremos, ambos no plano da crenga eda imaginacao, Durante o trabalho de campo, tenei me policiar a0 miximo contra as interferéncias dessas pré-nogies na pesquigs, mesmo tendo consciéncia de que era impossvel neutralizé-las totalmente. A ida a Roseical, principalmente nas primeira semanas, me pare- cia diffell e perigosa. No escritério dos Silveira, desconfiava de tudo que me diziam e achava que me ocultavam informagoes. ‘A expectativa em relagio & pesquisa com Ricardo Alves era totalmente diferente, Tinhamos virios conhecidos em comum e ‘morévamos em bairros vizinhos. Politicamente, tinha simpatia pela sua conduta, que acompanhava pela midia. Ao contrério de Ricardo Alves, 0s Silveira ndo eram noticia nos jornais que eu

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