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RESUMO
OBRAS
LITERÁRIAS
UEL
OBRAS LITERÁRIAS UEL 2023 - 2024

OBRAS LITERÁRIAS
UEL 2023 - 2024

Contos novos - Mário de Andrade (domínio público)


3

Quarto de despejo - Carolina Maria de Jesus (Ática)


12

Histórias que os jornais não contam - Moacyr Scliar (L&PM)


21

O rei da vela - Oswald de Andrade (Companhia das Letras)


29

O seminarista - Bernardo Guimarães (domínio público)


37

Niketche - Paulina Chiziane (Companhia das Letras)


45

Torto arado - ltamar Vieira Junior (Todavia)


52

Melhores poemas - Fernando Pessoa (Global)


61

Chove sobre minha infância - Miguel Sanches Neto (Record)


73

Cartas chilenas - Tomás Antônio Gonzaga (domínio público)


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2 SIGMA CURSO E COLÉGIO
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CONTOS NOVOS MÁRIO DE ANDRADE

O livro Contos Novos, de Mário de Andrade, foi publicado postumamente, em 1947. A morte prematura impediu ao
autor que finalizasse o projeto do livro, que compreenderia doze contos. No entanto, apenas nove foram efetivamente
escritos. Segundo indicações do próprio Mário, ele iniciou a redação ainda na década de 1920, tendo-a revisado em diversas
ocasiões, como é o caso, por exemplo, de “Atrás da Catedral de Ruão”, iniciado em 1927, que passou por, ao menos, cinco
revisões até a finalização, em julho de 1944.
Mário de Andrade iniciou sua carreira no auge da implantação do Modernismo no Brasil. Ao lado de Oswald de
Andrade e outros diversos artistas, colaborou decisivamente para a revolução modernista e para a realização da Semana de
Arte Moderna, em 1922. E, como tal, fez diversas experiências estilísticas, tanto na prosa quanto na poesia, com destaque
para Macunaíma e Amar, verbo intransitivo.
No caso de Contos novos, Mário abandona o experimentalismo mais radical, em prol de uma narrativa modernista
segura e madura, por assim dizer. As histórias, que se passam em São Paulo, tanto na capital quanto no interior, têm como
objetivo retratar o processo de urbanização e industrialização, o duelo entre patriarcalismo e progressismo, denúncia de
injustiças sociais e análise psicológica dos personagens.
Dos nove contos, quatro são narrados em 1ª pessoa pelo personagem Juca. São eles, na ordem em que aparecem:
“Vestida de Preto”, “Peru de Natal”, “Frederico Paciência” e “Tempo da Camisolinha”. São narrativas de períodos distintos da
vida do narrador, desde a infância, passando pela adolescência, até a fase adulta. Nesse sentido, a ordem dos contos é
exatamente ao contrário, isto é, “Tempo da camisolinha” seria o primeiro, “Frederico Paciência” o segundo; “Peru de Natal” o
terceiro; e, finalmente, “Vestida de Preto”, o conto que compreende os três grandes momentos da vida do narrador. É
preciso, antes, fazer uma ressalva: em “Tempo da camisolinha”, o narrador é Carlos, embora tudo indique tratar-se mesmo
de Juca, conforme explicaremos adiante.
O objetivo de todos parece ser a de tentar entender quem foi, que aspectos da vida levaram o narrador a ser o que é,
bem como, já na quase velhice, tentar compreender as atitudes que tomou nos momentos específicos de sua vida. Também,
pode-se dizer, são contos em que o peso do lirismo é mais acentuado, em que recompor uma imagem perdida é mais
importante que a análise social.
Em “Vestida de Preto”, logo de início, o narrador expõe duas questões importantes, uma de ordem literária, tendo em
vista a preocupação em determinar o gênero literário do que irá escrever:

Todos andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se
o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. (p. 23)

Há, na dúvida, uma clara manifestação de defender o que narra, tomando-o como expressão da verdade. Trata se de
uma técnica literária, para conferir verossimilhança ao que se diz.
A segunda questão é de ordem psicanalítica. As teorias de Freud foram largamente utilizadas, em especial pelos
primeiros modernistas, como meio de compreensão do ser, cingindo entre o que se é de fato e o que se tem de ser para uma
aceitação social. Essas duas questões, do ser e do que se tem de ser, ou do não ser, coadunam-se com o todo do conto, uma
vez que Juca narra a amizade que tinha por uma amiga de infância, Maria, bem como o amor que poderia ter se realizado de
modo mais pleno entre eles. Embora afirme que Maria tenha sido seu primeiro amor, a realização de fato não ocorre. Fica
apenas a ideia do que poderia ter sido. O primeiro contato mais íntimo aconteceu quando tinham cinco anos: brincavam
quando foram surpreendidos por uma tia, que os admoestou para que não ficassem sozinhos. A partir desse momento,
perceberam que faziam algo que poderia ser visto como proibido, mesmo sem entender o porquê. Em outros termos, a tia
Velha mostrou, indiretamente, que não poderia fazer algo apenas porque queriam, mas precisariam ver que nem tudo seria
aceito socialmente. Se Juca permanece “fiel” a esse momento, não se pode dizer o mesmo de Maria, que, apesar de um
primeiro beijo ter ocorrido quando tinham dez anos, escolheu outra vida, escolheu afastar-se de Juca. O que poderia ser o
início de um relacionamento a despontar na adolescência tornou-se apenas um beijo e nada mais. Maria se distanciou de
Juca e passou a ignorá-lo, sem razão aparente:

O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por


tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que
indiferença, frieza viva, quase antipatia. (p. 26)

A explicação talvez se dê pelas diferenças socioeconômicas entre eles. Enquanto ela pertencia a uma família de
certas posses, que lhe permitiam fazer viagens à Europa, por exemplo, ele tinha que se contentar com uma possível riqueza
conquistada com um hipotético prêmio da loteria. Além disso, há o problema que Juca passa a ser visto como o esquisito que
quis beijar a prima, o que não se apega às regras; ao passo que Maria é a certinha. Para manter tal imagem, ela começa a
evitá-lo.

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O conto acaba por se revelar uma análise de caráter psicológico, visando à compreensão do porquê das escolhas de
cada um. O leitor é levado a crer que Maria também deveria amá-lo, mas nunca quis aceitar tal sentimento; seria dar razão à
tia Velha, que os surpreendera em atitude suspeita. Seria também rebaixar-se às atitudes “condenáveis” de Juca.
A vida de ambos se distancia mais e mais. Enquanto Juca permanece “fiel” a esse amor da infância, ironicamente, para
escândalo geral, ela passa a namorar todos que aparecem, fica noiva de um jovem, rompe e vem a se casar com um diplomata
e vai morar na Europa, onde fica cinco anos sem nenhum retorno ao Brasil.
Antes do casamento, encontram-se poucas vezes, mas o contato, seja por alusão, seja lembrança, faz-se constante da
parte dele, a ponto de a mãe dela declarar que seria bom se os dois tivessem se casado, pois assim ela ficaria mais próxima da
família. A declaração causa grande estranheza a Juca, por conta mesmo do que descobrira, ainda na infância, sobre as
diferenças econômicas entre eles.
O último grande momento de sua vida com Maria ocorreu quando vai procurá-la ao saber que estava separada e de
volta a São Paulo. Imaginava que poderia retomar o contato infantil, o beijo inocente, ao mesmo tempo em que sabia que
certamente seria o último encontro. E é o que de fato acontece. O reencontro é repleto de elementos simbólicos, como ter
de esperá-la em uma “saletinha da esquerda”, pois a família estava num banquete. Maria está com vestidinho preto (por isso
o título do conto), que desperta sua fantasia, leva-o a imaginar-se com ela. Mas, em nome do passado, de um amor mais puro,
ou de seu orgulho, despede-se apenas com um frio boa-noite:

[...] meu desejo era fugir, era fi car e ela fi car, mas, sim, sem que nos
tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando
a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria. [...]
Balbuciei afi nal um boa-noite muito indiferente... (p. 31)

Juca, apesar de outros dois relacionamentos, sabia-se perfeito e completo apenas com Maria. Aqui podemos
estabelecer analogia entre o relacionamento e o ato criador. O objetivo da criação literária é atingir a perfeição estética,
capaz de levar o leitor a sensações singulares e a uma experiência sensorial única. Também Juca sabia que apenas Maria o
levaria a essa perfeição, a essa sensação, que se esvai ante o prosaísmo da vida. Por isso, preferiu preservar a imagem da
perfeição e não a da mulher pervertida. Podemos também dizer que era melhor, naquele momento, preservar a honra
machista a se “manchar” com uma mulher de “moral duvidosa”.
Sensação estranha é a que desperta nele a amizade com Frederico Paciência (do conto homônimo), rapaz que
estudava com ele no seminário. A descrição inicial sugere mais do que uma simples amizade; na verdade, um amor velado,
que não poderia eclodir, tornar-se explícito aos olhos de todos:

Senti logo uma simpatia deslumbrada por Frederico Paciência, me


aproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia. [...]
Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos
amigos. (p. 96)

Se Frederico é uma espécie de sol, Juca seria seu oposto. Tido como garoto problema na família, desde o episódio
com Maria, Juca vivia criando problemas na escola. Frederico se apresenta a ele como uma espécie de salvação. Por isso,
aproxima-se mais ainda dele. No entanto, o conto se constrói em direção a um clímax sem desfecho esperado. Em outros
termos, o conto apenas sugere o princípio de um relacionamento homossexual. Estabelecendo uma analogia com “Vestida
de preto”, aqui também os interditos individuais e sociais impedem a realização plena da “amizade” entre ambos.

E a vida de Frederico Paciência se mudou para dentro da minha. [...] Os


domingos dele me pertenceram. (p. 98)

Um episódio marcante e sugestivo ocorre quando Frederico vê Juca lendo um livro sobre a história da prostituição.
Leitura proibida para jovens, ainda mais em uma escola de padres, onde estudavam. Frederico lhe pede para ler o livro, o que
cria um sentimento confuso em Juca, pois não queria se “entregar” tanto assim, permitir-lhe saber de “segredos” no campo
da sexualidade, ao mesmo tempo em que compartilharia dos “segredos” do amigo. Algo que retiraria a “pureza” da amizade.
Apesar disso, o caso os tornava mais “íntimos”, uma amizade mais carregada de segredos mútuos, e num campo perigoso, a
sexualidade:

Passei noite de beira-rio. Nessa noite é que todas essas ideias de


exceção, instintos espaventados, desejos curiosos, perigos desumanos
me picavam com uma clareza tão dura que varriam qualquer gosto.
Então eu quis morrer. Se Frederico Paciência largasse de mim... Se se
aproximasse mais... Eu quis morrer. Foi bom entregar o livro, fui sincero,
pelo menos assim ele fi ca me conhecendo mais. Fiz mal, posso fazer
mal a ele. (p. 101)

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O resultado foi um mal-estar entre eles, a ponto de Frederico declarar que a leitura não fora boa para ele; devolvia o
livro com constrangimento. A amizade se restabeleceu, embora com alguns arranhões. Causava também desconfiança entre
os demais colegas, a ponto de ambos terem de brigar contra os outros, defender a “pureza” da amizade. Não havia
ambiguidade nisso, apenas certeza. Juca tem mesmo de criar um discurso para expressar a verdade entre eles, defender a
verdade de ambos, de que eram apenas “bons amigos”. Interessante que o faz revelando-se um artista, o que cria e recria a
realidade. Por isso, o que era para sedimentar a amizade, acaba por iniciar o processo de separação:

Mas de tudo isso, do livro, da invencionice dos colegas, da nossa revolta


exagerada, nascera entre nós uma primeira estranha frieza. (p. 105)

A frieza aumenta à medida que se aproxima a época da formatura, quando cada um pensa em seguir uma profissão.
Frederico tem planos de ir ao Rio de Janeiro. É o momento também em que Juca conhece uma de suas duas namoradas,
Rose, distanciando-os ainda mais. De íntimos, passaram a ser colegas, amigos apenas. Era o processo se repetindo, o mesmo
que levara Juca a ficar distante de Maria, ainda que por razões diversas. Se Maria o completaria mesmo no momento da
separação definitiva, a figura de Frederico foi deixando de exercer esse papel na vida do narrador, que, em dado momento,
afirma não querer mais ser Frederico Paciência. Em outros termos, já não precisava da projeção do outro para ser, para
constituir-se completo. O que era perfeito tornou-se paradigma de erro.
A morte do pai de Frederico, porém, devolve, por breve instante, a mesma sedução de outrora, a mesma relação de
completude que poderia ter se estabelecido entre eles, ainda mais quando Juca expulsa um homem que queria se aproveitar
da morte para fazer negócios. Ao ficarem sozinhos, enquanto conversam sobre o futuro, os gestos de ambos denotam algum
desejo de sedução, falam por subentendidos, de maneira ambígua, olham-se. A figura do morto, no entanto, se interpõe e, de
novo, distanciam-se:

Talvez nós não pudéssemos naquele instante vencer a fatalidade em


que já estávamos, o morto é que venceu. (p. 111)

Em outros termos, mesmo morto, o papel do pai, do homem castrador, da sociedade repressora dos instintos
proibidos, faz-se presente na mente de ambos. Anos depois, quando Frederico já estava no Rio de Janeiro, conforme seus
planos, a mãe vem a falecer. É bastante significativa a fala do narrador ao comentar essa outra morte:

Desta vez o cadáver não seria empecilho, seria ajuda, o que nos salvou
foi a distância. Não havia jeito de eu ir ao Rio. Era filho-família, não
tinha dinheiro. (p. 113)

Sua narração é depois bastante ambígua; ao mesmo tempo em que sabe ser meio de reatar a “amizade”, aproximar-se
de vez de Frederico, fica feliz que não pode fazê-lo. Envia-lhe um telegrama para dar-lhe os pêsames, mas nunca recebe a
resposta, o que indica o fim definitivo do relacionamento entre eles. Ao final, porém, sugere, a partir do sobrenome de
Frederico, a causa de não terem tido nada, é que talvez ele fosse muito paciente, muito vagaroso.
Em “Peru de Natal”, Juca, ciente de sua condição de “louco” da família, resolve romper com a mesmice dos outros
natais da família. Com a morte do pai, ocorrida cinco meses antes, Juca quer dar novo rumo à própria história e levar os
demais membros da família (mãe, irmã e tia, a quem Juca chama de as “três mães”) a sentir um pouco de prazer, sem pejo,
sem o olhar castrador do pai, homem correto, mas que não se permitia, nem à família, momentos de pequenos prazeres.
Porém, pelo pouco tempo decorrido, a figura do pai se fazia presente naquela família, bem como o olhar social, que poderia
reprovar a atitude da família de comemorar sem sobriedade o Natal, que se realizava ainda sob o peso do luto.
Dessa forma, Juca é a expressão da loucura, da fuga das normas, em direção à realização de um prazer fugaz.
Apoiadas nessa ideia, a de seguir um doido, um desvirtuado, como meio de não perturbá-lo mais, aderem ao desejo e se
deixam levar por ele:

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos,


num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. (p. 91)

Interessante que, nesse caso, Juca se entrega à satisfação do desejo sem pejo, sem qualquer medo, sem qualquer
interdito, ao contrário do caso de Maria e Frederico Paciência. É bem verdade que o ato de comer um peru no Natal pode
não ter a mesma dimensão “pecaminosa” de um relacionamento íntimo, como os que se anunciaram para ele. Mesmo assim,
o efeito simbólico é o mesmo, em particular no que diz respeito à projeção da felicidade. O ato de comer o peru é meio de
escapar da vida imediata, da vida cotidiana e atingir uma espécie de céu. É sair da vida prosaica, banal, para atingir o sublime:

Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a


quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão
de filhos. [...] Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se
realizando um milagre digno do Natal de um Deus. (p. 92)

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Para completar a inversão, a mudança, é o próprio Juca quem serve às suas “mães”, que começam a se deliciar, de
modo a lembrar um ritual dionisíaco, de busca do prazer, de uma satisfação quase pecaminosa. O clímax ocorre quando Juca
se lembra do pai, cuja imagem fica mais forte quando sua mãe o menciona e diz que só estava faltando ele. No entanto, caso
não faltasse essa figura castradora, certamente não estariam tendo aquele prazer. Por isso, Juca faz aos poucos desaparecer
a figura, deglute-a, por assim dizer e, mais do que isso, transforma-a. O pai estaria feliz com aquela festa, com aquela
transformação. Desse modo, o pai perde o ranço castrador. “Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma
inestortável estrelinha do céu”. O conto, escrito entre 1938 e 1942, remete o leitor à antropofagia de Macunaíma, cujos
fundamentos eram o da deglutição de determinados valores que passariam por um processo de transformação em novo
ambiente. Assim também acontece com a família de Juca, a qual se deixa levar por esse momento libertador. É como se o
louco narrador usasse de sua arte, de suas ideias inusitadas para provocar a catarse nos demais personagens e, por
extensão, no leitor.
No fim, o pai desaparece e resta apenas o peru e a consequente satisfação de tê-lo devorado. “Tempo da
Camisolinha”, por sua vez, apresenta como narrador outra pessoa, Carlos, mas, pelas indicações ao longo do conto, parece
ser a mesma pessoa dos outros três contos. Ainda mais se consideramos a descrição dos cabelos cacheados logo no início do
conto, referência idêntica à descrição feita do personagem nos outros contos. O título é uma alusão à infância do narrador,
que fora marcada porque o pai queria que ele tivesse o cabelo “de homem” e não aqueles cacheados que poderiam afeminá-
lo. O caso se presta a outras recordações, sobretudo a um resgate de um momento que colaborou para sua formação como
ser, como indivíduo. A perda dos cachos indicava o fim da primeira infância (sete ou oito anos), em direção à pré-
adolescência. Talvez por isso tenha ficado tão bravo, choroso, como se quisesse manter-se naquele estado anterior.
O segundo momento do conto se inicia com uma viagem de férias, por dois meses, a Santos, férias de gente sem
grandes recursos, como o narrador procura enfatizar, que tinha de alugar uma casa distante da praia.

A casa que papai alugara não fi cava na praia exatamente, mas numa
das ruas que a ela davam e onde uns operários trabalhavam diariamente
no alimento de um dos canais que carreavam o enxurro da cidade para
o mar do golfo. (p. 133)

Isto é, estavam próximos do canal de esgoto. O objetivo principal da viagem era para restabelecer a mãe de Carlos,
que tivera um último parto difícil e precisava descansar.
O narrador diz que o ponto positivo era ver o pai mais próximo, mais receptivo, o que normalmente não era, fosse
para manter a autoridade, fosse para não se envolver sentimentalmente com a família. Carlos diz não ter gostado do mar:
tinha medo de entrar na água. Mas gostava de brincar na areia, de estar na praia, onde um dia um pescador lhe deu três
estrelas-do-mar, dizendo que quem as possuísse teria muito sorte. Carlos estabelece então uma relação fetichista com as
estrelas, imaginando que elas lhe dariam tudo, possibilitariam o sucesso que desejasse. Tudo girava em torno das estrelas,
que, passaram a ser seu guia, sua fonte de alegria:

Que goiabada nem Mané goiabada! Eu estava era pensando nas minhas
estrelas, doido para enxergá-las. E nem bem o almoço se acabou, até
disfarcei bem, e fui correndo ver as estrelas-do-mar. (p. 137)

Mas algo veio para alterar essa relação. Um dos operários da obra ao lado, um português, resmungou que vivia um
período de má sorte, pois sua esposa era paralítica e os filhos, todos pequenos, enfrentava dificuldades financeiras. Carlos
pensou logo em suas estrelas e em como elas o tornavam feliz. Em seguida, pensou que poderia fazer algo pelo operário:
bastaria entregar-lhe uma de suas estrelas que ele seria feliz. Foi um momento doloroso ter de se desfazer de uma de suas
estrelas-do-mar, ainda mais sendo a maior.
A relação que se pode estabelecer entre esse momento e o início do conto reside exatamente na passagem de uma
fase da vida para outra. Na primeira, era uma criança para quem todos voltavam seus cuidados; perder os cabelos cacheados
indicava outro momento, representado no caso pelas descobertas, simbolizadas naquelas feitas durante a viagem a Santos
e, mais ainda, no momento de socialização da criança, que se debate entre “ajudar” ou não alguém necessitado. Embora opte
pela ajuda, por uma atitude altruísta, sofre muito pela segunda perda, no caso uma das estrelas:

Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços


no travesseiro sozinho. Mas por dentro era impossível saber o que
havia em mim, era uma luz, uma Nossa Senhora, um gosto maltratado,
cheio de desilusões claríssimas, em que eu sofria arrependido, vendo
inutilizar-se no infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do
mar. (p. 141)

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Esse sentimento é causado porque, claro, o operário não entendeu como uma estrela-do-mar poderia ajudá-lo a
resolver seus problemas. Se para Carlos ela era tudo, tinha uma utilidade, era um fetiche, para o outro não significava nada.
Além disso, no conto a idealização se confronta com a realidade. Se, nos demais contos, a felicidade está no outro (Maria ou
Frederico) ou num ato (comer o peru), aqui a felicidade está primeiro em algo que lhe pertence (os cabelos) e depois em um
objeto ganho (as estrelas). Mas acaba perdendo tanto um quanto outro, o que gera um processo de amadurecimento. Cinco
são os contos narrados em 3a pessoa (“O Ladrão”, “Primeiro de Maio”, “O Poço”, “Atrás da Catedral de Ruão” e “Nélson”). Os
três primeiros apresentam um componente social, de inspiração neorrealista, ao passo que os dois últimos têm como ponto
central questões de ordem existencial.
Tratemos um pouco sobre cada um desses contos.
“O Ladrão” é um conto desenvolvido a partir de uma crônica. O título é um pouco enganador, uma vez que, apesar de
a primeira frase ser “Pega!”, em nenhum momento fica efetivamente claro que havia um ladrão na história. O objetivo era
propriamente esse, causar um pequeno tumulto na madrugada de um bairro em São Paulo, em perseguição a um suposto
ladrão.
O grito de “Pega!” faz toda a vizinhança acordar e se espantar. À medida que um guarda e o autor do grito inicial
começam a perseguição, os moradores vão reagindo de modo diverso, desde o medo e o pânico até atingir a histeria. Apesar
disso, forma-se uma união em torno do objetivo de capturar o ladrão. Assim, mais e mais pessoas se juntam aos dois, e cada
um expressa o que teria visto ou imaginado. Um dizia que ele estaria no telhado, outro que já havia fugido do local. No
entanto, ninguém de fato vê o tal bandido.
Ainda assim, todos se mantêm atentos a alguma novidade. Em paralelo a isso, os personagens vão se conhecendo,
falando um pouco de si para os demais, as mulheres oferecem café, os homens conversam sobre futebol e outros assuntos.
No fim, pode-se dizer que toda essa movimentação serviu para quebrar a rotina em uma cidade que se industrializava, que
crescia na década de 1930, transformando a sociabilidade, o modo de as pessoas se relacionarem. Com o episódio, puderam
ver o rosto de seus vizinhos, conhecer eventuais problemas, conversar, enfim, conhecer-se:

Os perseguidores tinham bebido o café, já agora perfeitamente repostos


em suas consciências... Lhes coçava um pouco de vergonha na pele,
tinham perseguido quem?... Mas ninguém sabia, uns tinham ido atrás
dos outros levados pelos outros, seria ladrão?... (p. 42)

No conto “Primeiro de Maio”, há, como o título indica, uma tematização da questão trabalhista e democrática. O
conto foi escrito em 1934 e revisto em 1942, auge do Estado Novo, época marcada pela repressão do governo Getúlio
Vargas. O personagem principal é identificado apenas por um número, o 35, que remete o leitor a dois aspectos: a Intentona
Comunista abafada pelo governo em 1935 e também uma referência à ideia de que o trabalhador seria visto como um
número, excluindo-se dele sua humanidade. Pois bem! Esse 35 perambula pelas ruas do centro de São Paulo em
comemoração ao dia do Trabalhador, ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre repressões que os trabalhadores sofriam
em outras cidades, como em Santiago, Madri, Paris etc. Seu grande sonho é que o trabalhador possa ter um dia o que
comemorar, ser respeitado em seus direitos, bem como viver em um país com ampla liberdade, democrático. Desse modo,
sua classe poderia comemorar a data sem nenhum tipo de repressão:

Esses movimentos coletivos de recusa acordaram a covardia de 35.


Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar
unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles
companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra... pra
celebrar? pra... O 35 não sabia mais pra quê. (p. 50)

“O Poço”, por sua vez, conta a história em que se opõem um rico fazendeiro, Joaquim Prestes, homem já de idade,
responsável por trazer novidades à região de Mogi, como o cultivo de mel e o automóvel. Ele também mandara construir um
pesqueiro no terreno e contratara trabalhadores para cavar o poço do tal pesqueiro. O conto faz claramente uma crítica
social, uma vez que demonstra a posição impassível do fazendeiro para atingir seus projetos, em claro detrimento do bem-
estar dos empregados, que precisam trabalhar além do que poderiam aguentar para dar conta do prazo estabelecido. E
ainda precisavam suportar o frio durante as madrugadas:

O frio estava por demais. O café queimando, servido pela mulher do


vigia, não reconfortava nada, a umidade corroia os ossos. O ar sombrio
fechava os corações. (p. 77)

O clímax do conto ocorre quando Joaquim Prestes vistoria a obra para decidir se aceita interromper a obra por uns
dias, até o frio e a umidade passarem, e deixa cair sua caneta preferida, uma caneta-tinteiro. Exige então, de modo tirano,
que os empregados peguem a caneta no poço escuro, sob perigo de desmoronamento. Albino, um empregado raquítico e
doente, por ter o corpo mais franzino desce para tentar encontrar a caneta no poço. Trabalharam o dia todo, em busca da
caneta, sem sucesso. Albino, todo enlameado, saiu do poço para descansar:

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O rapaz estava que era um monstro de lama. Pulou na terra firme e


tropeçou três passos, meio tonto. (p. 81)
Apesar disso, o fazendeiro não queria corpo mole, queria que continuassem a descer. Em um acesso de raiva, porém,
José, irmão de Albino, revoltou-se e disse que ninguém mais desceria. Instala-se o impasse. Tal episódio ilustra bem o clima
de disputa entre patrões e empregados em um contexto de pouca liberdade e de poucos direitos à parte mais fraca.
José impediu que Albino descesse novamente e disse que iriam embora daquele trabalho. Joaquim concordou e
dispensou a ambos, não sem antes dizer a José que ele não poderia agir assim diante de um patrão, senhor de seus
empregados...
Dois dias depois, os empregados conseguiram tirar a caneta do poço e devolvê-la a Joaquim, que, sozinho, ao tentar
usá-la, viu que estava estragada. Então:

Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu.
Havia nela várias lapiseiras e três canetas tinteiro. Uma era de ouro.
(p. 88)

Esse final diz tudo. Por um capricho, arriscara a vida de seus empregados, que, alienados, tiveram de cumprir uma
ordem sem poder efetivamente contestá-la. Quem o fez, teve de deixar o emprego.
O caso de “Atrás da Catedral de Ruão” é mais de ordem sexual. Trata-se da história de uma professora de Francês,
solteira, com quarenta anos, que faz de tudo para reprimir seus impulsos sexuais. Na primeira parte do conto, ela está dando
aulas de Francês para duas irmãs adolescentes, ricas e que já haviam ido à França. Ela fora uma vez, com muito custo e à
base de economia.
O pai das meninas era muito ausente, sempre viajando. Conforme fica sugerido, teria amantes, até que vem a
abandonar a família.
A conversa e a aula entre elas são repletas de subentendidos, de reticências e de reprimendas. Enquanto estimula o
desenvolvimento das meninas, ela própria procura se reprimir:

E Mademoiselle, sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas crespas,


caíra naquele mundo mágico de anseios que era o das duas adolescentes,
como conversaram! Como viajaram e viveram experiências desejadas,
aqueles primeiros dias! Mademoissele soltava petits cris excitadíssima,
pedindo mais detalhes... (p. 57-58)

O ápice de narrativa se dá quando as meninas contam sobre um estupro ocorrido atrás da catedral de Rouen, na
França, praticado por um homem barbudo. Conforme o narrador, não se sabe se a história seria real ou inventada pelas
meninas. O fato é que isso estimulara a imaginação da professora, que se mostrava preocupada e, digamos, meio
esperançosa de que isso lhe pudesse ocorrer também:

A catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o tudo que


contava a catedral. (p. 60)

Quando voltava para casa de bonde, desce no ponto errado, o que a obriga andar um pouco e a passar atrás de uma
igreja. Em seu inconsciente, ela estaria sendo perseguida por dois homens e imagina-se atacada por eles. Na verdade, eram
dois homens que apenas passavam por ela, sem nenhuma intenção de agredi-la sexualmente.
Ela fica preocupada e aperta o passo; entretanto, os sujeitos conversavam despreocupadamente, sem se importar
com ela. Tudo não passava de delírio. Delírio que já começara antes mesmo desse episódio, quando imagina o que poderia se
passar atrás de uma catedral, atrás de uma igreja. Um misto de coisa proibida e desejada:

Não vê igreja solta, que não lhe brote a fatalidade de passar por detrás.
(p. 66)

Na ocasião em que desce no ponto errado, começa a imaginar o que poderia lhe acontecer, tenta disfarçar e afastar-
se de qualquer homem, sobretudo os com barba, ao mesmo tempo em que fica procurando. O misto de proibição e liberação
se acentua em sua mente, a ponto de imaginar-se sendo pega por trás, pelo pescoço.
Ao final do conto, já diante da pensão onde morava, quando os homens que supostamente a perseguiam passam por
ela, Mademoiselle, a professora, dirige-lhes a palavra, agradecendo pela “companhia”... Os tais homens, obviamente, não
entendem o motivo da fala, e ela “subiu as escadas correndo, foi chorar”.
O choro, no caso, representa tanto a decepção por ter sido apenas uma fantasia quanto a vergonha de seus desejos,
refreados pela sua consciência puritana, por força das circunstâncias.
Como o conto é sobre uma professora de Francês, há uma série de expressões em francês, mas que não chegam

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efetivamente a atrapalhar a compreensão do texto porque, em seguida, tais termos são traduzidos pelo contexto, o que
facilita o entendimento da leitura.
O último conto presente no livro é “Nélson”, em que se narra a história de um possível mistério. No caso, alguns
rapazes tentam decifrar o mistério de um homem que bebe sozinho em um bar. Cada um expõe sua visão acerca dele, que
percebe ser alvo dos comentários diversos. A técnica narrativa, que podemos classificar de cubista, consiste em construir
um enredo a partir de perspectivas variadas. Em outros termos, uma visão única, totalitária, é substituída por visões
fragmentadas.
Das diversas visões, o leitor fica sabendo que ele fora apaixonado por uma paraguaia. Após saber mais sobre a
Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, ela o abandona sob a alegação de que o Brasil teria massacrado seu país
nessa ocasião. Outro diz que o tal homem teria participado da Coluna Prestes, movimento armado ocorrido entre 1925 e
1927 que queria reformar o país, minando as estruturas da chamada república Velha (1894-1930). O problema é que não se
tem certeza se ele teria lutado contra ou a favor da Coluna, quando teria também machucado o braço, atacado por piranhas,
quando se escondia de um ataque inimigo:

– Eu não sei bem... tudo no detalhe. Como o Alfredo, eu não sei... Foi
na Coluna Prestes... nem tenho certeza se ele estava com o exército ou
com os revolucionários. Devia ser com estes porque ele era rapaz, se vê
que não tem trinta anos. (p. 119)

Importante lembrar que o conto foi escrito em 1943, portanto o episódio narrado deve ter se dado na década de 30,
por volta de 1935. Por isso, a suposição de idade feita pelos rapazes.
A partir dessas suposições, cada qual procura determinar a explicação mais plausível, mais verossímil, isto é, mais
digna de verdade:

– Pois ele gostava tanto da paraguaia que acabou cedendo, imaginando


que aquilo havia de passar... (p. 124)

E adiante:

– Foi por causa da Guerra do Paraguai... O homem fi cou feito doido...


(p. 125)

Nelson, o tal homem alvo dos comentários, já havia percebido que falavam dele. Esperou um pouco mais, até que
resolveu ir embora. Sua partida não é isenta de mistério:

E foi saindo muito rápido, escorraçado, sem olhar ninguém, sem esperar
resposta nem troco. Era incontestável que fugia. (p. 127)

Do lado de fora, o mistério continua, e ele se sente perseguido. Faz de tudo para despistar a todos, até que consegue.
O conto finaliza como começou, isto é, sem uma explicação reveladora do que de fato se passara com Nelson, qual
das histórias seria a verdadeira. E talvez não seja mesmo o objetivo, o que permite ao leitor também contribuir para
determinar o que seria a verdade do conto. Talvez o objetivo fosse mesmo apontar para a situação existencial humana no
novo e moderno tempo nacional: todos nos tornamos desconhecidos, um mistério antes para nós mesmos. O final é
metafórico em relação a isso:

Num momento, se dirigiu quase num pulo para a porta, abriu-a, deslizou
pela abertura, fechou a porta atrás de si, dando três voltas à chave. (p.
129)

Esse conto era um dos que Mário de Andrade ainda pretendia rever. Apesar de não ter podido fazê-lo, a ideia está
pronta e é sugestivo que o leitor também é convidado a tomar parte no mistério, não apenas desse conto em particular, mas
igualmente dos outros.
Cabe ao leitor, pois, completar as lacunas e determinar significados possíveis.

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ATIVIDADES
01. (CEFET-PR) Sobre Contos Novos é CORRETO afirmar:
(A) O humor, tema caro ao Mário de Andrade da primeira fase modernista, está colocado em segundo plano nesse livro, e
aparece, agora, em pouquíssimas passagens dos contos, confirmando a maturidade estética do autor. (B) Os contos são
introspectivos, ou seja, o narrador muitas vezes procura apreender o que se passa no inconsciente
dos personagens, o que faz com que esse livro se inscreva numa tradição de narrativa que remonta ao fim do século XIX,
especialmente com Machado de Assis.
(C) O conto “O Ladrão” procura refletir sobre o cotidiano violento de moradores de um bairro da alta classe média paulista,
assustados estes que estão pela constante ameaça ao seu patrimônio material.
(D) A linguagem utilizada nas narrativas desse livro é profundamente hermética, dificultando o seu entendimento,
principalmente por causa da falta flagrante de marcas da oralidade, tão comuns no Mário de Andrade dos livros
anteriores.
(E) A pontuação utilizada pelo autor é bastante tradicional, mesmo quando ele reproduz diálogos entre personagens que
vivem momentos de descontração do cotidiano, expediente formal que comprova o retorno de Mário de Andrade aos
moldes clássicos de narrativa utilizados desde o Romantismo no Brasil.

02. (UEL) Sobre Contos novos, de Mário de Andrade, é correto afirmar que esse livro:

(A) representa obra da fase madura do autor, desligando-se dos ideais estéticos modernistas de 22 e retomando atitudes
românticas.
(B) representa uma evolução da prosa de ficção realista e crítica, assemelhando-se ao regionalismo do romance de 30,
inclusive no âmbito temático.
(C) reúne intimismo e crítica social, firmando-se como uma obra de caráter reflexivo do modernismo e discutindo diversos
preconceitos, como a homossexualidade e o tabu da morte no âmbito familiar.
(D) recorre, em diversos textos, à personagem Juca, que, ora como narrador, ora como personagem, se constitui na defesa
do presente e no desprezo pelo passado.
(E) contraria um traço expressivo da obra poética do autor, ao repudiar a oralidade valorizada nos poemas da primeira
geração modernista.

03. (Ucs) Leia os fragmentos do conto “Primeiro de Maio”, do livro Contos Novos, de Mário de Andrade.

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até
alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar. (p. 35)

(...) Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com
ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver. (p. 41)
(ANDRADE, Mário. Contos novos. 17. ed. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Itatiaia, 1999.)

Em relação a essa narrativa, considere as seguintes afirmações.


I - No início do conto, o 35 está eufórico porque é Primeiro de Maio e ele organizará uma grande festa em homenagem aos
trabalhadores.
II - O protagonista, ao longo da narrativa, vai se decepcionando e retorna para casa cansado, sem voltar ao trabalho. III - No
fragmento em questão, a mudança no registro ortográfico da expressão primeiro de maio sugere uma modificação da
personagem principal em relação a seu sentimento sobre essa data.

Das afirmativas acima, pode-se dizer que


(A) apenas I está correta.
(B) apenas III está correta.
(C) apenas II e III estão corretas.
(D) apenas I e III estão corretas.
(E) I, II e III estão corretas.

04. (Ufg) Nos contos "Vestida de preto" e "Frederico Paciência", do livro "Contos novos", de Mário de Andrade, os
narradores-protagonistas ensaiam formas diversas de afetividade. Com base na leitura dos textos, responda:

(A) Que tipo de sentimento prevalece em cada conto?


(B) Dado o distanciamento temporal dos acontecimentos vivenciados pelos narradores, que avaliação das experiências
amorosas eles apresentam em cada conto?

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05. (Ufg) Nos contos "Vestida de preto", "O peru de natal", "Frederico Paciência" e "Tempo da camisolinha", do livro "Contos
novos", de Mário de Andrade, o aspecto nuclear que os aproxima é
(A) o recurso à introspecção.
(B) a temática da religiosidade.
(C) o tempo da vida escolar.
(D) a ação de ritmo linear.
(E) o apelo à evasão.

06. (Ufpr) Sobre "Contos Novos", de Mário de Andrade, é correto afirmar:


01) O personagem Juca, narrando em mais de um conto diferentes acontecimentos e fases de sua vida, permite que o leitor
testemunhe a construção de uma personalidade, dos devaneios infantis às amizades e amores. 02) A presença de um mesmo
personagem em mais de um conto do livro de Mário de Andrade tem a mesma função que tem a recorrência de personagens
nos contos de "Em Busca de Curitiba Perdida", de Dalton Trevisan. 04) Um traço comum entre os textos de "Contos Novos"
é a revelação de aspectos mais delicados da vida, sentimentos normalmente solapados pela rotina ou por certa hostilidade
ou formalidade presentes nas relações sociais. 08) Em alguns dos contos do livro, como "O Poço" e "Primeiro de Maio", as
relações de trabalho são representadas de forma a colocar em evidência as desigualdades e as injustiças impostas pelo
poder.
16) A linguagem convencional na qual são escritos estes contos da maturidade de Mário de Andrade indica que ele se
afastara bastante das propostas do Modernismo e assumira a preferência por uma literatura clássica, a mesma que anos
antes ele havia combatido com tanto entusiasmo.
32) Em "Tempo da Camisolinha", o narrador adulto lembra-se de si mesmo quando criança, criando uma convivência das
vozes do menino e do adulto que amplifica a compreensão das diferenças sociais e individuais e mostra que a sensibilidade
infantil também pode perceber "o infinito dos sofrimentos humanos".

06 - 45
05 - A
OU conformismo OU recalque.
OU amadurecimento. "Frederico Paciência": a experiência amorosa da adolescência se transforma em: esquecimento OU afastamento 04 -
B - "Vestida de preto": a experiência amorosa da infância se transforma em: sensações eróticas OU idealização amorosa (homoerotismo).
04 - A - Amor entre homem mulher/ amor /sentimento heterossexual. Amor entre homem e homem/amor homossexual 03 - B
02 - C
01 - B
Respostas

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QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA


CAROLINA MARIA DE JESUS

Quarto de despejo foi o primeiro livro de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Publicado em 1960, a autora teria
ainda outros nove livros publicados. Esse primeiro foi escrito como diário no período em que viveu na favela do Canindé em
São Paulo. Tal favela, que ficava às margens do rio Tietê, próximo da rodoviária do Tietê e onde hoje fica o estádio da
Portuguesa de Desportos, passou por uma verticalização promovida pela prefeitura de São Paulo, nos anos 90, por meio do
projeto Cingapura.
O livro teve sucesso imediato. Tendo sido traduzido para 15 idiomas, vendeu à época dez mil exemplares e nos anos
seguintes cerca de oitenta mil, número bem expressivo considerando as tiragens de obras literárias no Brasil. O objetivo
original da autora era registrar o que acontecia com ela e com os moradores da favela do Canindé, uma espécie de stories
daquele momento. Ao longo, porém, das páginas, a autora não esconde que sua intenção última é publicar e conta com a
ajuda de um jornalista que a descobriu, Audálio Dantas. Ela chegou a enviar os originais para a revista Reader’s Digest nos
EUA, mas houve recusa. De qualquer modo, em 1960 publicou seu livro no Brasil, a partir de uma reportagem dada à
importante revista O Cruzeiro.
A primeira parte do diário foi escrita entre 15 e 28 de julho de 1955 e a sequência entre 02 de maio de 1958 e 31 de
dezembro de 1959. Esse lapso de tempo se deu porque, após começar a escrever, imaginou que poderia não ser algo
realmente útil a ela. Vencida essa dúvida, retoma o diário em 1958 e o escreve por um ano e meio até publicá-lo.
O texto se revela um pouco repetitivo pelos acontecimentos serem um tanto semelhantes, porém o livro apresenta
uma série de qualidades como a escrita espontânea, com elementos de oralidade, que dialogam com características do texto
escrito. Além disso, Carolina conseguiu imprimir um estilo próprio, de grande sensibilidade e poder de síntese.
Trata-se, pois, do depoimento de uma mulher negra, pobre, batalhadora, com três filhos pequenos e de pais
diferentes, que ilustra bem o que pessoas nas mesmas condições que ela (ou até piores) passam. É o olhar da pobreza, do
ponto de vista de quem é pobre, de dentro para fora, o que inclui sua visão sobre a política, os políticos e os que têm uma
moradia digna. Em outros termos, não é o olhar de quem tem vida digna, confortável para entender como vivem os
favelados. É, antes, o discurso do favelado propriamente dito.
Tendo nascida em Minas Gerais, era filha de um homem casado. Foi alfabetizada e adquiriu o hábito de leitura,
exercido como meio de imaginar mundos diferentes, melhores do que a realidade que vivia. Com a morte da mãe, mudou-se
para São Paulo com 23 anos. Como foi trabalhar na casa de um médico, ele permitia que ela lesse os livros de sua biblioteca,
razão pela qual adquiriu uma cultura livresca, o que é visível no diário.
Seus filhos, José Carlos, João José e Vera Eunice, nasceram quando já morava na favela do Canindé, respectivamente
em 1948, 1949 e 1953. Ela nunca se casou com nenhum dos pais das crianças, pois não queria se submeter ao mando de um
homem.
Inicia seu relato quando Vera estaria fazendo aniversário e ela afirma que não conseguiria comprar um calçado novo
para a menina, por isso teve de procurar um no lixo para reformá-lo.
Em resumo, o que o leitor encontra no livro são relatos das brigas entre os vizinhos, das brigas entre casais (não
necessariamente casados), da percepção de Carolina quanto à política, aos políticos, de sua percepção quanto aos que fazem
uso do álcool, bem como da vida em geral. O relato é comovente em muitos momentos, como as vezes em que pensa no
suicídio devido à constante fome que passa e à tristeza de verem seus filhos passarem fome e necessidades básicas, além de
algumas frases lapidares.
Tratemos desses pontos. Faremos a transcrição de alguns trechos, tal e qual aparece no texto. Isso significa que são
verificáveis erros ortográficos, gramaticais em geral. Porém, ao mesmo tempo, a autora, por conta de sua cultura livresca, é
capaz de usar termos eruditos (como esquife no lugar de caixão) e a ênclise em diversos momentos (disse me, observou-a).
Para facilitar a compreensão, uma vez que o livro não apresenta um enredo tradicional, com começo, meio e fim, por
se tratar de um diário, vamos dar destaque e analisar os assuntos mais relevantes do livro.

Livros e o processo de escrita

O primeiro desses temas ou assuntos é a relação da autora com a literatura. Ante sua condição de órfã, sem muitos
estudos, tendo de criar três filhos sozinha em ambiente um tanto hostil e insalubre, sem nem sempre ter o que de comer
para seus filhos, Carolina via na leitura e, principalmente, na escrita um meio para escapar da realidade e fantasiar, além de
lhe dar perspectivas de uma vida melhor, mais digna (como de fato veio a acontecer).
Para ela, o livro seria a melhor invenção do homem. Em diversos momentos, usa o universo livresco como metáfora
para explicar a vida. Como em 28 de maio, quando diz que só dá para saber como será o que um livro encerra quando se
chega a seu final. A vida pode ser ruim num momento e bom no outro. No caso dela, até então teve muitas dificuldades,
sobretudo por ser preta, mulher e pobre.
Por isso, seu intento é escrever para imaginar um mundo melhor, viver num castelo dourado. Ao mesmo tempo,

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porém, que procura relatar o que vê na favela e no seu entorno. Em diversos momentos, diz que tem de parar de escrever ou
por estar cansada ou por haver alguma briga ou barulho excessivo praticado pelos vizinhos. Normalmente, tal barulho era
provocado por brigas entre casais. E, em diversas situações, Carolina relata que as mulheres saiam correndo nuas ou
seminuas pela favela, fugindo dos respectivos companheiros que queriam bater nelas.
Mesmo sem uma formação sólida, ela percebe que o jogo do discurso literário, que está entre a realidade e a fantasia. Como
exemplo, podemos dar destaque a dois momentos em que faz reflexões teóricas sobre a literatura. No primeiro, ao citar o
poeta romântico Casimiro de Abreu (1839-1860), por ele ter exaltado a infância como momento mais feliz da vida, Carolina,
observando a situação de seus filhos, sobretudo o mais velho, José Carlos, que já vinha enfrentando problemas com a polícia
e o juizado de menores, desconstrói a imagem da vida infantil como bela. Tal imagem está sintetizada no famoso poema de
Casimiro de Abreu, “Meus oitos anos”, em cujo início se lê o seguinte:

Oh! que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias


De despontar da existência! [...]

Carolina, ao contrário, vendo o choro dos filhos motivado por fome, conclui que “a vida é amarga”. Como se sabe, a
visão romântica é idealizada, contrapondo-se, pois, a uma visão mais realista. Se tomarmos por base toda a história da
literatura, perceberemos que, em um determinado período, predomina a idealização (Classicismo, Arcadismo, Romantismo),
em outros o realismo (Realismo, pré-modernismo, Romance de 30). A autora, certamente, não estava preocupada em
pertencer a essa ou àquela corrente literária; no entanto, sua frase é lapidar quanto a uma teorização da literatura. Ela diz
que mesmo escrevendo verdades, por serem duras, alguém pode não acreditar em seu relato.
Interessante que Audálio Dantas, em prefácio a uma edição do livro, chama atenção para o fato de muitos terem
duvidado da autenticidade da obra, que Carolina não seria a verdadeira autora, por ser semianalfabeta. Fato é que no dia 08
de junho, soube o que o livro seria editado e que haveria uma reportagem no Cruzeiro, o que aconteceu logo no dia 10 do
mesmo mês.
Em outro momento, há essa reflexão, ainda que de base popular, entre uma visão realista e outra idealista. No caso,
um sapateiro lhe pergunta se o livro dela seria comunista, ao que ela responde ser realista. O sapateiro, em sua simplicidade,
diz que nem sempre é bom falar a verdade, revelar a realidade tal como ela é.
Isso porque, escrever a realidade pode significar uma afronta política, mas pode ser também meio de colocar-se
diante do espelho, ver a si mesmo, sem idealismos, sem sonhos ou fantasias. Ambas as visões aparecem alternando se, pois,
ao mesmo tempo que quer relatar a verdade, a realidade, considera que tudo seria melhor nos sonhos e na escrita, na
literatura. Por fim, porém, sabe que a escrita é meio de denúncia da opressão e do preconceito. E isso só se consegue
expressando a realidade, não escamoteando-a.

Trabalho e sua condição de mulher

Há, no livro, considerações em torno da condição da mulher. Se o tema tem ganhado em importância, sobretudo no
século XXI, com buscas pela igualdade dos direitos. Apenas como lembrança, o voto feminino passou a ser um direito
nacional a partir de 1934, com a Constituição daquele ano. Mesmo assim, como algumas ressalvas. Mulheres casadas
precisavam da autorização formal do seu marido para votarem. Carolina destaca em seu diário que tirou seu primeiro título
de eleitor em 1958, já que as solteiras precisavam comprovar renda.
No contexto do diário, os direitos das mulheres eram bem menores em comparação ao que se tem agora (ainda que o
machismo estrutural esteja fortemente presente). Não por acaso, Carolina sempre se refere ao fato que gostaria de ser
homem, exatamente para ter uma vida mais livre e ser mais respeitada. Segundo o que lia em livros de História, eram apenas
os homens que faziam as coisas, que defendiam a pátria ou coisa parecida. Então, o melhor seria ter nascido homem,
considerando tal perspectiva.
Relata que, ainda criança, fala para sua mãe que gostaria de ter nascido homem. A mãe fala a ela que procure o arco-
íris, pois, segundo a lenda, para mudar de sexo bastaria passar por baixo de um. Carolina afirma que até foi atrás de um, mas
na sua ingenuidade infantil, percebe que ele sempre “foge” dela por ser pobre. Evidente que ao lado da ingenuidade, há já
uma percepção de que ser mulher, pobre e preta no Brasil seriam características que demandariam dela uma força maior
para atingir seus objetivos. E foi exatamente com base nessas características que construiu a linha discursiva do narrado.

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Com essa consciência, preferiu não se prender a homens. Ela cita o caso do senhor Manuel, que gostaria de se casar
com ela. Carolina, porém, por já estar na maturidade e ser escritora, preferia permanecer sozinha. Certamente, um homem
começaria a dar ordens para ela, além de impedi-la de escrever, de viver a própria vida.
Esse episódio é revelador da condição feminina da qual era queria escapar. A leitura não era prática valorizada,
mesmo porque era preciso antes conseguir dinheiro ou, no caso, servir ao marido, ao homem com quem se convivia. Ao fazer
sua escolha, Carolina revela ser bem consciente do que pretende para a própria vida. Em um dia dos pais, chega a escrever
que considera tal dia chato, talvez pela ausência dos pais de seus filhos, mas também porque ela própria não teve o carinho
paterno.

Racismo
Por isso, alinhado à temática da condição da mulher, há a temática do racismo, da percepção da autora sobre o
assunto, tendo em vista que ela sofria da prática sobretudo quando deixava a favela. Para além disso, faz uma série de
reflexões que dão bem a medida de sua linha discursiva.
Por exemplo em 13 de maio de 1958, escreve que a nova escravidão era a fome a que eram submetidas as pessoas
pobres, normalmente pretas. Ela até pede a Deus que ilumine os brancos para que a vida do preto seja mais feliz. Em outro
momento, fala algo semelhante, dizendo que agora a escravidão é a pobreza, a fome. O preto, pobre estaria condenado à
escravidão tendo como senhora a fome. E, com efeito, em diferentes momentos refere-se à fome, mas trataremos do tema a
seguir.
Se a mulher deveria ser tratada dignamente, o mesmo deveria se dar com as pessoas negras, mesmo porque não
haveria diferentes efetivas em um negro e um branco, quando muito de aparência. De qualquer modo, Carolina busca ver
algumas compensações, além de afirmar seu orgulho por ser preta. Ora, não haveria diferenças entre uma pessoa branca ou
preta bêbada; as doenças eram comuns a todos também. Assim, a suposta superioridade do branco seria uma mentira. Em
seguida, revela seu orgulho, ao dizer que o cabelo do preto seria mais obediente que o do branco, ou seja, afirma que que seu
cabelo é bonito, até por isso, se existisse reencarnação gostaria de sempre nascer preta.
Apesar desse orgulho, sabe que sua condição pode ser impeditiva para simplesmente comprar mantimentos. Em
dado momento, relata que fora ao açougue comprar algo, pediu diferentes tipos de carne, mas sempre ouvia a negativa de
que tal produto estaria em falta. Ao sair, ouviu uma mulher branca pedir a mesma coisa que ela e ser atendida. O que a leva a
se perguntar se o dinheiro do favelado não teria o mesmo valor, por isso, em seu diário, xinga a caixa do Açougue Bom
Jardim, dando destaque a esse episódio como meio de se afirmar, de revelar o próprio valor perante a sociedade.
Também percebe que o racismo, o preconceito pode atingir qualquer grupo social: ciganos, judeus. Ela se refere
algumas vezes aos ciganos que vez ou outra acampavam próximo à favela e como quase foi seduzida por um. No caso dos
judeus, praticamente não aparecem no relato, mesmo assim, Carolina chega à seguinte conclusão: “O preto é perseguido
porque a sua pele é da cor da noite. E o judeu porque é inteligente”. Ainda que discutível a afirmação, fato é que ela sabe bem
o que significa sofrer preconceitos.

Fome e pobreza

Na maior parte do narrado, refere-se aos efeitos da pobreza: fome, ter de pedir esmolas eventualmente, como ir ao
frigorífico atrás de algum produto, como salsicha ou ossos, que seria descartado, o não ter dinheiro para comprar coisas
básicas para seus filhos, a necessidade do contínuo trabalho de catadora de papel para revender.
No entanto, São Paulo é uma cidade em que chove bastante e, em diversos momentos, diz não poder ter ido
trabalhar por conta da chuva. Com isso, o dinheiro que já é pouco desaparece de vez.
Revela que cata papel por necessidade, não por gostar do trabalho. E, enquanto trabalha, imagina algo melhor para
sua vida. Dessas reflexões, conclui que somente um presidente que tiver passado fome, dificuldades como ela, poderia criar
políticas públicas para diminuir ou até acabar com a fome das pessoas pobres, como ela. Um rico não teria a empatia
necessária para entender tal necessidade. É como uma pessoa que não sofre racismo, imaginar que racismo pode ser algo da
imaginação ou descupas.
Não por acaso, pensa em suicídio algumas vezes, dizendo estar cansada de viver, de passar fome. Em outro momento,
reclama da inflação, que deixava os pobres mais pobres ainda.
O diário compreende o período do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), conhecido por seu
desenvolvimentismo. O preço acabou sendo alto, pois houve aumento do déficit público e da inflação. Por exemplo, no
primeiro ano do governo a inflação estava em 24,55% e, em 1959, 39,4% 1. Todo esse alto custo repercute no livro, em que
Carolina faz críticas ao governo, antropomorfizando o arroz e o feijão. Chama o conhecido prato de amigos dos pobres, mas
que agora os estaria desprezando devido ao aumento do preço. A solução seria comer fubá, que continuava amigo dos
pobres, ainda que os filhos dela não gostassem de comer fubá.
Tratemos, pois, desse outro tópico.

1
SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 427.

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Política e políticos

O governo Kubitschek prometia entregar 50 anos em 5, com investimentos nas mais diversas áreas, sobretudo as
viárias, bem como a construção de Brasília, inaugurada em 1960. Sua eleição não foi unânime, teve 36% dos votos, e, talvez
por isso, Carolina é uma das que não demonstram muita confiança no governo, mesmo que em dado momento afirme ter fé
em Kubitschek. Mesmo porque, ainda que um governo faça grandes obras, a tendência é observamos o nosso entorno, nossa
vida. No caso dos moradores da favela do Canindé, certamente esse desenvolvimento não alterou em nada a vida deles, nem
particularmente o de Carolina, que sempre reclama que os políticos apareciam lá apenas à época das eleições.
Em outro modo, afirma não gostar de Kubitscheck, o que é normal. Admiramos esse ou aquele político conforme o
momento do governo. Ora podemos considerar o presidente como alguém capacitado, ora como incompetente.
Interessante que ela diz que o sobrenome de Juscelino todos saberiam pronunciar, mas escrever era mais complicado.
A crítica não se restringe ao governo federal, mas às outras esferas de poder igualmente. Por exemplo, diz que o
palácio do governo paulista seria uma espécie de sala de visita; a prefeitura a sala de jantar; ao passo que a favela o lixão da
cidade.
Lixo, no caso, significa latas de salsicha vencida deixada nas imediações para os pobres da favela, além de melancia e
outros produtos já estragados ou vencidos.

25 de dezembro... O João entrou dizendo que estava com dor de


barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia deturpada. Hoje
jogaram um caminhão de melancia perto do rio.
Não sei porque é que estes comerciantes inconscientes vem jogar seus
produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e
comer.
... Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo
com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar
da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido
pela fé. E nós, pela fome!
Naquela época, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de comer.

Refere-se ao fato de ter conseguido tirar o seu título de eleitor, porém se muita animação, pois supunha que seu voto
pouco poderia mudar a ordem das coisas. No contexto em que vive, a morte de Getúlio Vargas em 1954, as dificuldades que
Juscelino Kubitschek teve para assumir a presidência, todo o clima de incerteza dos anos 50, prenúncio do que viria a
acontecer na década seguinte, tudo isso a descrer da democracia, não como um sentimento que consideraria melhor uma
ditadura. Para ela, o sistema de governo pouco importava, afinal a vida dela, como a dos demais moradores da favela,
continuaria igual.

Religião e Igrejas

Nesse contexto, o trabalho realizado por religiosos acaba sendo um alento para os moradores. Carolina relata alguns
momentos a presença tanto da Igreja Católica, quanto das evangélicas (à época se utilizava o termo crente, para diferenciar
dos católicos).
O objetivo de ambas as igrejas é o mesmo: cuidar do corpo, com trabalho assistencialista, e da moral dos moradores,
uma vez que muitos se entregavam à bebida, a práticas libidinosas, a prática de crimes. Meninas de 12 anos ou um pouco
mais que já viam na prostituição um caminho para se sustentarem. Porém, há o espaço também para a piada. Numa ocasião
em que pregava sobre o nascimento de Jesus, quando recebera a visita de três reis magos, um padre pergunta às crianças os
nomes dos reis. Para ajudar, disse que um se chamava Baltasar, ao que ouviu uma criança responder que o outro só poderia
se chamar Pelé. Como se sabe, Edson Arantes do Nascimento apareceu para o mundo na Copa de 1958, quando a seleção
brasileira de futebol obteve seu primeiro título. Pelé tinha apenas 17 anos e já jogava no Santos. Baltazar, que fora
convocado para a seleção também, era jogador do Corinthians. E é nesse contexto que faz sentido a piada da criança.
De qualquer modo, para Carolina, o trabalho das igrejas é válido, serve como alívio das dificuldades e mesmo
proteção. Apenas a título de exemplo, uma percepção sobre o trabalho dos vicentinos, grupo de leigos voluntários católicos
que se prestam à caridade, ela relata a morte de uma senhora, D. Maria José, a cujo velório muitos teriam comparecido.
Especialmente o vicentino que cuidava dela. Carolina destaca que esse vicentino (um leigo católico) não demonstrava
qualquer nojo ou sentimento negativo em relação aos favelados. Na verdade, seria muito prestativo e ajudara bastante D.
Maria.
Ela chega a contrapor o trabalho da Igreja ao que deveria fazer o governo, por meio dos assistentes sociais.

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Álcool e brigas

Carolina não fala apenas sobre sua vida e a de seus filhos. Ela traça um perfil de muitos moradores. Alguns chegam a
questioná-la sobre o que estaria escrevendo a respeito deles. Pelo que está relatado, nunca respondeu explicitamente.
Porém, o leitor pode acompanhar a vida de diversos moradores, ainda que ela não individualize totalmente. Até cita nomes,
mas não se prende a falar especificamente de todos. Muitas vezes, é apenas uma ou duas referências. Reconhece, porém,
que seu diário teria o potencial para magoar algumas pessoas que ela conhecia.
Os pontos para os quais dá maior destaque são as brigas entre marido e mulher, entre vizinhos. Os pequenos roubos
no local, a prostituição.
Faz considerações moralistas sobre algumas pessoas. Por exemplo, reclama que mulheres casadas traem os maridos,
de mulheres que saem nuas pela favela, fazendo a alegria dos homens, ao mesmo que se indigna por conta das crianças.
Igualmente, fala de maridos que traem suas esposas ou se entregam à preguiça, à bebida, criando mais dificuldades ainda
para a sobrevivência das respectivas famílias.
Para Carolina, talvez o ambiente degradado rebaixe as pessoas também. Retomando-se o naturalismo literário
(1880-1902), à época partia-se do princípio de que o meio social influenciaria as ações dos personagens. Ainda que haja uma
relação, o problema dessa teoria estava no determinismo, como se não se pudesse fugir a essa determinação. Carolina, em
sua leitura da realidade, revela pensamento semelhante, ainda que não fundamenta em ciência, como faziam os escritores
naturalistas.
Por exemplo, destaca que muitos que chegam parecem aprazíveis, educados, ordeiros. Mas, uma vez integrados ao
meio social, passam a usar termos de baixo calão. Em sua análise, ao invés de uma possível evolução, essas atitudes revelam
certas atitudes primitivas, de busca de sobrevivência. Em uma metáfora, afirma que são diamantes transformados em
chumbos.
A causa principal para isso seria a fome, que, também na esteira no pensamento naturalista, rebaixaria o ser humano
a um simples animal em que os instintos pela sobrevivência substituiriam a razão e a piedade. Ainda que não seja totalmente
impossível, também é possível ver na própria figura da narradora a manutenção de valores definidoras de sua humanidade,
como a empatia.
De tudo, vê o consumo excessivo de álcool como a principal causa das brigas e de decadência físico-moral dos
moradores. Em 27 de junho, por exemplo, chama a atenção para o caso de Leila, uma mulher que tinha duas filhas e que
estaria embriagada ao ponto de precisar ser carregada. Carolina considera tal atitude como deplorável, ainda mais por ser
uma mãe, que, ao invés de cuidar das filhas, estaria dando mau exemplo a elas.
Em diversos outros momentos, faz relatos semelhantes. Em um deles, faz uma classificação do modo de ser do preto
que pode ser perder devido à bebida. Haveria, segundo sua classificação, o negro tu, que seria uma pessoa comum; o negro
turututu que não valeria nada, estaria numa posição moral inferior; e o negro sim senhor, pertencente a uma escala social
superior. Fala isso tudo para destacar a figura de Arnando que de negro sim senhor teria passado a negro turututu, por ter se
entregado à bebida e por ser uma pessoa obscena, sem vergonha de se expor.
Apesar da pobreza, ou por conta dela mesmo, há os que lucram com o aluguel de barracos ou vendem. Também
controlam a luz e a água. O ambiente costuma cheirar mal, por conta das dificuldades de se limpar. Todo esse universo vai ao
encontro do ambiente descrito por Aluísio Azevedo no romance naturalista O cortiço (1890).

Ciganos e amor
Além do senhor Manuel, que propusera casamento com Carolina, um segundo caso possível de relacionamento seria
com um cigano. Raimundo. Como era baiano, a autora o compara, fisicamente, a Castro Alves, pois “suas sobrancelhas unem-
se”.
Os objetivos de Raimundo, porém, são um pouco confusos. Ele vivia com uma adolescente de 14 anos, supostamente
sua irmã, e estaria se mudando para Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Afirma que teria sido da polícia na Bahia e por isso
ainda portava uma arma. Como ganhava mal, resolveu ganhar o mundo, tendo ido parar na favela do Canindé.
Apesar de ser um homem bonito, encantador, que se fazia amigo dos seus filhos, Carolina não cede prontamente aos
desejos do cigano. Para ela, ele seria um bandido e, mais do que isso, um pedófilo, pois não acreditava na história de vivia
com a irmã.
Não por acaso decide que vai entregá-lo à polícia para ter melhores modos na comunidade e não se envolver com
menores de idade.
Por outro lado, consoante o senso comum, ainda mais nos anos 50, quando o machismo era ainda mais presente na
sociedade brasileira, Manuel via com naturalidade o fato de Raimundo se envolver com menores de idade, pois a menina
assim desejava...

O entorno da favela

Para finalizar, é preciso ainda dizer que todo o diário gira em torno da favela em também de ruas próximas. Como
meio de localizar-se, segue um mapa com destaque para os principais pontos onde transcorrem as histórias do diário de
Carolina de Jesus.

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Como a Rua Pedro Vicente, Av. Cruzeiro do Sul, Rua Asdrubal Nascimento, Av. Tiradentes e a região do Canindé.
Conclusão

Carolina Maria de Jesus é a síntese de muitas mulheres pobres e pretas do Brasil. Entregue à própria sorte, teria sido
apenas mais uma na multidão, se fora o uso da escrita como registro e, principalmente, libertação. Tanto financeira, quanto
moral e espiritual.
Com o dinheiro ganho com a venda do livro e a publicação de outros, Carolina passou a frequentar a vida cultural
brasileira, com entrevistas, noites de autógrafos, eventos literários. Por fim, adquiriu uma casa primeiro no bairro de
Santana, localizado a alguns poucos quilômetros da favela do Canindé. Não demorou muito e se mudou para o extremo sul
da cidade, em Parelheiros, onde resgatou a vida que tivera na zona rural em Minas Gerais.
Faleceu aos 62 anos, em 1977, deixando como legado uma importante produção literária, com destaque para esse,
Quarto de despejo: diário de uma favelada.

ATIVIDADES

01. (Ufsc) 25 de dezembro... O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido
melancia 1deturpada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio.
Não sei porque é que estes comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos 2deteriorados aqui perto da favela, para as
crianças ver e comer.
... Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos.
Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome! Naquela época,
os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de comer.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2018, p. 146.

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Com base no texto e na leitura integral de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, publicada
pela primeira vez em livro em 1960, no contexto sócio-histórico e literário da obra e com a variedade padrão da língua
escrita, é correto afirmar que:
01) o sucesso de Quarto de despejo promoveu também o sucesso da autora, que saiu da marginalidade para conquistar a
cidade e se afirmar como escritora integrada à elite econômica paulistana.
02) podemos observar, em Quarto de despejo, traços da estética realista, entre os quais o registro minucioso do cotidiano, a
linguagem simples e direta e a animalização de personagens.
04) a obra Quarto de despejo apresenta o valor documental, uma vez que é formada por depoimentos pessoais elaborados
esteticamente por uma autora que passou por internação em hospital psiquiátrico. 08) os termos “deturpada” (referência 1)
e “deteriorados” (referência 2) são formas nominais cuja função é qualificar os nomes “melancia” e “produtos”,
respectivamente.
16) a política de César conhecida como “Pão e Circo” consistia em promover espetáculos e distribuir alimentos para manter
a população de Roma sob controle, prática retomada por autoridades políticas em São Paulo e condenada, no excerto, pela
narradora.
32) de acordo com o excerto, para sobreviver ao César da atualidade, a fome, é necessário deixar de amar a Cristo.

02. (Ufsc) 13 de maio [...]


– “1Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu
não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.”
... Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era
a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui
pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13
de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2018, p. 30-32.

Com base na leitura do texto e na leitura integral da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicada pela primeira
vez em livro em 1960, no contexto sócio-histórico e literário e, ainda, de acordo com a variedade padrão da língua escrita, é
correto afirmar que:
01) Quarto de despejo é uma coletânea de relatos pessoais dedicados a narrar o dia a dia do ano de 1958 na vida de Carolina
Maria de Jesus, de sua família e da comunidade.
02) reforçando o mito do “homem cordial” na tradição literária brasileira, a obra revela como os moradores da favela do
Canindé e arredores são acolhedores, solidários e solícitos com Carolina e com seus filhos. 04) há remissão ao dia em que se
comemora oficialmente a Abolição da Escravidão no Brasil, numa crítica ao controle social exercido pela fome, que marca a
existência de outro modo de escravidão.
08) a autora emprega frases e orações curtas, o que confere maior ênfase e ritmo ao texto, recurso linguístico utilizado com
frequência por autores da literatura brasileira contemporânea.
16) o emprego de metáforas e comparações auxilia na recriação ficcional do cotidiano da favela, como é o caso do adjetivo
“acinzentado”, tomado como a cor da fome, numa clara alusão às casas sem reboco do entorno, e do substantivo “corvos”,
num comparativo com os favelados, homens e mulheres sempre à procura de comida. 32) em “Dona Ida peço-te” (ref. 1), os
termos em destaque servem como vocativo, apesar da ausência de vírgula. 64) a obra tem sido revisitada por críticos
contemporâneos em nova abordagem que confere ao texto valor literário, superando uma leitura sociológica, pois
reconhece nele a existência de um projeto estético próprio da autora.

03. (Ufsc) 12 de junho


Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia. [...] Deixei o
1leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as
janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as
qualidades. [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.
Fiz o café e fui carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama. JESUS, Carolina Maria de. Quarto
de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2018, p. 58.

Com base no texto e na leitura integral da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicada pela primeira vez em
livro em 1960, no contexto sócio-histórico e literário e, ainda, de acordo com a variedade padrão da língua escrita, é correto
afirmar que:
01) o vocábulo “leito” (ref. 1) sugere que a narradora deixou o hospital durante a madrugada, após mais uma de suas
internações hospitalares, situação corriqueira agravada pela alimentação inadequada e pela falta de água tratada na região
onde morava.
02) no texto, a narradora reitera a importância da escrita em sua vida, pois a literatura era uma das únicas possibilidades de
esquecer seu entorno.
04) o projeto estético, marcado por uma visão fantasiosa da vida, permite que a narradora ignore as dificuldades cotidianas,
razão pela qual se atém apenas à beleza do despontar de uma estrela.

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08) o cotidiano da favela evidencia a brutalidade e a violência sistêmica a que todos os moradores estão submetidos,
fazendo com que brigas, episódios de violência doméstica e surras sejam vistos como entretenimento pela vizinhança. 16)
em suas peregrinações como catadora, a protagonista revela seu desprezo pela cidade de São Paulo, de luxo e opulência
para poucos, razão pela qual prefere manter distância desse espaço, habitando na favela.
32) Vera, João e José Carlos, filhos da narradora, adaptam-se com mais facilidade do que a mãe à vida na favela, sendo
caracterizados como bajuladores, que pedem esmolas e obedecem à mãe.

04. (Enem) Quarto de despejo


Carolina Maria de Jesus
Do diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus surgiu este autêntico exemplo de literatura-verdade, que relata o
cotidiano triste e cruel da vida na favela. Com uma linguagem simples, mas contundente e original, a autora comove o leitor
pelo realismo e pela sensibilidade na maneira de contar o que viu, viveu e sentiu durante os anos em que morou na
comunidade do Canindé, em São Paulo, com seus três filhos.
Ao ler este relato — verdadeiro best-seller no Brasil e no exterior — você vai acompanhar o duro dia a dia de quem não tem
amanhã. E vai perceber com tristeza que, mesmo tendo sido escrito na década de 1950, este livro jamais perdeu a sua
atualidade.
JESUS, C. M. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2007.

Identifica-se como objetivo do fragmento extraído da quarta capa do livro Quarto de despejo (A)
retomar trechos da obra.
(B) resumir o enredo da obra.
(C) destacar a biografia da autora.
(D) analisar a linguagem da autora.
(E) convencer o interlocutor a ler a obra.

05. (Ufrgs) Leia este trecho de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.

18 de dezembro... Eu estava escrevendo. Ela perguntou-me:


– Dona Carolina, eu estou neste livro? Deixa eu ver!
– Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo.
– E porque é que eu estou nisto?
– Você está aqui por que naquele dia que o Armin brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua.
Ela não gostou e disse-me:
– O que é que a senhora ganha com isto?
... Resolvi entrar para dentro de casa. Olhei o céu com suas nuvens negras que estavam prestes a transformar-se em chuva.

Considere as seguintes afirmações sobre o trecho acima.


I - Está presente no fragmento uma tensão que perpassa o conjunto do livro: ao mesmo tempo em que se apropria da
experiência de pobreza e violência da favela, Carolina quer diferenciar-se dela.
II - Audálio Dantas aparece como figura que representa oportunidade de publicação e autoridade letrada. III - Aparece no
fragmento uma alternância narrativa que marca Quarto de despejo: do dia a dia inclemente na favela para certa linguagem
literária idealizada por Carolina.

Quais estão corretas?


(A) Apenas I.
(B) Apenas II.
(C) Apenas III.
(D) Apenas I e III.
(E) I, II e III.

06. (Unicamp) “...Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já
são conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o
cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos.”
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2014, p. 43

O trecho anterior faz parte das considerações políticas que aparecem repetidamente em Quarto de despejo, de Carolina
Maria de Jesus. Considerando o conjunto dessas observações, indique a alternativa que resume de modo adequado a
posição da autora sobre a lógica política das eleições.

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(A) Por meio das eleições, políticos de determinados partidos acabam se perpetuando no exercício do poder. (B) Os
políticos se aproximam do povo e, depois das eleições, se esquecem dos compromissos assumidos. (C) Os políticos
preteridos são aqueles que acabam vencendo as eleições, por força de sua persistência. (D) Graças ao desinteresse
do povo, os políticos se apropriam do Estado, contrariando a própria democracia.

07. (UEM) Sobre o livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus, assinale o que for
correto.
01) A narrativa, escrita em forma de diário, começa no dia do aniversário de Vera Eunice, filha da autora, que recebe de
presente um par de sapatos achado no lixo. Ao longo da obra, o leitor percebe como a escritora, que sobrevive do lixo e de
materiais recicláveis, encontra sua resistência na escrita e nos livros.
02) A escritora descreve a dura realidade de uma mulher negra, moradora da favela, que trabalhava como catadora de papel,
faxineira e lavadeira para sustentar seus três filhos. O livro apresenta os relatos dessa mulher que vivenciou as mazelas das
camadas mais marginalizadas da sociedade.
04) Apesar da linguagem simples, contudo original, Carolina Maria de Jesus se revela uma escritora atenta à realidade social
do Brasil. Questionadora, crítica da classe política, sua escrita se impõe vigorosa por sua atualidade, ainda que passadas
décadas de sua publicação.
08) Entre as situações abordadas na obra, há relatos de discriminação racial e social; há, também, diálogos, descrições de
encontros amorosos, de festas, de brigas e de outros conflitos cotidianos. A fome, entretanto, é um dos assuntos mais
abordados.
16) No diário, inúmeras são as passagens que informam que a escritora foi candidata ao cargo de vereadora, em 1958,
evidenciando sua grande participação no cenário político nacional da época.

08. (UFT) Leia o fragmento para responder a questão.

3 DE MAIO... Fui na feira da Rua Carlos de Campos, catar qualquer coisa. Ganhei bastante verdura. Mas ficou sem efeito,
porque eu não tenho gordura. Os meninos estão nervosos por não ter o que comer.

6 DE MAIO [...] ...O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para
saber descrevê-la.

9 DE MAIO... Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.

10 DE MAIO... [...] O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse -me que a favela é um ambiente propenso,
que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque
não faz um relatorio e envia para os politicos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar
para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades. ... O Brasil precisa ser dirigido por uma
pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.
JESUS, Carolina Mari a de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1 983, p. 2 5-29.

Assinale a alternativa CORRETA. No fragmento de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus apresenta um olhar (A)
submisso ao discurso dos homens da lei sobre a propensão para o crime, das pessoas da favela. (B) crítico com relação à
problemática da fome e à falta de atenção dos políticos para com a população pobre. (C) otimista quanto à possibilidade
de mudança de sua vida e de sua família.
(D) culpado por não conseguir comida suficiente para si e seus filhos.

08 - B
07 - 15
06 - B
05 - E
04 - E
03 - 10
02 - 76
01 - 10
Respostas

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HISTÓRIAS QUE OS JORNAIS NÃO CONTAM


MOACYR SCLIAR

Moacyr Scliar (1937-2011) iniciou sua carreira literária em 1962 com Histórias de um médico em formação, que já
daria o tom de sua vasta produção livresca. Ao longo de 50 anos de profissão, Scliar se revelou um dos escritores mais
profícuos da literatura brasileira contemporânea. Escreveu cerca de 70 livros, dos quais quatorze foram de crônicas,
incluindo Histórias que os jornais não contam, sobre o qual iremos tratar nesta resenha.
Os pais de Scliar, fugindo da ascensão nazista e da perseguição aos judeus, se mudaram para o Brasil nos anos 30 e se
estabeleceram em Porto Alegre, onde o escritor veio a nascer. Como indica seu primeiro livro, Scliar se formou médico e
atuou, sobretudo, no setor público. Também deu aulas em sua área de formação, mas sem nunca abandonar a literatura, pela
qual iria se tornar conhecido. Em 2003, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Seu nome figura entre os dez escritores brasileiros mais lidos no exterior. Como cronista, escreveu para os jornais
Zero Hora (Porto Alegre) e Folha de São Paulo, teve diversos livros adaptados para o cinema, como Um Sonho no Caroço do
Abacate (1988) e Sonhos Tropicais (2002). Um dos seus livros, Max e os felinos, esteve envolvido em um possível caso de plágio
no cinema, tendo em vista que o filme As aventuras de Pi (2012) tem enredo semelhante ao do livro.
Feita essa apresentação geral do escritor, passemos a analisar o livro Histórias que os jornais não contam, que reúne
54 crônicas publicadas no jornal Folha de São Paulo, entre 2004 e 2008. A primeira edição do livro é de 2009. Utilizamos a
de 2019, publicada pela L&PM.
O modus operandi das crônicas segue o mesmo padrão. Parte de uma notícia de jornal (por isso a referência no título)
e o autor imagina a sequência da história, com doses de ironia, humor judaico (por assim dizer), entre outras características.
Como exemplo, tratemos da primeira crônica, “Na contramão da história”, que parte da seguinte notícia:

Um comerciante foi detido pela Polícia Militar Rodoviária após dirigir


na contramão da Rodovia dos Imigrantes por 1 km. Segundo a polícia,
ele parecia embriagado. (p. 9)

A partir dessa manchete, o autor imagina o que poderia ter se passado. No caso, o tal motorista percebeu mesmo
que muitos carros estariam em direção contrária ao seu, mas supôs estarem todos na contramão. Para além de estar
dirigindo na mão contrária, começou a conjecturar que isso poderia ser uma conspiração contra ele, invocando até mesmo
Galileu Galilei, que fora condenado pela Inquisição por ter ideias contrárias às oficiais de sua época. Mesmo preso, o
motorista ainda supunha ser ele o único que estaria na mão certa, em direção à verdade.
Uma das definições da literatura é o de ser um texto com claro objetivo ficcional, mas que pode se basear em dados
factuais, em referentes conhecidos. É exatamente isso que definem os textos de Scliar nesse livro. O leitor pode mesmo
imaginar que a estratégia narrativa de Scliar estaria muito adequada aos atuais tempos de redes sociais, de
compartilhamento de informação, da possibilidade de, literalmente, qualquer um poder se tornar o produtor de notícias. As
chamadas fake News. Toma-se uma notícia (em vídeo, texto ou imagem), cria-se uma legenda, de acordo com determinada
vertente ideológica (política, religiosa, econômica) e se dissemina como expressão da verdade. Ao mesmo tempo que se
passa a considerar o discurso midiático (especialmente de órgãos tradicionais da imprensa), como mentiroso, por, em tese,
sempre ir contra a “verdade”. Desse modo, o boato vira verdade e a notícia oficial vira boato.
Scliar, de sua feita, sabia, de antemão, estar construindo histórias fantasiosas, ficcionais, a partir de notícias
verdadeiras, porém, consoante o que é próprio do discurso literário, cria uma confusão proposital entre verdade e ficção,
que cabe ao leitor perceber.
As crônicas podem ser agrupadas em dez temas. Para facilitar a análise, vamos tratar de cada tema, dando destaque
para os textos que o desenvolvem. Para início, o tema com mais crônicas é o do relacionamento, especialmente o de casais.
São 17 crônicas que têm como foco o relacionamento, seja o feliz, seja o infeliz ou que se perdeu ao longo do tempo.
O primeiro é “Estranhas afinidades”, que parte de uma notícia segundo a qual marido e mulher se correspondiam
pela internet. Imaginando estarem falando com outra pessoa, ao descobrirem que falavam entre si, preferiram se divorciar.
O fato serve ao cronista para refletir sobre relacionamentos. Ora, se procuraram outra pessoa na internet, não estavam
felizes no casamento; no entanto, quis o destino que viessem a se “apaixonar” novamente se não pela pessoa real, ao menos
pelo ser projetado. Cada um deseja alcançar o tal príncipe ou princesa para preencher o vazio da existência, sem perceber
que o que nos preenche pode estar mais próximo do que se imagina. Porém, ante a mútua traição, ao invés de redescobrirem
as afinidades que os uniram na primeira vez e os estavam unindo novamente, preferiram a separação.
Nessa mesma linha de amores virtuais, há a crônica “A mulher real, a mulher virtual”, que parte da notícia de uma
mulher que teria tentado sequestrar seu namorado virtual, após ele querer a separação. Na crônica, a tal mulher teria
escrito um e-mail para o homem, para pedir perdão e a consequente manutenção do namoro. Ao mesmo tempo, porém, que
se revela amorosa, mostra-se igualmente violenta ao finalizar o e-mail dizendo que sabe “mirar muito bem os alvos com [sua]
arma”.

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OBRAS LITERÁRIAS UEL 2023 - 2024

Em “O carrinho ciumento”, partindo de uma notícia que anunciava um carrinho com tecnologia para detectar
produtos ricos em gordura, Scliar desenvolve a crônica revelando que o carrinho ajudara um solteirão a encontrar sua
esposa. No entanto, uma vez abandonado, o carrinho poderia querer se vingar (razão do título). Temos no caso também a
presença da prosopopeia, considerando que o carrinho ganhou vida e passou a ter sentimentos humanos. Tal figura de
linguagem aparece ao menos em outras cinco crônicas.
Em “O amor é reciclável”, o cronista trata sobre a união de um casal que procurava produtos recicláveis para vender
e conseguir dinheiro para uma viagem. Realizado o sonho, o casamento caíra num marasmo, que foi rompido graças ao
retorno da busca por materiais recicláveis, agora como meio de constantemente reciclar o relacionamento, sem que caia na
rotina.
Scliar trabalha, nas crônicas, com humor, não o humor que leva ao riso fácil, mas o da tradição machadiana, que nos
faz pensar sobre as contradições humanas, mesmo as mais comezinhas. É o caso de “Conquistas culinárias”, em que Jorge,
tentando conquistar Aline, mesmo sem entender nada de culinária, aprende o básico para preparar lhe um jantar. Porém,
erra a receita e o peixe fica ruim. Aline, ante o esforço do rapaz, resolve se entregar a ele, que, insatisfeito com seu prato,
resolve prepará-lo novamente. Assim, o que era meio se torna fim, e Aline abandona o pretendente, agora mais preocupado
com os possíveis dotes culinários que poderia vir a desenvolver.
No caso de “Espaço vital”, o humor ver em forma de revelação no final. Um homem corpulento disputa espaço do
braço de poltrona em um avião com uma mulher. A crônica é narrada da perspectiva dele. O leitor é levado a se ver na
situação, pela banalidade do tema, mas por ser uma situação pela qual todos podemos passar. Ao final da crônica, sabemos
que ambos se conheciam e eram casados há 35 anos, sugerindo a contínua busca por espaço e por voz nessa relação
desgastada pelo tempo.
Em “Vista panorâmica”, a rotina no casamento também é tema. Após dez anos de casados, resolvem que era preciso
fazer alguma mudança, e compram um apartamento que se movimenta aos poucos, criando uma sensação de mudança de
paisagem a cada dia. Porém, esse giro faz o homem descobrir uma mulher ruiva no apartamento de outro prédio e
abandonar a esposa para se casar com a ruiva. Nesse caso, a mudança não foi nada positiva. Ao contrário de “Divórcio e
recessão”, em que se narra a história de um casal, cujo casamento também se desgastara com o tempo. Porém, quando
decidiram se separar veio uma crise econômica. Tiveram de se desfazer de todos os bens conquistados e foram morar no
primeiro apartamento do início do casamento. Fosse pelo ambiente, fosse pelas memórias deixadas lá, o casal percebeu que
poderiam recomeçar e ter um casamento feliz novamente.
Outras crônicas que tratam sobre relacionamento em que se verifica o desencontro ou a desilusão amorosa: “Sobre
cartas e crateras”, em que um casal de namorados discute porque o rapaz fica decepcionado ao saber que a namorada não
salvaria as cartas escritas por ele a ela no caso de um possível incêndio. “O destino no sobrenome”, em que uma mulher
desiste de três noivados por querer que o noivo adotasse o sobrenome dela. A solução foi achar um noivo que tivesse o
mesmo sobrenome que ela, mesmo assim se questiona se o dele seria mais importante ou o dela. Em “Já li isso em algum
lugar”, um casal de namorados resolve terminar a relação mutuamente, para tanto escrevem uma carta ao outro. O irônico é
quem copiam a mesma carta encontrada em um site com cartas já prontas, o que muito decepciona o rapaz. E “A última do
papagaio”. A ave em questão pertencia a Taylor, namorado de Suzy, que arrumou um amante. Ziggy, o papagaio, passou a
repetir o nome do amante até que Taylor se deu conta de que estava sendo traído e terminou o namoro. Por fim, em “O amor
reciclado”, uma moça dá de presente ao namorado um celular que seria biodegradável. Com o término do namoro, ele joga o
celular fora, na terra, e, com o tempo, nasceu uma flor, de modo a revelar como tudo pode ser reciclado, desde um objeto de
consumo até o amor, já que o rapaz achou outra namorada.
Ainda sobre relacionamentos, há outras quatro crônicas, que tratam do tema com final mais feliz para os casais. Em
“Para mais ou para menos”, um estatístico analisa tudo com base na matemática e conclui que seu casamento é 100%
perfeito, com margem de erro de 2% para mais. Já em “O amor supera o calendário”, uma senhora de 70 anos se casa após
fazer um calendário sensual para ajudar um hospital que trata de câncer infantil. Belmiro, a quem já namorara na juventude,
redescobre dona Isadora e a pede em casamento, apenas com a proibição de não repetir o calendário outra vez.
Uma segunda linha temática das crônicas é a família. É bem verdade que crônicas que tratam sobre relacionamento
podem, direta ou indiretamente, tratar também sobre família. De qualquer modo, podemos selecionar cinco crônicas com
esse tema específico. A primeira é “Mensagem de natal”. Scliar, seguindo o modus operandi das demais crônicas, toma por
referência uma notícia real, que informava que uma carta havia sido extraviada e chegara a seu destino 93 anos depois. O
autor então imagina que um senhor de 70 anos solteiro, filho de uma mulher que se casara em 1914 por pressão familiar e
que confessara ao filho que sua verdadeira paixão havia sido um primo, recebe um cartão de natal datado de 1914, com a
frase “eu te amo”. Imediatamente supôs ter sido escrito pelo primo. A mãe jamais recebera esse cartão o que a fez uma
mulher infeliz no casamento. Por isso, prontamente, o senhor corre em direção à porta e vê uma senhora que, certamente,
fora a que deixara o cartão na caixa de correio. Em seguida, dirige-se a ela. A crônica finaliza aí, mas podemos supor que ali
começaria uma história de amor entre os dois, apesar da idade avançada.
Em “Lágrimas da cebola & outras lágrimas”, a partir da notícia de que cientistas inventaram uma cebola sem o gene
que estimulava o lacrimejamento dos olhos de quem a cascava, Scliar conta a história de uma moça simples, que, impedida
de chorar pelos familiares, usava das cebolas para deixar aflorar seus sentimentos de tristeza por uma vida com limitações
diversas. Mesmo casada e amando o marido e os filhos, nunca abandonou a prática. Agora, ante àquela notícia, chorava
novamente porque perderia sua desculpa por lacrimejar.

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No caso de “Esperando o homem-aranha”, uma adolescente, castigada pelo pai a ficar no quarto do apartamento
onde morava, imaginava ser resgatada pelo alpinista francês Alain Robert, que ficou muito conhecido por escalar prédios em
diversos lugares. Ele seria sua salvação. No final da crônica, porém, ela, já se imaginando casada com ele, certamente o
proibiria de escalar prédios para não ser tentado a salvar outras moças presas pelo pai...
Em “Tempo de lembrar, tempo de esquecer”, um rapaz que estava internado em um hospital por conta de um
acidente supõe que um idoso de origem desconhecida seria o avô que não conhecera. O cronista não dá mais pistas do
porquê a família teria escondido esse suposto avô dele. Fato é que antes de ter certeza, o senhor falece no hospital e o rapaz
resolve deixar o assunto para lá, o que justifica o título da crônica, extraído do Eclesiastes, livro bíblico. Por fim, em “A roda
dos expostos”, tem-se a história de crianças enjeitadas pela mãe ou pelos pais e que são deixadas em casas acolhedoras. Na
crônica, narra-se a história de um homem muito rico e que fora deixado, quando bebê, numa roda dos expostos. Aquilo o
marcara para sempre ao ponto de, nas festividades de seus aniversários, ter de passar por uma porta giratória antes de
entrar na festa, sugerindo, pois, um trauma jamais resolvido.
Outra temática comum desenvolvida pelo cronista é o que podemos chamar de projeto de vida. São ao menos seis
crônicas sobre o assunto. Na primeira, “O futuro da geladeira”, narra-se a história de uma senhora que teve de desistir de
fazer um curso superior em Administração, por ter de comprar uma geladeira nova. Apesar de parecer algo banal, revela
uma situação de precariedade pela qual muitos passam. Fazer uma escolha imediatista e adiar algo que levaria tempo para
se concretizar. O cronista finaliza o texto com um alento: a geladeira gelaria o champanhe que abriria quando iniciasse o
curso de Administração.
A partir de notícias que davam conta de que corruptos escondiam dinheiro na cueca, narra-se a história de Severino
(nome comum a muitos nordestinos, como atesta o famoso poema de João Cabral de Melo e Neto, Morte e vida severina),
que viu, nesses episódios, uma oportunidade de empreender: no caso inventou a cueca-cofre. Assim, tais criminosos
poderiam andar por ai mais tranquilos. Obviamente, a crônica se revela irônica e crítica quanto a casos de corrupção, ao
mesmo tempo que revela como a necessidade é mãe da História.
Em “Confissões do Ano-Novo”, temos a estranha história de um rapaz cujo nome era Ano-Novo da Silva. Narrado em
primeira pessoa, o narrador explica que seu nome fora dado pelo pai, que, admirador da cultura chinesa, descobriu que esse
era um nome comum por lá, Yuandan. Como no Brasil, o termo não faria muito sentido, o pai resolveu escrever na versão
aportuguesada. E, como em todo fim de ano, as esperanças se renovam para o ano seguinte, Ano-Novo tinha como projeto
de vida ir a China e conhecer seus xarás, os Yuandan. O segundo sonho é que o nome se tornasse popular no Brasil. Claro,
trata-se de uma ironia, além de apresentar a simbologia da crônica, tendo em vista a promessa de um constante Ano Novo
melhor a cada ano.
A partir de dois anúncios estranhos na internet – venda da própria alma feita por um chinês e da sogra, feita por um
britânico -, a crônica “Troca-troca na internet”, escrita na forma de uma carta, direcionada aos dois anunciantes, fala sobre
outro projeto de um brasileiro: no caso promover a troca entre os dois: o britânico receberia a alma do chinês, e, este, a
sogra daquele. No final, o leitor que o objetivo do brasileiro era agradar a própria sogra, por ter feito algo grandioso, e ficar
de alma lavada, por não se sentir um inútil. Outra crônica em que o texto se faz com base na ironia.
Em “Parada obrigatória”, tem-se a história de um homem muito rico que queria conhecer todos esses lugares. O
projeto se deu a partir de um livro que ficou famoso, Mil lugares para se conhecer antes de morrer, de Patrícia Schulz. De
fato, ele viajou pelo mundo todo. Deixou, por último, conhecer o Copacana Palace. No entanto, quando se dirigia a pé para o
hotel, foi assaltado e morto. A conclusão é que não se pode realizar tudo o que se deseja na vida.
Por fim, em “O desbancado que virou banqueiro”, tem-se a história de um mendigo que acha uma carteira cheia de
dinheiro e pedras preciosas. Com algum conhecimento que já tinha, aplica esse dinheiro e faz uma fortuna. Quando era
mendigo, seu banco de praça onde dormia fora substituído por outro de ferro, com grades, o que dificultava ficar deitado.
Após enriquecer, mandou colocar bancos de espera com as mesmas divisórias de ferro, para revelar que cada um tem seu
lugar e sua hora.
Há outras cinco crônicas a que podemos chamar de temática incomum, pelo inusitado do que é desenvolvido. É o
caso de “A vingança do homem invisível”, que narra a história sobre como cientistas teriam desenvolvido uma roupa capaz
de deixar uma pessoa invisível. Como precisavam de uma pessoa pequena para fazer o teste convenceram um anão, que
trabalhava na limpeza. Para surpresa de todos, o anão e os papeis onde estavam os procedimentos da experiência sumiram,
sugerindo, conforme indica o título, que o tal anão estaria se vingando.
Outra crônica nessa linha de algo incomum é “Casamento imaginário”, em que um homem queria se casar com uma
personagem de desenho animado, pede a um amigo que produza a história e ele possa se casar com a moça, cujo corpo fora
definido por ele. Porém, o rapaz se revela ciumento, tendo em vista que que a tal moça, segundo o que passou a supor,
olhava mais para o desenhista dela que para ele mesmo... A solução seria o divórcio. Ou como em “Mortífero celular”, em que
narra história de mafiosos que usavam arma disfarçada de celular; no entanto, um mafioso é morto por engano, por estar
portando um celular de verdade.
Outra crônica de tema incomum é “Cara de velho, cabeça de velho”, que narra a história de um menino de 13 anos e
que era tabagista. Para sua angústia, os cigarros seriam vendidos apenas por máquinas capazes de reconhecer se o
comprador seria ou não maior de idade. Decidiu que precisaria envelhecer rápido para satisfazer seu vício. Começou a
franzir a testa e a contrair a face para parecer mais velho. Não só conseguiu mudar sua aparência como também, seu estado
de espírito. Já não suportava mais pessoas da sua idade e decidiu parar de fumar, afinal era preciso cuidar mais da saúde.

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Por fim, em “Miau”, um jovem, que sabia imitar miados como ninguém, passou a usar dessa técnica para comer o que
uma senhora levava todas as noites para alimentar gatinhos. Como ela não vi o gato miador, deixava por ali para que ele, o
rapaz, comesse o que seria dos gatos na verdade. Ao final, sente certo temor, imaginando como seria sua vida se a senhora
adoecesse ou se não viesse mais trazer comida para os gatos.
Em “Torpedos”, Moacyr Scliar trata de tema que hoje, poderíamos dizer, teria de ser adaptado. Afinal de contas,
quase ninguém envia mais mensagens de texto (SMS) ou os chamados torpedos. Hoje, preferem-se programas específicos
para isso, sendo o mais famoso o WhatsApp. De qualquer modo, na crônica, o autor se refere a duas situações do uso do
torpedo: na primeira, uma vestibulanda combinara com o namorado, que a ajudaria a fazer a prova do vestibular, enviando-
lhe torpedos. No entanto, no primeiro ele dizia ter desistido da ideia e terminava o namoro, pois não queria se envolver com
uma pessoa desonesta. No segundo, um aspirante a escritor decidira que divulgaria seus textos por torpedos. Porém, não
conseguiu enviar nenhum, pois bem na hora ficara sem bateria.
No caso de “Deus”, censurado”, Scliar considera uma notícia, segundo a qual, um funcionário de companhias aéreas
recebeu a incumbência de censurar termos em um filme que poderiam indicar blasfêmia a Deus. No entanto, o funcionário,
sem querer, trocou o termo Deus por um BIP, típico de censurado. Scliar, então, imaginou o início do Gênesis sem menção à
palavra Deus, e sim ao termo BIP. Claro que o texto fica bem estranho e inusitado. Da criação do mundo à do homem, que,
por sua vez, inventou o cinema e passou a censurar o nome do criador...
Três crônicas tratam diretamente do tema política: “Massageando o dorso político”, “A ponte” e “Depois do
carnaval”. Em todas há uma crítica, já clicherizada, a políticos, que usariam de seus cargos para legislarem em causa própria,
como na primeira crônica, em que se narra que vereadores teriam comprado cadeiras massageadoras para trabalharem
durante as sessões. A compra inusitada teria levado vereadores a relaxarem tanto que chegavam a dormir durante a sessão.
No caso de “A ponte”, narra-se que um prefeito mandou construir uma ponte em local desnecessário, o que gerou críticas
diversas e se tentou consertar fazendo outras obras desnecessárias. No final, a ponte só serviria mesmo a moradia de
mendigos ou local para namorados ficarem escondidos. Por fim, em “Depois do carnaval”, o cronista seleciona uma série de
manchetes reais da imprensa, segundo as quais tudo seria feito após o carnaval: como as votações prioritárias do Senado,
atos do governo federal, inaugurações de alas de hospitais, investigações da polícia, ações contra o desmatamento etc. Tudo
será apenas após o carnaval, de modo a confirmar a máxima popular de que, no Brasil, o ano começa em março. Evidente que
há também nessa seleção uma dose de ironia, tendo em vista que chama a atenção para essa característica social do
brasileiro, de deixar muita coisa para depois do carnaval.
Há outras três crônicas em que se percebem pontos em comum. No caso, há o que podemos chamar de crônicas
prosopopeias, isto porque algum ser não animado ganha características humanas como em “O rádio apaixonado”. Uma
cliente escreve uma carta reclamando do rádio que instalara em seu carro, dizendo que ele só conseguia ouvi-lo com o carro
ligado. O rádio, por sua vez, assumindo o papel de atendente ao consumidor, responde a ela, afirmando que isso acontecia
porque ele estava apaixonado e ela não percebera isso, razão pela qual ele fizera de tudo para chamar
lhe a atenção. Em “O lendário país do recall”, a partir de igualmente uma reclamação de uma cliente que enviara uma boneca
estragada para recall e não recebera de volta, tem-se a suposta resposta da boneca, que, segundo o que Scliar procurou,
humoristicamente, supor, as bonecas e brinquedos em geral estavam preparando uma revolução e fundariam um novo país,
o do recall.
Em “O carrinho ciumento”, tem-se a história de um rapaz tímido e que usava um carrinho inteligente para fazer
comprar em supermercado. Tal carrinho sugeria melhores produtos, mais adequados ao dono. Um dia, porém, por conta do
carrinho, o rapaz tímido conheceu uma moça com quem veio a manter um relacionamento amoroso. O carrinho, que
aparentava estar estragado, revelou-se, na verdade, com ciúmes de seu dono e passou a agir de modo estranho.
Um último tema recorrente em crônicas diversas é o da ironia da vida. Como se disse no início, há, em Moacyr Scliar,
um humor judaico e uma ironia que perpassa a maior parte das crônicas. Ainda assim, podemos destacar algumas, cerca de
oito, em que esse tema é mais preponderante. É o caso de “Primeira Classe”, em que se narra a história de um homem que
sempre viajara de avião e que resolvera economizar para viajar uma vez ao menos de primeira classe. Porém, quando estava
realizando seu sonho, uma passageira da classe econômica veio a falecer e pediram para que fizesse a troca de lugar com a
falecida para que a família tivesse um pouco mais de privacidade.
Em “Contra a pirataria”, assaltantes invadem uma joalheria para roubar relógios de marca, mas, conhecendo bem do
assunto, um assaltante percebe que a loja vendia artigos falsificados como novos. No fim, levaram apenas o relógio do dono
da empresa. O Breitling dele era de fato verdadeiro.
Por sua vez, em “Quero meu peso de volta”, tem-se a estranha notícia de que uma mulher acima do peso estaria
processando o chefe dela. O texto é escrito como se fosse uma petição a um juiz de direito, para requerer a volta do seu peso
original. Como o chefe a chamara de “gordinha”, a empregada teria emagrecido pela depressão que tivera após ouvir do
chefe o termo em tom pejorativo. Assim, ela emagrecera e, por isso, estava exigindo uma indenização por cada quilo perdido.
Já na crônica “Passe de mágica”, tem-se a história de um roubo que aconteceu durante um congresso de mágica. Um
mágico desconhecido fez um número que maravilhou os outros mágicos, porém, não demoraram a descobrir que se tratava
de um ladrão, que roubara itens de valor e até a mulher do gerente do hotel, além da estatueta que seria dada ao melhor
mágico. No caso, ficou com o ladrão, que conseguiu enganar a todos.
No caso de “O último passo”, o objetivo é relatar como a burocracia governamental pode impedir a realização de
sonhos ou de empreendimentos. Abílio era marceneiro e, após trabalhar a vida toda como empregado, resolveu abrir

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a sua própria marcenaria. Isso aos 62 anos de idade. No entanto, viu-se preso a um emaranhado caminho burocrático, que na
crônica é chamado de os 107 passos. Abílio levou um bom tempo para dar os 107 passos, porém, quando foi buscar o Alvará
na prefeitura, sofreu uma queda e machucou o fêmur. No hospital, teve seu quadro de saúde agravado o que o levou à
morte, impedindo-o de dar o último passo que era efetivamente ter a empresa aberta e funcionando.
Outra crônica que segue essa linha temática de expor as ironias da vida é “Monkey business”. Trata-se da história de
um pintor frustrado e que soubera de um macaco que conseguira vender quadros e se tornar famoso. A partir disso, passou
a pintar e dizer na imprensa que fora um macaco que tinha em casa o autor das façanhas artísticas. Com isso, com esse
engodo, conseguiu comercializar suas telas. Porém, um dia de fato o macaco pintara um quadro no estilo renascentista.
Como os quadros do pintor eram indicativos de não terem sido feitos por um ser humano, ele ficara num dilema sem
resposta: contar a verdade e perder o seu ganha-pão ou revelar ao mundo o verdadeiro talento do macaco, o que poderia
sugerir algo mais enganoso ainda. No fim, passa a tratar o macaco com muito carinho como meio de se desculpar com ele.
Em “Guerrilha capilar”, narra-se a história de um estranho assalto: invadiram um local que recebera 250 kg de cabelo
humano para fazer peruca. Os assaltantes eram, na verdade, carecas, que estavam se posicionando contra a necessidade de
se ter cabelo para ser feliz, ser reconhecido etc. Evidente que é uma situação absurda por si só, mas a crônica quer chamar a
atenção para grupos que podem se sentir isolados socialmente por não se encaixarem em um determinado modelo físico.
Por fim, temos a crônica “Previsões sobre o menino que nasceu nas alturas”. A partir da notícia de que uma mulher
dera luz a uma criança em pleno voo, Scliar faz cinco previsões sobre a criança, sempre com seu tanto de humor e ironia.
Primeiro que poderá dizer que foi trazido por um avião e não por uma cegonha; depois, poderia assumir mais de uma
nacionalidade, pois nascera no céu da Etiópia, mas em um avião de origem francesa; por ter nascido nos ares, poderia até ser
considerado um anjo ou coisa que o valha; na mesma linha, poderá se considerar superior aos demais mortais, por estar
sempre nas alturas; por fim, fugindo ao que seria o óbvio (mas o cronista quer ser irônico), imagina que só se casará com
alguém superior aos terráqueos, devendo preferir um ser de outro planeta, talvez Marte.
Em síntese, podemos dizer que as crônicas de Moacyr Scliar apresentam sutilezas que uma resenha não consegue
expressar, o ideal é que se leiam todas elas. De qualquer modo, o objetivo foi o de traçar um painel geral dos textos e servir
de guia ao leitor para que encontre percursos temáticos pertinentes ao livro, que reúne textos diversos e publicados entre
2004 e 2008.

ATIVIDADES
(FCM_MG) Para responder à questão, leia o texto a seguir.
"A polícia do Rio de Janeiro prendeu quatro estudantes que tentavam fraudar o vestibular de medicina na
Universidade Gama Filho. Uma quadrilha teria cobrado entre R$ 10 mil e R$ 15 mil pela transmissão do gabarito do exame
por meio de mensagens de texto (31/01/2006)”
Apesar do fracasso dos quatro vestibulandos que haviam tentado fraudar a prova mediante mensagens pelo celular,
ela decidiu fazer a mesma coisa. Em primeiro lugar, porque morava numa cidade muito menor que o Rio, no qual as medidas
de segurança não eram tão rigorosas. Depois, não recorreria a quadrilha nenhuma, coisa que, segundo imaginava, tornava a
operação vulnerável. Em terceiro lugar, não tinha outra opção: não sabia quase nada, e era certo que seria reprovada. Por
último, havia uma coincidência favorável: estava com antebraço esquerdo engessado. Nada preocupante, na verdade até
poderia ter tirado o gesso, mas não o fizera, o que se revelara providencial: agora contava com um ótimo esconderijo para o
celular.
Quem mandaria o gabarito? O namorado, claro. Rapaz inteligente (já estava cursando a faculdade), só teria de
perguntar as questões para alguém que tivesse terminado a prova e enviar o gabarito por torpedo. Quando fez a proposta
ao rapaz, ele pareceu um tanto relutante, incomodado mesmo. E no dia do vestibular ela descobriu por quê.
Quarenta minutos depois de iniciada a prova, ela recebeu o tão esperado torpedo. Para sua surpresa, não continha o
gabarito, e sim uma mensagem: “Sinto muito, mas não posso continuar namorando uma pessoa tão desonesta. Considere
terminada a nossa relação. PS: Boa sorte no vestibular.” Com o que ela foi obrigada a concluir: tão importante quanto o
torpedo é aquele que dispara o torpedo.
(SCLIAR, Moacyr. Histórias que os jornais não contam. Rio de Janeiro: Agir, 2009. p.97.)

01. O livro de Moacyr Scliar inspira-se em fatos jornalísticos e contém histórias fictícias, marcadas pela crítica social, pelo
comentário político ou apenas pelo humor puro e simples. A história apresentada caracteriza-se por conter aspectos
(A) éticos.
(B) poéticos.
(C) satíricos.
(D) didáticos.

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02. O post scriptum (PS) do torpedo pode ser caracterizado como


(A) erudito.
(B) irônico.
(C) moralizante.
(D) compassivo.

(UECE) Leia o texto a seguir para responder às questões de 03 a 06.

Em geral acreditamos que existe uma nítida linha divisória entre o real e o imaginário, entre o fato e a ficção: territórios
claramente demarcados em nossas vidas. Mas será que é assim mesmo? Os escritores terão dúvidas. Frequentemente
partem da realidade – um episódio histórico, um personagem conhecido, um fato acontecido - para, a partir daí, construírem
suas histórias.
Uma experiência que tive muitas vezes ao longo de minha trajetória literária. Mas confesso que não estava preparado para a
verdadeira aventura, que teve início quando, anos atrás, e a convite de editores da Folha de São Paulo, comecei a escrever
textos ficcionais baseados em notícias de jornal. Não é, obviamente, algo novo; já aconteceu muitas vezes. Mas, praticada
sistematicamente, essa atividade foi se revelando cada vez mais surpreendente e fascinante. Descobri que, atrás de muitas
notícias, ou nas entrelinhas destas, há uma história esperando para ser contada, história essa que pode ser extremamente
reveladora da condição humana. O jornal funciona, neste sentido, como a porta de entrada para uma outra realidade –
virtual, por assim dizer. Neste momento o texto jornalístico, objetivo e preciso, dá lugar à literatura ficcional. À mentira, dirá
o leitor. Bem, não é propriamente mentira; são histórias que esqueceram de acontecer. O que o escritor faz é recuperá-las
antes que se percam na imensa geleia geral composta pelos nossos sonhos, nossas fantasias, nossas ilusões.
Este livro contém várias das histórias assim escritas. Espero que o leitor as tome como um convite para ingressar no
inesquecível território do imaginário.
(Moacyr Scliar. Histórias que os jornais não contam. Introdução.)
03. Escrevendo a introdução de um livro de sua autoria, Moacyr Scliar focaliza um dos problemas da literatura: os limites
entre o real e o ficcional. Sobre esses dois territórios – o real e o ficcional –, considere as proposições abaixo, com base no
raciocínio que o autor desenvolve no texto.
I - Existe, para qualquer pessoa, clara demarcação entre realidade e ficção.
II - O trabalho dos escritores de ficção situa-se no território da fantasia.
III - O real está fora das preocupações do escritor.

É correto o que se declara


(A) apenas em I e II.
(B) apenas em III.
(C) em I, II e III.
(D) apenas em II.

04. Indique a opção em que se traduz corretamente o que Moacyr Scliar denomina de verdadeira aventura. (A)
Escrever textos puramente ficcionais, ou seja, literários.
(B) Criar um texto ficcional, partindo de uma notícia de jornal.
(C) Escrever sistematicamente para o jornal Folha de São Paulo.
(D) Escrever textos jornalísticos, isto é, textos não ficcionais.

05. Considere o excerto seguinte:


Descobri que, atrás de muitas notícias, ou nas entrelinhas destas, há uma história esperando para ser contada, história essa
que pode ser extremamente reveladora da condição humana.

Assinale (V) ou (F), conforme seja VERDADEIRO ou FALSO o que se afirma a partir da interpretação desse enunciado. ( )
Notícias de jornal expressam a essência humana.
( ) As notícias podem servir de inspiração para o ficcionista.
( ) O texto literário é capaz de revelar o que se esconde na alma humana.
( ) A notícia expressa sempre um fato real e traz informações precisas.

A sequência correta, de cima para baixo, é


(A) V, V, F, F.
(B) V, V, V, F.
(C) F, V, V, F.
(D) V, F, V, F.

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06. Marque a alternativa que explica o sentido da expressão histórias que esqueceram de acontecer. (A) Certos detalhes que
a censura não permite que os jornais publiquem e que os ficcionistas expõem em suas narrativas.
(B) Detalhes que os escritores consideram interessantes, mas que, por economia literária, não incluem em suas histórias.
(C) Desdobramentos que os fatos noticiados suscitam e os escritores captam e transformam em elementos narrativos. (D)
Elementos autobiográficos sempre inseridos pelo escritor no fato noticiado para assim construir sua ficção.

(UECE) Leia o texto a seguir para responder às questões de 07 a 09.

MENSAGEM DE NATAL
Um cartão de Natal com um desenho colorido de Papai Noel e uma menina, postado em 1914, chegou a seu destino na
cidade americana de Oberlin, no estado do Kansas, depois de ficar extraviado durante 93 anos. O cartão, datado de 23 de
dezembro de 1914, tinha sido enviado a Ethel Martin, de Oberlin. Ethel Martin nunca chegou a ler a mensagem de Natal. Ela
morreu antes de receber o cartão. (17/12/2007)

Para ele, o fim do ano era sempre uma época dura, difícil de suportar. Sofria daquele tipo de tristeza mórbida que acomete
algumas pessoas nos festejos de Natal e de Ano Novo. No seu caso havia uma razão óbvia para isso: aos setenta anos,
solteirão, sem parentes, sem amigos, não tinha com quem celebrar, ninguém o convidava para festa alguma. O jeito era
tomar um porre, e era o que fazia, mas o resultado era melancólico: além da solidão, tinha de suportar a ressaca.
No passado, convivera muito tempo com a mãe. Filho único, sentia-se obrigado a cuidar da velhinha que cedo enviuvara.
Não se tratava de tarefa fácil: como ele, a mãe era uma mulher amargurada. Contra sua vontade, tinha casado, em 31 de
dezembro de 1914 (o ano em que começou a Grande Guerra, como ela fazia questão de lembrar), com um homem de quem
não gostava, mas que pais e familiares achavam um bom partido. Resultado desse matrimônio: um filho e longos anos de
sofrimento e frustração. O filho tinha de ouvir suas constantes e ressentidas queixas. Coisa que suportava estoicamente;
não deixou, contudo, de sentir certo alívio quando de seu falecimento, em 1984.
Este alívio resultou em culpa, uma culpa que retornava a cada Natal. Porque a mãe falecera exatamente na noite de Natal.
Na véspera, no hospital, ela lhe fizera uma confissão surpreendente: muito jovem, apaixonara-se por um primo, que acabou
se transformando no grande amor de sua vida. Mas a família do primo mudara-se e ela nunca mais tivera notícias dele.
Nunca recebera uma carta, uma mensagem, nada. Nem ao menos um cartão de Natal.
No dia 24 pela manhã ele encontrou um envelope na caixa do correio. Como em geral não recebia correspondência alguma,
foi com alguma estranheza que abriu o envelope.
Era um cartão de Natal, e tinha a falecida mãe como destinatária. Um velhíssimo cartão, uma coisa muito antiga, amarelada
pelo tempo. De um lado, um desenho do Papai Noel sorrindo para uma menina. Do outro lado, a data: 23 de dezembro de
1914. E uma única frase: "Eu te amo”. A assinatura era ilegível, mas ele sabia quem era o remetente: o primo, claro. O primo
por quem a mãe se apaixonara, e que, através daquele cartão, quisera associar o Natal com uma mensagem de amor. Uma
nova vida era o que estava prometendo. Esta mensagem e esta promessa jamais tinham chegado a seu destino. Mas de
algum modo o recado chegara a ele. Por quê? Que secreto desígnio haveria atrás daquilo?
Cartão na mão, aproximou-se da janela. Ali, parada sob o poste de iluminação, e provavelmente esperando o ônibus, estava
uma mulher já madura, modestamente vestida, uma mulher ainda bonita. Uma desconhecida, claro, mas o que importava?
Seguramente o destino a trouxera ali, assim como trouxera o cartão de Natal. Num impulso, abriu a porta do apartamento e,
sempre segurando o cartão, correu para fora. Tinha uma mensagem para entregar àquela mulher. Uma mensagem que
poderia transformar a vida de ambos, e que era, por isso, um verdadeiro presente de Natal.
(Moacyr Scliar. Histórias que os jornais não contam.)

07. As narrativas que compõem a obra Histórias que os jornais não contam são rotuladas de crônicas. Mesmo sabendo se
que crônica e conto às vezes se confundem, questiona-se esse rótulo para o texto “Mensagem de Natal”, que apresenta
traços de conto. Estão expostas abaixo características desses dois gêneros.
Assinale, dentre elas, as que se encontram no texto e que permitem classificá-lo como conto. (1) Exploração de episódios
curiosos, geralmente de domínio público, que acontecem no cotidiano e que chamam a atenção.
(2) Narratividade como marca essencial.
(3) Concentração do espaço e do tempo em decorrência de um único núcleo de tensão. (4) Mergulho no íntimo da
personagem, para captar suas “angústias” de ordem social, existencial, comportamental, imaginária etc.
(5) Uso da linguagem coloquial e inclinação para o humor e para o lirismo.
(6) Natureza ensaística, isto é, analítica ou interpretativa.
(7) Tendência à rápida perda de interesse, em decorrência da exploração de um fato circunstancial. (8)
Reduzido número de personagens.

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A sequência correta, de cima para baixo, é a seguinte:


(A) 1, 2, 6, 8.
(B) 1, 2, 3, 8.
(C) 2, 3, 4, 8.
(D) 2, 3, 4, 7.

08. Considere as proposições abaixo, que falam sobre a personagem do texto - o filho.
I - Há, no texto, uma indicação clara de que a amargura e a melancolia do homem eram decorrentes, principalmente, de sua
condição de solteiro.
II - Ao falar da convivência do homem com a mãe, o narrador parece querer justificar a vida do primeiro pelo
comportamento da segunda.
III - Apesar de amargurado e melancólico, o homem era uma criatura que ainda tinha esperança na vida.

É correto o que se declara


(A) apenas em II e III.
(B) apenas em I e II.
(C) em I, II e III.
(D) apenas em III.

09. A ação final do homem – oferecer a uma desconhecida o cartão de Natal endereçado à mãe – pode abrir o texto a várias
leituras. Indique a opção em que todas as leituras são autorizadas pelo texto.
(A) O homem ainda tinha esperança de uma mudança em sua vida; desejava uma companhia para fugir da solidão; queria
despachar aquele cartão de qualquer jeito.
(B) O homem queria celebrar o Natal nem que fosse com uma desconhecida; era um ingênuo; vira na mulher uma segunda
mãe.
(C) O homem ainda acreditava na vida e no amor; via na mulher alguém que poderia estar sofrendo como ele e esperando
uma oportunidade para mudar de vida; acreditava no milagre do Natal.
(D) O homem tinha muita fé e esperança; como uma criança, ainda acreditava em um presente de Papai Noel; queria uma
mulher que pudesse, como sua mãe, dar-lhe alegria.
09 - C
08 - A
07 - C
06 - C
05 - C
04 - B
03 - D
02 - B
01 - A
Respostas

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O REI DA VELA
OSWALD DE ANDRADE

Introdução

O rei da vela (1937) é uma peça teatral dividida em três atos, escrita por Oswald de Andrade (1890-1954), e que foi
levada aos palcos pela primeira vez, apenas em 1967, sob direção de José Celso Martinez no Teatro Oficina, que existe
desde 1958 e está localizado no famoso bairro Bixiga, em São Paulo.
Oswald de Andrade ficou muito conhecido por ter sido um dos mentores da Semana de Arte Moderna (1922), além
de ter proposto uma reflexão sobre o Brasil a partir da criação de um grupo intitulado Poesia Pau-Brasil, que foi também um
dos livros de poesia que escreveu, e de outro grupo, mais famoso: o Antropofágico. Ambos, tinham como proposta repensar
a história do país, que fora colonizado e conquistara a independência.
No entanto, o Brasil não figurava (como de resto não ocupa esse posto ainda hoje) entre as principais nações do
mundo, nem era uma das mais influentes econômica ou culturalmente. Com efeito, o país estava em um lento processo de
desenvolvimento; saíra de uma economia escravocrata, rural e extremamente oligárquica. O próprio Oswald de Andrade
era oriundo dessa realidade, que começou a ruir com a crise de 1929, motivada pela queda da Bolsa de Valores em Nova
York e que levou muitos fazendeiros, produtores de café, à falência.
Era o período que ficou conhecido como República Velha ou Café com Leite (1898-1930), pela alternância,
oligárquica, na presidência por políticos paulistas (café) e mineiros (leite). Com a crise econômica, abriu-se espaço para a
ascensão de um político fora do eixo. No caso, teve início o primeiro governo Getúlio Vargas (1930), gaúcho, que, em 1937,
sob a velha alegação de que o Brasil corria risco de se tornar uma ditadura comunista, implantou uma ditadura, que durou
até 1945.
A peça de Oswald foi escrita, originalmente, em 1933 e revista em 1937. O tema é sobre como um produtor de velas
ascendeu socialmente, ao se unir ao capital estrangeiro (norte-americano), e passar a emprestar dinheiro a juros abusivos a
uma grande massa de pessoas falidas. Além disso, com o empobrecimento da população devido à crise no capitalismo,
muitos deixaram de usar luz elétrica (que existia no Brasil desde 1881) e voltaram a usar iluminação à base de vela. Em
outros termos, Oswald trata, no livro, sobre as contradições do país, que queria e precisava se modernizar, mas onde ainda
vigorava uma mentalidade colonialista.
A peça apresenta personagens individuais, como Abelardo, bem como tipos, que, embora tenham nome, são
normalmente apresentados de modo mais genérico: O americano, o cliente etc.
Mesmo entre os personagens individuais, o leitor ou espectador pode perceber o indivíduo representante de uma
coletividade, de uma classe. Não por acaso, o protagonista é identificado como Abelardo I, que conta com o Abelardo II,
representantes dos novos ricos, dos representantes do capitalismo internacional; já o Coronel Belarmino, Dona Cesarina,
Heloísa de Lesbos, entre outros, representam a elite rural decadente, particularmente os aristocratas.
A peça é essencialmente política e descreve a ascensão de uma nova classe, mas que ainda precisa da elite
decadente, como meio de obter legitimidade política e figurar entre as principais famílias brasileiras. Embora a peça tenha
um contexto bem específico, ela consegue ir além do momento para tratar sobre as relações humanas, que têm como base a
manutenção do poder.

Enredo

Como afirmado, a peça tem três atos, em que desfilam cerca de 15 personagens (alguns com valor individual, outros
coletivos). No Ato 1, a primeira cena apresenta Abelardo I e Aberlado II, além do cliente, que representa os devedores. A
cena se presta para contextualizar, logo de início, o ambiente da peça.

ABELARDO II — Pois não! O seu nome?


CLIENTE (Embaraçado, o chapéu na mão, uma gravata de corda no
pescoço magro.) — Manoel Pitanga de Moraes.
ABELARDO N — Profissão?
CLIENTE — Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez.
Depois fui dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana. O
empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu
a menina... (ANDRADE, 2008, p. 13)

O cliente afirma que era proprietário, antes de se tornar proletário. Isto é, ele era alguém que tinha alguns bens,
imóveis ou propriedades rurais, mas que acabou perdendo tudo. Passou, então, a viver de salário e de empréstimos sempre
renovados. Seu nome, Manoel Pitanga de Moraes, é revelador de que pertencera à elite econômica. Ele fora até o escritório
do Abelardo por estar há dois meses sem pagar os juros. Reclama que já havia pagado duas vezes a dívida, mas que ainda
devia. E ameaça usar a lei contra a usura. Trata-se de um decreto instituído pelo governo Getúlio Vargas: o 22.626, de 7 de
abril de 1933, já revogado.

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Por esse decreto, limitava-se o valor dos juros cobrados, bem como o modo de liquidação da dívida. Devido a ser
uma intervenção estatal, não algo regulado pelo Mercado, Abelardo via a lei como aberração, como lei que favorecia a
sociedade, mas não aos empreendimentos capitalistas. Por isso, diz ao cliente:

ABELARDO I (Interrompendo-o, brutal.) — Ah! meu amigo. Utilize-se


dessa coisa imoral e iníqua. Se fala de lei de usura, estamos com as
negociações rotas... Saia daqui! (ANDRADE, 2008, p. 15)

Após esse episódio, Abelardo I diz ao Abelardo II que não irá receber mais ninguém, pois sabe que todos iriam pedir
prorrogação do prazo, que estavam falidos etc. Os clientes são representados por nomes específicos, quando se refere a
membros de famílias tradicionais, porém falidas, e de modo genérico, como “vozes”, “devedores”, “devedoras”.
A sequência do diálogo entre eles é bem esclarecedora e sintética: falam sobre o casamento próximo de Abelardo I
com Heloísa de Lesbos, “a flor mais decente dessa velha árvore bandeirante. Uma das famílias fundamentais do Império”.
(ANDRADE, 2008, p. 18) Ela pertencia a uma das dez famílias importantes de São Paulo e por isso queria a união. Não se
trata de amor. Apenas conveniência.
Ainda neste ato, o leitor/espectador toma ciência do papel de Abelardo II, que representaria, segundo a visão de Karl
Marx, uma segunda etapa do capitalismo: o socialismo, posto que a massa de trabalhadores exigiria leis e direitos para
garantir-lhes sua subsistência e existência.

ABELARDO I — Diga-me uma coisa, Seu Abelardo, você é socialista?


ABELARDO II — Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiro.
ABELARDO I — E O que é que você quer?
ABELARDO II — Sucedê-lo nessa mesa.
ABELARDO I — Pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa
logo assim... Entrando num acordo com a propriedade... (ANDRADE,
2008, p. 24)

Ainda que tenha sido sancionada após a redação final da peça, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em
defesa dos trabalhadores, foi promulgada em 1º de maio de 1943, por meio do Decreto-Lei nº 5.452, durante o governo de
Vargas.
Na cena 3 ainda do primeiro ato, Abelardo I fica com sua secretária para que redija uma carta a um tal Cristiano de
Bensaúde. Era um industrial do Rio de Janeiro, que havia a Abelardo uma associação contra os trabalhadores. Na mesma
cena, a secretária pede um aumento em seu salário, que diz poder aumentar se ela lhe favorecer de algum modo. A conversa
não avança muito. Logo em seguida, chega Heloísa, a noiva de Abelardo. Ela não esconde que seu relacionamento é
meramente comercial. Ela é filha do coronel Belarmino, ex-proprietário de sete fazendas e vários imóveis. Moravam agora
em uma casa no bairro da Penha.
No mesmo instante, aparece um intelectual decadente, chamado Pinote. Queria escrever uma biografia de
Abelardo. A conversa entre eles serve para contextualizar as discussões literárias ainda vigentes no momento, quando se
acusavam os modernistas de serem péssimos artistas, ao passo que a “verdadeira” arte estaria entre os clássicos, entre os
parnasianos. Também se presta para Abelardo expressar sua visão condenatória de qualquer exaltação à cultura popular ou
ao socialismo, de modo a exaltar apenas a cultura elitista.

ABELARDO I — Pode ser também extremamente perigoso. Se nas suas


biografias exaltar heróis populares e inimigos da sociedade. Imagine
se o senhor escreve sobre a revolta dos marinheiros pondo em relevo o
João Cândido... ou algum comunista morto num comício!
PINOTE — Não há perigo. A polícia me perseguiria.
ABELARDO I — Ê então um intelectual policiado...
PINOTE — Faço questão de manter uma atitude moderada e distinta!
[...]
HELOÍSA — Faz versos?
PINOTE — Sendo preciso... Quadrinhas... Acrósticos... Sonetos...
Reclames.
HELOÍSA — Futuristas?
PINOTE — Não senhora! Eu já fui futurista. Cheguei a acreditar na
independência... Mas foi uma tragédia! Começaram a me tratar de
maluco. [...]
ABELARDO I — Mas qual é a sua cor política nestes agitados dias de
debate social?

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PINOTE — Eu tenho uma posição intermediária, neutra... Não me meto.


ABELARDO I — Neutra! É incompreensível! É inadmissível! Ninguém é
neutro no mundo atual. Ou se serve os de baixo... (ANDRADE, 2008,
p. 32-33)

Pode-se perceber a atualidade da peça, tendo em vista que é comum momentos dicotômicos na sociedade. Mais adiante,
Heloísa e Abelardo I conversam sobre as condições do Brasil, o perigo vermelho (a ameaça comunista sempre foi uma tese
utilizada por determinados grupos políticos no Brasil; não por acaso, a peça foi levada aos palcos em 1967, no contexto que,
dois anos depois, o Ato Institucional n. 5 foi promulgado, dando início à pior fase da Ditadura Militar na caça às bruxas ou a
supostos comunistas), sobre como Abelardo enriquecera, ainda que nem sempre de maneira tão honesta ou se aproveitando
do desespero dos produtores de café, da aristocracia decadente:

Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro! [...] Descobri e incentivei


a regressão, a volta à vela... sob o signo do capital americano. [...] As
empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pôde pagar o
preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente.
(ANDRADE, 2008, p. 36)

A crise de que fala a peça teve alguns fatores, mas sobretudo foi o fato de o Brasil, à época, ser um país de
monocultura. Basicamente, exportava-se café. A título de curiosidade, uma saca de café valia cerca de 200 mil réis (R$
1.626,00); com a crise provocada pela queda da bolsa de valores em Nova York, em 1929, a mesma saca caiu para 21 mil réis
(R$ 171,00). Com isso, não havia dinheiro para pagar os empréstimos, levando à liquidação de muitas dívidas, utilizando-se
terras e imóveis usadas como emprenho.
Ao mesmo tempo, apesar de Abelardo I representar o capitalista que se beneficiou com a crise, o grosso de seu
dinheiro vinha de fora. Do mesmo modo que o dinheiro estava aqui, poderia ser facilmente retirado, levando-o à falência
também.

Abelardo I – [...] Os países inferiores têm que trabalhar para os países


superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que
New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil
pernas mais bonitas da terra se não se trabalhasse para Wall Street
de Ribeirão Preto à Cingapura, de Manaus à Libéria? Eu sei que sou
um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas
não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você...
(ANDRADE, 2008, p. 38)

No final ao Ato I, aparece exatamente o americano, para quem Abelardo deve. Conforme o trecho anterior,
percebe-se a submissão do Brasil ao capital estrangeiro. Para Oswald de Andrade, ser livre de um perigo comunista
significava ser livre de fato. Apenas o patrão seria outro.
O Ato II começa com Abelardo, Helóisa e toda sua família, além do americano, festejando na ilha que Abelardo
comprara. A primeira cena é entre Abelardo e D. Cesarina, mãe de Heloísa. Apesar de ser sua sogra, Abelardo procura
assediá-la a todo instante. A sogra não o abraça, mas também não o repele. Sabia que dependia do dinheiro dele. Como se
pode perceber, estabelece-se, na peça, um variado nível de dependência, para lembrar que no cenário geopolítico, o Brasil
seria um país totalmente dependente do capital estrangeiro.
Na sequência, aparece o filho de D. Cesarina, Totó Fruta-do-Conde, nomeado assim para indicar sua
homossexualidade. Estava sozinho após terminar com o namorado, Godofredo. Na cena em questão, faz uma brincadeira de
cunho erótico com Abelardo, que prefere se afastar. A brincadeira gira em torno de pescar tubarões, no sentindo, de
encontrar outros pretendentes. Essa mesma conversa será retomada adiante para esclarecer que Godofredo o havia traído
com uma mulher comum, uma popular.

TOTÓ — Se não fosse aquele detalhe! Imagine, eu disse ao Godofredo:


Você pode me trair com qualquer mulher. Qualquer, hein? Mas com
aquela não admito! E foi justamente com ela! Tenho provas! (ANDRADE,
2008, p. 60)

Esse clima de licenciosidade é estendido à Heloísa, que se deixava seduzir pelo americano. D. Cesaria questiona
Abelardo sobre o que pensava, ao que ele responde que não se importava e nem tinha tempo para ciúmes. Afinal, o homem
era o dono do dinheiro...
Aparece D. Poloca, tia de Heloísa. Fica sugerido que tem um caso com Abelardo, ainda que não sexual. É uma mulher
de 62 anos, supostamente virgem, que vive de aparência, mas que não se importa em fazer concessões às escondidas para
manter a vida glamourosa.

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D. POLOCA — O senhor é um burguês! Eu uma fidalga que teve a ventura


de beijar as mãos de Sua Alteza a Princesa Isabel, ouviu? (ANDRADE,
2008, p. 50)

Em um outro momento em que estão conversando, Abelardo pergunta a D. Poloca o que faria se ela tivesse muito
dinheiro, se ele lhe desse um milhão de dólares. Ao que ela responde que se mudaria para Petrópolis, no Rio de Janeiro. Era a
cidade de descanso de D. Pedro II e da aristocracia brasileira. Sua residência hoje é um museu imperial.
Conversam, em sequência, Abelardo, Heloísa, Joana (ou João)1 , o coronel Belarmino, que lembra a importância que
teve Abelardo em sua vida, acrescentando que seria importante ter um banco hipotecário no Brasil, ainda que com capital
estrangeiro. Seria a salvação de muito, isto é, a salvação da elite rural decadente.
Em linha semelhante, conversam, depois, Heloísa, D. Poloca e João/Joana. A necessidade que tinham em se
envolver com uma pessoa tão sem classe, como Abelardo.
Aparece Perdigoto, outro filho do coronel Belarmino, propondo criarem uma milícia patriótica contra os
trabalhadores que começavam a se organizar para exigirem direitos. Mesmo sabendo que Perdigoto é um alcoólatra e
jogador compulsivo, resolve ajudar com dinheiro, pois Cristiano de Bensaúde iria colaborar para formar a tal milícia fascista
rural. Segundo o discurso de Abelardo, o liberalismo é bom até o momento em que os trabalhadores estão sob os cuidados
da fé cristã, obedientes. Mas quando há uma revolta, é preciso que o liberalismo seja fascista, como estava ocorrendo na
Itália.

PERDIGOTO — Fora de brincadeira. A situação obriga a isso.


Organizemos uma milícia patriótica. Que acha? Nos instalaremos
provisoriamente na Casa central. Combinaremos com os outros
fazendeiros. Arrolaremos gente, a capangada está sempre pronta...
Será o nosso quartel-general. E se a colônia der um pio... (ANDRADE,
2008, p. 63)

É o fim do segundo ato e começo do terceiro. Volta-se ao cenário do Ato 1, isto é, o escritório de Abelardo. Na cena
1, conversam Abelardo e Heloísa. Ele lhe explica que estava falido, que não conseguiria mais dar-lhe a vida que gostaria.

HELOÍSA — E eu como é que fico? Na miséria outra vez. Eu não sei


trabalhar, não sei fazer nada. E a mina gente... Eu acabo dançando no
Moulin Bleu... (ANDRADE, 2008, p. 72)

O Moulin Bleu era uma casa de espetáculos, que ficava próximo à Praça da Sé em São Paulo. Heloísa sugere, pois,
que teria de ser dançarina para sobreviver.
Abelardo faz todo um discurso explicando que fora roubado, que perdera tudo, que entendia, porque ele própria
fizera o mesmo. Refere-se ao Romantismo revolucionário, que pôs a burguesia no poder sob o lema da igualdade, da
fraternidade e da liberdade, mas que, com o tempo, a burguesia se vendera ao dinheiro, que, o que importava, era o acúmulo
do capital.
Por isso, a única solução era morrer (durante toda a fala, ele empunhava uma arma). Com efeito, ele dá um tiro em
si mesmo e fica agonizando ao lado de Heloísa. Quem aparece, na sequência, é Abelardo II, o empregado que roubara. Em
sentido simbólico, ambos têm o mesmo nome, pois a morte do indivíduo não mata o sistema, que subsiste no outro indivíduo.
Ou seja, o capitalismo não morreria com Abelardo, mas continuaria a existir com outros Abelardos, outras pessoas como ele.

ABELARDO II — Por que fez essa loucura?


ABELARDO I — Um homem não tem importância... A classe fica. Resiste.
O poder do espiritualismo. Metempsicose social...
ABELARDO II — Quer que chame um médico?
ABELARDO I — Para quê? Para constatar que eu revivo em você? E
portanto que Abelardo rico não pagará a conta de Abelardo suicida?
[...]
ABELARDO I — Para quê? Outro abafaria a banca. Somos uma barricada
de Abelardos! Um cai, outro o substitui, enquanto houver imperialismo
e diferença de classes... (ANDRADE, 2008, p. 76, 79)

1 Embora seja uma mulher, Joana, ela também é chamada de João dos Divãs, sugerindo, pois, uma bissexualidade, assim como no caso de Heloísa, indicada como de
Lesbos, referência a uma ilha da Grécia antiga, habitada por mulheres. Um dos irmãos de Heloísa, Totó Fruta-do-Conde é explicitamente caracterizado como
homossexual.

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Enquanto Aberlado profere seu derradeiro discurso, ouve-se a Internacional Socialista, um hino para difundir o
ideário socialista. Opondo-se ao que fora, Abelardo I conta uma história de um cachorro, que preferiu passar fome entre os
seus a viver com privilégios entre um pelotão de soldados. A história serve para ilustrar a mudança de pensamento de
Abelardo, que traíra a sua classe (era pobre na origem) para viver entre as pessoas da elite; sentia-se um traidor de sua
classe social. Em seu delírio final, Abelardo ouve uma voz, que explicita seus temores como capitalista em um país
subdesenvolvido e que fora colonizado:

UMA Voz (Grossa, terrificante, da porta escancarada que mostra a jaula


vazia.) — Eu sou o corifeu dos devedores relapsos! Dos maus pagadores!
Dos desonrados da sociedade capitalista! Os que têm o nome tingido
para sempre pela má tinta dos protestos! Os que mandam dizer que não
estão em casa aos oficiais de justiça! Os que pedem envergonhadamente
tostões para dar de comer aos filhos! Os desocupados que esperam sem
esperança! Os aflitos que não dormem, pensando nas penhoras. (Grita.)
A Amé-ri-ca - é - um - blefe!!! Nós todos mudamos de continente para
enriquecer. Só encontramos aqui escravidão e trabalho! Sob as garras
do imperialismo! Hoje morremos de miséria e de vergonha! Somos os
recrutas da pobreza! Milhões de falidos transatlânticos! Para as nossas
famílias, educadas na ilusão da A-mé-ri-ca, só há a escolher a cadeia
ou o rendez-vouz! Há o sui-cí-dio tambéml O sui-cí-dio... (ANDRADE,
2008, p. 83)

A peça termina com Abelardo segurando uma vela em um castiçal de latão. Ainda com o morto em cena, Abelardo II
e Heloísa se casam e a fala final do americano resume o princípio crítico em que se baseia a peça:

O AMERICANO — Ohl good business! (ANDRADE, 2008, p. 85)

Análise

Por se tratar de uma peça de teatro (gênero dramático), é preciso considerar que não há narrador, e sim a
predominância da fala de cada personagem. Além disso, há as rubricas, que são as indicações de como a cena deve ocorrer e
como os atores devem se portar para encenarem a peça.

ABELARDO I (Sentado em conversa com o Cliente. Aperta um botão,


ouve-se um forte barulho de campainha.) — Vamos ver...
ABELARDO II (Veste botas e um completo de domador de feras. Usa
pastinha e enormes bigodes retorcidos. Monóculo. Um revólver à cinta.)
— Pronto Seu Abelardo. (ANDRADE, 2008, p. 13)

Os trechos entre parênteses são as rubricas. Observe as indicações.


Ao longo do resumo do enredo, fomos fazendo algumas análises. Ainda assim, é preciso considerar outros aspectos
importantes na peça, como as diversas referências intertextuais, como ocorre na conversa entre Abelardo e Pinote em que
se cita Sigmund Freud (1856-1939), pai da psicanálise; entre suas pesquisas, havia as que tratavam dos interditos e da
sexualidade, razão pela qual está citado na peça em dois momentos.
Outra alusão é ao Romantismo. Para além do estado de espírito romântico, a ideia é destacar o período cultural
conhecido como Romantismo (no Brasil, deu-se entre 1836 e 1881), caracterizado como um momento de idealizações e de
crenças no ideário burguês, como a liberdade e a igualdade. No entanto, considerando o contexto de crítica ao capitalismo
presente na peça, os ideais burgueses foram substituídos pelo desejo de acumulação do capital, em detrimento da pobreza
de muitos. Ou seja, sem dinheiro ninguém é, de fato, livre, além das diferenças econômicas, que colocam por terra os
princípios da igualdade e da fraternidade.
Conforme já indicado e explicado, há as discussões em torno da arte moderna, mais subversiva e, portanto,
contrária aos ideais de Abelardo (capitalismo), em contraponto à arte parnasiana, considerada como expressão dos salões e
da vida burguesa, sem contestações ou pensamento crítico a respeito da realidade social.
Ao mesmo tempo, a peça traz à baila as principais ideologias da época (que ainda estão presentes no contexto
atual, mais ou menos): o capitalismo, o socialismo, o comunismo, o fascismo. Fazendo um parêntese, é preciso entender
ideologia como uma corrente de ideias, que tanto podem expressar os valores e as crenças em determinada concepção de
vida (a religião, a política, a economia), como se fazer uma descrição da realidade com base em um ideário pessoal ou
coletivo, sem que tenha amparo na realidade. Falando de modo mais explícito: a ideologia seria um modo de criar uma falsa
realidade. Exemplo: a ideia de que todos que trabalham e são honestos enriquecem. Ainda que isso possa acontecer, fato é
que a maioria das pessoas ficará na pobreza, mesmo trabalhando muito e sendo honesto. De qualquer

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modo, trabalhar e ser honesto também é uma atitude ideológica por ser um valor, uma crença de que viver assim é o correto.
Pode-se dar diferentes outros exemplos, como a ideia nazista de que o mundo deve ser governado por uma determinada
raça humana, por assim dizer. Etc.
Os Abelardos acabam sendo a expressão de como Karl Marx (1818-1883) analisava o curso da História. De
maneira bem sintética, o mundo capitalista seria contestado por setores sociais sem privilégios, em busca de uma república
socialista; vencida essa etapa, haveria o estágio em que, de fato, se buscaria a fraternidade e a igualdade, por meio do
comunismo, até o fim do Estado, em um sistema sem governos, com as pessoas totalmente livres: o anarquismo.
Oswald de Andrade alude, essencialmente por meio das falas de Abelardo, a essa construção discursiva marxista.
O ato 3, por exemplo, é praticamente sem enredo (sobressai a falência de Abelardo, seu suicídio e o casamento de Abelardo
II com Heloísa); predomina o tom eloquente com que Abelardo I expõe os embates ideológicos da época. Há mesmo um tom
panfletário e um tanto de passadista no texto, como composição literária. Um texto literário deve, sempre, suplantar o seu
próprio contexto e ser a expressão das questões humanas. Embora consiga isso no todo do enredo, no final perde-se um
pouco nesse ponto. De qualquer modo, para além de uma quebra das expectativas, considerando os atos 1 e 2, a peça se
mantém e apresenta qualidades artísticas.
O objetivo último da peça é fazer uma descrição do Brasil em um cenário mundial. É ver na arte um meio de trazer à
baila as discussões políticas, particularmente a luta de classes. Enfim, é uma peça que, no contexto do Romance de 30,
contraria a visão parnasiana de Arte pela Arte. Para Andrade, a Arte deveria estar a serviço de uma determinada concepção
ideológica.

ATIVIDADES
01. (ENEM)
HELOÍSA: Faz versos?
PINOTE: Sendo preciso... Quadrinhas... Acrósticos... Sonetos... Reclames.
HELOÍSA: Futuristas?
PINOTE: Não senhora! Eu já fui futurista. Cheguei a acreditar na independência... Mas foi uma tragédia! Começaram a me
tratar de maluco. ' A me olhar de esguelha. A não me receber mais. As crianças choravam em casa. Tenho três filhos. No
jornal também não pagavam, devido à crise. Precisei viver de bicos. Ah! Reneguei tudo. Arranjei aquele instrumento (Mostra
a faca) e fiquei passadista.
ANDRADE, O. O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003.

O fragmento da peça teatral de Oswald de Andrade ironiza a reação da sociedade brasileira dos anos 1930 diante de
determinada vanguarda europeia. Nessa visão, atribui-se ao público leitor uma postura
(A) preconceituosa, ao evitar formas poéticas simplificadas.
(B) conservadora, ao optar por modelos consagrados.
(C) preciosista, ao preferir modelos literários eruditos.
(D) nacionalista, ao negar modelos estrangeiros.
(E) eclética, ao aceitar diversos estilos poéticos.

02. (UNICENTRO)
A SECRETÁRIA (É uma moça, longa, de óculos e tranças enormes e loiras. Veste-se pudicamente. Traz lápis e block notes na
mão.) - É para bater à máquina, Seu Abelardo?
ABELARDO I - Não. Para estenografar. Nem isso. A senhora sabe redigir. Melhor do que eu. Faça uma carta. Sente-se aí.
(Sentam-se perto um do outro.) Dona Aída... Aída loira... Aída de Wagner. Como é? Não precisa de um Radamés? A
SECRETÁRIA - Preciso que o senhor melhore meu ordenado. O custo da vida aumentou no Brasil de 30%. ANDRADE,
Oswald de. O rei da vela. Uma leitura do teatro de Oswald por Haroldo de Campos. 8.ª ed. São Paulo: Editora Globo, 1990, p.
48. (Obras completas de Oswald de Andrade)

Na sequência do fragmento acima,


(A) Abelardo, adepto do capitalismo, despede-a, pois, se aumentar o salário dela, terá de aumentar o de todos. (B) A
secretária explica que precisa muito de um aumento porque pretende se casar com um rapaz que conheceu. (C) Abelardo a
galanteia, mas ela o recusa, ao que ele, enfurecido, adverte-a a não pedir vales em seu escritório. (D) Abelardo a convida a
fazer um piquenique debaixo de uma mangueira e ela aceita, pois o ama, apesar de noiva. (E) A secretária confidencia que é
noiva de um velho milionário, com quem pretende se casar por puro interesse.

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03. (FACASPER) Assinale a alternativa correta sobre a fala de Abelardo II, em O rei da vela, de Oswald de Andrade,
apresentada a seguir
Abelardo II – A burguesia só produziu um teatro de classe. A apresentação de classe. Hoje evoluímos. Chegamos à
espinafração.

(A) Trata-se de um recurso metalinguístico que define o programa desenvolvido pela peça: a visão desmistificadora do país;
o gosto demolidor de todos os valores e a importância da estética da descompostura. (B) Trata-se do uso de expressões
curiosas da comédia brasileira, que prefere sempre escapar para a fantasia, guardando uma referência tácita à realidade,
vista através da sátira ou da farsa.
(C) A fala reflete a observação viva e inteligente da realidade, por meio de uma linguagem autêntica, vibrante e indignada
ante os erros sociais.
(D) Por meio dessa fala, o personagem propõe um grande painel histórico, político e filosófico, condenando o mundo antigo
em função do homem surgido do proletariado triunfante.
(E) A fala reflete a consciência da perda do mundo aristocrático, levando o personagem a descrever outro instante de crise –
o acelerado processo de industrialização vivida pela metrópole paulistana a partir da Semana de 22.

04. (FACASPER) Assinale a alternativa correta sobre O rei da vela, de Oswald de Andrade. (A) A peça trata da constatação
do fracasso da civilização criada pelas gerações anteriores e a contemplação da massa amorfa de números em que é
transformado o homem pela sociedade de consumo.
(B) A peça, cuja montagem marcou a evolução do Teatro Oficina, da fase existencialista em direção ao engajamento social,
conta a história de uma família nos dias que antecedem a revolução de 30 no Brasil. (C) Concebida não como um espetáculo,
mas como um sonho coletivo, a peça tem como ancestral o anarquismo libertário, configurando uma obra na qual os artistas
exprimem a necessidade de transgredir as leis num marginalismo criador
(D) A peça está vinculada a uma estética acentuadamente politizada, cujos carros-chefes são o antiimperialismo, o
anticapitalismo, a denúncia do subdesenvolvimento e a defesa da justiça social.
(E) A ideia central do texto é a de que a sociedade e a cultura funcionam como um processo de esquizofrenia do indivíduo,
conclamando os espectadores a libertarem-se do sistema e a unirem corpo e mente num sentimento de libertação.

05. (Unespar) Sobre “O Rei da vela” de Oswald de Andrade, assinale A ÚNICA ALTERNATIVA CORRETA. (A) A família de
Oswald de Andrade, tradicional em São Paulo, sofreu com a crise de 29, por isso a peça fala sobre a exploração do
proletariado pelo capitalista;
(B) O espetáculo feito por Totó Fruta-do-Conde tem por finalidade atrair os falidos, para emprestar-lhes dinheiro a juros
altíssimos;
(C) As rubricas da peça são curtas, principalmente as que iniciam os atos, nas quais se encontram apenas os nomes das
personagens que aparecerão naquele momento;
(D) Na cena da morte de Abelardo II encontra-se a justificativa para o título da peça;
(E) “Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico.” A fala é de Abelardo II e remete o leitor à história do filósofo francês do
século XII, Pedro Abelardo, e sua amada Heloísa.

06. (Unespar) Leia atentamente o trecho de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, para marcar a única alternativa
verdadeira, em relação ao trecho, ao autor e à peça como um todo.

Abelardo I- Crápulas! Sujos! Um é o Totó Fruta-do-conde! O outro, este bêbado perigoso. Virou fascista agora. Minha
cunhada veio sentar-se de maillot no meu colo para eu coçar-lhe as nádegas... com cheques, naturalmente. A sogra caída... A
outra velha... E eu é que devo me sentir honradíssimo... por entrar numa família digna, uma família única. MAIS HELOÍSA
Heloísa (Entra de maiô)- Você não vai ao banho? Estão todos prontos.
Abelardo – Não vou! Estou com um pouco de dor de cabeça. Prefiro repousar. Leve esse Americano duma figa... Minha cara,
eu estou vendo que peguei no duro, no batente, durante dez anos, para fazer uma porção de piratas jogarem ioiô! Heloísa-
Estás arrependido? Não te trago vantagens sociais? Políticas... bancárias...
ANDRADE, O Rei da Vela. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, p. 74.

(A) Os personagens, em O Rei da Vela, têm caráter simbólico. Por exemplo, Abelardo I e II representam o capital nacional
como preposto do capital estrangeiro, denunciando as relações de exploração que existiam na sociedade da década de
30, em São Paulo;
(B) O trecho selecionado revela a síntese do casamento de Abelardo com Heloísa, que assim como os personagens da
história medieval se casam e vivem juntos, enfrentando os preconceitos que existiam contra essa união; (C) O Rei da Vela é
uma peça em que se pode constatar a presença de algumas das propostas do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, como a
assimilação de outras culturas para o engrandecimento da literatura brasileira;

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(D) A linguagem utilizada na peça, como se percebe no trecho selecionado, remete o leitor à proposta feita por Oswald de
Andrade em seu Manifesto Antropófago, caracterizando-se pelo uso constante de conjunções aditivas, que dão ao texto
o ritmo da poesia;
(E) Ao apresentar a união entre Heloísa, sua família e Abelardo, Oswald de Andrade denuncia a união entre a burguesia,
representada por Heloísa, e a nobreza, representada por Abelardo, que se submete a um casamento sem amor, para
salvar as aparências e seu patrimônio.

07. (UNICENTRO) MAIS O INTELECTUAL PINOTE.


PINOTE (Entra de chapéu de poeta na mão. Uma gravata lírica. Sorrindo. Mesuras. Traz uma faca enorme de madeira como
bengala.) — Bom dia, mestre.
HELOÍSA (Dá um grito lancinante) — Aí! A faca!
ABERLARDO I — Desarme esse homem! Ora essa! (Aberlado II atira-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simbólica)
Deixar entrar gente com armas aqui!
PINOTE (Escusando-se humildemente.) — É inofensiva... de pau!
ABELARDO I — Confesse que o senhor planejou um atentado! Confesse!
PINOTE – Absolutamente! Por quem o senhor está tomando? É uma faca profissional, inofensiva, não mata...
ABELARDO II (Examinando) — Está cheia de sangue... sangue coagulado...
PINOTE — Umas facadinhas... para comer... (A um gesto de Abelardo I, senta-se. Abelardo II permanece ao fundo, segurando
com as duas mãos a faca em horizontal, como um servo antigo.) A crise é que obriga... Mas não sou nenhum gangster, não. Eu
sou biógrafo. Vivo de minha pena. Não tenho mais idade para cultivar o romance, a poesia... O teatro nacional virou teatro de
tese. E eu confesso a minha ignorância, não entendo de política. Nem quero entender...
ABELARDO I — É um revoltado?
PINOTE — Absolutamente não! Fui no colégio. Hoje sou quase um conservador! O que me falta é convicção.
ABELARDO I — Tem veleidades sociais... quero dizer, bolchevistas?...
PINOTE — Não senhor! Olhe, tenho até nojo de gente baixa... gente de trabalho... não vai comigo!
ABELARDO I — Muito bem!
PINOTE — Gente que cheira mal...
HELOÍSA — Ninguém dá sabão a eles para se lavarem.
ABELARDO II — Nem pão, quanto mais sabonete...
ABELARDO I (Tranquilizando Pinote que se voltou.) — Não se incomode. Ele é socialista. Mas moderado, de faca também.
(Sorriso dos dois.) Mas afinal, qual é o gênero literário que cultiva, meu amigo?
PINOTE — Os grandes homens! Pretendo fazer como Ludwig. Escrever as grandes vidas! Não há mais nobre missão sobre o
planeta! Os heróis da época.
ABELARDO I — Pode ser também extremamente perigoso. Se nas suas biografias exaltar heróis populares e inimigos da
sociedade. Imagine se o senhor escrever sobre a revolta dos marinheiros pondo em relevo o João Cândido... ou algum
comunista morto num comício!
PINOTE – Não há perigo. A polícia me perseguiria.
ABELARDO I — É então um intelectual policiado...
PINOTE — Faço questão de manter uma atitude moderada e distinta!
ANDRADE, Oswald de. O Rei da Vela. São Paulo: Globo, 2003. p. 55-56.

Contextualizada na obra “O Rei da Vela”, a análise das personagens em destaque no fragmento permite afirmar: (A) Tanto
Abelardo I quanto Abelardo II, com exceção de Pinote e de Heloisa, são inconformados com o sistema político e social da
época.
(B) Todas as personagens presentes no fragmento compartilham de ideologias materialistas e são indiferentes aos
problemas de ordem socioeconômica.
(C) Pinote vai ao encontro de Abelardo I com o objetivo de questionar sua atitude usurária diante dos mais humildes. (D)
Heloisa, filha de um fazendeiro arruinado pela crise, representa a classe dos oprimidos, que é excluída do processo social.
(E) Abelardo II, embora se espelhe nos valores de seu chefe, apresenta uma postura diferente e mais humilde em relação aos
que o procuram para pedir empréstimos.

07 - B
06 - A
05 - E
04 - D
03 - A
02 - C
01 - B
Respostas

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O SEMINARISTA
BERNARDO GUIMARÃES

Introdução

O seminarista (1872) está inserido no contexto do Romantismo (1836-1881). Trata-se de um romance regional, muito
comum durante a década de 1870 no Brasil. Tal tendência expressa o objetivo de tratar de toda a variedade cultural
presente no país, além de pretender identificar a origem e as características próprias do ser brasileiro no homem
interiorano.
No caso específico, o enredo se passa em Minas Gerais e fala sobre o embate entre o desejo individual e as
obrigações sociais. A história terá um final trágico, como se verá. O autor, Bernardo Guimarães (1825-1884), irá publicar
alguns anos depois um de seus livros mais famosos: A escrava Isaura (1877), em que tematiza as injustiças causadas pela
presença da escravidão e os preconceitos que ela gera. Trata-se da história de uma escrava branca, pretendida pelo seu
senhor, Leôncio, que quer fazer dela uma escrava sexual. No entanto, encontra em Álvaro um defensor. Ou seja, neste caso,
o aludido embate torna o indivíduo vitorioso. Em O seminarista, a sociedade será vitoriosa, de certo modo.
O Romantismo é uma escola literária fruto das tensões que ajudaram a construir o mundo contemporâneo. No caso,
a luta por liberdade na acepção burguesa contra o absolutismo da monarquia resultou na Revolução Francesa (1789-1799)
e, posteriormente, na Independência do Brasil (1822). Aqui, o Romantismo se adaptou e teve como fruto diversas obras de
caráter burguês, urbano, outras de temática indianista, nacionalista, além da linha regional de que faz parte o livro sobre
qual iremos tratar nesta resenha.
Entre os preceitos burgueses ou românticos, estão a busca pela liberdade individual e a manifestação dos próprios
desejos. O problema é que nem sempre a individualidade encontra respaldo na organização social, ainda mais no interior do
país. Muitos livros abordaram esses embates, incluindo um famoso, Amor de perdição, do português Camilo Castelo Branco.
Na linha regional, podemos citar Inocência, de Alfredo Taunay, ou O gaúcho, de José de Alencar. Em todos esses romances,
perde o indivíduo em prol da organização social.
Em O seminarista, como o próprio título indica, narra-se uma história em que crenças religiosas, poder econômico e
tradição social suplantam os desejos do indivíduo. Vejamos, pois, o enredo para que a análise seja mais clara.

Enredo

O livro coloca o leitor, logo de início, ciente de que tratará de um jovem casal, que eram amigos desde a infância.
Eugênio tinha cerca de 13 anos e Margarida por volta de 11 anos quando começa a história. Em seguida, o narrador explica
melhor, dizendo que Eugênio era filho do capitão Francisco Antunes, fazendeiro de algumas posses, e pouco escravos. Por
isso, deixava morar em suas terras uma série de agregados.
Entre esses agregados, moravam numa casa simples Umbelina, viúva de um combatente da Guerra dos Farrapos
(ou Farroupilha), ocorrida no Rio Grande do Sul (1835-1845), e sua filha única, Margarida. Eugênio era o terceiro filho do
casal. Como seus irmãos eram bem mais velhos, ele, desde cedo, se tornou muito amigo de Margarida. O que eram inocentes
brincadeiras, na adolescência se tornou uma paixão e, depois, amor. Porém, havia dois impedimentos para o relacionamento
do casal: a financeira (o capitão não gostaria que um filho seu se casasse com uma agregada) e religiosa (desde cedo, os pais
queriam que Eugênio se ordenasse padre). Seguir a vida religiosa era uma tradição muito comum entre famílias do interior,
sobretudo as que tinham mais filhos. Ao menos um dos filhos ou filhas deveria seguir a vida monástica.

Naquelas épocas de crença viva e piedade religiosa, ter um filho


padre era um prazer, uma glória, de que muito se ufanavam os pais
e as mães de família, e, mesmo hoje, principalmente entre os nossos
morigerados e religiosos fazendeiros, não falta quem pense que não
pode haver carreira mais bonita, mais santa, nem mais honrosa. Assim
pensamos também, quando aqueles que a abraçam a exercem nobre e
dignamente. (GUIMARÃES, 2022, p. 8)

Há, ainda, uma terceira razão para que os dois jovens não fiquem juntos. Quando Margarida tinha dois anos, uma
cobra se enroscou em seu corpo. Não a atacou, mas foi surpreendida pelo menino Eugênio, que gritou por ajuda. A cobra
fugiu sem ferir a menina, mas a senhora Antunes considerou o fato como algo negativo. Talvez a menina tivesse um pacto
com o mal, por isso teria saído ilesa.

Umbelina via nele um milagre, pelo qual dava infinitas graças ao céu
apertando nos braços a filhinha que, como ela dizia, tinha nascido
naquele dia. A mulher de Antunes porém, que tinha o espírito propenso

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a acreditar em superstições e agouros, teimava em ver naquilo um


sinistro prenúncio, que ela mesma não sabia explicar. (GUIMARÃES,
2022, p. 7)

De qualquer modo, as duas crianças sempre estiveram muito próximas no dia a dia, nas brincadeiras. Porém, quando
Eugênio fez nove anos, ficou dois anos longe de sua amiga para ser alfabetizado na cidade. Com o seu retorno, a amizade
entre eles continuou, mas aos poucos iam se percebendo de modo diferente. As brincadeiras infantis davam lugar a um
sentimento mútuo que ainda não sabiam explicar. A despeito disso, os pais de Eugênio resolveram enviar o filho para
Congonhas do Campo (hoje a cidade se chama Congonhas apenas e fica próxima a Ouro Preto e a mais de 800km da vila de
Tamanduá, ao norte de Minas Gerais). Eugênio é descrito como um menino obediente e pacato, não tinha forças ou
disposição para enfrentar os pais e aceitou de bom grado a mudança. Já no seminário, mostrou-se um estudante inteligente
e interessado, estava sempre à frente dos demais na realização das tarefas escolares e religiosas. Porém,

[...] uma coisa perturbava o seu bem-estar, e lançava uma sombra na


limpidez e serenidade do seu horizonte. Era a saudade imensa, que
tinha, do lar paterno e especialmente de Margarida, saudade que
nem o tempo, nem os seus novos hábitos e ocupações puderam jamais
arrancar-lhe do coração. (GUIMARÃES, 2022, p. 11)

Segundo o narrador, Eugênio se interessava muito pela poesia, especialmente as sentimentais. Por isso, resolveu
escrever alguns textos poéticos dedicados à Margarida. Para azar de Eugênio, o padre regente descobriu os escritos do
menino e levou ao conhecimento do diretor do Seminário.

Eugênio ficou aterrado. Tanto a sua língua como a sua inteligência


ficaram como que paralisadas ao choque daquela furibunda apóstrofe.
Sua surpresa e estupefação eram completas. Nunca lhe passara pela
cabeça, que querer bem a uma criança como ele, e fazer-lhe versos
fosse uma abominação, um horroroso pecado, e se procurava ocultar
esses produtos do seu estro infantil era mais por acanhamento e por
uma espécie de pudor instintivo, e não porque tivesse consciência de
cometer um ato repreensível. (GUIMARÃES, 2022, p. 18)

Como castigo, além da bronca que levou, Eugênio teve de queimar seus versos. O problema principal foi que já não
sabia mais como esconder sua paixão, que se confrontava contra a obrigação dos estudos e, principalmente, do futuro já
traçado. Entrou em crise entre obedecer aos desejos pessoais e a necessidade de seguir o que a sociedade, isto é, os pais
esperavam dele. Ficou doente, emagreceu e passava horas e horas em oração para que encontrasse uma saída.
Foram quatro anos sem voltar para a vila de Tamanduá, sem ver seus pais e, principalmente, sem notícias de
Margarida. A despeito dos padres, que não queriam que Eugênio voltasse para sua terra para que não revisse a menina,
tiveram de ceder porque o próprio capitão Antunes queria rever o filho.

[...] o dia da chegada de Eugênio foi um dia de festa em casa do capitão


Antunes. Pai e mãe se extasiavam diante do filho, e não se fartavam
de contemplá-lo, admirando-lhe o porte e o crescimento, as maneiras
e o rosto já tão graves e sisudos, e enfim aquele todo verdadeiramente
sacerdotal. Como Eugênio chegara à casa quase à noite, somente na
manhã do dia seguinte Umbelina e sua filha puderam ir cumprimentar
e visitar o recém-chegado, o pequeno padre, como já chamavam a
Eugênio. Apenas este deu com os olhos em Margarida, sentiu um abalo
estranho, uma perturbação extraordinária; corou e empalideceu no
mesmo instante, ficou trêmulo, confuso e tolhido, como se tivesse
diante de seus olhos um espectro ameaçador, e apenas pôde balbuciar
um cumprimento embaraçado. (GUIMARÃES, 2022, p. 23)

Como se pode perceber, apesar dos quatro anos, apesar de todos os sacrifícios e orações, Eugênio não conseguia
se desprender de Margarida. Já eram dois adolescentes de 17 e 14 anos, aproximadamente. Assim, quando a viu, o rapaz
ficou sem reação, sem saber como se portar. Margarida, de sua parte, ficou mais expansiva e sorridente com o retorno do
amigo.
Quando ficaram sós, Margarida lhe deu uma rosa e ela ficou com um cravo. A rosa a representaria e o cravo a ele.
Assim, segundo a promessa que ela mesma fez, quem se desfizesse da flor, estaria se desfazendo do outro. No outro dia, ele
foi até a casa dela, onde havia uma paineira, em cujo tronco Margarida entalhara com uma faca as letras M e E.
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Eugênio, com isso tudo, ficara ainda mais perdido em como lidar com a situação. Sabia apenas que amava a menina e que não
gostaria mais de seguir na vida sacerdotal. Apesar disso, Margarida prometeu que ela seria a primeira fiel a se confessar com
ele após a ordenação.
O conflito está estabelecido. De um lado Eugênio não quer mais ser padre, ao mesmo tempo que tem de obedecer
aos pais; Margarida não quer ser a causa desse conflito, mas acaba sendo, pois não quer se separar do amigo.

— [...] Para ser padre é preciso que eu não olhe mais para você, que não
te queira mais bem, e que nem me lembre de você... e isso é coisa que
eu não posso, é teimar à toa, não posso fazer.
— E o mais é que é verdade, Eugênio; você tem razão. Eu também — para
que hei de mentir?... —, eu também, cá comigo, não tinha lá grande
vontade que você fosse padre, não; para sempre é uma coisa que mete
respeito, e até faz medo. (GUIMARÃES, 2022, p. 30)

Quando teve condições e coragem, resolveu conversar com a mãe, para dizer-lhe que não queria mais ser padre. A
sra. Antunes, de sua parte, via a influência maligna que a menina exercia sobre o filho. Não por acaso, lembrou se do episódio
da cobra enroscada nela quando bebê. Se à época não compreendera bem, agora tinha certeza de que a menina teria um
pacto com a serpente do mal, por isso nada sofrera naquela ocasião. Era, pois, necessário afastar os dois, para que Eugênio
seguisse pelo caminho do bem, isto é, da vida sacerdotal.

A aventura da cobra enleando-se no corpo de Margarida, que nunca lhe


saía da lembrança, lhe incomodara sempre o espírito. Agora refletindo
sobre a cega e ardente afeição que a menina ia inspirando cada vez
mais a seu filho, entrou a nutrir as mais tristes e sombrias apreensões,
e acabou por convencer-se que não era senão o demônio, que em
figura de cobra viera lançar no seio da menina o germe da tentação
para seduzir seu filho, desviá-lo de sua santa vocação, e arrastá-lo ao
caminho da perdição. (GUIMARÃES, 2022, p. 33)

Como resolução, Eugênio estava proibido de se encontrar com a menina. Apesar da proibição, ele procurava meios
de rever sua amada. Um desses meios foi mentir para os pais, dizendo que passaria a noite na casa de um primo. Nessa noite,
havia muita gente na casa de Umbelina, pois era período de colheita do algodão e uma prática comum eram os vizinhos se
ajudarem. Durante à noite, como de costume, era um momento de diversão e comilança. Por essa ocasião, estava na casa um
moço chamado Luciano, que tinha interesse em se casar com Margarida.
Como ela já lhe negara qualquer interesse, Luciano percebeu que ela estava apaixonada pelo filho do capitão
Antunes. Enciumado, provocou confusão, gritaria e quase violência. Queria bater em Eugênio.

[...] estava cruelmente ferido em sua fatuidade e amor-próprio,


mordia se de raiva e de ciúme, e só procurava uma ocasião de vingar
se do desdém de Margarida sobre o pobre e inofensivo estudante.
(GUIMARÃES, 2022, p. 38)

Eugênio não teria força para enfrentar Luciano, que era mais velho. No entanto, um dos rapazes que estava no
local ajudou-o e conseguiram expulsar Luciano da festa.
Após o ocorrido, Eugênio resolve ir à casa do primo, conforme dissera aos pais. O capitão Antunes, após saber o
que ocorrera, foi buscar o filho e exigiu que partisse imediatamente para Congonhas, mesmo com a manifestação corajosa
de Eugênio, que lhe dizia que não queria mais ser padre.
A resposta do capitão põe por terra qualquer esperança no coração do menino, que não conseguia, de fato, desafiar
os pais.

— [...] Estou bem certo que, se não fosse ela, não terias semelhantes
caprichos. E pensas tu, que eu hei de consentir que deixes de seguir
uma carreira tão bela e tão honrosa, para o que não tenho poupado
dinheiro nem cuidados, por amor de uma... miserável? (GUIMARÃES,
2022, p. 42)

A despeito das proibições, Eugênio e Margarida se veem uma última vez antes da partida e se beijam. Ele reforça a
promessa de que não se ordenará padre e voltará para ela, que também faz a promessa de esperar por ele. O primeiro ano de
retorno ao Seminário foi um suplício para Eugênio, que vivia recluso, ensimesmado, já não sorria ou brincava com os colegas
apesar de todos os esforços dos padres para que se recuperasse. Uma solução mais urgente foi proposta ao capitão Antunes,
que deveria dar um jeito de casar Margarida.
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O capitão, sabendo do interesse do Luciano, fez de tudo para que ficassem juntos e o filho pudesse se esquecer da menina.
Ela, no entanto, fiel a seu amor, recusou todos os pedidos. O capitão, como castigo, expulsou a ela e à mãe de suas terras, que
foram residir em um quarto da casa de uma parente igualmente pobre.
Ao mesmo tempo, os padres faziam de tudo para que Eugênio se esquecesse da paixão juvenil e tivesse foco nos
estudos. Passados dois anos, ele já se entregava mais às orações e não enfrentava tantos conflitos entre o desejo por
Margarida e obediência aos preceitos religiosos.
Por essa época, um famoso padre da Congregação São Vicente de Paula, Jerônimo Gonçalves de Macedo, muito
conhecido por seu trabalho missionário e por fundar diversas capelas, onde, mais tarde, cidades seriam erigidas,
especialmente em Minas Gerais e São Paulo, passava por Congonhas e foi convidado a pregar um sermão aos seminaristas.
Por acaso, o padre falou sobre como Eva fora seduzida por uma serpente e expulsa do Paraíso e como um dos
grandes pecados era o dos desejos sensuais. O discurso do padre fez Eugênio lembrar-se da cobra enroscada em Margarida.
Como a mãe, fez também uma leitura supersticiosa do ocorrido.

A pintura da serpente rastejando aos pés de Eva no paraíso para seduzi


la e arrastá-la à perdição, fez a mais viva impressão, e trouxe-lhe à
memória a aventura
da infância de Margarida, enleada e afagada por uma cobra, aventura
que tão funesta apreensão deixara no espírito de sua mãe. Encontrando
a mais exata e palpitante analogia entre o episódio do Gênesis, e aquele
incidente de sua infância, Eugênio estremeceu.
Já para ele não havia dúvida: aquele acontecimento era um aviso do
céu; aquela serpente fatídica era o demônio; e Margarida, nova Eva por
ele seduzida, lhe oferecia o pomo fatal, e o levava ao caminho do exílio
e da perdição eterna. (GUIMARÃES, 2022, p. 58)

Eugênio ia, pouco a pouco, tirando Margarida de seu coração. Um fato seguinte veio ajudá-lo ainda mais nessa
empreitada. O padre diretor o chamou para conversar. O pai enviara uma carta, dizendo que Margarida estaria casada.
Eugênio não esconde sua decepção pelas promessas feitas mutuamente, apesar de seu estado de espírito estar já mais afeito
à vida sacerdotal. Ante tal notícia, não vê outra saída que não finalizar os estudos e ordenar-se padre.
Na verdade, ela não se casara. O capitão Antunes, em conluio com os padres, inventara tal notícia para impedir que
o filho desistisse da sua missão e, como ele dissera, jogasse fora todo o investimento financeiro feito até então. Tendo ido
morar na casa da parente, Margarida era, de fato, constantemente pedida em casamento ou seduzida para viver em
tranquilidade financeira se prostituindo. No entanto, permanecia fiel ao único amor verdadeiro. O narrador, neste ponto,
chama a atenção do leitor para o fato de Margarida ser uma moça muito amorosa, sentimental e que gostaria de se entregar
aos desejos sensuais. Contra esse sentimento, porém, ela oporia o sentimento do amor ideal, que a mantinha casta e longe
de um mundo moralmente inaceitável.

Não era porém somente o inimigo externo, que ela tinha a temer. De
temperamento ardente, de compleição sanguínea vigorosa, Margarida
não era muito própria para manter por largo tempo a sua afeição na
esfera de uma aspiração ideal de um celeste devaneio. Feita para os
prazeres do amor e para as expansões ternas do coração, os instintos
sensuais achavam em sua natureza estímulos de indomável energia;
sua pudicícia teria infalivelmente naufragado no meio dos perigos que
a rodeavam, se uma paixão casta e santa, que desde a infância lhe
enchia o coração, lhe não servisse de broquel contra todas as seduções
do mundo. (GUIMARÃES, 2022, p. 61)

Como se pode observar, no trecho predomina o discurso romântico, especialmente no final; porém, ao descrever a
sensualidade de Margarida, o narrador se aproxima de uma narrativa mais naturalista, que já era comum em Portugal, com
em O crime do pe. Amaro, de Eça de Queirós (que trata sobre como um padre se deixa levar pelos desejos carnais).
Margarida perde a mãe; ao ficar sabendo que Eugênio se ordenara padre, sente que sua vida também se esvai.
Pede à tia que vá chamar um padre para dar-lhe a extrema-unção. O pároco, porém, estava em outro compromisso. Eugênio
estava em Tamanduá para rezar sua primeira missa. Como era o único padre disponível naquele momento, Eugênio recebeu
o pedido e foi atender ao chamado de uma mulher moribunda.
Ao descobrir que a mulher era Margarida (nesse momento, ambos já têm mais de vinte anos), fica desconcertado.
Para complicar, fica sabendo que Margarida ainda era solteira.

— Sofro muito, muito!... parece que a cada momento se me rebenta o

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coração — mas agora... como o senhor veio, sinto-me feliz; já não morro
tão sozinha... tão desamparada.
— Desamparada!... pois onde está seu marido?
— Meu marido!... exclamou a moça atônita. — Tenho eu algum marido?...
— Pois a senhora não casou-se!?
— Eu? quem lhe disse isso?...
— Disseram-me; então não é verdade?...
— Não; nunca!... quiseram casar-me, isso sim; mas eu nunca quis... Meu
Deus! por que haviam de enganá-lo assim?...
— Ah! meu pai! meu pai! — murmurou consigo o padre agora compreendo
tudo... para que semelhante mentira?... Pobre Margarida! — continuou
dirigindo-se à moça — como zombaram cruelmente de ti, e de mim!...
(GUIMARÃES, 2022, p. 68)

Trata-se do clímax do romance. Margarida se mostra feliz pela presença do homem que amava; Eugênio não sabia
como reagir. De tudo, Margarida lembra-lhe que uma promessa ao menos seria cumprida: ela seria a primeira a fazer-lhe
confissão como padre.
O momento fica entre o desejo de se entregar ao relacionamento e obrigatoriedade do celibato, por parte do
padre. Antes que ocorra algo mais íntimo, Eugênio deixa a casa da amada, mas promete voltar no dia seguinte. Sozinho, o
rapaz lutava contra os pensamentos: de um lado, a raiva pelo que lhe fizeram sua família e os padres, de outro, o desejo de
amar Margarida, não apenas o amor sentimental, e sim entregar-se ao prazer. Mais uma vez, tem se um prenúncio de
narrativa naturalista:

Era tudo isso, e mais alguma coisa ainda. Eram os instintos sensuais
longo tempo sopitados, que em uma organização vivaz e vigorosa
despertavam com império irresistível. Era uma sede voraz de gozos e
volúpias, era uma febre, era um delírio. O demônio da luxúria acendera
nas chamas do inferno seu facho furibundo e com ele se aprazia em
requeimar o sangue do mísero sacerdote. (GUIMARÃES, 2022, p. 70)

Por isso, mesmo vivendo um conflito, no dia seguinte, retornou à casa de Margarida, que o esperava vestida de
modo sensual. Muito estranhou ao padre o fato de ela dizer que estaria morrendo, mas, ao mesmo tempo, disposta e feliz. O
narrador não deixa explícito, porém fica sugerido que os dois acabam se entregando ao amor, mesmo que moralmente não
fosse algo digno de fazer. Neste sentido, o livro, ainda romântico, prenuncia, outra vez, o naturalismo, que será a escola
literária seguinte, mas cujos preceitos já eram comuns durante a década de 1870.
De qualquer modo, por ser um livro romântico, deve ser obediente à moral burguesa. Como houve uma quebra da
moral, os personagens devem pagar por esse “crime”. No último capítulo, enquanto Eugênio se prepara para rezar sua
primeira missa na vila de Tamanduá, em cuja igreja estão seus pais, familiares, amigos e curiosos, afinal era o filho do capitão
Antunes, ele vivia o dilema moral.

Precipitado do alto do seu puro e austero ascetismo no abismo da


fraqueza, o espírito do padre tombou em outro abismo mais fundo
e talvez mais degradante. Atassalhado de remorsos, de vergonha
e desesperação, julgando-se perdido sem remédio e para sempre,
entregou-se de corpo e alma à torrente da fatalidade que o arrastava.
— Já que assim o quiseram os homens — murmurava consigo -, já que
assim o ordena a sanha irresistível do destino, assim seja; serei um
padre sacrílego, um padre infame, como tantos outros, que todos os dias
profanam com mãos impuras os vasos do altar e a hóstia sacrossanta.
(GUIMARÃES, 2022, p. 74)

Para completar, antes de iniciar a missa, uma idosa se aproximou dele e pediu-lhe que fosse fazer rezar por uma
mulher que estava em um caixão. Acabara de falecer. Ao se aproximar, viu que era Margarida (do ponto de vista moral, ela
não poderia continuar viva, pois tinha levado um padre a pecar). Apesar da cena de horror, fez a oração, em seguida
continuou a se paramentar para rezar a missa. No entanto, diante de toda a comunidade católica,

Chegando à escada que sobe para o altar-mor o padre parou, e


quando já todos de joelhos esperavam que rezasse o "intróito", viram
no com assombro arrancar do corpo um por um todos os paramentos
sacerdotais, arrojá-los com fúria aos pés do altar, e com os olhos
desvairados, os cabelos hirtos, os passos cambaleantes, atravessar a
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multidão pasmada, e sair correndo pela porta principal.


Estava louco... louco furioso. (GUIMARÃES, 2022, p. 75)

Como referido logo no início desta resenha, contrariando o padrão do Romantismo, esse romance teria um final
trágico: a morte de Margarida e a loucura de Eugênio.

Análise

Um dos pontos centrais da narrativa gira em torno do livre-arbítrio, isto é, da possibilidade de o indivíduo fazer
escolhas para sua vida e ter de arcar com as consequências dessas escolhas. É o princípio burguês e romântico por
excelência. Porém, na prática, sabemos que há um limite para o livre-arbítrio. Esse limite é determinado pela sociedade, pelo
contexto social. Ora há mais liberdade, ora há menos. No caso de O seminarista, há pouca liberdade com efeito. O resultado
disso é o que se lê longo da narrativa, principalmente em seu desfecho.
Eugênio não pode seguir seus instintos por pressão familiar, além de ter os desejos sexuais tolhidos. Diversos
outros livros do século XIX vão abordar a temática: liberdade individual x regrais morais, sociais, tendo a Igreja como
referência. Por exemplo:
• Amor de perdição – Camilo Castelo Branco: trata sobre o casal Simão e Teresa, que não podiam ficar juntos por
brigas familiares. Teresa vai para um convento.
• Dom Casmurro – Machado de Assis: Bentinho, antes de casar com Capitu, tem de seguir uma promessa materna e
estuda em um seminário, onde conhece Escobar, que viria a ser o suposto amante de sua mulher. • O crime do pe.
Amaro – Eça de Queirós: fala sobre como o padre Amaro, mesmo vivendo os dilemas semelhantes de Eugênio, se
deixa levar pelos prazeres sensuais.
• O missionário – Inglês de Sousa: trata sobre como o padre Antônio de Moraes, apesar de querer seguir os preceitos
morais, ao trabalhar em uma comunidade na região amazônica, vive uma história de amor com Clarinha.

Apenas o primeiro é um livro romântico; os outros três são realista/naturalista. Dessa feita, em Amor de perdição, os
jovens também são “castigados” no final, o que não ocorre nos outros romances. Retomando O seminarista, há outros pontos
que devem ser analisados.
Bernardo Guimarães não figura entre os principais autores do Romantismo. Ainda que sua obra A escrava Isaura
seja muito conhecida por conta das adaptações televisivas, seus livros são meio lacônicos e suas narrativas apresentam um
tanto de defesa de determinadas ideias.
No caso de O seminarista, o ponto central é a crítica ao celibato, à educação dada por escolas religiosas, ao
patriarcalismo. Em dado momento, o narrador chega a dizer que a educação recebida em um seminário deixa o indivíduo
inapto para o convívio social.

A educação claustral é triste em si e em suas consequências: o regime


monacal, que se observa nos seminários, é mais próprio para formar
ursos do que homens sociais. Dir-se-ia que o devotismo austero, a que
vivem sujeitos os educandos, abafa e comprime com suas asas lôbregas
e geladas naquelas almas tenras todas as manifestações espontâneas
do espírito, todos os voos da imaginação, todas as expansões afetuosas
do coração. (GUIMARÃES, 2022, p. 26)

O narrador não participa da história, mas é onisciente, isto é, sabe tudo o que se passa no íntimo dos principais
personagens. O ângulo é claramente o dos jovens, que sofrem pelo patriarcalismo e pelas superstições e crendices,
especialmente por parte da sra. Antunes (ela não é nomeada de modo individual).
Outro ponto que deve ser destacado do livro é que a narrativa, como obra regional, se presta a caracterizar
costumes da vida interiorana, como quando se refere à união dos agricultores para ajudar D. Umbelina na colheita de
algodão, bem como na referência às festas.

É o mutirão um costume dos pequenos lavradores, ou da gente pobre


dos campos, que vivem como agregados dos grandes fazendeiros e que
não possuindo terra, e menos ainda braços para cultivá-la, nem por
isso deixam de plantar boas roças, ou de exercer sua pequena indústria,
de que tiram a subsistência. Quando chega o tempo de qualquer dos
serviços de roça, que consistem nestas quatro operações principais
— roçar, plantar, capinar e colher — o pequeno roceiro convida seus
parentes, amigos e conhecidos da vizinhança para vir ajudá-lo, e todos
pelo direito costumeiro são obrigados a vir dar-lhe u'a mão — é a frase
usada -, ficando o que assim se aproveita dos serviços dos vizinhos na
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obrigação de acudir também ao chamado destes para o mesmo fim.


(GUIMARÃES, 2022, p. 35)

Do ponto de vista simbólico, podemos destacar que os espaços abertos, como a vida no campo, que incluem os
encontros do jovem casal, representam a liberdade, o livre arbítrio, ao passo que os espaços fechados, como a casa de
Eugênio e, sobretudo, o seminário, representam a necessidade de submissão e obediência.
Outro aspecto simbólico é, claramente, como a cobra enroscada em Margarida é interpretada, especialmente pela
sra. Antunes. Esse fato sela o modo como é vista pelos representantes da elite local (e de resto as mulheres em geral):
sedutora, equiparada a uma cobra, por analogia à serpente que tenta Eva no Paraíso, Margarida é a encarnação do mal. Por
isso, mesmo que não fosse a vontade do autor do livro, ela tem de morrer de modo a agradar o leitor burguês, à moral da
época.
Apesar de não fazer uma análise aprofundada sobre a questão, as diferenças sociais ficam evidentes: de um lado
Eugênio, filho do fazendeiro, do capitão, do mandatário local, de outro Eugênia, moça órfã, pobre, agregada das terras. Não
tem voz e deve ser evitada a todo custo. Ao desobedecer a uma ordem de seu padrinho, o capitão Antunes, ao recusar o
casamento com Luciano, Margarida é castigada e perde o direito à moradia, é expulsa da fazenda tem de morar com sua mãe
em um quarto na casa de uma tia pobre e sozinha. Em outros termos, embora não seja o foco, percebe-se a condição
feminina, especialmente a pobre, no Brasil do século XIX. Neste sentido, é possível estabelecer pontos de contato com a
condição feminina em outros livros selecionados como leitura obrigatória do vestibular da UEL:
• Bibiana e Belonísia, de Torto Arado, tendo em vista que vivem como agregadas em fazenda alheia, além de se tratar
sobre sua condição de mulheres pobres e pretas.
• Rami, de Niketche, mulher moçambicana, embora pertencente à classe média alta, sofre por sua condição feminina.
• Carolina Maria de Jesus, de Diário de uma favelada, em que conta, em um diário real, sobre sua condição de mulher
preta, pobre, favelada, mãe solteira.
Como se percebe, é possível estabelecer diversas relações entre livros diferentes.

ATIVIDADES
01. (IFSulDeMinas) Assinale a afirmativa CORRETA sobre o livro O Seminarista, de Bernardo Guimarães. (A) Há, no
romance, características predominantes do Realismo, estilo que predominou na segunda metade do século XIX.
(B) O espaço do livro é o interior de Minas Gerais, especialmente a cidade de Congonhas, onde Eugênio cursa o seminário.
(C) O foco narrativo do romance está em primeira pessoa. Quem conta a história é Eugênio, em forma de flashback, quando,
já adulto, relembra sua desventura amorosa.
(D) Quase não há diálogos no livro, o autor, assim como seus contemporâneos folhetinescos, privilegia do discurso indireto.

02. (URV - medicina) Em relação à obra “O Seminarista”, de Bernardo Guimarães, assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para as
afirmações abaixo.
( ) O romance está mais para um relato pastoral, uma história de amor iniciada na infância, em meio a um ambiente
campestre onde os indícios da “desgraça”, prenunciados na aparição da serpente e somados à imposição dos pais, à
educação, à formação no seminário, servem como sinal de desgraça futura.
( ) Os espaços fechados descritos pelo narrador revelam um sentimento sufocante e deprimente em Eugênio, como a casa do
pai, o seminário. Em contrapartida, é nos abertos, em meio aos campos, às luzes da tarde e na escuridão da noite que o
enredo revela seus melhores momentos.
( ) A obra trata de diferenças sociais e preceitos morais da sociedade. Apesar de sua dimensão melodramática, o romance
apresenta uma veemente crítica ao patriarcalismo, na literatura do século XIX, no Brasil. ( ) Bernardo Guimarães fala do
interior do Rio Grande do Sul, misturando a idealização romântica com elementos tomados da narrativa oral. Nesta obra,
Bernardo Guimarães faz um romance de tese iniciático, querendo provar o absurdo do celibato religioso, que deforma o
homem, e do autoritarismo familiar, que não permite ao jovem seu próprio caminho na vida.

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(UVA) Da leitura da obra O seminarista, de Bernardo Guimarães, responda às questões 3 a 5.

03. A temática da obra em questão é:


(A) a estrutura da Cúria Romana.
(B) o celibato sacerdotal.
(C) a formação religiosa brasileira.
(D) o autoritarismo da Igreja.

04. A trama dessa obra desenvolve-se no interior:


(A) da Bahia
(B) do Ceará
(C) de Goiás
(D) de Minas Gerais

05. Duas tendências eram muito naturais a Eugênio. Estas tendências eram:
(A) a arte e a devoção.
(B) a religiosidade e a política.
(C) o amor e a devoção.
(D) a sensualidade e a arte.

06. Leia a seguinte passagem extraída do livro O seminarista, de Bernardo Guimarães, e responda à questão.

Umbelina via nele um milagre, pelo qual dava infinitas graças ao céu apertando nos braços a filhinha que, como ela dizia,
tinha nascido naquele dia. A mulher de Antunes porém, que tinha o espírito propenso a acreditar em superstições e agouros,
teimava em ver naquilo um sinistro prenúncio, que ela mesma não sabia explicar.

Umbelina e a mulher de Antunes têm uma visão diferente sobre um acontecimento envolvendo Margarida quando tinha
dois anos. Que acontecimento foi esse?

(A) A menina fora salva por Eugênio após cair no rio perto da fazenda.
(B) Uma cobra se enroscara na menina, que nada sofreu.
(C) Margarida adoeceu e quase morreu devido a uma tuberculose.
(D) Margarida quebrou uma imagem de Nossa Senhora.
(E) A menina foi atacada por um cachorro raivoso.

06 - B
05 - C
04 - D
03 - B
02 - V V V F
01 - B
Respostas

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NIKETCHE
PAULINA CHIZIANE

Introdução

Desde a última década, os vestibulares têm cobrado leitura de obras de autores de língua portuguesa, fugindo ao
binômio Brasil/Portugal. No caso específico da UEL (Universidade Estadual de Londrina), a prática tem ocorrido desde 2010,
quando foi cobrada leitura de O outro pé da sereia, do escritor moçambicano Mia Couto.
Para o biênio 2023/2024, foi selecionado como leitura obrigatória o romance Niketche – uma história de poligamia, da
também moçambicana Paulina Chiziane (1955), autora de um pouco mais de uma dezena de livros. Niketche é seu quarto
livro, publicado originalmente em 2002, que lhe valeu o Prêmio José Craveirinha de Literatura, concedido pela AEMO
(Associação Escritores Moçambicanos).
O subtítulo pode causar uma estranheza inicial, para além do título, que significa uma dança de caráter sensual,
muito comum na região norte de Moçambique, particularmente em Macua na região da Zambézia. Como se sabe, poligamia
é a possibilidade de uma pessoa, normalmente homem, ter várias esposas ao mesmo tempo. Trata-se de uma tradição
presente em algumas culturas, incluindo a de Moçambique.
Porém, a personagem principal, Rami (Rosa Maria), que é casada, há vinte anos, com Tony (António Tomás),
comandante da polícia, se volta contra essa prática tradicional.
O enredo pode ser resumido em alguns parágrafos (o que faremos a seguir), porém a mensagem e os aspectos
simbólicos do livro são bastante ricos e complexos, tendo em vista que um dos objetivos do romance é também o de
descrever a cultura moçambicana tradicional e a relação com a cultura dos povos invasores, como os indianos e os
portugueses.

Enredo

O livro começa com um estrondo, o que faz Rami imaginar que a guerra civil (1976-1992) teria sido retomada. No
entanto, o estrondo fora causado pela tentativa de um dos cinco 1 filhos de Rami em apanhar uma manga do pé, a qual acabou
caindo sobre o vidro de um carro.
O fato banal é determinante para colocar o leitor no ponto central da narrativa, pois Rami lamenta que o marido
não estava presente para ajudá-la a resolver a situação. Sabia que, como mulher, sua voz seria pouco ou nada acolhida pelo
proprietário do carro.
Essa ausência começará a ser mais explicada já no capítulo seguinte, pois Rami percebe que passava muito tempo
sem o marido, e não apenas por causa do trabalho dele. No caso, Rami descobre que ele tinha outra mulher, chamada Julieta,
com quem tinha seis filhos. Brigam, discutem, porém, após esse contato inicial, tornam-se confidentes, e Rami descobre que
talvez Julieta não fosse a única amante do marido, pois há sete meses Julieta e ele não tinham relações.
Na sequência, Rami começa a questionar Tony sobre sua ausência, sobre possíveis amantes e, nesse momento, fica
claro discurso sobre o qual a narrativa será desenvolvida e que serve para ilustrar a cultura moçambicana tradicional,
baseada na poligamia. Tony não se importa com a descoberta de Rami e diz que ter outras mulheres seria um direito que lhe
assiste por ser homem, provedor, e caberia à mulher apenas a submissão e a aceitação. Adiantando um pouco a análise, é
possível perceber que Rami não aceita tal condição feminina, ainda que a compreenda, por ter uma sua formação cultural
hábitos do Ocidente, particularmente cristãos, que colocavam por terra a poligamia e exaltavam a união de um casal,
fundamentada no amor mútuo, no respeito e na fidelidade.
Trata-se, pois, da problematização da narrativa, que vai levar o leitor a conhecer outros hábitos moçambicanos,
bem como a luta de Rami e de outras mulheres, para serem ouvidas e respeitadas.
A descoberta das traições faz Rami imaginar que a culpa seria dela, por isso sua primeira atitude é frequentar aulas
com uma conselheira amorosa, que logo de início diz que de nada adianta toda a preparação que as meninas costumam a
fazer para o casamento, que, o que importaria de fato, seria conhecer as artes do amor sexual. Durante as explicações, o
leitor percebe que as mulheres moçambicanas da região Norte do país são mais empoderadas porque sabem manipular
sexualmente os parceiros; ao passo que as do Sul seriam mais subservientes e propensas a serem traídas. A explicação é
dada pela própria Rami, segundo a qual a influência portuguesa e cristã se deu muito mais no Sul, onde está localizada a
capital, Maputo.

1 Há um equívoco no romance (talvez por falta de uma revisão mais acurada), tendo em vista que, em alguns momentos, se diz que o casal teria cinco filhos, em outros que
seriam quatro. Embora isso não seja determinante para o desenrolar do enredo, fica mais evidente que a autora opta por quatro filhos, pois em dois momentos ao menos,
refere-se a quatro nomes, nunca a cinco: Bento, João, Sandra e Lulu, como se pode ler na página 247. Por outro lado, o menino que é referido no início do romance se
chama Betinho.

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Em resumo, a conselheira defende que Rami seria uma criança, não uma mulher, por não conhecer as artimanhas do
sexo e por não entender que a poligamia seria uma prática saudável e cultural, indo contra o pensamento e a formação de
Rami. Outro conselho é prender o homem pelo estômago. No caso, uma prática habitual é fornecer ao marido a moela da
galinha, o único que poderia comer a iguaria. As mulheres só poderiam comer as patas, as asas e o pescoço da galinha. O
restante deveria ser dedicado ao homem, especialmente a moela.
No entanto, ao tentar colocar em prática os ensinamentos da conselheira, começando pela roupa diferente e
maquiagem, Rami é desprezada e humilhada por Tony.
O fato leva Rami a descobrir quem seria a terceira mulher de Tony. Descobre que se chama Luísa e vai atrás dela.
Brigam e vão parar na delegacia, de onde saem rapidamente, pelo fato de terem como homem o comandante da polícia.
Como já acontecera com Julieta, Rami e Luísa se tonam confidentes. Luísa diz ser da Zambézia, que fica no Norte. Como a
conselheira do amor já dissera, lá a prática da poligamia e da partilha é comum. Não se acredita em fidelidade, apenas na
vontade de se estar junto. No entanto, também Luísa já há algum tempo tinha poucas relações com Tony, pois estaria em
relação com outra mulher: Saly, outra mulher do Norte, uma maconde. Rami conhece Saly, maconde, que indica que ele
estaria com outra mulher, Mauá Sualé, também da Zambézia, como Luísa.
Em síntese, Tony tinha duas mulheres do Sul: Rami (a esposa) e Julieta; e três do Norte: Luísa e Mauá Sualé
(Zambézia, Macua) e Saly (Maconde)
Trata-se, na fala de Rami, de um pentágono por ter cinco ângulos, e hexágono, pela presença do sexto ângulo, no caso
Tony, que une e desune os demais ângulos.
De descoberta em descoberta, Rami faz uma série de reflexões, além de seguir algumas estratégias sugeridas, como
fazer feitiços para segurar seu homem. Sabe que uma mulher com filhos pouco valeria na sociedade, que sua voz seria
abafada pelo discurso social, que considera a mulher sempre culpada de tudo, sobretudo da falência do casamento. Por isso,
resolve se aconselhar com uma tia, Maria, que fora obrigada a se casar com um rei, aos dez anos de idade, por causa de
dívidas familiares.
Esse rei já tinha 24 esposas o que a fez entender melhor a instituição da poligamia. Ela própria tinha outro homem,
em segredo, um guarda da realeza com quem teve dois filhos. Em conclusão, a tia também se mostra favorável à poligamia,
desde que seja algo às claras e que o marido dê conta de todas as mulheres, sexual e financeiramente falando.
Dias depois, para sua surpresa, Rami recebe um convite de Luísa para que vá à festa de aniversário de um de seus
filhos, que tivera com Tony. Apesar de parecer uma afronta, Rami aceita o convite e, na festa, conhece outro homem de
Luísa, Vítor. Por mais estranho que lhe pareça, se deixa envolver por ele, entregando-se a ele durante a noite. Rami achou
que teria arrumado um problema com Luíza, mas como mulher da Zambézia, já estava acostumada com a partilha, inclusive
de seu homem. Fato é que Rami conhecera outro homem, algo que vai levá-la a sentir cada mais livre para tornar-se, para ser
uma mulher de verdade, não apenas a primeira-dama do marido.
Amparada nesse novo modo de pensar, pede à família que lhe dê suporte para se vingar de Tony, o que não acontece.
Todos em sua família, mesmo a mãe ou a tia, mesmo não concordando necessariamente com a prática poligâmica, defendem
o discurso segundo o qual a mulher deve ser subserviente ao marido. Por isso, busca apoio entre as outras quatro mulheres
do marido. Como ele faria 50 anos de idade, resolvem expô-lo perante todos. Rami organiza a festa, durante a qual as outras
quatro mulheres chegam e passam a confrontar Tony. O objetivo era tornar público o que Tony fazia em segredo. Em outros
termos, se a prática da poligamia até pode ser aceita em determinadas regiões de Moçambique, mas tem de ser às claras,
não algo velado, escondido, para que todas as mulheres possam reclamar seus direitos.
O resultado: foram integradas às famílias, especialmente por parte da mãe de Tony, que queria a convivência de seus
17 netos (6 filhos da Julieta; 2 filhos da Luísa; 2 filhos de Saly; 2 filhos de Mauá Sualé). Até então, ela sabia apenas da
existência dos cinco2 filhos de Rami.
O que poderia ser a pacificação de vez, torna-se motivo para mais discórdias. Primeiro, porque Rami, a despeito de
toda essa proximidade com as outras mulheres, se sentia desprezada e humilhada, além disso conhecera a intimidade de
outro homem. Ao mesmo tempo, Tony não era propriamente um poligâmico, e sim um marido com amantes, a quem tratava
de modo ríspido, unicamente com a finalidade de usufruir de seus corpos.
Outro ponto de mudança é que todas as mulheres resolvem trabalhar, exceto Julieta, cujo motivo será explicado
apenas no final da narrativa. Com isso, um dos motivos da dependência feminina vai se desfazendo, a dependência
econômica. Trata-se, pois, do início do fim do hexágono. Diante disso, Tony inicia um relacionamento com uma sexta mulher,
chamada Eva. As outras cinco eram pretas; Eva era mulata (no Brasil, esse termo tem um tanto de pejorativo; em
Moçambique, é termo ainda utilizado). Confrontado, Tony diz que Eva seria uma amiga, não uma mulher lobolada, isto é, a
quem daria ajuda financeira. Mesmo porque Eva era uma executiva, tinha o próprio dinheiro. Ela também era do Norte, de
Maconde.

2 ver nota 1

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De qualquer modo, esse novo relacionamento faz as cinco se distanciarem ainda mais de Tony, que vai se vendo
pressionado de todos os lados. Convoca uma reunião familiar para reclamar das mulheres, que não cumprem mais suas
obrigações, que seria dar-lhe comida, um ambiente limpo e os corpos quando ele quisesse. Como resultado, Tony pede a
Rami o divórcio, mas ela não aceita ser divorciada. Isto porque perderia os direitos de esposa, perderia tudo o que construiu
e conquistou. Ou seja, o divórcio não seria a solução para ela; seria antes um castigo arquitetado pelo marido.
Certo dia quando Rami estava indo ao trabalho a pé, vê um homem sendo atropelado. Não dá maior importância. Ao
mesmo tempo, nenhuma das mulheres têm notícia do Tony, o que leva muitos a acreditarem que aquele homem atropelado
e morto seria o próprio Tony. Sendo ou não, fato é que os familiares obrigam a Rami a aceitar que Tony teria morrido. Como
suposta viúva, todos os bens, móveis etc. seriam alvo de espólio. Mesmo o seu corpo, que deve passar por um ritual de
entrega a um de seus cunhados. Trata-se da Kutchinga ou levirato, que consistia em entregar a viúva a um dos irmãos do
falecido. Nesse contexto, pratica-se a tchingada, no caso com Levy.
Após todo esse ritual, a que se entregou Rami, mesmo sabendo que o falecido velado não era o Tony, Rami é
procurada por Eva para dizer-lhe que Tony estava em Paris, com despesas pagas pela própria Eva, para poder tratar de um
problema no joelho que ele teria. No entanto, Eva descobre que viajara com outra mulher, chamada Gaby.
De retorno a Maputo, Tony fica sabendo tudo o que ocorrera e que Rami decidira ir morar com Levy. Ao mesmo
tempo, todas as mulheres o confrontam mais uma vez, expondo as mentiras que contara a cada uma ante sua nova
conquista.
Em conversa particular com Luísa, Rami queria entender a lógica das mulheres do Norte. Luísa, de maneira bem
prática, explica que Tony seria seu sustento, garantindo-lhe alguns momentos de amor e, principalmente, o meio de
sobrevivência até então. Já o Vitor, com quem a própria Rami dormira, seria o amor de sua vida. Apesar disso, sabe que Vitor
seguiria a prática de Tony, pois são homens do Sul. Então, Rami recebe de Lu um importante ensinamento: que antes de
amar qualquer homem, deve amar primeiro a si mesma, ver o que é melhor para si, para, em seguida, querer agradar quem
quer que seja. Desse modo, seria possível a convivência em um contexto machista. Não se submeter, de fato, a um homem é
meio para a mulher ser.
É nesse contexto de afrontas e confrontos que se determina uma divisão de Tony entre todas as mulheres. Ele
deveria dar atenção a cada uma em determinada semana e atender aos gostos individuais, como, por exemplo, levar cada um
a determinado lugar para dançar.

O Tony cumpre o seu papel de amante e apaixonado por todas,


procurando agradar-nos com toda a força que a sua macheza permite.
Passa os fins de semana a correr de uma discoteca para outra, de um
baile para outro. Com a Saly e a Mauá, anda nos rocks, zouks, raps e
raggies. [...] Comigo e com a Ju anda nos bailes de shows, souls, pop,
blues e jazz. [...] A Lu está no meio das duas gerações de bailarinos.
Tanto lhe dá para ir a um ou outro canto. (CHIZIANE, 2021, p. 227)

Porém, a harmonia é novamente rompida quando Tony descobre que Luísa estaria de casamento marcado com o
Vítor. Convoca a todas para conversarem e convencerem Lu de não abandoná-lo. Obriga Rami manter o “gado” na mesma
pastagem. No entanto, libertas da submissão plena a Tony, nenhuma quer mais obedecê-lo. Luísa se casa com Vitor e ainda
permite a Rami que durma com ele quando quiser. Por conta desse casamento, Tony sofre uma queda de pressão e tem de
ser hospitalizado por uns dias.
Ante essa nova condição, Tony resolve ter outra conversa com Rami para propor-lhe um casamento apenas a dois,
sem outras mulheres. Rami, porém, há muito perdera o respeito pelo marido, bem como não acreditava mais nele. Por isso,
diz, de modo categórico, que não quer esse relacionamento mais, ainda que não fale, propriamente, em divórcio.
Apesar de já estar decidida, Rami convoca uma reunião com as outras quatro mulheres para saber o que deveria
fazer. Em síntese, decidem que Rami não deve acreditar nas mentiras de Tony e que ele deveria encontrar uma nova mulher,
pois todas estão cansadas dele, inclusive a Julieta, a segunda, que ficara noiva de um português rico, com quem já se
relacionava às escondidas há dois anos.
Começa, então, a saga para encontrem uma mulher para o Tony, entrevistam várias, das diversas regiões de
Moçambique, e decidem por uma moça de 18 anos, que, desde os 15 anos, já tivera os ritos de iniciação sexual. Chamam
Tony para apresentar-lhe Saluá, sua possível nova esposa.

A Mauá vai ao quarto e volta. Traz pela mão uma joia, uma pérola, um
diamante criado só para ser contemplado. É a noiva. Ela dá uns passos.
Olhamo-la. Meu Deus, bonita como ela nunca se viu. Caminha como
uma gazela. Dos seus gestos correm ondas, gaivotas, nuvens brancas,
brisas, perfumes, que lhe ficam bem. Ela é a perfeição em movimento.
(CHIZIANE, 2021, p. 279)

Ela é de Niassa, que fica na região Noroeste de Moçambique, próximo a Maconde. No entanto, Tony a rejeita, não
por não ter gostado dela, e sim porque não fora ele quem a conquistara, e sim as mulheres. Se sente diminuído em

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sua masculinidade, em seu instinto de conquistador e dispensa Saluá.


Em ato final, ante o desespero de Tony, Rami conta-lhe que estava grávida. Tony quer saber se seria dele.

Ruínas de uma família. A Lu, a desejada, partiu para os braços de outro


com véu e grinalda. A Ju, a enganada, está loucamente apaixonada por
um velho português cheio de dinheiro. A Saly, a apetecida, enfeitiçou
o padre italiano que até deixou a batina só por amor a ela. A Mauá, a
amada, ama outro alguém. Só fiquei eu, a rainha, a principal, para lhe
salvar a honra de macho. [...] Meu Deus, eu sou poderosa, eu sinto que
posso salvá-lo desta queda. (CHIZIANE, 2021, p. 289)

No entanto, para desespero final do polígamo e fim definitivo do hexágono, o filho era de Levy, o homem que a
tchingou por ocasião do falso velório de Tony.
No mapa a seguir, é possível visualizar a origem das mulheres de Tony.

Imagem: Regiões de Moçambique

Com base em mapa disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Mz_etnies.PNG> Acesso em 12 jul. 2022.

Análise

Conforme se pôde depreender da leitura da síntese do enredo, a história tem como narradora Rami, que conta
como descobriu que era casada com um polígamo, ao mesmo tempo que faz uma série de considerações em torno dos papeis
sociais de homens e mulheres, além de abordar as diferenças entre a cultura do Norte e a do Sul.
Há uma frase no livro, extraída do livro O segundo sexo, da filósofa Simone de Beauvoir, que serve como mote do
enredo como um todo: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Isso significa que os papeis sociais definidos a cada sexo é
um constructo e não algo totalmente natural. Por essa razão, podemos perceber que o livro se enquadra na categoria de
romance de formação. Rami torna-se mulher ou começa a entender melhor o seu lugar no mundo após descobrir as traições
e, sobretudo, querer reivindicar direitos, o que faz o mundo de Tony, isto é, o universo masculino, desmoronar pouco a
pouco.
Ao longo do livro todo, Rami expressa seu descontentamento por ser mulher, por não ser ouvida, por não ser
respeitada, por ter de ser subserviente aos homens, mesmo entre muitas mulheres, como tias e a mãe, não recebe a devida
acolhida, posto que também foram criadas na sociedade machista e preconceituosa.
Assim, entre o discurso que apregoa a necessidade da manutenção da tradição e o plenamente libertário, Rami vai
procurando seu espaço, seu estar no mundo. Gostaria de ser esposa, mãe, seguir determinada tradição, ao mesmo tempo
que ser ouvida, vista, respeitada. Procura, pois, nas brechas das transformações sociais, amparadas na cultura local e na
presença da cultura ocidental, tornar-se mulher, ter uma voz, empoderar-se e ser.

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De início, faz isso conversando com seu duplo, isto é, com um espelho, por alusão à história de Branca de Neve e o
espelho da bruxa má. No caso, ao olhar-se no espelho, Rami se vê como era, não como é hoje. Ela se vê feliz, diferente
fisicamente. O espelho é um símbolo recorrente na literatura, por revelar o duplo, ao mesmo tempo que o reflexo invertido:
tristeza/alegria, velhice/juventude, desilusões/sonhos etc.

Esta imagem não sou eu, mas aquilo que fui e queria voltar a ser. Esta
imagem sou eu, sim, numa outra dimensão. (CHIZIANE, 2021, p. 16)

Em diversas passagens do livro, Rami fala sobre como a mulher é desprezada e como toda a sociedade foi erigida
para satisfazer o masculino: a moda feminina e a masculina, as comemorações pelo nascimento de um homem e o de uma
mulher, os festejos pelos aniversários, a alimentação etc. Neste caso em particular, há uma constante referência à moela da
galinha, uma iguaria que apenas os homens devem comer, não tanto por ser saboroso, mas para diferenciar homens de
mulheres, revelar o poder deles em detrimento das vontades femininas. Segundo a conselheira amorosa, não dar a moela ao
homem, pode ser causa de violências e divórcios.
Mais adiante, tem uma comprovação disso. Ouve da mãe a história de como a irmã mais dela morrera por causa de
uma moela. No caso, ela preparara a moela para o marido, mas um gatinho a comeu antes. Sentindo-se desrespeitado,
espancou-a e a expulsou de casa. Teve de ir a pé para a casa dos pais. Porém, durante o trajeto, foi atacada por um leopardo,
que a matou. Rami ficou indignada e quis saber qual foi a reação das outras mulheres.

- Obedecer à risca, a todos os caprichos dos homens, era a única


estratégia da nossa existência. (CHIZIANE, 2021, p. 89)

Porém, Rami e as outras mulheres vivem em outro contexto e, por isso, passam a exigir outras atitudes masculinas,
particularmente por parte de Tony, que não consegue perceber essas mudanças de fato e segue à risca o que aprendera até
ali. Em outras palavras, Tony representa o homem de uma sociedade totalmente machista, que não se via assim. De fato,
seguia aquilo que julgava ser da natureza do homem (aqui, caberia uma paráfrase da frase de Beauvoir: “ninguém nasce
homem, torna-se”). Por este motivo, embora em alguns momentos diga que vai mudar, que vai se dedicar apenas às cinco
mulheres que tinha ou apenas a uma delas, como fizera com Luíza e Rami, Tony não se considera alguém mal, ainda que
possa espancar vez ou outras suas mulheres (era para o bem delas) ou ser totalmente infiel (era a natureza masculina). Para
ele, não havia o porquê contestar a organização social, afinal só faz isso quem é excluído ou não tem seus direitos
reconhecidos.

- Não é bem assim, Ju. Tenho muito respeito pelas mulheres, muito!
Jesus, filho de Deus, nasceu do ventre de uma mulher. Tenho muito
respeito por todas as mulheres do mundo.
- [...] Por mais poder que venham a ter, não passarão de uma raça
cacarejante mendigando eternamente o abraço supremo de um galo
como eu, para se afirmarem na vida.
- Sou um homem bom, Rami, há homens piores do que eu. Faço tudo
bem feito. Ter muitas mulheres é o direito que tanto a tradição como a
natureza me conferem. Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas vezes,
apenas para manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes,
mas tu estás aí, não me abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe
sempre foi espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As
mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com
um simples açoite. (CHIZIANE, 2021, p. 121, 144 e 246)

Como se pode perceber, o discurso de Tony é o mesmo daqueles que dizem que a geração atual é muito
“mimizenta” por reclamar de muitas atitudes preconceituosas dos antepassados. Em outros termos, se houve mudanças ao
longo de gerações diferentes, é porque determinados grupos sociais não eram tão respeitados, mas não se manifestavam
por não terem voz. Isso pode nos remeter ao título de uma música do Rappa: “Paz sem voz é medo”.
Individualmente, a voz de Rami pouca força teria, por isso resolve se juntar às outras mulheres para expor as
atitudes de Tony, mesmo sabendo que não seriam acolhidas socialmente. Ainda assim, a exposição foi útil para,
individualmente, cada uma seguir a própria vida, inclusive Rami. É como em casos de estupro. Se apenas uma mulher
denuncia um estuprador ou assediador, dificilmente será ouvida e passará a ser vista como aventureira. Quando as
mulheres se unem, e uma quantidade maior de mulheres faz a mesma denúncia, há uma chance maior de haver alguma
punição ao abusador. Em síntese, o que poderia ser uma história de rivalidade feminina, revela-se como expressão do
discurso baseado na sororidade.

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Somos cinco contra um. Cinco fraquezas juntas se tornam força em


demasia. Mulheres desarmadas são mais mortíferas que as cobras
pretas. A Saly abre a porta do quarto. A cama estava desmontada e
o soalho coberto de esteiras. Achamos a ideia genial e entramos no
jogo. Era preciso mostrar ao Tony o que valem cinco mulheres juntas.
Entramos no quatro e arrastamos o Tony que resistia como um bode.
Despimo-nos, em strip-tease. Ele olha para nós. Os seus joelhos ganham
um tremor ligeiro. [...] Tony levanta as mãos à cabeça e depois ao rosto
para esconder os olhos e gritar:
- Meu Deus! Por favor, parem com isso, por Deus, que azar é este que
me dão agora?! (CHIZIANE, 2021, p. 124)

É nesse momento também que as mulheres se expressam por meio de Niketche, a dança sensual que revela o
empoderamento feminino, especialmente das mulheres do Norte, de onde vem a dança. Isso porque a nudez do corpo
feminino não é controlada pelo homem, mas pelas próprias mulheres. Não por acaso, em protestos, como os organizados
pelo grupo Femen, muitas mulheres exibem os seios nus, como meio de afrontar a sexualização de seus corpos expostos
como meio de satisfazer aos homens. Esse é o motivo de Tony desaprovar as cinco nuas em seu quarto. Desse modo, ele não
tem nenhum controle sobre elas, o que normalmente acontecia quando estava com uma de cada vez.
Do ponto de vista formal, o romance não apresenta grandes inovações. Tem uma narradora (Rami) em primeira
pessoa, segue o padrão cronológico de começo, meio e fim, com momentos de tensão que vão anunciando o desfecho.
Porém, em alguns momentos, o romance tem um tanto de gênero dramático (teatral), seja pela predominância dos verbos no
tempo presente (o mais comum em textos narrativos é o tempo pretérito), seja por momentos em que a dinamicidade
narrativa lembra tanto uma peça de teatro quanto um filme, como no episódio em que Rami é declarada culpada da falência
do seu casamento pelos familiares ou no em que as cinco mulheres buscam outra mulher para o Tony.

- Rami, tens que assumir a responsabilidade do que se p a s s o u


com o Tony. Ele perdeu a vida por tua culpa.
Eu digo que sim.
- Ele começou a arranjar mulheres lá fora e acabou por se tornar
polígamo, porque não o satisfazias. [...]
Eu digo que sim.
- A feiticeira és tu, Rami. [...]
Eu digo que sim.
(CHIZIANE, 2021, p. 183)

O livro é assentado na oralidade, seja na contação de histórias, seja no constante diálogo entre os personagens.
Como destaque, podemos lembrar de uma das histórias contadas por uma tia de Tony para que as mulheres sejam sempre
obedientes. No caso, relata a história de Vuyazi, uma princesa que desobedecia ao pai e o marido: comia a moela, deu de
mamar durante dois anos a uma filha (a tradição dizia que o normal era um ano; apenas os meninos podiam mamar por dois
anos). Por isso, o rei lança uma maldição sobre a própria filha, que é levada para a lua, onde fica presa para sempre e pode ser
vista quando a lua está cheia. O objetivo seria explicar a todas as mulheres o porquê “choram” sangue uma vez por mês e
porque seriam impuras nesse período.
A história, porém, causa efeito contrário e Rami se revolta ainda mais com essa explicação supersticiosa, cujo único
objetivo é manter a sociedade estanque, sem qualquer mudança. A história também se presta a Tony, que explica um
possível azar que viria a ter por culpa das mulheres, não por seus próprios atos.
Em resumo, pode-se dizer que Rami representa a tradição moçambicana e a modernidade. Isso porque não quer se
submeter mais a um homem autoritário e polígamo, mas não se importaria de permanecer casada e submissa, desde que
fosse com respeito e amor verdadeiro, por assim dizer. Por outro lado, o discurso feminista é visto por muitos personagens
como uma corrução da tradição, e por outros, especialmente as mulheres, como uma evolução da cultura moçambicana.
Essa ambiguidade está representada no fato de ela se considerar detentora do título de primeira-dama, entre as mulheres
de Tony, ao mesmo tempo que não quer mais se submeter ao marido por tudo o que passou e descobriu.
Rami é a voz das moçambicanas insatisfeitas com o patriarcalismo. O discurso das mulheres, durante as conversas
que tiveram, fazem do romance a expressão do feminismo africano.

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Atividades

01. (UNICAMP/2022)
Tudo na vida é mortal, tudo se apaga. Se a tua chama se apaga é em ti que está a falta. Faz o que te digo e magia nenhuma te
derrubará nesta vida. Tu és feitiço por excelência e não deves procurar mais magia nenhuma. Corpo de mulher é magia.
Força. Fraqueza. Salvação. Perdição. O universo inteiro cabe nas curvas de uma mulher.
(Paulina Chiziane. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Cia. das Letras, 2021. p. 38.)
O excerto acima corresponde a uma das primeiras lições que a conselheira amorosa oferece a Rami, a personagem principal
do romance. Tendo em vista as várias peripécias vividas por Rami, essa lição é
(A) aceita pela protagonista, mas sua trajetória lhe ensina que o corpo feminino é, no fim das contas, perdição. (B)
abandonada pela personagem principal, uma vez que seu marido não se encanta com seus novos ardis. (C) frustrada,
pois Rami, ao conhecer suas rivais, percebe que não possui todos os atributos desejáveis. (D) confrontada com a
experiência pessoal de Rami e de suas rivais, transformando-as de modo significativo.

02. Assinale a alternativa que indica corretamente como Rami descobre que Tony, seu marido, teria outras mulheres. (A) ela
recebe uma carta anônima informando-a sobre o fato.
(B) ela passa a desconfiar a partir do momento que Tony fica cada vez mais ausente de casa. (C)
Tony resolve contar a ela, pois queria o divórcio.
(D) na verdade, Rami sempre soube, afinal ela se casara com um polígamo.
(E) Julieta, uma das mulheres de Tony, vem reclamar com Rami uma parte da herança.

03. Após a descoberta da traição, qual a atitude de Rami?


(A) Acredita que a culpa seria dela, por isso passa a frequentar aulas com uma conselheira amorosa. (B)
Pede imediatamente o divórcio e vai viver sozinha com seus filhos.
(C) Ela também arruma um amante, no caso o próprio irmão de Tony.
(D) Fica muito doente e à beira da morte, mas se recupera e perdoa as traições do marido. (E)
Volta a viver na casa de seus pais, ainda que mantenha o casamento formal com Tony.

04. Com quantas mulheres Tony se relacionava?


(A) apenas com a esposa, Rami, e Julieta.
(B) com três mulheres, todas da região de Maputo.
(C) de início com cinco mulheres, além da esposa, outras quatro, de regiões diversas de Moçambique. (D)
com quatro mulheres, todas da região noroeste de Moçambique.
(E) duas mulheres angolanas e uma moçambicana.

05. Em síntese, qual seria o objetivo do livro Niketche?


(A) Revelar que as mulheres de Moçambique deveriam aceitar a poligamia masculina.
(B) Mostrar como uma mulher pode conviver com um polígamo.
(C) Mostrar as bonitas tradições de Moçambique, que se opunham à cultura do colonizador português. (D) Revelar que o
empoderamento feminino é uma falácia, afinal as mulheres sempre se submetem às vontades dos maridos.
(E) Revoltar-se contra a cultura da poligamia masculina, que colocava as mulheres em situação desfavorável.

05 - E
04 - C
03 - A
02 - B
01 - D
Respostas

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TORTO ARADO
ITAMAR VIEIRA JUNIOR

Introdução

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (1979), foi publicado em 2019 e ganhou três prêmios literários importantes:
LeYa (2018), Jabuti (2020) e Oceanos (2020). Vieira escreveu ainda outros três livros:
• Dias (2012)
• A Oração do Carrasco (2017)
• Doramar ou a odisseia (2021)

O livro tem como ponto central narrar a trajetória de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, descendentes de escravos, e
que foram criadas em uma fazenda localizada na região central Bahia, na Chapada Diamantina, em regime de trabalho
análogo à escravidão. Trata-se de uma trajetória que marca também a formação das comunidades quilombolas no Brasil.
O próprio autor é descendente de escravos; e parte do que está no livro, coletou em conversas com os avós paternos,
que viveram no Recôncavo Baiano. Segundo o que afirmou em entrevistas , Itamar começou a escrever o livro quando tinha
dezesseis anos. Porém, o primeiro manuscrito se perdeu. A história nunca saiu de sua memória, mas foi modificada por sua
experiência como geógrafo e funcionário do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) 1, órgão que foi
criado em 1970 como meio de tentar o apaziguamento dos conflitos rurais. Passado o período ditatorial, começou a mapear
terras que poderiam ser alvo de reforma agrária. Aliás, um dos temas presentes no livro.
O título, por sua vez, é tanto uma referência a um instrumento utilizado para arar ou preparar a terra para o
plantio, quanto uma expressão utilizada na lira XIV, do livro Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810),
pertencente ao Arcadismo.

Minha bela Marília, tudo passa;


A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
Já foi Pastor de gado.

A devorante mão da negra Morte


Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Ferro do torto arado.

A lira expressa a ideia da efemeridade do tempo e de todas as coisas, isto é, tudo passa, tudo acaba. A essa
passagem do tempo, o eu lírico propõe à sua amada, Marília, que é preciso aproveitar a vida, seguindo um preceito epicurista
do poeta romano Horácio (65 a.C.- 8 a.C.). No caso, o arado serviria para preparar os sepulcros. O adjetivo torto,
simbolicamente, pode remeter o leitor a pensar em algo negativo.
Com efeito, a expressão é tanto o título do livro de Itamar, quanto da segunda parte do livro. Não por acaso, nessa
parte ocorre a morte de alguns personagens como ser verá na explicação do enredo.

1 Confira, por exemplo, na revista Gama, entrevista concedida a Daniel Vila Nova. Disponível em <https://gamarevista.uol.com.br/formato/conversas/ a-
desigualdade-seja-do-passado-ou-do-presente-passa-pela-terra/> Acesso em 15 jul. 2022.

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Enredo

O romance é dividido em três partes, cada qual com um narrador diferente:

• Fio de corte – narradora Bibiana


• Torto arado – narradora Belonísia
• Rio de sangue – narrador indefinido, porém subentende-se que sejam os espíritos dos antepassados, como Santa
Rita Pescadeira..

A história começa com as duas irmãs, ainda crianças, indo vasculhar o que a avó, Donana (Dona Ana), esconderia em
uma mala de roupas. Acham uma faca muito bonita, cuja origem só será mais bem explicada nas partes seguintes. As duas,
sempre em tom de brincadeira, resolvem passar a faca, que era muito afiada, nas próprias línguas. Obviamente que se ferem.
Bibiana apenas machuca a língua, mas Belonísia perde parte da língua o que a colocará numa mudez permanente.
Foram surpreendidas pela avó, mas já não havia mais o que fazer, a não ser estancar o sangue e pedir para Sutério, o
gerente da fazenda, levar as meninas até a um hospital.
O ponto positivo é que as meninas andaram pela primeira vez em uma Rural, camionete antiga da Ford, e saíam da
Água Negra em direção à cidade.
Além de Bibiana, a mais velha, e Belonísia, a segunda, havia outros dois irmãos mais novos: Zezé e Domingas. Houve
outros nascimentos, mas todos morreram ou no parto ou logo depois.
Apesar de viverem em Água Negra, a origem da família é na Bahia, na Fazenda Caxangá. Os então escravos da
fazenda herdaram cada qual um pedaço de terra para viver e trabalhar. Porém, grileiros e latifundiários, sem respeitarem o
direito dos negros, foram, pouco a pouco, expulsando-os do local.
Zeca Chapéu Grande, o pai das meninas, ainda jovem, abandonou sua terra natal e se estabeleceu na Água Negra,
para onde trouxera depois sua mãe, Donana. Essa fazenda pertencia à família Peixoto, cujos membros dificilmente iam até
lá, por ser uma fazenda pouco produtiva. Os empregados, por sua vez, viviam ainda sob o regime de semiescravidão, pois,
embora fossem livres para deixarem o local, trabalhavam a terra dos proprietários. Certamente, os membros da família
Peixoto herdaram as terras, dos antepassados, que herdaram de outros, que, por sua vez, ganharam as terras como
donatários da Coroa portuguesa no período da colonização.
Os “empregados” eram os filhos dos escravos, que não recebiam salário pelo trabalho. Apenas lhes era permitido
construir casas de barro e palha (nunca de outros materiais), plantar algo para a subsistência, mas principalmente produzir
para o proprietário.
Após o episódio da faca, Donana vai até o rio dispensar a faca com cabo de marfim, que fora usada pelas meninas para
se cortarem. Nunca mais se recuperou. Já não distinguia quem era quem e chamava as irmãs de Carmelita. Até que um dia se
aproximou do rio e se deixou afogar. Seu corpo foi descoberto pelas meninas, que não iriam se recuperar desse trauma, cuja
origem fora provocada por elas próprias.
Pouco tempo depois, há um episódio que acaba revelando como Zeca Chapéu Grande era respeitado por todos como
pai de Santo, no âmbito no jarê (um momento festivo do candomblé dos caboclos no sul da Bahia). No caso, uma moça
chamada Crispina, irmã gêmea de Crispiana, fora trazida pelo pai, Saturnino. Ela estava em surto psicótico porque imaginara
que a irmã teria ficado com seu namorado, Isidoro. Fato é que Crispiana escondia um sentimento por Isidoro. Mais adiante
algo semelhante irá envolver as irmãs Belonísia e Bibiana por conta de um primo, chamado Severo. Como resultado da briga
entre as gêmeas e a cura do surto, Crispina, grávida, passa a morar com Isidoro. À mesma época, Crispiana também
engravida. Esta tem seu filho, mas Crispina, com a ajuda de Salustiana, que faz o parto, viu seu filho nascer morto.
Com a chegada de Severo, as irmãs, que já eram adolescentes nesse momento, começaram a sentir algo até então
novo para elas. Especialmente, Bibiana, pois em uma noite de comemoração a São Sebastião ou a Oxóssi, de acordo com o
sincretismo religioso, Belonísia e Severo são vistos conversando juntos mais afastados da festa. Bibiana, enciumada, conta, à
sua mãe, o que supostamente vira: os dois se beijando (na segunda parte, o leitor terá a versão de Belonísia para o episódio).
Fato é que as irmãs, após isso, se afastam.
Salustiana, não querendo mais que as irmãs ficassem brigadas, pois haviam sido dedicadas no nascimento ao Velho
Nagô (por referência a uma das etnias de africanos trazidos durante o período da escravização), leva-as, além de Domingas,
a uma pescaria para uni-las novamente. No retorno, Bibiana machuca o pé ao pisar na ponta de um casco de caramujo.
Belonísia ajuda-a e a paz entre elas é selada em definitivo por conta do episódio de ciúmes envolvendo o primo.
Zeca Chapéu Grande, além de ajudar espiritualmente os moradores do local, recebia pessoas de fora, como o
prefeito. Essa proximidade ajudou que o local tivesse, com permissão dos proprietários, uma escola. Durante a construção
da escola, houve uma grande seca na região, o que baixou ainda mais a produção da fazenda. Os moradores também tinham
dificuldade em cultivar o que fosse e passaram por grande aflição e fome. Viviam, basicamente, da venda de produtos que
não exigiam grandes quantidades de água, como linhagem e buriti. Vendiam o excesso e conseguiam comprar algo na cidade
para se sustentarem.
E foi por essa época também que Bibiana, já com dezesseis anos, passa a se encontrar com Severo, o primo que

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causara a discórdia entre as irmãs. Não demorou muito para que iniciassem um relacionamento, que resultaria em um
casamento e quatro filhos. Sem dizerem nada a ninguém, abandonaram a região e foram para a cidade. Bibiana queria
estudar mais, ser professora. Severo começa a tomar consciência de sua condição de quilombola, de pessoa explorada e se
une a outros para lutarem por direitos (inclusive salário e possibilidade de construir uma moradia melhor, não apenas com
barro).
Apesar da primeira gravidez de Bibiana, Belonísia não se irrita com a irmã. A primeira parte finaliza com a partida de
Bibiana e Severo, sem exatamente contar aonde iria.
A segunda parte, Torto arado, é narrada por Belonísia. Muito do que já foi expresso na primeira parte será contada
da perspectiva da menina que ficara muda após cortar a própria língua. No episódio envolvendo Severo, por exemplo, ela diz
não ter havido beijo, mas que se decepcionara muito com a irmã pela fofoca feita à mãe delas. Essa fora, de fato, a causa da
briga, não ciúmes.

Não queria que ela [Bibiana] tivesse mágoa de mim, como fiquei
amargurada pelo que me aconteceu, quando não pude me defender
das acusações de que estava beijando Severo. Quando o que fazíamos,
eu com doze anos, era admirar os vaga-lumes da noite, longe dos
candeeiros da casa. (VIEIRA JUNIOR, 2018, p. 93)

Belonísia também se refere como ficaram os pais com a partida da filha mais velha. Zeca Chapéu Grande consultava
os encantados (orixás) para saber notícias da filha. Salustiana ficara arrasada com a fuga da filha, mas rezava para que
estivesse bem.
No mesmo período, as chuvas voltaram a cair na região e o prefeito inaugurou a escola, construída com telhas e
madeira (ainda que nenhum empregado pudesse fazer suas casas com esses materiais).

O prédio recebeu o nome de Antônio Peixoto, pais dos Peixoto. Homem


que, diziam, foi o proprietário da fazenda, mas nunca havia posto os
pés ali. Todos os moradores estiveram presentes à inauguração. (VIEIRA
JUNIOR, 2018, p. 95)

Belonísia narra como foi a inauguração, os discursos, os agradecimentos à família Peixoto, sem que alguma
autoridade exaltasse o trabalho dos moradores ou desse destaque ao Zeca, como se a obra tivesse se erguido apenas pela
vontade do patrão e não fosse uma reivindicação.
De qualquer modo, Belonísia não se via encaixada na realidade da escola ou no que era ensinado a ela. Sentia se deslocada,
pois o conteúdo não tratava daquilo que eram suas referências, por isso destaca que gostava mais de aprender o que pai
ensinava sobre ervas, sobre o manejo da terra, sobre os encantados, sobre a festa do jarê etc.

Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da lua.
Sabia que na lua cheia se planta quase tudo; que mandioca, bananas e
frutas gostam de plantio na lua nova; que na lua minguante não se planta
nada, só se faz capina e coivara2 . (VIEIRA JUNIOR, 2018, p. 99-100)

Apesar das contradições apontadas por ela própria, Belonísia aprendeu a ler e passou a ler e a ter uma
compreensão mais ampla para além das suas referências imediatas.
Tempos depois, mudou-se uma nova família para a fazenda. Com ela, veio um homem feito, chamado Tobias, que se
interessou por Belonísia. Não demorou muito para que a convidasse para morarem juntos. O que parecia uma boa ideia no
começo, revelou-se um erro da moça, pois Tobias era um típico homem machista, que via na mulher apenas uma serva, para
fazer-lhe comida, limpar a casa e servir de corpo. Para complicar, Tobias passou a não gostar do modo como ela cuidava da
casa, por, às vezes, a comida não estar tão saborosa. Comumente, chegava bêbado do serviço, quando não dormia com
outras mulheres. A vida de Belonísia foi se tornando um inferno.
Em meio a esse estado de coisas, Belonísia, certa vez, teve uma visita inesperada de uma conhecia, Maria Cabocla,
que fugira para a casa dela a fim de escapar das garras do marido, que queria matá-la. Nesse contexto, estabelece-se o
contraste entre a visão dos respectivos maridos e a das mulheres. Belonísia já passa a pensar em divórcio, que não o realiza
de fato, com medo de não ser mais bem recebida pelos pais.
Um dia, ainda assim, resolve voltar para casa dos pais, onde reencontra a irmã, Bibiana, que vinha com o marido e
um filho dois após a fuga. Bibiana conta que estudava para ser professora e que Severo se envolvia cada vez mais com o
sindicato, para lutar pelo direito dos quilombolas, dos trabalhadores rurais. Ouvir Severo falando encantava Belonísia, que
começava a tomar consciência de sua condição, da vida sem direitos, com apenas obrigações.

2 Técnica comum nas comunidades quilombola e indígena, que consiste em queimar a vegetação para nova plantação.

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Ao mesmo tempo, a vida com Tobias piorava cada vez mais, até o dia que um empregado da fazenda, Genivaldo,
trouxe a notícia para Belonísia que seu marido estava caído na estrada, morto. No velório, a viúva cumpriu seu papel, mas
não demonstrava nenhum lamento pela sua condição. Sentia-se livre e estava decidida a continuar morando na casa,
sozinha. Era a conquista de uma liberdade que nunca tivera, ainda que continuasse a viver na fazenda dos Peixoto.
A história de Maria Cabocla com Aparecido não muda muito; Maria chega a expulsar o marido de casa, mas aceita-
o de volta, mesmo sendo um alcoólatra, sendo espancada por ele vez ou outra. Diante disso, Belonísia resolve se afastar
deles. A própria Cabocla se sente envergonhada por sua situação, ilustrando algo muito comum na vida de muitas mulheres,
ainda mais no século XX. Modernamente, ao contrário, a tendência é as mulheres não aceitarem mais essa condição de vida
e buscarem sua independência.
Anos depois, Bibiana e Severo retornam uma segunda vez à Água Negra, agora com quatro filhos: Inácio, Flora,
Maria, Ana, a caçula com três anos, que fora batizada com o nome da avó, Donana.
Em paralelo à história da família, o leitor acompanha algumas das transformações do Brasil com o advento da TV
nos anos 70 e das transmissões por antena parabólica, nos anos 80 do século XX.
O casal, com seus quatro filhos, resolveu se estabelecer em Água Negra novamente. Bibiana já era professora e
Severo queria organizar o sindicato na região, para lutar por melhorias. Apesar de existirem sindicatos no Brasil desde o
final do século XIX, durante a Ditadura Militar (1964-1985), houve perseguição à organização dos trabalhadores. Apenas no
final dos anos 70, e, principalmente, nos anos 80, o sindicalismo, liderado pelos metalúrgicos na região do ABC em São Paulo,
voltam a ganhar força. Na zona rural, houve uma reorganização e muitos sindicatos rurais passaram a integrar a CUT
(Central Única dos Trabalhadores), fundada em 1983.
O livro não fala diretamente da CUT, mas mostra como os conflitos pela terra geraram muitas mortes e ainda
continuam gerando, posto que há muitas terras ainda em disputa por grileiros, posseiros, latifundiários que se apropriam de
terras alheias, incluindo indígenas. De qualquer modo, muitas comunidades quilombolas se estabeleceram desde então. O
livro trata exatamente desse processo.

Meu primo deixava a fazenda para participar de reuniões do sindicato,


de movimentos, para congressos. Gostava de sua companhia, mas
guardava certa distância porque sentia que minha irmã tinha ciúmes
do marido, mesmo de mim. (VIEIRA JUNIOR, 2018, p. 155)

Apesar da luta empreendia por Severo, Zeca do Chapéu Grande era contra o confronto, pois aprendera a receber o
que lhe davam, não a conquistar direitos. Por isso, cada um representa um momento na história dos quilombolas: da
semiescravidão à luta por liberdade e direito à terra em que trabalhavam. Essa passagem do tempo e das mudanças de
perspectiva entre os personagens tem como marco a morte de Zeca, durante uma Semana Santa, particularmente no
domingo de Páscoa. Simbolicamente, assim como Cristo morrera e ressuscitara para transformar o ser humano, a morte de
Zeca abria espaço para um novo quilombola, representado por Severo e seu ativismo político.
Talvez por isso ou por não terem mais interesse, os herdeiros da família Peixoto (que nunca vemos no romance,
apenas sua presença como proprietários) resolvem vender Água Negra.
O novo proprietário tinha mais intenção de explorar a fazenda como local de ecoturismo que de produção de
alimentos, devido à sua localização. O contexto já é outro e há maiores preocupações com o meio ambiente e o modo de vida
dos antepassados poderia trazer prejuízo ao novo fazendeiro.

Agora o novo dono, que construiu uma casa bonita e vistosa para
morar na beira dos marimbus, mandou uma novo gerente, depois de
Sutério se aposentar, dizer que não poderíamos mais sepultar ninguém
na Viração. Que era crime contra as matas. Contra a natureza. Que o
cemitério estava próximo ao leito do rio. Que na cidade tinha cemitério
e que a prefeitura garantia o transporte do morto para lá. (VIEIRA
JUNIOR, 2018, p. 179)

Severo aproveitou-se da situação para cobrar direitos ao novo proprietário, conseguiu apoio dos outros
moradores, fundou uma associação, o que despertou a fúria de Salomão, o novo dono da fazenda. Viam-se policiais fazendo
ronda, houve ataques à plantação dos moradores, até que Severo acabou sendo assassinado com oito tiros de revólver. A
polícia investigou o caso e concluiu que o trabalhador havia se envolvido com tráfico de drogas e fora morto em disputa por
território. Claro que se tratava de uma conclusão conveniente, não que fosse a verdade.
Após a morte de Severo, inicia-se a terceira e última parte do romance: Rio de Sangue. A narradora dessa parte não
é tão clara; ora faz o leitor imaginar um encantado, como Santa Rita Pescadeira; ora uma espécie de narrador coletivo.
De qualquer modo, alguns pontos soltos da história vão se costurando, como a origem da família de Zeca Chapéu
Grande, as disputas pela terra, a corrida para encontrar diamantes (por isso, Chapada Diamantina), as mortes, como Donana
acabou ficando com a faca que era de um coronel e que foi a utilizada pelas meninas para cortarem a língua, como Zeca
recebeu o dom de conversar com os encantados ou orixás e como se tornou líder de um jarê.

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A morte de Severo gerou muito revolta, todos se voltaram contra Salomão, que teve de deixar o local com sua
esposa, Estela, uma mulher mais afeita à vida na cidade, sem qualquer ligação com a terra, com o sentido sagrado que tinha a
terra para os quilombolas.

[...] o desejo do povo, depois do enterro, foi queimar a casa de madeira


e vidro. Queriam vê-la reduzida a cinzas, moído feito poeira, consumida
pelas chamas. Sentiam vontade de destruir tudo o que lhes foi negado.
(VIEIRA JUNIOR, 2018, p. 212)

Bibiana, aproveitando-se do sentimento de revolta que todos tinham, e para honrar a memória do marido, cuja
narrativa criada pela polícia ia contra quem de fato era Severo, passou a liderar o povo. Belonísia esteve sempre do seu lado.
Ao mesmo tempo, sem um líder como Zeca, muitos moradores foram se deixando levar pelo discurso de pastores
evangélicos e abandonaram as crenças nos orixás ou misturavam as crenças. Quem queria permanecer fiel, teve de procurar
outra casa de jarê3.
Quase ao final da narrativa, é relatado que a faca de Donana, que fora jogada no rio, estava em um pote na casa de
Tobias. Belonísia achou a faca e a escondera. Já eram passados trinta anos desde o incidente. E Belonísia mostrava a faca
novamente à irmã. A faca, além de bonita, com um cabo feito de mármore, tinha um sentido simbólico. Donana roubara a
faca na antiga fazenda Caxangá, onde morava inicialmente. Era um roubo que poderia significar um dinheiro que faria ao
vendê-la a algum caixeiro viajante, mas que passou a significar um grito contra a opressão dos que vinham roubar-lhe a
terra, a sua terra, onde seus antepassados foram escravizados e depois libertos. Era a terra que deveria pertencer, por
direito, a eles. Assim, a faca tinha o sentido libertário. Porém, essa faca viria a servir, ainda que de maneira improvável, para
ferir as duas netas, particularmente uma, que tivera sua voz calada para sempre.
Antes, porém, a faca servira para vingar o abuso que sofria Carmelita, uma de suas filhas. Descobriu que o então
homem com quem morava, abusava da menina. Em dado momento que ele estava pescando, Donana usou a faca para dar
um fim aos abusos e o homem afundou-se no rio.
Após todos os acontecimentos, fica sugerido que Belonísia voltaria a usar a faca para clamar por justiça, ainda que
torta, para, como a avó, vingar os seus. Salomão, o proprietário da fazenda, fora encontrado caído no chão, quase degolado.

No mesmo dia, vieram duas viaturas da polícia com investigadores. A


fazenda ficou sitiada de homens armados colhendo depoimentos de
todos os que haviam encontrado Salomão. [...] Os moradores de Água
Negra começaram a se sentir desconfortáveis. Duvidavam que dentre
eles alguém pudesse ter cometido aquela barbárie. (VIEIRA JUNIOR,
2018, p. 253)

Mesmo antes da morte de Salomão, uma pequena revolução ia se desenvolvendo na fazenda. Os morados passaram
a desobedecer às ordens. O primeiro ato foi derrubarem as próprias casas feitas de palha e barro e começaram a construir
casas de madeira, tijolo e telha. Começavam a tomar posse do que era deles, se não aos olhos da lei, ao menos aos olhos da
justiça social. Tomar posse da terra onde sempre trabalharam e viveram e nunca receberam por isso, apenas o direito a estar
e a plantar o que comer.
Salomão entrara com pedido de reintegração, mas em meio ao processo acabou sendo degolado. Estela deixou a
casa de madeira e vidro com os filhos. Homens da justiça vieram e começaram a tomar ciência sobre a condição daqueles
trabalhadores, daquela comunidade de quilombolas.
No último capítulo, por meio de uma linguagem simbólica e metafórica, a narradora do capítulo (uma encantada ou
um orixá) esclarece que usara dos corpos de Bibiana e Belonísia para recuperar todo o passado de sofrimento daquele povo,
para dizer que foi feita uma armadilha para capturar uma onça, porém que não seria bem uma onça que deveria cair na
armadinha e como a caça teve seu pescoço cortado.

Não era uma armadilha tola para capturar uma caça. Mas antes que
levantasse, se abateu sobre seu pescoço um único golpe carregado de
uma emoção violenta, que até então desconhecia.
Sobre a terra há de viver sempre o mais forte. (VIEIRA JUNIOR, 2018,
p. 262)

3 Para se conhecer mais sobre o jarê na Chapada, recomenda-se a leitura de seguinte reportagem: Wendal do Carmo. Jarê, o ‘candomblé de caboclos’ típico da
Chapada Diamantina. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jare-o-candomble-de-caboclos-tipico-da-chapada-diamantina/. Acesso em 15 jul.
2022.

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Análise

Conforme se pode depreender da leitura do enredo, o livro de Itamar Vieira se insere no contexto atual de dar voz
aos que nunca tiveram condições de se expressar. No caso específico, os quilombolas, vistos sempre de maneira
preconceituosa pela sociedade urbana e mesmo por governantes, ao longo da História.
A capa do livro é bem significativa, tendo em vista que apresenta duas mulheres negras, estilizadas, segurando uma
espada de são Jorge, isto é, uma planta que tem esse nome.
Imagem: capa do livro

Fonte: https://todavialivros.com.br/livros/torto-arado

Para se compreender a capa, é preciso considerar o sincretismo religioso, isto é, a mistura que acabou acontecendo
entre as crenças de matriz africana, proibidas no Brasil por séculos, e o catolicismo. No caso, os escravos manifestavam sua
fé travestida de fé católica. Ainda hoje, porém, há muito preconceito em relação ao candomblé e outras crenças
semelhantes. De modo específico, a referência à espada de São Jorge remete o leitor a Ogum, um orixá que representa a
guerra, o guerreiro, como são, aliás, as duas irmãs.
Outra referência constante no livro é a de são Sebastião, representado na Umbanda como Oxóssi, outro guerreiro
e visto como irmão de Ogum, ambos filhos de Iemanjá, orixá conhecida como a rainha dos mares e mesmo dos rios que
deságuam no mar. Donana mata o abusador da sua filha na beira do rio, depois, após o episódio envolvendo as netas, oferece
a faca ao rio. Mais tarde, a faca será usada como instrumento de guerra contra Salomão.
As irmãs, embora não tenham continuado o Jarê do pai, acabam por incorporar entidades guerreiras para lutarem
pela terra.
Essa incorporação e toda a mística em torno do livro, que faz alguns personagens se transformarem em onça, como
Zeca do Chapéu Grande (o metamorfosear-se em onça é bastante comum na tradição cultural brasileira; está presente, por
exemplo, na novela Pantanal, bem como em textos literários, como “Meu tio, o iauratê”, de Guimarães Rosa, ou ainda a
expressão corrente virar onça, que significa ficar bravo ou mesmo ter um momento de loucura), inscrevem o livro em uma
categoria de realismo mágico, ao mesmo tempo que há as referências, em meio a temáticas universais, como acontecia com
o próprio Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos, o chamado regionalismo universal. A explicação é relativamente simples: o
enredo se passa em uma determinada região (no caso, a Chapada Diamantina), porém a abordagem tem um caráter
universal, como as relações familiares, o machismo, a sociedade patriarcal etc.
Outro aspecto simbólico que perpassa toda a narrativa é a faca, que pertencia a um coronel, a um escravocrata, e,
portanto, um instrumento de poder sobre os mais fracos. Ao ser roubada por Donana, é como se ela passasse a ter esse
poder, usado para vingar o abuso que uma de suas filhas sofreu dentro de um contexto machista. Porém, esse mesmo poder,
segundo sua interpretação, se volta contra ela, quando Belonísia, particularmente, fica muda, fica impossibilitada de falar, de
se expressar por ela mesma.
Nesse contexto patriarcal, há diversas histórias que se cruzam, como as das gêmeas Crispina e Crispiana, Maria
Cabocla, a própria Belonísia, entre outras. Seus corpos e vontades são constantemente violentados e sua liberdade
duplamente tolhida (pelo patrão e por algum homem que se une a elas). Ao mesmo tempo, porém, algumas conseguem
romper com essa trajetória de violência, com determinação e coragem, caso, mais uma vez, das irmãs protagonistas.
Por fim, Belonísia acaba por usar o instrumento que a tornara muda como arma contra os desmandos, representados
por Salomão. Rita Pescadeira ao se apossar das irmãs, leva Bibiana a criar a armadinha para Belonísia expressar sua revolta
com o instrumento que tirara sua voz.
Nesse sentido, como já afirmado, o livro de Itamar Vieira é o arado, ainda que torto, que prepara a terra, que
possibilita aos que nunca tiveram voz, se expressarem e se fazerem ouvir.

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Atividades

01. (CEV-URCA)
"Tudo em ’Torto arado’ é presente no mundo rural do Brasil. Há pessoas em condições análogas à escravidão"

Quando Bibiana e Belonísia nasceram, tinham outros nomes. O baiano Itamar Vieira Junior tinha 16 anos quando
começou a escrever Torto arado (Todavia), que ganhou nesta quinta-feira o Prêmio Jabuti de melhor romance, e suas
protagonistas tinham outras identidades. A essência da narrativa, no entanto, permaneceu inalterada: a história de duas
irmãs, contada a partir de sua relação com o pai e com a terra onde viviam. O título, retirado do poema Marília de Dirceu, de
Tomás Antônio Gonzaga, tampouco mudou. O que veio depois foi a vontade de levar a história para o sertão da Chapada
Diamantina, longe da capital ou do Recôncavo Baiano, onde a maioria dos seus conterrâneos ambientam suas narrativas. "A
gente fala do sertão, do semiárido, parece que se trata de uma coisa só, mas o sertão da Chapada tem uma regularidade de
chuva, uma diversidade de paisagem, de mato, que salta aos olhos", conta Vieira Junior, hoje com 41 anos, ao EL PAÍS, por
telefone.
Profundamente influenciado pelas leituras de Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, ele escreveu as
primeiras 80 páginas da obra, mas o manuscrito se perdeu durante uma mudança da família. Vieira Junior só retomaria a
história vinte anos depois, quando, formado geógrafo e funcionário público do INCRA, conheceu as realidades de indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e assentados no sertão baiano e maranhense. "Ao longo de 15 anos, aprendi muito sobre a vida no
campo e vi um Brasil muito diverso do que vivemos cotidianamente nas cidades. Existe uma vida muito pulsante no campo,
uma vida que está em risco, porque essas pessoas vivem em constante conflito na defesa de seus territórios. Tudo isso
reacendeu a chama de escrever Torto arado", conta o escritor, que lembra que o Brasil é um dos países com maiores índices
de violência no campo. No ano passado, foram registrados 1.883 conflitos, incluindo 32 assassinatos, de acordo com o
levantamento anual realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Em 2017, quando escrevia a segunda - e definitiva - versão do romance, nove trabalhadores rurais com os quais
Vieira Junior teve contato foram assassinados, seis deles em uma chacina. "Foi um ano brutal", lembra. São as vidas e lutas
dessa gente que estão contadas em sua obra, que acompanha a família das irmãs Bibiana e Belonísia no cotidiano de Água
Negra, uma fazenda onde os trabalhadores aram a terra sem receber salário, tendo apenas o direito de construir casebres
de barro que precisam ser reconstruídos a cada chuva, pois o fazendeiro não autoriza construções de alvenaria. Quando não
estão plantando e colhendo nas terras do patrão, cultivam roças nos próprios quintais para comer e ganhar um pouco
dinheiro vendendo abóbora, feijão e batata na feira. São quase todos negros, descendentes de escravizados libertos havia
poucas décadas, como é o próprio autor. Descendente de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria e de
indígenas Tupinambás, Vieira Junior construiu um sertão real, que tem vida e verde, graças, em parte, às histórias dos avós
paternos, que viveram no campo, na região de Coqueiros do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano.
O torto arado que dá nome ao livro é um objeto que, usado pelos antepassados das protagonistas na lida com a terra,
atravessa o tempo para representar essa herança escravocrata de tantas desigualdades. Narrado primeiramente por
Bibiana, depois por Belonísia e, na terceira parte, por outra personagem, o romance já começa com o clímax de um acidente:
crianças, as duas irmãs, filhas de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário e espiritual encontram uma faca da avó Donana.
A partir daí, a linguagem, central na narrativa desde a prosa melodiosa com que o autor escreve, torna
se ainda mais importante. O não dito é tão importante quanto o que está impresso no papel. Uma irmã torna-se a voz da
outra, e, como estão descritos os gestos, mas não as palavras das personagens, o leitor não sabe quem foi mutilada até
chegar a um terço do romance.
(FONTE: El País. Texto de Joana Oliveira. Disponível em https://brasil.elpais.com/cultura/2020-12- 02/tudo-em-torto-arado-ainda-e-presente-no-mundo-rural-brasileiro-ha-pessoas-em-condicoes-analogas-a

escravidao.html)

No trecho "Tudo isso reacendeu a chama de escrever Torto arado", conta o escritor, que lembra que o Brasil é um
dos países com maiores índices de violência no campo, a expressão em negrito no texto exemplifica um processo de
significação das palavras conhecido como:
(A) catacrese.
(B) metáfora.
(C) símile.
(D) sinédoque.
(E) hipálage.
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02. (FACISA) Atente para o excerto abaixo:

Ouvi os passos lentos de minha avó chamando Bibiana, chamando Zezé, Domingas, Belonísia. “Bibiana, não está vendo as
batatas queimando?” Havia um cheiro de batata queimada, mas tinha também o cheiro do metal, o cheiro do sangue que
ensopava minha roupa e a de Belonísia.
(Itamar Vieira Junior, Torto Arado, p. 16)

I - o trecho aspeado indica discurso indireto livre, pois não há introdução com a presença de verbo dicendi. II - há, no excerto,
mudança de registro formal para informal, pela presença, no mesmo enunciado, das formas verbais “havia” e “tinha”.
III - a indecisão no uso da repetição (“chamando” ... “chamando”; “um cheiro” ... “o cheiro” ... “o cheiro”) e da elipse (do verbo
indicando Domingas e Belonísia; e do substantivo “roupa” em relação a “de Belonísia”) revela insipiência narrativa do
romancista.
IV - o relativo “que” tem como referente expresso “o cheiro do sangue” e é um dos vários elementos de coesão presentes no
excerto.
V - a forma verbal “vendo” pode ser interpretada com sentido sinestésico.

Estão CORRETAS apenas as assertivas


(A) II, III e IV.
(B) I e II.
(C) I, II, III e V.
(D) II e IV.
(E) II e V.

03. (FACISA) Leia o texto abaixo:

No domingo de Páscoa, minha mãe contou que sentiu uma forte corrente de ar fria e úmida da madrugada percorrer seu
quarto. Levantou atordoada, achando que havia esquecido a janela aberta, mas viu que permanecia cerrada. Acendeu o
candeeiro para ver se meu pai precisava de algo. O encontrou com os olhos abertos, apesar da face serena. Seu rosto, à luz
parca, era um jogo de sombras contornando os ossos. Foi assim que veio chamar pelos filhos, com sua voz rompendo o canto
dos insetos. Zeca havia partido.
(Itamar Vieira Junior, Torto Arado, p. 163)

Marque os parênteses com V (verdadeiro) ou com F (falso).


( ) Os adjetivos “fria” e “úmida” foram usados como silepse de gênero, pois deveriam estar no masculino, por se referirem a
“ar”.
( ) “aberta” e “cerrada” têm função sintática diferente, já que a primeira é adjunto adnominal, e a segunda, predicativo. ( ) “O”,
em “O encontrou com os olhos abertos”, está empregado contrariando orientação da gramática do português culto.
( ) A função referencial e a poética se fazem predominantes no texto.

Assinale a alternativa que contém a sequência correta:


(A) V, V, F, F
(B) F, F, V, V
(C) F, V, F, V
(D) V, F, V, F
(E) V, F, V, V

04. (CEDERJ) Torto arado


Durante muitos anos, nascemos e vivemos à sombra da corrida do garimpo. Seja nas brincadeiras de criança, quando éramos
ensinados a identificar qualquer gema que pudesse se assemelhar à pedra da cobiça, seja nas histórias dos coronéis que
dominavam a região e da guerra que embrenharam pelas serras onde estava o diamante. Contavam de como o trânsito de
pessoas às vezes era interrompido de um lugar a outro para que não fossem mortos nas emboscadas. De como as fazendas
em que morávamos e nossas origens tinham a marca dessa trama de vida e morte que se instalou por décadas na Chapada
Velha.
Se fôssemos moradores da fazenda “tal”, estávamos livres para transitar de um lugar a outro. Se nosso senhor fosse desafeto
de “tal” coronel, os que ali viviam também corriam o risco de se tornarem vítimas da violência. Era o que nos contavam. O
medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre. Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo
de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente.
Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem
do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor. Que não gostassem de seus filhos, das cantigas,

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da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos, encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos
parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos
da vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo. (...)
VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019. (p. 178-179)

O romance “Torto arado”, do baiano Itamar Vieira Júnior, recebeu o Prêmio LeYa (2018), o Prêmio Jabuti (2020) e o Prêmio
Oceanos (2020). No fragmento em destaque, narrado em 1ª pessoa, infere-se que a história está centrada: (A) na saga de
garimpeiros de várias origens que desbravaram o Norte do Brasil.
(B) na vida dos negros que viviam nas fazendas do interior do Brasil.
(C) no poderio dos latifundiários que empregavam italianos nas lavouras brasileiras.
(D) na violência dos cangaceiros que mandavam no Nordeste do Brasil.

05. (CEDERJ)
“Durante muitos anos, nascemos e vivemos à sombra da corrida do garimpo. Seja nas brincadeiras de criança, quando
éramos ensinados a identificar qualquer gema que pudesse se assemelhar à pedra da cobiça, seja nas histórias dos coronéis
que dominavam a região e da guerra que embrenharam pelas serras onde estava o diamante.” (Linhas 1-8)

Identifique o mecanismo de coesão textual que se percebe nas estruturas sublinhadas no fragmento acima: (A)
citação
(B) comparação
(C) contraste
(D) paralelismo estrutural

05 - D
04 - B
03 - B
02 - D
01 - E
Respostas

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MELHORES POEMAS
FERNANDO PESSOA

Introdução

Fernando António Nogueira de Seabra Pessoa (1888-1934) nasceu em Lisboa, mas, com a morte de seu pai, a mãe
veio a se casar com João Miguel Rosa, cônsul português em Durban, na África do Sul, capital da antiga colônia britânica. Lá,
estudou em colégios ingleses, onde demonstrou pelas primeiras vezes o talento literário e se tornou fluente em inglês.
Pessoa é conhecido por criar heterônimos, isto é, artistas com personalidade e estilo diferentes entre si. Já aos
dezesseis anos, o jornal The Mercury Natal publicou seu poema “Hillier did first usurp the realms of rhyme”, sob o heterônimo
Charles Robert Anon. Criou ainda mais três heterônimos no período: David Merrick, Horace James Faber e Alexander
Search.
De volta a Portugal, enquanto sua família permaneceu na África do Sul, seguiu uma vida de estudos e projetos, tendo
fundado uma editora, que não foi muito adiante. Também fundou uma revista literária em 1912: A Águia, em que propôs
discussões acerca da literatura moderna e do advento de uma espécie de “superCamões”, isto é, um escritor tão ou mais
importante que Luís de Camões, poeta clássico, autor de Os Lusíadas (1572).
Em 1915, fez parte do grupo de artistas e poetas que colaboraram com a revista Orpheu. Embora tivesse atuado
apenas como colaborador no primeiro número da revista, já na segunda edição, ele e Mário de Sá-Carneiro assumiram a
direção do periódico. Em Orpheu, Pessoa publicou tanto em seu próprio nome, como também há contribuições de seu
heterônimo Álvaro de Campos. Um dos seus textos mais famosos é O marinheiro, uma peça de teatro.
No Art Journal Athena (1924), Pessoa apresentou a poesia dos heterônimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Em
paralelo as suas atividades de escritor e produtor cultural, Pessoa fazia traduções comerciais e estudos sobre assuntos
ligados ao ocultismo, como astrologia, esoterismo, hermetismo e alquimia. Em 1918, Pessoa publicou, em Lisboa, dois
volumes em inglês: Antinous e 35 Sonnets, embora apenas o segundo tenha ganhado certa fama.
O único livro, assinado com seu próprio nome, que publicou em português, em vida, foi Mensagem (1934). Porém,
deixou diversos manuscritos, assinados por nomes diferentes (heterônimos) e que foram publicados postumamente. Sua
obra passa por diversos estilos, mas tem como foco Portugal e suas variantes, bem como temáticas exploradas a longo da
história literária e, particularmente, pela modernidade.
Politicamente, Pessoa era um nacionalista místico, além de simpático ao regime monarquista, substituído pela
República em 1910. Pessoa era um franco elitista e alinhou-se contra o comunismo, o socialismo, o fascismo e o catolicismo.
A edição selecionada como leitura obrigatória foi organizada pela professora Teresa Rita Lopes e publicada pela
Global. Reúne o que seriam significativos poemas de Fernando Pessoa e heterônimos. Por se tratar de poemas diversos, não
há como fazer um resumo, por isso vamos fazer uma apresentação das características da poesia do autor, obedecendo à
divisão do próprio livro.
No caso, os primeiros poemas foram assinados pelo nome Fernando Pessoa, ortônimo, incluindo quatro poemas
publicados em Mensagem.
Na segunda parte, há diferentes poemas de três heterônimos mais famosos. Destacaremos os principais aspectos de
cada um.

Ortônimo

A poesia ortônima pressupõe a escrita e assinada como Fernando Pessoa ele próprio. Porém, revela afinidades
essenciais com heterônimos, como Caeiro e Campos. Isso porque seus versos são marcados pelas sensações, pela indecisão
e pela inquietação. Os três poemas iniciais retomam os ideais subjetivistas da poesia simbolista, que queria captar o
indizível. Pessoa tenta, ao mesmo tempo, ser objetivo e subjetivo, como em “Impressões do crepúsculo”, em que a sucessão
de metáforas tem como meta expressar seu projeto sensacionista (sensações).
Como exemplo, leia-se a primeira estrofe de “Hora absurda”:

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...


Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
(PESSOA, 2004, p. 30)

Na sequência, há dez poemas extraídos do que seria um livro intitulado Cancioneiro, com textos líricos igualmente
de influência simbolista, e que retomam a tradição medieval portuguesa (por referência aos cancioneiros

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com cantigas e poesia palaciana produzidos entre os séculos XII e XVI). Com efeito, os textos são curtos, alguns escritos em
redondilha, com rimas e que poderiam até mesmo ser musicados.
Quanto à temática, há quatro metalinguísticos, pois tratam sobre o ato criador; especialmente o famoso
“Autopsicografia”, no qual se lê:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(PESSOA, 2004, p. 40)

Pessoa revela que a literatura é um jogo entre fantasia e realidade (por isso, o poeta finge, ao mesmo tempo que
expressa a realidade). Algo semelhante é dito em “Isto”, com a acréscimo de que o poeta deve sentir para se expressar. É
outra referência à influência simbolista na sua poesia. Pessoa defendia que a arte deve se manifestar pela “representação
simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior”, ou seja, o artista tem de expressar o que sente, as suas sensações,
por meio do que Pessoa chamava interseccionismo. “Sentir? Sinta quem lê!”, diz no verso final de “Isto”. E deve expressar a
realidade objetiva, filtrada igualmente pelas sensações.
Como exemplo, leiamos outro texto. Observe-se a força rítmica das quadras e das redondilhas menores, bem como a
expressividade dos sentidos.

Paira à tona de água


Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.

Não é porque a brisa


Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,

Nem é porque eu sinta


Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta
Não sabe o que quer.

É uma dor serena,


Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...
(PESSOA, 2004, p. 50)

Pelo poema, podemos perceber uma das recorrências temáticas na obra de Pessoa: o tédio como expressão de um
mundo de cansaço e desgosto com a vida, a impossibilidade de ter algo a desejar.
Conforme indicado, a única obra que publicou, Mensagem, é um livro pertencente ao gênero épico simbolista/
modernista. São 44 poemas curtos divididos em três partes. No caso da coletânea, há quatro poemas da terceira parte,
intitulada “O encoberto”. Trata-se de uma referência ao rei D. Sebastião (1554-1578) e o mito que se criou em torno dele.
No caso, o rei não tinha sucessores, mesmo assim foi, pessoalmente, participar de uma campanha militar, em apoio
ao exército do sultão Mulei Maomé, contra o exército saadiano liderado pelo sultão Mulei Moluco. Segundo dados oficiais,
D. Sebastião veio a morrer em batalha na região de Alcácer-Quibir. No entanto, como Portugal ficaria sem rei (com efeito, a
partir de 1580 foi governado pelo rei da Espanha, D. Filipe II, durante o período que ficou conhecido como União Ibérica),
criaram-se diversas histórias segundo as quais o rei não teria morrido e voltaria a Portugal para governá-lo. É o mito do
sebastianismo, que ganhou adeptos, como o pe. Antônio Vieira, e que entrou para a cultura popular. Mesmo no século XXI, é
possível que ainda haja crentes no retorno de D. Sebastião...
Pessoa trata desse mito, posto que D. Sebastião, ou o Desejado, seria o líder do Quinto Império, uma espécie de Rei
Arthur a guiar o povo em busca do Santo Graal. Segundo o mito, ele poderia estar nas chamadas Ilhas afortunadas (uma
espécie de Paraíso na Terra, conforme a mitologia grega), à espera do momento certo. Ao mesmo tempo, a voz poética diz
que tudo pode se perder, uma vez desconstruído o valor poético do mito, que, no caso, se revelaria um sonho, uma mentira,
ou apenas um desejo.

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São ilhas afortunadas,


São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.
(PESSOA, 2004, p. 56)

De qualquer modo, D. Sebastião é o elo na obra, posto que aparece em todas as três partes de Mensagem. Não que
Pessoa acreditasse na vigência do mito ou na ideia em si expressa, mas a crença representaria a capacidade de continuar
sonhando que Portugal poderia retomar seu passado glorioso, da época das viagens marítimas, que motivaram diferentes
conquistas e fizeram de Portugal um grande Império. Assim, o tédio e o desgosto com a vida estão no contexto da
decadência portuguesa no mundo moderno. Desse modo, a valorização do passado nacional poderia ajudar a retomar a
posição de destaque que tivera em tempos passados, rompendo-se com o tédio e o desalento.
Sem essa voz, sem essa crença, haveria apenas o barulho objetivo do mar...

Heterônimos

A coletânea selecionou os três principais heterônimos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Cada um
escreve em estilos diferentes, bem como apresentam comportamento e filosofias diversas. Para se entender o conceito de
heteronímia, podemos recorrer à explicação de Carlos Reis, segundo o qual:

O estatuto da heteronímia é claramente distinto – e consideravelmente


mais complexo – do que o da pseudonímia, na medida em que esta se esgota
na adoção de um nome falso, por razões que podem ser de índole muito
diversa; em segundo lugar, o heterônimo parece resultar da convergência
e ação conjugada de três componentes: um nome próprio, atribuído a
um sujeito poético; uma identidade própria, dotada de características
psicológicas e ideológico-culturais próprias; finalmente – aspeto decisivo
e indispensável – um estilo próprio, estabelecido por uma escrita poética
autônoma em relação à do ortônimo. (REIS, 1989, p.35)1

Em outros termos, o heterônimo significa ter outro nome e outra personalidade. É como se o autor criasse um
personagem em um livro, mas que é autor de outros textos. Por isso, embora tudo tenha sido escrito por Fernando Pessoa,
não significa que ele participe dos mesmos preceitos e ideologia de seus heterônimos. Segundo o próprio Pessoa, “não há
que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos
que nunca tive”2.
Os três heterônimos estão agrupados em um volume que seria publicado como Ficções do Interlúdio. Interlúdio é uma
composição musical que têm a função de separar partes musicais de uma ópera, por exemplo. Isto é, separa uma cena de
outra. Cada poeta, embora faça parte de um todo, tem as suas particularidades e se separam entre si. Por isso, é mais simples
quando se estuda, em separado, cada um deles.

Álvaro de Campos

Álvaro de Campos (1890-1935) é uma espécie de alterego do próprio Pessoa. Como o autor, Campos também se
divide e busca olhar a realidade pelo olhar do outro. Ou seja, Campos também criaria seus heterônimos, ainda que não
tenham propriamente um nome específico, expressando-se de modo diferente.

Tal qual me julgo verdadeiramente?


Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
(PESSOA, 2004, p. 60)

Como se pode perceber, uma de suas preocupações é a identidade. Ao querer ser tudo, falha e se desespera. No
poema “Tabacaria”, questiona:

1 REIS, Carlos (coord.), 1989. Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta
2 Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 199.

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Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?


Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
(PESSOA, 2004, p. 119)

A poesia de Campos pode ser dividida em três momentos.


• Simbolista/decadentista
• Futurista/sensacionista
• Intimista/pessimista

No caso da Antologia, os textos decadentistas são três sonetos (Quando olho para mim não me percebo; A Praça da
Figueira de manhã; Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de) e “Opiário”, um poema com 43 quadras, com versos
decassílabos e esquema rítmico em a/b/b/a, em que revela o tédio e o enfado, bem como a busca por novas sensações. Foi
escrito durante uma viagem pelo canal de Suez, que fica entre o mar Mediterrâneo e o Vermelho, no Oriente Médio. É uma
poesia que revela o desejo febril de ser e sentir tudo; por outro lado, há uma busca pelo isolamento e uma sensação de vazio.

E afinal o que quero é fé, é calma,


E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh’alma!
(PESSOA, 2004, p. 66)

Depois, em um segundo momento, de feições futuristas, Campos muda seu estado de espírito de modo a
experimentar o todo da vida de maneiras variadas, expressando-se com entusiasmo quanto ao significado das coisas. É o
caso de poemas como “Ode Triunfal” e “Ode Marítima”.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(PESSOA, 2004, p. 69)

No caso da terceira fase, o leitor percebe no eu lírico um estado de melancolia nostálgica, posto que relembra da
infância, período de alguma alegria. No momento atual, por sua vez, a vida se apresenta como, essencialmente, vazia.
Lembra, um pouco, os arroubos juvenis do poeta romântico Casimiro de Abreu, ainda que em outro tom. O poema mais
significativo dessa fase é “Lisbon revisited”, no qual se leem os seguintes versos:

Não: não quero nada


Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
[...]
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
(PESSOA, 2004, p. 105-106)

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Em linha temática semelhante, encontra-se “Adiamento”, igualmente presente na Antologia. Por fim, importante
destacar a relação estabelecida entre Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, conhecido por ser o poeta das sensações ou
sensacionismo. Em poema sem título, presente na página 112, Campos chama Caeiro de Mestre e reconhece que sua vida
em torno do mundo externo de nada vale. O que importaria seriam os sentidos, ainda que o eu lírico demonstre não
entender bem como chegar a esse estágio de vida. É como se a vida exterior dominasse o eu lírico, que quer se libertar para
viver a expressão dos sentidos e buscar algo que o completaria de fato, que o faria ser.

Mestre, meu mestre!


Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
(PESSOA, 2004, p. 112)

Ricardo Reis

Ricardo Reis teria nascido em 1887. Pessoa não especificou o ano de sua morte, porém o escritor José Saramago
escreveu um livro para romancear a vida de Reis, sob o título O ano da morte de Ricardo Reis, que teria acontecido em 1936.
Apesar de ter estudado em colégio dos jesuítas e ser monarquista, Reis é latinista, cultua o mundo clássico, racional e
helênico. Nesse sentido, retoma o epicurismo, filosofia formulada por Epicuro (século IV a.C.), que defende que o homem
deve evitar extremos emocionais e cultuar o prazer do momento, vivendo de modo equilibrado.
Nesse sentido, Reis é um poeta austero, cerebral, sem grandes variações no ritmo e na estrutura do texto poético.
Sua poesia busca um mundo livre de problemas e descanso. Quer uma vida equilibrada, sem sustos, por isso foge das
angústias e aflições cristãs. Assim como Campos, Reis também se considera um discípulo de Alberto Caeiro, pelo que tem
simplicidade na busca das sensações serenas, tranquilas.
A Antologia traz 16 poemas, com destaque para as pequenas odes 3 de inspiração horaciana (por referência ao poeta
latino Horácio – 65 a.c. – 8 a.C.) e neoclássica. O leitor experiente poderá perceber o tom árcade nos textos, com alusão ao
mundo pastoril e diálogo com a amada, normalmente Lídia (nome comum nos poemas de Bocage ou de Cláudio Manuel da
Costa). Outra constante é o carpe diem, isto é, o conselho para se aproveitar o momento, sem se preocupar com o depois.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida


Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
(PESSOA, 2004, p. 132)

Há, pois, uma consciência da efemeridade da vida e uma certeza da morte, por isso é preciso viver com
tranquilidade e aproveitar os momentos. Como muitos poemas de Reis se apresentam como conselhos para si próprio e para
o interlocutor, é comum o uso do modo imperativo nos textos.
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.
(PESSOA, 2004, p. 134)

Alberto Caeiro

Alberto Caeiro foi o primeiro grande heterônimo de Fernando Pessoa. Ele é o poeta das sensações, dos sentidos. É o
Mestre dos outros dois heterônimos e do próprio Pessoa. Segundo informações biográficas, teria nascido em 1889 e
morrido em 1915. Teve pouco estudo e, por isso, expressa mais o que sente, sem grandes reflexões filosóficas. Sua poesia
está ligada ao campo e ao Ribatejo, uma antiga província de Portugal.

3 Odes são poemas líricos, destinados ao canto e à exaltação.

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Caeiro aceita o mundo como ele é, sem grandes questionamentos. Por estar livre de metafísicas (sentidos ocultos),
parte do princípio de que o mundo seria superficial, isto é, as coisas são exatamente o que parecem, expressam aquilo que
está na superfície, sem significados ocultos.
É autor de três livros: O Guardador de Rebanhos; O Pastor Amoroso; Os Poemas Inconjuntos. Na Antologia, há 32
poemas dos 49 que compõem o primeiro livro. No caso do segundo, ele está praticamente inteiro, posto que não é tão longo.
E não há nenhum poema do terceiro livro.
Os poemas IX e X são sintéticos da poesia de Caeiro. Nele, estão presentes o sensacionismo e a aludida
superficialidade das coisas. Nada melhor do que lê-los por completo.

IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
(PESSOA, 2004, p. 155)

X
«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?»

«Que é vento, e que passa,


E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?»

«Muita coisa mais do que isso,


Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.»

«Nunca ouviste passar o vento.


O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»
(PESSOA, 2004, p. 156)

Observe que o eu lírico se apresenta como o guardador de rebanhos (um pastor, algo típico à época do Arcadismo no
século XVIII). Ao mesmo tempo, explora as sensações (ele pensa com os sentidos humanos), algo que era bem típico durante
o Simbolismo (escola do final do século XIX). Ele afirma que, mais do que pensar em uma flor, é preciso sentir a flor: ver,
cheirar.
Já no poema X, há um diálogo entre o guardador de rebanhos e outra pessoa. A discussão é sobre a simbologia oculta
do vento. Se para o interlocutor haveria algum sentido não expresso, conforme se lê na terceira estrofe, para o guardador “o
vento só fala do vento”, isto é, não há nada mais para além da superficialidade do vento.
Caeiro se aproxima da Natureza de maneira diferente: leva os objetos naturais para a atenção do leitor, de modo
direto e simples
Ele desconstrói verdades estabelecidas, sempre em favor daquilo que ele sente, não de seu possível significado.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.


Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
(PESSOA, 2004, p. 155)

É como conclui o poema VIII.


Esse preceito de que vale mais sentir que pensar é repetido em diversos outros poemas, entre os quais: XXXVI e
XLVI. Há, igualmente, outros poemas em que o sentir verdadeiro deve se sobrepor ao sentir de maneira indireta, como o ato
de escrever sobre a natureza, tocar piano etc. O melhor é sentir a natureza, é ouvir a música que vem da natureza.

Para que é preciso ter um piano?


O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
(PESSOA, 2004, p. 156)

E o sentir deve ser acessível, não imaginado, como ocorre no famoso poema XX, em que o eu lírico compara o rio
Tejo (um rio importante de Portugal) ao rio que corre por sua aldeia. Para o eu lírico, importa mais o rio da sua aldeia, pois
seria acessível aos seus sentidos, ao seu olhar e audição, por exemplo. Ao passo que o rio Tejo estaria muito distante.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,
[...]
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
(PESSOA, 2004, p. 159)

Esse não pensar é que faz de Caeiro o heterônimo mais feliz, menos melancólico da obra de Fernando Pessoa. Com
efeito, Caeiro é anti-intelectual, antirromântico, antisubjetivista, antimetafísico e mesmo antipoeta (leiam-se, como
exemplo, os poemas XII, XIV e XXXVI).
Nesse sentido, Caeiro é diferente de Fernando Pessoa, tendo em vista que o poeta mesmo sempre esteve em volta
de incertezas metafísicas, causa de sua permanente infelicidade.
Em confirmação a isso, pode-se ler O pastor amoroso, em que se percebe uma felicidade plena quando o eu lírico está
com a mulher amada na natureza, reafirmando a necessidade de sentir bem mais do que filosofar ou pensar.

Sentado a teu lado reparando nas nuvens


reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
(PESSOA, 2004, p. 170)

Por serem poemas, o objetivo aqui foi o de proporcionar uma visão de conjunto da obra de Fernando Pessoa,
incluindo a de seus heterônimos. Evidente que não há como analisar cada poema em separado, porém procuramos fornecer
algumas chaves de leitura que servirão aos demais poemas não comentados.

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Atividades
01. (PUC-RS) Considerando as particularidades de cada um dos heterônimos de Fernando Pessoa, é possível afirmar que os
versos

“Há metafísica bastante em não pensar em nada.


O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.”

pertencem a
(A) Alberto Caeiro.
(B) Álvaro de Campos.
(C) Ricardo Reis.
(D) Sá-Carneiro.

02. (UNIC)

Há doenças piores que as doenças,


Há dores que não doem, nem na alma.
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
[...]
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
PESSOA, Fernando. Cancioneiro. Disponível em: <www.recantodasletras.com.br/poesias/4836057>. Acesso em: 29 nov. 2017.

A análise temática do poema de Fernando Pessoa permite considerar como correta a afirmação feita em (A) As
sensações são mais marcantes que a própria vida, ainda que sejam apenas imaginadas. (B) A vida é sempre
cheia de alegrias e bons momentos, já as dores da alma são ilusórias e imaginadas. (C) As angústias imaginadas
não possuem nenhum efeito sobre as pessoas, porque não são reais. (D) Todas as doenças podem ser tratadas
com remédios, até as doenças da alma se curam com vinho. (E) Toda doença é dolorosa, mas as pessoas, apesar
disso, são felizes.

03. (UNESP) Ricardo Reis é, assim, o heterônimo clássico, ou melhor, neoclássico: sua visão da realidade deriva da
Antiguidade greco-latina. Seus modelos de vida e de poesia, buscou-os na Grécia e em Roma. (Massaud Moisés.
“Introdução”. In: Fernando Pessoa. O guardador de rebanhos e outros poemas, 1997.).
Levando-se em consideração esse comentário, pertencem a Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa (1888- 1935), os
versos:
(A)
Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas
Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das máquinas veio trazer para as almas.

(B)
Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto

(C)
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

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(D)
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

(E)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

04. (UFRGS) A questão refere-se aos poemas de Fernando Pessoa. Leia as seguintes afirmações sobre os poemas
“Autopsicografia” e “Isto”.

I - Em ambos os poemas, são apresentados os princípios de Pessoa para a construção da poesia, constituindo-se como “arte
poética”.
II - Nos dois poemas, não há referência à figura do leitor.
III - Em ambos os poemas, o sujeito lírico admite construir sua poética inventando e falseando.

Quais estão corretas?


(A) Apenas II.
(B) Apenas III.
(C) Apenas I e II.
(D) Apenas I e III.
(E) I, II e III.

05. (UNIFOR)
Eu Sou do Tamanho do que Vejo
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia e tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de
todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza e ver.
Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos - Poema VII” Fonte
http://www.esa.esaportugues.com/ programa/Caeiro/textosCaeiro.htm

A partir do texto de Alberto Caeiro, um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa, avalie as afirmações a seguir. I - O
poema organiza-se em torno do contraste da “minha aldeia” e das “cidades”.
II - A ideia da compreensão que se tem do mundo é condicionada à imaginação de cada um. III - A
presença de construções causais evidencia uma intenção explicativa.

É correto o que se afirma em


(A) I, apenas.
(B) I e III ,apenas.
(C) II e III, apenas.
(D) III, apenas.
(E) I, II e III.

06. (UNINOVE) Leia o trecho inicial do poema “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), para
responder à questão.

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

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Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.


Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(O guardador de rebanhos e outros poemas, 1997.)

No contexto da obra de Fernando Pessoa, um heterônimo é


(A) o personagem principal de um texto, na fala de quem o autor pode expressar suas opiniões. (B) um nome coletivo, com o
qual um conjunto de autores, entre eles Fernando Pessoa, publicava seus textos, sem ter que se identificar.
(C) o modo como alguns autores do Modernismo português, entre eles Fernando Pessoa, se referiam a si mesmos. (D) um
nome artístico com o qual o autor publica sua obra a fim de esconder sua verdadeira identidade. (E) um personagem fictício,
com biografia própria, a quem o autor real delega a autoria de um conjunto de seus textos.

07. (EEAR) Leia Autopsicografia (Fernando Pessoa)


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

De acordo com o sentido do poema de Fernando Pessoa, pode-se afirmar que


(A) os poemas, reflexos de dores nunca sentidas e experiências nunca vividas, são mentiras inventadas pelos poetas. (B)
quem não é sincero, não pode ser poeta, uma vez que é com verdades absolutas que se faz a boa obra poética. (C) a obra
poética é classificada como digna de confiança quando traz fatos reais, sem fingimentos. (D) o ato de fingir, na criação
poética, disfarça sentimentos reais que afetam a vida dos poetas.

08. (UFRGS) Assinale a alternativa CORRETA sobre Mensagem, de Fernando Pessoa.


(A) Mensagem traz as marcas da vanguarda sensacionista, na medida em que busca articular a história de Portugal ao mito,
em um mesmo poema.
(B) A imagem do mar expressa simbolicamente a busca do infinito, que poderia apaziguar as almas atormentadas de
Fernando Pessoa e de seus heterônimos.
(C) Fernando Pessoa, nessa obra publicada em vida, deu voz a seus heterônimos para expor uma visão poética e múltipla
sobre a história portuguesa.
(D) Dom Sebastião é uma figura central para compreender Mensagem e a expectativa de uma possível redenção de
Portugal.
(E) Os heróis da navegação portuguesa, símbolos do processo civilizacional, cristão, levado aos povos colonizados, são
euforicamente celebrados em Mensagem.

70 SIGMA CURSO E COLÉGIO


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09. (UNIVAG) Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, tem sua obra marcada pelas referências à mitologia
clássica e ao carpe diem. Assinale a alternativa que contenha essas duas características de Ricardo Reis.
(A)
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela
[que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

(B)
As rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.

(C)
Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da lama em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?
Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?

(D)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

(E)
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a
[erva verde sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.

10. (UFGD) Leia o poema de Fernando Pessoa, presente em Ficções do Interlúdio:

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor

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Me sinto triste de gozá-lo tanto,


E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

A propósito do poema acima, é correto afirmar que:


(A) O poema é de autoria do heterônimo Ricardo Reis, comprovam a atitude contemplativa e as referências a personagens
da mitologia greco-latina.
(B) O eu-lírico defende que pensar e teorizar sobre a realidade é melhor do que vivenciá-la e senti-la, já que seus
“pensamentos são todos sensações”.
(C) O poema é de autoria do heterônimo Alberto Caeiro, autor de “O guardador de rebanhos”, e um entusiasta da
modernidade e da tecnologia vivenciadas nas grandes cidades.
(D) O poema é de autoria do heterônimo Álvaro de Campos, autor da série “O guardador de rebanhos”, e defensor de uma
reflexão metafísica sobre a natureza.
(E) O eu-lírico defende que é mais importante vivenciar a natureza, através do culto dos sentidos, do que estabelecer um
discurso racional sobre ela.

11. (PUC-Campinas) Se Ricardo Reis simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora
do espírito da Antiguidade clássica e do paganismo, Álvaro de Campos é o poeta moderno, embebido do século XX,
engenheiro de profissão. Já Alberto Caeiro foge para o campo, pois deve procurar viver simplesmente, como as flores, os
regatos, as fontes, os prados. Contemporâneo da Guerra de 1914, Fernando Pessoa vive a crise provocada pela necessidade
de abandonar as velhas e tradicionais formas de civilização e da cultura burguesa; em resposta a isso, viu-se num espelho de
múltiplas faces e possibilidades, dos mitos às formas futuristas, e representou a todas.
(Baseado em Massaud Moisés.A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1965, p. 347-350)

A frase "Viu-se num espelho de múltiplas faces e possibilidades dos mitos às formas futuristas, e representou a todas",
define o processo de criação, utilizado por Fernando Pessoa, conhecido como
(A) heteronímia, materializado por diferentes estilos que correspondem a diferentes personalidades imaginárias. (B)
polissemia, que implica a possibilidade de o leitor interpretar um poema em diferentes chaves de sentido. (C) heteronímia,
entendida como sucessivas trocas de pseudônimos, caprichosamente escolhidos. (D) personificação, dado que o poeta
simula dialogar com várias personas nas falas dramáticas de seus poemas. (E) polissemia, uma vez que o poeta se valeu de
ousadas experiências formais, em seu alinhamento com a vanguarda.

11 - A
10 - E
09 - B
08 - D
07 - D
06 - E
05 - B
04 - D
03 - C
02 - A
01 - A
Respostas

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CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA


MIGUEL SANCHES NETO

Introdução

Miguel Sanches Neto (1965) é paranaense de Bela Vista do Paraíso, Paraná. Escreveu mais de trinta livros, entre
romances, crítica, poesia, crônicas e contos. Antes de publicar este, que é seu primeiro romance, ainda que autobiográfico,
notabilizou-se como crítico literário, assinando colunas em diversos veículos da imprensa, como O Estado de S. Paulo,
Gazeta do Povo, Jornal do Brasil entre outros.
Professor universitário desde 1993, é o atual reitor da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) e se dedica,
continuamente, à escrita de obras literárias, bem como à análise de obras alheias. Entre seus livros mais conhecidos, estão:

• Um amor anarquista (2005).


• Chá das cinco com o vampiro (2010).
• A máquina de madeira (2012), selecionado como leitura obrigatória para o vestibular da UEL em 2015. • A
bíblia do Che (2016).

Seu próximo romance tem um título bem sugestivo, O último endereço de Eça de Queirós (2022), em que irá tratar,
ficcionalmente, de diversos escritores portugueses.
O livro sobre o qual iremos tratar nesta resenha é Chove sobre minha infância. É um romance autobiográfico ou
biorromance. Não é uma novidade em termos literários, apenas para citar dois, podemos lembrar Adeus às armas (1929), de
Ernest Hemingway e Suave é a noite (1934), de F. Scott Fitzgerald. Para o vestibular de 2019, a UEL já havia selecionado O
filho eterno (2007), romance autobiográfico de Cristóvão Tezza.
No caso de Chove sobre minha infância é o primeiro livro de Miguel Sanches Neto. Publicado em 2000, o autor traça
um perfil de sua infância, passando pela adolescência até iniciar a vida adulta.
Por não se tratar de uma autobiografia tradicional, o romance cria, de propósito, uma confusão na mente no leitor,
sobretudo em seu início, para, depois, seguir uma linha do tempo quase cronológica. Essa confusão significa que o leitor, a
princípio, não consegue determinar, com clareza, o que é real e o que seria ficção. A ficção, no caso, é antes causada pelas
traições da memória que por estratégia deliberada do narrador, que é o próprio autor.
A história começa com Sanches adulto (já estaria na faixa dos 30 anos), tentando se recordar de quando era uma
criança de quatro anos em Bela Vista do Paraíso (PR), onde nasceu.
Recorda-se, com o apoio do olhar do outro, o que acontecera naquele momento, sobretudo do pai, comerciante
fracassado, alcoólatra e que vem a morrer em um acidente no rio Ivaí, deixando o menino órfão e a mãe, endividada, pobre e
que tem de se mudar para Peabiru (PR), onde morava sua família.
Mais tarde virá a se casar novamente e o livro adquire o sentido mais preciso: a luta de Sanches por querer estudar,
ler, tornar-se escritor em um meio totalmente rural, em que o padrasto crê que o único meio de sobrevivência se dá pelo
trabalho com a terra e a venda de produtos agrícolas. Estabelece-se, pois, um embate entre um modo de vida rural versus o
estudo e a busca pelo desenvolvimento intelectual pelos livros. Ao longo de todo o livro, esse embate se acentua, ao ponto
de Miguel ser visto pelo seu padrasto como vagabundo, preguiçoso entre outros adjetivos.
Ou seja, para além de se narrar os primeiros anos do autor, o objetivo do livro é revelar concepções diferentes da
vida e, de certa forma, revelar que nenhuma é melhor ou pior que a outra, mas que os indivíduos são diferentes e não devem
obedecer ao padrão esperado pelo outro.
Faremos um resumo dos principais pontos do livro.

Resumo

Até pelo sobrenome, a origem de Miguel é espanhola. Seu avô, a quem não conhecera, tinha terras no estado de São
Paulo e deixara para os quatro filhos. Apesar disso, resolveram mudar-se para o norte do Paraná, onde se estabeleceram.
O pai de Miguel, Antônio Sanches, que negociava café, conhece a falência. Como não era muito afeito ao trabalho
braçal (o que explica, de certa forma, a inaptidão do autor no manejo da terra ou outros trabalhos braçais), tenta viver do
comércio até morrer no acidente, deixando a mulher endividada e dois filhos. Miguel tinha uma irmã mais nova chamada
Carmem.
Após a morte, mudam-se para Peabiru, onde viviam os irmãos e o pai de Nelsa, a mãe de Miguel. Para sobreviver, a
mãe de costurar para fora e tem, como principais clientes, prostitutas. Miguel, ainda criança, não entendia bem o que faziam,
mas relata que gostava de vê-las, pois estavam sempre bem arrumadas, cheirosas e as via, eventualmente, nuas, quando
precisavam provar a roupa que mandaram fazer.

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Paralelamente, Nelsa, que tinha estudado pouco, começa a ensinar Miguel a escrever as primeiras letras. Já
tentara com seu marido, mas Antônio desistira de aprender. Por isso, o menino usava o caderno de caligrafia deixado quase
novo pelo pai.
Apesar de o avô, conhecido como Zé-Zabé, ser rico, ter propriedades, ele pouco ajuda os filhos. Nem importa se a
filha estaria passando dificuldades. Sanches relata que nas vezes em que iam à fazenda do avô, via-o comendo carne à
vontade, ao passo que ele e as demais pessoas comiam apenas arroz e feijão. Nem mesmo permitia que comessem das
frutas. Não por acaso, há três capítulos com o mesmo título: “pequeno tratado das frutas”. Miguel disse que sentia muita
vontade de provar do abacaxi. Mas trata também das outras frutas ou de sorvetes de fruta que sua avó paterna, Carmen,
ganhava de um comerciante.
Em “Retratos de minha mãe”, Miguel dá voz aos tios, para que cada uma expresse o que pensava do pai e da irmã:
tio Lindolfo, tia Ortência, tia Lula. Cada um expressando aspectos da vida, o que pode levar o leitor a ver o romance, nesse
momento, como de encaixe, em que pontos de vista diversos sobre mesmo fato são expressos.
Miguel também dá voz à mãe, no capítulo “Minha mãe órfã”. No caso, ela perdera a mãe e seu pai se casara com
outra mulher, como ela própria iria fazer. A ideia é dar voz aos parentes, além de revelar que a memória não se faz apenas
pelo olhar de um único indivíduo.
Ao final do livro, será a vez de se ouvir a voz de Carmen, a irmã de Miguel, que fala exatamente sobre a escrita do
livro. Ela tinha o mesmo nome da avó, mas Miguel sempre se referia a ela pelo apelido carinhoso Tata. Retomando-se o
enredo, por assim dizer, sua mãe começa a se aproximar de Sebastião, o homem com que viria a se casar. Para vencer a
resistência de Miguel, apresenta-se como um homem gentil, brincalhão e que sempre trazia frutas para eles. Também traz
dois filhos de outro casamento, Zé Carlos e Luís Carlos. A relação entre os irmãos novos não chega a ser problemática,
mesmo com as diferenças que se estabelecem entre eles ao longo dos anos. Tudo vai girar, em rigor, em torno da relação
conflitante entre o padrasto, Sebastião, e Miguel, por perceberem o mundo de modo diferente. Um acontecimento
importante que acaba colaborando para os conflitos se dá quando Zé-Babé falece. Como tinha muito dinheiro, é feita a
partilha da herança. Sebastião, como novo marido de Nelsa, toma a parte que cabe a ela para gerenciar o dinheiro. Ele irá
investir em terras e em máquina de beneficiamento de grãos, como feijão, arroz, milho etc. Algo comum à época, pois não se
vendiam, como hoje, esses produtos em embalagens prontas em supermercados. Sebastião quer, pouco a pouco, fazer os
meninos gostarem de trabalhar na terra, por isso sempre os leva ao sítio, mas Miguel não se sente parte integrante, odiava
serviço braçal e, principalmente, os trabalhos disponíveis em um sítio. Os negócios vão prosperando e a vida, materialmente
falando, se torna mais fácil. A casa começa a ser equipada com o que havia de mais moderno: TV, geladeira telefone, móveis,
carro etc.
Apesar disso, Nelsa não parece feliz, pois chegam vários irmãos de Sebastião, que começa a empregá-los ou ajudá-
los. Nesse contexto familiar, a própria Nelsa e seus dois filhos passam a se sentir intrusos, ficam um tanto deslocados.
Sobretudo porque o dinheiro inicial era, de fato, da sua família; porém, como Sebastião passou a gerir todo o dinheiro,
parecia que aquele progresso econômico todo não lhes pertencia.
Nesse momento da narrativa, há novo encaixe, pois o narrador tece considerações como se fosse o momento
presente do narrado e não a referência ao passado quando criança. Trata-se de uma lembrança para deixar clara a oposição
entre Miguel e seu padrasto. A própria se beneficiava pouco do dinheiro, por isso teve de voltar a trabalhar com roupa para
suas despesas pessoas, e, sobretudo, para ajudar o filho, que não recebia mesada, a não ser que fosse trabalhar na máquina
de arroz, por exemplo.
Segundo a narração, entrava na faixa dos onze anos e começa a descobrir o próprio corpo. A narrativa é sem meias
palavras ao tratar de masturbação ou desejos sexuais.
Outra lembrança importante é que o choque entre Miguel e seu padrasto o leva a se ferir, ao ponto de sangrar. A
mãe o leva ao médico, que recomenda tomar gardenal, remédio que tem como indicação tratar dos casos de epilepsia ou
crises nervosas. É por essa época também que descobre o gosto por escrever poemas, embora Miguel nunca tenha se
tornado poeta efetivamente. De qualquer modo, era um modo de expressar o que sentia. Ao mesmo tempo, outro motivo de
atrito com Sebastião, que via a escrita como algo desnecessário e próprio de vagabundos.
Outro episódio que o direciona à escrita ocorre na escola. O professor de português pedira para todos escreverem
um texto, e alguns alunos teriam de ler na frente para os colegas. Miguel foi um dos sorteados. Os alunos não entenderam
bem seu texto e nem gostaram, mas o professor percebeu ali que o menino poderia desenvolver mais essa habilidade.
Ele e Zé Carlos começam, então, cursar datilografia. Seu coirmão se destaca e ganha uma Olivetti, mas quem irá
efetivamente usar será Miguel, a quem chama de primeira namorada.
Se, por um lado, a mãe queria ver o filho sempre estudando e formado, o padrasto só pensava em trabalho. Por isso,
inventava coisas para os meninos fazerem. Uma delas era vender frutas nas ruas. Depois, era vender galinhas no final de
semana. Eram atividades que faziam Miguel se exasperar, pois sabia que não nascera nem para o comércio, nem para
serviços braçais. Mas o padrasto só conseguia enxergar o mundo desse modo. Ele não via utilidade em estudos, ler livros,
pois era coisa de comunista... Trata-se de um modo de pensar recorrente no Brasil.
Ao fazer 14 anos, é preciso continuar os estudos médios (à época se chamada 2º grau). Há um pequeno impasse
pelas razões já conhecidas. No fim, Sebastião concorda que Miguel e seu filho, Zé Carlos, prossigam os estudos em Campo
Mourão, em uma escola agrícola. Pensava que, desse modo, os meninos poderiam adquirir conhecimentos para tocar os
negócios da família.

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Porém, não é bem o plano de Miguel, que apenas queria liberdade e poder se dedicar à leitura de livros. Já no colégio,
aprende a beber e a farrear. Miguel relata alguns episódios típicos da adolescência, mas poucos dignos, isso tudo ainda
durante a Ditadura Militar no Brasil.
Relata o primeiro contato com uma mulher, no caso Olga, secretária do colégio. Ela tinha 25 anos e era noiva, mas
gostava do clima de liberalidade percebida entre os adolescentes. Miguel e Olga tem um contato íntimo, mas sem que haja
uma relação sexual efetiva.
Paralelamente, Miguel narra o contato inicial com obras importantes da literatura brasileira e mundial. Diz ter se
encantado com Fogo Morto (1943), de José Lins do Rego, um dos principais livros do chamado Ciclo da cana de açúcar,
desenvolvido ao logo do Romance de 30. Lê os livros de Oswald de Andrade, modernista que articular a Semana de Arte
Moderna (1922). Não fica apenas na literatura. Lê As veias abertas da América Latina (1971), de Eduardo Galeano, que trata
sobre como a exploração da América Latina pelos EUA e outros países só produziu ditaduras e pobreza.
Relata não ter muito contato com Zé Carlos, apenas quando retornam a Peabiru, nas férias. Nesse momento, tem de
trabalhar na Máquina do padrasto, ainda que a contragosto; ao mesmo tempo, tem de ouvir as reclamações de Sebastião,
que não suportava ver o menino com livros, sem trabalhar, sem pegar no pesado.
De volta às aulas, já no segundo ano, começa a participar do Movimento Estudantil, não tanto por motivação
ideológica, mais para poder fazer coisas diferentes, não precisar assistir a algumas aulas e viajar com os outros alunos. Alia-
se ao menino com apelido de Ceguinho, que também participava do Movimento, com a única finalidade de poder beber. Vão
a um congresso, onde Miguel conhece Elisa, e passa a trocar confidências com ela. Ambos sonham em estudar Direito,
projetam um relacionamento, porém, em um momento de bebedeira, Miguel acaba se envolvendo com outra menina, e tudo
o que projetara se desfaz.
Quando retorna a Peabiru diz que gostaria de fazer Direito, mas o padrasto, mais uma vez, o xinga, briga com ele,
pois se quisesse estudar, só poderia fazer agronomia ou algum curso afim para cuidar das terras. Miguel acaba por se
inscrever no vestibular para o curso de Direito, para estudar na Universidade Estadual de Londrina (UEL), dizendo ter se
inscrito em Agronomia. No fim, não faz nem um curso, nem outro. Era 1980. No entanto, acabou, mais tarde, em 1984,
cursando Letras, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari. Ainda no colégio, Miguel relata um episódio
que o marcaria. O diretor é chamado de Africano, por ter morado em Angola à época da colonização portuguesa, que durou
até 1975. Na verdade, era um português. O diretor começou a receber em sua residência e a proteger um estudante negro,
apelidado pelos alunos de Jabuticaba. Os alunos não gostaram dessa proteção, ainda mais porque o tal Jabuticaba exercia
certo domínio sobre eles. Houve uma rebelião, por assim dizer, e começaram a dizer que O diretor e o estudante estariam de
caso. Ante à acusação, que foi liderada por Miguel, Africano lança um contraofensiva e exige uma retratação dos líderes, que
devem redigir um texto para se explicarem. Miguel cumpre com a obrigação, mas o faz com ironia, ao dizer que o Africano
estaria praticando uma espécie de colonialismo opressor no colégio, pois Portugal já não mandava mais nada nos países
africanos. Miguel é suspenso e tem de cumprir uma série de tarefas ao longo da semana. Em contrapartida, decide ficar os
setes dias sem tomar, gerando um mal-estar entre todos, pela sujeira e odor que foi se acumulando em seu corpo. Em “Mão
esquerda”, Miguel relata que fora aprovado em Direito na Universidade de Londrina, porém, como não fizera a matrícula,
perdeu a vaga. Nesse capítulo, muda o foco narrativo de primeira para segunda pessoa, por assim dizer. Escreve como se
estivesse se dirigindo a uma segunda pessoa. Talvez o Miguel adulto falando ao Miguel adolescente. Neste mesmo capítulo,
retoma a narração em primeira pessoa. É o adolescente quem fala. Afirma ter 17 anos e que quer deixar Peabiru, por ser a
cidade de seu avô, de seu padrasto, não a sua cidade efetiva. Por isso, abandona a cidade, para, em tese, nunca mais voltar, e
resolve se mudar para Rondonópolis (MT), seu tio Eurico, irmão de seu pai, estava estabelecido. Começa a trabalhar como
cozinheiro para os peões da fazenda. Em seguida, vai trabalhar no setor administrativo de uma escola
Continua a ler e diz ter comprado A metamorfose (1915), de Franz Kafka. No entanto, sem explicar o porquê, diz não
ter gostado da leitura. Preferiu História de pobres amantes (1947), de Vasco Pratolini. O romance contextualiza a ascensão
do nazismo e do fascismo pela Europa.
Por fim, em “Minha última estação rural”, fala que foi morar com Zé Carlos em uma propriedade de Sebastião na
região de Silviolândia (MS), cerca de 300km ao norte de Campo Grande (MS). Apesar de odiar a vida no campo, resolve
cuidar da propriedade por um tempo.
De volta a Peabiru, por sua total inaptidão em lidar com a terra, fica à deriva da vida, em constante briga com o
padrasto. A irmã, Carmen, se muda para Londrina para estudar Bioquímica. Os dois filhos legítimos de Sebastião não
conseguem terminar os estudos e revelam a revolta pelo fato de os tiros terão mais ascendência sobre o pai deles que eles
próprios.
Miguel, já com 30 anos, prestes a publicar o livro em questão, relata que deixara Peabiru em definitivo há quinze
anos. O Luís Carlos trabalhava como motorista de ônibus; o Zé Carlos era técnico agrícola em uma empresa na cidade de
Iretama (PR); a irmã se casara; o padrasto e os irmãos dele tinham terras no Paraná e na Bahia; Miguel continuava sua
trajetória para ser um escritor (o que levaria ainda cinco anos para acontecer), a despeito de pessoas de seu convívio não
entenderem qual o papel de um escritor na sociedade, especialmente um poeta, posto que, na concepção pragmática e
materialista deles, não serviria para produzir riqueza.
Ao final, Miguel afirma ter encontrado a razão de sua vida e o porquê relatar isso tudo em seu primeiro livro, um
romance autobiográfico:

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Vindo de um povo basicamente iletrado, recebi a tarefa de ser seu


porta-voz. Escrevo por isso, para fazer com que falem estes entes sem
discurso. Pode até ser uma justificativa tola, mas como ela pesa para
mim. [...] Posso dizer que minha missão é antes de tudo familiar. Escrevo
agora as cartas que meu pai jamais escreveu à minha mãe e as escrevo
com lágrimas nos olhos, não de tristeza, mas de alegria. [...] Aprender
a escrever foi a única saída para dar uma condição letrada à extensa
ignorância de meus antepassados. (SANCHES NETO, 2012, p. 240)

No “Epílogo”, volta a Peabiru, talvez para resgatar o que foi, ver se ainda se via na cidade, mas, se ele crescera, a
cidade diminuíra ainda mais, pouco significava a ele agora. Era algo que ficara, em definitivo, no passado e que a escrita do
romance ajudara a fazer.
Chover sobre sua infância significava limpar o que quase o destruíra, mas, ao mesmo, fora importante para ele se
tornar o que era de fato: um homem das palavras.

Análise

Como se pôde perceber ao longo do resumo, toda a narrativa gira em torno da família e de seus conflitos e a escrita
como meio expiação dos dramas, das frustrações e das contradições na vida do narrador. O livro marca também os conflitos
entre campo e cidade. Enquanto Sebastião acredita que os filhos, incluindo Miguel, devem trabalhar na terra e viver dela,
Miguel quer fugir desse destino rural. Neste contexto, a vida urbana é representada pelo estudo, pelas leituras, pela busca
de novas perspectivas.
Por isso, a escrita da narrativa se revela como catarse, do narrador-protagonista, que quer se libertar da vida que o
destino lhe reservou, especialmente a partir da morte do pai verdadeiro.
Como resultado, pode-se dizer que Miguel é um vitorioso naquilo a que se propôs e, contrariando muitos, sobretudo
Sebastião, formou-se em Letras, tornou-se professor e escritor.

ATIVIDADES

01. (FAG) Assinale a alternativa que corresponde ao Romance aludido:


Romance publicado em 2000 foi escrito baseado nas vivências reais do autor, mas não é uma autobiografia. É um romance
que se apropria de um discurso memorialístico, no qual o autor é narrador a um só tempo. O autor conta uma história na sua
própria voz e em seu próprio nome. Em uma linguagem simbólica, tem momentos de crônica, poesia e conto, formando um
singular romance em blocos que, além de cativar pelo lirismo, é um vigoroso retrato de um pouquíssimo explorado período
de nossa História recente.
(A) Chove sobre minha infância – Miguel Sanches Neto;
(B) Terras do sem fim – Jorge Amado;
(C) Irene no céu – Manuel Bandeira;
(D) Confidência do itabirano – Carlos Drummond de Andrade;
(E) A serra do Rola-Moça – Mário de Andrade.

02. (FAG) Com base no romance Chove sobre minha infância, de Miguel Sanches Neto, é correto afirmar que: (A) Nessa obra,
Miguel Sanches Neto se preocupou com os problemas humanos dos trabalhadores das roças de cacau, posteriormente,
convivendo com o povo baiano, em Salvador, testemunhou as injustiças e dramas originados do preconceito social e racial.
(B) O romancista tem um amor pegajoso a terra, a uma terra determinada, à terra do cacau. A terra está no centro de sua
obra: a terra com o homem e com o mar.
(C) É uma narrativa que vai se construindo pela memória do narrador, que avalia tudo aquilo pelo qual passa por uma ótica
pessoal, retratando somente o mundo marginal, dos que são oprimidos e excluídos do sistema. (D) O protagonista do
romance, depois de enfrentar algumas dificuldades, triunfa financeiramente e alcança popularidade através do futebol.
(E) Inicialmente apresentando uma visão ingênua, revoltada e otimista, o narrador vai amadurecendo ao contar sua história,
passando do órfão que não compreende bem o seu mundo a um adulto que domina seus símbolos e suas dolorosas
verdades.

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03. Chove sobre minha infância, de Miguel Sanches Neto, é uma narrativa que:

(A) trata sobre a vida de diversos escritores, como os curitibanos Dalton Trevisan e Paulo Leminski. (B)
traça um perfil biográfico do próprio autor, até ele se tornar escritor.
(C) homenageia sua família, especialmente seu padrasto, por sempre tê-lo apoiado nos estudos e em seu desejo de escrever.
(D) critica a mãe, que acabou se casando após ficar viúva. Para o narrador, a mãe, que era rica, deveria ter se mantido sem
outro homem.
(E) exalta a vida na cidade pequena, como Peabiru, onde as pessoas são mais felizes e verdadeiras.

04. O livro Chove sobre minha infância, de Miguel Sanches Neto, tem como narrador preferencial o próprio autor. Porém,
em “Retratos de minha mãe”, o leitor tem contato com:
(A) narrações feitas por parentes da mãe dele, cada um dando uma versão sobre determinado acontecimento. (B) um
narrador onisciente, não participante da história, que tudo sabe e expõe ao leitor. (C) uma narração feita pelo Sebastião, o
padrasto de Miguel. Ele expõe o que pensava sobre a futura esposa. (D) a narração do próprio autor, que expõe o modo de
pensar de sua mãe a respeito do ex-marido, morto afogado. (E) a narração de um personagem que seria testemunha ocular
de todos os acontecimentos envolvendo a família Sanches.

05. Aos 14 anos, Miguel se muda para Campo Mourão, onde vai estudar em uma escola agrícola. Nela,

(A) o menino descobre sua verdadeira vocação: agricultor. Por isso, ao retornar, passa a trabalhar feliz com Sebastião na
máquina de arroz.
(B) percebe que a vida de agricultor não era tão ruim, mas prefere ser médico.
(C) descobre que sua vida seria voltada para as letras, pois passa a ler autores variados e se identifica com a possibilidade de
vir a ser escritor.
(D) percebe que o magistério seria sua verdadeira vocação, por isso, quando retorna a Peabiru, passa a trabalhar com
alfabetização de jovens.
(E) descobre que odeia o estudo, abomina a concentração que a leitura exige e passa a viver apenas na vadiagem.

05 - C
04 - A
03 - B
02 - E
01 - A
Respostas

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CARTAS CHILENAS
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

Introdução

As Cartas chilenas é uma série de treze cartas escritas em versos decassílabos brancos (sem rima) à época do Brasil
Colônia, particularmente em Minas Gerais na região aurífera de Ouro Preto (Vila Rica). Como as Cartas foram escritas de
maneira anônima e foram publicadas em livro pela primeira vez apenas em 1863 por Eduardo & Henrique Ljlemmert, com
prefácio do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), durante muito tempo houve dúvidas sobre sua
verdadeira autoria. Nesta primeira edição, a suposição de Varnhagen é que teriam sido escritas por Tomás Antônio Gonzaga
(1744-1810). A confirmação da autoria só veio com os estudos de Rodrigues Lapa, publicados em 1957.
O objetivo das cartas era o de criticar não o sistema colonial, leia-se Portugal, mas sim, de modo específico, o então
governador de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses (1743-1819), português de nascimento e que governara Minas entre
1783 e 1788. Gonzaga também era português de nascimento. Morou no Brasil ainda criança, estudou no colégio dos jesuítas
na Bahia, retornando a Portugal, para cursar Direito na Universidade de Coimbra. Mudou-se para o Brasil novamente, em
1782, para assumir o cargo de Ouvidor dos Defuntos e Ausentes da comarca de Vila Rica. Em outros termos, era um
funcionário público do governo português na Colônia.
Não por causa das Cartas Chilenas, mas pela delação premiada proferida por Joaquim Silvério dos Reis, foi preso sob a
acusação de traição à Coroa portuguesa durante o episódio histórico conhecido como Inconfidência mineira (1789-1792).
Julgado e condenado, foi deportado para Moçambique (então colônia portuguesa), onde viveu livre, vindo a se casar com
Juliana de Sousa Mascarenhas, filha de um mercador de escravos.
Neste contexto todo, a despeito do que se possa imaginar, as Cartas não devem ser lidas como parte integrante da
conspiração contra Portugal, contra a cobrança do imposto da extração aurífera, e sim como uma peça de crítica ao
governador Meneses, descrito como incompetente, autoritário e esbanjador do dinheiro público e da Coroa.
Outro aspecto que deve ser considerado de início é que, apesar do termo carta, não se trata de textos pertencentes
ao gênero carta, como o conhecemos. São poemas em que se tem, de fato, um emissor, nomeado Critilo (que seria morador
de Santiago no Chile), que escreve ao amigo Doroteu (o destinatário), para falar sobre o governador do Chile, chamado de
Fanfarrão Minésio (Meneses). A referência ao Chile seria apenas um meio de desviar a atenção, por meio de uma estratégia
de ocultamento das reais intenções, que, no caso, era referir-se mesmo a Minas Gerais e ao governador Meneses.
Tratemos, pois, do conteúdo de cada carta para que se possa aprofundar a posterior análise.

Resumo das cartas

A cada carta, Critilo faz um resumo do respectivo conteúdo. Na carta 1, lê-se: “Em que se descreve a entrada que fez
Fanfarrão em Chile”.
Primeiramente, é preciso lembrar que fanfarrão é um adjetivo (no poema, é também um substantivo, por ser o
primeiro nome do tal governador chileno) que qualifica uma pessoa como mentirosa, pois o indivíduo fanfarrão se apresenta
como corajoso e com características positivas, porém é o oposto disso. Portanto, o nome do governador contém uma ironia.
Critilo chama a atenção de Doroteu (identificado como o poeta árcade Cláudio Manuel da Costa), falando-se que
melhor que dormir é saber as notícias que iria contar daí em diante.

Amigo Doroteu, prezado amigo,


Abre os olhos, boceja, estende os braços
E limpa, das pestanas carregadas,
O pegajoso humor, que o sono ajunta.
– Critilo, o teu Critilo é quem te chama;
Ergue a cabeça da engomada fronha
Acorda, se ouvir queres coisas raras.
"Que coisas, (tu dirás), que coisas podes
Contar que valham tanto, quanto vale
– Dormir a noite fria em mole cama
(GONZAGA, 2022, p. 3)

O emissor da carta diz então que o novo governador teria um quê de Sancho Pança, por referência ao fiel escudeiro
de D. Quixote de la Mancha, personagens de Miguel de Cervantes. No caso, Pança representaria o viver realista em meio às
fantasias do mestre. Além disso, a ideia é estabelecer uma relação física entre o governador e o personagem de Cervantes.

78 SIGMA CURSO E COLÉGIO

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