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(™ Br, CESAR AIRA EM HAVANA Enla Habana César ira © César Aira, 2000 © Tradugéo: Cultura e Barbérie, Joaquin Correa e Byron Vélez Escallén, 2017 Copyright da traducéo Cultura e Barbs- tie, Joaquin Correa e Byron Vélez Escalkin, 2017 TRADUGHO Byron Vélez Escallon e Joaquin Correa ‘esto Fernando Scheibe, Jorge Wolff e Maryllu de Oliveira Caixeta CAPA E PROJETO GRARCO Marina Moros Aira, César, 1949- £m Havana | César Bra / traducéo Byron Vélez Escallin eJaquin Cora, -Dester [Fviandpos : Cultura e Barbie, 2017. 32p. Titulo original: En a Habana [2000] ISBN: 978-85-63003-73-7 ‘tert argentina -LTtdo M Auto coy og Galtura e Barbérie Editora ‘(anon Femando Scheibe, Marina Moros ows unoan Alecandie Noda, Fivia Cera, Femando Schebe, Leonardo D1 Marina Moros Rodtigo Lopes de Baras eonardo Dia, ww fe-com.br - Ontato@autturaebarbarie.com.br primeira manha fui a casa de Lezama Lima. Aconteceu um pouco por acaso: saf a caminhar pra ver a cidade e, como nao tem muito pra ver porque est4 tudo em ruinas, tudo é sujo e sérdido, e a gente tenta passar batido o mais rapido possivel, deixei pra tris Havana Velha; de repente estava no Prado e me ocorreu que a rua Trocadero nio devia estar longe. Per- guntei para alguém, e apesar de esse alguém ter me dito um disparate qualquer (bem-intencionado), a encontrei, a poucos passos dali. O enderego eu sabia de memoria desde moleque: Trocadero, 162. Pois bem, entrei por essa passagem mitolé- gica, essa via régia que hoje € uma ruazinha arruinada, com pogas e montes de lixo e velhos sentados nas soleiras fumando cigarros fedorentos. Uma placa no 162 indicava que era a Casa Museu de Lezama Lima. Fiquei farejando um pouco pelos pos- tigos entreabertos, sem muita esperanga de entrar; eram dez da manhi e tudo parecia morto. A casa onde morou Lezama é um apartamento no térreo, perfeitamente simétrico ao aparta- mento vizinho; o prédio tem quatro ou cinco andares. Parece uma construgio do primeiro quarto do século, bem-feita, com uns ornamentos vegetais na fachada, colunetas € entradas um tanto complicadas @ primeira vista; os apartamentos do térreo tém entradas independentes ¢ tem uma outra que deve ser para as escadas, Vi umas campainhas, : © perguntei se valetia a pena tocar. Quase tinha decidid cembora e voltar 3 tarde quando uma senhora saiu pela porta do lado, Perguntei se po- dia visitar, e ela chamou alguém. Saiu outra senhora, a diretorg do Museu, que me fez entrar numa salinha vazia onde um casal de jovens negros dormia num banco. Entreabriram os olhos mas no se mexeram. A senhora me levou ao quarto contiguo, também nu exceto por uma mesa e uma cadeira, Alj Paguei para ela trés délares, dois pelo ingresso, um pela visita Suiada ~ ela mesma seria a guia. O lugar onde estavamos era 0 segundo apartamento do térreo, que o Estado adquiriu para usar como escritério e depdsito do Museu, depois de incorpord-lo ao ou- tro e derrubar a parede que dividia o patio ao meio, O percurso nao pode levar mais que uns poucos minu- tos, entre cinco e dez, mesmo contando os discursos decora- dos da guia. Nao tem grande coisa para se ver: os méveis sio duvidosos, os quadros nio muito bons, tem umas vitrines com livros (mas a vitiva de Lezama doou a biblioteca dele 4 Biblio- teca Nacional) e a metade dos cémodos, que sio cinco mais um corredor (a sala, o quarto da mie, 0 quarto do poeta, o banhei- To, 0 escritério e a sala de jantar), esto vazios e enfeitados com deploraveis quadros doados por jovens pintores. Tudo € pe- queno, minisculo, de casa de bonecas. No total 0 apartamen- to nao deve ter mais de quarenta metros quadrados. O patio, um diminuto quadrado com uma marca no meio onde aunt a parede diviséria, 6 um pogo escuro para o qual dio as co” nhas e lavanderias dos apartamentos superiores, que parece superlotados. Num deles, 14 em cima, um galo cantou ° ee todo que durou minha visita. Os pisos de todos 0s como do patio sao de azulejos com desenhos verdes e vermelhos. Nas paredes, em todas, descomunais manchas de umidade que fize- ram descascar a tinta € até o reboco: “A umidade é invencivel — me disse a guia -, fagamos 0 que fizermos, volta sempre, como o préprio espirito do Mestre”. Nao se diria que fazem muito, mas a ideia é poética. Se quisesse ser engenhoso, poderia dizer: “Do que eu mais gostei na casa de Lezama? A umidade”. (Faria pendant com a famosa resposta iconoclasta de Cocteau a enque- te: “O que salvaria do Louvre num incéndio?”: 0 fogo). O que mais gostei, falando sério, foi dos objetos que havia sobre os armarios. A guia foi apontando para mim: todos apa- recem numa passagem ou outra de Paradiso: o cofre alemio, 0 biscuit francés assinado (“Baudry: foi uma compra da senhora Augusta”). E, num canto do balcdo da entrada, sobre uma es- tante, um objeto verdadeiramente maravilhoso: “FE 0 vaso dina- marqués, que aparece em Paradiso num episédio importante: 0 menino Cemi o deixa cair no cho e ele se quebra. Com certe- za, Lezama o deixou cair, porque tem uma rachadura”. Nao vi a rachadura: devia estar na parte de tras e obviamente nao me atrevi a tocd-lo. O vaso é pequeno, de uns vinte centimetros de altura e cinco de diametro na base; vai se afunilando em cima; € dessas floreirinhas para uma flor sé. E verde, e de longe pa- rece salpicado por pequenas manchas, mas olhando de perto tem um desenho mosqueado e minucioso, todo em finas linhas verdes sobre fundo branco, de casas, arvores, ruas, carros, all over, tao detalhado que se vé o numero de janelas de cada casa, as folhas de cada drvore, a marca e o modelo de cada carro, os Postes de luz, o calgamento das ruas pedra a pedra, isso tudo em milimetros. Uma cidade inteira, dir-se-ia, num dia de se- mana, uma cidade da Dinamarca se é realmente dinamarqués, cu fiz cara de quem entende e exclamei: Ah, sim! O e deve ser. famigerado vaso dinamarqués! A verdade é que nem lembrava, embora tenha lido Paradiso umas trés ou quatro vezes; alguma coisa, vagamente, ressoava em mim, aquilo de “vaso dinamar- qués”, mas talvez seja uma dessas lembrangas inencontraveis inventadas ad hoc, por sugestao. Deveria procuré-lo no livro, mas me da preguiga, € se o fizesse seria por puro snobismo, para dizer “eu vi”. Se houvesse toda uma histéria incluida, am- bientada numa cidade dinamarquesa, lembraria. Seja como for, o vaso dinamarqués, uma vez admirado na sua realidade palpavel (tao fragil) e incrivel ao mesmo tempo, poderia me abrir um caminho novo na interpretagao da obra de Lezama. Na verdade, um velho caminho: o da imagem, da microscopia. Lezama teorizou vastamente, ao seu modo, sobre a “imagem”, ou as eras imagindrias, e embora nele a palavra esteja contaminada com o sentido de “metéfora”, acho que coincide, ou poderfamos fazé-la coincidir sem violéncia, com a ideia de Deleuze de nossa época atual como “era anti-imagi- néria”. A imagem, para ser verdadeiramente imagem, como foi nas eras imaginarias (por exemplo na Renascenga), deve surgir como enigma, fora da linguagem, definitivamente sem expli- cago nem justificagao: fora de qualquer narrativa possivel, ou seja, como mistério e possibilidade infinita. Nossa €poca, a0 contrério das eras imagindrias, se especializou em neutralizar 0 valor especifico da imagem, anulando-a com alguma narrativa ou epigrafe que a explique ou situe. F claro que num escritor isso € inevitdvel, Se a imagem de verdade é a refratéria as pala- vras, 0 escritor nao poderé evitar desvirtud-la. Mas, acho, exis- tem modos de sugerir, mesmo dentro do discurso, o siléncio da imagem. Esses modos, que nao sou eu quem pode analisar, constituem boa parte do estilo e do método de Lezama. O vaso dinamarqués é realmente um prodigio. Nao s6, ou nio tanto, pela qualidade do artesanato, mas pela sua realidade, porque existe. Mesmo tendo olhado para ele por apenas uns segundos, e sem dar toda a atengio que deveria ter dado, me deixou intrigado, e assim continuo. Essa paisagem de cidade escandinava nao est4 num quadro plano, e sim num vaso, num jarrinho, em sua superficie curva: para vé-lo por inteiro teria que pegi-lo nas mos, com 0 consequente perigo de que caisse, e viri-lo. Acredito lembrar que a perspectiva é alta, a cidade é vista de cima, como por um passaro. Como é basicamente um cilindro, ¢ a menos que haja um corte por trds, coisa de que duvido, deve continuar indefinidamente, volta atrés de volta, talvez cada rua desemboque em si mesma, e esses carrinhos es- tejam girando em circulos. Agora, o que me pergunto €é como foi possivel representar na superficie tubular as montanhas que tem atrds da cidade, e o mar na frente, e, mais dificil ainda, o céu, com as nuvens e os passaros. Quicé nao estejam repre- sentados mas s6 sugeridos, como se para 0 miniaturista tam- bém valesse a maxima “dizer tudo € 0 modo mais seguro de aborrecer”. Lezama deve ter passado horas contemplando-o, ou estudando-o, e muito mais que horas: nao é impossivel que © tenha adquirido uns quarenta anos antes de escrever Paradiso. Colocé-lo no livro era inevitdvel, mas com um resquicio onde poderia subsistir a imagem: a realidade. Porque, quebrado ou 140, © vaso dinamarqués persistia ali em seu lugar da casa, si- lencioso e inesgotavel, indecifravel como é tudo o que é real. isan nea 7 Essa € a sua virtude: a realidade. Nesse sentido, 6 um modelo que serve as minhas meditag6es de romancista, Dentro de um romance pode haver objetos (nao necessariamente objetos pro- priamente ditos como esse: podem ser cena , nagens, ideias) refratarios ao. préprio discurso em que vivem, que se desprendem da sucessio temporal do discurso e se fazem eternos com a eternidade daquilo que nao cabe nas categorias do entendimento. O real é 0 modelo desses objetos. , aventuras, perso- ‘Tera morado realmente 14? Uma vez que estive outra vez andando pela rua, lembrava da casa, e continuo lembrando, como demasiado pequena, uma “casa da mente”, os quartos tio minisculos que abrindo os bragos se poderia tocar as pare- des fronteiras, e seria preciso se pér de perfil para passar pelas portas. Eos quartos apertados uns contra os outros. E. possi- vel? Talvez seja uma impressio que a casa geminada produz: ao comunicé-las e derrubar 0 muro divis6rio € como se tivesse aberto a tampa de uma caixa, ou colocado um espelho, crian- do essa sensag3o de maquete ou casa de bonecas, Lezama era muito gordo, mas além disso eu sempre o tinha imaginado alto € enorme; as fotos enganam nos tamanhos, e nessas visitas aos lugares reais sempre se trata de tamanhos - a gente vai até eles justamente porque os veio habitando na imaginagao ha muitos anos, no sistema de tamanhos relatives com que opera a fan- tasia, € a peregrinagio se faz quase que somente para viver 0 tamanho absoluto; mas uma vez li, as duas classes de tamanhos, —S["" se . os relatives € os abeclieos, se misturam, Também se mistura o antes e 0 depois da visita Propriamente dita, que costuma ser breve. No meu caso, brevissima. Quanto tempo fiquei na casa de Lezama? Cinco minutos, seis? Sempre me proponho a tomar meu tempo, anotar o minuto da entrada e o da safda, € sempre esquego, mas estou certo de que me comporto como o relimpago, devo bater recordes, Vou em todos os museus de todas as cidades que vis to, € por grande que seja meu interesse Nos tesouros que contém os atravesso como uma flecha, Nao sei se é impaciéncia, estupidez, derrotismo, 0 certo é que me dé uma pressa intransigente, e num abrir e fechar de olhos estou do lado de fora, E, entretanto, vejo tudo, paro um segundo, ou meio segundo, diante de cada quadro, pensando “ja deve ter dado tempo para lembr4-lo”, e é claro que depois esquego tudo, Nessa noite estive com um escritor cubano que foi amigo de Lezama e me contou que lembrava dele “reclinado” sobre a mesinha do telefone (cu tinha Ihe perguntado a respeito da autenticidade do aparato exibido), em interminaveis comunica- ges, essas clissicas conversas fofoqueiras pelo telefone que sio parte essencial da fenomenologia gay; esse adjetivo reforgou minha impressio da casinha de bonecas: “reclinado”, como se nao coubesse em pé. Uma coisa que lembrava da Casa Museu, ¢ que deveria colocar na lista daquilo “que mais gostei” foram duas latas de tabaco que havia sobre a escrivaninha, Sobre essa escrivaninha a guia me disse que “Lezama nunca a usava”, porque estava coberta de livros e papéis, e ele preferia escrever sentado na poltrona, sobre uma tabua que apoiava nas pernas. Das latas isan wma de tabaco me disse, como nao podia deixar de ser, que as ce- nas desenhadas nos rétulos também tinham sido descritas com todo detalhe em Paradiso. Na verdade, nao sei se eram rétulos de papel colados nas latas, ou se as proprias latas om eee pelao impresso: a segunda hipétese me parece mais provavel. Eram tubulares, de uns trinta centimetros de altura por dez de diametro, da cor amarelada do papel velho. Tinham coisas es- critas, em letras pretas, € no meio uma ilustragao em forma de medalhao, uma cena... Lamento nao lembrar nada de nenhuma das duas, mas diria que eram cenas da industria do tabaco do século XIX. A guia viu que me reclinei sobre elas e lhes cravei um olhar absorto, como para grava-las a fogo na memoria, € repetiu que o Mestre tinha feito uma detalhada descrigao de ambas no seu romance. Evidentemente esse € 0 ponto forte do seu discurso, o melhor que tem a oferecer, aquilo que mais pode impressionar os visitantes, letrados ou nfo: esses objetos reais e tangiveis, domésticos e até triviais, figuram em outro lu- gar prestigioso, na obra cuja qualidade justifica que esta casinha seja um museu. O que eu gostaria de ter dito 4 guia, e por um momen- to passou pela minha cabega a ideia de dizer mesmo, é que um escritor pode fazer outra coisa com uma imagem além de “descrevé-la”: ela devia acreditar que € a tinica possibilidade. Se nao fiz isso, se nem sequer comecei, foi Porque para me fazer entender teria que partir de uma explicagio do que €o procedimento-base de Raymond Roussel. Isso j4 me aconteceu outras vezes: Roussel € um autor tdo necessirio & minha ideia da literatura, e to estendida a ignorancia a respeito dele, que me acostumei a sentir que nado posso sequer comegar a falar de 10 eR '\”- literatura se antes nado informo meu interlocutor desses pres- supostos. E claro que nunca fago isso: seria uma ladainha i insu- portavel, uma tortura infligida a inocentes. Ademais, acho que nao consegui a me fazer entender, acabaria balbuciando in- coeréncias — sio quest6es que eu mesmo nao tenho totalmente claras. Na verdade, 0 que me importaria fazer entender nao é 0 procedimento propriamente dito de Roussel (tal como ele 0 ex- plica em Como escrevi alguns dos meus livros), mas sim 0 método geral de producao automitica de narrativas, do qual esse pro- cedimento é um caso particular, o tinico (acho) que um escritor de primeira linha tenha desenvolvido e utilizado até as tltimas consequéncias. Segundo essa generalizagao do procedimento, uma narrativa pode surgir nao da imaginagao ou da memoria ou de qualquer outro agente psicolégico, mas da ordenagio e organizacio narrativas de elementos ou “figuras” provenientes do mundo externo e reunidos pelo acaso. Vejo que acabei cedendo 8 tentagio de me explicar: mesmo assim nao acho que se tenha entendido. Aonde quero chegar é nisto: dadas duas cenas desenhadas em cada uma das latas de tabaco, o escritor que queira fazer alguma coisa com elas nio est4 limitado exclusivamente a “descrevé-las” como acreditava a guia; também pode usé-las “geneticamente” para construir com elas uma narrativa; por exemplo, inventando fatos neces- sérios para que uma histéria comece com a primeira cena € termine com a segunda. Se essas duas latas cairam nas maos de Lezama Lima por acaso, e faziam parte de uma série extensa, Por exemplo, de cem latas com outras tantas cenas diferentes desenhadas nos seus rétulos, essas duas cenas que tinha perante meus olhos eram completamente independentes e incoerentes. sana " segura a novidade da histéria resultante, Com isso ficava & I tivesse resultado dos recursos psicold- muito maior do que se gicos do escritor. Fssa possibilidade gene nio uma, Fosse 56 uma, entio sim, niio haveria tica surge a partir do fato de as la~ tas serem duas, mais o que fazer com ela além de deserevé-la; a menos que fosse uma cena complexa, ¢ suas diversas partes pudessem ser utilizadas como “termos” da invengio, Falei de “geragio automitica de narrativas”, mas estd erra- do, porque nio é automitica; eu substituiria essa Gltima palavra por “nao psicolégica”. E af esté o mérito que entrevejo, ainda muito obscuramente, apesar dos anos ou décadas h4 que estou subjugado a esse assunto: na possibilidade de se livrar do velho sujeito artista, e democratizar a criagio, saindo da armadilha do 6bvio € tornando infalivel a novidade. Mas acontece que a guia tem razdo, porque Lezama nio fez isso, mas se limitou a “descrever”, como ela disse, os objetos € as cenas pintadas neles; nao os utilizou para gerar narrativas no- vas, mas sim para adornar narrativas geradas psicologicamente. E, no entanto... E como se essas descrigdes fossem um passo prévio para minha utopia do novo, Para isso aponta, acho, 0 fato de que dentre os livros de Roussel no escritos segundo seu Procedimento estio os poemas La Vue, Le Concert ¢ La Source, que sio descrigdes de cenas pintadas sobre objetos (respectiva- mente: a vista numa miniatura inserida numa caneta, o desenho no timbrado do papel de cartas de um hotel, 0 rétulo de uma Barrafa de Agua mineral), Nos trés casos 0 efeito procurado € © do contraste entre Frepresentagdes de uns poucos milimetros ou centimetros € a quantidade de detalhes que a descrigio v4i trazendo 4 luz, como num passe de magica. E come o Big Bang: deslocar 0 olhar pelo interior de uma miniatura 0 espago vai se amplificando, sempre em diregio ao pequeno, ao novo pequeno que cresce dentro do pequeno j4 dado. Andei pensando que hoje a tecnologia poderia tornar real até certo ponto esse mecanismo, com as imagens digitais. Pelo menos é pensdvel que uma camera muito sensivel capture uma ao se cena complexa, por exemplo, uma drea de um parque de diver- ses num domingo 8 tarde, com tanto detalhe que registre cada pelinho do bigode do policial situado ao fundo, e depois apre- sente essa imagem na tela num tamanho normal, de dez por quinze centimetros, digamos. Como nesses aparelhos atuais a informagao realmente nao ocupa lugar, poderiam estar arma- zenadas todas as ampliagGes, que o observador poderia ir atua- lizando com o zoom. Isso seria bastante hidico, por isso nao acredito que alguma companhia de imagens se dé ao trabalho de criar o software necessdrio (embora trabalhem infinitamente mais por coisas muito estiipidas que sdo tio lidicas quanto). Mas me parece que ja se faz, ou se faz uma coisa parecida, com Os mapas que usam imagens de satélite: d4 pra abrir o mapa de um estado e ampliar 4 vontade um setor até que o que resta na tela (uns seixos, um pouco de grama) se vé em tamanho real. Borges o antecipou no seu famoso texto sobre os mapas tio Brandes quanto o territério que representam. Borges vem a ca~ thar aqui por outra de suas invengées: o Aleph, esse buraquinho NO €spaco-tempo através do qual se pode ver o universo todo, ampliado até o Gltimo detalhe. B Um detalhe importante: as “descrigdes” de Lezama nao sao tanto descrigdes dos objetos em si quanto das imagens que transportam. O que postula a existéncia de objetos portadores de imagens. Nao sei se essa Ultima ideia produziu an uma espécie de alucinagio, ou se houve um suporte objetivo Oe to é que no resto da minha estadia em Havana vi muitissimos desses objetos em todos os museus que visitei. Quase poderia dizer que nio vi outra coisa. Lamentavelmente, 0 Museu de Belas Artes estava fechado para reformas, de modo que nao vi quadros, nem bons nem ruins. Talvez tenha sido melhor as- sim. Talvez devesse ser sempre assim. Nos outros museus, que no tédio, no “fastio da vida de hotel”, visitei todos, nao havia mais que objetos. Nunca tinha notado a quantidade de imagens pintadas que podem cobrir a superficie dos objetos. Dadas as circunstincias, decidi que era uma caracteristica cubana. A primeira coisa que vi quando entrei no primeiro museu (acho que era o chamado “da Cidade”) foram loucas, melhor dizendo, pratos, centenas de pratos de porcelana pendurados nas paredes, cada um deles com uma cena, uma paisagem, uma flor. Dava para escolher. Nao é a mesma coisa uma imagem num quadro e uma num prato, ou em qualquer outro objeto. Também um objeto nao €a mesma coisa que outro. Um objeto espera ser representado numa imagem (essa espera € que 0 torna objeto), ¢ a represen- tacao é a génese de uma histéria, Mas se além disso 0 objeto é suporte de uma imagem, a hist6ria se duplica... Acho que seria mais facil explicar com um exemplo. Vamos supor um personagem de romance, um fugitivo, que cruza alguma parte do territério de Cuba e chega numa casa isolada (uma casa senhorial, de engenho ou plantagio, para fazer verossimil que sirvam a comida em ricas lougas pintadas), onde recebe hospitalidade, da qual a comida é parte importan- te. Uma vez acabado o primeiro prato, lhe pedem amigavel- mente que conte sua histéria. A verdadeira ele nao pode contar, porque é algum assunto criminoso, e dado que o sujeito nao tem imaginagao, “conta” o que est4 vendo no prato vazio, ou seja, improvisa uma histéria a partir da cena que vé pintada no fundo do prato. Resulta muito apaixonante, por ser inesperado exético (é preciso ter em conta que as pinturas desses pratos nao sao muito realistas, e até costumam ser chinesas), e os anfi- trides, ansiosos, perguntam como continua. Mas jé foi servido 0 segundo prato, e como 0 narrador se joga sobre ele, faminto como estd, eles contém a curiosidade e Ihe dio tempo para que se alimente. Ao desaparecer a comida, aparece outra cena pin- tada no fundo do prato, ¢ inspirado nela o héspede continua a narrativa. E claro, ao fazer passar 0 conto por fatos vividos, € necessdrio ao narrador manter o verossimil, e para isso deve levar os fios da trama resultante da cena do prato 1 aos da cena do prato 2, que podem nio ter nada a ver uma com a outra, por exemplo, podem saltar da pastoral Luis XV 4 bisbilhotice intelectual da Dinastia Tang, ou ao catdlogo botanico, e isso tudo tem que ser adaptado ao realismo autobiografico. A his- toria se torna interessante de verdade, O que conseguiram os Tomancistas contempordneos desse fugitivo, ele consegue com um elegante automatismo, e ainda se alimenta, coisa que estava the fazendo muita falta. “Algo mais? Uma asa de frango que cesaninn s 2” “Sim, por favor”. Vamos ver se acha 0 final ou do almogo: ” enTs q sobro “Sobremesa?” “Nao vou dizer -. fez. dessa trama. da bagunga que ayer 8 acha>” nio, dona”. As aventuras seguem. Café?” “O que vocé acha>”, Na xicara assoma o sol do desfecho, que nao €é outro eae a propria casa onde esta. Justo nesse momento chega a policia, O fugitive, reanimado pelo alimento, pula em cima da mesa, joga nos seus perseguidores 0 que tem na mao (as lougas), re- siste como um deménio, escapole por uma janela, e a aventura prossegue por campos e montes. No piso da sala de jantar fica~ ram os pratos quebrados, e se alguma das criangas da casa tenta arma-los como um quebra-cabega, se equivoca, e se formam cenas novas, compostas, que contam outras histérias. Devia ter tomado notas de todas as coisas que vi. E curioso, €u mesmo fico surpreso, mas nunca tomo notas, embora jamais saia de casa sem uma caneta e uma caderneta no bolso, porque tenho certeza que caso me acontega algo na rua, a tinica coi- sa de que vou lembrar depois é que esqueci. Nao me custaria nada, realmente. Ji que me dou ao trabalho de ir aos museus, € pagar o ingresso, e me cansar até o ponto de nem conseguir ficar em pé, deveria conservar alguma coisa. Minha meméria nao conserva absolutamente nada... Se agora me ponho a es- Premé-la, fazendo vinte mil atmosferas de pressio sobre uma uva passa, a linica coisa que consigo resgatar do meu extenuan- & Percurso pelos museus de Havana é um reldgio de bolso com aoe bonita Paisagem pintada no centro do mostrador, mas em dois niveis, um dos quais certamente vai cobrindo 0 outro com 2 z . ; Pas sagem das horas, e entio a cena pintada muda, como um “nussimo flip-book... acho, at Seria dificil convencer alguém de que essas miniaturas me impressionaram € me fizeram sonhar, se nem sequer lembro quais foram e sem poder, menos ainda, fazer uma desci mesmo aproximativa. FE. como se a miniatura ferisse a meméria como uma bala, antes que a percep¢ao, ou: passando ao largo da percepgio. Por isso soa absurdo falar de uma miniatura € dizer que nio se recorda. O que dizer dela entio? A pintura em miniatura tem como suporte privilegiado os objetos; quase seria preciso dizer que a pintura vira miniatura quando pintada sobre um objeto. Quanto mais inesperados ou mais inadequados forem os objetos escolhidos como suporte, mais se acentua a esséncia da miniatura. Dai que esta seja a imagem desprendida e viajante, que veio de longe, sempre ex6- tica. Sobre pratos ou estojos no se pratica a pintura realista, mas a fantasia oriental ou rococé, ou a fantasia tout court. Eo ex6tico tem uma relagio intrinseca com seu nome, com as his- t6rias incorporadas a esse nome: a participagio da linguagem desvirtua 0 cardter préprio da imagem. E como se a imagem propriamente dita se desse sempre em tamanho natural. Por exemplo, Havana para mim nestes dias, quando surge perante meus olhos na sua realidade perceptivel. Passada pela memé- tia, a imagem se torna miniatura e exotismo. Deve ser por esse estagio prévio em que a vivo que Havana é tao desoladora: rui- Nosa, gasta, cheia de turistas, com essa tristissima miisica alegre tocando em toda parte. om store sserevendo isso, me lembro miraculosamente de ria entrar na classe da “miniatura grande”, por- que eran i s, mui i m as pinturas, muito escurecidas, nos lados de uma li- teira. Act i ho que se chamam assim, esses cubos de madeira com isan ama 7 portinholas como as dos carros, com janelas e tudo, e varas na frente e atrds sustentadas por dois carregadores, e dentro senta- va uma dona ou um bispo ou seja 14 quem fosse. (Nao se pense que sob 0 socialismo essas coisas tenham sido abolidas: agora se chamam “bicitdxis”). Pois bem, esta tinha pintadas nas portas, ena frente e atrds, nao sei se também no teto, varias cenas que lembro obscuramente, como provindas de um sonho. Eram to- das de um mesmo tema, ou de uma espécie de jogo praticado com um grande manto branco segurado pelas pontas e que se inflava como a vela de um barco. Algo assim como o manto a partir do qual voa o fantoche no famoso quadro de Goya. Embora aqui talvez nem fosse um jogo, nao acredito que fosse, mas um sistema para dar sombra... Por que guardei bem essa imagem? Na minha pressa para sair daquele museu, devo ter passado ao lado sem me deter. Acho que tinha palmeiras e ne- gros, tudo escurecido, meio apagado. De qualquer modo, ha alguma coisa de capricho irracional na ideia de pintar essas ce- nas, cenas desse tema, numa liteira. O que significa que deveria ter alguma explicagio. 4 Algo que registrei apesar de tudo foram os vitrais. Imposst- vel nao vé-los ao entrar em algum prédio velho, tanto brilham com a luz de fora, € tio escandalosas sio as cores. Associei-os 2 uma observagio que me fez baixinho uma senhora argentina: ‘Os cubanos tém um problema grave com o visual”. Tive que H = - he dar razio, Porque tudo que fosse murais, cartazes, pinturas, 18 ja além do feio e do torpe. A mesma coisa com as capas dos livros, as ilustragdes, até os cardapios dos restaurantes. Antes de ela me dizer, nao tinha observado isso especialmente, acos- tumado como estou a me deslocar entre aberragées. Mas ao ouvi-la reconsiderei, € realmente era notorio. Talvez isso te- nha uma explicagao histérica, € a sangria de talento que sofre um pais socialista para seus vizinhos capitalistas se acentua no campo das artes plisticas e do desenho. Talvez nao tenha fica- do ninguém aqui que saiba combinar duas cores ou tragar uma linha. Porque as agressdes visuais que a gente sofre no capita~ lismo so planejadas e realizadas por gente que “sabe fazer”, € dessa gente hé uma demanda incessante, que a expulsaria de Cuba. Desse modo, tinha suposto, sem me deter nisso, que os vitrais dos prédios antigos tinham sido destrufdos com o tempo e substituidos por esses mamarrachos. Nao teria nada de es- tranho: se tudo foi destruido, o vidro, que € a coisa mais fragil, tinha de ser a primeira. E realmente parecem novos, pelo bri- lho das cores, e por serem abstratos e simplissimos. Acho que sempre, ou quase sempre, tém uma simetria bilateral. Cada um deles deriva da sua prépria mecanica geradora automatica, o que € tipico de um designer amador. As cores, primarias: ama- relo, vermelho, azul, lisas obviamente (mas nos vitrais nunca hi clar i et éi i eescures) Aimpressio geral é infantil, de plistico, Disney. um museu havia uma sala dedicada a esses vit Montados, it tne ede » com certeza provindos de prédios demolid leque, como se estiv rais, des- los. A for- * essem disposti a édio” = t postos no “ponto médi: ma das janelas ou portas, _ . las cx » mas também hé uns como jane- ompletas, por exemplo, eens » na Catedral. Se eu tivesse pensa~ isan ana 9 do meio minuto, aché-los no museu teria sido o bastante para compreender que eram antigos. Mas nao: a ideia veio depois, subitamente, ¢ um cubano me confirmou que efetivamente sriginais daqueles prédios, século XVIL A reve- eram Os vit lagio me obrigou a modificar meu julgamento, ou a inverté-lo completamente. Nao por esnobismo, ou nao sé por esnobismo, sideragao histérica. Se eram antigos mas por uma simples cor eram formosos, ousados, precursores de Sol LeWitt, moder- simos, um achado inesperado. Até 0 método gerativo, que nh hoje seria a marca de um incompetente, no barroco os tornava arte superior. Ninguém negaré, e eu menos que ninguém, que o tempo é um dos elementos que constituem a arte. A senhora argentina também poderia ter dito que os cubanos tém “um problema sério” com o tempo. Pela paixio da utopia, safram da Histéria, e “o visual” congelou-se neles. A obra de arte precisa da Histé- ria para efetivar suas transformacdes. Deve ter algum sentido que a tinica transformagao que descobri em Havana tivesse a ver com as imagens abstratas das vidragas: o abstrato sé se faz imagem triangulando-se no tempo. E 0 antes e 0 depois da imagem: antes que se tenha aprendido a representar qualquer coisa, e depois que se representou tudo. A propésito: nao existe miniatura abstrata, ou existe mas é outra coisa: é 0 objeto. O objeto nao é abstrato nem figurativo porque nao representa: é. : Mas chega de miniaturas. Nao quero cal sada in- mos. A palavra “miniatura”, a meu ver, costuma ser ji ito breve ou corretamente, por exemplo, para definir um a Em uma pega teatral de curta duragio. Essas sto ir em bizantinis- nwa 20 sentido estrito, a miniatura se restringe aos objetos visuais, mas entre eles no se restringe aos de tamanho pequeno. O objeto visual chamado de miniatura deveria ser definido como o instante do olhar que gera um escrito extenso: quanto mais extenso, mais miniatura, como nos trés pocmas de Roussel, em que de tanto se estender atinge o nivel subatémico do objeto suporte. Por outro lado, € preciso lembrar que nao existe escri- ta abstrata. A escrita complementa a miniatura, mas com uma defasagem temporal, como quando se viaja de aviao de leste a este ou vice-versa. A operagio cria 0 tempo, ou ao menos O torna inteligivel. 5 Encontrei 0 objeto supremo num museu, numa sala dedi- cada a armas. Tinha de todo tipo, porque a histéria de Cuba foi bastante sanguindria. Numa vitrine estava exposto 0 fuzil Remington que foi usado, suponho, nas guerras da Indepen- déncia. Deve ter sido uma arma importante, seguramente for- necida pelos norte-americanos; havia cartazes explicativos, que nao li, mas todo o aparato montado para exp6-lo, isolado na sua caixa de cristal, indicava que se tratava de uma espécie de mo- numento histérico. Ea vitrine continuava em outra acess6ria, com implementos para limpeza e conservagao, balas, estojos, € este objeto diante do qual me detive um momento, porque valia a pena. Era um lengo, de tecido branco, talvez algodio, ou linho, Guta ‘e trama muita apertada. Estava estendido: um trinta centimetros de largura, 0 tamanho de cosan nna, n um lencgo comum de bolso, talvez. um pouce maior. E estava im- presso, em preto, todo coberto de texto ¢ ilustragdes. Também ozinho explicativo, mas nio era dificil neste caso nao li o cart a, O lengo continha as instrugdes fabrica Remington, compreender do que se tra de uso e cuidado do fuzil, impressas pe Com certeza a cada soldado era entregue um lengo junto com © fuzil: os compradores teriam pedido um manual de instru- gdes, dado que os soldados dessas guerras eram improvisados, nao tinham tempo de passar por uma academia militar e talvez nem sequer de receber o adestramento minimo. Na realidade nao tem nada de estranho: estamos acostumados a que cada aparelho tenha seu manual, e deve ter sido mais necessdrio para soldados que marchavam imediatamente para a guerra, pode- riam ficar isolados dos seus oficiais, e dependiam do fuzil para continuarem com vida. O que fazer se uma bala ficasse travada na camara? Se uma bala explodisse no cano? Se o percussor se soltasse? Como lubrificd-lo? Ai estava tudo explicado. O ino- vador era que em vez de imprimi-lo em papel, num livrinho, 0 fizeram num lengo. Ideia bastante razoivel, dado que o papel teria durado menos que o tecido, nio somente pela resistencia do material, mas também porque um soldado daquela época certamente ia cuidar mais de um lengo do que de um papel ov folheto. Além disso, podia ser util, para se limpar, para se en- faixar, para limpar 0 proprio fuzil, e depois podia ser lavado € ser lido de novo. A tinta em que estava impresso tinha que ser indelével, 4 prova de lavagens. Este exemplar tinha resistido . * < estava intacto, exceto por umas pequenas queimaduras. O texto em castelhano. Seria dificil descrevé-lo, porque era bastante complicado, mas vou tentar, inventando onde nao lembrar. No centro, um desenho técnico do Remington, tipo lamina de enciclopédia, inteiro e cercado de cada uma das suas partes, como um sol com seus planetas girando ao redor, cada parte com seu nome. Sobre as bordas do lengo uma fileira de quadrados como os de uma HQ, cada um com um desenho, e embaixo um texto de cinco ou seis linhas, em grossas letras pretas de forma. Esses quadrados deviam ser lidos de fora pra dentro, ou seja, para ler todos era preciso girar o lenco desdobrado. Havia uns cinco quadrados em cada lado, contando os das pontas, eram, pois, dezesseis no total. Em cada quadrado estava ilustrada uma cir- cunstancia relativa ao uso do fuzil: a posigao correta para atirar, a maneira de condicion4-lo na montaria do cavalo, como carre- ga-lo, como limpé-lo. Eram desenhos claros, dramaticos, com um morro estilizado ao fundo, e 0 soldado exemplificador mui- to alto e atlético; mais que a desenhos de HQ, se assemelhavam as ilustragdes dos antigos livros de aventuras: nesse sentido me Pareceram familiares. Abaixo, o texto, que devia ser redundan- te, porém com indicagées titeis e conselhos praticos: o autor deve ter feito um esforco extra para ser conciso e claro. A série de desenhos, a passagem “refletida” de um para 0 outro, poderia formar uma histéria, o conto do soldado solita- fio perdido no morro. A . E nao um conto sé, mas tantos quantos oAeM 08 narradores que empreendessem o trabalho de escre- ‘Ngo como aparelho gerador. Alids, um mesmo ria obter narrativas diferentes, dependendo de hos do circulo tomasse como comeso. ver usando o le: Rarrador pode: ual dos desen umento do guerreiro solitario confrontando inimi- ico, de que ja se ex- ea natureza hostil € um cla s variagdes. Nao faltam na literatura cubana: nplo fez dele um leitmotiv. Nesses casos, a inventiva, nao tém outro remédio nos, em busca da originalidade, Esse arg! gos invisive! ploraram inimera | Novas Calvo por exer } Os autores, entregues a Su: senio avangar até os casos extrem Um caso extremo, de um desses extremos possivels, € 0 daquele soldado japonés que passou vinte € oito anos escondido na selva acreditando que a Segunda Guerra Mundial nao tinha acabado, (Cuba, com um pouco de ironia ou malevoléncia, poderia ser nal, aplicada 4 Guerra Fria, do soldado japo- uma variagio na j nés), Mas a realidade continuar trabalhando para fazer dbvia e redundante a inspiragio, dai que os procedimentos mecanicos como o do leno representem uma saida radical fora dos recur- sos do sujeito (0 talento, a experiéncia, as intengdes, e todo o resto da miséria psicoldgica). A radicalidade € assegurada pelo analfabetismo deliberado a que é preciso se submeter. Os desenhos ilustram os momen- tos culminantes da histéria, mas nao podemos ler a histéria, Porque nao existe. As ilustragdes esto dadas de antemio, e foram desenhadas pensando em qualquer coisa exceto numa histéria. E 0 autor que as impoe a si mesmo como dado. “Etant donnés...”. Essa é a formula de uma arte nao psicoldégica, que poderia ser feita “por todos, nao (necessariamente) por um s6”. Como disse antes, a histéria poderia comegar em qualquer um dos dezesseis quadrados da borda continua do lengo. Os elementos materiais concretos do objeto tém uma utilidade de primeira ordem no processo gerativo. Para fazer bem as coisas teria que contar dezesseis hist6rias, cada uma delas comegando 24 | num dos quadrinhos. Ou melhor, uma s6 histéria em dezesseis is capitulos cada uma. Também poderiam ser partes, de deze das como geradores as dobras feitas no lenco para guar- utiliz: d4-lo no bolso e aproveitar a contiguidade casual que se produ- ziria entre algumas imagens, 0 afastamento de outras... As que ficassem ocultas nas dobras poderiam ser os sonhos do soldado. 6 Mesmo acreditando ja ter visto tudo, depois do lengo, o muscu me reservava outra interessante visdo. Na realidade devia ter muitas, como a mencionada por um escritor cubano com quem passei no dia seguinte na frente do mesmo museu, que funcionava num grande paldcio colonial. Ele me perguntou se j4 0 tinha visitado e respondi que sim. En- to, disse, deve ter visto essa banheira de lipis-laziili do bispo governador da ilha... Com certeza!, menti. E ele: é o melhor que tem, a Gnica coisa que vale a pena ver. Assenti vagamen- te, me sentindo um idiota. Tinha me obnubilado tanto com o lengo que tinha perdido essa maravilhosa banheira. O tinico consolo que tenho é que sempre me acontece o mesmo. O es- critor cubano insistiu: E notou como ela é pequenininha? E Surpreendente que o bispo, caber nela, Sim, disse Contudo, na man Vaneio di i i » diante do lengo, tinha visto algo que compensava em Parte q banheira, O Palacio tinha um Patio central, grande e TvOres © estdtuas, gordo € enorme como era, pudesse eu tristemente: é surpreendente! nha anterior, ao sair depois do meu de- (tsa ama 2s mea nao tem nada de realeza. Me aproximei porque o macho estava com a cauda aberta, € era possivel vé-la de perto, coisa que a vida nunca tnha me dado a ocasiao de fazer antes. Aqui devo dizer que sou miope, € os culos que uso corrigem essa situagao apenas no indispensavel para que eu possa continuar funcionando em sociedade, mais nada. Miopia e tmidez vio sempre juntas; as opinides esto divididas sobre qual é a causa € qual o efeito. A timidez me fez um solitirio, e de solitirio a excéntrico nao ha mais que uma nuance de significado. Por causa da miopia perdi todos os detalhes, perda que com certeza Pprovocou o desenvolvimento excessivo, um pouco monstruoso, da minha imaginacao. A primeira vez que vi um pavao-real foi aos doze anos, no zoolégico de Buenos Aires, aonde tinham levado em excursio todos os melhores alunos de sexta série das escolas de Pringles. Estava com a cauda aberta, mas muito longe, nos fundos de um enorme curral com outras aves. Meus colegas, todos eles me- ninos do campo na sua primeira visita 4 cidade grande, imedia- tamente mencionaram algo que era o leitmotiv dessa viagem: a incrivel boa sorte que nos acompanhava. Com efeito, tinham se dado circunstancias que poderiam ser vinculadas a um acasO afortunado; a mais chamativa tinha acontecido uns dias ante quando visitamos 0 porto e descobrimos que essa tarde er a Gnica em que eram permitidas visitas a0 porta-avides 25 & Mayo, e subimos € 0 percorremos, guiados por um atencios oficial. Nunca pelo resto da minha vida conheci ninguém que tivesse estado a bordo desse porta-avides, o tinico que a Arge- tina teve, € que nao existe mais. (Voltei a ver esse porta-avioe mais uma vez, um quarto de século depois, por um curioso 3" so: fui ver um amigo em seu escritério no vigésimo andar de uma das torres de Catalinas, e ele me levou 3 janela para me mostrar uma coisa: 14 embaixo, numa espécie de doca encan- toada atris do Sheraton, estava o porta-avides: “Deixaram ele ai durante toda a guerra”, me disse; nesses dias estava terminando a guerra das Malvinas. Se o levassem ao mar aberto, os ingleses 0 afundariam com um sé missil. A tinica ocasido que teve de servir para alguma coisa, ea perdeu, por antiquado e fragil, e por valioso. Sobre uma das suas torres tinha um painel de radar girando 0 tempo todo muito r4pido, num patético simulacro de agao. Parecia muito Pequeno, muito ansioso com seu painel girando, como um animal assustado). Na cauda aberta do pa- vao-real, meus colegas viam uma confirmagio da sorte que nos beneficiava, e para confirmar a confirmacio inventamos o dado de que era rarissimo ver a cauda aberta de um Ppavao-real: abria s6 uma vez a cada ano, por cinco minutos, 4 meia-noite, ete- cetera. A verdade é que nunca vi um pavio-real com a cauda fechada, porque depois daquele primeiro somente vi mais um, no ano passado, no zooldgico da Cidade do México, e estava com a cauda aberta, embora, assim como o anterior, estivesse muito longe. De maneira que ali, no patio do museu de Havana ia dar 4 minha miopia a primeira ocasiao de ver um pavao-real @ meio metro de distancia, e isso é 0 que vou contar. Mas antes devo dizer que a miopia é s6 uma das faces da moeda. A outra €a falta de atencao. De que serve enxergar, se a imagem nio se Tansmuta em experi@ncia? Pois bem, me aproximei. Demorei um pouco para me ligar "ua¢io. O macho estava com a cauda totalmente aberta, * espécie de Superleque de trés ou quatro vezes sua altura, Na sj um; olhando a fémea, que parec ia uma galinhazinha cinzenta ordi- naria e picotava umas sementes No chiio de pedra. Havia uma alternancia; wm siléncio, € 0 macho dava uns passos se posicio- nando na frente da fémea, e entio produzia um tremor com um barulho elétrico, um zumbido estranho, certamente efeito ¢ imperceptivel da cauda. Esta nao era de um movimento quas tinha uma pequena curvatura para dentro, como a de nhos do pavao eram para se pk uma antena parabolica, € os pa manter a frente da fémea, que se mexia 0 tempo todo picotando as sementes, O tremor durava uns segundos, vinte ou trinta, mais que um tremor era uma tensio, feito um grito afogado do corpo. Ela nao prestava a menor atengio, fazia como se ele nao existisse, Dois cubanos estavam olhando também do meu lado, um era empregado do museu, com certeza cuidador ou jardineiro Porque estava muito informado do que se passava com o casal animal. “Faltam duas semanas para o cio dela — dizia -, ainda nao esta clueca”. Usou a palavra “clueca”, choca, que é de Prin- gles, que curioso. Sempre me surpreende 0 modo como pala- vras € expressdes da minha infincia em Pringles se espalharam pelo mundo. Pelo visto o macho sim estava no cio, tinha se adiantado, ou talvez estivesse sempre no cio. A cauda aberta, 0 tremor, eram 0 cortejo, mas tio intitil, tio desperdigado, se ela ainda nio estava receptiva. E por nado estar, simplesmente nao 0 via. Sua atengio se acenderia no devido momento, € enquanto isso nao havia simulacro de atengdo, nem bons modos, nem Curiosi dade. Ele insistia, © © mais provavel é que continuassé insistindo nessas duas seman E verdade que nao tinha mais nada para fazer, mas ainda assim era desalentador. E estranho; e v7 est4 magicamen- a gente acha que 00 tnundo da Natureza tudo esta mag Newte cao, 0 cuidador humano sabia mais que te coordenadd, 6 interes. ; _ fazin a sério, nto por esporte. Toda a operagio Ko pavioo ne ' iedade mortal, que a indiferenga dela tinha de sua parte una ser tornava ridfeula, Vendo o macho de frente, da base do grande leque sala o peito © 0 pescogo € a cabega, de uma plumagem azul fosforescente que brilhava, Outro tremor. O barulho pa- recia provir de um terrivel aparelho vibrador. Era uma espé- cie de monstro, Queria fascinar, mas a mensagem se perdia no vazio, Uma metifora adequada seria a de um painel enviando agem de ondas de radio a uma estrela, sem saber que uma mi aquela estrela tinha se extinguido milhdes de anos atrés, e a m gem se perdia nio no espago, mas no tempo: a defasagem jo de duas semanas, mas mesmo que tivesse sido de dois segundos teria sido a mesma aqui nio era de milhdes de anos s coisa, Na realidade, 0 dimorfismo sexual por si sé atua com o tempo, o da evolugio, Meus vizinhos continuavam falando, e 0 cuidador dizia “No ano passado pds quatro ovos”. O outro comentou algo admirado, como se quatro fosse muito, e seguramente o era. Quatro pavdes-reais deviam valer um capital. Mas a historia dos quatro ovos era triste: “Dois foram roubados, um quebrou, € 0 outro gorou”. Depois de admirar mais um tempo as mano- bras intiteis do macho, agregou: “Vamos ver 0 que acontece este ano”, Fur embora, lembrando a frase de Perén: “Levo nas reti- nas a imagem mais maravilhosa. Propria morte iminente. Ai tamt dezoito anos de exilio, as rei Referia-se ao povo, e a sua havia uma defasagem: seus dicagdes postergadas, a Histé- tuna » , ec si os vO por sua vez inca coincide consigo mesma, O povo Pp : eo nu : P ; ‘ Perén, a miniatura, ate sua propria mor- ria, q apos a qual a miniatura ficaria levava a imagem de : ito revolucionario, maginava um povo de pavées-reais reunidos na s focando seus olhos de pluma na sacada, te como SU) como suvenir. I Praga de Maio, todo: eo zumbido. Todo o precedente teve lugar durante as horas do dia. As horas da noite estiveram dominadas para mim por dois perso- nagens que resumiam pela negacao as visdes que tinham me deparado os passeios por Havana. O primeiro era a ascensorista cega de um lugar noturno. Conduzia com pericia (a pouca que o oficio exige) o elevador, que nao tinha luz. Eu nunca tinha subido ou descido por um elevador as escuras. Nao perguntei, ninguém perguntou, por que ia as escuras. A cegueira dava a priori uma espécie de ex- plicagio. Talvez a lampada tivesse queimado, e como ela nao tinha percebido a diferenga nao disse nada aos encarregados da manutengao, e ficou assim. Os Passageiros por sua vez nao se queixavam nem faziam comentirios por respeito a essa mulher ae na contramao da sua deficiéncia trabalhava e o fazia em sa consciéncia. Ou talvez fosse somente para poupar energia. Além disso, tinha sua logica, mesmo que parecesse uma légica vars, dado que a ascensorista se arranjava com tato e ouvido. Seja como for, era estranho. No era desses velhos elevado- res de grades, em que se infiltraria a luz do exterior. Era mais moderno, de chapas metélicas herméticas, e a treva que se pro- duzia era total, compacta. Limpa das contaminagoes visuais da atengao, a percepgao da subida e da descida, como se aconte- cesse no vazio, s¢ acentuava prodigiosamente. O segundo foi o guarda de seguranga de outro lugar no- tumo, um jovem soldado negro de dimensées colossais. De- via medir bem mais de dois metros € era muito gordo, muito cnorme. Obedecia 4 precaugao, bem comprovada, de empregar sujcitos corpulentos nessa classe de lugares onde so consumi- das bebidas alcodlicas, como medida dissuaséria. Neste caso a dissuasio tinha um lance de conto de fadas. O gigante impunha sua grandeza de fibula e diminufa a realidade. Nao € preci- so dizer que era o centro de todos os olhares. Ele nao olhava ninguém. Se deslocava lentamente de um extremo ao outro da sala, adusto, se exibindo, como em outro mundo, efeito inevi- tavel de um excesso de presenca. Seu tamanho nio cabia nas categorias da atencio e da distragao. 2000 Impresso em grifica prdpeia (usando o sistema de cera sdlida) € costurado manualmente. Desterro, inverno de 2017 Tiragem: 100 exemplares numerados. 044

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