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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO 

FICHAMENTO: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico 6. ed. Brasília:


Editora Universidade de Brasília, 1995 – CAPÍTULO III – A COERÊNCIA DO
ORDENAMENTO JURÍDICO. Págs. 71-114.

CAPÍTULO III – A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO

1. O ORDENAMENTO JURÍDICO COMO SISTEMA

Bobbio neste tópico deseja retomar o capítulo anteriormente estudado e ir


mais além ao questionar-se se o ordenamento jurídico, além de uma unidade, pode
ser considerado também um sistema, ou seja, uma totalidade ordenada. Kelsen, por
exemplo, divide os ordenamentos em dois sistemas, o estático e o dinâmico, o
primeiro é aquele que as normas têm relação entre si, pois derivam umas das
outras.

Um exemplo disso é que Hobbes põe como fundamento da sua teoria do


Direito e do Estado a máxima Pax est quaerenda (A paz deve ser procurada),
querendo com isso entender que o postulado ético fundamental do homem é a
necessidade de evitar a guerra e procurar a paz; a partir dessa regra fundamental é
possível deduzir todas as principais regras da conduta humana, que chamamos de
leis naturais. Todas essas leis formam um sistema, uma vez que são deduzidas da
primeira. Uma semelhante construção de um conjunto de normas é o que Kelsen
chama de “sistema estático”, em outras palavras, que num sistema desse gênero as
normas estão relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo.

Por outro lado, o sistema dinâmico é aquele no qual as normas que o


compõem derivam-se umas das outras através de sucessivas delegações de poder,
isto é, não através do seu conteúdo, mas através da autoridade que as colocou; uma
autoridade inferior deriva de uma autoridade superior, até chegar à autoridade
suprema que está no topo da “cadeia” e tem nenhuma outra acima de si. Pode-se
dizer que a relação entre as várias normas é, nesse tipo de ordenamento normativo,
não material, mas formal. Um exemplo de sistema dinâmico seria aquele que
colocasse no vértice do ordenamento a máxima “É preciso obedecer à vontade de
Deus”. Nesse caso, o fato de outras normas pertencerem ao sistema não seria
determinado pelo seu conteúdo, isto é, pelo fato de que estabelecem uma certa
conduta de preferência a outra, mas pelo fato de que através da passagem de uma
autoridade a outra possam ser reconduzidas à autoridade divina.

A distinção entre os dois tipos de relação entre normas, a material e a formal,


é constatável na experiência diária, quando, encontrando-nos na situação de ter que
justificar uma ordem, podemos ter dois caminhos a seguir: o de justificá-la
deduzindo-a de uma ordem de abrangência mais geral ou o de atribuí-la de uma
autoridade indiscutível. Kelsen admite que os ordenamentos são sistemas
dinâmicos, os estáticos remeteriam aos sistemas morais.

2. TRÊS SIGNIFICADOS DE SISTEMA

Juridicamente existem muitos significas para a palavra sistema, porém é


pouco analisado. Bobbio estuda-o por duas visões, a de Perassi e Del Vacchio, onde
esse último diz que as proposições jurídicas sempre tendem a formar uma unidade e
o primeiro diz que as normas não são isoladas, constituem um sistema com
princípios e ligações. Há três significados para sistema na visão de Bobbio, o
primeiro diz que o sistema são todas as normas que derivam umas das outras
formando a unidade, teoria muito usada no ordenamento relacionado ao direito
natural através de uma visão dedutiva. O segundo pode ser encontrado no direito
moderno e puxa mais para o lado indutivo, ou seja, a partir da norma, chega-se à
sistematização do ordenamento. Por fim, a terceira significação trata de sistema
como a validade do princípio, ou seja, eliminando as normas incompatíveis.

3. AS ANTINOMIAS

Bobbio dá o nome de antinomia para o acontecimento de normas


incompatíveis, o que pela terceira teoria vista no tópico anterior, não é suportado
pelo ordenamento jurídico. Duas normas são incompatíveis quando há uma norma
que ordena fazer e outra que proíbe fazê-lo; quando há uma norma que ordena fazer
e uma que permite não fazer e quando há uma norma que proíbe fazer e uma que
permite fazer.
4. VÁRIOS TIPOS DE ANTINOMIAS

O autor define a antinomia como a situação em que duas normas são


colocadas em existência, dos quais uma obriga e outra proíbe, ou uma obriga e a
outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Mas a
definição não está completa. Entretanto, para ocorrer antinomia duas condições, que
serão analisadas a seguir, são necessárias.

A primeira condição é a de que as duas normas devem pertencer à mesma


ordem. O problema de uma antinomia entre duas normas de diferentes
ordenamentos surge quando elas não são independentes entre si, mas se
encontram em um relacionamento qualquer que pode ser de coordenação ou de
subordinação. Um verdadeiro problema de antinomias entre o Direito positivo e o
Direito natural (ou seja, entre dois ordenamentos diferentes) subsiste na medida em
que a lei positiva é considerada como uma ordem subordinada à lei natural: neste
caso, o intérprete deve ser obrigado a eliminar não apenas as antinomias no interior
do ordenamento positivo, mas também as subsistentes entre ordenamento positivo e
ordenamento natural.

Já a segunda condição é a de que as duas normas devem ter o mesmo


âmbito de validade. Quatro áreas de validade de uma norma são distinguidas:
temporal, espacial, pessoal e material. Eles não constituem uma antinomia duas
regras que não coincidem em relação a: a) validade temporal: “É proibido fumar das
cinco às sete” não é incompatível com: “É permitido fumar das sete às nove”; b)
validade espacial: “É proibido fumar na sala de cinema” não é incompatível com: “É
permitido fumar na sala de espera”; c) validade pessoal: "“É proibido, aos menores
de 18 anos, fumar” não é incompatível com “É permitido aos adultos fumar”; d)
validade material: “É proibido fumar charutos” não é incompatível com “É permitido
fumar cigarros”.

Após essas especificações, pode-se definir novamente a antinomia jurídica


como a situação entre duas normas incompatíveis, pertencentes à mesma ordem e
tendo o mesmo escopo de validade. Antinomias, assim definidas, podem, por sua
vez, ser diferenciadas em três tipos, de acordo com a maior ou menor extensão do
contraste entre as duas normas: 1) se as duas normas tiverem o mesmo âmbito de
validade, a antinomia pode ser denominada, após a terminologia de Ross (que
destacou essa distinção), de total-total: em nenhum caso, nenhuma das duas
normas podem ser aplicadas sem entrar em conflito uma com a outra; 2) se as duas
normas incompatíveis tiverem um âmbito de validade igual em uma parte igual e
diferente em outra, a antinomia existe apenas para a parte comum, e pode ser
denominada de parcial-parcial: cada uma das normas tem um campo de aplicação
em conflito com o outro, e um campo de aplicação em que o conflito não existe; 3)
se, de duas normas incompatíveis, uma tem uma gama de validade igual à da outra,
porém mais restrita, ou, em outras palavras, se o seu escopo é, no todo, igual a
parte do outro, a antinomia é total pela primeira norma em relação à segunda, e
apenas parcial pela segunda em relação à primeira, e pode ser denominada de total-
parcial. A primeira norma não pode ser aplicada em qualquer caso sem conflito com
a segunda; a segunda tem uma esfera de aplicação que não conflita com a primeira.

Além da definição de antinomia como uma situação produzida pela reunião de


duas normais incompatíveis, há, na linguagem jurídica, antinomia com referência a
outras situações. No entanto, o autor se limita a listar apenas alguns desses
significados da antinomia, ressaltando que o problema clássico da antinomia jurídica
é o que já foi explicado anteriormente. Para distingui-las, será utilizado o termo
antinomia imprópria. Fala-se de antinomia no Direito, com referência ao fato de que
um sistema jurídico pode ser inspirado em valores opostos (em ideologias opostas):
o valor da liberdade e o valor da segurança, por exemplo, são considerados como
valores antinômicos, visto que a garantia da liberdade provoca danos, comumente, à
segurança, e a garantia da segurança tende a limitar a liberdade; como efeito, é dito
que um ordenamento inspirado em ambos os valores repousa sobre princípios
antinómicos. Neste caso, é denominada de antinomia de princípio. Esse tipo de
antinomia não é uma antinomia jurídica, mas pode levar a normas incompatíveis.
Pode-se dizer, ainda, que uma fonte de normas incompatíveis pode ser o fato de
que o ordenamento está corroído pelas antinomias de princípio.

Outro significado de antinomia é a chamada antinomia de avaliação, que é


verificada no caso de uma norma punir um delito menor com uma pena mais séria
que a imposta a um delito maior. É claro que, neste caso, não há antinomia em seu
sentido próprio, uma vez que as duas normas são perfeitamente compatíveis. Assim,
não é uma antinomia, mas sim uma injustiça. A antinomia e a injustiça têm em
comum que ambas ocorrem a uma situação que requer uma correção: mas a razão
pela qual a antinomia é corrigida é diferente daquela pela qual se corrige a injustiça.
A antinomia produz incerteza, a injustiça produz desigualdade e, portanto, a
correção dos dois casos a valores diferentes, ali no valor da ordem, aqui na
igualdade. Um terceiro sentido de antinomia refere-se a chamada antinomia
teleológica, que ocorre quando há uma oposição entre a norma que prescreve os
meios para atingir o fim e aquela prescreve o fim. Nessa conformidade, se for
aplicada a norma que o meio fornece, não é possível alcançar o fim e vice-versa.
Aqui a oposição surge, na maioria das vezes, da insuficiência do meio: mas então é
mais de lacuna do que de antinomia.

5. CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO DAS ANTINOMIAS

Bobbio afirma que na existência de antinomias uma das normas deverá ser
eliminada e é aí onde mora o problema. Existe dois tipos de antinomias, as solúveis
(aparentes) e as insolúveis (reais), a maioria trata-se da primeira, mas nem sempre
é assim, pois existem que regras em que a solução não pode ser aplicada e tem
casos que se pode aplicar duas ou mais regras de solução causando conflito.

Por causa da tendência de cada ordenamento jurídico se constituir em


sistema, a presença de antinomias em sentido próprio é um defeito que o intérprete
tende a eliminar. Como uma antinomia significa a reunião de duas proposições
incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras, e, com referência a um
ordenamento jurídico, a reunião de duas normas que não podem ser ambas
aplicadas, a eliminação do inconveniente só deve consistir na eliminação de uma
das duas normas (no caso de normas opostas, até na eliminação dos dois). As
regras observadas até agora servem para saber quais normas são incompatíveis,
mas nada fala sobre quais delas devem ser conservadas ou eliminadas. É
necessário, portanto, partir da determinação da antinomia para a solução de
antinomia. Durante seu trabalho secular de interpretação das leis, a jurisprudência
elaborou algumas regras para a solução das antinomias, que são comumente
aceitas. Entretanto, vale ressaltar que essas regras não servem para resolver todos
os casos possíveis de antinomia.

A partir daqui, deriva a necessidade de introduzir uma nova distinção no


contexto da mesma antinomia, que é a distinção entre antinomia solúvel e antinomia
insolúvel. As razões pelas quais nem toda a antinomia são solúveis são duas: 1) há
casos de antinomia em que nenhuma das regras projetadas para a solução
antinomia pode ser aplicada; 2) há casos em que duas ou mais regras em conflito
podem ser aplicadas ao mesmo tempo. As antinomias solúveis são designadas de
aparentes e as insolúveis de reais. Logo, a verdadeira antinomia é aquelas em que o
intérprete é abandonado a si mesmo ou devido à falta de um critério ou conflito entre
os critérios de dados: critério cronológico, critério hierárquico e critério da
especialidade.

O primeiro critério, o cronológico, também chamado lex posterior, é aquele


com base no qual, entre duas normas incompatíveis, a norma posterior prevalece.
Há uma regra geral no Direito em que o subsequente derroga o precedente, e que
de dois atos de vontade da mesma pessoa vale o último no tempo. A norma
contrária evitaria o progresso legal, a adaptação gradual do direito às necessidades
sociais. É suscitada a ideia, pelo absurdo, das consequências que seriam derivadas
da norma que é prescrita para a norma precedente. Além disso, presume-se que o
legislador não quer fazer algo inútil e, com propósito: se a regra anterior deve
prevalecer, a legislação sucessiva seria inútil e propósito.

O critério hierárquico, também chamado lex superior, é pelo qual, entre duas
normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior. Posto que as normas
de ordenamento são colocadas em planos diferentes, em ordem hierárquica, fica
claro a razão desse critério. Uma das consequências da hierarquia normativa é
precisamente isso: as normas mais altas podem revogar as mais baixas, porém as
mais baixas não podem revogar as superiores. A inferioridade de uma norma em
relação ao outro consiste na menor força de seu poder normativo; esta menor força
é claramente manifestada na incapacidade de estabelecer regras que estejam em
oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior.

O terceiro critério, o da especialidade, ou lex specialis, é o qual, de duas


normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), a segunda
prevalece. Aqui também a razão do critério é clara: a lei especial é uma que anula
uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma uma parte de sua matéria para
submetê-la a regulamentos diferentes (contrários ou contraditórios). A passagem de
uma regra mais extensa (que cobre um certo gênero) para uma regra derrogatória
menor (que cobre uma espécie de gênero) corresponde a uma exigência
fundamental de justiça, entendida como um tratamento igual de pessoas
pertencentes à mesma categoria.

A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo


natural de diferenciação de categorias e uma descoberta gradual, pelo legislador,
dessa diferenciação. Sendo a diferenciação verificada ou descoberta, a persistência
na normal geral implicaria no tratamento igual de pessoas pertencentes a diferentes
categorias e, portanto, em injustiça.

Neste processo de especialização gradual, operado através de leis especiais,


encontra-se uma das normas essenciais da justiça, que é de dar a cada um o que é
seu. Entende-se, pois, a razão da lei especial prevalecer sobre a geral: ela
representa um momento inelidível do desenvolvimento de um ordenamento.
Bloquear a lei especial frente à geral significaria interromper este desenvolvimento.

6. INSSUFICIÊNCIA DOS CRITÉRIOS

Bobbio afirma que o critério cronológico serve quando duas normas


incompatíveis são sucessivas; o critério hierárquico serve quando duas normas
incompatíveis estão em nível diverso; o critério de especialidade serve no choque de
uma norma geral com uma norma especial. Mas também pode acontecer antinomia
entre duas normas contemporâneas, de mesmo nível ou ambas as gerais também,
que não podem ser solucionadas com os critérios anteriormente citados. Bobbio
também afirma que diferenciá-las quanto à forma não tem a mesma legitimidade dos
outros critérios, ou seja, quando nenhum dos três couber na situação, seja liberada a
liberdade do intérprete. Então quando no conflito entre duas normas, que não
adentre o critério cronológico, nem o hierárquico, nem o da especialidade, o juiz ou o
jurista, tem três possibilidades: a de eliminar um, eliminar as duas ou conservar as
duas.

7. CONFLITO DOS CRITÉRIOS

A aplicabilidade de dois ou mais critérios conflitantes no caso de soluções


insolúveis é o tema deste tópico. Pode acontecer que duas normas incompatíveis
tenham uma relação que se pode aplicar dois ou três critérios. Mas não é tão
simples, por exemplo, no caso de duas normas se encontrem numa relação que
sejam aplicáveis dois critérios, mas que a aplicação de um critério dê uma solução
oposta à aplicação do outro. Assim, o critério hierárquico prevalece sobre o
cronológico, o que tem por efeito fazer eliminar a norma inferior, mesmo que
posterior.

Além disso, o conflito entre critério de especialidade e critério cronológico


deve ser resolvido em favor do primeiro: a lei geral sucessiva não tira do caminho a
lei especial precedente. E no conflito entre o critério hierárquico e o de
especialidade, onde a solução dependerá do intérprete.

8. O DEVER DA COERÊNCIA

Por fim, Bobbio quer encerrar o capítulo discutindo se a regra de eliminar


antinomias é uma regra jurídica, e mais, a compatibilidade é uma condição
necessária para a validade de uma norma jurídica? Não, pois há casos em que não
existe nenhuma regra de coerência. A coerência não é condição de validade, mas é
sempre condição para a justiça do ordenamento.

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