Você está na página 1de 13

João Emiliano Fortaleza de Aquino

© EDUECE/CMAF
ISBN: 85-88544-12-1
1ª Edição: setembro de 2006

PUBLICAÇÃO/ PUBLISHED BY
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
EM CO-EDIÇÃO COM O MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA DA UECE

CAPA /GRAPHICS EDITOR


JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
Memória e
consciência
EDITORAÇÃO/DESKTOP PUBLISHING
JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
IMPRESSÃO/PRINTING
REPROGRAFIA DO CMAF
TIRAGEM/CIRCULATION
400 EXEMPLARES/COPIES histórica
x
Produzido com papel reciclado
Catalogação na publicação elaborada pela Bibliotecária Thelma Marylanda - CRB - 3/623
A657m Aquino, João Emiliano Fortaleza de
Memória e consciência histórica/João Emiliano Fortaleza de
Aquino. – Fortaleza: EdUECE, 2006. Prefácio
186 p. (Coleção Argentum Nostrum)
Texto em português. Tyrone Cândido

ISBN: 85-88544-12-1
Inclui Bibliografia.
1. Filosofia. 2.História. 3.Filosofia da história. 4.Teoria da
história. 5.Teoria crítica. I. Título.
CDD: 100

CMAF EdUECE
Av. Luciano Carneiro, n. 345 Av. Paranjana, n. 1700
Bairro de Fátima Campus do Itaperi
CEP 60.410-690 - Fortaleza - CE CEP: 60740-000 - Fortaleza - CE
Tel./Fax.: (85) 3101 2033 Tel.: (85) 3101 9893 - Fax.: (85) 3101 9603 Fortaleza
cmf@uece.br eduece@uece.br 2006
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
REITOR
Jáder Onofre de Morais
VICE-REITOR
João Nogueira Mota
PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Memória e
José Ferreira Nunes
CENTRO DE HUMANIDADES
Lena Lucia E. R. Figueiredo (Diretora)

consciência
EDUECE
Lucili Grangeiro Cortez (Diretora)
MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA
Maria Teresinha de Castro Callado (Coordenadora)

histórica
EDITORES
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso EDITOR
João Emiliano Fortaleza de Aquino Lucili Grangeiro Cortez

CONSELHO EDITORIAL CONSELHO EDITORIAL


Aylton Barbieri Durão (UEL-PR) Antônio Luciano Pontes
Eduardo Jorge Oliveira Triandopolis (UECE-CE) Elba Braga Ramalho
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE-CE) Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
Enéias Forlin (UNICAMP-SP) Francisco Horácio da Silva Frota
Francisco Evaristo Marcos (ITEP-CE) Gisafran Nazareno Mota Jucá
Francisco ManfredoTomás Ramos (UECE-CE) Jader Onofre de Morais
José Ferreira Nunes
Jan Gerard Joseph ter Reegen (UECE-CE)
José Henrique Leal Cardoso
João Emiliano Fortaleza de Aquino (UECE-CE) Jose Júlio da Ponte
José Luis Villacañas (Univ. de Murcia-Espanha) Josênio Camelo Parente
Lourenço Leite (UFBA) Lucili Grangeiro Cortez
Maria Luisa Ribeiro Ferreira (Univ. Lisboa-PT) Luiz Cruz Lima
Maria Teresinha de Castro Callado (UECE-CE) Manfredo Ramos
Marly Carvalho Soares (UECE-CE) Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Regenaldo Rodrigues da Costa (UECE-CE) Marcony Silva Cunha
Maria Salete Bessa Jorge
Sylvia Peixoto Leão Almeida (UECE-CE)
Selene Maia de Morais
Sumário

Prefácio ............................................................................ 5
Introdução ........................................................................ 9

PARTE I

1. Platão e Heródoto: filosofia, história e memória..........13


2. Da inteligência e da utilidade da história em Tucídides.....31
A Vilani Fortaleza, 3. A história pragmática em Políbios................................47
que me contou histórias.
Com o grande amor de sempre. 4. História e natureza humana em Maquiavel..................67

A Leônia Amaral, PARTE II


que fez da história um testemunho.
Com saudades inconsoláveis.
5. Tempo e linguagem em Santo Agostinho.....................85
A Tereza Rocha, 6. Lírica, reificação e memória em Baudelaire: um diálogo
que fez da história uma aposta. com Walter Benjamin..................................................117
Com a mesma admiração. 7. Imagem onírica e imagem dialética em Walter
Benjamin..................................................................135
A Jeanne-Marie
- esses textos tão gagnebinianos! - 8. Kierkegaard e Debord: o devir, a ambigüidade e o
que insistiu na importância desvio........................................................................161
da história e de contar histórias. Bibliografia........................................................................181
Esta obra foi composta pela Argentum
Nostrum em Garamond e Arial e
impressa em papel reciclado da Cia
Suzano na reprografia do CMAF em
setembro de 2006.
João Emiliano Fortaleza de Aquino

Quando os gregos daquele período consideravam


Tales um dos Sete Sábios, assim como ao legislador Sólon,
seu contemporâneo, expressa-se neste gesto uma nova
··················· 1 representação da sophia, que se apresentaria a partir de
então, como nos diz Vernant, como “sabedoria penetrada
Platão e Heródoto: filosofia, história e de reflexão moral e de preocupações políticas”.1 O que a
memória representação da phýsis expressa é a substituição, na
representação de mundo dos gregos, da antiga noção de
soberania, fundada na figura do basileus, governante e
···················· sacerdote, cuja palavra, expressão de um poder terreno e
divino, identifica-se com a realidade, para uma
A filosofia e a narrativa histórica nasceram, em representação agora fundada numa idéia de Justiça, díkē, e
menos de um século de diferença, nas cidades gregas. Ter de lei que se aplica universalmente a todos, nomos. A
isso em vista leva-nos a pensar uma série de pontos comuns experiência que, no entanto, subsiste e explica essa
entre elas. Antes de tudo, elas são fruto da polis, isto é, mudança na representação do mundo é, como dizia, a
dessa experiência cultural e política inaugurada nas cidades experiência da polis; é essa experiência que também funda a
gregas, a experiência com a palavra, com os discursos, com nova noção de sabedoria. Diz Vernant que, “de Sólon a
a argumentação. Jean-Pierre Vernant, em Mito e pensamento Clístenes, a cidade adquire, no decorrer do século VI, a
entre os gregos, num artigo em que discute a origem da forma de um cosmo circular, centrado na agorá, a praça
filosofia, radica-a justamente num conjunto de pública onde, semelhante a todos os outros, cada cidadão,
transformações que a civilização grega teria experimentado obedecendo e comandando alternadamente, deverá ocupar
com o aparecimento da polis no século VI antes de nossa e ceder todas as posições simétricas que compõem o espaço
era. Já aquele primeiro pensador reconhecido pela tradição, cívico, seguindo sucessivamente a ordem do tempo”.2 Esta
aquele que de modo inapropriado chamamos o primeiro é, ainda segundo Vernant, a experiência com a isonomia, a
filósofo – mas de quem Platão e Aristóteles buscaram igualdade na elaboração da lei e na submissão à lei, noção
distanciar-se –, isto é, Tales de Mileto, separara-se da que, nascida da experiência da cidade, irá se projetar para a
narrativa poética, mítica, assumindo como referência de ordem da phýsis, do kósmos único que engloba a natureza e,
explicação do mundo não mais a genealogia dos deuses ou a nela, a cidade. O mundo então já não é mais visto com base
sucessão dos fundadores das cidades e dos heróis, como o
_____
faziam os poetas, mas construindo uma forma de
1. J.-P. Vernant, “As origens da filosofia”. In: Mito e pensamento
pensamento que toma como referência a phýsis, a entre os gregos [1965]. Trad. br. Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e
“natureza”. Terra, 1990, p. 480.
2. Idem, ibidem.

14
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

na magia da palavra-realidade humano-divina do basileus, céu caísse sobre suas cabeças”.4


mas sim com base nas noções de justiça e lei, o que implica
uma ordem cósmica, um modo de ser inteligível do mundo. Um aspecto importante a que Hartog chama atenção
O que isto quer dizer é que a experiência da argumentação, na narrativa de Heródoto talvez expresse muito bem esse
da procura de motivos, explicações e justificações, clima intelectual comum presente na polis grega. Heródoto,
experiência esta que é das assembléias dos cidadãos, com não apenas é o autor da primeira narrativa grega em prosa
suas legislações e decisões, e dos tribunais, dos processos que chegou aos nossos dias, como observa Mário da Gama
judiciários, em suas aplicações das leis (universais) aos casos Kury na introdução à sua tradução da História de Heródoto,
(particulares), da inquirição das motivações subjetivas das mas é também, como diz Hartog, o primeiro a substituir o
ações e das causas dos acontecimentos fortuitos, todas essas Eu no dativo (em português, algo semelhante a “a mim”),
formas de experiências iriam, não apenas projetar uma nova como o faziam os poetas, que falavam inspirados pelas
representação do mundo, um novo hábito mental de como musas, pelo Eu no genitivo (isto é, “de mim”, ou melhor,
falar sobre o kósmos, de discutir sobre as atitudes humanas e “de Heródoto de Halicarnassos”). Essa mudança do Eu que
seu destino, mas também no próprio modelo de atividade narra, presente em Heródoto, marca sem dúvida uma nova
intelectual. “As regras do jogo político”, diz Vernant, “a experiência narrativa: a narrativa da historía. Esta fala na
livre discussão, o debate contraditório, o confronto das primeira pessoa traz a marca do debate contraditório, do
argumentações contrárias – impõem-se desde então como democrático e protagórico princípio subjetivo próprio às
regras do jogo intelectual”.3 assembléias e tribunais e, portanto, da natureza relativa,
eventual (não-metafísica) da narrativa histórica. Estas são –
Ora, se escutarmos o que diz François Hartog, não é digamos assim – suas condições de possibilidade históricas,
outra a origem das primeiras narrativas históricas, aquelas socialmente constituídas. Quero chamar atenção, contudo,
de Demócrito, de Hecateu de Mileto, de Heródoto de para o que me parece ser, em termos de concepção
Halicarnassos (ou Túrios), que não a experiência da cidade intelectual, um segundo fundamento histórico – e, portanto,
grega. Diz ele: “De modo mais amplo, entre as condições histórico agora num outro sentido, no de uma concepção
que possibilitam a escrita histórica, é preciso incluir a
aparição e a afirmação da cidade isonômica, isto é, de todo _____
o universo intelectual e os valores que a informam e 4. F. Hartog, “Como se escreveu a história na Grécia e em
exprimem. [...] A audácia de perguntar, de discutir, de Roma”. In: A história de Homero a Santo Agostinho. Trad. br. Jacyntho Lins
Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 17. F. Hartog parece
confrontar os pontos de vista, encontraram-na eles nessa retomar, neste texto, a tese de F. Chatelet (La naissance de l’histoire: la
experiência política inédita que fez comunidades restritas formation de la pensée historienne en Grèce. Paris: Les Editions de Minuit,
afirmarem a legitimidade de se auto-instituírem, sem que o 1962), que, por sua vez, adapta para a origem da narrativa histórica a
tese formulada por Jean-Pierre Vernant sobre a origem da filosofia (cf.
_____ Vernant, Origens do pensamento grego [1962]. São Paulo: Difusão Européia
3. Idem, p. 481. do Livro, 1972).

15 16
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

histórica da existência humana que, naturalmente, nasce polis é o que procurarei mostrar nas diferenças entre esta
daquelas mesmas condições culturais e práticas da polis. atividade intelectual narrativa fundada por Heródoto e a
filosofia, atividade intelectual outra fundada por Platão.
Lembro que, em sua obra sobre a origem da narrativa Neste momento, quero propor que essa concepção
histórica, F. Chatelet também concebe que o surgimento do histórica da existência humana, fundamento da narrativa
“espírito historiador”, do “pensamento historiador” tem histórica de Heródoto, manifesta-se na própria experiência
seu fundamento na experiência da polis grega e – ressalto – narrativa num novo modo de “ver”. O que eu quero dizer
na autocompreensão, essencialmente constitutiva daquela com isso mais exatamente? Relembremos de início a
experiência, do homem como “ser histórico”, que belíssima abertura de sua História:
experimenta suas palavras, decisões e ações como
Esta a exposição da investigação de Heródoto de
significativas e irreversíveis. Conforme sua análise, Túrio, para que nem os acontecimentos provocados
manifesta-se aí exatamente uma consciência do “destino pelos homens, com o tempo, sejam apagados, nem as
temporal do homem” e da “irreversibilidade do curso do obras grandes e admiráveis, trazidas à luz tanto pelos
tempo”, consciência da qual nasce a narrativa histórica de gregos quanto pelos bárbaros, se tornem sem fama;
Heródoto.5 Que esta concepção histórica da existência e, no mais, investigação também da causa pela qual
humana não seja a única possibilidade da experiência da fizeram guerra uns contra os outros (I, 1).6
_____ A palavra que quero chamar a atenção é,
5. Compreendendo que a história se constitui de um “devir [...] precisamente, “investigação” (i`stori,a, historía). Com efeito,
como revelação constante de novidades”, Chatelet assevera que: “Se o é essa a palavra-chave daquilo que, em seu gesto, Heródoto
homem tornou-se historiador, é que ele não pôde deixar – por seu irá doar para a tradição cultural do Ocidente, e que
próprio devir e pelo conteúdo efetivo de sua existência em um dado
momento desse devir – de se compreender como ser histórico”. Em
permitirá a Cícero, o romano, chamá-lo de “pai da história”.
outras palavras, deve-se a “um estatuto determinado da existência Historía significa, precisamente, “investigação”, “resultado
humana, que tem sua raiz em uma certa maneira para o homem de viver de uma indagação” ou ainda “relato, relatório do que se
e de considerar sua vida”. Enfim, se “há uma gênese do espírito investiga”. O seu verbo correspondente é historieîn:
historiador”, ela “tem sua raiz nos res gestae e no modo como estes investigar, relatar o que soube ou viu. Esse substantivo
últimos são ‘conduzidos’ e experimentados efetivamente pelos
homens”. (Cf. F. Chatelet, La naissance de l’histoire: la formation de la pensée
historía e esse verbo historieîn remontam a um outro
historienne en Grèce, pp. 19-20). Sobre a concepção do tempo histórico em substantivo mais antigo, que já aparece na poesia épica (por
Heródoto, cf. tb. P. Vidal-Naquet, “Temps des dieux et temps des exemplo, na Ilíada), que é hístor, a figura, nos processos
hommes” [1960]. In: J.-P. Vernant e P. Vidal-Naquet, La Grèce ancienne,
2. L’espace et le temps. Paris: Éditions du Seuil, 1991, pp. 135-163. Neste _____
artigo, Vidal-Naquet chama a atenção justamente para a noção 6. Heródoto, História. Trad. br., introd. e notas de Mário da
herodotiana de “tempo dos homens”, opondo-a tanto ao “tempo dos Gama Kury. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1988;
deuses” quanto à interpretação clássica de um “tempo cíclico”: “Tempo Storie, v. I. Trad. it., introd. e notas de A. I. D’Accini. Milano: RCS Libri,
humano, isto é, incerteza e liberdade”, diz Vidal- Naquet (p. 149). 2000 (Edição bilíngüe grego/italiano).

17 18
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

judiciários, tanto do árbitro, aquele que pode decidir (e intérprete de Mnēmosýnē, como o profeta, inspirado pelo
porque sabe decidir), quanto da testemunha, que sabe porque deus, o é de Apolo”.10 As afinidades entre o canto poético e
viu.7 Segundo o lingüista Émile Benveniste, hístor seria a profecia eram inúmeras na Grécia arcaica: ambas tinham
“aquele que sabe, mas, antes de tudo, enquanto aquele que sua origem na possessão divina, comuns à adivinhação e à
viu”.8 Ora, o uso de Heródoto do substantivo historía nos poesia. Ainda segundo Vernant, o “Aedo e [o] adivinho têm
sugere que ele vai relatar aquilo que “sabe, porque viu”, em comum o mesmo dom de ‘vidência’, privilégio que
embora também narre “o que se fala”, mas acrescentando, tiveram que pagar pelo preço de seus olhos. Cegos para a
portanto, que não sabe se é “verdade”; e irá nos contar o luz, eles vêem o invisível. Essa dupla visão age em particular
que sabe para que o tempo, khrónos, não apague os erga, os sobre as partes do tempo inacessíveis às criaturas mortais: o
grandes feitos dos helenos e dos bárbaros. que aconteceu outrora, o que ainda não é”.11

O que há de novo nesse gesto e em que ele expressa A esse propósito, lembremos os versos de Homero,
um novo modo de “ver”? Sabe-se que os gregos tinham a na Ilíada (2, 484-486):
memória em grande conta. Mnēmosýnē, Memória, era uma Dizei-me agora, Musas que a olímpica morada
das deusas que ocupava um lugar no seu Panteão e tendes,
ocupava, ali, um papel bastante especial. Segundo lembra pois vós sois deusas, presentes estais a tudo e tudo
Vernant, “a sacralização de Mnēmosýnē marca o preço que sabeis –
lhe é dado em uma civilização de tradição puramente oral enquanto nós a fama apenas ouvimos, nada
como o foi a civilização grega, entre os séculos XII e VIII sabemos...
a.C., antes da difusão da escrita”.9 Parece ser um indício
fundamental que Mnēmosýne seja irmã de Krónos, o tempo, Ou de Hesíodo, na Teogonia (93-96):
e de Ōkeanós. É mãe das Musas, as divindades que, em
coro, e presididas por Mnemosýne, “inspiram” os poetas. “A Tal é das Musas o sagrado dom para os homens.
Pois é pelas Musas e por Apolo, que atira longe,
poesia”, lembra Vernant, “constitui uma das formas típicas
Que nobres aedos há sobre a terra e citaristas –
da possessão e do delírio divinos, o estado de ‘entusiamo’ Como por Zeus há reis.
no sentido etimológico. Possuído pelas Musas, o poeta é o
Filhas de Mnēmosýnē, a Memória, e de Apolo, o deus
_____ da adivinhação, que inspira os adivinhos, as Musas dão aos
7. F. Hartog, A história de Homero a Santo Agostinho, pp. 50-51. aedos a “visão” que lhes permite, no seu canto, guardar a
8. E. Benveniste, O vocabulário das instituições indo-européias, II. lembrança do passado. A função dos aedos nos banquetes é
Trad. br. Denise Bottmann e Eleonora Bottmann. Campinas, SP:
Unicamp, 1995, pp. 174-175; F. Hartog, obra citada, p. 34. _____
10. Idem, p. 137.
9. J.-P. Vernant, “Aspectos míticos da memória”. In: Mito e
pensamento entre os gregos, p. 136. 11. Idem, ibidem.

19 20
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

de cantar o passado; é isso o que proporciona aos ouvintes um olhar horizontal, situado no tempo – tempo que tudo
prazer e esquecimento das aflições do presente. A “visão” destrói, e, por isso mesmo, ele quer resguardar dele, e do
que elas proporcionam é a visão do invisível, é um saber esquecimento que ele promove, os grandes feitos dos
“visto” daquilo que está fora do tempo histórico vivido e, homens. É esse desvio do olhar que lhe permite, assim,
portanto, que lhes permite falar do que não está no propor-se a fazer algo mais, que não cabiam aos aedos em
presente, mas no passado, como aos adivinhos lhes é seu transe poético: dar a aitía, a causa dos acontecimentos
permitido falar do futuro. Trata-se aqui, portanto, de uma que irá narrar.12
relação que eu chamaria de vertical com a memória, de uma
visão vertical, pois estabelecida numa memória ancestral Certamente podemos pensar um algo comum entre a
dada pela divindade. Os aedos não viram de fato o que narrativa histórica, a poesia e a filosofia. Assim como a
“vêem”, não conheceram realmente o que “lembram”. É poesia e a história, a filosofia – em seu nascedouro com
uma memória mística, ritualística. Platão – também se proporá a cumprir uma certa função de
memória. Jeanne-Marie Gagnebin propõe a seguinte relação
Ora, a historía, investigação-relato de Heródoto é de entre o papel tradicionalmente dado ao poeta na Grécia e o
outra natureza. O sentido mais fundamental de investigação papel do filósofo assumido por Platão:
que está em Heródoto é o de saber-ver por si mesmo, como o impulso a filosofar em Platão, em particular a
salienta François Hartog; mesmo quando relata o que escrever diálogos filosóficos apesar de suas inúmeras
ouviu, diz o que “vê” nisto que ouviu, isto é, diz o que julga críticas à escrita (Carta VII, Fedro) provém não só de
ser verdadeiro ou falso, mais e menos provável ou uma ‘busca da verdade’, meio abstrata, mas também
verossímil. Heródoto é aquele que viajou, que conheceu as da necessidade, ligada a essa busca, de defender a
civilizações bárbaras (expressão, de fato, um tanto insólita memória, a honra, a glória, o Kléos de um
para nós, acostumados a opor “civilização” e “bárbaros”), herói/mestre morto, Sócrates. [...] Nesse contexto,
que conheceu e assim pode falar dele, usando aqui uma podemos também dizer que Platão assume, em
expressão anacrônica, o “livro do mundo” (aquele que, dois relação ao mestre morto, a mesma função que cabia
mil anos depois Descartes iria opor ao conhecimento de ao poeta em relação aos heróis mortos: lembrar suas
façanhas e suas palavras para que a posteridade não
si)... Heródoto rompe, assim, com a “visão” dos poetas
(embora ainda se apóie neles, por exemplo, em Homero,
para falar da guerra de Tróia). A sua visão é agora, eu diria,
uma visão horizontal, visão do visível, duplamente visão-
testemunha e visão-árbitro, que, portanto, só assim, pode _____
falar na primeira pessoa, através do genitivo: “Esta a 12. Que nesta passagem não se entenda aitía no sentido mais
exposição da investigação de Heródoto de Túrio...” E, abstrato, mais intelectualizado, tal como aparece em Tucídides. Causa
precisamente aqui, opera um desvio fundamental do olhar: aqui diz muito mais de uma seqüência no fluxo dos acontecimentos; é,
portanto, uma causa acontecimental.

21 22
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

se esqueça dos seus nomes e de sua glória.13 poesia: oida é também o verbo usado por Homero na Ilíada
A essa identificação entre o poeta e o filósofo Platão é quando, ao invocar as musas, diz: i;ste te pa,nta, iste te panta
possível ajuntar uma outra, também relacionada com a (485), “vós... tudo sabeis”, ou melhor, “vós tudo sabeis,
memória. Trata-se do papel central que a anámnēsis, a porque tudo vedes”. Ora, a filosofia para Platão, toda ela,
reminiscência, ocupa na teoria do conhecimento de Platão.14 talvez possa, no sentido de sua teoria do conhecimento, ser
Este, como os poetas e Heródoto, pode dizer: “sei porque pensada como um auto do processo de rememoração, de
vi”; acrescentando: “e relembro”. Com efeito, tal como reminiscência, de anámnēsis do que outrora a alma teria
Platão diz metaforicamente em vários diálogos – Ménon, Fédon, contemplado – mas um “outrora” que não remete nem
Fedro, Teeteto... – o saber do filósofo é uma visão: pode remeter ao que está no tempo, pois o que está no
primeiramente uma visão, quando, livre do corpo, tempo é sensível, imagem das idéias. A memória aqui é
contempla os eîdē ou as idéas de Justiça, de Beleza, de também, tanto quanto a dos poetas, uma memória vertical:
Ciência; visão que depois, novamente em um corpo, uma memória que se estabelece na relação entre aquele que
relembra, por si só, num “diálogo silencioso e interior da está no tempo (o filósofo) e uma instância fora do tempo,
alma consigo mesmo” (Sofista, 263 e) – e é isto que para ele pois fora do mundo sensível, visível.
é prhónēsis, “pensamento” – por meio ou não de um diálogo
Eis aí uma surpreendente identidade entre a poesia
com outros.
tradicional e a filosofia no seu nascedouro; mas talvez
Os termos idéa e eîdos vêm do verbo oida, “eu sei”, um também uma primeira diferença fundamental entre a
saber ligado ao ver, e podem significar a imagem aparente, a representação da memória presente na teoria da anáminēsis
forma exterior das coisas, tal como são vistas pelos olhos de Platão e a memória a que Heródoto recorre. Do mesmo
corpóreos, mas também – e esse é o sentido que tem na modo que a representação que a poesia fazia de si mesma,
filosofia de Platão – a representação mental, o conceito. O ao remeter a uma visão que não é do corpo, mas a da alma,
interessante é que este verbo oida também está na origem Platão também se distancia do olhar horizontal de
do substantivo mais antigo hístor e do verbo historieîn, indício Heródoto. A “viagem” de Platão, tal como ele relata no
de um parentesco filológico entre a filosofia e a narrativa Fedro, uma viagem capaz de recolher aprendizados, não é no
histórica. Um parentesco filológico que podemos estender à tempo, pelas cidades, países e continentes estranhos, não é,
portanto, a experiência com o “bar-bar-bar” das línguas
_____ estranhas e com os maravilhosos costumes e feitos dos
13. J.-M. Gagnebin, “Platão, acho, estava doente”. III Simpósio bárbaros: é, metaforicamente, a viagem da alma “fora” do
Nacional de Filosofia Antiga: Filosofia e tradição clássica (Conferência), corpo, com aquilo de cuja natureza divina a alma também
mimeo.
participa; em outras palavras, é a viagem por um “país” em
14. Também esta é uma ilação proposta por J.-M. Gagnebin que a alma pode estranhamente contemplar o maravilhoso
(História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/Unicamp, das formas inteligíveis, sem, no entanto, falar ou ouvir ali
1994, pp. 3-4).

23 24
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

qualquer língua estranha, pois a alma, quando guiada pelo Assegurada a natureza racionalmente fundamentada
cocheiro-razão (lembremo-nos dessa alegoria no Fedro), fala de sua narrativa, Timeu pode, em conseqüência, incorporar
a mesma língua da Verdade, do Saber, do Belo e do Justo. a ela os deuses Ōkeanós e Téthys e, em seguida, Krónos e
Rhéia (Timeu, 40 e) como componentes da ascendência
Entre as diversas passagens nas quais, em seus divina. Ora, lembro que, no Crátilo e no Teeteto,16 Platão
diálogos, Platão fala da poesia (e nem sempre condenara a versão poética dessa ascendência como sendo
negativamente), há uma particularmente, no diálogo Timeu, solidária à visão heracliteana de que nada é permanente. No
na qual a diferença ali estabelecida entre o projeto de Teeteto, Sócrates diz que, quando Homero “se refere ‘ao pai
filosofia de Platão e a poesia pode também estabelecer uma de todos os deuses eternos, o Ōkeanós e a mãe Téthys’, dá
distinção mais nítida entre aquilo que Heródoto fez, com a entender que todas as coisas se originam do fluxo e do
sua História, e o que fez Platão com seus diálogos. Nesse movimento” (Teet., 152 e). E mais adiante: “Ōkeanós e
diálogo, Timeu, o personagem, apresenta uma nova Téthys, geradores do resto das coisas, são correntes d’água,
“cosmogonia”, que supostamente alguns sacerdotes e... nada é imóvel” (180 c-d). No Crátilo, podemos
egípcios teriam narrado a Sólon, o legislador (apresentado encontrar a seguinte passagem: “Heráclito afirma que tudo
ali como um poeta mais talentoso do que Homero e passa e nada permanece, e compara o que existe à corrente
Hesíodo). Esta nova “cosmogonia” tem uma característica de um rio, para concluir que ninguém se banha duas vezes
peculiar: ela é inteiramente coerente com a teoria das idéias, nas mesmas águas” (Crat., 402 a), questionando em seguida:
pois, como diz o Timeu, “se o mundo é belo e o demiurgo “Achas que pensava de maneira diferente de Heráclito
é bom, ele certamente contemplou o eterno (tò aídion quem atribuiu o nome de Rhéia e Krónos aos avós dos
éblepen)”; desse eterno, o kósmos é a imagem (29 a-b).15 nossos deuses? Ou acreditas ter sido por acaso que a ambos
Assim, Timeu apresenta a sua narrativa como sendo apenas foram dados nomes de cursos de água?” (402 b).
um “mito verossímil” graças à própria natureza do seu
objeto (o kósmos, que é necessariamente sensível); mas O que leva Platão a fazer, nesses diálogos, essas
assegura-se – com este recurso à teoria das idéias – de que relações entre Homero, Hesíodo e Heráclito? Ora, Ōkeanós
ela é distinta da narrativa poética, como antes no mesmo era, na antiga mitologia helênica, um rio-serpente que
diálogo Sócrates já o havia distinguido da classe dos poetas cercava completamente a terra, “imagem da indistinção e da
e dos sofistas (19 d/20 a). Sua narrativa, assim, não é uma indeterminação primordial”, segundo diz Junito de Souza
cosmogonia poética, mas uma cosmologia filosófica. Brandão. “Ōkeanós”, diz Ésquilo, em Prometeu acorrentado
_____
15. Platão, Timeu. Crítias. O segundo Alcibíades. Hípias menor. In: _____
Diálogos. Trad. br. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora Universitária 16. Platão, Teeteto; Crátilo. In: Diálogos, v. 9. Trad. br. Carlos
UFPA, 2001; Tutte le opere, v. IV. Trad. it. e notas de Umberto Alberto Nunes. Belém: Editora Universitária UFPA, 2001; Tutte le opere,
Bultrighini et al. Roma: Newton & Compton Editori s.r.l., 1997 (Edição v. I. Trad. it. e notas de Gino Giardini. Roma: Newton & Compton
bilíngüe grego/italiano). Editori s.r.l., 1997 (Edição bilíngüe grego/italiano).

25 26
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

(138-140), “sem jamais dormir, gira ao redor da terra Platão – talvez na cultura grega clássica como um todo, a
imensa...” Téthys é o “símbolo do poder e da fecundidade depender de como entendamos as referências que à água
feminina do mar”.17 A palavra Rhéia vem de rhóos, “corrente fazem Tales e Heráclito – o princípio da impermanência, da
d’água”, substantivo relacionado ao verbo rhéō, “fluir”, um instabilidade, da fluência temporal e ôntica. É justamente
verbo, portanto, também relacionada a água; e Kronos tem isso o que demonstram essas passagens do Crátilo, do Teeteto
sua origem em krênē, “nascente”, “fonte” – e, sabemos, era e do Timeu. Em última análise, Platão busca, por meio
para os gregos a personificação do tempo. Assim, na crítica destas alegorias, expor criticamente o ponto de vista
filosófica de Platão à poesia havia, antes de tudo, a crítica de poético-heraclitiano, que seria – segundo a interpretação
uma concepção de realidade que – como diz Sócrates no platônica – também o da sofística, com Protágoras (cf.
final de Crátilo e em várias passagens do Teeteto – Teeteto, 152 d/153 d; 160 d-e; 180 d/181 b), e que
impossibilita o conhecimento, pois nega a existência de uma conduziria ao relativismo e à impossibilidade de uma
realidade estável, permanente, eterna. Tratava-se, assim, de linguagem segura, universal. Trata-se, portanto, para Platão,
uma recusa a ver a realidade última no que existe no tempo, de pensar para além da movência do que está no tempo,
onde tudo é corrente e móvel como a água, onde tudo trata-se de conceber um fundamento para o pensamento e
nasce, com Téthys, e morre com Krónos, aquele que come para a linguagem que, sendo ele mesmo estável e eterno,
os próprios filhos. permita a estabilidade do logos.18

Chama a atenção nessas passagens o significado No Timeu, quando a ascendência dos deuses é
alegórico da água nos diálogos platônicos. No mito que admitida tal como existente na poesia hesiódica e homérica,
Timeu narra, diz-se que “sempre houve no passado e há de essa admissão inclui um ajustamento fundamental: os
haver no futuro numerosas e variadas destruições de deuses são – com base na contemplação do eterno –
homens; as mais extensas, por meio da água e do fogo, e as gerados pelo demiurgo divino; não são eternos, nem
menores, por mil causas diferentes” (Timeu, 22 b-c). Do indissolúveis, embora não sujeitos à morte, e devem –
mesmo modo, a narrativa que ele então reproduz pôde ser imitando o poder do demiurgo divino – criar as raças dos
guardada durante tanto tempo e, em conseqüência, pôde ser homens, as quais, assim, não seriam como a dos deuses
contada pelos sacerdotes egípcios a Sólon, porque o Egito
estaria a salvo das ameaças da impermanência e da _____
destruição: lá “a água jamais cai do alto para o campo... essa 18. Em “Athènes et l’Atlantide: Structure et signification d’un
mythe platonicien”, P. Vidal-Naquet oferece uma bela e inteligente
a razão de se conservarem entre nós as mais antigas análise de alguns textos políticos de Platão, confrontando-o
tradições” (idem, 22 d-e). A água representa na escrita de eventualmente com Heródoto, textos nos quais o filósofo opõe o
princípio da permanência, em termos políticos, ao da impermanência,
_____ alegoricamente representado pela água. (Cf. J.-P. Vernant e P. Vidal-
17. J. Brandão, Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis, RJ: Vozes, Naquet, La Grèce ancienne, 1. Du mythe à la raison. Paris: Éditions du Seuil,
1991. 1991, pp. 146-174).

27 28
Memória e consciência histórica João Emiliano Fortaleza de Aquino

(Timeu, 40 b-c). Este ajustamento, isto é, esta anterioridade conseqüência, é no tempo narrado. Pretende, assim, manter
ontológica do inteligível frente aos deuses, é inseparável de vivos no tempo os grandes feitos dos homens, impedindo
algo: a anterior criação do tempo, junto com o céu. que se tornem nulos, sem efeito, eksítēla, e sem fama, aklea.
Buscando construir o kósmos o mais possível à semelhança O ponto de partida de Heródoto, neste sentido, parece ser
do eterno, o demiurgo divino teria procurado fazer também o mesmo que Platão identifica – e recusa! – nos poetas, em
eterno o universo; na impossibilidade de a imagem ser o Heráclito, nos sofistas: como eles, ele também se situa
mesmo que o modelo, criou o tempo, khrónos, definido de incontornavelmente sob o que é perecível. Platão, ao
um modo muito bonito por Platão como a “imagem móvel contrário, move-se por um desejo do eterno, tò aídion. Essa
da eternidade” (eikô kinētón aiônos), uma “imagem eterna talvez seja a mais radical diferença, em seu nascedouro,
(aiônion eikona) que se movimenta de acordo com o entre a filosofia e a narrativa histórica.
número” (idem, 37 d-e-). Assim, sendo o tempo uma
existência permanente e co-pertencente ao kósmos
engendrado, é ele mesmo móvel e quantificável; é um todo,
do qual os dias, meses e anos são partes; ao contrário, o
eterno – da qual o tempo é a imagem móvel – apenas é,
estando, portanto, a salvo do movimento e do perecimento
do que se encontra no tempo. Não é difícil ver aí, nesta bela
definição do tempo, uma exposição cosmológica cujo
fundo ontológico é dado pela teoria das idéias. E, por isso
mesmo, a narrativa de Timeu, apesar de “verossímil” – pois
porta sobre o kósmos sensível, imagem do eterno como é o
tempo também criado e dele inseparável – é uma
cosmologia filosófica, pois parte, na verdade, não do que
está no tempo, do que é perecível e sensível, mas dos eídē.
É, neste sentido, para Platão, um lógos verdadeiro, “fixo e
inalterável” pois, em última análise, “expressa o que é
estável e fixo e visível com a ajuda da inteligência” (idem,
29 b).

Nada mais distante dessa narrativa filosófica, dessa


cosmologia filosófica, que aquela narrativa empreendida por
Heródoto. Sua historía diz do que aconteceu no tempo, do
que foi visto, falado e sabido no tempo, e, em

29 30

Você também pode gostar