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Considerações sobre a crítica de B.-C.

Han à ideia de uma ética do cuidado de si como


prática de liberdade de Michel Foucault

Paulo Junior Batista Lauxen

Resumo: Neste trabalho, de formato ensaístico, pretendemos analisar uma crítica


elaborada por Byung-Chul Han direcionada a Michel Foucault na obra Psicopolítica –
O neoliberalismo e as novas técnicas de poder, segundo a qual este último não teria
percebido que as chamadas “técnicas de si”, que ele supostamente pretendia que fossem
práticas de liberdade pelas quais se faria oposição a estados de dominação, seriam
apropriadas pelo regime neoliberal, tornando-se justamente o inverso daquilo, isto é,
técnicas de dominação. Seguindo esta indicação, tentamos argumentar que, embora a
crítica de Han seja problemática em alguns aspectos, ela é convincente na sua principal
afirmação, a saber, de que parece haver um “ponto cego da analítica do poder de
Foucault”, o qual seja a incorporação das técnicas de si pelo neoliberalismo.

A crise da liberdade

Em Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder o filósofo


coreano Byung-Chul Han explora a ideia de que no capitalismo contemporâneo, que
opera em lógica neoliberal, a maneira de governar, de conduzir as condutas dos sujeitos
seria uma psicopolítica, isto é, um tipo de governo que, ao invés de agir diretamente
sobre o corpo e o comportamento dos indivíduos, interfere em sua psique,
condicionando-lhes a própria vontade, o poder de escolher. Dessa maneira, decisões
tomadas aparentemente de maneira livre e autônoma seriam, na verdade, previamente
determinadas pela ação de uma série de dispositivos de poder1 (de vigilância, de
controle, de estímulo) que, de maneira muito sutil, atingiriam a interioridade dos
indivíduos (os pensamentos, os desejos, as necessidades) sem que eles percebessem,
condicionando o uso que eles fariam de sua liberdade. Portanto, para o autor, a
psicopolítica neoliberal interviria na psique de modo a incitar cada um a assumir certa
maneira de se comportar, de viver, enfim, certa constituição da subjetividade, porém
lhes dando a impressão de que estariam constituindo a si mesmos livremente.

1
Grosso modo, a noção de “dispositivo” remete ao conjunto de práticas heterogêneas que podem ser
discursivas (leis, opiniões, teorias e etc.) e não-discursivas (instituições, procedimentos burocráticos,
tecnologias e etc.) que capturam os sujeitos e conduzem suas condutas.
Interessa-nos particularmente esta relação paradoxal entre liberdade e coação
que se instala neste contexto. O texto inicia caracterizando o que o autor chama de
“crise da liberdade”, esta que seria a situação da contemporaneidade. Conforme ele,
hoje se verifica uma exacerbação da liberdade individual, entendendo que “Ser livre
significa estar livre de coerções.” (2018, p. 10). Hoje todo indivíduo seria em grande
medida livre de coerções. Mais precisamente, em função de um “excesso do próprio
capital” (idem, p. 13), isto é, da radicalização sobre os indivíduos da exigência de
multiplicação do capital, do aumento da rentabilidade, ter-se-ia instituído um estado de
coisas em que já não se mobilizaria a produtividade daqueles por meio de coerções
externas de natureza disciplinar (como, por exemplo, normatizações e violência) “[...]
que verga[m] as vontades e nega[m] a liberdade.” (idem, p. 25). Ao invés disto, tal
mobilização seria feita justamente removendo todas estas coerções e limitações, e
permitindo a cada um, ao menos à primeira vista, fazer pleno uso de sua liberdade.
Dessa maneira, o capitalismo contemporâneo se caracterizaria, de maneira inversa ao
precedente capitalismo industrial, não pelo dever disciplinar, mas pela liberdade de tudo
poder. Neste sentido, o autor escreve:

Hoje, acreditamos que não somos sujeitos submissos, mas projetos


livres, que se esboçam e se reinventam incessantemente. A passagem
do sujeito ao projeto é acompanhada pelo sentimento de liberdade. E
esse mesmo projeto já não se mostra tanto como uma figura de
coerção, mas sim como uma forma mais eficiente de subjetivação e
sujeição. (idem, p. 9)
Com a liberação de todo tipo de restrição, os sujeitos passariam a se entender
não mais como figuras assujeitadas, conformadas a exigências de obediência e
adequação, mas como “projetos”, como algo não determinado que, por isso, está aberto
para se inventar e se produzir livre e indeterminadamente. Dito diferente, sem ser objeto
de determinações externas, o indivíduo vê a si como algo ilimitado, isto é, para o qual
não há limites e que, por isso, pode ser qualquer coisa. Não obstante isto, Han entende
que esta aparente potência irrestrita acaba por se converter, paradoxalmente, em coerção
e impotência. Assim esta aparente liberação total seria apenas uma maneira diferente de
produção e sujeição das subjetividades, aliás, até mesmo mais infalível do que as
técnicas disciplinares, que implicam limitação da liberdade. Isto porque, conforme ele,
este indivíduo totalmente liberto não deixa de ser capturado pela exigência, pela
obrigação de multiplicação do capital. Mais precisamente, o que ocorre é que o regime
neoliberal, ao invés de fazer exercer essa obrigação como coerção, como ordem,
apresenta-a de maneira “afável”, sedutora, vinculando-a à “emoções positivas”
estimulantes (como, por exemplo, um curtir recebido no Facebook) das quais os
indivíduos se tornam “dependentes” (idem, p. 26 – 27). Embora de maneira muito sutil,
o neoliberalismo mobiliza eficazmente os indivíduos a certa conduta. Assim, o
indivíduo quer ser mais produtivo, mais rentável. Isto é, a obrigação de multiplicar o
capital é por ele interiorizada, no sentido de que se torna uma obrigação, um dever de si
para consigo.

O ‘eu’ como projeto, que acreditava ter se libertado das coerções


externas e das restrições impostas por outros, submete-se agora a
coações internas, na forma de obrigações de desempenho e
otimização. (idem, p. 9).
Totalmente livre, mas em débito para consigo, o indivíduo voluntariamente
passa a explorar a si mesmo em vista de aumentar sua rentabilidade, exigindo de si a
otimização de sua produtividade, de seu desempenho. Assim sua liberdade se converte
em coerção.

No que poderia ser uma tipologia foucaultiana das subjetividades, este sujeito se
constitui como empresário de si. Remetendo-se à “teoria do capital humano” em sua
análise do neoliberalismo no curso de 1979, O nascimento da biopolítica, Foucault
(2008, 310 – 311) chamou estes sujeitos de “empresários de si”, ou “empreendedores de
si”, no sentido de que, em resumo, assumem uma atitude segundo a qual se relacionam
consigo com base em uma lógica empresarial, isto é, de investimentos que visam lucros.
Ou seja, são sujeitos que tomam a si mesmos como um capital que deve ser gerenciado
segundo uma racionalidade econômica, investindo, por exemplo, no desenvolvimento
de certas aptidões em vista de aumentar sua capacidade de produzir mais capital. Para
Han (2018, p. 10), estes sujeitos acabam se tornando “sujeitos de desempenho”, no
sentido de que, relacionando-se consigo naqueles termos, acabam impondo a si mesmos
a necessidade de otimização, aprimoramento indefinido de seu desempenho físico e,
principalmente, cognitivo.

Com efeito, conforme sublinha Han (idem, 40), no contexto do capitalismo


contemporâneo, no qual a natureza das novas formas de produção é antes imaterial que
material (pense-se, por exemplo, na importância econômica da produção de conteúdos e
informação), o objeto principal da exigência de desempenho é a mente. O corpo, por seu
turno, cada vez mais liberado da produção material, torna-se “[...] objeto de otimização
estética [...]”, tanto no sentido de que os sujeitos são estimulados a desejar ser
fisicamente belos segundo os padrões correntes, quanto porque a beleza se torna fator
econômico, um capital que se pode fazer render (idem).

Segundo o diagnóstico do autor, porém, entre os efeitos desta lógica de


otimização, que incide principalmente sobre a psique, estão patologias como a
depressão, a ansiedade e o burnout (idem, p. 10). Com efeito, as voluntárias obrigações,
controles, monitoramentos, disciplinas do sujeito para consigo correspondentes à auto-
exigência de aumento de desempenho acabam por se transformar em auto-exploração,
de modo que cada um se torna um escravo sem senhor. Relação de dominação consigo
cujos sintomas são doenças psíquicas. Esta condição de coerção, de submissão, porém,
não é percebida pelo sujeito como tal. Ao invés de se reconhecer com alguém que é
dominado, reconhece-se como plenamente livre (idem, p. 26). Assim, segundo o
filósofo, o neoliberalismo funda uma nova maneira de explorar os indivíduos, mais
potente para aumentar a produtividade destes que as técnicas disciplinares: a
“exploração da liberdade”.

O problema das técnicas de si

Conforme Han (2018, p. 42 – 43, itálico nosso), porque Foucault supostamente


teria pensado a possibilidade de uma “ética de si” como algo que poderia ocorrer de
maneira desvinculada das técnicas de poder e de dominação, “[...] admite-se com
frequência que ele [Foucault] empreende uma ética de si que se opõe à técnica de poder
e de dominação.”. Ou seja, segundo o autor, uma interpretação corrente da obra
foucaultiana seria uma segundo a qual a chamada ética de si seria não apenas algo que
poderia ser exercitada independentemente de técnicas de governo dos outros e de
estados de dominação, mas também uma maneira de fazer oposição, de resistir às
técnicas de poder e de dominação. Partindo desta leitura, Han procura mostrar que
Foucault teria se equivocado a respeito da possibilidade de se opor à dominação por
meio de uma ética do eu.

A ética de si seria uma maneira peculiar de pensar a ética que Foucault, em suas
pesquisas a partir de 1980, teria localizado na antiguidade greco-romana. Muito
resumidamente, nela o indivíduo se constituiria como sujeito ético, como alguém que
age corretamente, mediante certa relação de cuidado de si para consigo, isto é, por meio
do chamado “cuidado de si”. Relação consigo que seria medida pela prática das
chamadas “técnicas de si”, que seriam
[...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não
somente se fixam regras de conduta, como também procuram
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma
obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo. (FOUCAULT, 1988, p. 14, apud HAN, 2018, p.
42).
Em sua leitura, Han enfatiza que a ética de si estaria estreitamente vinculada a
uma estética da existência, no sentido de que nela se trataria de produzir a si mesmo
como uma obra de arte – tanto no sentido de que isto envolveria alguma criatividade
artística, como no sentido de que o produto deste esforço seria algo belo – por meio de
todo um conjunto de técnicas pessoais e voluntárias pelas quais o sujeito agiria sobre si,
transformando, assim, seu modo de ser, sua subjetividade. Segundo ele, Foucault teria
pensado que pelas técnicas de si seria possível abrir um processo de subjetivação
autônomo, de maneira que os sujeitos poderiam se constituir de formas outras,
diferentes daquelas encetadas pelas técnicas poder e de dominação, isto na medida em
que as técnicas de si implicariam o exercício da liberdade, seriam práticas de liberdade.
Para Han (idem, p. 43), porém, no contexto do regime neoliberal isto seria algo
impossível e Foucault não teria se dado conta. Vamos nos ocupar mais detalhadamente
com esta crítica.

Para o autor, Foucault não teria percebido algo importante deste regime, a saber,
que a dominação, a coerção, a sujeição dos indivíduos ocorreria justamente na relação
do indivíduo consigo mesmo, em sua interioridade e não a partir de forças externas.
Mais precisamente, Foucault não teria percebido que

[...] o regime neoliberal de dominação se apropria completamente das


tecnologias do eu, nem que a otimização permanente de si como
técnica de si neoliberal não seja nada mais do que uma forma eficiente
de dominação e exploração. (HAN, 2018, p. 43, itálicos do autor). 2
No regime neoliberal as técnicas de si seriam justamente usadas a favor da
dominação, da sujeição, ao invés de serem possibilidades de resistência, de práticas de
liberdade, como supostamente Foucault teria pensado. Isto porque, na medida em que
no neoliberalismo os indivíduos estariam livres de coerções, limitações, disciplinas
externas, a dominação ocorreria a partir deles mesmos por meio de tecnologias de si em
vista da “otimização permanente de si”. Grosso modo, no capitalismo contemporâneo os

2
Han (2018, p. 43 – 44) matiza esta afirmação em nota de rodapé (nota 12), observando que Foucault
“intuiu” a possibilidade de que as técnicas de si pudessem ser fatores de dominação, porém não deu
suficiente atenção e, portanto, maiores desenvolvimentos a este aspecto, bem como não se referiu a esta
possibilidade pensando no neoliberalismo.
indivíduos estariam sofrendo coações fazendo justamente aquilo que alguém faria numa
ética de si: voltar-se voluntariamente sobre si mesmo por meio de certas práticas em
vista de modificar seu modo de ser. A liberdade para se autoconstituir, porém, num
contexto marcado pela exacerbação da exigência de multiplicação do capital, converte-
se em submissão em relação a si mesmo na forma de autoexploração. As técnicas de si,
dessa maneira, tornam-se meios pelos quais cada um explora a si e, portanto, assujeita a
si, em vista de maior rentabilidade – e não meios de exercitar a liberdade, como teria
pretendido Foucault. Esta a análise crítica que Han faz do suposto projeto foucaultiano.

Parece-nos, porém, que esta análise é problemática em alguns aspectos. Em


primeiro lugar, ao elaborar sua crítica, Han não considera que o sujeito de desempenho
do regime neoliberal é algo muito diferente do sujeito ético da ética de si, embora em
outros momentos mostre que esteja consciente disto. Enquanto o primeiro usaria de
técnicas de si para modificar a si segundo parâmetros, em última análise, estritamente
econômicos, o outro, diferentemente, assumiria critérios estéticos e, sobretudo, éticos –
mas não econômicos. Conforme ele mesmo escreve, mesmo o objetivo estético do
sujeito de desempenho é economicamente determinado: “Os termos sexy e fitness
tornam-se recursos econômicos que devem ser multiplicados, comercializados e
explorados.” (HAN, 2018, p. 40, itálicos do autor). Assim, mesmo que se pudesse em
algum sentido falar de uma “cultura de si” na contemporaneidade, tratar-se-ia de uma na
qual, ao invés de se pautar em um “princípio de racionalidade moral”, como a que
Foucault (2018, p. 162) identifica na antiguidade, pautar-se-ia em um princípio de
racionalidade econômica. Em suma, mesmo que seja acertada a afirmação de que o
neoliberalismo incorpora técnicas de si e que isto produz estados de dominação, tais
técnicas são algo diferente, ao menos em seu conteúdo, daquelas de uma ética de si tal
como as que Foucault buscou estudar. O que importa reter a este respeito é que o que
Foucault estaria chamando de “técnicas de si” e caracterizando como práticas de
liberdade é algo diferente do que Han está chamando de “técnicas de si” e
caracterizando como práticas de poder e de dominação. Esta imprecisão conceitual torna
sua crítica problemática. Isto porque, conforme o próprio Han, é apenas na medida em
que as técnicas de si são função do econômico, isto é, devem servir para multiplicar
capital, que elas produzem dominação. Ora, as técnicas de si tal como Foucault as
entende não são função do econômico, mas do ético, isto é, devem servir para a conduta
moral. Assim, se Foucault não percebeu que técnicas de si poderiam ser técnicas de
dominação, isto se deve simplesmente ao fato de que ao estudá-las, estudava um tipo de
técnicas de natureza ética que, por isso, não poderiam implicar dominação. Ou seja,
mesmo que as técnicas que Han diz ter localizado no neoliberalismo produzem
dominação, é preciso considerar que as técnicas nas quais Foucault esteve interessado
não foram estas, mas outras, de tipo ético e que não produziam dominação. Mesmo
assim, isto coloca um problema a Foucault. Não teria sido esta, então, sua falta: não ter
notado este outro tipo de técnicas de si, que Han notou? Voltaremos a este problema
depois.

Seja como for, como vimos, Han parece entender que Foucault teria pretendido
que as técnicas de si (de tipo ético) oportunizariam fazer oposição a estados de
dominação. Esta leitura, porém, é equivocada, como vamos tentar mostrar na sequência.
Além disso, o argumento do autor para sustenta-la é insatisfatório. Comecemos por este
segundo aspecto.

Han argumenta em favor daquela interpretação, em primeiro lugar, afirmando ad


populum que é algo que “admite-se com frequência” (HAN, 2018, p. 43). Ora, que uma
interpretação seja frequente não a torna, apenas por isso, correta. Seria preciso remeter à
obra de Foucault, indicando que, efetivamente, o filósofo teria pensado naqueles termos.
Han o faz, porém, citando uma passagem que não corrobora sua leitura:

Talvez tenha insistido demais no tema da tecnologia de dominação e


poder. Estou cada vez mais interessado na interação entre si e os
outros [...], a história do modo em que um indivíduo age sobre si
mesmo, isto é, na tecnologia do eu. (FOUCAULT, 1990, p. 61, apud
HAN, 2018, p. 43).
O trecho, com efeito, não ajuda o autor. Diferente disto, apenas indica uma
mudança de interesse no objeto de pesquisa do filósofo: ao invés de estudar as técnicas
de dominação e poder, estudar as técnicas de si. Neste trecho Foucault não fala que as
técnicas de si servem contra técnicas de dominação. Fala em fazer uma história das
técnicas de si, saber como elas se constituíram em outras épocas. Portanto, os elementos
que Han oferece para justificar sua leitura são deficientes. Mas, mesmo que Han tenha
argumentado mal, Foucault não teria efetivamente pensado aquilo?

Antes de tentar responder esta questão, é preciso ter claro que o texto de Han é
um pouco ambíguo. A rigor, ele não afirma que Foucault teria pretendido usar hoje,
contra estados de dominação atuais, as técnicas de si antigas que teria encontrado em
suas pesquisas. O que ele escreve, efetivamente, é “[...] que ele [Foucault] empreende
uma ética de si que se opõe à técnica de poder e de dominação.” (HAN, 2018, p. 43).
Aquela ideia, de atualizar a ética de si antiga e, portanto, as técnicas de si antigas contra
estados de dominação contemporâneos, porém, fica subentendida no texto de Han.
Considerando esta ambiguidade, vale a pena explorar também esta questão, isto é, se
Foucault não teria considerado a possibilidade de uma ética de si na contemporaneidade
como meio de resistência aos atuais estados de dominação.

Dos elementos que Han nos oferece nos trechos citados, como vimos, não se
pode depreender que Foucault teria pensado que técnicas de si (de qualquer tipo) seriam
um meio de oposição à dominação e nem que ele teria alimentado um interesse político
contemporâneo em tais técnicas. Seria preciso remeter à obra do filósofo. Parece-nos,
porém, que naquilo que Foucault disse e escreveu, diferentemente do que Han parece
sugerir, depreende-se que o filósofo não afirma que por uma cuidado de si, por técnicas
de si de qualquer tipo se faria oposição à dominação (isto que está em pauta na objeção
de Han, vale insistir), bem como que ele foi muito reticente no que concerne à
possibilidade de atualizar na contemporaneidade a ética de si tal como praticada na
antiguidade (isto que fica implícito no texto de Han).

Comecemos pelo segundo aspecto. No curso de 1982, A hermenêutica do


sujeito, Foucault identifica que a partir da modernidade o antigo cuidado de si e suas
técnicas de si foram não apenas objeto de desinteresse, mas também de desqualificação,
rebaixamento. Na primeira aula do curso, são exploradas duas possíveis razões pelas
quais isto teria ocorrido, uma moral e outra epistêmica. Em primeiro lugar, grosso
modo, a moralidade moderna seria uma que cobraria, ao invés do cuidado de si, a
renúncia em relação a si (como nas éticas cristãs, por exemplo) ou, ao menos, a “[...]
obrigação para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a
pátria, etc.” (FOUCAULT, 2018, p. 14). Desse modo, uma ética de si, que implica em
fórmulas como “retirar-se em si mesmo”, “buscar deleite somente em si”, “prestar culto
a si mesmo” e etc., ainda que originariamente estivesse diretamente vinculada a “morais
extremamente rigorosas”, isto é, com uma aguda preocupação moral com os outros,
hoje seria interpretada “[...] como uma espécie de desafio e bravata, uma vontade de
ruptura ética, uma espécie de dandismo moral, afirmação-desafio de um estádio estético
e individual intransponível.”3 (FOUCAULT, 2018, p. 13 - 14). Ou seja, de um ponto de
3
Frédéric Gros, em nota (46), esclarece as referências que Foucault teria em mente nesta passagem: o
“dandismo moral” remeteria ao “êthos baudeleriano” e o “estádio estético” ao “[...] tríptico existencial de
Kierkegaard (estádios estético, ético, religioso), sendo a esfera estética [...] a do indivíduo que, numa
vista moral, uma ética de si, baseada no cuidado de si e, por sua vez, em técnicas de si,
seria entendida hoje não como uma solicitação à conduta moral, como fora entre os
antigos, mas ao egocentrismo, ao individualismo, a uma atitude egoísta de satisfação de
interesses pessoais e de completa negligência aos interesses dos outros. Por esta razão,
assim entende o filósofo, de uma perspectiva moral uma ética de si seria improvável a
partir da modernidade.

Em segundo lugar, teria ocorrido na história do pensamento, a partir do chamado


“momento cartesiano”, uma radical alteração no entendimento da relação entre sujeito e
verdade, algo que teria implicações importantes sobre o cuidado de si. Para explicar
isto, Foucault (idem, p. 15) distingue esquematicamente a filosofia moderna e a filosofia
antiga, chamando-as respectivamente de “filosofia” e de “espiritualidade”. Grosso
modo, na espiritualidade a relação entre sujeito e verdade seria mediada por um
complexo processo de preparação, de exercitação do sujeito, no sentido de que seria
condição para ele acessar a verdade a transformação do seu modo de ser, isto que seria
possível pelo cuidado de si, pelas técnicas de si. Além disso, entender-se-ia que o
próprio acesso à verdade produziria um “efeito de retorno” sobre o sujeito,
transformando-o, transfigurando-o em seu ser (idem, p. 16). Na relação com a verdade,
portanto, estaria implicada a transformação do modo de ser do sujeito. A partir da
modernidade, de maneira muito diferente, a relação entre sujeito e verdade é, em certo
sentido, imediata, na medida em que para o acesso à verdade não é necessária a
mediação de práticas e etc. O sujeito já não precisa transformar a si, mas apenas
executar um “ato de conhecimento”, cuja natureza é, grosso modo, apenas cognitiva, no
sentido de que envolve apenas certa estrutura e certos processos de pensamento, cujas
condições e limites, aliás, seriam previamente determinados por uma teoria do
conhecimento (idem, 18). Além disso, ao invés da transformação do seu modo de ser, o
interesse do sujeito moderno pela verdade se resumiria a um “[...] acúmulo instituído de
conhecimentos ou [...] benefícios psicológicos e sociais [...]” (idem, p. 19). Ou seja, do
ponto de vista da relação entre sujeito e verdade, a partir da modernidade não haveria
lugar para cuidados de si, técnicas de si. Então, na medida em que uma ética do eu é
incompatível com o quadro epistêmico moderno, também por este motivo, ela seria
improvável a partir da modernidade. Disto o que importa para nós reter é que Foucault
claramente estava consciente dos limites de uma pretensa atualização da ética do eu na

busca indefinida, sorve os instantes como se foram átomos precários de prazer [...].” (FOUCAULT, 2018,
p. 23).
modernidade. Assim, a afirmação que fica implícita na crítica de Han, a lembrar, que
Foucault teria alimentado a possibilidade de atualizar na contemporaneidade a ética de
si tal como praticada na antiguidade, é problemática.

Voltemos agora ao outro aspecto, a lembrar, que para Foucault as técnicas de si


seriam meios para a liberação da dominação. Em entrevista de 1984 o filósofo foi
questionado precisamente a este respeito. Em resposta, Foucault (2004) esclarece, em
primeiro lugar, o que entende por “dominação”, por “estados de dominação”. Em
resumo, em conformidade com sua compreensão acerca da ideia de poder4, um estado
de dominação não é uma ocasião em que o indivíduo estaria destituído de uma suposta
liberdade essencial que, fora da dominação, seria pura, plena e total. Ao invés disto,
estados de dominação são ocasiões em que as relações de poder estão cristalizadas,
fixas, isto é, em que as possibilidades de cada um fazer uso de sua liberdade estão rígida
e unidirecionalmente determinadas. Dessa maneira, fazer oposição e eventualmente se
liberar de estados de dominação significa flexibilizar, dar mobilidade, permitir outras
possibilidades às relações de poder. Dito de outra forma, significa abrir a possibilidade
de que as partes implicadas numa relação de poder possam resistir ao governo da outra
sobre si. Com base neste entendimento, para Foucault (2004, p. 266 – 268) as técnicas
de si não seriam aquilo que flexibilizaria tais relações, mas, ao contrário, teriam como
condição de possibilidade relações flexíveis. Dessa maneira, num estado de dominação
uma ética do eu seria impossível. Logo, não seria ela um fator de liberação da
dominação. Considerando isto, parece que Han (2018, p. 43) erra ao escrever “[...] que
ele [Foucault] empreende uma ética de si que se opõe à técnica de poder e de
dominação.”. Antes de tomar por encerrada a análise deste aspecto da crítica de Han,
porém, cumpre esclarecer melhor como Foucault pensa a relação entre o cuidado de si e
os estados de dominação.

Em primeiro lugar, importa sublinhar que a ética do eu é uma ética baseada no


cuidado de si e não no cuidado do outro. Isto não significa, porém, que se trata de uma
proposta fundada no egoísmo ético. Ao invés disto, o filósofo entende que o cuidado do
outro está estreitamente vinculado ao cuidado de si, no entanto, grosso modo, como uma
consequência do cuidado de si, sendo o si mesmo o mais fundamental. Para Foucault

4
Para ele o poder deve ser entendido como “relações de poder”, estas que são “[...] jogos estratégicos
entre liberdades – jogos estratégicos que fazem com que uns tentem determinar a conduta dos outros, ao
que os outros tentam responder não deixando sua conduta ser determinada ou determinando em troca a
conduta dos outros [...]” (FOUCAULT, 2004, p. 286).
(FOUCAULT, 2004, p. 273 – 274), esta ênfase e primazia do si mesmo não abre
margem para uma “absolutização do cuidado de si”, para um “[...] amor exagerado a si
mesmo que viria a negligenciar os outros ou pior ainda, a abusar do poder que se pode
exercer sobre eles.”. Ao contrário disto, ele entende que o cuidado de si seria mesmo
uma maneira de evitar estados de dominação de uns em relação aos outros – ainda que
não de fazer resistência à dominação já instalada, bem entendido. Em resumo, a ideia é
a de que alguém apenas abusaria de seu poder sobre os outros porque não cuida de si.
Com efeito, é neste sentido que o filósofo entende que a ética do cuidado de si é uma
prática da liberdade, a saber, como uma maneira pela qual o sujeito faz um certo uso,
pratica de certa maneira sua liberdade, a saber, um uso ético.

Remetendo-se aos antigos, ele explica em primeiro lugar que ser livre, poder
fazer uso da própria liberdade significa “[...] não ser escravo (de uma outra cidade,
daqueles que o cercam, daqueles que o governam, de suas próprias paixões).” (idem, p.
269). Apenas tendo esta condição de não escravidão, de liberdade, ou seja, de relações
de poder suficientemente flexíveis como pressuposto, alguém poderia cuidar de si: “um
escravo não tem ética.” (idem, p. 271). Assim, o cuidado de si seria uma certa maneira
de fazer uso desta liberdade, uma maneira ética de praticar a liberdade. Isto é,
relacionando-se consigo por meio de técnicas de si alguém exercitaria uma “prática
refletida da liberdade”, isto que, conforme Foucault (idem, p. 268 – 269), constituiu a
ética na Antiguidade. Portanto, na medida em que alguém que cuida de si faz um uso
ético de sua liberdade, este alguém qualifica eticamente as relações estratégicas entre
liberdades que estabelece com os outros. Dito diferente, quem cuida de si mantêm
relações sociais eticamente mediadas. É neste sentido que, embora se trate de cuidar de
si, o outro está implicado neste cuidado. É também neste sentido que estados de
dominação são evitados pela ética do eu – esta que, porém, cumpre insistir, pressupõe
ser livre, não ser dominado.

Portanto, a ideia do cuidado de si tem importantes implicações políticas. Com


efeito, os antigos entenderiam que um indivíduo que cuida de si teria o necessário
autodomínio de seus desejos, paixões, fantasias para, no uso de sua liberdade, não
querer dominar os outros no exercício do poder político: “É o poder sobre si que vai
regular o poder sobre os outros.” (idem, p. 273). Esta seria a função política do cuidado
de si na antiguidade, isto é, possibilitar um tipo de governo no qual quem governa,
quem deverá determinar a conduta dos outros, constituiu a si mesmo eticamente e, dessa
maneira, governa os outros como convém, sem abuso no uso do poder. Neste sentido
apenas Foucault estaria pensando que a ética do eu, as técnicas de si se oporiam ao
abuso de poder, à dominação, isto é, como uma maneira indireta de prevenir isto. Ou
seja, ao invés de entender que as técnicas de si oportunizariam um terreno de luta e de
liberação contra a dominação, como sugere Han, para Foucault elas seriam, no melhor
dos casos, uma maneira de evitar tais estados antes que chegassem a se instalar.

E no que concerne à ideia que fica implícita no texto de Han, a lembrar, de que
Foucault teria pretendido atualizar a ética de si antiga contra estados de dominação
contemporâneos, não seria este, então, o sentido de sua afirmação? Isto é, o que Han
pretendia dizer não seria que Foucault, considerando a função política do cuidado de si
na antiguidade, estaria pretendendo um novo pensamento político para a
contemporaneidade, baseado na ética do eu, e que evitaria estados de dominação?
Mesmo que fosse este o sentido da afirmação de Han, porém, ele teria se equivocado.
Com efeito, quando questionado a este respeito na entrevista de 1984, Foucault (idem,
p. 280) claramente diz que “[...] não avancei muito nesta direção [...]”, embora
reconheça ser interessante “[...] verificar o que é possível fazer com tudo isso na
problemática política atual.”. Desconfia, porém, “[...] que parece que a questão do
sujeito ético é alguma coisa que não tem muito espaço no pensamento político
contemporâneo.” (idem). Portanto, o interesse de Foucault pelo cuidado de si não foi,
definitivamente, o de pensar uma ética de si como uma solução para os estados de
dominação contemporâneos, inclusive, portanto, aos encetados no regime neoliberal.

Voltemos agora mais uma vez ao que Han (2018, p. 43, itálico do autor) escreve,
mas focalizando outro aspecto: “Ele [Foucault] não reconhece que o regime neoliberal
de dominação se apropria completamente das tecnologias do eu [...]”. Embora isto
fique subentendido, considerando o que Han havia escrito antes, aqui não está em jogo a
afirmação de que Foucault teria pretendido fazer da ética do eu uma forma de
resistência ao regime neoliberal. A rigor, o que está sendo dito é que no neoliberalismo
as técnicas de si seriam não uma prática de liberdade, como pretendera Foucault, mas
práticas de dominação e – esta sua crítica – que o filósofo não teria percebido isto.

Conforme já discutido, Foucault, quando se refere às técnicas de si, não está


pensando no regime neoliberal, mas na antiguidade greco-romana, contexto em que
eram práticas de liberdade, razão pela qual, obviamente, não pensa que poderiam ser
práticas de dominação. A questão que Han coloca, porém, e que efetivamente parece ser
um problema em Foucault, é a de que este, em sua análise do neoliberalismo, não notou
que nele surgem técnicas de si de um novo tipo que, diferentemente das técnicas
antigas, são usadas como técnicas de dominação. Neste nível da crítica, obviamente,
está pressuposto que é verdade que no regime neoliberal novas técnicas de si são
usadas para dominação. Isto estará correto, de modo que, de fato, Foucault não viu algo
importante no neoliberalismo? Han convincentemente diz que sim. Partindo de algumas
indicações do próprio Foucault, vamos analisar alguns elementos da argumentação de
Han neste sentido.

Mesmo que, pelos motivos expostos, a reabilitação da ética de si antiga seja


improvável a partir da modernidade, Han nos leva a pensar que o regime neoliberal
poderia dela se apropriar ao menos em sua forma, ajustando-a conforme a lógica do
capital, porém, esvaziando-a de seu conteúdo ético. Na verdade, o próprio Foucault faz
notar que hoje o cuidado de si pareceria “[...] uma vontade de ruptura ética, uma espécie
de dandismo moral, afirmação-desafio de um estádio estético e individual
intransponível.” (FOUCAULT, 2018, p. 13 - 14). Ora, não são estas características do
regime neoliberal? Assim interpretado, não parece que o cuidado de si seria muito bem
recepcionado em nossa época, em que se verifica justamente “uma vontade de ruptura
ética”, “uma espécie de dandismo moral”, “um estádio estético e individual
intransponível”? Com efeito, parece-nos que o sujeito do desempenho poderia querer
fazer uso de certos exercícios que, conforme vimos, não obstante originalmente
tivessem uma finalidade ética, seriam reajustados com vistas à otimização de si. O
próprio Foucault concebe que existiriam cuidados de si distintos entre si que se
diferenciariam ao ocupar “lugares diferentes”, não obstante mantivessem uma mesma
“forma”, como é o caso, por exemplo, do cuidado de si do “filósofo” que seria diferente
do cuidado de si do “homem livre” (FOUCAUL, 2018, p. 279). Ora, se é possível
pensar que o mesmo cuidado se diferenciaria em função do lugar onde seria exercitado,
não poderíamos pensar um cuidado de si exercitado no lugar do mercado, que seria o
cuidado de si do sujeito de desempenho? Desse modo, enquanto no cuidado de si antigo
estaria implicado o cuidado do outro, evitando estados de dominação, no regime
neoliberal o cuidado de si ocuparia um lugar no qual se torna altamente individualizado,
egoísta, absolutizando-se e, dessa maneira, arriscando se tornar abuso de poder sobre
outros, mas sobretudo dominação sobre si mesmo.
Conforme mostra Han (2018, p. 45 – 48), entre os elementos característicos da
psicopolítica neoliberal, é particularmente importante a exigência, assumida pelo sujeito
de desempenho, de positividade, de ausência de negatividade, de limitações, bloqueios,
fraquezas, imperfeições que colocariam limites à otimização de si que neste regime se
pretende ser ilimitada. Neste sentido, Ramos (2016, p. 251), remetendo-se a Marín-Diaz
(2015), observa que esta exigência é hoje veiculada principalmente em discursos de
autoajuda, bem como está estreitamente vinculada ao que seria um cuidado de si em
regime neoliberal:

Nesses discursos, as características centrais que compõem as


literaturas de autoajuda podem ser pensadas por questões como: Quem
sou eu, como posso me conhecer? Conhecendo-me, como posso me
aprimorar? Aprimorando-me, como consigo ser bem-sucedido e feliz?
Isto é, a literatura de autoajuda, de um modo geral, postularia como objetivos a
serem buscados o sucesso e a felicidade, que, no contexto do capitalismo
contemporâneo, são geralmente significados em termos econômicos, um “[...] sucesso
mercantil quantificável.” (HAN, 2018, p. 45). Alcançar isto, no entanto, pressuporia,
que o indivíduo conhecesse a si mesmo, principalmente seus limites, bloqueios,
incapacidades, defeitos, vícios e etc. Com base nisto, por sua vez, seria preciso operar
um cotidiano e disciplinado trabalho de si sobre si que é um trabalho de auto-
aprimoramento e que incluiria todo um conjunto de práticas pelas quais se buscaria
transformar a si, constituir-se diferentemente. Mudança esta que, na lógica da
otimização de si, significaria, em suma, remover de si os elementos impeditivos do
sucesso e, de outro, aumentar o desempenho de si, pelo aprimoramento ou conquista de
novas capacidades, por exemplo.

O próprio Han (2018, p. 83 – 85) analisa a atual necessidade do conhecimento


de si, entendendo-a como um elemento do que poderia ser uma atualização do cuidado
de si pelo neoliberalismo. Conforme destaca Foucault (2018, p. 6), na tradição antiga de
filosofia a prescrição “conhece-te a ti mesmo” seria uma “[...] aplicação concreta,
precisa e particular [...]” do cuidado de si. Portanto, seria uma prática fundamental da
ética de si. Cuidar de si imediatamente implicaria conhecer a si. Han (2018, p. 84) toma
a “publicatio sui” de Tertuliano como um exemplo deste exercício do conhecimento de
si. Tratar-se-ia, neste caso, de tomar notas, fazer registros sobre si (sobre o que se fez no
dia, os erros que se cometeu, por exemplo) em vista de saber sobre si e se se estaria
efetivamente vivendo em conformidade com certa verdade (os preceitos morais da
escola filosófica a qual se estaria vinculado, por exemplo). É um exercício, portanto,
atrelado a uma verdade. A verdade à qual as práticas de si, incluindo o conhecimento de
si, se vinculam é, ao mesmo tempo, a verdade sobre o eu e a verdade segundo a qual se
busca constituir este eu, segundo a qual alguém busca viver, conduzir a si mesmo. Ou
seja, conforme enfatiza Foucault (2004, p. 270), o vínculo entre tais práticas e a verdade
é de ordem fundamentalmente ética. Se alguém busca conhecer a si é, em resumo, para
se conduzir eticamente em relação aos outros.

De maneira semelhante, embora em um sentido completamente distinto, o


sujeito do desempenho também estaria particularmente preocupado com o
conhecimento de si, em fazer registros sobre si:

O corpo é equipado com sensores que registram dados


automaticamente. São medidos a temperatura corporal, os níveis de
glicose no sangue, a ingestão e o consumo de calorias, os
deslocamentos ou os níveis de gordura corporal. [...] Estados de
ânimo, sensações e atividades cotidianas também são registradas.
(HAN, 2018, p. 83)
Diferentemente do conhecimento de si antigo, porém, trata-se aqui de fazer
mensurações, quantificando a si mesmo. Assim, postula-se a existência de um eu cuja
inteligibilidade se alcança em termos quantitativos: “O lema do quantified self é: Self
knowledge through numbers (‘autoconhecimento através dos números”).” (idem, p. 84,
itálico do autor). Capturado pelo fenômeno contemporâneo que Han (idem, p. 78 – 80)
chama de “dataísmo”, isto é, a ideia de que para o acesso à verdade bastaria o
conhecimento de uma quantidade suficiente de dados, a técnica de registro e exame de
si significa fazer o levantamento e a análise de dados quantitativos relativos ao próprio
desempenho.

Para Han (idem, itálico do autor), porém, este conhecimento de si baseado em


dados numéricos não se constitui como verdadeiro conhecimento, na medida em que é
vazio de significado: “Os números não contam nada sobre o eu. Não há narrativa.”. Isto
é, estes dados, ao invés de conhecimento, são apenas informação que, na melhor das
hipóteses, informa sobre como as coisas estão dispostas, mas não o por quê de elas
estarem assim. Falta aos números “[...] o começo e o fim de um processo [que] formam
uma conexão com sentido, uma unidade doadora de sentido.” (idem, p. 97). Isto é, falta
ao acúmulo de dados sobre si um nexo entre eles que permitiria conceber um conteúdo
dotado de sentido. O eu se torna algo insignificante, no sentido de que numa apreciação
quantitativa é completamente desprovido de significado.

Além de este “conhecimento” de si ser esvaziado de sentido, é também


esvaziado de qualquer conteúdo ético. Diferente do exercício antigo, por ele não se trata
de, tendo como referência certa verdade, buscar viver um modo de vida ético. Trata-se,
ao invés disto, de uma técnica de voluntario monitoramento, aferição, quantificação de
si mesmo. O eu, assim, passa a ser fiscalizado, avaliado e controlado cotidianamente.
Neste contexto se “[...] esvazia o automonitoramento (self-tracking) de qualquer ética e
verdade e o transforma em mera técnica de autocontrole.” (HAN, 2018, p. 85).
Diferentemente do exame de si antigo, o registro e exame de si no regime neoliberal se
tornam técnicas de exploração, de domínio de si em vista, em última análise, do
aumento do desempenho.

Além disso, mas com base neste conhecimento de si, pelo qual o indivíduo
listaria seus limites, defeitos e etc., o sujeito de desempenho busca modificar a si com a
intenção de remover do eu todo tipo de elemento impeditivo a sua otimização e, assim,
oportunizando aumentar tanto mais seu desempenho. Sobre este aspecto, Han (2018, p.
46, itálicos do autor) escreve:

A palavra mágica da literatura norte-americana de autoajuda é ‘curar’


(healing). Ela designa a otimização pessoal, curando
terapeuticamente qualquer fraqueza funcional ou bloqueio mental em
nome da eficiência e do desempenho.
Na antiguidade, uma importante características do cuidado de si fora,
justamente, a sua natureza terapêutica. Particularmente para o epicurismo, por exemplo,
cuidar de si significaria intervir na alma por meio de diferentes práticas com um intuito
equivalente ao da intervenção médica sobre o corpo, isto é, o de extirpar doenças,
afecções negativas (FOUCAULT, 2018, p. 22). Na contemporaneidade estas práticas
terapêuticas, porém, estariam desvinculadas de qualquer horizonte ético. Assim, o
sujeito do desempenho investiria em “[...] workshops de gestão pessoal, fins de semana
motivacionais, seminários de desenvolvimento pessoal e treinamentos de inteligência
emocional [...]” para aprender técnicas terapêuticas pelas quais pudesse se autoajudar,
intervir em sua própria interioridade em vista da plena positividade, da remoção das
limitações e, por conseguinte, da otimização de si sem limites (HAN, 2018, p. 45).
Paradoxalmente, conforme diagnostica Han (idem, p. 46), na contemporaneidade esta
autoexigência por uma total positividade “[...] é acompanhada por doenças mentais,
como depressão ou o burnout.”. Portanto, parece-nos acertada a afirmação do autor de
que no regime neoliberal as técnicas de si se tornam técnicas de dominação pelas quais
o sujeito se subordina a si mesmo.

Assim, parece-nos que se Sócrates, o filósofo antigo “[...] que, essencial,


fundamental e originariamente, tem por função, ofício e encargo incitar os outros a se
ocuparem consigo mesmos [...]” (FOUCAULT, 2018, p. 6), interpelasse o sujeito de
desempenho contemporâneo, ele teria que revisar seu protesto. Nas ruas da antiga
Atenas, ele diria:

Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais


reputada por sua cultura e poderio, não te envergonhas de cuidares de
adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e não te importares
ne cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua
alma? (PLATÃO, 29d, apud FOUCAULT, 2018, p. 7)

Ora, o sujeito de desempenho está justamente, mais que qualquer coisa,


cuidando de si, preocupando-se consigo, tomando conta de si. Ele quer melhorar ao
máximo sua alma. Age o tempo todo conforme o que é o mais razoável. Busca regular
sua vida o mais possível segundo a verdade. Sua maior riqueza, seu maior motivo de
honra é, enfim, ele mesmo. Ocorre que, porém, este cuidado de si é distorcido pela
lógica do capital. Melhorar a alma significa aumentar o desempenho. Ser razoável
significa fazer o cálculo econômico. A verdade é a dos dados, dos números. O eu é um
capital. Assim, em Wall Street, ou em Seul, Sócrates talvez acabasse recomendando:
desocupai-vos, principalmente com vós mesmos! E provavelmente também hoje o
acusariam, por esta interpelação, de cultuar outros deuses, que não o deus-Capital, bem
como de corromper a juventude, tornando-a improdutiva.

Considerações finais

A título de conclusão, cumpre recapitular esquematicamente o que verificamos


neste ensaio, ressaltando que a crítica de Han parece ser problemática principalmente
em dois aspectos importantes, embora aponte para um aspecto que, de fato, parece ser
um “[...] ponto cego da analítica do poder de Foucault.” (HAN, 2018, p. 43). Em
primeiro lugar, diferente do que ele sugere, Foucault não pensa que o cuidado de si seria
um meio de resistência a estados de dominação instalados. Ao invés disso, como vimos,
o cuidado de si pressupõe que os indivíduos não sejam dominados. Em segundo lugar,
mesmo que seja correto que Foucault não explora a questão da apropriação das técnicas
de si pelo neoliberalismo, isto se deve ao fato de que ao estudar tais técnicas ele se
remete a um período histórico específico que não o do regime neoliberal. Isto é, a
pesquisa de Foucault foi sobre as técnicas de si na antiguidade e não sobre as técnicas
de si no capitalismo contemporâneo. Por fim, o que parece ser o aspecto forte da crítica
de Han é o de que na análise do regime neoliberal que Foucault empreende ele não
percebe o uso de técnicas de si como técnicas de dominação.

Referências

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder.


Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné, 2018;

MARÍN-DIAZ, Dora. Autoajuda, educação e práticas de si: genealogia de uma


antropotécnica. Belo Horizonte: Autêntica, 2015;

RAMOS, Estéfani Dutra. Cuidado de si, práticas de si contemporâneas e discursos de


autoajuda: uma leitura foucaultiana. In: Sapere Aude. Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p.
240-255, Jan./Jun. 2016;

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São


Paulo: Martins Fontes, 2008;

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da


Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2006;

FOUCAULT, Michel. "A ética do cuidado de si como prática da liberdade". In: Ditos &
Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004;

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