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A crise da liberdade
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Grosso modo, a noção de “dispositivo” remete ao conjunto de práticas heterogêneas que podem ser
discursivas (leis, opiniões, teorias e etc.) e não-discursivas (instituições, procedimentos burocráticos,
tecnologias e etc.) que capturam os sujeitos e conduzem suas condutas.
Interessa-nos particularmente esta relação paradoxal entre liberdade e coação
que se instala neste contexto. O texto inicia caracterizando o que o autor chama de
“crise da liberdade”, esta que seria a situação da contemporaneidade. Conforme ele,
hoje se verifica uma exacerbação da liberdade individual, entendendo que “Ser livre
significa estar livre de coerções.” (2018, p. 10). Hoje todo indivíduo seria em grande
medida livre de coerções. Mais precisamente, em função de um “excesso do próprio
capital” (idem, p. 13), isto é, da radicalização sobre os indivíduos da exigência de
multiplicação do capital, do aumento da rentabilidade, ter-se-ia instituído um estado de
coisas em que já não se mobilizaria a produtividade daqueles por meio de coerções
externas de natureza disciplinar (como, por exemplo, normatizações e violência) “[...]
que verga[m] as vontades e nega[m] a liberdade.” (idem, p. 25). Ao invés disto, tal
mobilização seria feita justamente removendo todas estas coerções e limitações, e
permitindo a cada um, ao menos à primeira vista, fazer pleno uso de sua liberdade.
Dessa maneira, o capitalismo contemporâneo se caracterizaria, de maneira inversa ao
precedente capitalismo industrial, não pelo dever disciplinar, mas pela liberdade de tudo
poder. Neste sentido, o autor escreve:
No que poderia ser uma tipologia foucaultiana das subjetividades, este sujeito se
constitui como empresário de si. Remetendo-se à “teoria do capital humano” em sua
análise do neoliberalismo no curso de 1979, O nascimento da biopolítica, Foucault
(2008, 310 – 311) chamou estes sujeitos de “empresários de si”, ou “empreendedores de
si”, no sentido de que, em resumo, assumem uma atitude segundo a qual se relacionam
consigo com base em uma lógica empresarial, isto é, de investimentos que visam lucros.
Ou seja, são sujeitos que tomam a si mesmos como um capital que deve ser gerenciado
segundo uma racionalidade econômica, investindo, por exemplo, no desenvolvimento
de certas aptidões em vista de aumentar sua capacidade de produzir mais capital. Para
Han (2018, p. 10), estes sujeitos acabam se tornando “sujeitos de desempenho”, no
sentido de que, relacionando-se consigo naqueles termos, acabam impondo a si mesmos
a necessidade de otimização, aprimoramento indefinido de seu desempenho físico e,
principalmente, cognitivo.
A ética de si seria uma maneira peculiar de pensar a ética que Foucault, em suas
pesquisas a partir de 1980, teria localizado na antiguidade greco-romana. Muito
resumidamente, nela o indivíduo se constituiria como sujeito ético, como alguém que
age corretamente, mediante certa relação de cuidado de si para consigo, isto é, por meio
do chamado “cuidado de si”. Relação consigo que seria medida pela prática das
chamadas “técnicas de si”, que seriam
[...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não
somente se fixam regras de conduta, como também procuram
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma
obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo. (FOUCAULT, 1988, p. 14, apud HAN, 2018, p.
42).
Em sua leitura, Han enfatiza que a ética de si estaria estreitamente vinculada a
uma estética da existência, no sentido de que nela se trataria de produzir a si mesmo
como uma obra de arte – tanto no sentido de que isto envolveria alguma criatividade
artística, como no sentido de que o produto deste esforço seria algo belo – por meio de
todo um conjunto de técnicas pessoais e voluntárias pelas quais o sujeito agiria sobre si,
transformando, assim, seu modo de ser, sua subjetividade. Segundo ele, Foucault teria
pensado que pelas técnicas de si seria possível abrir um processo de subjetivação
autônomo, de maneira que os sujeitos poderiam se constituir de formas outras,
diferentes daquelas encetadas pelas técnicas poder e de dominação, isto na medida em
que as técnicas de si implicariam o exercício da liberdade, seriam práticas de liberdade.
Para Han (idem, p. 43), porém, no contexto do regime neoliberal isto seria algo
impossível e Foucault não teria se dado conta. Vamos nos ocupar mais detalhadamente
com esta crítica.
Para o autor, Foucault não teria percebido algo importante deste regime, a saber,
que a dominação, a coerção, a sujeição dos indivíduos ocorreria justamente na relação
do indivíduo consigo mesmo, em sua interioridade e não a partir de forças externas.
Mais precisamente, Foucault não teria percebido que
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Han (2018, p. 43 – 44) matiza esta afirmação em nota de rodapé (nota 12), observando que Foucault
“intuiu” a possibilidade de que as técnicas de si pudessem ser fatores de dominação, porém não deu
suficiente atenção e, portanto, maiores desenvolvimentos a este aspecto, bem como não se referiu a esta
possibilidade pensando no neoliberalismo.
indivíduos estariam sofrendo coações fazendo justamente aquilo que alguém faria numa
ética de si: voltar-se voluntariamente sobre si mesmo por meio de certas práticas em
vista de modificar seu modo de ser. A liberdade para se autoconstituir, porém, num
contexto marcado pela exacerbação da exigência de multiplicação do capital, converte-
se em submissão em relação a si mesmo na forma de autoexploração. As técnicas de si,
dessa maneira, tornam-se meios pelos quais cada um explora a si e, portanto, assujeita a
si, em vista de maior rentabilidade – e não meios de exercitar a liberdade, como teria
pretendido Foucault. Esta a análise crítica que Han faz do suposto projeto foucaultiano.
Seja como for, como vimos, Han parece entender que Foucault teria pretendido
que as técnicas de si (de tipo ético) oportunizariam fazer oposição a estados de
dominação. Esta leitura, porém, é equivocada, como vamos tentar mostrar na sequência.
Além disso, o argumento do autor para sustenta-la é insatisfatório. Comecemos por este
segundo aspecto.
Antes de tentar responder esta questão, é preciso ter claro que o texto de Han é
um pouco ambíguo. A rigor, ele não afirma que Foucault teria pretendido usar hoje,
contra estados de dominação atuais, as técnicas de si antigas que teria encontrado em
suas pesquisas. O que ele escreve, efetivamente, é “[...] que ele [Foucault] empreende
uma ética de si que se opõe à técnica de poder e de dominação.” (HAN, 2018, p. 43).
Aquela ideia, de atualizar a ética de si antiga e, portanto, as técnicas de si antigas contra
estados de dominação contemporâneos, porém, fica subentendida no texto de Han.
Considerando esta ambiguidade, vale a pena explorar também esta questão, isto é, se
Foucault não teria considerado a possibilidade de uma ética de si na contemporaneidade
como meio de resistência aos atuais estados de dominação.
Dos elementos que Han nos oferece nos trechos citados, como vimos, não se
pode depreender que Foucault teria pensado que técnicas de si (de qualquer tipo) seriam
um meio de oposição à dominação e nem que ele teria alimentado um interesse político
contemporâneo em tais técnicas. Seria preciso remeter à obra do filósofo. Parece-nos,
porém, que naquilo que Foucault disse e escreveu, diferentemente do que Han parece
sugerir, depreende-se que o filósofo não afirma que por uma cuidado de si, por técnicas
de si de qualquer tipo se faria oposição à dominação (isto que está em pauta na objeção
de Han, vale insistir), bem como que ele foi muito reticente no que concerne à
possibilidade de atualizar na contemporaneidade a ética de si tal como praticada na
antiguidade (isto que fica implícito no texto de Han).
busca indefinida, sorve os instantes como se foram átomos precários de prazer [...].” (FOUCAULT, 2018,
p. 23).
modernidade. Assim, a afirmação que fica implícita na crítica de Han, a lembrar, que
Foucault teria alimentado a possibilidade de atualizar na contemporaneidade a ética de
si tal como praticada na antiguidade, é problemática.
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Para ele o poder deve ser entendido como “relações de poder”, estas que são “[...] jogos estratégicos
entre liberdades – jogos estratégicos que fazem com que uns tentem determinar a conduta dos outros, ao
que os outros tentam responder não deixando sua conduta ser determinada ou determinando em troca a
conduta dos outros [...]” (FOUCAULT, 2004, p. 286).
(FOUCAULT, 2004, p. 273 – 274), esta ênfase e primazia do si mesmo não abre
margem para uma “absolutização do cuidado de si”, para um “[...] amor exagerado a si
mesmo que viria a negligenciar os outros ou pior ainda, a abusar do poder que se pode
exercer sobre eles.”. Ao contrário disto, ele entende que o cuidado de si seria mesmo
uma maneira de evitar estados de dominação de uns em relação aos outros – ainda que
não de fazer resistência à dominação já instalada, bem entendido. Em resumo, a ideia é
a de que alguém apenas abusaria de seu poder sobre os outros porque não cuida de si.
Com efeito, é neste sentido que o filósofo entende que a ética do cuidado de si é uma
prática da liberdade, a saber, como uma maneira pela qual o sujeito faz um certo uso,
pratica de certa maneira sua liberdade, a saber, um uso ético.
Remetendo-se aos antigos, ele explica em primeiro lugar que ser livre, poder
fazer uso da própria liberdade significa “[...] não ser escravo (de uma outra cidade,
daqueles que o cercam, daqueles que o governam, de suas próprias paixões).” (idem, p.
269). Apenas tendo esta condição de não escravidão, de liberdade, ou seja, de relações
de poder suficientemente flexíveis como pressuposto, alguém poderia cuidar de si: “um
escravo não tem ética.” (idem, p. 271). Assim, o cuidado de si seria uma certa maneira
de fazer uso desta liberdade, uma maneira ética de praticar a liberdade. Isto é,
relacionando-se consigo por meio de técnicas de si alguém exercitaria uma “prática
refletida da liberdade”, isto que, conforme Foucault (idem, p. 268 – 269), constituiu a
ética na Antiguidade. Portanto, na medida em que alguém que cuida de si faz um uso
ético de sua liberdade, este alguém qualifica eticamente as relações estratégicas entre
liberdades que estabelece com os outros. Dito diferente, quem cuida de si mantêm
relações sociais eticamente mediadas. É neste sentido que, embora se trate de cuidar de
si, o outro está implicado neste cuidado. É também neste sentido que estados de
dominação são evitados pela ética do eu – esta que, porém, cumpre insistir, pressupõe
ser livre, não ser dominado.
E no que concerne à ideia que fica implícita no texto de Han, a lembrar, de que
Foucault teria pretendido atualizar a ética de si antiga contra estados de dominação
contemporâneos, não seria este, então, o sentido de sua afirmação? Isto é, o que Han
pretendia dizer não seria que Foucault, considerando a função política do cuidado de si
na antiguidade, estaria pretendendo um novo pensamento político para a
contemporaneidade, baseado na ética do eu, e que evitaria estados de dominação?
Mesmo que fosse este o sentido da afirmação de Han, porém, ele teria se equivocado.
Com efeito, quando questionado a este respeito na entrevista de 1984, Foucault (idem,
p. 280) claramente diz que “[...] não avancei muito nesta direção [...]”, embora
reconheça ser interessante “[...] verificar o que é possível fazer com tudo isso na
problemática política atual.”. Desconfia, porém, “[...] que parece que a questão do
sujeito ético é alguma coisa que não tem muito espaço no pensamento político
contemporâneo.” (idem). Portanto, o interesse de Foucault pelo cuidado de si não foi,
definitivamente, o de pensar uma ética de si como uma solução para os estados de
dominação contemporâneos, inclusive, portanto, aos encetados no regime neoliberal.
Voltemos agora mais uma vez ao que Han (2018, p. 43, itálico do autor) escreve,
mas focalizando outro aspecto: “Ele [Foucault] não reconhece que o regime neoliberal
de dominação se apropria completamente das tecnologias do eu [...]”. Embora isto
fique subentendido, considerando o que Han havia escrito antes, aqui não está em jogo a
afirmação de que Foucault teria pretendido fazer da ética do eu uma forma de
resistência ao regime neoliberal. A rigor, o que está sendo dito é que no neoliberalismo
as técnicas de si seriam não uma prática de liberdade, como pretendera Foucault, mas
práticas de dominação e – esta sua crítica – que o filósofo não teria percebido isto.
Além disso, mas com base neste conhecimento de si, pelo qual o indivíduo
listaria seus limites, defeitos e etc., o sujeito de desempenho busca modificar a si com a
intenção de remover do eu todo tipo de elemento impeditivo a sua otimização e, assim,
oportunizando aumentar tanto mais seu desempenho. Sobre este aspecto, Han (2018, p.
46, itálicos do autor) escreve:
Considerações finais
Referências
FOUCAULT, Michel. "A ética do cuidado de si como prática da liberdade". In: Ditos &
Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004;