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Considerações sobre a disciplina no Ratio Studiorum a partir de um prisma

foucaultiano

Paulo Junior Batista Lauxen

RESUMO:

Tomando como referência Araldi (2020), tentarei elaborar uma resumida caracterização
do quadro teórico do qual Foucault (1992; 1993) parte para analisar o chamado poder
disciplinar. Após contextualizar ligeiramente o aparecimento dos Colégios da
Companhia de Jesus a partir de Carvalho (2005) e Paiva (2004), tentarei ler o
documento normatizador destas instituições – o Ratio Studiorum – à luz do arcabouçou
teórico foucaultiano, buscando apontar a presença de categorias como vigilância,
controle, disciplina e punição. O trabalho de Dallabrida (2021) servirá de suporte a esta
leitura.

Na obra de Michel Foucault a ideia de poder é central. O filósofo, no entanto,


distancia-se das análises clássicas do poder que, grosso modo, caracterizam-no como
algo substancial que se possui ou que se é destituído e que, portanto, concentra-se em
certas estruturas ou indivíduos (o Estado, o Rei ou o professor, por exemplo). Para ele,
ao invés disso, “[...] o poder é uma prática social, constituída através da História [...]”
(ARALDI, 2020, p. 42). Trata-se, portanto, de uma atividade contingente, que, a
depender de transformações sociais, políticas, econômicas, científicas e outras,
reconfigura-se. Mais apropriadamente, fala-se em relações de poder, estas que “[...] são
sempre múltiplas e dispersas na estrutura dinâmica da sociedade.” (idem). Aos invés de
algo estático e centralizado, entende-se o poder como relações móveis, instáveis,
múltiplas, complexas, que permeiam todas as relações humanas. Nestas relações,
importa destacar, estão sempre vinculados certos saberes, de modo que a configuração
das relações de poder é sempre condicionada pelos saberes em jogo, isto é, por aquilo
que se toma por verdadeiro em um determinado contexto histórico. Assim, “[...] todo
saber (científico ou não) constitui novas relações de poder.” (idem, p. 45). Em vice-
versa, de modo que também tais relações condicionam os saberes, numa complexa via
de mão dupla.
Embora as relações de poder sejam visíveis em situações concretas e localizadas
(num ato de violência policial, por exemplo), ocorrem em todos os lugares, níveis e
domínios da sociedade de maneira mais ou menos invisível e sutil (na interdição moral
de certas performances sexuais ou no estabelecimento de certos conteúdos no currículo
escolar, por exemplo). Considerando esta complexidade, o foco da análise incide não
tanto sobre a questão “o que é o poder?”, como se este fosse um universal que, uma vez
definido, bastaria localizar no real. Diferente disto, trata-se de perguntar: “[...] quais são,
em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos mecanismos de
poder que se exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões
tão variadas?” (FOUCAULT, 1992, p. 174, apud ARALDI, 2020, p. 42).

No interior destas relações, pensa o filósofo, os indivíduos – suas subjetividades,


modos de ser, de pensar, de sentir e de viver – são produzidos. Pelo menos até os
trabalhos que se iniciam por volta de 19801, para Foucault “[...] o sujeito é um efeito do
poder.” (idem, p. 39). Assim, parte importante de sua investigação dar inteligibilidade,
por meio do procedimento genealógico, aos mecanismos de poder que tem por efeito o
“[...] controle detalhado dos comportamentos e hábitos dos indivíduos e grupos sociais
[...]” (idem, p. 42). É a partir deste quadro que Foucault irá “[...] analisar a dinâmica do
poder disciplinar.” (idem, p. 43). Nesta análise, feita, por exemplo, em Vigiar e punir
(1975), buscar-se-á compreender como aparecem e se desenvolvem certas ações
específicas sobre os indivíduos (em prisões ou escolas, por exemplo) nas quais se
verifica certo efeito disciplinador que, por seu turno, produz subjetividades dóceis e
normatizadas. Embora suas análises enfoquem instituições e saberes modernos,
pensamos que, em alguma medida, é possível interpretar os Colégios da Companhia de
Jesus como uma instituição que, por meio de certas técnicas e estratégias disciplinares
sistematicamente elaboradas e executadas, pretendeu controlar certos indivíduos e
produzir suas subjetividades em conformidade com um regime de saber teológico-
cristão.

O contexto histórico de aparecimento e desenvolvimento de tais instituições é o


mundo religioso cristão europeu da Idade Média. No bojo da Contra-Reforma Católica,
a Companhia de Jesus não tinha, ao menos de início, um propósito propriamente
educativo (no sentido de ofertar formação escolar), mas missionário, de
1
Conforme o comentador, pode-se dizer que o segundo volume de A História da Sexualidade marca o
início da preocupação pela possibilidade de os indivíduos constituírem sua subjetividade autonomamente
“[...] apesar das influências externas.” (ARALDI, 2020, p. 39).
“acrescentamento da fé”. Tratava-se, fundamentalmente, de angariar fiéis à fé cristã
católica. No Brasil Colônia, o público da ação missionária era, de modo geral, as
diversificadas comunidades indígenas então aqui residentes. A instalação de Colégios
pela Companhia, estes que ofertariam ensino escolar, então, estaria subsumida àquele
propósito, no sentido de que se tratava de garantir a formação de quadros substanciais
de catequizadores que pudessem fazer frente aos avanços dos reformadores, por
exemplo, luteranos e calvinistas (DALLABRIDA, 2021, p. 4).

Para Paiva (2004 – texto sem paginação), não obstante a centralidade do


contexto religioso na época, transformações históricas complexas de desde o século XII
(como, por exemplo, a emergência do comércio internacional) teriam produzido uma
reconfiguração da experiência religiosa da sociedade em favor de uma experiência
mercantil. A dimensão do religioso não desaparece, mas é reinterpretada em
conformidade as mudanças (idem). A Companhia de Jesus seria expressão disto,
sustenta Paiva (idem).2 Ressonando a ampliação da função então quase exclusivamente
religiosa das letras, para uma função também mercantil, será exemplar o fato de que os
Colégios adaptem seu currículo de modo a atender as necessidades não apenas do clero,
mas também do mundo leigo, oferecendo uma formação religiosa, evidentemente, mas
também secular. Conforme Paiva (idem), a própria noção de "Companhia", bem como o
propósito de “ação junto à sociedade” e a ênfase na atitude ativa e não contemplativa da
ordem, remetem às iniciativas comerciais do período (idem).

Carvalho (1995, p. 138) também sublinha que, ao menos no que concerne ao


contexto português, o projeto jesuítico não era restritamente religioso, no sentido de
que, em alguma medida, subscrevia-se ao projeto colonizador de Portugal. Aliás,
mesmo no que o projeto jesuítico tinha de independente do projeto colonizador, ele não
era exclusivamente religioso. Demonstra isto a “política de posse da terra e de escravos”
2
A posição de Paiva neste aspecto é ambígua, na medida em que, embora afirme que o “sentir comum”
desta época era (ou, ao menos, tornava-se) fundamentalmente mercantil, parece, no fundo, afirmar a
primazia da experiência religiosa: "A cultura portuguesa era religiosa" e "Deus, a referência", escreve
(PAIVA, 2004). O Ratio Studiorum também não parece permitir algum destaque à experiência mercantil,
na medida em que aponta para uma função acima de tudo religiosa do ensino (e não secular, como o autor
chega a sugerir) – mesmo os chamados “alunos externos”, por exemplo, que buscariam o colégio para “se
instruir [...] nas artes liberais”, seriam formados “com todo cuidado [...] na piedade e nas outras virtudes.”
(Cf. “Regras dos alunos externos da Companhia”, principalmente “Aliança da ciência à piedade”). Por
fim, parece-nos mesmo contraditória a afirmação de que as instâncias religiosas se conformam às
demandas mercantis, isto é, nas palavras do autor, que elas “sublimam” e “ressonam” o “sentir comum”
mercantil da época (idem), bem como a de que se interpretam "os princípios eternos" segundos as
"circunstâncias novas" (idem): o próprio Paiva (idem) reconhece que a Companhia estabelecera a
incondicionalidade dos princípios da fé: “Os bons costumes não se devem mudar. Estão fundados na
fé.”...
do destacado Padre Manuel da Nóbrega, por exemplo (idem, p. 158). Nesta
convergência de projetos resultaria não apenas, digamos, uma política religiosa, mas
também uma política de posses que, no entanto, é obstaculizada pelos "textos
canônicos", a saber, as chamadas Constituições da Companhia de Jesus, que exigiam de
seus componentes, entre outras coisas, "voto de pobreza" (idem, p. 159). Em alguma
medida, a falta de recursos até mesmo inviabiliza o projeto missionário original.
Exceção aos limites impostos pelas Constituições eram, no entanto, os "colégios e os
estabelecimentos de noviciado", algo que estimula a criação destes. Outro fator
favorecedor foi a chamada "redízima", que estabelecia um dízimo a ser pago pelo Rei
para a manutenção destas instituições, dando-lhes então garantia de recursos (idem, p.
159 – 160). Progressivamente, então, a Companhia instala instituições "de catequese, de
ensino e formação sacerdotal." (idem, p. 160). Verifica-se, portanto, um vínculo estreito
entre ensino e religiosidade, explicado por uma relação originária entre Escola e Igreja:
a necessidade de ensinar a fé seria satisfeita pelas escolas (PAIVA, 2004). Bem
entendido, conforme observa Carvalho (1995, p. 161), citando o Padre Serafim Leite,
embora o colégios fossem "gratuitos e públicos", não tinham finalidade propriamente de
ensino, nem de ensinar “a todos indiscriminadamente", mas sim de "formar Sacerdotes”,
que trabalhariam na evangelização (idem). Este propósito da salvação das almas, por sua
vez, vinculava-se às demandas da Coroa em relação à Colônia, de modo que também
lhe cabia uma função social de normalização da sociedade: "O colégio era sentido como
o garante de normalidade, do estar bem, de estar tudo no lugar." (PAIVA, 2004).
Cumpria-lhe como função, portanto, uma “reforma dos costumes”: "Educar significava
primeiramente formar os alunos na fé, nos bons costumes, na virtude, na piedade, isto é,
na religião." (idem).

Com estes interesses, de início os Colégios deveriam se orientar em


conformidade com as Constituições. Em 1599 (ou seja, depois de mais de meio século
de experiências e observações nos primeiros Colégios) é promulgado o Ratio
Studiorum, que além de ser um minucioso método pedagógico, pretendia normatizar e
padronizar as práticas de ensino dos Colégios, fixando de maneira sistemática e
detalhada regras tanto de natureza pedagógica quanto de organização institucional
(DALLABRIDA, 2021, p. 4). Dallabrida (2021, p. 5) oferece a seguinte caracterização
resumida do documento:
The 1599 Ratio is an educational code comprising 467 rules, gathered in
30 sets, directed to the college agents and institutions of Jesuit colleges.
The rules cover the administration, the course of studies, the school
method and discipline, and were directed to the three classes of Jesuit
teaching – lower classes, philosophy and theology – which had common
pedagogical principles, but while these aimed at the formation of a
Jesuit clergy and of other religious congregations, the lower classes
would admit external students, who would follow other studies, mainly
law and medicine. Approximately a third of those rules would guide the
school content and practices of the lower classes, which were divided in
“series”: rhetoric, humanities, and grammar, being this last one
subdivided in lower, middle and upper grammar. The Ratio determined
that the five series should not mix through fusions or divisions and that
the promotions from one series to the next should be conducted
annually, but in the grammar classes this should happen only when the
student could demonstrate mastering of the established knowledge.
Those school degrees of intelectual perfection were inspired in the
progressive and linear processes of search for spiritual perfection,
prescribed in the “Spiritual Exercises” [de Inácio de Loyola].

Importa destacar, além disto, que o princípio norteador do método é, em síntese,


a glória a Deus, sendo que deste princípio são deduzidos como objetivos particulares
principalmente concernentes à conduta adequada, como a virtude (entendida como
conformação do caráter à vontade de Deus), a piedade (entendida como dimensão
prática da fé, a vivência concreta afinada com a dimensão do sagrado) e os bons
costumes (comportamentos que traduzem a compreensão, à época, do que agradava a
Deus) (PAIVA, 2004). De fato, nas “Regras Comuns aos Professores das Classes
Inferiores”, enuncia-se da seguinte maneira a finalidade da educação jesuítica:

Aos jovens confiados à educação da Companhia forme o Professor de


modo que aprendam, com as letras, também os costumes dignos de um
cristão. Concentre de modo especial a sua intenção, tanto nas aulas
quando se oferecer o ensejo como fora delas, em moldar a alma plástica
da juventude no serviço e no amor de Deus, bem como nas virtudes com
que lhe devemos agradar. (RATIO STUDIORUM 3, p. 19)

3
Doravante “R.S.”.
Trata-se, portanto, de “moldar a alma plástica da juventude”, de manufaturar a
subjetividade dos alunos em conformidade com a economia religiosa, intelectual e
moral cristã. Assim, ainda que as letras e a ciência apareçam como objeto de estudo, o
princípio da glória de Deus teria primazia em relação a estas. Com efeito, como mostra
Dallabrida (2021, p. 5), embora se verifique a preocupação de ofertar uma educação
escolar substancial, principalmente no que concerne à gramática, linguagens, retórica,
filosofia e teologia, mediante o estudo de literatura clássica (greco-romana, mas
principalmente latina), por exemplo, simultaneamente se verifica uma cuidadosa
filtragem e censura à luz da doutrina cristã em vista daquele objetivo:

There was some concern in purging the ancient authors and isolating
students from “impure writings” and the “evil and useless books”. From
this point of view, the Rule 34 of the Provincial, entitled “Prohibition of
inconvenient books”4, said that the selection of books should be made in
view of producing amenable and catholic students. (idem).

O ensino, portanto, expressamente deveria ser doutrinário, evitando-se sempre


possíveis embaraços teóricos ou morais. Também, ainda a título de exemplo, o Ratio
estabelece particularmente sobre o Professor de Filosofia que se fosse “inclinado a
novidades ou demasiado livre nas opiniões”, deveria ser afastado “sem hesitações” (R.
S., p. 2), bem como determina ao Prefeito que “não suprima nenhum costume
estabelecido, nem introduza novos” (idem, p. 15).

Mais do que isto, a produção de sujeitos cristãos nos Colégios envolvia um


rigoroso e sistemático conjunto de técnicas, práticas e estratégias de disciplinamento,
que, aliás, deveriam fazer dos educandos indivíduos tanto quanto possível ativos – onde
“ativo” remete não à autonomia, mas à atividade e produtividade ininterrupta; e
“passivo”, portanto, ao ócio, que deveria ser tanto quanto possível evitado (idem, p. 23).
Na análise de Dallabrida (idem, p. 7), o Ratio detalharia toda uma “maquinaria escolar”
que em muitos aspectos se aproximaria à modernas instituições totalitárias, na medida
em que, fosse dentro ou fora da sala de aula, estavam implicados “[...] the control of
time and space, a strict hierarchy, emulation and competition among students,

4
“Tome todo o cuidado, e considere este ponto corno da maior importância, que de modo algum se
sirvam os nossos, nas aulas, de livros de poetas ou outros, que possam ser prejudiciais à honestidade e aos
bons costumes, enquanto não forem expurgados dos fatos e palavras inconvenientes; -e se de todo não
puderem ser expurgados, como Terêncio, é preferível que não se leiam para que a natureza do contendo
não ofenda a pureza da alma.” (R. S., p. 4)
individualization of school careers and encouragement of permanent activity of
students.” (idem, p. 6).

Com vista à estimular a atitude ativa dos estudantes, o documento prescreve a


emulação e a competição entre eles (R.S., p. 9; 14), “[...] so that the students would live
on the verge of a fight.” (DALLABRIDA, 2021, p. 7). Propõe-se também um sistema de
premiações, no qual “além dos prêmios públicos, os professores estimulem em suas
aulas os alunos com pequenos prêmios particulares, ou outros símbolos de vitória”,
“merecidos por quem venceu o adversário, repetiu ou aprendeu de cor um livro, ou
realizou algum outro esforço notável.” (R. S., p. 17). Trata-se de um estímulo à
perfeição e à excelência intelectual, moral e religiosa (idem, p. 6; 33), que caracteriza o
ensino como meritocrático e endossa o estabelecimento de hierarquias entre os próprios
estudantes.

Observa Dallabrida (2021, p. 7), que o Ratio orienta também ao controle, à


avaliação, à classificação e à premiação individual dos alunos. Embora o professor fosse
o responsável pelo progresso particular dos alunos, o documento prescreve que este
nomeie entre eles um disciplinador auxiliar, que deverá ser atento à assiduidade dos
colegas e ao comportamento destes fora da sala de aula, bem como “[...] terá o direito de
impor com a aprovação do mestre, algumas penas menores aos companheiros.” (R.S, p.
17). Se estas não forem suficientes para corrigir os que “faltarem ou na aplicação ou em
pontos relativos aos bons costumes a aos quais não bastarem as boas palavras e
exortações, nomeie-se um Corretor, que não seja da Companhia.”, ao qual se permite o
castigo físico, que possui regra específica no documento (idem, p. 22).5

É explícita no documento a preocupação em manter uma estrita disciplina e a


ordem entre os estudantes. Para tanto, as regras a serem respeitadas “deverão ser
afixadas onde possam ser lidas pelo público, e também em cada aula” (idem, p. 18).
Particularmente aos alunos externos, escreve-se: “Nas aulas não vão de um para outro
lado; mas fique cada um no seu lugar, modesto e silencioso, atento a si e aos seus
trabalhos. Sem licença do Professor não saiam da aula.” (idem, p. 31). Neste sentido os

5
Os castigos físicos eram, no entanto, entendidos como um último recurso, ao qual se apelava apenas
quando as exortações verbais eram ineficientes. Conforme Dallabrida (2021, p. 8), a Companhia, embora
exigisse com rigor a disciplina, não simpatizava com castigos corporais (demonstra-o, por exemplo, o fato
de que o corretor responsável pela prática deveria ser externo à Companhia), algo que significava um
avanço em relação às práticas pedagógicas precedentes: “The substitution of physical punishment for a
loving vigilance and a sweet domestication, more efficient and productive, proposed by the Ratio, was a
trend which emerged in the 16th century.”.
professores deveriam ser vigilantes e controladores, “com particular cuidado que
observem todos o silêncio e a modéstia: não passeiem pela aula, não mudem de lugar,
não passem de um lado para outro presentes ou bilhetes, não saiam da aula,
principalmente dois ou mais ao mesmo tempo.” (idem, p. 22). Também fora da sala de
aula, nas missas, por exemplo, diz-se que os alunos devem se manter “dispostos com
correção e ordem”, além de deverem estar acompanhados por professores, que os
deveriam ter sempre a vista (idem, p. 18). Os próprios professores deveriam ser vigiados
pelas autoridades superiores (O Ratio determina, por exemplo, o seguinte ao Prefeito de
Estudos: “De quando em quando, ao menos uma vez por mês, assista às aulas dos
professores; leia também, por vezes, os apontamentos dos alunos.” (R.S., p. 7)), bem
como a elas se subordinar:

Among the college directors, the teachers should be subordinate to the


principal, for discipline matters, and to the prefect of studies, both
concerning the teaching and the discipline; the prefect of studies had to
obey the principal. (DALLABRIDA, 2021, p. 7)

Estabelecia-se, além disso, um rígido controle do tempo escolar no qual se


predeterminava o que se devia fazer em cada dia e hora – inclusive nos domingos e
feriados, bem como nos momentos fora da sala de aula: “Determine as horas em que
durante o ano [...] deverão começar e terminar as aulas; o que for uma vez determinado,
mantenha-se sem mudança.” (R.S., p. 4). Uma das regras é intitulada, justamente, como
“Divisão do tempo”, na qual se determina detalhadamente o que os professores devem
fazer em cada hora de aula – às vezes em cada quarto de hora (idem, p. 23). Dallabrida
(2021, p. 8) lembra que, indicativo disto, é o seguinte fato – um tanto cômica, aliás:
“The proctor, who should always have with him a clock, and being his function to tell
the teacher or the prefect of studies when it was time to start and finish school activities,
strictly controlled the chronological time.”.

Por fim, cumpre destacar também que o Ratio determina que se deve estimular e
cobrar assiduidade no exercício de práticas também de natureza propriamente religiosas,
como meio de garantir que toda a estrutura psíquica (ou, se quisermos, espiritual) dos
estudantes se conformasse aos princípios cristãos. Tratam-se de

prayers before every class, which should be made with uncovered


head and on one’s knees, evening consciousness exam, daily
saying of the rosary or praying for Virgin Mary, daily mass,
monthly confession. The control of the frequency to the
confession should be made through cards containing the name,
surname and class of the student, which should be handled to
confessors. (DALLABRIDA, 2021, p. 8)

Considerando todos estes elementos a partir do quadro teórico foucaultiano,


Dallabrida (idem, p. 9) entende que o Ratio é expressão “[...] of a ‘new model of
individual management’ or of the ‘art of governing’ in the beginning of the Western
Modernity.”. Assim, o documento apareceria como um tipo de saber-poder com
características modernas, que, estabelecendo, como vimos, certos mecanismo
disciplinares a serem postos em execução no interior de certa instituição, teria servido à
Igreja Católica “[..] to mold, form, and manufacture the childhood and youth soul.”
(idem).

O ensino em orientação jesuítica, no entanto, é, ao menos no Brasil, com a


promulgação da lei de 3 de Setembro de 1759, “[...] bruscamente interrompida com a
expulsão dos jesuítas.” (CARVALHO, 1995, p. 162). Transformações históricas (como,
por exemplo, a progressiva secularização promovida pela ciência e pelo ideário
iluminista) alteram as experiências e as práticas sociais e, por conseguinte, o modo
como se configuram as relações de poder – inclusive no campo da educação. No que
concerne especificamente ao documento, o Ratio, após longo período supressão da
Companhia pela Igreja Católica, em 1832 ele é reabilitado em nova versão. Nela se
verificam mudanças importantes, como, por exemplo, a introdução no currículo das
ciências experimentais e da matemática. Mudanças estas condicionadas pelo contexto
do período, marcado, por exemplo, pelo desenvolvimento do capitalismo industrial e
dos sistemas de ensino nacionais (DALLABRIDA, 2021, p. 9). Não obstante tais
mudanças, “[...] the teaching method and the disciplinary mechanisms were kept and
improved, seeking to form scholarly and catholic male subjects. (idem).

REFERÊNCIAS

ARALDI, Clademir. Nietzsche, Foucault e a arte de viver. Pelotas: NEPEFil Online,


2020;
CARVALHO, L.R. Ação Missionária e educação. In: HOLLANDA, S.B. História
geral da civilização brasileira. Tomo I, v.. 1, livro 3º., cap. IV, 1995, p. 138-144;

DALLABRIDA, Norberto. Molding the plastic soul of youth: the Ratio Studiorum and
the manufacture of educated and catholic subjects. In: Rivista di Storia dell’Educazione
8(1), p. 3-10, 2021;

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1992;

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro:


Vozes, 1993;

FRANCA, L. O Método Pedagógico dos Jesuítas (Ratio Studiorum). Rio de Janeiro:


Agir, 1952;

PAIVA, J.M. Igreja e educação no Brasil colonial. In: STEPHANOU, M; CÂMARA


BASTOS, M.H. (Orgs.) Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Petrópolis:
Vozes. 2004. v.I, p.77-92.

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