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DAVI ARRIGUCCI JR. | ENIGMA E COMENTARIO ENSAIOS SOBRE LITERATURA E EXPERIENCIA Vouk Companion tro, 1987. O HUMILDE COTIDIANO DE MANUEL BANDEIRA E era sb que teria de enfrentar a pobreca ¢ a morte. ‘Manuel Bandeira La rue... seul champ d’expérience vatable. ‘André Breton i A compreensio da atitude humilde, fundamento do estilo ‘maduro de Manuel Bandeita, é dos problemas mais complexos de sua obra, Traduzida num desejo de despojamento e reducio ‘20 essencial, tanto nos temas quanto na linguagem, ela nos des concerta simplicidade dificil de entender, “cristalizeda”” desde Libertinagem (1930), mas jé anunciada em poemas ante- riotes.! Como questiio essenclal, pode ser encarada de diversos lados. Um decisivo 6 0 da sua relagfio com a pol Trate-se, ontes de mais nada, de uma postu: espftito. E também de uma disposigao para agit e si que acaba implicando um modo especifico de conceber 0 pot tico © fazer concretamente o poema, Uma atitude estilistica, en- fim, em que 0 modo de set se converte num modo de ver a poesia, numa concepeio do fazer — fundacfo de uma E este 0 termo que, na sua acepgfo original, centrada num paradoxo: o da busca de uma simplicidade em que brilha oculto 0 sublime, ‘Ao que parece, a década de 20 foi um perfodo decisive para a constituigao desse atitude fundamental, que marearé toda entamente e amadurece com a suav’ do tempo — um frato da experi sedimentos dispersos e, no moldada através do exereielo aprendizagem da expresso. Ao prética de um artesanato interior, que se processasse como mo- idade em sua relago com o mundo, E surge ide de um rio, capaz de espelhar as con- € recolher 0 belo nas. “‘profundidades ide nica e intransferivel de dax forme, delagem da subje entio com a tima e pessoal, que, no entanto, se consiituiu em iadas ¢ sempre dependeu deles para se configurar poeticamente, £ como se 0 posta tivesse criado uma postura receptiva, feita de modéstia e recolhimento, para agasalhar os fatos do mund. Bandeira insiste vérias vezes de circunstincias e desabafos” e torna explici sua prosa, sempre consciente de sua arte p bisica, como nesta ctbnica de 1956, recolhide Andorinha, andorinha: 2) Ct, por exemplo, Poesia e prosa, Rio de Jan menor, que hé uns cinglenta anos morte, cantando as grandes tristezas jue a vide the tem proporcionado? E, pouco depois, actescenta este aspecto igualmente de- cisivo: que vive no mundo da lua, perpetuament sublimes, £, 90 contrétio, um homem pr vida, no seu mais As relagdes entre o Eu e as circunstincias se tornam 0 efxo sonstrugio do poema, em que A e uimia da linguagem, , na verdade, corres. ponds a xa tnsrgfo do porta na exlitnla rel, oo: mundo misturado do cotidiano, Ao contrério do que se poderia pensar, ‘© poeme, ndo estaré poetizando 0 diano, Quando de sua fase zando a expres de que o uso libertagdo, represen se revela entiio como condi- © poético, e mé= 3 Monteiro, Manuel Bandira, Lisboa, Inquésito, fornal de Critica, 1% série, Rio de Yanelro, Joré Olymiplo, 15H, pA u no chio do cot clevado da heranga do poeta penumbrist discurso mesciado, iado perto do chao ( de humus), ele abandona plano, contendo a fungio © “gosto cabotino da tristez marcado para o sofrimento, 8 como nos chinelos, tanto nas jas”, © poeta mantém uma te do mundo — dos seres, das coisas e, sobretudo, das palavras comuns, executando uma espécie de jogo ou danga amorosa com 0 verdadeira libertinagem, em que o momento de revelagao Iitica se confunde com o relance erstico, capaz de desvelar a nudez sublime da amada inesperade esté em tudo — tanto nos ami coisas Igicas como nas dispara “iluminagao pro- fana”, um alumbramento. & quando se subyerte a banelidade da existéneia, o lugar comum se muda num insélito mais real do que o teal e se produz o estranhamento do novo; 6 entiio que se cumpre a arte de Bandeita para desentranhar 0 ouro da ganga bruta © surge 0 posta “desconstelizador”, conforme vit Haroldo de Campos. Momento indo, em que o salto de plenitude instantinca da vida que se sustém por um fio, or milagre, diante da morte onipresente. Esta, Belle Dame sans iéncia de todo cla “que é 0 ragio para cotidiana experincia coletiva, a confianga no presente, a coragem |, a ousadia da experimentagio, o préprio apego & rea- dade prosaica e cotidiana, ¢ a preocupagao social menite deu espago e poderoso est{mulo pata 0 grito de libertagio Libertinagem. Abriu comportas para a evolugio tho do autor, que, em parte, amunciava e, em (8) H. de Campos, "Bandeire, o Desconstelizador", em Metalingua- parte, aprendia com 0 movimento, desenvolvendo-se, porém, sempre com sesguardo pessoal, de forma sutil, mas constante, de Pasdrgada, misto de confissiio, comentéiio cti- explicita de Bandeira, bem como no interior da obra, a partir de A cinza das horas, se verifiea 0 processo de uma aprendizagem, que tem inémeras faces. Quer dizer: até se tude estilfstica de Bandeira remete a uma histéria comprida, em cuja génese mergulham raizes fundas e emaranhadas, dificeis de deslindar. # nessa longa histdria, que é rigorosamente a his- t6ria do uma experiéncia dia, se enlagam intimamente & experiéncia do jovem poeta, Ao mesmo tempo, ele teve de aprender a conviver com a dade, ou ainda mais, tove de se entregar a um exeri humildade para sobreviver, como confessa varias vezes, e isto decerto niio foi sem, conseqiiéncia tica do escritor® Digamos que a tolheu a ago, por outro, instigou 0 no écio; criow espaco para a disponibi mo tempo que amarrou 0 ctiador & disciplina ascética da sobre- vivencia, impondo-Ihe, de quebra, temas como o da morte. No plano da histérla literéria, muitas leituras atentas e até contactos esporédicos podem ter contribufdo no mesmo sentido. () Cf., por exermplo, Itinerdro de Pasérgada, pp. 54 ¢ 56 da ed. elt. 1“ Na massa enorme de leituras, de que hé referéncia no Itinerdrio ios, ee pode por- cober uma linha de forga da simplicidade expressiva, fundamen- tal para o ponto de vista que nos ocupa. Ela pode ser rastreada belgas ¢ portugueses. Anto em cujo destino o jove Bandeita viu espethado o seu, e Cesdrio Verde sto pesos mar- cantes. Mas, séo sobretudo os franceses ¢ belgas, e entre estes 08 de tom menor, dicgdo coloquial e corte irénico, os que mais ir 1osso fingulo de visio. Guy-Charles Cros, La- ick e Apollinaire sfio referéncias const formagio do meio expressivo do poeta brasileiro, deve acrescentar a contribuigio também poderosa que Bandeira leu nos anos que precedem a c atitude madura. So poctas crepusculares, que tr tra a elogtiéncia dannunziana, ¢ futuristas, como Sergio Coraz- zini, Palazzeschi, Govoni e Soffici. Deles pode ter também pas- sado a Bandeira 0 gosto das “povere tristezze comuni”, como se 18 num poema de Corazzini, pelo qual 80 poeta diz ter-se apaixonado. A tudo isso se deve somar ainda o peso dos cre- pusculares brasileiros, contemporfineos dos anos de formagiio de Bandeira, como, por exemplo, Mario Pederneiras mente, Ribeiro Couto, penumbrista com gosto pe franceses menores: Samain, Jammes, etc. Couto foi grande amigo de nosso poeta, seu companheizo chegado na década de morador pobre e solitério do morro do Curvelo, no Rio de Janeiro. Como no caso de Pederneiras, ha nele uma sensibilidade suburbana, uma queda pelas coisas mitdas e banais, ond> uma velha linhe roméntica, tio forte em Alvates de Azevedo, parece que se reata e continua séeulo XX adentro, ganhando nova dimenséo com Bandeisa e © Modernismo. Se certos motivos, temas ¢ atitudes, relacionados com a po- breza, podem ser facilmente assinalados nesse amplo quadro da tradigfo literéria, o que mais chema nossa atengio 6 aimportincia 15 desta para a aproximagio técnica do pocta brasileiro as formas de tum estilo prosaico modemo. Varios dos poetas citados — sobre- tudo os de expressiio franc: iveram papel de relevo no que 0 proprio Bandeita chamou sta “pritica de aproximayao” ao verso livre. Essa prética consistiu, principalmente, no contato com a cxperiéneia do verso de Guy-Charles Cros, de Jules Laforgue, entre outros, ¢ com “estranhos desset rosa, como as de Poe por Malarmé; menus; receitas de cozinha; formulas de remédios; antincios, etc.).»° Com isto, péde Bandeira ir além dos versos metrificedos ¢ rimados, rumo aos titmos pes- soais do verso livre, e mais: pode ampliar o espago do poético, dar com a poesia onde menos se espera, desentranhar o sublime nna matéria e nas palavras mais humildes. ‘Ao buscar a direcio do despojamento, do interesse pela po- breza e pelo prosaico (este, uma linha de forga desde Baudelai como € sabido), Bandeira poderia estar retomando ainda uma tendéncia difuse nas artes européias do principio do século, pre- cisamente em artistas que, como ele, tinham rafzes no Simbolis- mo, Penso, por exemplo, no caso de Rilke, 0 do Livro das onde aparecem “expresses de humildade francis- icass0 de fase inicial, o pintor da Gente pobre a beira-mar (1903), da inacabada Morte de Arlequim (1905), dos Saltimbancos (1905). Quando se pensa, portanto, no conjunto da tradigdo literé- iro, 05 problemas se expandem ¢ fi apreensio profunda de sua génese, p questi parecem escapar sob a terra. Mai findo de uma familia tra Nordeste, da “aristocracia” rural, se identifica, em determinado momento, com uma postura humilde. E de novo se coloca uma 16 questi de poética: como um fato de natureza social, extrafdo da vida concteta de Bandeira, pode se transformar num componente interno da obra Iftica, aparentemente reftigio do sujelto solitat De um lado, temos a hist6ria pessoal de uma mudanga, que implica 0 processo social. De outro, um movimento interno de constituigio do estilo e da estrutura da obra. O modo de articular G0 do aspecto social com o formal se torna, entio, o ponto decisivo da interpretagio critica, Sem desprezar © peso de outros fatores na génese da do autor, parece residir agui um ‘Miério de Andrade, fica evidente 0 lo por este Sngulo, que, no entanto, forma, O préprio poeta parece ter 1 isso, Referindo-se aos poucos exemplos de “emogio io, mas acaba por se considerar “poeta desse para tanto,!? Ora, essa designagio de “‘pocta menor” apenas recoloca 0 problems. Sempre repetida ao longo da obra em prose, procede dda mesma atitude humilde, marea profunda de sua fase madura, Os exemplos esparsos de “emogao social” do poeta, na verdade, sio poemas et que a pobreza aparece como 0 objeto da represen- tagio fiteréria, isto é, como um assunto a que néo se pode furtar ‘um poeta com os olhos voltados para a realidade brasileira, onde a miséria € 0 prato de cada dia, Mas no & como tema que a pobreza aqui importa, E essencialmente no modo de representagfio ‘que se afirma sua importincia fundamental; concebida como um valor ético de base, um modo de ser exemplar, a humildade se inda num prinefpio formal do ; fntimo da finguagem post que o social surge como uma dimensfo decisiva: a relago com a pobreza passa a ser um fator interno da estruturagio da obra. (12) Ver Itinerdrio de Pasérgada, p. 84 da ed. it 7 Para se compreender um pouico essa pass: 1, preciso voltar ao eixo central das relagdes entre o Eu e as circunstfincias. Nos termos de Bandeira, essas relag6es podem ser vistas, no momento tude madura, como um processo que “49 momento mais inesquecfvel”: imo amparo com que contava 0 E, como no poema “A Dama Branca”, morterei com a mio na de meu ps na minha, Eis 0 meu moment Desamparado ¢ 86, Bandeira se muda da rua das Laranjeiras do Curvelo, onde passaré treze anos decisivos de inagem e, em parte, Crénicas da Provincia do Brasil. Ali, sobretudo, morro do Curvelo de 1920 a 1933 acabaram de amadurecer 0 poeta que sou." ‘A mudanga para ‘‘o velho casetfio quase em rufna” no alto do morro do Curvelo ganha entio a forga de um momento sim- bélico na vida do poeta, com reflexos profundos em sua atitude, espelhada nos poemas. Representa, em primeiro lugar, 0 encerra- ia, que The ‘uma linha de progressiva cexprime « histéria de sua famflia até guerra, e de queda de decadéncia financeira, agravada durant Andere, andrinte, v0. Wirt de Pastreada,p. 52d dct 18 nivel social, pontithada ainda por uma sucessfio de mortes, que smbros reduzindo-a implacavel- l, 0 poeta jé pobre, longe da completamente 56, Situado, por fim, ironicamente no alto, descobre 0 que se passa embaixo, 08 movimentos da pobreza e, com ela, no nfvel da rua, descobre a ‘ia; “Quanto ao morro do Curvelo, 0 met apartamento, 0 andar mais alto de um velho casario quase em ruina, era, pelo convivio com a gatotada sem Iei nem rei qu janelas, quebrando-thes as vezes as vide de certo modo o meu clima de meninics Pernambuco. Nao sei se exageto di Curvelo que aprendi os caminhos da it Deste modo, nos anos passados na rua do Curvelo, se pode i@ncia do poeta: . as do lado da rua em que lado da ribanceira, com cantigas de mi pobres lavando roupa nas tinas de barrela, comegastes a yer muitas coisas. O morro do Curvelo, em seu devido tempo, trouxe-vos aquilo que dos grandes livros da hunvanidade nfo pode substit a rua.” ‘A descoberta se dé como uma “‘evasio para o mundo”, 0 que permite, no plano da poesia, uma superacio dos antagonis- mos, sem perder o aciimulo da experiéncia sofrida. H4 um reco- imento do outro, um resgate da dor na miséria alheia ¢ co- ido 0 movimento de detain © objeti- numa situagao pessoal propfcia, identificado com os seres humildes, Bandeira apsende a olhar o mundo perto do chao. Essa nova postura diante do mundo e da poesia se torna, , , que independe de ite na breve histéria de um pobre diabo que enfrenta a morte: Joo Gostoso era carregador de feirt-livre ¢ morava no morro da Babilénia mum barracéo sem néimero Uma noite ele chegou no Bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dangow Depois se nna lagoa Rodrigo de Freitas © morreu sfogado2 © poema, com argumento narrative supercondensado, come- ga por uma caracteriza¢ao paradoxel, porque acumula atributos sem definir a figara de que trata (um antecessor possivel de “O 18) Op. ell, p. 52. (19) A 6tima expresso & de Sérgio Buarque de Holanda, *Trajeté- tia de uma poesia”, em M, Bandeite, Poesia e prosa, p. XXI (20) Bstreta da vida inteira, Rio de Janciro, José Olympio, 1966, p17 20 nome préprio, sem mor folha de ocorréncis nesses versos livres sem pontuagio, A passagem do ritmo lento dos yersos iniclais, longufssimos, para os seguintes, curt{ssimos, imita, na expressio, este movimento, enfatizado aié visualmente pela oposiedo entre a ve (0s ¢ a hori- rrontalidade espraiada dos longos, no no fim. Algo da danga de morte de Jodo Gostoso se imprime nas angulosidades do poema como um to que, do caos sm rumo certo (Bi matar na lagoa Rodrigo de iamente, lugar de riqueza no se desfecha,’ apés espaco baixo Rio de Janeiro, A ine momentos de éxtase, de us itual e draméi de acentuaglo simé- trica que precedem 0 desenlace: “Bebeu/Cantou/Dengou”. Os elementos natrativos e draméticos apatentemente domi- 2 primeira vista, a presenga ransforma por sua escotha cxperiénciafntima: contados com despjamento asc, os fats que sintetizam uma vida adquirem uma ambigua ressonfincia, que 0 leitor deve interpretar. A informagao nio se esgota, como 6 de sua natureza, nos fatos: a narrativa brutal se adensa numa situagdo simb6lica de valor geral, de forma que percebemos um complexo destino humano, ferido pelo trégico, velado sob o anonimato da banalidade cotidiana. O mistério poético britha oculto na existéncia humilde de todo dia, onde o clhar conie vente do poeta o desentranhou, at 4. ‘A aproximagio do poeta & rua nfo se faré nunca, porém, diretamente, com a disposigéo de quem se entrega de bragos abertos ao que der e vier, Bandoira so recolhe sempre, com pudor, com reserva, preferindo integrar o acontecimento extemno ao seu modo de ser. O que é ostensivo e gritante aparentemente © choca, e, embora seja capaz da visio mais desabusada, franca ‘ow cruel, tende & contengio, capaz de potenciar o sentido. Seu contacto com 0 exterior, mediante 2 observaco ou escuta aten- ta ¢ senstvel da vida cotidiana, que reponte igualmente nas cxOnicas, se dé pausadamente, ne trangiilidade, através da ex- periéncia do ser solitério que, antes de tudo, observa, ouve, medita e incorpora, se & 0 caso. Ao longo de toda ° osta parece mesmo situar-se preferencialmente na posigéo de quem olha ou escuta. E de quem olha ou escuta de um espaco , obrigado eo resguardo constante ¢ cuidadoso, 0 retraimento, ao receio da exposigo excessiva. Mas logo se toma o espago imaginério, com forga para se sustentar sozinho, ) Ver as observapSes de Gilda © Antonio Candido sobre a “reor o progressiva des espagos poéticos em Bandeira’, em sua “Intro- duo” & Estrela de vida inteira, p. Wy. 22 ‘sua presenga virtual, como no caso do “Posma s6 para Jaime pela reiteragio, acaba pot se associar ao le do Eu, como se fosse um casulo da cons- dade se recothem imagens do mundo, se te como refdgio solipsista, mas ¢ de fato, para o poeta maduro, © lugar de mediago nas relagdes entre 0 Bu © 0 exterior. Posto Jaime valle”, se dé uma espécie de dialética entre 0 espago de dentro ¢ 0 de fora. Como yasos comunicantes, 0 quarto do Eu solitério — espaco da interioridade — e 0 dia chuvoso 1d fora —espago da natureza — se opdem e se interpenetram, da mesma mento presente da contemplagio, Movimento © duragéo tem a tranafusio dos opostos e se revelam como o fluxo subje- ‘luminada que 0 poema condensa e resgata, omunicagfo entre 0 quarto © a rua que parece itiva do poeta e, mais uma vez aqui, se © contacto com a pobreza. Em 1933, Bandeira deisa a rua do Curvelo para se fixar na Morais e Vale, “uma rua em cotovelo, no coragéo da Lapa”, Hé um reforgo do “sentimento de solidariedade com a miséria”, da gente ¢ do trabe espacial do poeta: “Da janela do meu apartamento em Morais © Vale podia contemplar a pusagem, nfo como fezin do morro do Cutvel, ss como que de dentro dela: as copas das Sevores do Passio. Péblico, of do Convento do Carmo, 1 bafa, a capelinha da Gléria do Outeiro... No entanto quando chegeva & janela, o que me retinha os of a meditago, nfo era nada disso: era o becozinho sujo embaixo, onde vivia tata gente pobre — levadeizas e costureitas, fotdgrafos do Passeio Paiblico, gargons de cafés.” pois ocorre uma aproximacao ainda mai 2s } \ Alguns anos mais tarde, 1ia Lira dos cingilent/anos (livro parecem atestar as provéveis alusGes a “‘rua em cotovelo” (no primeiro verso) e a0 Convento do Carmo: ‘As rodas rangem na curva dos ttilhos Inexoravelmente. Mas cu salvei do meu neutrégio Os elementos mais cotidianos. ‘© meu quarto resume 0 passado em todas as casas que habitel, Dentro da noite No cetne duro da cidade Me sinto protegido. Do jardim do convento Vem o pio da coruja. Doce como um arrulho de pomba, Bater corajoso 0 seu cintico de certezas.™* Desde 0 primeiro verso, estamos sob o signo do inevitdvel, e se faz impossivel escapar ao impacto do poema como um todo. le, condensaglo poderosa de uma expe- cuja complexidade se impde desde logo, sua expressio, contudo, se concentra num simples instrumento do. trabslho hhurnilde: © martelo, De novo, o desafio da simplicidade. Teitura, so percebe de imediato que a palaves que serve de titulo adquitiu muito mais significado do que o comum, mediante certas relagGes internas do desenvolvimento do poema, ‘A forma através da qual, no corpo do texto, se processa essa condensagio do sentido, sob o signo banal, se toma o problema da interpretac#o. Convém ir por pattes. ‘© poema comesa por se impor pelo som. Antes de tudo, por palavras ou expresses que exprimem modalidades de som (22) Estrela da vida intera, p. 156. ‘um som harmonioso, em que hd ainda um eco do sagra de excelso e remete ds formas pri em louvor da divindade, evocando a t No meio, “o pio da coruja” nfo se most {to © agourento, i aria antincio do trégico, prendendo-o & sugestio de catdstrofe inevitdyel, Isto é, ele nfo reitera, como indicio, a ameaga con- cincunstincia inexordvel, sssociada a estridéncia do rufdo ma- quinal, Ao contrétio, “o pio da coruja”, pela dogura, € base de uma comparaggo com o “arrulho de pomba”, Dessa forma, se desyia do sentido comu integragio harmoniosa no ambiente, onde, ap (Dentro da noite/No ce biamente reforgada, no plano da expresstio tera¢do “dura” das consoantes dentais jo discreta do /r/, que faz ainda ecoar, la estrofe, a estridéncla ameagadora do rangido das rodas e dos ertes dos primeiros versos — gritantes nas sflabas fortes do ritmo: As rédas réngem na cérva dos trfthos Inexordvelménte, ‘A pomba, termo da comparago, traz consigo o poder suges- tivo de uma imagem convencional de ressonfncia arquetfpica. Associada & simplicidade (nos evangelhos), a0 Espftito Santo (aa tadigfo cst), a0 antncio da paz, da harmonia, a supe atu amada “pomba minha”, “porque tua voz dove”? No texto, tals conotagées se potenciam pela contigdidade do espago reli- gioso do convento, de onde procede o pio da coryja, Precisa- mente, no poema, @ imagem parece prender-se, de um lado, & superagio do “‘naufrégio” do Eu, pela via da simplicidade: 0 resgate dos “elementos mais cotidianos”. De outro, anuncia © ransformagGo radical do rufdo préprio do martelo em ‘Trata-se, pois, de um signo de passagem ou mediagio, através do qual se processa a transformacio. do rufdo ameaga- dor do infcio na harmonia plena do fim. Nos extremos, as imagens sonoras, rangido ¢ cfintico, ga ham agor .96e8 mais fundas nitidas. As rodas intro- duzem o movimento e o rangido de modo implacdvel. Elas se trdgico, implicando tempo ¢ existéncia, se manifesta agudamen- te pelo rangido “na curva”: espaco da ameaca, pela incdgnita ‘que 0 desconhecimento do outro Tado eiwvolve, como uma gem espacializada do futuro incerto, A referéncia a “nautrd explicita a ameaca trigica, que j4 se concretizou na existénc do Eu, tempo, onde se nente, mas o poeta parece ter encontrado 0 caminho da supera- 0, como 0 restante do poema atesta. Embora continuaments ameacado (a “noite”, 0 “cerne duxo 1 descobrit, levado pela idade (0 pio da coruja se insere e se protege © quarto), no meio do cotidiano anh quando acordar”), a imagem so mesmo tempo humil- de e alta do trabalho humano, dada pelo martelo do ferreiro. (23) Cap, 2, vers. 14, Destacado como as rodas, a que se ope, numa metontinia, firma, corajosa, a vida 8 que ® ameagam. idade da resisténcia humana, pelo trabalho cotidiano © , Bandeira resgata um sentido de sua propria arte poé- ‘4 fungfio social de sua palavra-fraterna, solidéria com @ pobreza, Nisto sua poesia encontra uma razdo de ser, pois 0 poeta se sente amparado na experiéncia comum com o$ outros hhomens e pode reconhecer na forga da fraqueza um poder para- (1983) 7

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