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Sumário

Capa

Prólogo I: O pastor
Prólogo II: O mendigo
O panorama
A noite de Natal
A ceia de Natal
Gösta Berling, o poeta
La cachucha
O baile em Ekeby
Os antigos veículos
O grande urso no monte Gurlita
O leilão em Björne
A jovem condessa
Histórias de fantasmas
A história de Ebba Dohna
Mademoiselle Marie
O primo Kristoffer
Os caminhos da vida
A expiação
O ferro de Ekeby
A casa de Liljecrona
A bruxa de Dovre
O solstício de verão
A senhorita Música
O pastor de Broby
O patrão Julius
Os santos de barro
O andarilho de Deus
O cemitério da igreja
As antigas canções
A morte libertadora
A seca
A mãe da criança
Amor vincit omnia
A menina de Nygård
Kevenhüller
O mercado de Broby
A pequena propriedade na floresta
Margareta Celsing

Posfácio, de Marguerite Yourcenar

Notas
Créditos
ENFIM O PASTOR ESTAVA NO PÚLPITO.
As cabeças da congregação se ergueram. Ah, finalmente estava
lá! O culto não seria cancelado naquele domingo, como fora no
domingo anterior e em muitos outros.
O pastor era jovem, alto, esbelto e tinha uma beleza radiante.
Com um elmo na cabeça, uma espada e uma armadura, seria
possível esculpi-lo em mármore e tomá-lo como o mais belo filho de
Atenas.
Ele tinha o olhar profundo de um poeta e o queixo determinado e
firme de um general; tudo nele era belo, delicado, expressivo,
permeado pela bondade e pela espiritualidade.
As pessoas da igreja sentiram-se estranhamente subjugadas ao
vê-lo. Era mais costumeiro que saísse da taverna na companhia de
gente alegre e camarada como Beerencreutz, o coronel de farto
bigode grisalho, e o robusto capitão Kristian Bergh.
Havia bebido tanto que por muitas semanas não pudera cumprir
seus deveres, e a congregação fora obrigada a registrar uma queixa
formal sobre isso, primeiro ao preboste e depois ao bispo e à
catedral. Naquele momento, o bispo tinha chegado à paróquia para
fazer um inquérito rigoroso. Estava sentado no coro, com a cruz de
ouro no peito, rodeado pelos pastores escolares de Karlstad e
outros de congregações das vizinhanças.
Não havia dúvida de que o comportamento do pastor havia
ultrapassado os limites do permitido. Naquela época, na década de
1820, as pessoas eram tolerantes com a bebida, mas esse homem
tinha negligenciado as obrigações religiosas em nome da bebedeira
e estava a ponto de perder o posto que ocupava.
O pastor aguardava no púlpito enquanto o último verso do salmo
era entoado.
Enquanto estava lá, foi tomado de repente por uma certeza, uma
certeza de que tinha somente inimigos na igreja, inimigos em todos
aqueles bancos. Os senhores na galeria, os camponeses na parte
baixa da igreja, os garotinhos no coro eram todos inimigos, somente
inimigos. Era um inimigo que operava o órgão, um inimigo que o
tocava. No banco dos sacristãos, ele tinha inimigos. Todos o
odiavam, até mesmo as crianças pequenas levadas para a igreja,
até mesmo o vigia da igreja, um soldado rígido e austero que servira
em Leipzig.
O pastor sentiu vontade de prostrar-se de joelhos e implorar por
misericórdia.
Mas no instante seguinte uma fúria silenciosa se abateu sobre
ele. Lembrou-se de como tudo havia se passado quando, um ano
antes, ocupara o púlpito pela primeira vez. Ele tinha sido um homem
irrepreensível naquela época, e agora estava lá, encarando o
homem com a cruz de ouro no pescoço, que havia chegado para
julgá-lo.
Enquanto lia o introito, ondas de sangue subiam-lhe ao rosto,
uma atrás da outra: era a fúria.
Era verdade que havia bebido, mas quem poderia acusá-lo por
isso? Por acaso tinham visto a casa pastoral onde ele era obrigado
a morar? Com a inóspita e escura floresta de espruces junto à
janela? A umidade pingava do telhado preto e escorria pelas
paredes emboloradas. Não entendiam que a aguardente era
necessária para manter o moral elevado quando a chuva e as
nevascas entravam por vidraças partidas, quando a terra
malcuidada negava-se a oferecer pão suficiente para afastar a
fome?
Ele imaginava ser o sacerdote que aquela gente merecia. Afinal,
todos bebiam. Por que só ele haveria de exercer a temperança? O
homem que enterrou a esposa não encheu a cara de cerveja, após
o funeral? O pai que batizou o filho não promoveu uma bebedeira
logo depois da cerimônia? Os paroquianos bebiam no caminho de
volta da igreja, e a maioria já estava bêbada quando chegava em
casa. Um pastor bêbado seria ótimo para aquela gente.
Foi nas visitas pastorais, quando, com um sobretudo fino, viajava
léguas por lagos congelados, onde todos os ventos enregelantes se
encontravam, foi no balanço enfrentado em pequenas embarcações
nesses mesmos lagos, sob chuvas e tormentas, foi nas intempéries,
quando precisava descer do trenó e puxar o cavalo por montes de
neve da altura de casas, ou ainda quando passava a vau em meio
aos charcos da floresta, foi nessas ocasiões todas que ele tomara
gosto pela aguardente.
O ano se arrastava em uma pesada melancolia. Camponeses e
senhores passavam o dia com os pensamentos presos à terra, mas
à noite todos os espíritos desfaziam-se dos grilhões, libertados pela
aguardente. Os impulsos afloravam, o coração se acalentava, a vida
tornava-se radiante, a música soava, as rosas emanavam perfume.
A taverna da estalagem havia se tornado para ele um jardim de
flores no sul: uvas e azeitonas pairavam acima de sua cabeça,
bases de mármore reluziam em meio à folhagem escura, sábios e
poetas vagavam sob as copas de palmeiras e plátanos.
Não; ele, como pastor no púlpito, sabia que sem aguardente a
vida não podia ser vivida naquele fim de mundo; todos os ouvintes
sabiam disso, e mesmo assim queriam julgá-lo.
Queriam tirar-lhe a batina porque havia entrado bêbado na casa
de Deus. Ah, mas será que toda aquela gente acreditava, será que
queriam mesmo acreditar que havia outro Deus além da
aguardente?
Ele terminou de ler o introito e ajoelhou-se para rezar o pai-
nosso.
O silêncio foi tanto que não se ouviam sequer as respirações
durante a oração. Mas de repente o pastor segurou firme, com as
duas mãos, a faixa que envolvia a batina. Pareceu-lhe que a
congregação inteira, com o bispo à frente, se aproximava do púlpito
para arrancar-lhe a batina. Estava de joelhos e não virou a cabeça,
mas pôde sentir que o puxavam, e viu a todos com enorme clareza,
tanto o bispo como os pastores escolares, os prebostes, os
sacristãos, o sineiro e a congregação inteira em uma longa fila de
pessoas que o agarravam e o sacudiam a fim de lhe tirar a batina. E
ele imaginou vividamente que todas aquelas pessoas, que o
puxavam com grande ímpeto, haveriam de cair umas por cima das
outras, escada abaixo, tão logo a batina se soltasse. E toda a fileira
seguinte, que não havia segurado a batina, mas apenas a bainha do
casaco, também haveria de cair.
Viu tudo isso com tanta clareza que chegou a sorrir, prostrado de
joelhos, embora ao mesmo tempo sentisse um suor frio brotar-lhe
da testa. Tudo aquilo era deveras sinistro.
Então agora ele se tornaria um pária em função da aguardente!
Seria um pastor destituído. Haveria na terra coisa mais miserável?
Seria um mendigo à beira da estrada, dormiria bêbado na
sarjeta, andaria vestido em andrajos, na companhia de vagabundos.
A oração chegou ao fim. Ele deveria começar a ler o sermão.
Mas de repente ocorreu-lhe um pensamento que deteve as palavras
em seus lábios. Pensou que aquela seria a última vez que ocuparia
o púlpito a fim de proclamar a glória de Deus.
Pela última vez – esse pensamento tomou conta do pastor.
Esqueceu-se de tudo relacionado à aguardente e ao bispo. Pensou
que precisava aproveitar a ocasião e oferecer um testemunho da
glória de Deus.
Imaginou que o chão da igreja, com todos os ouvintes, afundava,
afundava cada vez mais, e que o teto da igreja se abria, e que de
repente ele podia olhar para o céu. Estava sozinho, completamente
sozinho no púlpito, e seu espírito elevou-se rumo ao céu revelado
nas alturas, sua voz tornou-se forte e vasta, e ele proclamou a glória
de Deus.
Estava inspirado. Renunciou ao que tinha escrito; os
pensamentos acudiam-lhe como uma revoada de pombas dóceis.
Sentia como se não fosse ele próprio falando, mas também
compreendia que aquilo era o que havia de mais sublime em toda a
terra, e que ninguém poderia chegar mais longe em majestade e
esplendor do que ele, que de lá proclamava a glória de Deus.
Enquanto a língua de fogo da inspiração chamejava, ele falou,
mas, assim que essa língua se apagou e o teto voltou a fechar-se
sobre a igreja e o chão a se erguer das profundezas em que havia
afundado, ele baixou a cabeça e chorou, pois acreditava que a vida
já lhe havia oferecido seu grande momento, e que esse havia
passado.
Ao fim do culto deram-se a inspeção e a assembleia. O bispo
perguntou à congregação se alguém tinha qualquer tipo de queixa
contra o pastor.
O pastor não estava mais furioso e renitente como antes do
sermão. Naquele instante, envergonhou-se e baixou a cabeça. Ah,
todas as terríveis histórias de bebedeira que haveriam de vir à baila!
Mas não surgiu nenhuma. Todos se mantiveram em absoluto
silêncio ao redor da grande mesa paroquial.
O pastor ergueu o rosto: primeiro olhou para o sineiro; não, ele
estava calado; depois para os sacristãos; e por fim olhou para os
camponeses e os patrões das fundições. Todos estavam calados.
Tinham os lábios apertados e olhavam levemente constrangidos
para a mesa.
“Com certeza estão à espera de que alguém comece”, pensou o
pastor.
Um dos sacristãos pigarreou.
– Na minha opinião, temos aqui um pastor excepcional – disse.
– O reverendo bispo ouviu como ele conduz a pregação –
acrescentou o sineiro.
O bispo fez um comentário qualquer sobre os frequentes
cancelamentos dos cultos.
– O pastor tem o direito de adoecer, como todo mundo –
afirmaram os camponeses.
O bispo sugeriu que havia insatisfação com o tipo de vida que o
pastor levava.
Os camponeses defenderam-no em uníssono. O pastor da
paróquia era jovem e não havia nada de errado com ele. Não, se
continuasse a pregar como havia feito naquele dia, não haveriam de
trocá-lo nem mesmo pelo bispo.
Não havia nenhum reclamante, de forma que não poderia haver
juiz nenhum.
O pastor sentiu o coração se enternecer e o sangue voltar a
correr leve pelas veias. Ah, saber que não estava mais entre
inimigos, saber que os havia conquistado, quando já não imaginava
continuar a ser pastor!
Ao fim da inspeção, o bispo, os pastores escolares, os prebostes
e os homens mais eminentes da paróquia jantaram na casa
pastoral.
Uma das mulheres da vizinhança havia se encarregado dos
preparativos para o jantar, uma vez que o pastor era solteiro. Tinha
cuidado de tudo da melhor forma possível, e o pastor surpreendera-
se ao ver que a casa já não parecia tão sinistra. A longa mesa de
jantar estava posta no pátio, sob a copa dos espruces, e parecia
muito agradável com a toalha branca, a porcelana azul e branca, os
copos polidos e os guardanapos dobrados. Duas bétulas
debruçavam-se por cima da entrada, havia ramos de zimbro a
enfeitar o chão do vestíbulo, a cumeeira estava decorada com uma
guirlanda de flores, em todos os cômodos havia flores, o cheiro de
bolor se dissipara e os vidros esverdeados das janelas reluziam
agradavelmente ao sol.
O coração do pastor se encheu de alegria. Ele pensou que nunca
mais iria beber.
Não havia ninguém que não estivesse alegre naquela mesa de
jantar. Aqueles homens, que tinham se mostrado tolerantes e
generosos, estavam alegres, e também estavam alegres os mais
distintos pastores por terem escapado de todo e qualquer
escândalo.
O caridoso bispo ergueu o copo e disse que havia embarcado
naquela viagem com a consciência pesada, uma vez que ouvira
rumores desagradáveis. Tinha partido imaginando encontrar um
Saulo, mas eis que Saulo já estava transformado em Paulo, em um
homem que haveria de trabalhar mais do que todos os outros. E o
pio senhor continuou a falar sobre os muitos talentos daquele irmão
mais jovem, e também a elogiá-lo. Não para que se tornasse
arrogante, mas para que pudesse envidar todos os esforços e vigiar
a si mesmo, como devem fazer todos aqueles que carregam um
fardo deveras pesado e precioso nas costas.
O pastor não se embebedou durante o jantar, mas bebeu o
suficiente para sentir-se alterado. Uma felicidade enorme e
inesperada subiu-lhe à cabeça. O céu havia permitido que a língua
de fogo da inspiração chamejasse acima dele, e as pessoas haviam
retribuído com amor. O sangue continuou a correr-lhe pelas veias
com o calor da febre e a uma velocidade impressionante, mesmo
quando a noite caiu e os convivas partiram. Durante a madrugada,
ele sentou-se no quarto, ainda desperto, e deixou que o ar noturno
entrasse pela janela aberta para resfriar aquela febre de bem-
aventurança, aquela agitação deliciosa que o impedia de dormir.
De repente uma voz se fez ouvir.
– Estás acordado, pastor?
Um homem atravessou o gramado e aproximou-se da janela. O
pastor olhou para fora e reconheceu o capitão Kristian Bergh, um de
seus fiéis companheiros de bebedeira. O capitão Kristian era um
homem sem rumo e sem posses, e um verdadeiro gigante no porte
e nas forças. Era grande como o monte Gurlita e estúpido como um
troll da montanha.
– Claro que estou de pé, capitão Kristian – respondeu o pastor. –
Achas que esta é uma noite para se dormir?
E ouça agora o que o capitão Kristian respondeu ao pastor! Esse
gigante tinha lá seus pressentimentos, e havia compreendido que o
pastor estava pronto para mais uma bebedeira. Ele nunca mais teria
sossego, pensou o capitão Kristian, pois aqueles pastores escolares
de Karlstad, que já lhe haviam feito uma visita, podiam voltar a
qualquer momento e retirar-lhe a batina, caso bebesse.
Mas naquela altura o capitão Kristian já havia pesado a mão para
atingir um fim nobre, já tomara as providências necessárias para
que aqueles pastores escolares nunca mais voltassem – nem eles
nem o bispo. Doravante o pastor e seus amigos poderiam beber o
quanto quisessem na casa pastoral.
Ouça que grande façanha levou a efeito Kristian Bergh, esse
possante capitão! Quando o bispo e os dois pastores escolares
subiram na carruagem fechada e as portas estavam bem, bem
fechadas, o próprio capitão ocupou o assento do cocheiro e os
conduziu por 2 ou 3 léguas naquela noite clara de verão.
E então Kristian Bergh fez com que os reverendos sentissem
como são frágeis as amarras que mantêm a vida presa ao corpo do
homem. Em meio a uma carreira desatinada, deixou que os cavalos
galopassem. Era o que mereciam por não tolerarem que um homem
honrado se embriagasse.
Acha que o capitão os levou pelo caminho, acha que evitou os
solavancos? Pois ele passou por cima de sulcos e de terrenos
irregulares, avançou em um galope desenfreado morro abaixo,
correu ao longo da orla de maneira que a água revoluteasse em
torno das rodas, esteve prestes a atolar no palude e desceu por
rochas nuas de maneira que os cavalos andassem com as patas
rígidas e escorregassem. E durante todo esse tempo o bispo e os
pastores escolares mantinham-se com o rosto pálido atrás das
cortinas de couro, murmurando súplicas. Jamais haviam feito
viagem pior.
E imagine a expressão naqueles rostos quando chegaram à
estalagem de Rissäter, vivos, porém sacudidos como chumbo numa
bolsa de couro!
– O que significa isso, capitão Kristian? – perguntou o bispo
assim que abriu a porta da carruagem.
– Significa que o bispo deve pensar duas vezes antes de fazer
outra visita a Gösta Berling – respondeu o capitão Kristian, que
havia pensado na frase de antemão para não errar.
– Avise então a Gösta Berling – disse o bispo – que nem eu nem
nenhum outro bispo vamos tornar a visitá-lo!
Veja, foi essa bravata que o possante capitão Kristian contou ao
pastor ainda de pé junto à janela em meio àquela noite de verão.
Pois o capitão Kristian tinha acabado de ir à estalagem com os
cavalos e de voltar para dar as boas-novas ao pastor.
– Podes agora ficar tranquilo, meu pastor e irmão – disse.
Ah, capitão Kristian! Os pastores escolares tinham ficado com o
rosto pálido atrás da cortina de couro, mas naquela noite clara de
verão o pastor deu a impressão de estar ainda mais pálido que eles.
Ah, capitão Kristian!
O pastor chegou a erguer o braço e esteve prestes a desferir
uma terrível bofetada contra o rosto tosco e estúpido daquele
gigante, porém se deteve. Fechou a janela com um estrondo e
parou no meio do cômodo, brandindo o punho cerrado.
Ele, um homem para quem a língua de fogo da inspiração havia
chamejado, ele, que havia proclamado a glória de Deus, de repente
pensou que Deus só podia estar brincando com ele.
Acaso o bispo não havia de crer que o capitão Kristian fora
enviado por ordem do pastor? Acaso não havia de crer que passara
o dia inteiro às voltas com mentiras e hipocrisias? A partir daquele
momento, o bispo haveria de levar a sério a investigação contra ele;
a partir daquele momento, haveria de suspendê-lo e destituí-lo.
Quando a manhã chegou, o pastor não estava em casa. Não se
preocupara em estar lá para apresentar sua defesa. Deus havia
brincado com ele. Deus não queria ajudá-lo. Ele sabia que acabaria
por ser destituído. Era a vontade de Deus. Seria melhor aceitá-la de
uma vez por todas.
Tudo isso se passou no começo do século XIX, em uma paróquia
distante localizada no oeste da província de Värmland.
Foi a primeira agrura que se abateu sobre Gösta Berling; porém
não a última.
Para os potros que não aguentam esporas e chicotes a vida é
árdua. A cada dor que os aflige, disparam em carreira por caminhos
fortuitos rumo ao fundo do abismo. Assim que o caminho torna-se
pedregoso e a viagem preocupante, não sabem fazer mais que
derrubar a carga e correr em desvario.
EM UM DIA FRIO DE DEZEMBRO UM MENDIGO surgiu vagando pelos
morros de Broby. Trajava os mais sórdidos andrajos e usava
sapatos tão gastos que a neve fria umedecia-lhe os pés.
O Löven é um lago longo e delgado em Värmland, que em dois
ou três pontos afunila-se em estreitos longos e delgados. Ao norte,
sobe rumo às florestas dos finlandeses, e ao sul desce rumo ao lago
Vänern. Muitas paróquias estendem-se ao longo dessas margens,
mas a paróquia de Bro é a maior e a mais rica. Ocupa boa parte das
orlas do lago, tanto na margem leste como na margem oeste, mas é
na margem oeste que se encontram as maiores casas senhoriais,
como Ekeby e Björne, conhecidas pela opulência e pela beleza, e o
grande povoado de Broby, servido por estalagem, tribunal,
comissariado, casa pastoral e mercado.
Broby fica em uma encosta íngreme. O mendigo passara em
frente à estalagem, localizada no pé do morro, e arrastava-se em
direção à casa pastoral, localizada no ponto mais alto.
À frente, no morro, seguia uma menininha que puxava um trenó
carregado com um saco de farinha. O mendigo apressou-se em
alcançar a menina e pôs-se a falar com ela.
– Que potrinha tão pequena para uma carga tão grande! – disse.
A criança virou-se e olhou para ele. Era uma menina de cerca de
12 anos com olhos atentos e penetrantes e lábios apertados.
– Quisesse Deus que a potrinha fosse menor e a carga maior,
porque assim duraria mais – respondeu a menina.
– Então é tua própria comida que levas para casa?
– Com a graça de Deus. Preciso arranjar minha própria comida,
por menor que eu seja.
O mendigo pôs a mão na parte traseira do trenó para empurrá-lo.
A menina virou-se e o encarou.
– Não penses que ganharás algo em troca disso – ela disse.
O mendigo começou a rir.
– Tu deves ser a filha do pastor de Broby – ele disse.
– Sou mesmo. Muitos têm pais mais pobres, mas ninguém tem
um pior. É a mais pura verdade, embora seja uma vergonha que a
própria filha dele precise dizer isso.
– Dizem que é um homem avaro e malvado, o teu pai.
– Avaro ele é, e malvado também, mas a filha deve ser ainda pior
enquanto viver, segundo dizem por aí.
– E pelo que estou vendo as pessoas têm razão. Mas o que eu
queria mesmo saber é onde arranjaste esse saco de farinha.
– Não vai fazer muita diferença se eu contar. Eu peguei os grãos
do celeiro do meu pai hoje pela manhã e estou voltando do moinho.
– E ele não poderá ver-te quando apareceres com o saco?
– Abandonaste a escola demasiado cedo. O meu pai está
fazendo visitas à paróquia, entendes?
– Alguém está subindo o morro atrás de nós. Ouço o rumor das
pranchas. Imagina se for ele!
A menina escutou e olhou ao redor, e então começou a chorar.
– É o meu pai – ela fungou. – Ele vai me matar. Ele vai me matar.
– Enfim, agora os bons conselhos são preciosos, e os conselhos
rápidos, mais valiosos do que ouro e prata – disse o mendigo.
– Escuta – disse a menina –, tu podes me ajudar. Pega a corda e
puxa o trenó, porque assim o meu pai vai pensar que é teu.
– Mas depois o que eu vou fazer com isso? – perguntou o
mendigo, passando a corda por cima do ombro.
– Carrega-o para onde quiseres, mas leva-o à casa pastoral
depois que escurecer! Eu posso cuidar de ti. Mas precisas levar o
saco e o trenó, entendido?
– Vou tentar.
– Deus tenha piedade de ti, caso não apareças! – gritou a
menina enquanto corria para longe, apressando-se para chegar em
casa antes do pai.
O mendigo virou o trenó com o coração pesado e o levou até a
estalagem.
O coitado havia se entregado a um sonho enquanto caminhava
pela neve com os pés quase descalços. Estava caminhando e
pensando nas grandes florestas a norte do Löven, nas grandes
florestas dos finlandeses.
Lá, na paróquia de Bro, onde naquele momento andava ao longo
do estreito que liga as águas do Övre Löven ao Nedre Löven,
naquela região famosa pela riqueza e pela alegria, onde há uma
casa senhorial ao lado da outra, fundição ao lado de fundição, lá
todos os caminhos eram demasiado árduos, todos os cômodos
demasiado exíguos, todas as camas demasiado duras para ele. Lá
não lhe restava mais do que ansiar com amargura pela serenidade
das grandes florestas eternas.
Lá ele ouvia ruídos no interior de cada celeiro, como se o
debulhar dos grãos jamais chegasse ao fim. Carregamentos de
madeira e trenós repletos de carvão deixavam sem parar aquelas
florestas inexauríveis. Incontáveis cargas de minério eram
transportadas pelos fundos sulcos da estrada, marcada por
centenas de outras rodas. Ele viu trenós repletos de gente
apressarem-se de uma propriedade a outra, e sentiu como se a
alegria segurasse as rédeas e a beleza e o amor deslizassem sobre
aquelas pranchas. Ah, como aquele coitado ansiava pela
serenidade das grandes florestas eternas!
Era por lá, onde as árvores se erguem a prumo como pilares no
terreno plano, onde a neve repousa em camadas ponderosas sobre
os galhos imóveis, onde o vento perde as forças e não faz mais do
que brincar em silêncio com as agulhas das copas altaneiras, era
por lá que desejava perambular cada vez mais, até que um dia as
forças lhe faltassem e ele caísse sob as grandes árvores para
morrer de fome e frio.
Ansiava pelo grande e sussurrante túmulo às margens do Löven,
onde seria vencido pelas forças da aniquilação, onde enfim a fome,
o frio, o cansaço e a aguardente poderiam desfazer aquele pobre
corpo, que a tudo havia suportado.
Ele chegou à estalagem e quis passar a noite ali. Entrou na
taverna e sentou-se para sucumbir a um descanso letárgico no
banco junto à porta, sonhando com as florestas eternas.
A estalajadeira solidarizou-se com o homem e ofereceu-lhe um
gole de aguardente. Chegou mesmo a oferecer-lhe uma segunda
dose, ao ver que pedia com tanta insistência.
Mas não quis dar-lhe mais do que isso, e o mendigo então
desesperou-se. Precisava beber mais daquela aguardente forte e
doce. Precisava sentir mais uma vez o coração dançar no peito e os
pensamentos arderem na embriaguez. Ah, o doce produto do grão!
O sol do verão, o canto dos pássaros no verão, o perfume e a
beleza do verão pairavam em meio àquela onda branca. Mais uma
vez, antes de sumir em meio à noite e à escuridão, queria beber do
sol e da felicidade.
E então trocou primeiro a farinha, depois o saco de farinha e
enfim o trenó por copos de aguardente. Em troca, conseguiu uma
boa embriaguez e dormiu a maior parte da tarde em um banco da
taverna.
Ao acordar, compreendeu que lhe restava apenas uma coisa a
fazer. Posto que aquele corpo miserável assumira por completo o
controle de sua alma, posto que teria bebido qualquer coisa que
uma criança lhe confiasse, posto que era uma vergonha para o
mundo, a única coisa a fazer seria livrar o mundo de tanta miséria.
Era preciso devolver a liberdade à própria alma e permitir que ela se
encontrasse com Deus.
Ele sentou-se no banco da taverna e começou o julgamento de si
mesmo: “Gösta Berling, pastor destituído, acusado de ter bebido a
farinha de uma criança faminta, foi condenado à morte. Que morte?
A morte nos montes de neve”.
Ele pegou a touca e saiu aos tropeços. Não estava nem de todo
desperto nem de todo sóbrio. Chorou com pena de si mesmo, com
toda a pobre alma conspurcada que havia de libertar.
Ele não foi longe e não se desviou do caminho. Já na beira da
estrada havia um monte de neve bastante alto. Foi dali que se jogou
para a morte. Fechou os olhos e tentou dormir.
Ninguém sabe quanto tempo passou lá deitado, mas ainda
estava vivo quando a filha do pastor de Broby chegou correndo pela
estrada carregando um lampião e o encontrou no monte de neve à
beira da estrada. Tinha-o esperado horas a fio. Naquele momento,
havia descido os morros de Broby na tentativa de encontrá-lo.
Ela o reconheceu de pronto, e então começou a sacudi-lo e a
gritar com todas as forças para acordá-lo.
Precisava saber o que tinha feito com o saco de farinha.
Precisava chamá-lo de volta à vida por um instante que fosse,
para que assim o homem pudesse contar-lhe que fim haviam levado
o trenó e o saco de farinha. O doce pai haveria de dar-lhe uma surra
tremenda caso houvesse perdido o trenó. Ela mordeu um dos dedos
do mendigo e arranhou-lhe o rosto enquanto gritava
desesperadamente.
De repente uma pessoa montada em um trenó surgiu na estrada.
– Quem diabos está gritando desse jeito? – perguntou uma voz
ríspida.
– Eu quero saber o que esse sujeito fez com o meu saco de
farinha e o meu trenó – disse a menina, fungando, enquanto batia
com os punhos fechados no peito do mendigo.
– Ele está congelado, e o esmurras desse jeito? Levanta-te daí,
fera!
A pessoa era uma mulher grande e grosseira. Ela desceu do
trenó e aproximou-se do monte de neve. Agarrou a menina pela
nuca e jogou-a na estrada. Depois se abaixou, passou os braços por
baixo do corpo do mendigo e o levantou. Então levou-o até o trenó e
o instalou lá dentro.
– Vem comigo até a estalagem, fera – a mulher gritou para a filha
do pastor –, para que possamos ouvir o que tens a dizer sobre essa
história!

Uma hora mais tarde o mendigo estava sentado em uma cadeira


junto à porta no melhor quarto da estalagem, tendo à frente a
mulher decidida que o havia resgatado da neve.
Vê-la como Gösta Berling a viu naquele momento, voltando dos
fornos de carvão para casa, com as mãos cheias de fuligem e um
cachimbo de barro na boca, vestida com um casaco de couro de
ovelha curto e sem forro e uma saia listrada de lã feita em casa,
com sapatos de casca de bétula nos pés e uma bainha de faca no
busto, vê-la como a viu, com os cabelos grisalhos, penteados para
trás acima do rosto velho e bonito, foi como imaginá-la nas mil
vezes em que a ouvira descrita, e ele compreendeu que havia
topado com a célebre esposa do major de Ekeby.
Era uma das mulheres mais poderosas de Värmland, senhora de
sete fundições, acostumada a dar ordens e a ser obedecida,
enquanto ele não passava de um pobre-diabo condenado à morte,
privado de tudo, e ciente de que para si todos os caminhos eram
demasiado árduos, todos os cômodos demasiado exíguos. O corpo
dele tremia de desconforto enquanto o olhar da mulher o fixava.
Ela manteve-se em silêncio e olhou para a miséria humana que
tinha diante de si, para as mãos vermelhas e inchadas, para a figura
embarrada e para aquela cabeça maravilhosa, que mesmo na
indignidade e na decadência reluzia com uma beleza indômita.
– O senhor é Gösta Berling, o pastor louco? – a mulher
perguntou.
O mendigo manteve-se imóvel.
– Eu sou a senhora de Ekeby.
Um tremor percorreu o corpo do mendigo. Ele juntou as mãos e
levantou o rosto, com um olhar repleto de anseio. O que ela faria
com ele? Será que o forçaria a viver? Ele tremia perante aquela
força. Mesmo assim, tinha estado muito perto da serenidade das
florestas eternas.
A mulher começou a batalha dizendo-lhe que a filha do pastor
conseguira recuperar o trenó e o saco de farinha, e que ela, a
esposa do major, tinha abrigo para ele e para muitos outros coitados
que não dispunham de um teto na ala masculina em Ekeby.
Ofereceu-lhe uma vida de prazer e sossego, mas ele respondeu que
tinha de morrer.
Então ela bateu com o punho fechado em cima da mesa e disse-
lhe exatamente aquilo que pensava.
– Ah, muito bem, o senhor tem de morrer, então? Eu não me
espantaria, se para início de conversa o senhor estivesse vivo. Veja!
Com esse corpo esquálido, esses braços débeis e esses olhos
baços, o senhor acha que ainda lhe falta morrer outra coisa! O
senhor acaso pensa que é um requisito indispensável estar deitado
com o corpo enrijecido e pregado sob a tampa de um caixão para
estar morto? Acaso pensa que não estou aqui vendo o quanto o
senhor está morto, Gösta Berling?
“Pois o que vejo é que o senhor tem uma caveira no alto do
pescoço, e acredito que os vermes rastejem nas suas órbitas. O
senhor não sente a boca cheia de terra? Não ouve o bater dos
ossos quando se movimenta?
“O senhor afogou-se na aguardente, Gösta Berling, e já se
encontra morto.
“Aquilo que se movimenta no senhor são apenas os ossos de um
morto, e o senhor não quer permitir-lhes que vivam; mas será
mesmo adequado chamar isso de vida? Parece antes que o senhor
invejaria os mortos por uma dança em cima dos montes tumulares
em uma noite estrelada.
“O senhor se envergonha de ter sido destituído, e por isso quer
morrer agora? Parece-me que seria mais honroso empregar seus
dons e tornar-se útil na terra fértil de Deus. Por que não veio
diretamente até mim, para que eu arrumasse tudo para o senhor?
Ora, em vez disso o senhor espera a pompa de ser amortalhado,
posto em cima da serragem e chamado de belo cadáver?”
O mendigo permaneceu sentado e quieto, quase sorridente,
enquanto a mulher fazia ribombar essas palavras de fúria. Não é
nada, ele regozijou-se, não é nada! As florestas eternas me
aguardam, e essa mulher não tem o poder de alterar o curso de
minha alma.
A esposa do prefeito, porém, calou-se e deu mais uns passos
pelo cômodo. Por fim acomodou-se ao pé da estufa, apoiou os pés
na soleira, firmando os cotovelos nos joelhos.
– Com mil demônios! – ela disse, rindo por dentro. – Eu disse
mais verdade do que sabia. Por acaso não acha, sr. Gösta Berling,
que as pessoas neste mundo estão em boa parte mortas ou
moribundas? O senhor acha que estou viva? Ah, não! Ah, não!
“Olhe bem para mim! Sou a senhora de Ekeby, e provavelmente
a mulher mais poderosa em toda a província de Värmland. Se eu
mexer um dedo, o governador vem correndo; se eu mexer dois, vem
o bispo; se eu mexer três, todos os chefes da Igreja, os magistrados
e todos os patrões das fundições de Värmland dançam polca no
mercado de Karlstad. Mas com mil demônios, rapaz… eu digo que
não sou nada além de um cadáver vestido. Só Deus sabe como é
pouca a vida que me resta.”
O mendigo inclinou o corpo à frente, ouvindo-a com toda a
atenção. A velha senhora balançava-se em frente ao fogo. Não
olhava para ele ao falar.
– O senhor não acha – a mulher prosseguiu – que se eu fosse
uma pessoa viva e o visse aí sentado, miserável e abatido, às voltas
com ideias de suicídio, o senhor não acha que eu devia afastá-las
imediatamente? Nesse caso eu teria lágrimas e orações capazes de
virá-lo de cabeça para baixo, e assim salvaria uma alma, mas
acontece que estou morta.
“O senhor já ouviu dizer que outrora fui a bela Margareta
Celsing? Não foi ontem, mas às vezes ainda choro por ela até os
meus olhos ficarem vermelhos. Por que Margareta Celsing morreu
enquanto Margareta Samzelius vive? Por que vive a senhora de
Ekeby? Diga-me, Gösta Berling!
“O senhor por acaso sabe como era Margareta Celsing? Era uma
moça esbelta, tímida e inocente, Gösta Berling. Uma daquelas em
cujo túmulo os anjos põem-se a chorar.
“Não conhecia o mal, ninguém lhe causara tristezas e era boa
com toda a gente. E também era linda, linda de verdade.
“Foi um homem imponente chamado Altringer. Só Deus sabe
como ele foi parar em meio à natureza de Älvdalen, onde os pais
dela tinham uma fundição. Margareta Celsing o viu: e ele era um
homem bonito e maravilhoso, que a amava.
“Mas era pobre, e os dois prometeram esperar um pelo outro
durante cinco anos, como naquela canção tradicional.
“Passados três anos, surgiu outro pretendente. Era um homem
feio e repulsivo, mas os pais da moça acreditavam que era rico, e
assim, prometendo mundos e fundos, com palavras e atitudes
duras, obrigaram Margareta Celsing a desposá-lo. Foi nesse dia que
Margareta Celsing morreu.
“Desde então já não existe Margareta Celsing, apenas a sra.
Samzelius, e ela não era boa, não era tímida e acreditava com todas
as forças no mal, ao passo que pouco se importava com o bem.
“E tu sabes muito bem o que aconteceu depois. Passamos a
morar em Sjö, aqui perto do lago Löven, o major e eu. Mas ele não
era rico, como as pessoas dizem. Com frequência eu tinha
momentos difíceis.
“Então Altringer voltou, dessa vez rico. Tornou-se senhor de
Ekeby, na divisa com Sjö. E tornou-se senhor de outras seis
propriedades às margens do Löven. Era um homem dedicado, cheio
de vida… um homem maravilhoso.
“Ele nos ajudou a enfrentar a pobreza: andávamos nas suas
carruagens, ele mandava víveres para a nossa cozinha, vinho para
a nossa despensa. Enchia a minha vida de festejos e deleites. O
major teve de ir para a guerra, mas isso pouco importava! Num dia
eu era convidada em Ekeby, no dia seguinte Altringer me visitava
em Sjö. Ah, era como uma longa e prazerosa dança às margens do
Löven!
“Mas corriam boatos maldosos a respeito de mim e de Altringer.
Se Margareta Celsing ainda estivesse viva nessa época, teria
sofrido muito, porém eu não senti nada. Mas eu ainda não tinha
compreendido que era por estar morta que eu me sentia tão
indiferente.
“Depois os boatos a nosso respeito chegaram ao meu pai e à
minha mãe enquanto os dois andavam pelas carvoarias na floresta
de Älvdalen. Minha mãe não parou um segundo para refletir; veio
direto para cá falar comigo.
“Um dia, quando o major estava fora e eu estava sentada à mesa
com Altringer e outros convivas, ela chegou de repente. Eu a vi
entrar na sala, mas não senti que era a minha mãe, Gösta Berling.
Eu a cumprimentei como se fosse uma estranha e a convidei para
sentar-se à mesa e partilhar da refeição conosco.
“Ela quis me falar como se eu fosse a filha dela, mas eu disse-lhe
que estava equivocada, que os meus pais haviam morrido, que os
dois haviam morrido no dia do meu casamento.
“E minha mãe entrou no jogo. Ela tinha 70 anos e havia viajado
30 léguas em três dias. Sentou-se então à mesa sem nem ao
menos franzir a testa e serviu-se de comida; ela era uma pessoa
muito forte.
“Disse que era muito triste eu ter sofrido tão grande perda
justamente naquele dia.
“‘O mais triste mesmo’, eu disse, ‘foi os meus pais não terem
morrido no dia anterior, porque assim não teria havido casamento’.
“‘Então a senhora não está satisfeita com seu casamento?’, ela
me perguntou.
“‘Estou’, eu disse. ‘Estou satisfeita. Foi uma satisfação eterna
fazer a vontade dos meus queridos pais.’
“Ela perguntou se tinha sido a vontade dos meus pais que eu me
cobrisse de vergonha e traísse a eles e ao meu marido. Não era
exatamente motivo de honra para os meus pais tornar-me malfalada
na boca de todos os homens.
“‘Cada um colhe aquilo que planta’, eu respondi. Ademais, essa
senhora desconhecida tinha de compreender que não era minha
intenção permitir que zombassem da filha dos meus pais.
“Comemos, as duas. Os homens ao nosso redor mantiveram-se
em silêncio e não conseguiram sequer pegar os talheres.
“A senhora passou um dia inteiro na minha casa, e então se foi.
“Mas, durante todo o tempo em que a vi, não compreendi que se
tratava da minha mãe. Eu sabia apenas que minha mãe estava
morta.
“Na hora da partida, quando eu estava ao lado dela na escada e
a carruagem havia chegado, ela me disse:
“‘Passei um dia inteiro em tua casa sem que te dirigisses a mim
como tua mãe. O caminho até aqui é solitário, e foram 30 léguas em
três dias. E meu corpo estremece de vergonha por ti, como que
fustigado. Que sejas rejeitada como eu fui, e também renegada
como eu fui! Que a estrada seja a tua casa, o feno a tua cama e a
carvoaria a tua estufa! Que sejam a vergonha e a humilhação a tua
recompensa, e que outros batam em ti como eu bato agora!’
“E então ela me deu um tapa no rosto.
“Mas eu a levantei, desci a escada com ela nos braços e a
instalei na carruagem.
“‘Quem és tu para me amaldiçoar?’, perguntei. ‘Quem és tu para
bater em mim? Eu não tolero essas coisas de ninguém.’
“E devolvi-lhe a bofetada.
“A carruagem partiu no mesmo instante, mas naquele momento
eu soube, Gösta Berling, que Margareta Celsing tinha morrido.
“Ela era boa e inocente e não conhecia o mal. Os anjos teriam
chorado em seu túmulo. Se tivesse vivido, jamais bateria na própria
mãe.”
O mendigo junto à porta tinha ouvido, e por um instante aquelas
palavras haviam vencido o murmúrio fascinante das florestas
eternas. Veja que aquela senhora poderosa igualou-se a ele no
pecado, irmanou-se na perdição a fim de lhe dar a coragem de
viver! Tudo para que aprendesse que a culpa e a tristeza pairavam
também sobre a cabeça dos outros. Ele se levantou e foi até a
senhora.
– O senhor não prefere viver agora, Gösta Berling? – ela
perguntou, com uma voz quebrada pelo choro. – Por que o senhor
haveria de morrer? Com certeza poderia ter se tornado um bom
pastor, mas o Gösta Berling que o senhor afogava em aguardente
nunca foi tão imaculado quanto a Margareta Celsing que eu
estrangulei tomada de ódio. O senhor não prefere viver?
Gösta caiu de joelhos em frente à senhora.
– Perdoe-me! – ele implorou. – Mas não posso.
– Eu sou velha, endurecida por muitas tristezas – respondeu a
senhora –, e estou aqui, abrindo o meu coração a um mendigo que
encontrei já meio congelado em um monte de neve à beira da
estrada. É o quanto mereço. Pelo menos, se acabar mesmo como
suicida, o senhor não há de oferecer a ninguém o testemunho dessa
minha loucura.
– Senhora, eu não sou um suicida, mas um condenado pela vida.
Não me dificulte ainda mais essa batalha! Eu não posso viver. Meu
corpo assenhorou-se de minha alma, e por isso devo libertá-la,
permitir que vá ao encontro de Deus.
– Ah, então o senhor acha que é para lá que sua alma vai?
– Adeus, senhora, e obrigado!
– Adeus, Gösta Berling!
O mendigo se levantou e, com a cabeça baixa, arrastou os pés
até a porta. Aquela mulher tornara o caminho rumo às grandes
florestas demasiado árduo.
Quando chegou à porta, ele precisou olhar ao redor. Então
encontrou os olhos da senhora, que permanecia sentada em
silêncio, observando-o. Nunca tinha visto tão profunda
transformação em um rosto, e assim continuou a encará-la. A
senhora, que havia pouco parecia furiosa e ameaçadora, estava
transfigurada, e aqueles olhos brilhavam com um amor piedoso e
solidário. E uma parte dele, uma parte de seu coração indômito, de
repente partiu-se ao perceber aquele olhar. Ele apoiou a testa no
batente da porta, estendeu os braços por cima da cabeça e chorou
como se o coração estivesse a ponto de estourar.
A senhora atirou o cachimbo na estufa e aproximou-se de Gösta.
Os movimentos de repente pareciam suaves e ternos como os de
uma mãe.
– Não foi nada, meu pequeno!
E ela fez com que ele a acompanhasse e se sentasse com ela no
banco junto à porta, para que assim chorasse com a cabeça em seu
colo.
– O senhor ainda pretende morrer?
Nesse instante o mendigo fez menção de se levantar. Foi preciso
segurá-lo à força.
– Eu agora lhe digo que o senhor pode fazer como bem
entender. Mas prometo-lhe que, se quiser viver, disponho-me a criar
a filha do pastor de Broby e fazer dela gente, para que possa
agradecer a Deus por o senhor ter lhe roubado o saco de farinha. E
então, o senhor quer?
O mendigo ergueu a cabeça e olhou fundo nos olhos da mulher.
– A senhora está falando sério?
– Claro, Gösta Berling.
Então ele torceu as mãos, angustiado. Viu diante de si os olhos
perscrutadores, os lábios apertados e as mãozinhas descarnadas.
Enfim aquela jovem criatura teria abrigo e cuidado, e o sinal da
humilhação seria apagado de seu corpo, bem como o mal de sua
alma. Naquele instante a estrada que levava às florestas eternas
fechou-se para ele.
– Eu não vou me matar, desde que a menina fique sob os
cuidados da senhora – disse. – Afinal, eu bem sabia que a senhora
me obrigaria a viver. Senti logo de cara que sua vontade era mais
forte do que a minha.
– Gösta Berling! – a senhora exclamou em tom solene. – Lutei
por sua vida como haveria de lutar pela minha. Eu disse a Deus: “Se
existe uma Margareta Celsing ainda viva em mim, permite que ela
ressurja e se revele, para que esse homem não se mate!”. E ele me
concedeu esse pedido, e tu a viste e por isso não pudeste ir
embora. E ela sussurrou-me ao ouvido que, em nome daquela
pobre criança, talvez pudesses abandonar a ideia de morrer. Fizeste
voos ousados, como todos os pássaros selvagens, mas o Senhor
conhece a rede que há de capturá-los.
– Deus é grande e maravilhoso – respondeu Gösta Berling. – Ele
zombou de mim e me abandonou, mas não quis deixar que eu
morresse. Seja feita a vontade dele!
A partir desse dia Gösta Berling tornou-se um cavalheiro em
Ekeby. Por duas vezes tentou sair de lá e fazer-se por si mesmo,
para viver do próprio trabalho. Na primeira vez a senhora deu-lhe
uma pequena propriedade nos arredores de Ekeby. Ele se mudou
para lá com a intenção de viver como trabalhador. Funcionou por um
tempo, mas logo ele se cansou da solidão e da labuta diária e
tornou a viver como cavalheiro. A segunda vez foi quando assumiu
o cargo de tutor do conde Henrik Dohna, em Borg. Durante essa
época, apaixonou-se pela jovem Ebba Dohna, irmã do conde, mas,
quando ela morreu, justo quando Gösta acreditava estar prestes a
conquistá-la, ele abandonou a ideia de ser qualquer outra coisa
além de cavalheiro em Ekeby. Tinha a impressão de que para um
pastor destituído todas as estradas para a salvação estavam
fechadas.
DEVO AGORA DESCREVER O EXTENSO LAGO, a rica planície e as
montanhas azuis, pois essa era a paisagem em meio à qual Gösta
Berling e os cavalheiros de Ekeby passavam sua alegre existência.
O lago tem origem mais ao norte, e aquela é uma região
maravilhosa para um lago. A floresta e as montanhas jamais param
de colher-lhe água, e os córregos e riachos deságuam nele durante
o ano todo. O lago se estende sobre uma areia fina e branca, e tem
ilhotas e promontórios para refletir e admirar; espíritos da água e
ninfas do lago andam livremente por lá, e depressa o lago torna-se
grande e belo. No norte ele é alegre e amistoso: basta vê-lo em uma
manhã de verão, ainda meio sonolento sob o véu de névoa, para
notar o quanto está contente. A princípio talvez decepcione, mas
aos poucos, aos poucos o lago rasteja para longe daquele
envoltório, tão bonito e tão místico que mal se pode reconhecê-lo, e
logo atira toda a capa para longe e revela-se nu, despido e rosado
enquanto cintila na luz matinal.
Mas o lago não se contenta com essa vida de brincadeiras e
afunila-se em um estreito delgado, abre caminho em meio a montes
de areia no sul e busca para si um novo reino. E de fato o encontra;
torna-se maior e mais amplo, tem enormes profundezas a preencher
e um panorama exigente a embelezar. Mas nesse ponto a água
torna-se mais escura, a orla menos irregular, o vento mais forte e o
caráter todo mais austero. Trata-se de um lago imponente e
maravilhoso. Muitas são as embarcações e as jangadas de troncos
que por lá singram, e depois o lago se recolhe ao descanso de
inverno, que raramente começa antes do Natal. Muitas vezes está
de mau humor, e nessas horas espuma, branco de raiva, fazendo
naufragar os veleiros, mas por vezes também sucumbe a uma
tranquilidade sonhadora, espelhando o céu.
O lago, porém, quer seguir mais adiante mundo afora, mesmo
que as montanhas tornem-se mais escarpadas e o espaço mais
estreito à medida que desce, de maneira que novamente precisa
avançar rastejando como um estreito delgado em meio a orlas de
areia. Depois ele se alarga pela terceira vez, embora não com a
mesma beleza nem com a mesma dignidade.
As orlas tornam-se mais baixas e monótonas, os ventos sopram
mais suaves, o lago sucumbe a um repouso de inverno precoce. No
geral ainda é uma visão bonita, mas já sem o arrebatamento da
juventude e a força da virilidade – é apenas um lago como qualquer
outro. Com dois braços, envolve o caminho até o lago Vänern e,
quando o encontra, entrega-se à fraqueza da velhice enquanto
desce encostas íngremes e, após uma última bravata ribombante,
por fim se entrega.
A planície é tão extensa quanto o lago; mas poder-se-ia acreditar
que tem mais dificuldades para avançar em meio a lagos e
montanhas, desde o vale no extremo norte do lago, onde primeiro
ousa se alargar, por todo o restante do caminho, até que enfim
possa descansar vitoriosamente tranquila às margens do Vänern.
Não há dúvida de que a planície preferiria seguir a orla do lago ao
longo de toda a extensão, porém as montanhas não lhe dão
sossego. As montanhas são enormes muros de granito, cobertos
por florestas, repletos de fendas, difíceis de atravessar, pródigos em
musgos e liquens e, nessa época antiga, lar de muitas criaturas
selvagens. Com frequência acaba-se em um charco ou um palude
com águas escuras em meio aos morros que se estendem ao longe.
Aqui e acolá também se encontram resquícios de uma carvoaria ou
uma clareira de onde retiraram madeira, ou ainda um terreno
queimado; tudo isso testemunha que as montanhas também podiam
aguentar o trabalho. Mas em geral as montanhas permanecem em
uma tranquilidade despreocupada e satisfazem-se em deixar que a
luz e a sombra brinquem sua eterna brincadeira pelas encostas.
E com essas montanhas a planície, que é piedosa e abundante e
ama o trabalho, trava uma guerra constante, embora amistosa.
– Já chega – a planície diz às montanhas. – Se erguerem muros
ao meu redor, já será tranquilidade suficiente para mim.
Mas as montanhas não querem saber dessa conversa. Mandam
longas fileiras de outeiros e platôs até o lago. Erguem maravilhosas
torres de observação em cada promontório, e a bem dizer se
afastam da orla tão raramente que a planície apenas de vez em
quando tem chance de estender-se pelas fofas areias da praia. Mas
não vale a pena queixar-se.
– Alegra-te com a nossa presença! – dizem as montanhas. –
Pensa na época antes do Natal, quando aquelas brumas frias como
um túmulo revoluteiam dia após dia acima do Löven! Fazemos um
bom trabalho aqui onde estamos.
A planície reclama por ter pouco espaço e vista ruim.
– Mostras-te estúpida – dizem as montanhas. – Não imaginas
como venta às margens do lago. No mínimo seria preciso um muro
de granito e um manto de espruces para aguentar um tempo
desses. Além do mais, podias dar-te por satisfeita com a vista que
tens para nós.
Olhar para as montanhas, claro; é isso o que a planície faz.
Conhece de perto as incríveis variações de luz e de sombra que as
percorrem. Sabe como, à luz do meio-dia, as montanhas baixam no
horizonte, atarracadas, fracas e azul-claras, e pela manhã ou pela
tarde erguem-se a alturas venerandas, azul-claras como o céu no
zênite. Por vezes a luz desce tão forte sobre a paisagem que as
montanhas tornam-se verdes ou azul-escuras, e cada espruce, cada
estrada, cada fenda pode ser vista a léguas de distância.
Em certos lugares pode acontecer de as montanhas afastarem-
se para o lado e deixar que a planície chegue mais perto e olhe para
o lago. Mas, quando vê a fúria do lago, que bufa e cospe como um
gato selvagem, ou o vislumbra coberto pela fumaça tépida causada
pelas ninfas do lago que preparam poções e lavam roupas, logo a
planície dá vez às montanhas e recolhe-se novamente à sua
apertada prisão.
Desde tempos imemoriais as pessoas cultivam essa planície
maravilhosa, e nela surgiu um grande povoado. Onde quer que haja
corredeiras de espuma branca que se atiram encosta abaixo,
surgem moinhos e fundições. Nesses lugares amplos e iluminados,
onde a planície chega às margens do lago, igrejas e casas pastorais
foram erguidas, mas nos limites do vale, no meio da encosta, onde o
chão é de pedra, onde as sementes não germinam, ficam os lares
dos camponeses e as moradas dos oficiais e uma ou outra casa
senhorial.
Mesmo assim, deve-se notar que por volta de 1820 os terrenos
não eram tão cultivados quanto hoje. A floresta, o lago e o musgo
ocupavam boa parte do terreno hoje cultivável. A população
tampouco era tão numerosa, e as pessoas ganhavam o sustento em
parte fazendo carretos e trabalhando nas diversas fundições, em
parte trabalhando noutros locais; o cultivo da terra não era capaz de
alimentá-las. Nessa época os habitantes da planície trajavam
roupas feitas à mão, comiam pão de aveia e davam-se por
satisfeitos com uma féria de 12 skilling. Muitas dessas pessoas
passavam necessidade, embora com frequência a situação fosse
mitigada por uma disposição leve e alegre e por uma habilidade e
uma dedicação inatas.
Mas os três, o extenso lago, a rica planície e as montanhas
azuis, formavam e ainda formam um belíssimo panorama, e as
pessoas por lá ainda têm muita força, coragem e talento. E hoje o
lugar fez um grande progresso em termos de bem-estar e cultura.
Que tudo corra bem a essas pessoas, que moram lá no alto, às
margens desse extenso lago e ao pé das montanhas azuis! O que
me ponho agora a narrar é uma parte das memórias dessas
pessoas.
SINTRAM É O NOME DO MALVADO PATRÃO DA FUNDIÇÃO DE FORS, que
tem o tronco atarracado e os braços longos como um macaco, a
cabeça calva e o rosto feio com um sorriso zombeteiro, cuja maior
vontade é fomentar o mal.
O nome dele é Sintram, e ele aceita somente patifes e
arruaceiros como criados e tem somente criadas bisbilhoteiras e
mentirosas a seu serviço, ele, que atiça a raiva nos cachorros
espetando-lhes agulhas no focinho e vive feliz em meio a pessoas
cheias de ódio e animais furiosos.
O nome dele é Sintram, e o maior prazer que conhece na vida é
fantasiar-se de coisa-ruim, com chifres, cauda, cascos de cavalo e
um corpo hirsuto, e então, ao sair de repente de recônditos escuros,
fornos ou galpões de lenha, apavorar crianças assustadiças e
mulheres supersticiosas.
O nome dele é Sintram, e o que o alegra é transformar velhas
amizades em novo ódio e envenenar corações com mentiras.
O nome dele é Sintram, e certa vez ele chegou a Ekeby.

*
Puxe o grande trenó de madeira para dentro da forja, pare bem
no meio da peça e largue um forro de carroça em cima das ripas!
Assim temos uma mesa. Viva a mesa! A mesa está pronta!
Traga agora as cadeiras, tudo que pode ser usado para se
sentar! Traga os bancos de sapateiro com três pernas e os caixotes
vazios! Traga as antigas cadeiras estragadas já sem espaldar, e
traga os trenós sem pranchas e a velha carruagem! Hahaha, traga a
velha carruagem! Vai ser a tribuna do orador.
Veja só, faltam-lhe uma das rodas e toda a cabine! Resta apenas
a boleia, com o assento estragado, a turfa do forro saindo para fora
e o couro avermelhado pelo tempo. Aquela velha ruína tem a altura
de uma casa. Segure, segure, ou então tudo cai!
Viva! Viva! É noite de Natal em Ekeby.
Atrás do dossel de seda que guarnece a larga cama, o major
dorme com a esposa, na certeza de que os cavalheiros fazem o
mesmo. Os criados e as criadas precisam dormir, empapuçados
como se encontram de mingau e cerveja amarga, mas o mesmo não
se pode dizer a respeito dos senhores na ala dos cavalheiros. Como
alguém poderia imaginar que a ala dos cavalheiros estaria
dormindo?
Não há ferreiros de calças curtas vertendo metal derretido, os
garotos cobertos de fuligem não empurram carrinhos de carvão, o
martinete encontra-se pendurado como um braço de punho cerrado
próximo ao teto; o lugar todo está vazio, os fornos não abrem a
bocarra para devorar carvão e o fole não arfa. É Natal. A forja
dorme.
Dorme, dorme! Ah, tu, filho do homem, dormes, enquanto os
cavalheiros mantêm-se acordados! As longas tenazes encontram-se
de pé no chão, com velas de sebo nas garras. Do caldeirão de
cobre reluzente as chamas azuis do conhaque flambado se erguem
rumo à escuridão do teto. O lampião de Beerencreutz está
pendurado no martinete. O ponche amarelo reluz na jarra como um
sol ardente. Há mesas, há bancos. Os cavalheiros celebram o Natal
na forja.
Há alegria e barulho, cantorias e música. O barulho da festa
noturna, porém, não desperta ninguém. Toda a balbúrdia da forja
morre em meio ao forte murmúrio da corredeira lá fora.
Há alegria e barulho. Imagine se a senhora os visse naquele
momento!
O que faria? Com certeza haveria de sentar-se entre eles e
esvaziar um cálice. A senhora é uma mulher decidida, que não foge
de uma boa cantoria nem de uma sessão de carteado. A mulher
mais rica de Värmland, destemida como um homem, orgulhosa
como uma rainha. Ela adora cantorias acompanhadas por vibrantes
trompas e violinos. Gosta do vinho e das cartas, e da mesa repleta
de alegres convivas. Queria ver a despensa exaurida, dança e
diversão nas salas e câmaras, e a ala dos cavalheiros cheia de
cavalheiros.
Veja-os ao redor da jarra de ponche, um cavalheiro ao lado do
outro! São doze no total, doze homens. Nada de borboletas, nada
de janotas, mas homens cuja fama tarda a morrer em Värmland:
homens corajosos, homens fortes.
Nada de pergaminhos secos, nada de sacos de dinheiro
amarrados; são homens pobres, homens despreocupados,
cavalheiros em tempo integral.
Nada de meninos na barra do vestido da mãe, nada de senhores
sonolentos na própria morada. São homens viajantes, homens
alegres, cavaleiros de mil aventuras.
Há muitos anos a ala dos cavalheiros encontra-se vazia. Ekeby
não é mais o refúgio escolhido pelos cavalheiros. Oficiais
aposentados e nobres empobrecidos já não andam por Värmland
em coches bamboleantes de um só cavalo. Mas deixe que os
mortos vivam, deixe que se levantem, alegres, despreocupados,
eternamente jovens!
Todos esses homens célebres sabem tocar um ou mais
instrumentos. Todos são tão cheios de peculiaridades e tiradas, de
caprichos e canções, como um formigueiro é cheio de formigas, mas
assim mesmo cada um tem características próprias e a virtude
própria do cavalheiro, que o distingue dos demais.
E, dentre aqueles que se encontram sentados ao redor da jarra
de ponche, eu gostaria de mencionar Beerencreutz, o coronel com o
grande bigode grisalho, apreciador de carteado, declamador dos
versos de Bellman, e com ele o amigo e camarada de guerra, o
calado major, o grande caçador de ursos Anders Fuchs, e, como
terceiro na trupe, o pequeno Ruster, o tamboreiro, que por muito
tempo fora criado do coronel, mas ascendera à posição de
cavalheiro graças à habilidade no preparo de ponche e na execução
do baixo contínuo. Depois, é preciso mencionar o velho segundo-
tenente Rutger von Örneclou, o encantador de mulheres, usando
lenço de pescoço e peruca, ornado com um peitilho e maquiado
como uma dama. Era um dos mais distintos cavalheiros, juntamente
com Kristian Bergh, o possante capitão, que era um herói
formidável, embora se deixasse enganar com a mesma facilidade
que os gigantes das fábulas. Na companhia desses dois, com
frequência também se via o pequeno e rotundo patrão Julius, um
homem atilado, divertido e talentoso: orador, pintor, cantor e
contador de anedotas. De bom grado pregava peças no segundo-
tenente acometido pela gota e no gigante estúpido.
Também havia Kevenhüller, o grande alemão, inventor do carro
semovente e da máquina voadora, ele, cujo nome ainda ecoa pelas
florestas sussurrantes. Um gentil-homem no berço e até mesmo na
aparência, com grandes bigodes torcidos, barba pontuda, nariz
aquilino e olhos estreitos e oblíquos em meio a uma teia de rugas.
Lá estava o primo Kristoffer, o valoroso guerreiro que jamais deixava
as paredes que formavam a ala dos cavalheiros, a não ser por
ocasião de uma caça ao urso ou de outra aventura temerária, e ao
lado dele o tio Eberhard, o filósofo, que não havia se fixado em
Ekeby por causa dos prazeres e da brincadeira, mas para, sem
nenhum tipo de preocupação com o próprio sustento, levar a cabo
seu grande trabalho sobre a ciência das ciências.
Por último, menciono agora o melhor de todo o grupo, o gentil
Löwenborg, um homem religioso que era bom demais para este
mundo e pouco entendia os caminhos dos homens, e Liljecrona, o
grande músico que tinha uma boa casa e sentia vontade constante
de visitá-la, mas assim mesmo via-se obrigado a permanecer em
Ekeby, pois seu espírito precisava de riqueza e de diversidade para
suportar a vida.
Todos os onze já haviam deixado a juventude para trás, e muitos
já tinham chegado à velhice, mas entre todos havia um que somava
apenas 30 anos e ainda dispunha de todas as forças do corpo e da
alma. Era Gösta Berling, o cavalheiro dos cavalheiros, que sozinho
era maior orador, cantor, músico, caçador, bebedor e jogador do que
todos os outros juntos. Evidenciava toda a virtude de um cavalheiro.
Em que homem a senhora de Ekeby o havia transformado!
Veja-o no alto da tribuna! A escuridão desce do teto preto em
festões pesados por cima dele. Sua cabeça luminosa reluz em meio
ao negrume, como a dos jovens deuses, dos jovens arautos da luz
que ordenaram o caos. Belo, alinhado e sedento por aventura, é lá
que se encontra.
Mas fala com profunda seriedade.
– Cavalheiros e irmãos! Aproximamo-nos da meia-noite, a festa
já vai bastante avançada e chega a hora de fazer um brinde ao 13º
conviva.
– Meu camarada Gösta! – exclama o patrão Julius. – Não há
nenhum 13º; somos apenas doze.
– Em Ekeby, todo ano morre um homem – Gösta prossegue, com
a voz mais sombria. – Um dos cavalheiros da ala morre; morre um
de nossos companheiros alegres, despreocupados e eternamente
jovens. O que mais lhes restaria? Cavalheiros não podem
envelhecer. Se nossas mãos trêmulas não pudessem erguer o copo,
se nossos olhos baços não pudessem distinguir as cartas, o que
seria a vida para nós, o que seríamos nós para a vida? Um dos
treze que celebram a noite de Natal na forja de Ekeby precisa
morrer, porém todo ano chega um novo para completar nosso
número. Um homem hábil no ofício da alegria, que saiba tocar
violino e jogar cartas, precisa aparecer e completar nosso grupo.
Borboletas velhas deviam morrer enquanto o sol de verão ainda
brilha. Um brinde ao 13º!
– Mas, Gösta, somos apenas doze – os cavalheiros retrucam,
sem erguer os copos.
Gösta Berling, a quem chamavam de poeta, embora nunca
escrevesse versos, continua, com a tranquilidade inabalada:
– Cavalheiros e irmãos! Acaso esqueceram-se de quem são? Os
senhores são aqueles que sustêm a força da alegria em Värmland.
Os senhores são aqueles que tangem as cordas, promovem a
dança, fazem com que as canções e a música ressoem por toda a
região! Os senhores sabem manter os corações longe do ouro, as
mãos longe do trabalho. Se os senhores não existissem, a dança
morreria, o verão morreria, as rosas morreriam, o carteado morreria,
a canção morreria, e em toda esta região abençoada não haveria
mais nada além de ferro e de patrões de fundições. A alegria há de
viver tanto quanto os senhores. Por seis anos celebrei a noite de
Natal na forja de Ekeby, e até hoje ninguém se recusou a beber à
saúde do 13º.
– Mas, Gösta – insistem os cavalheiros –, se somos apenas
doze, como beber à saúde do 13º?
Uma preocupação profunda desenha-se no rosto de Gösta.
– Então somos apenas doze? – ele pergunta. – Por quê? Acaso
devemos morrer e deixar esta terra? Acaso no ano que vem
devemos ser apenas onze, e no ano seguinte apenas dez? Acaso
nossos nomes devem passar à lenda, com o nosso grupo
aniquilado? Eu invoco o 13º, pois levantei-me para beber à saúde
dele! Das profundezas do mar, das entranhas da terra, do céu, do
inferno eu o chamo, aquele que há de completar o grupo dos
cavalheiros.
Então a chaminé range, então a porta da fornalha se abre, então
o 13º aparece.
É hirsuto, tem rabo e cascos de cavalo, chifres e barba pontuda,
e diante daquela visão todos os cavalheiros sobressaltam-se com
um grito.
Gösta Berling, porém, brada com júbilo incontido:
– O 13º chegou! Longa vida ao 13º!
E foi assim que ele, o velho inimigo dos homens, chegou àquela
companhia destemida a fim de perturbar a paz da noite sagrada. O
amigo das bruxas, aquele que assina contratos com sangue em
papel negro, ele, que dançara com a condessa em Ivarsnäs por sete
dias e não pudera ser afastado sequer por sete pastores, ele
chegou.
Os pensamentos cruzam a uma velocidade desatinada a cabeça
dos aventureiros, quando o veem. Todos se perguntam de quem ele
está atrás naquela noite.
Muitos estavam prontos para sair correndo de medo, porém logo
compreenderam que o chifrudo não havia chegado para levá-los a
seu reino obscuro, mas que o tilintar das taças e as melodias das
canções haviam-no atraído. Ele queria aproveitar a alegria dos
homens durante a sagrada noite de Natal e livrar-se do fardo da
governança durante aquele tempo de alegria.
Ó cavalheiros, cavalheiros, quem de vós acaso se lembra que é
noite de Natal? É agora que os anjos cantam para os pastores nos
campos. É agora que as crianças estão deitadas, com receio de cair
em sono profundo e não acordar a tempo da maravilhosa canção
matutina. Logo chegará a hora de acender as velas de Natal na
igreja de Bro, e mais longe, em meio às casas na floresta, o rapaz
preparou uma tocha de resina para iluminar o caminho da menina
até a igreja. Em todos os lares a dona da casa pôs velas na janela
para quando a procissão da igreja passar. O sineiro, ainda
sonolento, começa a entoar os salmos de Natal, enquanto o velho
preboste está deitado, avaliando se tem voz suficiente para a missa:
“Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade entre os
homens!”.
Ó cavalheiros, melhor teria sido que, naquela noite de paz,
houvésseis permanecido em vossas camas em vez de travar
convívio com o príncipe das trevas!
Mas eles o recebem com gritos de boas-vindas, como Gösta
havia feito. Um cálice cheio de conhaque flamejante foi posto em
sua mão. Os cavalheiros oferecem-lhe o lugar de honra junto à
mesa, e então o veem com alegria, como se aquele rosto feio de
sátiro carregasse ainda os prazenteiros traços da juventude amada.
Beerencreutz convida-o para um carteado, o patrão Julius canta
para ele suas melhores canções e Örneclou entabula uma conversa
sobre mulheres bonitas, essas criaturas maravilhosas que tornam a
vida mais agradável.
Ele sente-se bem, o chifrudo, quando, com o porte de um
príncipe, inclina-se para trás na boleia da velha carruagem e, com a
mão armada de garras, leva o cálice aos lábios sorridentes.
Mas Gösta Berling naturalmente faz um discurso em sua
homenagem.
– Escute-me, vossa senhoria – diz. – Por muito tempo o
esperamos aqui em Ekeby, posto que dificilmente teria acesso a
outro tipo de paraíso. Aqui vivemos sem fiar nem semear, como
vossa senhoria talvez já saiba. Aqui as codornas assadas voam-nos
direto à boca, aqui a cerveja amarga e a aguardente doce escoam
em córregos e riachos. Este é um bom lugar, vossa senhoria!
“Nós, cavalheiros, em verdade também o esperávamos, pois
nossa companhia não estava completa. Veja, o caso é que somos
mais do que aquilo que parecemos; somos a antiga companhia dos
doze, sobre a qual versa o poema, que viaja através dos tempos.
Éramos doze quando guiamos o mundo em meio às nuvens no topo
do Olimpo, e doze quando os pássaros moravam na copa
verdejante da árvore Yggdrasil. Aonde quer que o poema fosse, nós
o seguíamos. Acaso não fomos doze homens robustos ao redor da
távola redonda do Rei Artur, e acaso não andamos como doze
paladinos no exército de Carlos Magno? Um de nós foi Thor, outro
Júpiter, e ainda hoje todos os homens nos veem assim. As pessoas
decerto pressentem o lume divino por sob os trapos, a juba de leão
sob a pele de asno. O tempo não foi bondoso conosco, mas,
quando lá estamos, a forja transforma-se em Olimpo e a ala dos
cavalheiros, em Valhall.
“No entanto, vossa senhoria, nossa companhia não estava
completa. Pois todos sabemos que na companhia dos doze,
celebrada no poema, deve sempre haver um Loki, um Prometeu.
Sentimos falta dele.
“Vossa senhoria, eu lhe dou as boas-vindas!”
– Vede, vede! – diz o cão. – Que palavras gentis, que palavras
gentis! E pensar que não arranjei tempo para vos responder!
Negócios, rapazes, negócios. Dentro em pouco tenho de sair, mas
de outra forma eu teria gosto em permanecer convosco em qualquer
papel que fosse. Muito obrigado pelo convite, meus velhos
conversadores! Em breve tornaremos a ver-nos.
Quando os cavalheiros perguntam a que lado vai, ele responde
que a nobre senhora de Ekeby o espera para tratar da renovação do
contrato.
Um grande espanto toma conta dos cavalheiros.
A senhora de Ekeby é uma mulher austera e capaz. Consegue
levar um barril de centeio nas costas. Acompanha a carga de
minério, que vem da mina em Bergslagen, por todo o longo caminho
até Ekeby. Dorme como um camponês no chão do celeiro, usando
um saco como travesseiro. No inverno, por vezes cuida da carvoaria
e, no verão, acompanha uma jangada pelo lago Löven. Uma
senhora de autoridade. Pragueja como um menino de rua e governa
as sete fundições e as propriedades dos vizinhos como um rei,
governa a própria paróquia e as paróquias vizinhas – enfim, governa
toda a bela província de Värmland. Mas para os cavalheiros
desabrigados age como verdadeira mãe, e por isso todos tapam os
ouvidos quando ouvem as difamações espalhadas à boca miúda
segundo as quais teria parte com o diabo.
Assim, os cavalheiros perguntam com grande espanto que tipo
de contrato poderia ter com ela.
E ele responde, o tenebroso, que concedeu à senhora as sete
fundições em troca de, uma vez por ano, o envio de uma alma.
Ah, o terror que confrange os corações dos cavalheiros!
Todos já sabiam, claro, mas não haviam compreendido.
Em Ekeby, todo ano morre um homem, um dos cavalheiros da
ala morre, morre um daqueles companheiros alegres,
despreocupados e eternamente jovens. O que mais lhes restaria?
Cavalheiros não podem envelhecer. Se as mãos trêmulas não
pudessem erguer o copo, se os olhos baços não pudessem
distinguir as cartas, o que seria a vida para eles, e o que seriam eles
para a vida? As borboletas deviam morrer enquanto o sol ainda
brilha.
Mas é nesse instante que todos percebem o real sentido daquilo
tudo.
Ai daquela mulher! Por isso lhes deu tantas boas refeições, por
isso os deixa beber da cerveja amarga e da doce aguardente: para
que, dos salões de bebedeira e da mesa de carteado em Ekeby,
acabassem por encontrar, com passos cambaleantes, o rei da
danação, um por ano, a cada ano que passava.
Ai daquela mulher, daquela bruxa! Homens fortes e maravilhosos
haviam chegado a Ekeby, chegado para sucumbir! Porque era lá
que ela os arruinava. Aqueles cérebros não passavam de
cogumelos, aqueles pulmões não passavam de cinzas, e os
espíritos não passavam de uma escuridão quando caíam de cama,
já no leito de morte, e preparavam-se para aquela longa viagem
sem esperança, sem alma, sem virtude.
Ai daquela mulher! Foi assim que outros morreram, homens
melhores do que eles, e era assim que haveriam de morrer.
Mas os cavalheiros não passam demasiado tempo paralisados
sob o peso do terror.
– Tu, rei da danação! – exclamaram. – Com essa bruxa não hás
de jamais firmar um contrato em sangue; ela há de morrer.
Kristian Bergh, o possante capitão, tem a mais pesada marreta
da forja escorada no ombro. Pretende enterrá-la até o cabo na
cabeça da bruxa. Nenhuma outra alma há de ser por ela sacrificada.
– Quanto a ti, chifrudo, devíamos pôr-te em cima da bigorna e
botar o martinete a trabalhar. Com as tenazes, devíamos segurar-te
sob os golpes do martinete para ensinar-te a não correr atrás das
almas de cavalheiros.
Mas ele é covarde, o senhor das trevas, e a conversa acerca do
martinete em nada lhe agrada. Ele chama Kristian Bergh de volta e
põe-se a regatear com os cavalheiros.
– Peguem as sete propriedades este ano, cavalheiros, peguem-
nas para os senhores, e deem-me a senhora de Ekeby!
– Achas mesmo que somos tão vis quanto essa mulher? –
retruca o patrão Julius. – Queremos Ekeby e todas as demais
propriedades, mas, no que diz respeito à senhora, trata de
consegui-la por tua própria conta.
– O que pensa Gösta, o que pensa Gösta? – pergunta o gentil
Löwenborg. – Gösta Berling precisa falar! Precisamos ouvir a
opinião dele em uma decisão de tanta importância.
– Tudo isso é uma loucura – diz Gösta Berling. – Cavalheiros,
não se deixem enganar! O que somos nós para a senhora de
Ekeby? Com nossas almas pode acontecer o que tiver de acontecer,
mas a depender de minha vontade não vamos nos tornar canalhas
ingratos e nos portar como patifes e traidores. Comi à mesa dessa
senhora por muitos anos para traí-la agora.
– Gösta, tu bem podes ir para o inferno se quiseres! Quanto a
nós, preferimos tornar-nos senhores de Ekeby.
– Todos estão mesmo loucos ou simplesmente beberam a ponto
de perder o juízo? Por acaso acreditam que isso seja verdade? Por
acaso acreditam mesmo que esse é o cão? Não percebem que tudo
não passa de uma enganação?
– Vede, vede – diz o senhor das trevas –, esse homem não
percebe que está no caminho, mesmo após sete anos em Ekeby.
Não percebe que já chegou muito longe.
– Cala a boca, criatura! Eu mesmo ajudei a te enfiar nessa
fornalha.
– Como se fizesse diferença! Como se eu não fosse um demônio
tão bom quanto qualquer outro! É isso mesmo, Gösta Berling; já
estás comprometido. Já estás melhor, graças ao tratamento
recebido da senhora.
– Foi ela que me salvou – diz Gösta. – O que seria de mim sem
ela?
– Ora, ora! Como se ela não tivesse bons motivos para manter-te
aqui em Ekeby! Tu podes atrair muita gente para a armadilha, pois
tens grandes talentos. Certa vez tentaste escapar, deixaste-a dar a ti
uma pequena propriedade, e assim viraste um trabalhador, porque
querias comer do teu próprio pão. Todos os dias ela passava em
frente à propriedade, sempre tendo belas moças por companhia.
Certa vez Marianne Sinclaire a acompanhava; então tu largaste a pá
e o avental de couro, Gösta Berling, e voltaste a ser um cavalheiro.
– A estrada passava lá, cretino.
– Claro, claro, a estrada passava lá. Depois chegaste a Borg,
passaste a trabalhar como tutor de Henrik Dohna e quase lograste
tornar-te genro da condessa Märta. E foi graças a quem que a
jovem Ebba Dohna ouviu dizer que eras um pastor destituído, para
então recusar os teus avanços? Foi graças à senhora de Ekeby,
Gösta Berling. Queria-te de volta.
– Grande coisa! – Gösta retruca. – Ebba Dohna morreu logo
depois. Eu jamais a teria conquistado.
Nesse momento o senhor das trevas aproximou-se dele e bufou
em seu rosto:
– Morreu, claro que morreu. Ou melhor, matou-se por causa de ti,
embora ninguém tenha te contado.
– Como demônio, vais muito bem – diz Gösta.
– Posso assegurar-te que foi a senhora a cuidar de tudo. Queria-
te de volta à ala dos cavalheiros.
Gösta soltou uma gargalhada.
– Como demônio, vais muito bem – ele brada, descontrolado. –
Por que não haveríamos de fazer um contrato contigo? Decerto
podes arranjar-nos as sete fundições, se assim quiseres.
– Que bom ver que já não te pões contra a própria felicidade!
Os cavalheiros soltaram um suspiro de alívio. A situação havia
chegado a um ponto em que já não conseguiam fazer mais nada
sem Gösta. Se ele não tivesse aceitado as condições do negócio,
com certeza nada teria sido feito. Ademais, para aqueles
cavalheiros empobrecidos era uma grande coisa arranjar sete
fundições sobre as quais pudessem governar.
– Prestem bem atenção – diz Gösta. – Assumimos as sete
fundições para salvar as nossas almas, porém não para nos
tornarmos patrões que contam dinheiro e pesam minério de ferro.
Não queremos tornar-nos pergaminhos ressequidos, não queremos
tornar-nos sacos de moeda amarrados, mas queremos ser e
permanecer cavalheiros.
– Sábias palavras – murmurou o senhor das trevas.
– Sendo assim, se quiseres nos dar as sete fundições durante
um ano, podemos aceitá-las, mas presta bem atenção: se durante
esse tempo fizermos qualquer coisa indigna de um cavalheiro, se
fizermos qualquer coisa sábia, útil ou digna de uma velha, então
leva-nos os doze e, quando o ano acabar, trata de dar as fundições
para quem bem entenderes.
O cão esfregou as mãos de entusiasmo.
– Se todos nós, porém, nos comportarmos como legítimos
cavalheiros – Gösta continua –, prometes nunca mais fazer
contratos que digam respeito a Ekeby, e nada recebes por esse ano,
seja de nós, seja da senhora.
– É muito duro – diz o cão. – Ah, meu caro Gösta, com certeza
eu posso levar pelo menos uma alma, uma única alminha
condenada, não? Com certeza eu posso levar a senhora. Por que
estás a proteger a senhora?
– Não faço negócios com esse tipo de mercadoria – afirma Gösta
–, mas, se fazes questão de levar alguém, leva o velho Sintram, de
Fors; ele está pronto, e isso eu garanto.
– Vede, vede; não parece má ideia – diz o senhor das trevas,
sem nem ao menos piscar os olhos. – Cavalheiros ou Sintram, uns
ou o outro. Vai ser um bom ano.
E então o contrato foi assinado com o sangue do mindinho de
Gösta Berling, no papel preto do cão, usando a pena de ganso que
ofereceu.
Quando tudo acabou, os cavalheiros rejubilaram-se. A partir
daquele instante, toda a beleza do mundo havia de pertencer-lhes
por um ano inteiro, e depois tratariam de encontrar um jeito.
Todos afastam as cadeiras, dispõem-se em círculo ao redor do
caldeirão de conhaque flamejante que se encontra no centro do
assoalho preto, e dão início a uma dança vigorosa. No interior do
círculo o cão dança com saltos impressionantes, e por fim cai
deitado ao lado do caldeirão, emborca-o e começa a beber.
Então Beerencreutz atira-se ao lado dele, e também Gösta
Berling, e a seguir todos os outros deitam-se em um círculo ao redor
do caldeirão, que passa de boca em boca. Por fim um gesto
desajeitado o vira, e a bebida quente e grudenta escorre sobre
todos aqueles que estavam deitados.
Quando se levantam praguejando, o cão já desapareceu, mas a
promessa dourada que havia feito paira como se fossem coroas
reluzentes sobre a fronte dos cavalheiros.
NO DIA DE NATAL A SRA. SAMZELIUS oferece uma grande ceia em
Ekeby.
Preside como anfitriã uma mesa posta para cinquenta convivas.
Senta-se em meio ao esplendor e à magnificência; lá, não se faz
acompanhar pelo casaco curto de couro, pela saia listrada de lã e
pelo cachimbo de barro. Ela farfalha em seda, o ouro pesa-lhe nos
braços, as pérolas cingem-lhe o pescoço alvo.
E onde estão nessa hora os cavalheiros, onde estão aqueles
que, no assoalho preto da forja, beberam do caldeirão de cobre
lustroso à saúde dos novos senhores de Ekeby?
No canto junto da estufa os cavalheiros se encontram sentados a
uma mesa à parte; nesse dia, não têm lugar à mesa principal. A
comida lhes chega atrasada, o vinho é escasso, para lá não se
voltam os olhares das mais belas mulheres, ninguém ouve os
gracejos de Gösta.
Mas os cavalheiros são como potros mansos, como bichos
selvagens de barriga cheia. À noite, mal e mal dedicaram uma hora
de sono e logo saíram para o culto de Natal, iluminados por tochas e
estrelas. Viram as luzes de Natal, ouviram os salmos de Natal e
tinham no semblante a expressão de meninos sorridentes.
Esqueceram-se da noite de Natal passada na forja como em geral
esquecemos os sonhos ruins.
Grande e poderosa é a senhora de Ekeby. Quem se atreve a
erguer a mão para atingi-la, quem se atreve a abrir a boca para
testemunhar contra ela? Decerto não cavalheiros empobrecidos,
que por muitos anos comeram do seu pão e dormiram sob o seu
teto. A senhora pode sentá-los onde bem entender, pode bater-lhes
a porta na cara quando bem entender, e os cavalheiros nem sequer
teriam forças para escapar dessa violência. Que Deus tenha
piedade daquelas almas! Longe de Ekeby, jamais poderiam viver.
Na mesa principal os convivas regozijam-se: lá brilham os lindos
olhos de Marianne Sinclaire, lá soa a risada discreta da alegre
condessa Dohna.
Mas entre os cavalheiros a atmosfera é lúgubre. Não seria
simples permitir que aqueles homens que seriam atirados no abismo
por causa da senhora pudessem sentar-se à mesa dos outros
convivas? Que disposição humilhante era aquela, com uma mesa
no canto da estufa? Como se os cavalheiros não fossem dignos o
bastante para conviver com pessoas de bem!
A senhora orgulha-se de sentar-se entre o conde de Borg e o
preboste de Bro. Os cavalheiros mostram-se abatidos qual meninos
rejeitados. E durante esse tempo os pensamentos noturnos
ressurgem naquelas cabeças.
Como tímidos convivas, os caprichos alegres, as mentiras
divertidas começam a chegar à mesa no canto da estufa. E lá a fúria
da noite e a promessa da noite mantêm a influência sobre aqueles
cérebros. Claro que o patrão Julius convence Kristian Bergh, o
possante capitão, de que as perdizes assadas ora servidas ao redor
da mesa principal não chegariam a todos os convivas da ceia, mas
esse comentário não desperta nenhuma alegria.
– Não vão chegar – ele diz. – Eu sei quantas foram compradas.
Mas os nossos anfitriões não se pejaram em função disso, capitão
Kristian; logo trataram de assar corvos para os convivas na mesinha
do canto.
Mas os lábios do coronel Beerencreutz apenas se torcem em um
ricto cansado por trás do austero bigode, e durante o dia inteiro
Gösta dá a impressão de estar a ponto de matar alguém.
– Então cavalheiros não são dignos o suficiente para
experimentar todos os pratos? – ele pergunta.
Por fim uma bandeja abarrotada de perdizes magníficas chega à
mesinha do canto.
Mas o capitão Kristian está furioso. Não tinha passado a vida
inteira nutrindo ódio contra os corvos, contra aquelas pragas
ruidosas e repugnantes?
Odiava-os com tanta amargura que no outono havia trajado um
vestido longo de mulher e amarrado um xale na cabeça e se tornado
motivo de chacota para chegar a uma distância suficiente para atirar
enquanto os corvos devoravam os grãos nas lavouras.
Procurava-os nos descampados na época de acasalamento
durante a primavera a fim de matá-los. Procurava os ninhos durante
o verão e atirava longe os filhotes ainda sem plumas que gritavam,
ou então quebrava os ovos recém-postos.
Naquele instante o capitão puxou a bandeja com perdizes para
junto de si.
– Achas que eu não os reconheço? – ele ralha com o criado. –
Acaso preciso ouvi-los crocitar para reconhecê-los? Quanto
despeito! Oferecer corvos a Kristian Bergh! Quanto despeito!
A seguir o capitão pega as perdizes e atira-as contra a parede,
uma a uma.
– Quanto despeito! – ele grita de maneira que o salão inteiro
treme. – Oferecer corvos a Kristian Bergh! Quanto despeito!
E, do mesmo modo como tinha por hábito atirar os indefesos
filhotes de corvo de encontro aos escolhos, o capitão faz com que
as perdizes voem uma atrás da outra contra a parede.
Molho e gordura respingam ao redor, e os pássaros
despedaçados caem ao chão.
E a ala dos cavalheiros se rejubila.
Nesse momento, a voz furiosa da senhora chega aos ouvidos
dos cavalheiros.
– Levem-no para fora! – ela grita para os criados.
Mas os criados não se atrevem a tocá-lo. Apesar de tudo, ele é
Kristian Bergh, o possante capitão.
– Levem-no para fora!
O capitão ouve o grito e, terrível em sua fúria, vira-se para a
senhora como um urso que afasta os olhos de um oponente caído e
se vira para encarar um segundo atacante. Aproxima-se da mesa
em ferradura. Os passos daquele homem enorme ribombam contra
o chão. Ele para defronte à senhora, tendo apenas a mesa a
separá-los.
– Levem-no para fora! – a senhora torna a gritar.
Mas o capitão está tomado pela ira, e o semblante franzido e as
mãos fortes e crispadas instilam medo. Ele tem o tamanho de um
gigante, a força de um gigante. Os criados e os convivas
estremecem e não ousam tocá-lo. Quem ousaria tocá-lo naquele
momento, quando a raiva o privava do juízo?
Ele está defronte à senhora e brande o punho contra ela.
– Eu peguei o corvo e o atirei contra a parede. Não achas que fiz
bem?
– Saia daqui, capitão!
– Cala a boca, megera! Oferecer corvos a Kristian Bergh! Eu
faria bem se acabasse contigo além de tomar essas sete malditas…
– Com mil demônios, Kristian Bergh, já chega de praguejar!
Ninguém pragueja aqui a não ser eu.
– Achas que tenho medo de ti, megera feiticeira? Achas que eu
não sei como foi que conseguiste as tuas sete fundições?
– Capitão, calado!
– Quando morreu, Altringer deixou-as para o teu marido porque
tinhas sido amante dele.
– Faça o favor de permanecer calado!
– Porque foste uma esposa muito fiel, Margareta Samzelius. E o
major recebeu as sete fundições e deixou-te governá-las, e fez de
conta que nada tinha acontecido. Foi tudo obra de Satã; mas esse
vai ser o teu fim.
A senhora de Ekeby sentou-se, trêmula e pálida. Em seguida
confirmou, com uma voz fraca e estranha:
– É, esse vai mesmo ser o meu fim, e tudo por obra tua, Kristian
Bergh.
Ao perceber aquele tom, o capitão Kristian estremece, contorce o
rosto e começa a derramar lágrimas de angústia.
– Estou bêbado! – exclama. – Não sei o que estou dizendo; eu
não disse nada. Um cão e um escravo; por quarenta anos, não fui
nada para ela além de um cão e um escravo. Ela é Margareta
Celsing, a quem servi durante toda a minha vida. Não digo nada de
mau a respeito dessa mulher. Imaginar que eu faria comentários
desairosos a respeito da bela Margareta Celsing! Eu sou o cachorro
que lhe vigia a porta, o escravo que lhe transporta os fardos. Ela
pode me chutar, pode bater em mim! E vedes agora que aguento a
tudo calado. Amei-a por quarenta anos. Como eu poderia falar mal
dessa mulher?
E logo surge uma visão curiosa quando o capitão se põe de
joelhos e implora o perdão da senhora. E, como ela se encontrasse
do lado oposto da mesa, ele faz a volta de joelhos até alcançá-la.
Então abaixa a cabeça e beija-lhe a barra do vestido, enquanto o
chão se umedece com suas lágrimas.
Não muito longe da senhora, porém, encontra-se um homem
pequeno e robusto. Tem os cabelos desgrenhados, pequenos olhos
oblíquos e um queixo protuberante. Mais parece um urso. Um
homem lacônico, que prefere trilhar o próprio caminho em silêncio e
deixar que o mundo cuide de si. É o major Samzelius.
Ele se levanta ao ouvir as palavras acusatórias do capitão
Kristian, e levantam-se também a senhora e todos os cinquenta
convivas. As mulheres choram de medo pelo que pode acontecer,
os homens permanecem hesitantes, e prostrado aos pés da senhora
está o capitão Kristian, beijando-lhe a barra do vestido e
umedecendo o chão com lágrimas.
As mãos largas e hirsutas do major crispam-se, e devagar o
braço se ergue.
Mas a mulher fala primeiro. Fala num tom contido, diferente do
habitual.
– Tu me roubaste! – ela esbravejou. – Vieste como um
saqueador e levaste-me. Na casa onde eu morava, fui obrigada por
meio de golpes e pancadas, fome e palavras duras a desposar-te.
Tratei a ti como merecias.
Os punhos largos do major estão crispados. A senhora recua
dois passos. E então torna a falar:
– As enguias vivas se contorcem sob o gume da faca, e esposas
forçadas arranjam amantes. Pretendes bater em mim agora pelo
que aconteceu vinte anos atrás? Por que não me bateste na época?
Não te lembras de quando ele morava em Ekeby e nós em Sjö? Não
te lembras do quanto nos ajudou em nossa penúria? Andávamos
nas carruagens dele, bebíamos o vinho dele. Será que escondemos
alguma coisa de ti? Acaso os criados dele não eram os teus
criados? Acaso o ouro dele não te pesava nos bolsos? Acaso não
aceitaste as sete fundições? Aceitaste-as calado, mas foi naquele
momento que devias ter batido, Bernt Samzelius, foi naquele
momento que devias ter batido.
O homem para de encará-la e olha para todos os presentes. Vê
naqueles rostos que todos dão razão à senhora, que todos
acreditam que aceitara presentes e mercadorias em troca do
silêncio.
– Eu não sabia – ele diz, batendo o pé no chão.
– Pois bem, agora sabes – ela acrescenta, com a voz
altissonante. – Achas que não tive medo de que morresses antes de
saber? Pois bem, agora sabes, e assim posso enfim falar livremente
contigo, meu senhor e meu carcereiro. Trata de saber agora que eu
pertenci a ele, ao homem de quem me roubaste! Saibam disso
agora todos aqueles que me difamaram!
É o antigo amor que se rejubila naquela voz e faz com que seus
olhos cintilem. Diante de si tem o marido, com os punhos erguidos.
Horror e desprezo é o que vê nos cinquenta rostos diante de si. A
senhora percebe ser aquele o seu último momento de força. Mas
não consegue deixar de alegrar-se ao falar livremente sobre as mais
ternas lembranças da vida.
– Ele era um homem, um homem maravilhoso. Quem eras tu,
para te colocares entre nós dois? Nunca vi outro homem como ele.
Ele me deu a felicidade, me deu presentes. Abençoada seja essa
lembrança!
Por fim o major baixou o braço sem desferir o golpe – já sabe
como há de castigá-la.
– Sai – ele berra –, sai da minha casa!
A senhora permanece imóvel.
Mas os cavalheiros permanecem se encarando uns aos outros
com o rosto pálido. De repente parece que tudo há de se realizar
como o tenebroso havia previsto. Naquele momento, todos
perceberam as consequências da quebra do contrato com a
senhora. Mas, se for mesmo verdade, então é também verdade que
por mais de vinte anos mandou cavalheiros para o inferno, e que
também eles próprios estariam destinados a essa viagem. Ah,
aquela bruxa!
– Sai já daqui! – prosseguiu o major. – Vai mendigar pão na beira
da estrada! Não hás de ter mais nenhuma alegria trazida pelo
dinheiro dele, e não hás de morar nas terras dele. Esse é o fim da
senhora de Ekeby. O dia em que tornares a pôr os pés na minha
casa é o dia em que hei de matar-te.
– Estás me expulsando da minha própria casa?
– Tu não tens casa. Ekeby é minha.
Um espírito de hesitação se apossa da senhora. Ela se afasta
em direção à porta, e o major a segue de perto.
– Tu, que foste a desgraça da minha vida – ela se queixa –, hás
mesmo de ter ainda forças para fazer isso comigo?
– Fora, fora!
Ela se apoia contra o marco da porta, aperta as mãos e usa-as
para cobrir o rosto. Pensa na mãe e murmura para si mesma:
– Que sejas rejeitada como eu fui, que a estrada seja a tua casa,
e o feno a tua cama! Então é mesmo esse o destino que me espera.
É mesmo esse o meu destino.
O bom e velho preboste de Bro e o presidente do tribunal de
Munkerud aproximaram-se do major Samzelius e tentaram acalmá-
lo. Disseram-lhe que o melhor seria deixar essas velhas histórias
quietas, pôr tudo aquilo de lado, esquecer e perdoar.
Mas o major afastou as mãos bondosas que haviam pousado em
seus ombros. Era terrível aproximar-se dele, como pouco tempo
atrás tinha sido terrível aproximar-se de Kristian Bergh.
– Não se trata de uma velha história – ele brada. – Eu não sabia
de nada até hoje! Não tive a oportunidade de castigar essa adúltera!
Ao ouvir essa palavra, a senhora ergue a cabeça e recobra a
antiga coragem.
– Tu hás de sair antes de mim. Achas mesmo que vou me dobrar
perante a tua vontade? – ela pergunta. E então volta pela porta.
O major não responde, mas observa cada movimento dela,
pronto a revidar caso não encontre maneira de expulsá-la.
– Ajudem-me, meus bons cavalheiros – a senhora exclama –, a
amarrar esse homem e a levá-lo para fora até que recobre o juízo!
Lembrem-se de quem eu sou e de quem ele é! Pensem nisso, antes
que eu precise me dobrar à vontade dele! Eu me ocupo com tudo
aquilo que acontece em Ekeby enquanto ele passa o dia inteiro
sentado e alimenta os ursos nas tocas. Ajudem-me, meus bons
amigos e vizinhos! Este lugar há de se tornar uma tristeza sem fim
se eu deixar de existir. Os camponeses ganham o sustento ao
derrubar as minhas árvores e ao transportar minha gusa. Os
carvoeiros vivem de arranjar carvão para mim, e os jangadeiros de
transportar os meus troncos. Sou eu que distribuo o trabalho que
traz riqueza. Os ferreiros, artesãos e lenhadores vivem de servir a
mim. Acham mesmo que esse homem pode dar continuidade ao
meu trabalho? Pois digo-lhes agora mesmo que, se me expulsarem
daqui, vocês abrirão a porta para a fome e a necessidade.
Mais uma vez, diversas mãos se erguem para ajudar a senhora,
e mais uma vez diversas mãos convincentes pousam nos ombros
do major.
– Não! – ele diz. – Saiam daqui! Quem defende uma adúltera?
Aviso a todos que, se essa mulher não partir por vontade própria,
então eu mesmo vou levantá-la em meus braços e entregá-la para
os meus ursos.
Com essas palavras todas as mãos erguidas se abaixam.
E assim, na mais absoluta necessidade, a senhora dirige-se aos
cavalheiros.
– Os senhores também vão permitir que eu seja expulsa da
minha própria casa, cavalheiros? Acaso deixei os senhores
congelarem na neve do inverno? Acaso neguei-lhes cerveja amarga
e doce aguardente? Acaso exigi contrapartida ou trabalho dos
senhores em troca da comida e das roupas que eu oferecia? Acaso
os senhores não brincaram a meu lado, tranquilos como meninos ao
lado da mãe? Acaso a dança não atravessou os meus salões?
Acaso a alegria e as brincadeiras não foram o vosso pão de cada
dia? Não permitam que esse homem, que foi a desgraça da minha
vida, afaste-me da minha casa, cavalheiros! Não permitam que eu
me torne uma mendiga à beira da estrada!
Enquanto a senhora proferia essas palavras, Gösta Berling havia
se aproximado de uma bela menina de cabelos escuros que estava
sentada à mesa principal.
– Passaste um bom tempo em Borg cinco anos atrás, Anna – ele
diz. – Sabes se foi mesmo a senhora de Ekeby quem disse a Ebba
Dohna que eu era um pastor destituído?
– Gösta, ajuda a senhora! – é a única resposta que a menina
oferece.
– Saibas que primeiro quero ter claro se ela fez de mim um
assassino.
– Ora, Gösta, que ideia é essa? Ajuda-a, Gösta!
– Vejo que não queres responder. Então é mesmo verdade o que
Sintram me disse.
E Gösta retorna à companhia dos cavalheiros. Não levanta um
dedo para ajudar a senhora.
Ah, quem dera a senhora não houvesse sentado os cavalheiros à
mesa no canto da estufa! Agora os pensamentos noturnos estão
despertos naqueles cérebros, agora os rostos inflamam-se de uma
raiva que no entanto não é menor que a raiva sentida pelo major.
Os cavalheiros mantêm-se diante daquelas súplicas com uma
dureza implacável.
Não era como se tudo o que vissem confirmasse as visões da
noite anterior?
– Nota-se que o contrato da senhora não foi renovado – diz um
dos cavalheiros.
– Vai para o inferno, feiticeira! – grita outro.
– Por bons motivos devíamos ser nós a mandar-te porta afora.
– Cretinos! – o velho e contido tio Eberhard grita para os
cavalheiros. – Não entendem que tudo isso foi obra de Sintram?
– Claro que entendemos, claro que sabemos – responde Julius
–, mas que importa? Não pode ser verdade mesmo assim? Por
acaso Sintram não faz o trabalho do cão? Por acaso os dois não se
entendem entre si?
– Vai, Eberhard, vai ajudá-la! – os cavalheiros zombam. – Afinal,
não acreditas em inferno. Vai!
E Gösta Berling mantém-se imóvel, sem uma palavra, sem um
movimento.
Não, daquela ala sussurrante, ameaçadora e belicosa dos
cavalheiros não chega nenhuma ajuda para a senhora de Ekeby.
Mais uma vez a senhora afasta-se em direção à porta e leva as
mãos fechadas aos olhos.
– Que sejas rejeitada, como eu fui rejeitada! – ela grita para si
mesma, em uma tristeza amarga. – Que a estrada seja a tua casa, e
o feno a tua cama!
Então apoia uma das mãos na maçaneta da porta, enquanto
ergue a outra no ar.
– Prestem atenção vocês, vocês que precipitam a minha queda!
Prestem atenção, porque a hora logo há de chegar! Vocês agora
vão perder tudo, e este lugar vai acabar sendo abandonado. Como
pretendem manter-se, quando eu não estiver mais aqui para
sustentá-los? Tu, Melchior Sinclaire, que tens a mão pesada e fazes
com que a tua esposa sinta-lhe o peso, cuidado! Tu, pastor de
Broby, logo hás de receber teu castigo. Sra. Uggla, esposa do
capitão, cuida bem da tua casa, porque a pobreza bate à porta! E
vocês, mulheres jovens e belas, Elisabet Dohna, Marianne Sinclaire,
Anna Stjärnhök, não achem que sou a única a ter de fugir da própria
casa! Cavalheiros, tomem cuidado! Logo uma tempestade vai se
abater sobre esta terra. Vocês serão varridos da terra; a época de
vocês já passou, de fato já passou. Não me queixo por mim, mas
por vocês, pois a tempestade há de cair sobre as suas cabeças, e
quem vai se manter de pé, quando eu me encontro no chão? Meu
coração se entristece pelas gentes pobres. Quem vai dar-lhes
trabalho quando eu não estiver mais aqui?
Nesse instante a senhora abre a porta, mas logo o capitão
Kristian ergue a cabeça e diz:
– Quanto tempo vou manter-me prostrado aos teus pés,
Margareta Celsing? Não queres perdoar-me, para que assim eu
possa me levantar e defender-te?
A senhora trava uma batalha penosa consigo mesma; mas vê
que, se o perdoar, o capitão há de se erguer e brigar com seu
marido, e aquele homem, que a amou lealmente por quarenta anos,
tornar-se-ia um assassino.
– Acaso devo eu também perdoar? – ela pergunta. – Não és tu o
culpado pela minha desgraça, Kristian Bergh? Junta-te novamente
aos cavalheiros, e alegra-te com a tua proeza!
Então a senhora foi-se embora. Foi-se tranquila, deixando o
medo para trás. Tinha caído, mas não perdeu o orgulho, apesar da
humilhação. Não sucumbiu à tristeza dos fracos, porém ainda na
velhice rejubilou-se com o amor da juventude. Não se entregou às
lamúrias nem ao choro aflito, e, ao deixar tudo para trás, não
estremeceu quando teve de pegar uma trouxa e um cajado e sair
vagando pelas estradas. Lamentava apenas pelos camponeses
pobres e por aqueles homens alegres e despreocupados às
margens do Löven, por aqueles pobres cavalheiros, por todos
aqueles que havia protegido e sustentado.
Fora abandonada por todos, e assim mesmo reunira forças para
rejeitar o último amigo a fim de não o transformar em assassino.
A senhora era uma mulher extraordinária, grande na força e na
vontade de agir. Levaríamos tempo até encontrar mulher igual.
No dia seguinte, o major Samzelius deixou Ekeby e mudou-se
para a casa que tinha em Sjö, localizada próximo à principal
fundição.
O testamento de Altringer, por meio do qual o major havia
recebido as fundições, estabelecia de forma clara que nenhuma
poderia ser dada ou vendida, e que, após a morte do major, seriam
herdadas por sua esposa ou pelos herdeiros dela. Como não
houvesse meio de perder aquela herança odiosa, ele determinou
que os cavalheiros passassem a governar a propriedade, na crença
de que assim causaria a Ekeby e às outras seis propriedades o
maior estrago possível.
Ora, ninguém na região duvidava de que o malvado Sintram
fizesse o trabalho do cão, e, como tudo o que ele tinha prometido
havia se realizado, os cavalheiros estavam totalmente certos de que
o contrato seria cumprido à risca e completamente empenhados em
evitar, durante um ano, qualquer coisa sábia, útil ou menos viril;
ademais, estavam totalmente convencidos de que a senhora de
Ekeby era uma bruxa má que desejara a ruína de todos.
O velho tio Eberhard, o filósofo, havia feito troça daquela crença,
mas quem perguntava a opinião de um homem daqueles, tão
obstinado em sua descrença que, ainda que houvesse acabado em
meio às chamas do abismo e visto os demônios rirem de sua cara,
teria insistido em afirmar que nada daquilo existia, simplesmente
porque não podia existir, uma vez que o tio Eberhard era um grande
filósofo?
Gösta Berling não disse nada do que pensava. O certo é que não
sentia ter nenhuma dívida de gratidão para com a senhora por ela
tê-lo feito cavalheiro em Ekeby; antes ter morrido do que carregar na
consciência o fardo de saber que havia provocado o suicídio de
Ebba Dohna. Não levantou a mão a fim de vingar-se da senhora,
mas tampouco para ajudá-la. Simplesmente não conseguiu. Mas os
cavalheiros tinham obtido grande poder e grande opulência. O Natal
havia chegado, com suas festas e prazeres, o coração dos
cavalheiros estava repleto de júbilo e, qualquer que fosse a tristeza
a pesar sobre Gösta Berling, ele não a revelava no rosto ou nos
lábios.
ERA NATAL, E UM BAILE TERIA LUGAR EM BORG.
Naquela época – e logo hão de ter se passado sessenta anos –,
um jovem conde Dohna morava em Borg; era recém-casado, e a
condessa era jovem e bela. Sem dúvida haveria celebração na
antiga propriedade do conde.
O convite chegara até mesmo a Ekeby, mas ocorreu que, dentre
todos aqueles que haviam passado o Natal por lá, Gösta Berling, a
quem chamavam de “o poeta”, foi o único que se mostrou disposto a
fazer a viagem.
Tanto Borg como Ekeby situam-se às margens do extenso lago
Löven, embora em lados opostos. Borg situa-se na paróquia de
Svartsjö, e Ekeby, na de Bro. Quando as águas do lago não estão
navegáveis, a viagem entre Ekeby e Borg é de cerca de 3 léguas.
O pobre Gösta Berling foi enfeitado para a festa pelos velhos
cavalheiros como se fosse o filho de um rei que precisasse defender
a honra do reino.
O sobretudo de botões reluzentes era novo, o peitilho estava
engomado e os sapatos de verniz brilhavam. Usava uma
elegantíssima pele de castor e uma boina de zibelina sobre os
cabelos louros e crespos. Abriram uma pele de urso com garras de
prata em cima do trenó de corrida e ofereceram-lhe, para conduzi-lo,
o negro Don Juan, orgulho da cavalariça.
Ele assoviou para chamar o branco Tankred e pegou nas rédeas
trançadas. Tomado de júbilo, partiu rodeado pelo brilho da riqueza e
da opulência, ele, que ainda reluzia com a beleza do corpo e com a
gentileza brincalhona do espírito.
Partiu de manhã cedo. Era domingo, e ele ouviu os salmos da
igreja de Bro quando por lá passou. Depois avançou pela solitária
estrada da floresta, que segue rumo a Berga, onde naquela época
morava o capitão Uggla. Gösta Berling pretendia jantar por lá.
Berga não era uma casa rica. A fome conhecia o caminho até a
morada coberta de turfa onde vivia o capitão, mas o visitante foi
recebido com gracejos e alegrado por canções e brincadeiras, como
outros convivas, e partiu tão a contragosto quanto estes.
A velha dona Ulrika Dillner, que fazia pequenas tarefas e cuidava
das tapeçarias em Berga, deu as boas-vindas a Gösta Berling de pé
na escada. Recebeu-o com uma mesura, e os cachos da peruca,
que se estendiam por cima do rosto trigueiro com mil rugas,
dançaram alegremente. Acompanhou-o até a sala e logo se pôs a
contar sobre as pessoas da propriedade e as reviravoltas do
destino.
O desalento estava à porta, disse; era uma época amarga em
Berga. Não teriam sequer raiz-forte para acompanhar a carne
salgada se Ferdinand e as meninas não houvessem atrelado Disa a
um trenó e seguido até Munkerud para tomar um pouco
emprestado.
O capitão estava na floresta mais uma vez e provavelmente
tornaria a casa com uma lebre dura, que exigiria mais manteiga no
preparo do que a própria lebre valia. A isso ele chamava de levar
comida para casa. Apesar de tudo, já seria bom o suficiente caso
não voltasse para casa com uma terrível raposa, o pior animal que
nosso Senhor havia criado, tão imprestável vivo quanto morto.
Quanto à esposa do capitão, ah, ela ainda não havia se
levantado. Estava na cama lendo romances, como fazia todos os
dias. Não fora criada para trabalhar, aquele anjo de Deus.
Não, essas coisas deviam ser feitas por gente velha e grisalha,
como Ulrika Dillner. Era preciso esfalfar-se dia e noite para manter
aquela miséria em ordem. E nem sempre era fácil, pois a verdade
era que durante todo o inverno não houvera na casa nenhuma outra
carne a não ser um presunto de urso. E ela não esperava nenhuma
grande recompensa, não tinha recebido nenhuma, mas decerto não
haviam de abandoná-la na estrada quando já não pudesse fazer
nada para ganhar o próprio sustento. Naquela casa até mesmo uma
criada era tratada como gente, e com certeza haveriam de oferecer
à velha Ulrika um enterro honroso se tivessem meios para comprar
um caixão.
– Pois quem sabe o que pode acontecer? – ela exclamou, para
logo enxugar os olhos, sempre à beira das lágrimas. – Temos uma
dívida com o malvado patrão Sintram, e ele pode tirar tudo de nós.
Claro que agora Ferdinand está noivo da rica Anna Stjärnhök, mas
ela está se cansando, está se cansando dele. E o que há de ser de
nós, com três vacas e nove cavalos, com nossas alegres moças que
vão de baile em baile, com nossos campos secos onde nada cresce
e com nosso querido Ferdinand, que nunca se tornará um homem
de verdade? O que há de ser de toda essa bendita casa, onde tudo
vinga, menos o trabalho?
Mas logo chegou a hora do jantar, e as pessoas da casa se
reuniram. O querido Ferdinand, gentil filho da casa, e as alegres
filhas chegaram com a raiz-forte emprestada. O capitão chegou,
revigorado por um mergulho em um buraco no gelo do charco e por
uma caçada na floresta. Abriu a janela para tomar ar fresco e
apertou a mão de Gösta com a força de um homem. E a esposa do
capitão chegou, trajando seda, com rendas largas a cair por cima
das mãos alvas, que Gösta pôde beijar.
Todos receberam Gösta com alegria, os gracejos chegaram de
repente àquela companhia, e foi com satisfação que lhe
perguntaram:
– Como os senhores passam em Ekeby, como passam naquela
terra prometida?
– Aquela terra mana leite e mel – ele respondeu. – Retiramos o
ferro das montanhas e enchemos a cave de vinhos. Na lavoura,
cultivamos ouro para dourar a miséria da vida, e nossas florestas
são derrubadas para construir pistas de bolão e gazebos.
A esposa do capitão suspirou e riu ao ouvir a resposta, e uma
única palavra escapou-lhe dos lábios:
– Poeta!
– Tenho muitos pecados na minha consciência – respondeu
Gösta –, mas jamais escrevi uma linha de poesia.
– Mesmo assim, és poeta, Gösta; tens de aturar essa alcunha.
Viveste mais poemas do que certos escaldos tiveram chance de
escrever.
Depois a esposa do capitão falou, com uma ternura maternal,
sobre a vida desperdiçada de Gösta Berling.
– Ainda quero viver para ver-te tornar-te um homem – ela disse.
E ele sentiu o aconchego de ser provocado por aquela mulher terna
e amiga fiel, com um coração forte e apaixonado que ardia de
amores por grandes acontecimentos.
Mas, quando todos haviam terminado a agradável refeição e
degustado a carne salgada com raiz-forte e repolho, bolinhos fritos e
cerveja de Natal, e Gösta os havia feito rir e chorar ao narrar a
história do major, da senhora de Ekeby e do pastor de Broby,
sinetas soaram no pátio, e em seguida o malvado Sintram apareceu.
Brilhava de satisfação, desde a calva reluzente até os longos pés
chatos. Caminhava balançando os longos braços e com o rosto
contorcido. Era fácil perceber que trazia más notícias.
– Os senhores ouviram dizer – perguntou o malvado –, ouviram
dizer que hoje foram lidos os proclamas do casamento de Anna
Stjärnhök com o rico Dahlberg, na igreja de Svartsjö? Ela deve ter
esquecido que estava noiva de Ferdinand.
A família não tinha ouvido sequer uma palavra a esse respeito.
Todos se mostraram surpresos e lastimosos.
Logo pensaram que a casa seria destruída a fim de quitar a
dívida com o malvado: os amados cavalos seriam vendidos, bem
como os móveis puídos herdados da casa onde morava a esposa
do capitão. Viram o fim daquela vida alegre de festas e de passeios
de baile em baile. O presunto de urso reassumiria o lugar de antes à
mesa, e os filhos teriam de se afastar de casa e ganhar dinheiro na
casa de estranhos.
A esposa do capitão acariciou o filho e o fez sentir o consolo de
um amor que não falha jamais.
No entanto, lá estava o invencível Gösta Berling sentado entre os
demais, cogitando mil planos na cabeça.
– Escutem-me! – Gösta por fim exclamou. – Ainda não há motivo
para lamentações. Deve ter sido a esposa do pastor a aprontar uma
coisa dessas. Ela ganhou influência sobre Anna, que agora vive na
casa pastoral. Foi ela que a convenceu a abandonar Ferdinand em
favor do velho Dahlberg, mas os dois ainda não estão e tampouco
hão de estar casados. Estou agora mesmo a caminho de Borg para
falar com Anna. Vou conversar com ela e afastá-la do pastor e do
noivo. E vou trazê-la comigo para cá hoje à noite. Depois o velho
Dahlberg não há de receber mais nenhum favor dela.
E assim foi. Gösta percorreu sozinho o trajeto até Borg sem
oferecer carona às alegres moças, porém todos os que
permaneceram em casa desejaram-lhe sucesso na jornada. E
Sintram, que havia se rejubilado com o fato de que o velho Dahlberg
seria enganado, decidiu permanecer em Berga para ver Gösta voltar
com a noiva infiel. Em um acesso de boa vontade, chegou a
envolvê-lo no cinturão verde de viagem que havia ganhado da
própria sra. Ulrika.
Mas a esposa do capitão saiu à escada na frente da casa,
levando na mão três pequenos livros encadernados em vermelho.
– Leva-os – disse a Gösta, que já se encontrava no trenó. –
Leva-os, para o caso de fracassares! É Corinne, Corinne de
Madame de Staël. Não quero que esses livros sejam leiloados.
– Eu não vou fracassar.
– Ah, Gösta, Gösta! – ela disse, levando a mão à cabeça
descoberta do amigo –, o mais forte e o mais fraco dentre os
homens! Por quanto tempo hás de lembrar que a felicidade de uma
gente pobre está nas tuas mãos?
Mais uma vez Gösta avançou pela estrada, puxado pelo negro
Don Juan e seguido pelo branco Tankred, com o júbilo da aventura a
preencher-lhe a alma. Sentia-se como um jovem conquistador: tinha
o espírito consigo.
O caminho levou-o à casa pastoral em Svartsjö. Manobrou o
trenó e perguntou se poderia conduzir Anna Stjärnhök ao baile.
Concederam-lhe o pedido. No trenó, levava consigo uma bela e
obstinada menina. Quem não gostaria de ser levado pelo negro Don
Juan?
Os jovens eram sempre quietos a princípio, mas por fim ela deu
início à conversa, impertinente como a própria soberba.
– Você por acaso sabe o que o pastor leu hoje na igreja?
– Acaso disse que és a menina mais bonita entre o Löven e o
Klarälven?
– Você é estúpido; mas pelo menos isso as pessoas sabem. O
pastor leu os proclamas do meu casamento com Dahlberg.
– Jamais eu te haveria deixado sentar-te comigo neste trenó se
eu soubesse de uma coisa dessas. Eu jamais teria sequer me
disposto a conduzir-te!
E a orgulhosa herdeira respondeu:
– Decerto eu teria chegado mesmo sem Gösta Berling.
– Mesmo assim, é uma pena para ti, Anna – disse Gösta,
ponderando –, que não tenhas um pai e uma mãe na vida. És como
és, e não há ninguém que possa se ocupar de ti.
– E é uma pena ainda maior que não tenha dito essas coisas
antes, pois assim eu teria arranjado outro para me conduzir.
– A esposa do pastor também acha que precisas de uma pessoa
que ocupe o lugar do teu pai, uma vez que de outra forma ela não te
teria arranjado esse casamento com um pobre-diabo tão velho.
– Não foi a esposa do pastor que tomou essa decisão.
– Ah, por favor, poupe-nos! Foste tu mesma que escolheste um
sujeito tão galante?
– Ele não quis casar comigo pelo dinheiro.
– Não; os velhos correm somente atrás de olhos azuis e faces
rosadas, e parecem extremamente simpáticos quando se dedicam a
essa atividade.
– Ah, Gösta, você não tem vergonha?
– Lembra que a partir de agora não podes mais brincar com os
rapazes! Chega de dança e de brincadeira. Teu lugar é no canto do
sofá, ou por acaso pretendes jogar cartas com o velho Dahlberg?
A partir de então os dois seguiram em silêncio, até o momento
em que chegaram às encostas íngremes próximas de Borg.
– Obrigada pelo transporte! Mas vai demorar para que eu volte a
andar com Gösta Berling.
– Obrigado pela promessa! Conheço muitos que se
arrependeram do dia em que te levaram a uma festa.
Não com muita gentileza, a beldade atrevida do lugar entrou no
salão de baile e correu os olhos pelos convivas reunidos.
O primeiro que viu foi o pequeno e calvo Dahlberg, ao lado do
alto, esbelto e louro Gösta Berling. Ela teve vontade de expulsar os
dois do recinto.
O noivo aproximou-se a fim de convidá-la para uma dança, mas
ela o recebeu com um espanto destruidor.
– Você quer dançar? Não é o que costuma fazer!
E as meninas se aproximaram para fazer-lhe votos de felicidade.
– Não se deem ao trabalho, meninas! Não imaginem que alguém
possa se apaixonar pelo velho Dahlberg. Mas ele é rico, e eu sou
rica, então tudo se torna muito conveniente.
As senhoras de mais idade chegaram perto, apertaram-lhe a
mão alva e falaram sobre a maior felicidade nessa vida.
– Parabenizem a esposa do pastor! – ela disse então. – Ela está
mais feliz com tudo isso do que eu.
Mas lá estava Gösta Berling, o alegre cavalheiro, recebido com
júbilo por causa do sorriso fresco e das belas palavras, que
espalhavam pó de ouro sobre a gris fazenda que era a vida. Nunca
o tinham visto como o viram naquela tarde. Não se parecia com um
pária, um proscrito, um trocista sem lar, mas antes com um rei em
meio aos homens, um rei nato.
Ele e os rapazes mais jovens conspiraram contra Anna
Stjärnhök. Ela teria de pensar no mal que causava ao entregar seu
belo rosto e sua enorme riqueza a um velho. E assim a deixaram
sentada por dez danças.
Ela soltava fumaça de raiva.
Na undécima dança aproximou-se um homem, o mais reles
dentre os reles, um pobre-diabo com quem ninguém mais haveria
de dançar, e fez-lhe o convite.
– O pão acabou; tragam agora as migalhas – ela disse.
Logo começou um jogo de prendas. Meninas de cachos louros
juntaram as cabecinhas e exigiram que beijasse aquele de quem
mais gostava. E assim, com lábios sorridentes, esperaram para ver
a orgulhosa beldade beijar o velho Dahlberg.
Mas ela se levantou, majestosa na fúria, e disse:
– Será que não posso em vez disso dar uma bofetada naquele
de quem gosto menos?
No instante seguinte a bochecha de Gösta ardeu sob aquela mão
firme. Ele acabou muito vermelho, mas recompôs-se, pegou a mão
dela, segurou-a por um instante e sussurrou:
– Encontra-me daqui a meia hora na antessala vermelha no
andar de baixo!
Os olhos azuis brilharam para ela e a prenderam com grilhões
mágicos. Ela sentiu que seria preciso obedecer.
No andar de baixo, encontrou-o com orgulho e palavras duras.
– Por que interessa a Gösta Berling saber com quem me caso?
Ele ainda não tinha palavras suaves nos lábios nem julgava
aconselhável falar de imediato a respeito de Ferdinand.
– Não me pareceu ser um castigo duro demais que tenhas
passado dez danças sentada. No entanto, pretendes quebrar honras
e promessas sem receber nenhum castigo em troca. Se um homem
melhor do que eu tivesse se encarregado desse castigo, podia ter
sido bem mais difícil.
– Mas então o que fiz a ti e aos outros para que eu não possa
mais ter paz? É por causa do dinheiro que todos vocês me
perseguem. Vou jogar tudo no Löven, para que assim todo mundo
possa pescar as cédulas.
Anna Stjärnhök cobriu os olhos com as mãos e pôs-se a chorar
de mágoa.
Aquilo tocou o coração do poeta. Ele sentiu vergonha da própria
austeridade. A seguir, falou com um tom de voz manso.
– Ah, menina, menina, desculpa-me! Desculpa este pobre Gösta
Berling! Ninguém se preocupa com o que este coitado diz ou faz, e
disso bem sabes. Ninguém chora pela minha fúria; seria como
chorar pela picada de um mosquito. Sei que foi loucura, mas eu
queria evitar que a nossa mais bela e mais rica menina se casasse
com um velho. Mas agora vejo que não fiz senão entristecer-te.
Ele sentou-se no sofá ao lado dela. Aos poucos levou a mão à
cintura da menina, para assim, com uma ternura delicada, apoiá-la e
pô-la de pé.
Ela não o evitou. Apertou o corpo contra o dele, cingiu-lhe o
pescoço com os braços e pôs-se a chorar, com a linda cabecinha
apoiada em seu ombro.
Ah, poeta, o mais forte e o mais fraco dentre os homens! Não era
no teu pescoço que aqueles braços alvos deviam repousar!
– Se eu soubesse disso – ela sussurrou –, jamais teria aceitado
esse velho. Observei-te agora à tarde, e não há mais ninguém como
tu.
Mas, por entre os lábios pálidos, Gösta murmurou:
– Ferdinand.
A condessa o calou com um beijo.
– Ele não é nada, ninguém é mais do que tu. A ti eu posso ser
fiel.
– Eu sou Gösta Berling – ele disse, em tom lúgubre. – Comigo
não te podes casar.
– Mas é a ti que eu amo, porque és o mais esplêndido dentre os
homens. Não precisas fazer nada, não precisas ser nada. Nasceste
rei.
Então o sangue do poeta ferveu. A menina parecia bela e terna
com aquele amor. Ele a enlaçou nos braços.
– Se hás de ser minha, não podes ficar na casa pastoral. Permite
que eu te leve a Ekeby hoje à noite! Lá tenho como te defender até
a hora do nosso matrimônio.
Houve uma viagem desatinada noite adentro. Obedecendo aos
ditames do amor, os dois permitiram a Don Juan que os conduzisse.
Era como se os rangidos das pranchas fossem as lamentações das
pessoas traídas. Mas por que haveriam de se importar? Anna
Stjärnhök agarrou-se ao pescoço de Gösta, e ele se inclinou para
sussurrar-lhe ao pé do ouvido:
– Pode existir ventura que se compare à delícia de um prazer
roubado?
O que significavam os proclamas? Aqueles dois se amavam. E a
fúria das pessoas? Gösta Berling acreditava no destino, e o destino
os havia guiado: contra o destino ninguém pode.
Ainda que as estrelas fossem as luzes do matrimônio, acesas
para o matrimônio dela, ainda que as sinetas de Don Juan fossem
os sinos da igreja a conclamar toda a gente para testemunhar sua
união com o velho Dahlberg, teria igualmente fugido com Gösta
Berling. Eis a força do destino.
Os dois haviam deixado a casa pastoral e Munkerud para trás.
Ainda tinham meia légua a percorrer até chegar a Berga, e depois
meia légua até Ekeby. A estrada passava ao longo da orla da
floresta. À direita havia montanhas escuras, e à esquerda um longo
vale branco.
De repente Tankred apareceu correndo. Corria com tanto ímpeto
que dava a impressão de estar deitado. Ganindo de terror, saltou
para dentro do trenó e se encolheu aos pés de Anna.
Don Juan sobressaltou-se e correu em disparada.
– Lobos! – exclamou Gösta Berling.
Os dois viram uma longa fileira cinzenta surgir ao longo da cerca
da propriedade. Havia pelo menos uma dúzia.
Anna não sentiu medo. O dia tinha sido abençoado com
aventuras, e a noite prometia ser igual. Aquilo era a vida, deslizar
pela neve rumorejante, desafiando animais selvagens e pessoas.
Gösta praguejou, inclinou o corpo à frente e deu uma bela
vergastada em Don Juan com o chicote.
– Estás com medo? – Anna perguntou.
– Os lobos pretendem nos alcançar mais adiante, onde a estrada
faz a curva.
Don Juan corria lado a lado com os animais selvagens da
floresta enquanto Tankred gania de raiva e de pavor. Eles chegaram
à curva da estrada junto com os lobos, e Gösta afastou os mais
próximos com o chicote.
– Ah, Don Juan, meu rapaz, haverias de escapar muito depressa
a uma dúzia de lobos se não tivesses pessoas a carregar!
Os dois amarraram o cinturão de viagem atrás do trenó. Os lobos
sentiram medo e por um instante mantiveram-se distantes. Mas,
assim que venceram o pavor, um dos lobos saltou resfolegando em
direção ao trenó, com a língua pendurada e a bocarra escancarada.
Nessa hora Gösta pegou o Corinne de Madame de Staël e atirou-o
na goela do lobo.
Mais uma vez tiveram um instante para respirar enquanto os
animais dilaceravam aquela presa, mas logo começaram a sentir
puxões quando os lobos puseram-se a morder o cinturão verde de
viagem, e além disso ouviram a respiração resfolegante dos
animais. Os dois sabiam que não chegariam a nenhuma habitação
humana antes de Berga, mas para Gösta ainda pior do que a morte
seria encarar as pessoas que havia traído. Ele também sabia que o
cavalo acabaria por se cansar, e então o que seria deles?
Logo viram a propriedade de Berga junto à orla da floresta. Luzes
ardiam nas janelas. Gösta bem sabia por causa de quem.
Mas naquele instante os lobos fugiram, com medo da
proximidade humana, e Gösta atravessou Berga. Mesmo assim, não
foi além do ponto em que a estrada novamente adentra a floresta,
onde viu um grupo escuro logo à frente: os lobos o aguardavam.
– Vamos retornar à casa pastoral e dizer que demos um passeio
ao luar! Isso não pode dar certo.
Os dois fizeram a volta, porém no instante seguinte o trenó
encontrava-se rodeado por lobos. Vultos cinzentos apareceram com
dentes brancos que reluziam nas enormes bocarras e olhos que
ardiam. Os lobos uivavam devido à fome e à sede de sangue. Os
dentes luzidios ansiavam por fincar-se em carne humana macia. Os
lobos saltaram para cima de Don Juan e dependuraram-se no tecido
da sela. Anna pensou se haveriam de comê-los por inteiro ou se
restariam pedaços, de forma que na manhã seguinte as pessoas
descobrissem braços e pernas arrancados sobre a neve pisoteada e
sangrenta.
– Temos de lutar pelas nossas vidas – ela disse, enquanto se
abaixava e pegava Tankred pelo cangote.
– Deixa, isso não adianta de nada! Hoje à noite os lobos não
saíram atrás do cachorro.
A seguir Gösta manobrou em direção à propriedade de Berga,
mas os lobos continuaram a persegui-lo até os degraus da entrada.
Foi preciso defender-se com o chicote.
– Anna – ele disse enquanto os dois se encontravam ao pé da
escada –, Deus não quer. Faz uma cara boa; se és a mulher que
imagino seres, faz uma cara boa!
Do lado de dentro as pessoas ouviram o barulho das sinetas e
saíram da casa.
– Gösta a trouxe! – exclamaram. – Gösta a trouxe! Viva Gösta
Berling!
E os recém-chegados passaram de abraço em abraço.
Não houve muitas perguntas. A noite já estava avançada, os
viajantes estavam abalados pela jornada repleta de perigos e
precisavam repousar. Era suficiente que Anna tivesse retornado.
Tudo estava bem. Apenas Corinne e o cinturão verde de viagem,
valiosos presentes da sra. Ulrika, acabaram destruídos.

A casa inteira dormia. Ao acordar, Gösta vestiu-se e esgueirou-


se para fora. Sem fazer nenhum ruído, tirou Don Juan da cavalariça,
atrelou-o ao trenó e pretendia partir. Mas nesse momento Anna
Stjärnhök saiu da casa.
– Eu te ouvi saindo – ela disse. – E também me levantei. Estou
pronta para ir junto.
Gösta se aproximou dela e tomou-lhe a mão.
– Ainda não compreendeste? Isso não pode acontecer. Deus não
quer. Escuta, e tenta entender! Eu jantei nessa casa e vi o
sofrimento de todos com a tua infidelidade. Então fui a Borg para
trazer-te de volta para Ferdinand. Mas a verdade é que sempre fui
um patife e nunca hei de tornar-me outra coisa. Eu os traí e quis
ganhar-te para mim. Aqui vive uma senhora que acredita que um dia
ainda posso me tornar um homem. Também a ela eu traí. E uma
outra coitada aqui está disposta a congelar e a passar fome neste
lugar apenas para morrer entre amigos, enquanto eu estava prestes
a deixar o malvado Sintram tomar-lhe a casa. Foste adorável, e o
pecado foi delicioso. É fácil tentar Gösta Berling. Ai de mim! Eu sei
como as pessoas lá dentro amam essa casa, mas assim mesmo
estive disposto a deixar que fosse saqueada. Esqueci-me de tudo
por tua causa, tamanha a doçura do teu amor. Mas agora, Anna,
agora que vi a alegria de todos, não quero mais que estejas ao meu
lado, não, não quero! És aquela que há de me transformar em um
homem de verdade, mas não posso manter-te ao meu lado. Ah,
minha amada! Aquele senhor nas alturas brinca com nossas
vontades! É chegada a hora de curvarmo-nos sob a mão que nos
castiga. Diz que a partir de hoje hás de carregar teu próprio fardo!
Todas as pessoas lá dentro depositaram a confiança em ti. Diz que
hás de permanecer nessa casa para oferecer-lhes auxílio e apoio!
Se me amas, se queres aliviar meu profundo sofrimento, faz-me
essa promessa! Minha amada, será que tens um coração grande a
ponto de vencer-se a si mesmo e ainda rir de si?
Anna recebeu com entusiasmo essa mensagem de abnegação.
– Hei de fazer como pedes; vou sacrificar-me e rir de mim
mesma.
– E não vais odiar meus pobres amigos?
Ela abriu um sorriso contristado.
– Enquanto eu te amar, hei de amar também a eles.
– Vejo somente agora a mulher que és. É-me penoso abandonar-
te.
– Adeus, Gösta! Que Deus te acompanhe! Meu amor não há de
conduzir-te ao pecado.
Anna Stjärnhök virou-se para entrar. Ele a seguiu.
– Hás de esquecer-me em breve?
– Gösta, vai-te embora! Não somos mais do que pessoas.
Gösta atirou-se no trenó, mas logo ela voltou.
– Não pensas nos lobos?
– Estava agora mesmo pensando neles, mas já devem ter feito o
que tinham de fazer. Não têm mais nada a querer de mim esta noite.
Mais uma vez ele estendeu os braços em direção a Anna, porém
Don Juan mostrou-se impaciente e partiu. Gösta não pegou nas
rédeas. Sentou-se de costas e pôs-se a olhar para trás. Por fim
escorou-se no trenó e chorou como que tomado pelo desespero.
– Eu tive a felicidade e mandei-a embora. Eu mesmo a mandei
embora. Por que não a mantive ao meu lado?
Ah, Gösta Berling, o mais forte e o mais fraco dentre os homens!
CAVALO DE BATALHA, CAVALO DE BATALHA! Ah, velhote, agora que estás
amarrado a um moirão no campo, ainda recordas tua juventude?
Ah, valente, recordas o dia da batalha? Deste um salto à frente
como se tivesses asas, tua crina ondulava como chamas
bruxuleantes, em teu peito negro o odor de sangue brilhava em
meio à escuma grossa. Saltaste à frente com arreios de ouro, e o
chão tremeu sob os teus cascos. Ah, valente, tu estremecias de
júbilo! Ah, como eras belo!
Um crepúsculo cinzento envolve a ala dos cavalheiros. No
grande salão, os baús vermelhos dos cavalheiros encontram-se
dispostos ao longo da parede, e as roupas de domingo estão
penduradas em cabides no canto. O lume da estufa aberta reflete-se
nas paredes caiadas e nos dosséis em xadrez amarelo, que ocultam
as camas embutidas na parede. A ala dos cavalheiros não é um
aposento real, não é um serralho com divãs estofados e almofadas
macias.
Mas lá dentro se ouve o violino de Liljecrona. Ele toca La
cachucha ao crepúsculo. Repete a canção muitas e muitas vezes.
Cortem-lhe as cordas, quebrem-lhe o arco! Por que não para de
tocar essa maldita dança? Por que a toca, enquanto o segundo-
tenente Örneclou jaz prostrado com os tormentos da gota, tão
horríveis que não pode sequer mexer-se na cama? Não! Tirem o
violino daquele homem e atirem-no contra a parede se não parar!
La cachucha seria mesmo para nós, senhor? Para ser dançada
em meio às tábuas rangentes da ala dos cavalheiros, em meio a
paredes estreitas, manchadas de fuligem e grossas de sujeira, sob
esse teto baixo? Ai de ti, que toca!
La cachucha seria mesmo para nós cavalheiros? Do lado de fora
a nevasca uiva. Acaso pretendes que os flocos dancem ao ritmo da
música? Acaso tocas para as crianças de pé ligeiro, filhas da
intempérie?
Corpos feminis que estremecem sob o pulso do sangue
fervilhante, mãozinhas sujas de fuligem que largam as panelas e
pegam as castanholas, pezinhos nus sob barras de saia levantadas,
o pátio calçado com placas de mármore, ciganos agachados com
gaitas de fole e tamborins, arcadas mouriscas, luar e olhos negros,
acaso tens isso tudo, senhor? Se não, trata de guardar o violino!
Os cavalheiros secam as roupas molhadas ao pé da lareira. Será
que deviam dançar usando botas altas com saltos revestidos de
ferro e solas de uma polegada? Todos passaram o dia inteiro
caminhando a vau em meio à neve de um côvado para chegar à
toca do urso. Achas mesmo que hão de dançar com roupas úmidas
e fumegantes de burel, tendo o urso felpudo por companhia?
O céu de fim de tarde, coalhado de estrelas, as rosas vermelhas
no cabelo escuro das mulheres, o delicioso ar vespertino, a
desenvoltura natural dos movimentos, o amor que emana da terra,
chove do céu, paira no ar, tens isso tudo, senhor? Se não, por que
nos obrigas a ansiar por essas coisas?
Ah, mais terrível dentre os homens, queres mesmo soar a
corneta para um cavalo de batalha amarrado? Rutger von Örneclou
jaz na cama, refém dos tormentos da gota. Não o tortures com
recordações deliciosas, senhor! Também ele já usou o sombrero e
uma rede de cabelo multicolorida, também ele já teve uma jaqueta
de veludo e um cinturão guarnecido com um punhal. Poupa o velho
Örneclou, senhor!
Mas Liljecrona toca La cachucha, sempre La cachucha, e
Örneclou sente-se atormentado como um homem apaixonado ao
ver a andorinha tomar o rumo da longínqua casa da amada, como o
cervo levado pela caçada a passar correndo junto à fonte
refrescante.
Por um instante, Liljecrona tira o violino do queixo.
– Segundo-tenente, segundo-tenente! Não se recorda de Rosalie
von Berger?
Örneclou solta uma praga terrível.
– Ela era leve como a chama de uma vela. Brilhava e dançava
como o diamante na ponta do arco. Seguramente o segundo-
tenente se recorda de vê-la no teatro de Karlstad. Nós a víamos
quando éramos jovens, recorda-se, segundo-tenente?
E o segundo-tenente se recordava! Ela era pequena e vivaz.
Irrequieta e apaixonada. Sabia dançar La cachucha. Ensinou todos
os rapazes de Karlstad a dançar La cachucha e a tocar as
castanholas. No baile do governador, o segundo-tenente e a srta.
Von Berger dançaram um pas de deux, ambos com trajes
espanhóis.
E ele dançou como se dança sob as figueiras e os plátanos,
como um espanhol, um espanhol de verdade.
Ninguém em toda a província de Värmland sabia dançar La
cachucha como ele. Ninguém sabia dançar essa música de forma
que valesse a pena discutir o assunto, a não ser ele.
Que cavalheiro perdeu Värmland quando a gota paralisou-lhe as
pernas e grandes nódulos cresceram-lhe nas articulações! Que
cavalheiro ele fora, tão esbelto, tão bonito, tão cortês! Era chamado
de belo Örneclou pelas moças, que podiam ter acabado em uma
batalha mortal por uma dança com ele.
E então Liljecrona recomeça a tocar La cachucha, sempre La
cachucha, e Örneclou é transportado de volta aos velhos tempos.
Lá está ele, e lá está ela, Rosalie von Berger. Agora mesmo os
dois estiveram juntos no vestiário. Ela era a espanhola, ele o
espanhol. Ela roubou-lhe um beijo, porém com cautela, pois teve
medo dos bigodes pintados de preto. E agora os dois estão
dançando. Ah, como se dança sob as figueiras e os plátanos! Ela se
afasta, ele a segue, ele torna-se ousado, ela orgulhosa, ele
magoado, ela conciliatória. Quando por fim ele cai de joelhos e a
segura nos braços estendidos, um suspiro toma conta do salão de
baile, um suspiro de arrebatamento.
Ele tinha sido como um espanhol, um espanhol de verdade.
Com o golpe do arco havia se inclinado, estendido os braços e
posto o pé à frente, para logo seguir deslizando na ponta dos dedos.
Quanta graça! Poderiam havê-lo entalhado em mármore.
Örneclou não sabe como tudo acontece, mas de repente estende
as pernas para além da beira da cama, põe-se de pé, inclina o
corpo, ergue os braços, estala os dedos e tenta deslizar como nos
velhos tempos, quando usava sapatos de verniz tão apertados que
era preciso cortar o pé de meia.
– Bravo, Örneclou! Bravo, Liljecrona, inspire vida em seu
parceiro!
O pé o engana; Örneclou não consegue pôr-se na ponta dos
dedos. Ele chuta duas vezes com a mesma perna, mas não
consegue e prostra-se mais uma vez na cama.
Meu belo señor, a velhice chegou.
Será que chegou também para a señorita?
Somente sob os plátanos de Granada La cachucha é dançada
por gitanas eternamente jovens. Eternamente jovens, como as
rosas, porque a cada primavera se renovam.
E então chega a hora de cortar as cordas do violino.
Não, toca, Liljecrona, toca La cachucha, sempre La cachucha!
Ensina-nos que, mesmo estando na ala dos cavalheiros de
corpos lentos e juntas enrijecidas, em sentimento continuamos
sempre os mesmos, sempre espanhóis!
Cavalo de batalha, cavalo de batalha!
Diz que amas o soar da corneta, que te leva a galopar, ainda que
acabes com o pé ensanguentado nos grilhões que te prendem!
AH, MULHERES DE OUTRORA!
Falar sobre vós é como falar sobre o reino dos céus: éreis tão
somente beleza, tão somente luz. Éreis sempre jovens, sempre
belas e suaves como o olhar da mãe que zela pelo filho. Com a
maciez de um filhote de esquilo, dependuráveis-vos no pescoço do
marido. Jamais tremíeis a voz em fúria, jamais franzíeis o cenho, a
mão suave jamais se tornava rija e dura. Vós, aprazíveis santas,
erguíeis-vos como imagens enfeitadas no templo do lar. Incensos e
sacrifícios foram-vos oferecidos, graças a vós o amor operou seus
milagres, e ao redor de vossas frontes a poesia trouxe glórias com o
brilho do ouro.
Ah, mulheres de outrora, eis a história de como uma de vós
entregou seu amor a Gösta Berling.
Duas semanas após o baile de Borg houve festa em Ekeby.
E que festa! Senhoras e senhores voltaram a ser jovens, a rir e
alegrar-se só de falar a esse respeito.
Mas por volta dessa época os cavalheiros viviam como homens
solitários em Ekeby. A senhora vagava pelas estradas com uma
trouxa e um cajado, e o major morava em Sjö. Não pôde sequer
supervisionar a festa, pois em Sjö havia um surto de varíola e ele
tinha medo de espalhá-la.
Quantos prazeres não couberam naquelas doze horas deliciosas,
desde o estalar da primeira rolha de vinho na mesa de jantar até o
último golpe de arco no violino, quando a meia-noite já havia
passado muito tempo antes! Todos precipitaram-se no abismo do
tempo, naquelas horas enguirlandadas, arrebatados pelo mais
saboroso vinho, pela mais deliciosa refeição, pela mais
extraordinária música, pelos mais espirituosos números de teatro,
pelos mais belos tableaux. Todos precipitaram-se, tomados pela
vertigem da mais vertiginosa dança. Onde haveria assoalhos tão
lisos, cavalheiros tão corteses, mulheres tão belas?
Ah, mulheres de outrora, bem sabíeis preparar uma festa!
Correntes de fogo, de gentileza e de ímpeto atravessavam todos
aqueles que se aproximavam de vós. Valia o esforço gastar ouro
nas velas de cera que iluminavam vossa formosura, no vinho que
fazia nascer a alegria em vossos corações; valia o esforço saber
que por vós as solas dos sapatos dançariam até esfarelarem-se, e o
braço que sustinha o arco do violino movimentar-se-ia até acabar
paralisado.
Ah, mulheres de outrora, éreis vós que tínheis a chave da porta
do paraíso!
Os salões de Ekeby enchem-se com as mais belas de vosso belo
grupo. Lá está a jovem condessa Dohna, repleta de alegria e ávida
por danças e brincadeiras, como convém a seus 20 anos; lá estão
as lindas filhas do presidente do tribunal de Munkerud e as alegres
senhoritas de Berga; lá está Anna Stjärnhök, mil vezes mais bela do
que antes por causa da suave melancolia que a invadiu desde a
noite em que foi perseguida pelos lobos; lá estão muitas outras, que
ainda não foram esquecidas, mas logo hão de ser, e lá está até
mesmo a linda Marianne Sinclaire.
Ela, a célebre, que havia brilhado na corte do rei, reluzido no
palácio do conde, a rainha da beleza, que havia andado por todo o
país e recebido aclamações por toda parte, ela, que fazia acender a
faísca do amor onde quer que se mostrasse, havia concedido a
honra de comparecer à festa dos cavalheiros.
Naquela época a honra de Värmland brilhava nas alturas,
carregada por muitos nomes dignos de orgulho. Os alegres filhos
dessa bela terra tinham muito do que se envaidecer, mas, ao
enumerarem maravilhas, jamais se esqueciam de mencionar o
nome de Marianne Sinclaire.
A história de suas conquistas corria por toda a província.
Falava-se sobre as coroas dos condes que lhe haviam cingido a
cabeça, sobre os milhões postos a seus pés e sobre as espadas de
batalha e as guirlandas de escaldo cujo esplendor a encantara.
Mas não era apenas bela. Também era talentosa e culta. Os
melhores homens da época alegravam-se ao falar com ela. Não
escrevia, porém muitas de suas ideias, sedimentadas no espírito de
amigos poetas, viviam em canções.
Em Värmland, a terra dos ursos, despendia pouco tempo.
Passava a vida em constantes viagens. O pai dela, o rico Melchior
Sinclaire, passava o tempo inteiro na companhia da esposa em
Björne, e permitia que Marianne viajasse para ver os excelentes
amigos em grandes cidades ou em imponentes casas senhoriais.
Ficava verdadeiramente alegre ao falar sobre a fortuna que a filha
gastava, e esses dois velhos tinham uma vida feliz sob o brilho da
existência radiante de Marianne.
A vida dela era repleta de prazeres e celebração. A atmosfera ao
redor era de amor, o amor era sua luz e seu farol, o amor era seu
pão de cada dia.
Com frequência tinha amado, com muita, muita frequência,
porém o fogo da paixão nunca durara o bastante para forjar a
corrente que prende ao longo de uma vida inteira.
– Estou à espera dele, do meu homem grande e forte – ela
costumava dizer sobre o amor. – Por enquanto ele ainda não
escalou muralhas nem atravessou fossos a nado. Chegou de
mansinho, sem ímpeto no olhar nem desvario no coração. Espero
por esse grande homem que há de me tirar de mim mesma. Eu
quero sentir dentro de mim um amor tão forte que me faça
estremecer; hoje conheço apenas o amor do qual até o juízo mais
leviano acha graça.
A presença dela acendia uma chama nas conversas, dava vida
ao vinho. Aquela alma impetuosa conferia velocidade aos arcos do
violino, e a dança transcorria em uma vertigem ainda mais deliciosa
sobre as tábuas do assoalho, que ela tocava de leve com os
pezinhos delicados. Ela brilhava nos tableaux, emprestava talento
aos números de teatro, e aqueles belos lábios…
Não mesmo, o erro não foi dela, a intenção não era essa! A culpa
foi da sacada, do luar, do véu rendado, dos trajes de cavaleiro, da
música! Aquelas pobres criaturas eram inocentes.
Tudo isso, que levava a grandes infelicidades, era no entanto
feito com boas intenções. O patrão Julius, que entendia um pouco
de tudo, encomendara um tableau especial para que Marianne
aparecesse em todo o seu esplendor.
No teatro, montado no grande salão de Ekeby, os cem
convidados viam uma lua amarela deslizar pelo escuro céu noturno
da Espanha. Um Don Juan chegou com passos leves pelas ruas de
Sevilha e parou sob uma sacada tomada de hera. Estava disfarçado
de monge, porém vislumbravam-se punhos bordados sob as
mangas e a ponta reluzente de uma espada sob a barra do manto.
Essa figura disfarçada soltou a voz e pôs-se a cantar:

Não beijo lábios de menina,


nem levo meus lábios à taça
com o suco da baga.
Um rosto, cuja tez mui fina
a minha atenção arder faça,
um olhar, que pelo meu passa,
meu peito não afaga.
Não surja com toda a sua luz,
señora, nessa balaustrada!
Evito tê-la comigo.
Estou de batina e capuz;
a madona é minha bem-amada
e meu jarro a dádiva achada
por onde triste sigo.

Assim que parou, Marianne apareceu na sacada, vestida com


veludo preto e rendas. Debruçou-se sobre a balaustrada e cantou
com um ritmo lento e uma voz irônica:

Por que, então, homem de Deus,


Paras junto à minha sacada?
É por minh’alma que oras?

E então, cheia de ímpeto e vivacidade:

Busca a companhia dos teus!


Eu vejo a ponta da tua espada.
Apesar da fala sagrada,
Ouço o som das esporas.

Ao ouvir essas palavras, o monge atirou longe o manto, e Gösta


Berling surgiu debaixo da sacada em trajes de cavaleiro feitos com
ouro e seda. Não deu ouvidos ao alerta feito por aquela beldade;
pelo contrário: escalou um dos pilares da sacada, impulsionou o
corpo por cima da balaustrada e, conforme o patrão Julius havia
pedido, caiu de joelhos aos pés da bela Marianne.
Ela abriu um discreto e amável sorriso quando lhe ofereceu a
mão para que a beijasse, e enquanto os dois se olhavam, tomados
de amor, a cortina fechou-se.
E à frente dela estava Gösta Berling, com um rosto suave como
o dos escaldos e duro como o dos generais, com olhos profundos
que brilhavam de travessura e gentileza, que suplicavam e
persuadiam. Era um homem ágil e forte, apaixonado e charmoso.
Enquanto a cortina subia e descia, os dois permaneceram o
tempo inteiro na mesma posição. Os olhos de Gösta estavam fixos
nos da bela Marianne, suplicando, persuadindo.
Por fim os aplausos cessaram, a cortina parou, ninguém mais os
via.
Então a bela Marianne inclinou o corpo à frente e beijou Gösta
Berling. Não sabia por quê, mas parecia necessário. Ele pôs os
braços ao redor daquela cabecinha e abraçou-a com força. Ela o
beijou repetidas vezes.
Mas a culpa era da sacada, do luar, do véu rendado, da roupa de
cavaleiro, da música; aquelas pobres criaturas eram inocentes. Não
tinham desejado aquilo. Ela não dispensara as coroas dos condes
que lhe haviam cingido a cabeça nem recusara os milhões postos a
seus pés em favor de Gösta Berling, e ele tampouco havia
esquecido Anna Stjärnhök. Não, os dois eram inocentes, não tinham
desejado aquilo.
O gentil Löwenborg, com lágrimas nos olhos e alegria nos lábios,
era naquele dia o responsável pela cortina. Perdido em inúmeras
lembranças tristes, pouco notava acerca das coisas deste mundo, e
nunca aprendera a controlá-las. Quando viu que Gösta e Marianne
tinham assumido uma nova posição, acreditou que aquilo também
fazia parte do tableau, e então começou a puxar a corda da cortina.
Os jovens na sacada nada perceberam antes que uma nova
salva de aplausos ribombasse.
Marianne afastou-se e quis correr, mas Gösta segurou-a,
dizendo:
– Fique quieta! Eles acham que tudo faz parte do tableau!
Ele sentiu aquele corpo trêmulo de medo, e sentiu o ardor dos
beijos arrefecer.
– Não tenha medo! – ele sussurrou. – Esses belos lábios têm o
direito de beijar.
Os dois tiveram de permanecer lá enquanto a cortina subia e
descia, e toda vez que aquela centena de olhares tornava a vê-los,
igual quantia de aplausos ribombava nas mãos da plateia.
Pois é belo ver duas criaturas jovens representarem a felicidade
do amor. Ninguém imaginaria que aqueles beijos seriam mais do
que as ilusões do teatro; ninguém suspeitava que a señora fremia
de timidez e o cavaleiro de preocupação. Ninguém imaginaria que a
cena como um todo não fazia parte do tableau.
Por fim Marianne e Gösta encontravam-se nos bastidores.
Ela passou a mão pela testa, em direção aos cabelos.
– Não entendo o que houve comigo – ela disse.
– Que vergonha, srta. Marianne! – disse Gösta, fazendo uma
careta e abrindo os braços. – Beijar Gösta Berling! Que vergonha!
Marianne não pôde conter a risada.
– Todo mundo sabe que Gösta Berling é irresistível. Meu erro
não é maior que o erro de outras.
E os dois concordaram em manter as aparências, para que
ninguém suspeitasse da verdade.
– Posso confiar que a verdade não há de vir à tona, sr. Gösta? –
perguntou ela quando os dois estavam prestes a ir ao encontro dos
espectadores.
– Pode, srta. Marianne. Os cavalheiros hão de manter a boca
fechada; disso eu mesmo posso me ocupar.
Ela fechou as pálpebras. Um estranho sorriso contorceu-lhe os
lábios.
– E se mesmo assim a verdade vier à tona, o que as pessoas
vão pensar de mim, sr. Gösta?
– Não vão pensar coisa nenhuma; vão apenas saber que isso
nada significa. Vão pensar que estávamos absortos em nossos
papéis e que demos continuidade ao jogo de cena.
Mesmo assim, uma nova pergunta chegou de mansinho por sob
aquelas pálpebras cerradas, por sob aquele sorriso forçado.
– E quanto ao próprio sr. Gösta? O que pensa o sr. Gösta acerca
do que aconteceu?
– Penso que a srta. Marianne está apaixonada por mim – ele
brincou.
– Não pense uma coisa dessas! – ela disse, sorrindo. – Nesse
caso vou ter de perfurar o sr. Gösta com esse meu punhal espanhol
para demonstrar que se engana.
– Os beijos de mulher têm um preço alto – disse Gösta. – Será
que me custaria a vida ganhar um beijo da srta. Marianne?
Então um olhar faiscante surgiu dos olhos de Marianne, intenso
como uma punhalada.
– Eu queria ver Gösta Berling morto. Morto, morto!
Essas palavras acenderam o velho desejo no sangue do poeta.
– Ah – disse ele –, quem me dera essas palavras fossem mais
do que palavras, quem me dera fossem flechas saídas com um silvo
repentino de um recôndito escuro, quem me dera fossem um punhal
ou um veneno que pudesse destruir esse corpo imprestável e enfim
libertar minha alma!
Marianne estava de novo tranquila, com um discreto sorriso nos
lábios.
– Quanta puerilidade! – disse, e então pegou o braço dele para ir
ao encontro dos convivas.
Os dois mantiveram o figurino, e o triunfo se renovou quando se
revelaram fora do palco. Todos os elogiaram. Ninguém suspeitou de
nada.
O baile recomeçou, mas Gösta fugiu do salão.
Sentia o peito doer com aquele olhar de Marianne, como que
ferido pelo aço. Por fim havia compreendido o sentido das palavras
dela.
Amá-lo era uma vergonha, ser amada por ele era uma vergonha,
uma vergonha pior do que a morte.
Ele nunca mais haveria de dançar, nunca mais queria ver belas
mulheres.
Quanto a isso tinha certeza. Aqueles belos olhos, aquelas faces
coradas não ardiam por ele. Não era por ele que deslizavam
aqueles pezinhos ligeiros, que soavam aquelas risadas discretas.
Claro, dançar com ele, flertar com ele, isso era possível, mas
nenhuma delas quisera entregar-se de verdade.
O poeta foi ao encontro dos velhos senhores na sala de fumar e
sentou-se ao lado de uma das mesas de jogo. Por acaso escolheu a
mesa onde o enorme senhor de Björne jogava alternadamente
knack e polsk bank[1] enquanto acumulava uma grande pilha de
níqueis e xelins à frente.
As apostas já estavam altas. Com a chegada de Gösta,
ganharam novo ímpeto. As cédulas verdes começaram a surgir, e a
pilha de dinheiro em frente ao enorme Melchior Sinclaire não parava
de crescer.
Mas também em frente a Gösta acumulavam-se moedas e
cédulas, e logo ele era o único que ainda se digladiava com o
grande patrão da fundição de Björne. Logo também a grande pilha
de moedas passou de Melchior Sinclaire a Gösta Berling.
– Gösta, meu rapaz! – exclamou o patrão às gargalhadas, assim
que perdeu tudo o que tinha na carteira e na bolsa. – Como fazemos
agora? Estou falido, e não jogo com dinheiro emprestado. Foi uma
promessa que fiz à minha mãe.
Mas logo um jeito foi encontrado. Ele apostou o relógio e a pele
de castor e estava prestes a pôr na mesa o cavalo e o trenó quando
Sintram o deteve.
– Faz uma aposta para ganhar! – aconselhou o malvado patrão
de Fors. – Faz uma aposta que possa dar fim a esse azar!
– Mas que diabos eu poderia inventar?
– Aposta o próprio sangue do teu coração, camarada Melchior!
Aposta a tua filha!
– É uma aposta que o patrão pode fazer com toda a tranquilidade
– Gösta disse em meio às risadas. – Esse tipo de prêmio eu nunca
levo para casa.
O enorme Melchior não pôde fazer senão rir junto. Não gostava
de ver o nome de Marianne pronunciado na mesa de carteado, mas
aquilo era uma loucura tão grande que nem sequer ficou bravo.
Apostar Marianne com Gösta; sim, era uma aposta que estaria
disposto a fazer.
– Isso quer dizer – explicou – que, se conseguires a anuência
dela, Gösta, então eu aposto a minha bênção nessa partida.
Gösta apostou tudo o que tinha e o jogo começou. Ele ganhou, e
o patrão Sinclaire parou de jogar. Percebeu que não podia lutar
contra o azar.
A noite avançou, a meia-noite passou. As faces das belas
mulheres começaram a empalidecer, os cachos a desfazer-se, os
babados encontravam-se amassados. As velhas senhoras
levantaram-se no recanto do sofá e disseram que, como a festa já
durasse mais de doze horas, talvez fosse hora de ir para casa.
E a bela festa devia ter acabado, mas então o próprio Liljecrona
pegou o violino e tocou a última polca. Os cavalos aguardavam
defronte ao portão, as velhas senhoras vestiam peles e ajustavam
chapéus, os velhos senhores afivelavam os cinturões de viagem e
abotoavam as galochas.
Mas os jovens não conseguiam retirar-se do baile. Dançava-se
com roupas de exterior, dançava-se a polca em grupos de quatro,
em fileiras, em círculos – era uma apoteose da dança. Assim que
uma dama se separava de um cavalheiro, outra chegava e o puxava
para si.
E até mesmo o entristecido Gösta Berling foi levado por esse
torvelinho. Queria dançar para livrar-se da tristeza e da humilhação,
queria sentir mais uma vez a ânsia de viver correndo-lhe nas veias,
queria sentir-se alegre, como todos os demais. E dançou tanto que
as paredes do salão giraram e os pensamentos rodopiaram.
Quem era a dama que tinha puxado para junto de si em meio à
multidão? Era uma moça leve e ágil, e ele sentiu correntes de fogo
passando de um ao outro. Ah, Marianne!
Enquanto Gösta dançava com Marianne, Sintram já se
encontrava no pátio, acomodado no trenó, e ao lado dele estava
Melchior Sinclaire.
O grande patrão da fundição estava impaciente por ter de
esperar Marianne. Batia os pés com galochas contra a neve e
remexia os braços, pois fazia um frio cortante.
– Talvez não devesses ter apostado Marianne com Gösta,
Sinclaire – disse Sintram.
– Como é?
Sintram ajustou as pranchas do trenó e ergueu o chicote antes
de responder:
– Aquele beijo não fazia parte do tableau.
O enorme patrão ergueu o braço para desferir um golpe mortal,
porém Sintram já tinha ido embora. Partiu usando o chicote para
instigar o cavalo a um galope desenfreado, sem coragem de olhar
ao redor, pois Melchior Sinclaire tinha mão pesada e pavio curto.
O patrão de Björne entrou no salão de baile à procura da filha e
viu a maneira como Gösta e Marianne dançavam.
A última polca foi um desvario e uma vertigem. Alguns casais
estavam pálidos, outros, profundamente enrubescidos, a poeira se
erguia como fumaça pelo salão, as velas de cera ardiam quase no
fim e, no meio de toda essa destruição fantasmagórica, voavam
Gösta e Marianne, soberbos naquela força incansável, sem nenhum
prejuízo à beleza, felizes por entregarem-se àqueles movimentos
deliciosos.
Melchior Sinclaire passou um tempo a observá-los; mas logo se
afastou e deixou que Marianne dançasse. Bateu a porta com força,
pisou os degraus da escada com um peso estarrecedor e tornou a
sentar-se de imediato no trenó, onde a esposa o esperava, e partiu
rumo a casa.
Quando a dança acabou e Marianne perguntou sobre os pais, os
dois já haviam partido.
Quando teve certeza do que havia ocorrido, no entanto, não se
mostrou surpresa. Vestiu-se em silêncio e saiu ao pátio. As damas
no vestiário acharam que tinha à disposição um trenó próprio.
Mas ela tomou a estrada com os finos sapatos de seda sem
contar a ninguém sobre a angústia que a afligia. Na escuridão
ninguém a reconhecia por onde andava, à beira da estrada;
ninguém acreditaria que aquela andarilha noturna, empurrada rumo
aos montes de neve à beira da estrada pelos céleres trenós que
passavam, era a bela Marianne.
Quando se sentiu segura no meio da estrada, pôs-se então a
correr. Ela correu até não aguentar mais, depois voltou a caminhar,
e depois correu novamente. Uma angústia terrível e dolorosa
impelia-a sempre à frente.
De Ekeby a Björne o caminho não deve ter mais que um terço de
légua. Logo Marianne estava em casa, mas sentia quase como se
houvesse tomado o caminho errado. Quando chegou ao jardim,
encontrou todas as portas fechadas, todas as luzes apagadas.
Perguntou a si mesma se os pais ainda não teriam chegado.
Aproximou-se e bateu com força na porta da casa. Pegou a
maçaneta e a sacudiu de maneira que pôs toda a casa a tremer.
Ninguém apareceu para abrir, mas, quando ela soltou o ferro, que
havia pegado com a mão sem luvas, a pele congelada rasgou-se.
O grande patrão Melchior Sinclaire havia tornado a casa para
fechar todos os portões à sua única filha.
Estava ébrio de tanto beber, enlouquecido de fúria. Odiava a filha
por ela gostar de Gösta Berling. Havia trancado a criadagem na
cozinha e a esposa no quarto. E fez promessas solenes de que
daria uma surra avassaladora em qualquer um que tentasse abrir a
porta para Marianne. Todos sabiam muito bem que o patrão era um
homem de palavra.
Ninguém nunca o vira tão furioso. Maior tristeza jamais o
acometera. Se a filha aparecesse à sua frente naquele momento,
talvez a matasse.
Tinha lhe dado joias de ouro, trajes de seda, tinha lhe oferecido
bom juízo e a sabedoria dos livros. Marianne era sua honra e seu
orgulho. Gabava-se dela como se tivesse a cabeça cingida por uma
coroa. Ah, sua rainha, sua deusa, a célebre, bela e orgulhosa
Marianne! Por acaso havia lhe negado o que quer que fosse? Por
acaso não havia se considerado demasiado simplório para ser o pai
dela? Ah, Marianne, Marianne!
Não estaria certo em odiá-la, quando havia se apaixonado por
Gösta Berling e trocado beijos com ele? Não estaria certo em
rejeitá-la, fechar-lhe a porta de casa, quando estava decidida a
conspurcar a própria nobreza amando um homem daqueles? Que
permanecesse em Ekeby, que corresse aos vizinhos para arranjar
onde dormir, que dormisse nos montes de neve! Pouco importa,
porque ela já se arrastou na lama, a bela Marianne. O brilho que a
rodeava não existe mais. O brilho que rodeava a vida do pai não
existe mais.
Melchior Sinclaire está deitado na cama e ouve a filha bater na
porta de casa. Por que aquilo lhe diria respeito? Está dormindo. E
na rua está aquela que pretende desposar um pastor destituído; ele
não tem casa a oferecer para uma pessoa dessas. Se a amasse
menos, se tivesse menos orgulho da filha, então poderia deixar que
entrasse.
Claro, não haveria como negar-lhes a bênção. Essa fora sua
aposta. Mas abrir a porta para Marianne? Isso ele não faria. Ah,
Marianne!
A linda jovem ainda estava em frente à porta de casa. Ora
forçava a maçaneta com uma fúria desvairada, ora prostrava-se de
joelhos com as mãos postas e implorava por perdão.
Mas ninguém a ouvia, ninguém lhe respondia, ninguém abria a
porta.
Ah, não era terrível? Sinto a angústia me tomar ao contar essa
história. Ela tinha vindo de um baile onde fora a rainha! Tinha sido
orgulhosa, rica e feliz, mas de um instante para o outro viu-se
arrojada em uma miséria sem fim. Expulsa de casa, entregue ao
frio, sem que zombassem dela, sem que batessem nela, sem que a
amaldiçoassem, mas simplesmente expulsa de casa com uma
indiferença fria e impassível.
Penso na noite fria e estrelada que se erguia ao redor como uma
abóbada, naquela grande e ampla noite de campos nevados vazios
e inóspitos, e de florestas silenciosas. Tudo dormia, tudo havia
sucumbido a um sono tranquilo, e havia somente um único ponto
vivo em toda aquela brancura adormecida. Toda a tristeza e toda a
angústia e todo o terror que se espalham mundo afora rastejavam
em direção àquele ponto solitário. Ah, Deus, sofrer sozinha em meio
àquele mundo adormecido e gelado!
Pela primeira vez na vida, Marianne encontrou a inclemência e a
severidade. A mãe não se deu ao trabalho de sair da cama para
salvar a filha. Antigos criados de confiança, que lhe haviam guiado
os primeiros passos, ouviram-na sem mexer um dedo por ela. Por
qual crime estava sendo punida? Onde poderia encontrar
misericórdia, senão na porta de casa? Mesmo que houvesse
cometido um assassinato, haveria de bater àquela porta, certa de
que as pessoas lá dentro estariam dispostas a perdoá-la. Mesmo
que houvesse se transformado na mais desprezível das criaturas,
mesmo que houvesse chegado arruinada e vestindo andrajos, veja,
mesmo assim teria entrado confiante por aquela porta à espera de
uma recepção calorosa! Aquela porta era a entrada de casa. Do
outro lado haveria de encontrar somente amor.
O pai já não lhe havia posto suficientemente à prova? Será que
não haviam de abrir em breve?
– Pai, pai! – ela chamou. – Deixa-me entrar! Estou com frio,
estou tremendo! Está terrível aqui fora!
– Mãe, mãe, tu que sempre fizeste o quanto podias para me
ajudar! Tu que velaste por mim durante tantas noites, por que
dormes agora? Mãe, mãe, vela por mim ainda esta noite e prometo
que nunca mais hei de causar-te tristezas!
Ela grita e então sucumbe ao silêncio, de respiração suspensa
para ouvir a resposta. Mas ninguém a ouviu, ninguém a atendeu,
ninguém respondeu.
Então ela torce as mãos de angústia, mas não tem lágrimas nos
olhos.
A grande casa escura, com as portas fechadas e janelas
apagadas, mantinha uma indiferença terrível naquela noite. O que
seria dela sem casa? Estaria humilhada e marcada a ferro enquanto
o céu da terra se erguesse como uma abóbada acima dela. E fora o
próprio pai quem lhe havia apertado o ferro incandescente contra o
ombro.
– Pai – ela gritou mais uma vez –, o que vai ser de mim? As
pessoas vão pensar tudo de ruim a meu respeito.
Ela chorava e atormentava-se, com o corpo enrijecido pelo frio.
Ah, como tamanho sofrimento pode se abater sobre quem pouco
antes estava nas alturas! Como é tão fácil acabar na mais profunda
miséria! Não devemos angustiar-nos em relação à vida? Quem
navega em litoral seguro? Ao nosso redor as tristezas se avolumam
como um mar agitado, veja, as ondas lambem os costados do navio,
veja como se apressam para dominá-lo! Ah, não existe ancoradouro
seguro, não existe chão firme até onde a vista alcança, apenas um
céu desconhecido e um oceano de tristezas!
Mas silêncio! Finalmente, finalmente! De repente ouvem-se
passos no vestíbulo.
– Mãe, é a senhora? – Marianne perguntou.
– Sou eu, minha filha.
– Posso entrar agora?
– Teu pai não deseja que entres.
– Eu corri pelos montes de neve com estes sapatos finos, de
Ekeby até aqui. Passei uma hora batendo na porta e gritando. Estou
morrendo de frio aqui fora. Por que vocês foram embora sem mim?
– Minha filha, minha filha, por que beijaste Gösta Berling?
– Mas diga ao pai que apesar disso eu não gosto dele! Foi uma
brincadeira. Ele acha mesmo que eu quero ficar com Gösta?
– Vai até a posta, Marianne, e pede que te deixem passar a noite
lá! Teu pai está bêbado. Teu pai não quer saber de razão. Ele
manteve-me presa lá em cima. Eu consegui me esgueirar para fora
quando achei que ele tinha adormecido. Mas ele há de matar-te se
entrares.
– Mãe, mãe, devo então recorrer a estranhos, mesmo tendo um
lar? Será que a senhora é tão dura quanto o pai? Como pode a
senhora deixar que eu seja trancada do lado de fora? Vou me deitar
neste monte de neve aqui fora se a senhora não deixar que eu
entre.
E então a mãe de Marianne pôs a mão na maçaneta para abri-la,
mas no mesmo instante ouviram-se passos na escada do sótão, e
uma voz ríspida a chamou.
Marianne escutou; a mãe afastou-se às pressas, a voz ríspida
amaldiçoou-a e então…
Marianne ouviu uma coisa horrível. Podia ouvir cada ruído
naquela casa silenciosa.
E ouviu o estalo de golpe, desferido com uma bengala ou um
punho fechado, e logo pressentiu um baque surdo, e a seguir um
novo golpe.
Ele estava batendo na mãe dela, aquele homem terrível! O
enorme Melchior Sinclaire estava batendo na esposa!
Tomada por um horror pálido, Marianne atirou-se ao umbral da
porta e contorceu-se de angústia. Começou a chorar, e as lágrimas
transformaram-se em gelo no umbral da casa.
Piedade, misericórdia! Que a porta se abrisse, que a porta se
abrisse para que pudesse oferecer as próprias costas àqueles
golpes! Ah, que aquele homem pudesse bater em sua mãe, bater-
lhe porque ela não queria ver a filha morta em um monte de neve
pela manhã seguinte, porque desejara consolar a própria filha!
Naquela noite uma grande humilhação tomou conta de Marianne.
Sonhara em ser rainha, e lá estava jogada no chão, pouco melhor
do que uma escrava fustigada.
Mas ela se levantou tomada por uma fúria gelada. Mais uma vez
bateu com a mão ensanguentada na porta e bradou:
– Escuta o que eu vou dizer, tu, que estás a bater na minha mãe!
Tu hás de chorar, Melchior Sinclaire; chorar!
Depois a bela Marianne repousou em cima do monte de neve.
Jogou para longe o casaco de pele e deitou-se com o vestido de
veludo preto, que se destacava contra a neve branca. Deitou-se e
pensou que o pai haveria de sair para dar a caminhada matinal no
dia seguinte e encontrá-la ali. Era tudo o que desejava, que fosse
ele mesmo a encontrá-la.

Ah, morte, amiga pálida! Será mesmo tão verdadeiro quanto é


consolador pensar que não tenho como escapar de encontrar-te?
Mesmo para mim, a mais imprestável dentre todas as trabalhadoras
da terra, hás também de chegar, soltar o sapato de couro gasto do
meu pé, tirar o batedor de claras e a tigela de farinha da minha mão,
arrancar as roupas de trabalho do meu corpo. Com uma força suave
hás de estender-me em uma cama rendada, enfeitar-me com
drapeados de linho. Meus pés não precisam mais de sapatos,
porém minhas mãos são calçadas em luvas brancas que nenhum
afazer poderia sujar. Consagrada por ti às delícias do repouso,
durmo o sono de mil anos. Ah, minha libertadora! Sou eu a mais
imprestável dentre todas as trabalhadoras da terra, e sonho com o
arrepio de bem-estar quando eu for admitida em teu reino.
Amiga pálida, em mim podes testar as tuas forças, porém digo-
te: tiveste lutas mais duras com as mulheres de outrora. As forças
da vida eram mais tenazes naqueles corpos esbeltos, e nenhum frio
poderia gelar-lhes o sangue quente.
Deitaste a bela Marianne em tua cama, ó morte, e velaste ao
lado, como uma velha governanta senta-se ao pé do berço para
embalar a criança até que durma. Tu, velha e fiel enfermeira, que
sabes o que é bom para os filhos dos homens, como não deves
machucar-te quando chegam os amigos de brincadeiras, que com
barulho e confusão despertam a criança posta a dormir! Que fúria
deves ter sentido quando os cavalheiros tiraram a bela Marianne da
cama, quando um homem a pôs contra o peito, e lágrimas quentes
caíram-lhe dos olhos sobre o rosto dela!

Em Ekeby todas as luzes estavam apagadas e todos os convivas


haviam partido. Os cavalheiros estavam sozinhos na ala dos
cavalheiros ao redor da última poncheira, já meio vazia.
Nessa hora Gösta bateu na borda da poncheira e fez um
discurso em homenagem a vós, mulheres de outrora. Falar sobre
vós, segundo disse, era como falar sobre o reino dos céus; éreis tão
somente beleza, tão somente luz. Éreis sempre jovens, sempre
belas e suaves como o olhar da mãe que zela pelo filho. Com a
maciez de um filhote de esquilo, dependuráveis-vos no pescoço do
marido. Jamais vos ouviam com a voz a tremer em fúria, jamais
franzíeis o cenho, a mão suave jamais se tornava rija e dura.
Aprazíveis santas, erguíeis-vos como imagens enfeitadas no templo
do lar. Os homens deitavam-se aos vossos pés, oferecendo-vos
incensos e sacrifícios. Graças a vós o amor operou seus milagres, e
ao redor de vossas frontes a poesia fixou glórias com o brilho do
ouro.
E os cavalheiros puseram-se de pé, ébrios de vinho, ébrios
daquelas palavras, com o sangue a efervescer na alegria da festa.
O velho tio Eberhard e o preguiçoso sobrinho Kristoffer não se
afastaram da brincadeira. Em uma velocidade frenética, os
cavalheiros atrelaram os cavalos aos trenós e saíram depressa em
meio à noite fria para homenagear aquelas que nunca recebiam
homenagens o bastante, para cantar serenatas a cada uma
daquelas mulheres de faces vermelhas e olhos claros que tinham
acabado de brilhar nos amplos salões de Ekeby.
Ah, mulheres de outrora, como deve ter sido aprazível, enquanto
atravessáveis o delicioso céu dos sonhos, despertardes para a
serenata do mais fiel dentre vossos cavalheiros! Deve ter sido
aprazível, como bem apraz a uma alma adormecida despertar para
a música dos céus.
Mas os cavalheiros não foram muito longe com essa devota
procissão, pois logo ao chegar a Björne encontraram a bela
Marianne deitada em um monte de neve, ao lado da porta de casa.
Não houve um que não estremecesse e não se enfurecesse ao
vê-la naquela situação. Era como encontrar a imagem da santa de
quem se é devoto profanada e saqueada no lado de fora da igreja.
Gösta brandiu o punho cerrado em direção à casa escura.
– Filhos do ódio – bradou –, saraivas, tempestades do norte,
destruidores do jardim de Deus!
Beerencreutz acendeu o lampião e iluminou aquele rosto azulado
e pálido. Nessa hora os cavalheiros viram as mãos feridas de
Marianne e as lágrimas congeladas nos cílios, e lamuriaram-se
como mulheres, pois ela não era apenas a imagem de uma santa
como também uma bela mulher, que tinha sido uma alegria para
aqueles velhos corações.
Gösta Berling prostrou-se de joelhos ao lado dela.
– Ela agora está deitada aqui, minha noiva – ele disse. – Deu-me
o beijo de noivado horas atrás, e o pai dela prometeu conceder-me
sua bênção. Ela está deitada aqui, à espera de que eu venha
compartilhar este leito branco.
E Gösta levantou a desacordada nos braços fortes.
– De volta para Ekeby! – exclamou. – Agora ela é minha.
Encontrei-a num monte de neve, e agora ninguém pode tirá-la de
mim. Não devemos acordar as pessoas que dormem lá dentro. O
que ela poderia fazer atrás das portas que golpeou com mãos
ensanguentadas?
Ele fez como bem entendia. Acomodou Marianne no trenó mais à
frente e sentou-se ao lado dela. Beerencreutz ajeitou-se mais atrás
e tomou as rédeas.
– Esfregue-a com neve, Gösta! – ele ordenou.
O frio lhe havia paralisado os braços e as pernas, mas o coração
violentamente agitado continuava a bater. Marianne não tinha
sequer perdido a consciência; sabia de tudo a respeito dos
cavalheiros e da maneira como a haviam encontrado, porém não
conseguia se mexer. E assim permaneceu deitada, com o corpo
paralisado e rígido no trenó, enquanto Gösta Berling esfregava-a
com neve, chorava enternecido e beijava-a, e foi tomada pelo
desejo infinito de conseguir apenas levantar uma das mãos, para
que assim pudesse retribuir-lhe com uma carícia.
Ela se lembrava de tudo. Estava lá, paralisada e imóvel, e
pensava com uma clareza que até então desconhecia. Será que
estava apaixonada por Gösta Berling? Sim, estava. Será que era
apenas um capricho daquela noite? Não, era uma coisa que tinha
durado muito tempo, muitos anos.
Ela se comparou a ele e às outras pessoas de Värmland. Eram
todas espontâneas como crianças. Qualquer que fosse o desejo,
seguiam-no de imediato. Viviam somente a vida exterior, sem jamais
explorar as profundezas da alma. Mas ela havia se tornado uma
daquelas pessoas que se transformam com a vida em sociedade;
nunca podia entregar-se por completo. Se amasse, enfim, fizesse o
que fizesse, era como se a outra metade de si estivesse a observá-
la com um frio sorriso de escárnio. Havia tempos nutria uma paixão
que chegou e a arrebatou com uma insensatez desvairada. E agora
ele havia chegado, aquele homem enorme.
Quando Marianne beijou Gösta Berling na sacada, pela primeira
vez tinha esquecido de si mesma.
E naquele momento a paixão voltou a tomar conta dela, o
coração trabalhava, ela o ouvia bater. Será que logo haveria de
tomar posse novamente dos próprios movimentos? Ela sentiu uma
alegria exuberante por ter sido banida de casa. A partir daquele
instante, poderia entregar-se a Gösta sem nenhuma hesitação.
Como tinha sido boba! Por quantos anos havia lutado contra aquele
amor! Ah, que maravilha, que maravilha enfim ceder ao amor. Mas
será que jamais, jamais haveria de libertar-se daqueles grilhões de
gelo? Ela costumava ser gelo por dentro e fogo por fora, mas
naquele momento acontecia o contrário: era uma alma de fogo em
um corpo de gelo.
De repente Gösta sente dois braços erguerem-se devagar e
enlaçarem-lhe o pescoço, com um movimento delicado e sem
forças.
Gösta mal o sentiu, mas para Marianne foi como dar vazão à
paixão contida que trazia dentro de si em um abraço sufocante.
Ao ver aquela cena, Beerencreutz deixou o cavalo correr à rédea
solta pela velha estrada. Ergueu o rosto e olhou fixa e
incessantemente para as Plêiades.
AMIGOS, FILHOS DOS HOMENS! Se lhes ocorrer de estarem sentados
ou deitados, lendo estas páginas à noite, assim como as escrevo
nestas horas silenciosas, não suspirem aliviados e pensem que
esses bons senhores, os cavalheiros de Ekeby, puderam ter uma
noite de sono tranquilo, uma vez que haviam voltado para casa
levando Marianne e tratado de arranjar-lhe uma boa cama no
melhor quarto de visitas no grande salão.
Todos foram para a cama e todos adormeceram, mas o destino
não quis que dormissem em paz e tranquilidade até o meio-dia,
como poderia acontecer a mim e a você, caro leitor, se
houvéssemos permanecido de pé até as quatro horas da manhã e
nossos braços e pernas doessem em função do cansaço.
É importante não esquecer que naquela época a velha senhora
de Ekeby andava país afora com uma trouxa e um cajado, e que
não tinha por hábito, quando se via às voltas com assuntos
importantes, dedicar atenção ao conforto de um pecador exausto. E
naquele instante menos ainda poderia fazer aquilo, visto que
naquela noite decidira expulsar os cavalheiros de Ekeby.
Estava no passado a época em que, rodeada de brilho e
esplendor, ocupava seu lugar em Ekeby e semeava a alegria sobre
a terra, como Deus havia semeado as estrelas pelo céu. E,
enquanto vagava sem teto pela região, o poder e a honra daquela
propriedade foram deixados nas mãos dos cavalheiros, para serem
cuidados como o vento cuida das cinzas, como o sol de primavera
cuida dos montes de neve.
De vez em quando acontecia de os cavalheiros saírem em seis
ou oito em um longo trenó com uma parelha de cavalos, sinetas e
rédeas trançadas. Quando encontravam a senhora vagando como
uma mendiga, não baixavam os olhos.
O grupo brandia punhos crispados em direção a ela. Com uma
manobra violenta do trenó, a senhora era obrigada a subir nos
montes de neve que se acumulavam à beira da estrada, e o major
Fuchs, o matador de ursos, tomava sempre o cuidado de cuspir três
vezes para afastar os efeitos maléficos do encontro com aquela
velha.
Não tinham nenhum tipo de misericórdia. Para os cavalheiros,
ela não passava de uma bruxa de mau agouro à beira da estrada.
Se uma desgraça se abatesse sobre aquela mulher, não teriam
lamentado mais do que um homem que, na véspera da Páscoa,
disparasse uma espingarda carregada de tachinhas de latão e por
acaso acertasse uma bruxa que estivesse voando na trajetória dos
projéteis.
Para aqueles pobres cavalheiros, perseguir a senhora era algo
sagrado. Muitas vezes as pessoas agem com maldade e
atormentam umas às outras com profunda severidade quando
temem pela salvação da própria alma.
Quando os cavalheiros, no avançado da noite, afastavam-se
cambaleantes da mesa de bebedeira para ir até a janela a fim de ver
se a noite estava tranquila e estrelada, com frequência percebiam
uma sombra escura que deslizava pelo gramado e compreendiam
que a senhora tinha vindo para ver sua amada casa, mas logo toda
a ala dos cavalheiros estremecia com as gargalhadas escarninhas
daqueles velhos pecadores, e então as zombarias saíam pelas
janelas abertas e desciam até onde ela se encontrava.
A bem dizer, a insensatez e a arrogância começavam a perturbar
o coração daqueles velhos aventureiros. Sintram tinha plantado o
ódio naqueles homens. A alma deles não estaria correndo maior
risco se a senhora ainda ocupasse seu lugar em Ekeby. Mais
homens morrem ao bater em retirada do que no próprio campo de
batalha.
A senhora não trazia em si uma grande fúria em relação aos
cavalheiros.
Se dependesse dela, ter-lhes-ia dado uma surra de vara, como
se fossem meninos travessos, para logo tornar a mimá-los com
graça e doçura.
Mas naquele instante temia pela amada propriedade, deixada
nas mãos dos cavalheiros para que dela cuidassem como os lobos
cuidam das ovelhas, como os grous cuidam dos grãos semeados na
primavera.
Muita gente havia sofrido com aquela mesma tristeza. Não que
tivesse sido a única a presenciar a destruição tomar conta de uma
casa amada e a sentir na pele como é quando propriedades bem
cuidadas sucumbem à ruína. Essas pessoas viram a casa da
infância olhá-las como um animal ferido. Muitos sentem-se culpados
ao ver as árvores morrerem sob os liquens e os caminhos de areia
serem tomados por tufos de grama. Sentem vontade de cair de
joelhos nesses lugares, que outrora se orgulhavam de colheitas
fartas, e pedir que não os acusem de causar a vergonha que os
aflige. E viram o rosto para não olhar para os velhos cavalos; que
alguém mais audaz encontre aqueles olhos! E não têm coragem de
parar em frente à porteira e ver o rebanho voltar das pastagens. Não
existe sobre a terra nenhum recanto onde seja mais odioso
caminhar do que um lar decaído.
Ah, eu peço a vocês, a todos vocês, que cuidam de campos e
prados e parques e dos amados, dos alegres jardins de flores,
cuidem bem deles! Cuidem deles com amor, com trabalho! Não é
bom que a natureza padeça por causa dos homens.
Quando penso no que a imponente propriedade de Ekeby deve
ter sofrido sob o controle dos cavalheiros, lamento muito pelo plano
da senhora não ter dado certo, e por Ekeby não ter sido tomada dos
cavalheiros.
Não era o plano dela reassumir o poder.
Tinha apenas um objetivo: livrar a própria casa daqueles loucos,
daqueles gafanhotos, daqueles bandoleiros descontrolados, em cujo
rastro de destruição nenhuma grama crescia.
Enquanto mendigava país afora e vivia de esmolas, a senhora
pensava o tempo inteiro na mãe, e a seu coração aferrou-se a ideia
de que não poderia haver nenhuma salvação para ela enquanto a
mãe não houvesse quebrado a maldição que lhe pesava sobre os
ombros.
Ninguém havia mencionado a morte daquela velha senhora,
então ainda devia estar viva na forja junto às florestas de Älvdal. Por
noventa anos tinha vivido em trabalho incessante, velando pelos
tarros de leite no verão, pelas carvoarias no inverno, trabalhando
sem parar à medida que a morte se aproximava, à espera do dia em
que teria completado sua vocação.
E a senhora de Ekeby pensou que aquela velha senhora devia
ter vivido por tão longo tempo para ter a chance de quebrar a
maldição que havia lançado. Não poderia morrer a mãe que tivesse
invocado tanta desgraça sobre a própria filha.
Então a senhora de Ekeby decidiu procurar a velha senhora para
que ambas pudessem encontrar a paz. Queria atravessar as
florestas escuras ao longo do rio comprido que seguia até o lar de
sua infância. Antes disso seria incapaz de encontrar sossego.
Foram muitas as pessoas que lhe ofereceram as dádivas de uma
casa aquecida e de uma amizade sincera, mas ela não parou em
lugar nenhum. Amargurada e indômita, andou de casa em casa,
pois sentia-se impelida pelo banimento.
Queria chegar à casa da mãe, mas primeiro queria cuidar da
propriedade que tanto amava. Não queria deixá-la nas mãos de
pródigos levianos, de bêbados imprestáveis, de aproveitadores
indignos das dádivas concedidas por Deus.
Será que devia ir embora para depois retornar e encontrar a
própria herança destruída, os malhos silentes, os cavalos
esquálidos, os criados se aproveitando?
Ah, não! Mais uma vez há de reerguer-se e expulsar os
cavalheiros.
Bem compreendia que o marido se alegrava ao ver aquela
herança cair nas mãos de aproveitadores. Mas ela o conhecia o
bastante para saber que, uma vez afugentada a praga de
gafanhotos, ele seria lento demais para encontrar outros malfeitores.
Se os cavalheiros fossem afastados, os antigos feitores e capatazes
tratariam de pôr Ekeby de volta nos trilhos.
E assim a sombra escura de tantas noites tomou o rumo das
negras estradas que levavam à fundição. Ela tinha visitado as
cabanas das pequenas propriedades, tinha falado aos cochichos
com o moleiro e os criados no porão do grande moinho, tinha
negociado com os ferreiros no escuro depósito de carvão.
E todos haviam jurado ajudá-la. A honra e o poder daquela
grande propriedade não seriam mais deixados nas mãos de
cavalheiros levianos para serem por eles cuidados como o vento
cuida das cinzas, como o lobo cuida do rebanho.
E aquela noite, em que os alegres cavalheiros haviam dançado,
brincado e bebido, até por fim afundarem, mortos de cansaço, em
suas camas, seria a noite de mandá-los embora. Ela deixou que
eles se vangloriassem, despreocupados. Em uma espera amarga,
passou o tempo sentada na forja, aguardando o fim do baile.
Esperou ainda mais, até que os cavalheiros houvessem retornado
do passeio noturno, aguardou sentada até que a última chama nas
janelas da ala dos cavalheiros se extinguisse e até que todos na
casa estivessem dormindo. Então ela se levantou e saiu.
A senhora ordenou que todas as pessoas da propriedade se
reunissem na ala dos cavalheiros; ela mesma seguiu na frente.
Quando chegou àquela grande construção, bateu na porta e foi
admitida. A jovem filha do pastor de Broby, de quem ela fez uma
eficiente criada, veio-lhe ao encontro.
– Seja muito bem-vinda, minha senhora – disse a criada,
beijando-lhe a mão.
– Apaga a vela – disse a senhora. – Acaso pensas que eu
preciso de luz para andar por aqui?
E assim ela começou a caminhar pela casa silenciosa. Foi do
porão ao sótão e se despediu. Com passos discretos, as duas foram
de peça em peça.
A senhora falava com as próprias lembranças. A criada não
suspirava nem fungava, porém as lágrimas tinham livre curso por
seus olhos enquanto acompanhava a patroa. A senhora pediu que
abrisse o armário dos linhos e o armário da prataria e passou os
dedos sobre as finas toalhas de mesa adamascadas e os
imponentes canecos de prata. Acariciou a enorme pilha de
acolchoados na parte mais alta da alcova. Todas as ferramentas,
teares, rocas e dobadouras foram tocadas. Ela enfiou a mão na
gaveta de especiarias e sentiu a fileira de velas de sebo, que eram
presas em pinos no telhado.
– As velas estão secas – ela disse. – Já podem ser levadas lá
para baixo e guardadas.
Ela chegou ao porão, ergueu cuidadosamente os barris de
bebida e mexeu nas garrafas de vinho.
Foi à despensa e à cozinha, tocou em tudo, examinou tudo.
Estendeu a mão e disse adeus a tudo em sua casa.
Por fim ela foi às salas. Na sala de jantar, passou as mãos sobre
as folhas da grande mesa dobrável.
– Muita gente saciou a fome ao redor desta mesa – disse.
E andou por todas as salas. Viu o longo e largo sofá no lugar de
sempre, pôs a mão no tampo frio da mesa de mármore, que,
sustentada por grifos dourados, servia como apoio a espelhos
ornados por um friso com deusas dançantes.
– Esta é uma casa rica – disse. – Quem entregou tudo isso aos
meus cuidados foi um homem maravilhoso.
No salão, onde pouco antes a dança tinha arrebatado a todos, as
cadeiras já se encontravam rigidamente organizadas ao longo das
paredes.
Lá, a senhora aproximou-se do cravo e lentamente feriu uma
nota.
– Nem mesmo em meu tempo faltou alegria e júbilo por aqui –
ela disse.
A senhora também adentrou o quarto de visitas no interior do
salão.
O lugar estava escuro como breu. A senhora tateou com a mão e
roçou o rosto da criada.
– Estás a chorar? – ela perguntou, uma vez que sentiu a mão
umedecer-se de lágrimas.
Então a menina começou a fungar.
– Minha senhora – exclamou –, minha senhora, eles vão destruir
tudo! Por que a senhora nos abandona e permite que os cavalheiros
destruam a sua casa?
Então a senhora puxou o cordão da cortina e apontou para o
pátio.
– Fui eu quem te ensinou a chorar e a lamentar? – ela perguntou.
– Olha! O pátio está cheio de gente, e amanhã já nenhum cavalheiro
há de estar aqui em Ekeby.
– E a senhora pretende voltar? – perguntou a criada.
– Minha hora ainda não chegou – respondeu a senhora. – A
estrada é minha casa, e o feno, minha cama. Mas tu, menina, hás
de cuidar de Ekeby por mim enquanto eu estiver longe.
E as duas continuaram andando. Nenhuma delas sabia ou
imaginava que Marianne dormia justo naquele cômodo.
Ela tampouco dormia. Estava de todo desperta, ouvindo tudo e
compreendendo tudo.
Tinha se deitado na cama e composto um hino ao amor.
– Tu, homem maravilhoso, que me elevaste acima de mim
mesma! – ela disse. – Na tristeza sem fim encontrava-me eu, e
transformaste tudo em um paraíso. Na maçaneta dessa porta
fechada minhas mãos se agarraram e se feriram, no umbral de
minha casa minhas lágrimas rolaram como pérolas de gelo. A fúria
do frio congelou-me o coração quando ouvi os golpes nas costas de
minha mãe. No monte de neve eu quis pôr minha fúria a dormir, mas
então chegaste. Ah, meu amor, filho do fogo, chegaste àquela que
estava congelada pelo extremo frio! Se comparo a miséria que senti
à maravilha que assim ganhei, parece não ter sido nada. Agora me
encontro livre de todos os laços, sem pai, sem mãe, sem lar. As
pessoas pensariam o pior a meu respeito e afastar-se-iam de mim.
Bem, foi assim que desejaste, ó amor, pois como eu haveria de
estar acima do meu amado? De mãos dadas vamos andar mundo
afora. Pobre é a noiva de Gösta Berling. No monte de neve ele a
encontrou. Então moremos juntos, não em salões requintados, mas
em uma cabana na orla da floresta! Posso ajudá-lo a vigiar a
carvoaria, posso ajudá-lo a preparar armadilhas para os tetrazes e
as lebres, posso cozinhar-lhe as refeições e fazer-lhe as roupas. Ah,
meu amado, será que vou ter saudade e me lamentar enquanto
passo o tempo sozinha à tua espera na orla da floresta? É o que
achas? Vou, claro que vou, mas não da época de riqueza; somente
por ti, somente por ti hei de velar e ansiar, pelos teus passos na
trilha da floresta, pela tua canção alegre quando chegares com o
machado nas costas. Ah, meu amor! Enquanto durar minha vida,
posso sempre esperar por ti.
Ela tinha passado aquele tempo deitada, compondo hinos ao
deus onipotente do coração, sem ainda ter fechado os olhos para o
sono quando a senhora entrou.
Quando a senhora tornou a se afastar, Marianne levantou-se e
vestiu-se. Mais uma vez teve de trajar o vestido preto de veludo e os
finos sapatos de baile. Ela enrolou o cobertor ao redor do corpo,
como um xale, e caminhou depressa por um corredor rumo àquela
noite terrível.
A noite de fevereiro avançava calma, estrelada e gélida sobre a
terra; era como se jamais fosse ter fim. E a escuridão e o frio
espalhados por aquela noite pairaram durante muito tempo sobre a
terra, muito tempo depois de o sol ter nascido, muito tempo depois
de os montes de neve por onde a bela Marianne vagara terem se
transformado em água.
Marianne saiu às pressas de Ekeby à procura de ajuda. Não
podia deixar que aquilo acontecesse, que tivesse início uma
perseguição àqueles homens que a haviam retirado da neve e
aberto a casa e os corações para ela. Queria ir a Sjö, à casa do
major Samzelius. Tinha pressa. Conseguiria voltar somente ao fim
de uma hora.
Quando disse adeus à própria casa, a senhora de Ekeby saiu ao
pátio, onde a esperavam, e então começou a batalha pela ala dos
cavalheiros.
A senhora dispôs as pessoas ao redor da casa alta e estreita,
cujo piso superior é o afamado lar dos cavalheiros. Na grande sala
lá em cima, com as paredes caiadas, os baús pintados de vermelho
e a grande mesa dobrável, onde as cartas do baralho nadam na
aguardente derramada, onde as camas largas são cobertas por
dosséis em xadrez amarelo, é lá que dormem os cavalheiros. Ah,
despreocupados!
E na cavalariça em frente, nas baias exíguas, os cavalos dos
cavalheiros sonham com as viagens de outrora. É uma delícia
passar o dia em repouso, sonhando com as façanhas da juventude,
com as viagens ao mercado, quando se passavam dias e noites ao
ar livre, com a corrida na manhã de Natal, a volta antes de uma
troca de cavalos, quando senhores bêbados com as rédeas
erguidas estendiam o corpo para fora do coche a fim de gritar
xingamentos nos ouvidos dos cavalos. É uma delícia sonhar,
quando sabem que nunca mais deixarão aquelas manjedouras
exíguas, aquelas baias quentes em Ekeby. Ah, despreocupados!
Em um antigo e terrível depósito, para onde costumavam levar
carruagens arruinadas e trenós aposentados, existe uma estranha
coleção de antigos coches. Lá estavam trenós de feno pintados de
verde e carroças de feno pintadas de vermelho e amarelo. Lá estava
o primeiro cabriolé avistado em Värmland, obtido por Beerencreutz
como espólio de guerra em 1814. Lá estavam todos os tipos
imagináveis de coches para um cavalo, seges com molas
balouçantes e fiacres, estranhos instrumentos de tortura que
repousavam sobre uma suspensão de madeira. Lá ficavam todas
aquelas carripanas assassinas, carriolas, calhambeques e cabriolés
outrora celebrados na época das estradas. E lá ficavam os longos
trenós que transportavam doze cavalheiros, o trenó de capota do
friorento primo Kristoffer e o antigo trenó da família de Örneclou,
com uma pele de urso carcomida pelas traças e um brasão puído na
cortina, junto com trenós de corrida, uma infinidade de trenós de
corrida.
Muitos são os cavalheiros que viveram e morreram em Ekeby.
Os nomes deles foram esquecidos na terra e já não ocupam lugar
nos corações dos homens, mas a senhora guardou os veículos nos
quais chegaram à propriedade. Reuniu-os todos naquele velho
depósito de coches.
E é lá que dormem e acumulam grossas camadas de poeira.
Pregos e cravos desprendem-se da madeira podre, a camada de
pintura solta-se em longas tiras, o estofamento das almofadas e
cobertas surge nos furos por onde andaram as traças.
– Deixem-nos descansar, deixem-nos entregues às traças! –
dizem os antigos veículos. – Já sacolejamos o bastante pelas
estradas, já absorvemos demasiada umidade nas tempestades.
Deixem-nos descansar! Outrora chegávamos com os rapazes para
o primeiro baile, outrora andávamos reluzentes e recém-pintados
para as incríveis aventuras de um passeio de trenó, outrora
levávamos esses heróis jocundos pelas estradas barrentas da
primavera ao campo de Trossnäs. Hoje quase todos dormem, e os
últimos e melhores não pretendem sair de Ekeby nunca mais.
E assim rompe-se o couro do saco para os pés, assim soltam-se
os aros, assim apodrecem os raios e os cubos das rodas. Os
antigos veículos não se importam em viver, eles querem morrer.
A poeira já os cobre como se fosse uma mortalha, e sob essa
proteção a idade ganha forças. Numa indolência terrível, os veículos
continuam a decair. Ninguém os toca, e mesmo assim se racham.
Uma vez por ano o depósito de coches é aberto, caso haja chegado
um novo camarada que de fato pretenda se estabelecer em Ekeby,
e, assim que as portas tornam a fechar-se, o cansaço, o sono, a
decadência e a fraqueza da idade tomam conta do recém-chegado.
Ratos e brocas e traças e besouros e toda sorte de bichos famintos
atiram-se por cima do novo coche, que enferruja e se desintegra em
uma irrequietude serena e sem sonhos.
Mas agora, nessa noite de fevereiro, a senhora pede que abram
o depósito de coches.
E em meio a tochas e lampiões pede que procurem os veículos
que pertencem aos atuais moradores de Ekeby: o antigo cabriolé de
Beerencreutz, o trenó brasonado da família de Örneclou e o
pequeno trenó coberto que protegia o primo Kristoffer.
Pouco importa que sejam veículos de verão ou de inverno; o que
importa é que cada um receba o seu.
E na cavalariça acordam todos os velhos cavalos dos
cavalheiros, que sonhavam com manjedouras cheias.
O sonho há de se realizar, ó despreocupados!
Mais uma vez hão de galgar as encostas íngremes e provar do
feno guardado no depósito das estalagens, bem como do lancinante
chicote do cocheiro e das corridas desvairadas sobre um gelo tão
liso e tão perigoso que há de pôr-lhes o corpo inteiro a tremer.
Esses veículos hão de servir ao propósito legítimo quando
pequenos cavalos noruegueses forem postos à frente de uma sege
alta e fantasmagórica, ou quando cavalos longilíneos e ossudos
forem atrelados aos baixos trenós de corrida. Os velhos animais
choram e bufam quando os freios são postos naquelas bocas sem
dentes, os antigos veículos rangem e estalam. Uma fragilidade
triste, que devia ter dormido um sono tranquilo até o final dos
tempos, é agora posta à vista de todos; curvilhões enrijecidos, patas
hesitantes – o esparavão e o garrotilho surgem à luz do dia.
Apesar de tudo, os cavalariços prendem os animais aos veículos
e depois se aproximam da senhora a fim de perguntar qual deles
Gösta Berling deve ocupar, pois, como é sobejamente sabido,
chegara a Ekeby em um carrinho de carvão.
– Atrelem Don Juan ao nosso melhor trenó de corrida – diz a
senhora – e estendam a pele de urso com as garras de prata por
cima! – E, quando os cavalariços reclamam, ela continua: – Não
existe um único cavalo nesta cavalariça que eu não estivesse
disposta a dar para me ver livre daquele sujeito, lembrem-se bem!
E agora os veículos estão todos despertos, e os cavalos
também, enquanto os cavalheiros dormem.
Agora chega a hora de sair para a noite de inverno, porém atacar
os cavalheiros que dormem nas camas é um feito mais perigoso do
que tirar cavalos de patas enrijecidas e velhos coches
desaprumados para fora do depósito. Aqueles são homens
perspicazes, fortes e terríveis, endurecidos por mil aventuras. Estão
dispostos a defender-se até a morte; não é nada fácil tirá-los à força
da cama e enfiá-los nos veículos que devem levá-los embora.
Então a senhora ordena que ponham fogo em um monte de
palha, deixado tão próximo ao jardim que o lume sem dúvida
chegaria aos cavalheiros adormecidos.
– O monte de palha é meu, tudo em Ekeby é meu – ela diz.
E, enquanto a palha arde, exclama:
– Acordem-nos agora mesmo!
Mas os cavalheiros seguem dormindo com as portas fechadas.
Todo o amontoado de gente no lado de fora começa a soltar gritos
terríveis:
– Está pegando fogo, está pegando fogo!
Mas os cavalheiros dormem.
O pesado malho do ferreiro ribomba sobre a porta de entrada,
mas os cavalheiros dormem.
Uma bola de neve compacta estilhaça um dos vidros do quarto,
bate contra os dosséis, mas os cavalheiros dormem.
Sonham com uma moça bonita que lhes atira um lenço, sonham
com aplausos por trás de cortinas fechadas, sonham com alegres
risadas e o barulho ensurdecedor de festas à meia-noite.
Um tiro de canhão ao pé do ouvido, um mar de água gelada
seriam necessários para acordá-los.
Fizeram mesuras, dançaram, tocaram música, atuaram e
cantaram. Estão pesados de vinho, exaustos de forças e dormem
um sono profundo como a morte.
Esse sono abençoado é o que está a salvar-lhes.
As pessoas começam a achar que aquela tranquilidade esconde
um perigo. E se aquilo significar que os cavalheiros já saíram em
busca de ajuda? E se aquilo significar que estão despertos, com o
dedo no gatilho, à espreita atrás da porta ou da janela, prontos para
alvejar o primeiro que entrar?
Aqueles homens são astutos, aguerridos, e o silêncio deve ter
um significado. Quem poderia imaginar que seriam vencidos no
próprio covil, como um urso no inverno?
As pessoas voltam a gritar “está pegando fogo” por diversas
vezes, mas não adianta.
Por fim, quando todos começam a tremer, a própria senhora
pega um machado e arromba a porta de entrada.
Então sobe a escada sozinha, escancara a porta que dá para a
ala dos cavalheiros e brada lá para dentro:
– Está pegando fogo!
É uma voz que ressoa nos ouvidos dos cavalheiros com mais
força que a voz do povo. Acostumados a ouvir aquela voz, de um só
golpe os doze homens pulam da cama, veem o clarão das chamas,
vestem-se às pressas e descem a escada correndo em direção ao
jardim.
Mas na porta estão o grande ferreiro e dois criados de confiança
do moleiro, e uma enorme desonra toma conta dos cavalheiros.
Assim que chegam ao térreo são agarrados, derrubados no chão e
têm os pés amarrados, para então serem levados sem mais
delongas ao veículo estabelecido para cada um.
Nenhum escapou, todos foram capturados: Beerencreutz, o
amargo coronel, foi amarrado e levado embora, bem como Kristian
Bergh, o possante capitão, e o tio Eberhard, o filósofo.
Até mesmo o invencível, o terrível Gösta Berling foi capturado. A
senhora tinha conseguido. Apesar de tudo, ela é maior do que todos
os cavalheiros.
É consternador ver os cavalheiros com braços e pernas
amarrados nos antigos veículos decrépitos. Há cabeças baixas e
olhares furiosos, e o jardim estremece com imprecações e surtos
desvairados de fúria selvagem.
Mas a senhora vai ao encontro de todos, um por um.
– Jura – diz – que nunca mais hás de aparecer em Ekeby.
– Ah, sua bruxa!
– Tem de jurar – ela responde –, senão vou jogar-te de volta na
ala dos cavalheiros, todo amarrado como estás, e então vais
queimar lá dentro, porque hoje à noite a ala dos cavalheiros há de
queimar; podes ter certeza quanto a isso.
– A senhora não tem coragem.
– Não tenho coragem! Acaso Ekeby não me pertence? Ah, patife!
Achas que não me recordo de teres cuspido ao passar por mim na
estrada? Achas que não tive vontade, ainda há pouco, de tocar fogo
nisto tudo e deixar-vos queimar lá dentro? Acaso levantaste a mão
para me defender quando fui expulsa da minha própria casa? Não;
trata então de jurar!
E a senhora parece tão aterrorizante, embora talvez afete mais
fúria do que de fato sente, e são tantos os homens armados com
machados ao redor que os cavalheiros se veem obrigados a fazer o
juramento para evitar uma tragédia ainda maior.
Então a senhora permite que busquem as roupas e os baús
daqueles homens na ala dos cavalheiros e permite que lhes soltem
as amarras das mãos. Depois faz lhes entregarem as rédeas.
Enquanto isso, muito tempo se passou, e Marianne conseguiu
chegar a Sjö.
O major não era de dormir muito, e já estava de pé e vestido
quando ela chegou. Marianne encontrou-o no jardim, onde havia
levado o desjejum para os ursos.
O major não deu grandes respostas ao que lhe disse.
Simplesmente foi até os ursos, atou-lhes as focinheiras e, levando-
os consigo, apressou-se rumo a Ekeby.
Marianne seguiu-o de longe. Estava prestes a cair de exaustão,
mas logo viu um clarão no céu e quase morreu de susto.
Que tipo de noite era aquela? Um homem bate na esposa e
deixa a filha morrer congelada em frente à porta de casa. Será que
além disso uma mulher pretendia queimar os inimigos dentro da
própria casa? Será que o velho major pretendia soltar os ursos
sobre os próprios criados?
Ela venceu a exaustão, ultrapassou o major e avançou em ritmo
vertiginoso rumo a Ekeby.
Ganhou uma enorme vantagem. Quando chegou ao jardim, abriu
caminho em meio ao ajuntamento de pessoas. Ao ver-se no meio do
círculo, frente a frente com a senhora, Marianne gritou o mais alto
que podia:
– Senhora, senhora, o major está chegando com os ursos!
Houve um grande assombro entre as pessoas, e os olhares de
todos procuraram os olhos da senhora.
– Foste tu quem o trouxe – ela disse para Marianne.
– Fujam! – esta gritou, com ainda mais urgência. – Saiam todos
daqui, pelo amor de Deus! Não sei o que o major pretende, mas ele
traz consigo os ursos.
Todos permaneceram em silêncio, com os olhos fixos na
senhora.
– Agradeço a ajuda de vocês, queridos – a senhora disse
calmamente para as pessoas. – Tudo o que aconteceu hoje à noite
foi arranjado de forma que nenhum de vocês possa ser levado a
julgamento ou sofrer qualquer outra sorte de infortúnio. Agora tratem
de ir para casa! Não quero ver as pessoas que me são próximas
matarem ou serem mortas. Para casa!
As pessoas mantiveram-se imóveis.
A senhora virou-se para Marianne.
– Sei que estás apaixonada – ela disse. – Agiste num desvario
de amor. Que jamais chegue o dia em que te vejas obrigada a
testemunhar a destruição da tua própria casa! Que te mantenhas
sempre senhora da tua língua e da tua mão quando a fúria
preencher-te a alma!
– Meus queridos, venham, venham! – ela prosseguiu, voltando-
se para as pessoas. – Que Deus proteja Ekeby, pois tenho de ir à
casa da minha mãe. Ah, Marianne, quando recobrares o juízo,
quando Ekeby estiver em ruínas e a terra sofrer com a necessidade,
pensa no que fizeste hoje à noite e toma conta dessas pessoas!
E assim ela se foi, seguida por toda a gente.
Quando o major chegou ao pátio, não encontrou vivalma, a não
ser Marianne e uma longa fileira de cavalos atrelados a veículos e
passageiros, uma longa e triste fileira em que os cavalos só não
estavam piores do que os veículos, e os veículos só não estavam
piores do que os donos. Todos haviam passado por maus bocados
na batalha da vida.
Marianne aproximou-se e começou a soltar os cavalheiros
amarrados.
Notou que todos mordiam os lábios e desviavam o rosto. Era
uma humilhação como nunca haviam passado. Nunca haviam sido
acometidos por maior desonra.
– Eu não estava melhor quando poucas horas atrás me vi de
joelhos na escada de Björne – disse Marianne.
E assim, caro leitor, o que mais aconteceu naquela noite – como
os antigos veículos adentraram o depósito, os cavalos a cavalariça e
os cavalheiros a ala dos cavalheiros – são coisas que não hei de
narrar. A aurora despontou acima das montanhas a oriente, e o dia
chegou, tranquilo e claro. Como os dias claros e ensolarados são
tranquilos em relação às noites escuras, sob cujo manto protetor os
predadores caçam e as corujas arrulham!
Quero dizer apenas que tão logo os cavalheiros tornaram a
entrar na casa e na última poncheira encontraram um punhado de
gotas para encher os copos, todos foram tomados por um grande
arrebatamento.
– Um brinde à senhora! – exclamaram todos.
A senhora é uma mulher sem igual! O que mais aquelas pessoas
poderiam querer além de servi-la, além de celebrá-la?
Não é amargo saber que o diabo se apossou dela, e que toda
essa luta serve apenas para mandar a alma dos cavalheiros para o
inferno?
NA ESCURIDÃO DAS FLORESTAS VIVEM BICHOS TRAIÇOEIROS, cujas
mandíbulas são armadas com terríveis dentes brilhantes ou bicos
afiados, cujas patas trazem garras cortantes que anseiam por
agarrar-se a uma garganta ensanguentada, e cujos olhos brilham
com a sede de matar.
É lá que moram os lobos, que saem à noite e perseguem os
trenós dos camponeses até que a esposa precise pegar a criança
pequena que traz no colo e atirá-la para os animais a fim de salvar a
própria vida e a do marido.
É lá que mora o lince, que as pessoas evitam mencionar, pois ao
menos na floresta é perigoso dizer esse nome. As pessoas que o
pronunciam durante o dia precisam vigiar as portas e janelas do
galpão de ovelhas à tarde, senão ele aparece. Escala as paredes do
galpão, pois tem garras fortes como pregos de aço, desliza pela
fresta mais estreita e atira-se em cima das ovelhas. E o lince agarra-
se às gargantas e bebe o sangue das veias do pescoço e mata e
estraçalha, até que todo o rebanho esteja morto. Aquela terrível
dança da morte não acaba enquanto houver um animal que ainda
dê sinais de vida.
E pela manhã o camponês descobre todas as ovelhas mortas
com as gargantas cortadas, pois o lince não deixa nada vivo por
onde passa.
É lá que mora a coruja que arrulha ao crepúsculo. Se alguém
imita aquele chamado, a coruja se aproxima com o ruflar das largas
asas e arranca-lhe os olhos, pois aquilo não é um pássaro, é um
espectro.
E é lá que mora o mais terrível de todos, o urso, que tem a força
de doze homens e que, quando passa a comer os animais da
fazenda, somente pode ser morto com uma bala de prata. Será que
existe coisa mais capaz de conferir uma aura de terror a um bicho
do que o fato de que somente é possível matá-lo com uma bala de
prata? Que forças ocultas e terríveis são essas que habitam esse
bicho e o tornam resistente ao chumbo comum? Seria mesmo de
estranhar que as crianças passem horas em claro, tremendo de
medo dessa criatura feroz, que tem a proteção de forças malignas?
E quem o encontra na floresta, grande e alto como uma
montanha que caminha, não deve correr, não deve proteger-se, mas
apenas jogar-se no chão e fingir-se de morto. Muitas crianças
pequenas já se imaginaram atiradas no chão com um urso por cima.
O urso as vira de um lado para outro com as patas, e as crianças
sentem aquele hálito quente e ofegante no rosto, mas permanecem
imóveis até que ele tenha se afastado para cavar um buraco onde
possa escondê-las. E nessa hora as crianças se levantam e se
esgueiram para longe, a princípio devagar, mas logo com uma
pressa desesperada.
Mas imagine, imagine se o urso não tivesse acreditado que
estavam de fato mortas, e as tivesse mordido um pouco, ou se,
demasiado faminto, tivesse decidido devorá-las lá mesmo, ou se
tivesse percebido o movimento e corrido atrás! Meu Deus!
Uma bruxa é o horror. A bruxa aparece durante o crepúsculo na
floresta, entoa canções mágicas nos ouvidos dos homens e enche-
lhes o coração de pensamentos odiosos. A partir disso surge um
medo paralisante, que torna a vida pesada e obscurece a beleza de
paisagens sorridentes. A natureza é má, insidiosa como uma
serpente adormecida, não é uma coisa em que os homens possam
confiar. É lá que se encontra o lago Löven em sua beleza
deslumbrante, mas não se deve confiar nele! Está sempre à
espreita: todos os anos precisa recolher seu tesouro de afogados. É
lá que se encontra a floresta, tranquila e convidativa, mas não se
deve confiar nela! A floresta é cheia de bichos traiçoeiros, possuídos
pelas almas de bruxas más e patifes com sede de matar.
Não se deve confiar no córrego de águas plácidas! Atravessá-lo
a vau com o sol já baixo traz doenças graves e morte. Não acredites
no cuco, que tão alegre canta durante a primavera! No outono ele se
transforma em uma águia de olhar duro e garras formidáveis! Não
confies no musgo, não confies na urze, não confies nas pedras lisas
no sopé da montanha: a natureza é má, controlada por forças
invisíveis que têm ódio dos homens. Não existe lugar onde se possa
fincar o pé com segurança; é estranho que tua linhagem fraca possa
evitar tanta perseguição.
Uma bruxa é o horror. Será que ainda se encontra nas florestas
de Värmland, entoando canções mágicas? Será que ainda
obscurece a beleza de paisagens sorridentes, será que ainda
paralisa a alegria de viver? Grande foi seu poder, isso eu sei, eu,
que tive aço no berço e brasa na água do banho, isso eu sei, eu,
que senti essa mão de ferro ao redor do meu coração.
Mas ninguém deve achar que hei de contar histórias
assustadoras e terríveis. Trata-se apenas de uma antiga história
sobre o grande urso do monte Gurlita, sobre o qual eu gostaria de
falar, e todos podem ou não acreditar nela, assim como em geral
acontece a todas as histórias verídicas de caçada.

*
O grande urso mora no magnífico cimo da elevação chamada
monte Gurlita, que se ergue, íngreme e inacessível, na parte norte
do lago Löven.
As raízes de um espruce caído, das quais o musgo ainda pende,
fazem as vezes de paredes e telhado ao redor daquela habitação,
galhos e gravetos protegem-no e a neve o faz estanque. O urso
pode deitar-se lá dentro e dormir um sono bom e tranquilo entre um
verão e outro.
Será nesse caso um poeta, um sonhador indefeso esse hirsuto
rei da floresta, esse salteador de olhar enviesado? Será que deseja
passar dormindo as noites frias e os dias cinzentos do inverno, para
então ser acordado por riachos gorgolejantes e canções de
pássaro? Será que deseja permanecer lá, sonhando com arbustos
de airelas-vermelhas e formigueiros repletos das criaturinhas
marrons e deliciosas que pastam naquelas encostas? Será que ele,
bem-aventurado, deseja evitar o inverno da vida?
No lado de fora, os torvelinhos de neve sibilam em meio aos
espruces, no lado de fora lobos e raposas caminham ao redor,
loucos de fome. Por que somente ao urso é concedido dormir? Que
tenha de acordar e sentir o frio cortante, a dificuldade de andar em
meio à neve alta! Que tenha de acordar!
Mas ele preparou uma excelente cama. Parece a princesa
adormecida da antiga fábula. E, assim como a princesa é
despertada pelo amor, o urso há de ser despertado pelo chegar da
primavera. Por um raio de sol filtrado entre os gravetos que lhe
aquece o focinho, por gotas que pingam da neve que derrete,
umedecendo-lhe a pelagem, o urso há de ser despertado. E ai
daquele que o despertar antes da hora!
Mas, ah, se ao menos alguém perguntasse como o rei da floresta
deseja organizar a própria vida! Como se depressa uma saraivada
de chumbo já não houvesse atravessado os gravetos para encravar-
se em sua pele como uma nuvem de mosquitos em fúria!
De repente ele ouve gritos, barulhos e tiros. Espanta o sono para
longe das articulações e afasta os gravetos para ver do que se trata.
Há trabalho à espera daquele velho brigão. Ainda não é a primavera
que ribomba e estruge no lado de fora da toca, e tampouco o vento
que derruba espruces e levanta os torvelinhos de neve, mas os
cavalheiros, os cavalheiros de Ekeby.
Velhos conhecidos do rei da floresta. Ele ainda se recorda muito
bem da noite em que Fuchs e Beerencreutz estavam de tocaia no
estábulo de um camponês de Nygård, onde era aguardado. Os dois
tinham acabado de cochilar em cima da garrafa de aguardente
quando o urso entrou pelo telhado de turfa, mas acordaram quando
ele estava prestes a tirar a vaca morta da baia e atacaram-no com
faca e espingarda. Tiraram-lhe a vaca, além de um dos olhos, mas o
urso preservou a vida.
Bem, de fato ele e os cavalheiros são velhos conhecidos. O rei
da floresta ainda se recorda muito bem de quando o atacaram em
outra ocasião, quando ele e sua querida esposa tinham acabado de
se deitar para hibernar na velha fortaleza do rei no monte Gurlita
com os filhotes na toca. Recorda-se muito bem de que os atacaram
quando estavam indefesos. Claro que ele se salvou jogando para o
lado tudo o que obstruía a fuga, mas a partir de então passou a
mancar para o resto da vida por causa de um tiro que levou na coxa,
e, quando retornou à noite para a fortaleza real, a neve estava
vermelha com o sangue da esposa, e os filhotes reais tinham sido
levados à planície para lá crescerem como servos e amigos dos
homens.
Claro, agora o chão estremece, agora se balança a neve que
cobre a toca, e agora ele sai, o grande urso, esse velho inimigo dos
cavalheiros. Cuidado, Fuchs, velho matador de ursos, cuidado,
Beerencreutz, coronel e apreciador de carteado, cuidado, Gösta
Berling, herói de mil aventuras!
Ai de todos os poetas, todos os sonhadores, todos os heróis do
amor! Lá está Gösta Berling com o dedo no gatilho, e o urso avança
sem parar em sua direção. Por que não atira? No que estaria
pensando?
Por que não crava uma bala agora mesmo naquele peito largo?
Ele está no lugar perfeito para fazer isso. Os outros não vão ter a
chance de atirar no momento certo. Por acaso ele acha que está lá
desfilando para a majestade da floresta?
Gösta naturalmente está sonhando com a bela Marianne, que
por esses dias anda muito doente em Ekeby, gripada como
consequência da noite em que dormiu sobre o monte de neve.
Ele pensa nela, que, como ele, também foi vitimada pela
maldição do ódio que paira sobre a terra, e estremece ao pensar em
si mesmo, quando compreende que saiu a fim de perseguir e matar.
E o grande urso avança sem parar em sua direção, cego do olho
vazado pela faca de um cavalheiro, manco de uma pata alvejada
pela espingarda de outro cavalheiro, irritadiço e desgrenhado, e
também solitário, uma vez que lhe mataram a esposa e levaram-lhe
embora os filhos. E Gösta o vê da maneira como é: um pobre animal
perseguido, cuja vida não deseja tirar, posto que é tudo o que ainda
tem, uma vez que os homens privaram-no de todo o resto.
“Que o urso me mate”, pensa Gösta, “mas não vou atirar”.
E, enquanto o urso avança, ele se mantém como se estivesse
em um desfile e, quando o rei da floresta para diante dele, bate uma
continência com a espingarda e dá um passo para o lado.
Então o urso continua seu caminho, ciente de que não há tempo
a desperdiçar, avança pela floresta, abre caminho em meio aos
montes de neve da altura de um homem, rola por encostas
íngremes e foge para sempre, enquanto todos os outros, que
esperavam com o cão armado o tiro de Gösta, atiram com as
espingardas.
Mas é em vão. O círculo se desfaz, e o urso some. Fuchs
reclama e Beerencreutz pragueja, mas Gösta simplesmente
gargalha.
Como poderiam exigir que um homem tão feliz quanto ele fizesse
mal a uma criatura de Deus?
Sendo assim, o grande urso do monte de Gurlita escapou com
vida, e a partir de então os camponeses teriam de lidar com o fato
de que havia despertado da hibernação. Nenhum urso era mais
capaz do que aquele de arrancar os telhados dos estábulos baixos,
que mais se assemelhavam a caves; nenhum outro era mais capaz
de escapar de uma cilada elaborada.
Logo as pessoas na parte norte do Löven já não sabiam o que
fazer com o urso. Mensagem após mensagem foram mandadas
para os cavalheiros, pedindo que fossem até lá para matá-lo.
Dia após dia, noite após noite durante todo o mês de fevereiro,
os cavalheiros vão à margem norte do lago Löven para encontrar o
urso, mas ele sempre os evita. Terá aprendido a ser astuto com a
raposa e rápido com o lobo? Se estão de tocaia em uma
propriedade, o urso ataca a propriedade vizinha; se adentram a
floresta, o urso persegue o camponês que atravessa o gelo de
trenó. Tornou-se o mais intrépido salteador: arromba sótãos para
esvaziar os jarros de mel da mãe e mata o cavalo que puxa o trenó
do pai.
Mas aos poucos as pessoas começam a entender que urso é
aquele e por que Gösta não conseguiu atirar. É medonho dizer e
terrível pensar, mas aquele não é um urso comum. Ninguém pode
sequer pensar em abatê-lo enquanto não tiver uma bala de prata.
Uma bala de prata e metal de sino, fundida em uma tarde de quinta-
feira no campanário da igreja, durante a lua nova, sem que o pastor
ou o sineiro ou qualquer outra pessoa soubessem, com certeza
seria capaz de matá-lo, mas talvez não seja muito simples conseguir
uma bala dessas.

*
Em Ekeby vive um homem que deve remoer esse assunto todo
mais do que qualquer outro. Trata-se, como todos hão de entender,
de Anders Fuchs, o matador de ursos. Ele perdeu o apetite e o sono
por conta da indignação por não ter conseguido abater o urso do
monte Gurlita. Por fim também ele compreendeu que o urso
somente podia ser abatido com uma bala de prata.
O amargo major, Anders Fuchs, não era um homem vistoso.
Tinha um corpo pesado e atarracado e um rosto vermelho e largo,
com olheiras profundas e uma volumosa papada. Os bigodes,
rígidos como as cerdas de uma escova, espevitavam-se acima dos
lábios grossos, e os cabelos pretos brotavam-lhe cerrados e
irregulares da cabeça. Ademais, era um homem lacônico e um
grande comilão. Não era um daqueles que as mulheres recebem
com um sorriso ensolarado e de braços abertos, e tampouco
retribuía olhares gentis. Ninguém acreditava que um dia fosse
encontrar uma mulher com quem pudesse ter paciência, e tudo
aquilo que dizia respeito ao amor e à paixão lhe era distante.
Mas então chega uma tarde de quinta-feira em que a lua surge
com apenas dois dedos de largura e demora-se por duas ou três
horas próximo do horizonte depois que o sol havia se posto, e o
major Fuchs deixa Ekeby sem dizer o que pretendia. Leva uma
pederneira e um molde de bala no bolso da jaqueta e a espingarda
nas costas, e sobe em direção à igreja de Bro para descobrir o que
a sorte pode fazer por um homem honrado.
A igreja se localiza na margem leste do estreito que separa as
partes norte e sul do lago Löven, e o major Fuchs precisa atravessar
Sundsbron para chegar lá. Assim segue estrada afora, imerso em
seus pensamentos, sem olhar para as encostas de Broby, onde as
casas desenham-se nitidamente contra o céu claro da tarde, ou para
o monte Gurlita, que ergue o cimo arredondado em meio ao brilho
da tarde; com os olhos fixos no chão, rumina uma forma de obter a
chave da igreja sem que ninguém descubra.
Quando chega à ponte, o major ouve um grito tão desesperado
que se vê obrigado a erguer o rosto.
Naquela época o pequeno alemão Faber era o organista de Bro.
Era um homem franzino, de pouco peso e pouco valor. E o sineiro
era Jan Larsson, um camponês trabalhador, mas também pobre,
uma vez que o pastor de Broby lhe havia tomado a herança do pai
no valor de 500 riksdaler[2].
O sineiro queria se casar com a irmã do organista, a pequena e
bela srta. Faber, mas o organista não permitiu, e por esse motivo os
dois eram inimigos. Pois naquela tarde o sineiro encontra o
organista em Sundsbron e parte para cima dele. Agarra-o pelo peito
e coloca-o, de braços estendidos, para além da balaustrada da
ponte, e promete, por tudo o que há de mais caro e de mais sagrado
que existe, jogá-lo no estreito se não permitir que se case com a
pequena e bela senhorita. Mas o alemãozinho não cede, e então
começa a se debater e a gritar e a repetir que não, embora veja sob
os pés o caminho escuro por onde as águas correm entre as
margens brancas.
– Não, não! – ele grita. – Não, não!
E não há como garantir que o sineiro, tomado pela fúria, não teria
posto o organista para dançar naquelas águas frias e escuras, caso
o major Fuchs naquele instante não estivesse chegando à ponte. O
sineiro é tomado pelo medo, devolve Faber ao chão firme e corre
para longe o mais depressa que pode.
O pequeno Faber agarra-se ao pescoço do major em um gesto
de agradecimento por ter-lhe salvado a vida, porém o major o afasta
e diz que não há o que agradecer. O major não gosta de alemães
desde que passou um tempo no quartel de Putbus, na ilha de
Rügen, durante a guerra da Pomerânia.
Nunca na vida havia estado tão perto de morrer de fome como
naquela época.
O pequeno Faber quer correr até o comissário Scharling para
acusar o sineiro de tentativa de homicídio, mas o major lhe diz que
esse tipo de coisa não vale a pena por aquelas bandas, onde não se
paga nada por matar um alemão.
Então o pequeno Faber se acalma e convida o major para ir à
sua casa comer salsichas de porco e beber mumma[3].
O major segue-o, pois imagina que o organista com certeza deva
ter a chave da igreja em casa, e então os dois sobem o morro onde
fica a igreja de Bro, com a propriedade do preboste, a do sineiro e a
casa do organista ao redor.
– Desculpe-me, desculpe-me! – diz o pequeno Faber, quando ele
e o major entram na casa. – O lugar não está muito arrumado hoje.
Andamos tendo muito trabalho em casa, eu e minha irmã. Matamos
um galo.
– Mas que coisa! – exclama o major.
A pequena e bela srta. Faber chega logo a seguir com mumma
servida em grandes canecos de cerâmica. Todos sabem que o
major não via as mulheres com um olhar gentil, mas assim mesmo
observou a pequena srta. Faber com certo prazer quando a viu
chegar arrumada, com touca e renda. Os cabelos louros estavam
perfeitamente dispostos ao redor da testa, o vestido costurado à
mão era muito arrumado e estava impecavelmente limpo, as
mãozinhas eram ávidas e enérgicas, e o rostinho era tão rosado e
tão arredondado que ele não pôde deixar de pensar que, se tivesse
visto uma mulherzinha como aquela 25 anos atrás, certamente a
teria pedido em casamento.
Mas, por mais arrumada e rosada e hábil que fosse, os olhos
davam sinais de haverem chorado muito. É justamente esse detalhe
que incute no major pensamentos tão delicados em relação àquela
mulher.
Enquanto os homens comem e bebem, ela entra e sai da sala. A
certa altura ela se aproxima do irmão, faz uma mesura e diz:
– Como gostaria que guardássemos as vacas no depósito?
– Ponha doze à esquerda e onze à direita, para que não se deem
chifradas! – diz o pequeno Faber.
– Mas que coisa! O senhor tem mesmo tantas vacas? – exclama
o major.
O que acontecia na verdade era que o organista tinha apenas
duas vacas, às quais dera os nomes de Onze e Doze, para que
soasse grandioso ao falar sobre elas.
E assim o major fica sabendo que o estábulo de Faber estava
sendo reconstruído, de maneira que as vacas passavam o dia no
pasto e a noite no depósito de lenha.
A pequena srta. Faber continua a entrar e a sair do cômodo;
mais uma vez aproxima-se do irmão, faz uma mesura e diz que o
marceneiro perguntara qual devia ser a altura do estábulo.
– Meça pelas vacas – diz o organista Faber –, meça pelas vacas!
O major Fuchs achou que aquela era uma boa resposta.
De repente o major começa a perguntar ao organista por que os
olhos da irmã estão tão vermelhos, e assim descobre que a
senhorita chorava porque Faber não havia permitido que se casasse
com o pobre sineiro, um homem endividado e sem nenhuma
herança a receber.
A partir de então o major Fuchs entrega-se a pensamentos cada
vez mais profundos. Esvazia caneco atrás de caneco e devora
salsicha atrás de salsicha sem nem ao menos dar por si. O pequeno
Faber sente-se zonzo ao notar tamanho apetite e tamanha sede,
porém, quanto mais o major come e bebe, mais claros tornam-se os
seus pensamentos, mais sólida a disposição.
Tanto mais firme torna-se igualmente a vontade de ajudar a
pequena srta. Faber.
Entretanto, o major mantém o olhar fixo na grande chave de
palhetão intricado que está pendurada em um pino ao lado da porta,
e, assim que o pequeno Faber, que precisou fazer companhia ao
major no que dizia respeito aos canecos, põe a cabeça em cima da
mesa e começa a roncar, o major Fuchs pega a chave, veste a
touca na cabeça e vai embora.
Um minuto depois sobe as escadas do campanário, iluminadas
por seu pequeno lampião, e enfim chega ao local exato onde os
sinos abrem as enormes goelas acima de sua cabeça. Lá no alto, a
primeira coisa que o major faz é usar uma lima para raspar um
pouco do metal, e, quando está prestes a tirar o molde da bala e um
pequeno fogareiro da bolsa de caça, apercebe-se de que falta o
mais importante: não tem consigo nenhuma prata. Para que a bala
tenha força, é necessário fundi-la no campanário. Tudo está em
ordem: é uma noite de quinta-feira de lua nova, e ninguém tem a
menor ideia de que está lá, porém mesmo assim não há nada que
ele possa fazer! No silêncio da noite o major solta uma praga com
tanta força que os sinos chegam a cantar.
Logo a seguir ouve um ruído na parte de baixo da igreja e
imagina ouvir passos nas escadas. Sim, é isso mesmo, ouvem-se
passos vagarosos a subir os degraus.
O major Fuchs, que pragueja lá no alto a ponto de fazer os sinos
repicarem, torna-se um pouco mais pensativo ao perceber a
novidade. Não pode fazer nada além de perguntar-se quem estaria
chegando para ajudá-lo a fundir a bala. Os passos chegam cada vez
mais perto. O recém-chegado está subindo até o alto do
campanário.
O major esconde-se em meio às vigas e às traves e apaga o
lampião. Não está propriamente com medo, porém toda aquela
história seria arruinada se o descobrissem ali em cima. Assim que
termina de se esconder, o recém-chegado surge no campanário.
O major o conhece bem: é o avaro pastor de Broby. Ele, um
homem praticamente louco de cobiça, tem por hábito esconder seus
tesouros nos lugares mais improváveis. E naquele instante chega
com um maço de cédulas, que pretende ocultar no alto do
campanário. Não imagina que o observam. Ele ergue uma tábua do
chão, enfia lá o dinheiro e então vai embora.
Mas o major não demora a levantar a mesma tábua. Ah, quanto
dinheiro! São maços e maços de cédulas, e entre uma e outra há
estojos de couro cheios de moedas de prata. O major pega o tanto
de prata necessário para fundir uma bala e deixa de lado o restante.
Quando desce do campanário, tem a bala de prata na
espingarda. Começa a pensar no que a sorte ainda pode lhe
reservar para aquela noite. As noites de quinta-feira são estranhas,
como toda a gente sabe. Primeiro o major vai até a casa do
organista. Imagine agora se aquele urso canalha soubesse que as
vacas de Faber estão presas em um abrigo precário, quase ao
relento!
Bem, e não é que o major vê mesmo um vulto grande e preto
atravessar o gramado em direção ao depósito de lenha? Deve ser o
urso.
Ele encosta a coronha no rosto e está prestes a atirar, mas
subitamente se arrepende.
Os olhos chorosos da srta. Faber revelam-se para ele na
escuridão, ele pensa que deseja oferecer ajuda a ela e ao sineiro,
mas é claro que lhe custa um pouco não abater o grande urso do
monte Gurlita. Ele mesmo diria mais tarde que nada no mundo lhe
havia sido tão custoso, mas, posto que a pequena senhorita era um
exemplar tão belo e tão raro de mulher, teria de fazer alguma coisa
por ela.
O major vai até a casa do sineiro, acorda-o, leva-o ainda meio
vestido e meio despido para fora da casa e diz-lhe que deve atirar
no urso que ronda o depósito de lenha de Faber.
– Se abateres o urso, ele há de conceder-te a irmã – diz –, pois
assim te tornas um homem honrado de uma hora para a outra.
Aquele não é um urso qualquer, e os melhores homens da região
considerariam uma honra abatê-lo.
E ele põe nas mãos do sineiro sua própria espingarda, carregada
com a bala feita de prata e metal do sino, fundida no campanário em
uma noite de quinta-feira de lua nova, e não consegue evitar um
tremor de inveja, pois outro homem havia de matar o rei da floresta,
o grande urso do monte Gurlita.
O sineiro faz a pontaria – que Deus nos ajude! –, faz a pontaria
como se pretendesse abater a própria constelação de Ursa Maior,
também chamada de Grande Carro, que nas alturas celestes gira
em torno da estrela Polar, e não um urso que caminhava sobre o
chão, e um tiro ecoa e é ouvido por todo o monte Gurlita.
Mas, onde quer que tenha feito a pontaria, o urso cai. É assim
que acontece quando se atira com uma bala de prata. O urso é
atingido no coração, mesmo que se tenha feito a pontaria no Grande
Carro.
As pessoas acodem logo a seguir, vindas de todas as
propriedades ao redor e desejosas de saber o que tinha acontecido,
pois nunca um tiro havia soado com maior intensidade e nunca um
eco havia despertado tanta gente, e todos admiraram o sineiro, pois
o urso era um verdadeiro flagelo naquela terra.
O pequeno Faber também sai, mas nesse instante o major Fuchs
sofre um amargo revés. Lá está o sineiro, coberto de glórias, tendo
ademais salvado as vacas de Faber, mas nem assim o pequeno
organista mostra-se comovido ou agradecido. Não abre os braços
nem o cumprimenta como genro e herói.
O major franze o cenho e bate o pé no chão devido à raiva que
sente de tamanha maldade. Quer falar e explicar para aquele
sujeitinho avaro e mesquinho que aquilo é uma grande façanha,
porém logo começa a gaguejar e não consegue dizer sequer uma
palavra. E o major fica cada vez mais furioso ao pensar que havia
renunciado à honra de ter abatido o grande urso por nada.
Ah, é-lhe completamente impossível compreender que o homem
responsável por uma façanha daquelas não faça jus mesmo à noiva
mais orgulhosa!
O sineiro e outros rapazes haviam de esfolar o urso, todos vão à
pedra de amolar para afiar as facas, os outros voltam para casa e se
deitam, e o major Fuchs permanece sozinho junto ao urso morto.
Por fim volta à igreja, encaixa a chave na fechadura novamente,
sobe pela escada estreita e pelos degraus enviesados, acorda as
pombas adormecidas e mais uma vez chega ao campanário.
Mais tarde, enquanto o urso é esfolado sob o comando do major,
os homens encontram um pacote de cédulas com 500 riksdaler na
boca do urso. É impossível dizer como foi parar naquele lugar, mas
aquele era um urso estranho, e, como o sineiro foi o responsável por
abatê-lo, o dinheiro é dele, quanto a isso não há dúvida.
Quando esse fato torna-se conhecido, o pequeno Faber também
compreende a grandeza da façanha do sineiro e afirma que seria
uma honra tê-lo como cunhado.
Na noite de sexta-feira o major Anders Fuchs retorna a Ekeby
depois de participar de uma comemoração de caça na casa do
sineiro e da festa de noivado na casa do organista. Segue pelo
caminho de coração pesado: não sente nenhuma satisfação ao
saber que o inimigo sucumbiu, e não sente nenhuma alegria em
relação à bela pele de urso com que o sineiro o presenteou.
Ora, muitos acreditariam que está triste ao saber também que a
pequena e bela senhorita pertencerá a outro. Mas não, quanto a
isso o major não guarda nenhum arrependimento. O que lhe toca o
coração é saber que o velho e caolho rei da floresta foi vencido sem
que tenha sido ele a disparar a bala de prata.
Então o major retorna à ala dos cavalheiros, onde os homens
estão reunidos ao redor da lareira, e sem dizer uma palavra atira a
pele do urso ao chão, no meio de todos. Mas que ninguém pense
que tenha contado sua história! Não foi senão muito, muito tempo
depois que conseguiram arrancar-lhe a verdade sobre os
acontecimentos daquela noite. Tampouco denunciou o esconderijo
do pastor de Broby, e este talvez jamais tenha descoberto o roubo.
Os cavalheiros examinaram a pele.
– É uma pele e tanto – diz Beerencreutz. – Só posso imaginar
que esse rapaz tenha acordado da hibernação, ou por acaso o
mataste enquanto dormia?
– Ele foi abatido em Bro.
– Bem, não é grande como o urso de Gurlita – diz Gösta –, mas
é um animal impressionante.
– Se fosse caolho – diz Kevenhüller –, eu estaria disposto a
acreditar que tinhas matado o velho urso do monte Gurlita, pois é
tão grande quanto este, mas este não tem nenhum ferimento e
nenhum sinal de purulência no olho, então não pode ser.
Fuchs praguejou contra a própria estupidez, mas logo seu rosto
voltou a se acender a ponto de torná-lo realmente donairoso. Então
o grande urso não tinha sido abatido pelo tiro de outro homem!
– Meu Deus, como és bom! – ele diz, enlaçando as mãos.
COM FREQUÊNCIA NÓS, JOVENS, admiramo-nos com as histórias dos
mais velhos.
– Então havia baile todos os dias, por toda a sua radiante
juventude? – perguntávamos. – A vida era sempre uma longa
aventura?
– Todas as moças eram belas e amáveis naquela época, e todos
os banquetes terminavam com Gösta Berling raptando uma delas?
Nessas horas os mais velhos balançavam as honradas cabeças
e começavam a falar sobre o zumbido da roca e o rumor do tear,
sobre os utensílios de cozinha, sobre as batidas do mangual e o
caminho aberto pelo machado na floresta; mas não se detinham
nesses assuntos por muito tempo, e logo voltavam às histórias de
sempre. Os trenós chegavam à escada da entrada principal, os
cavalos galopavam pela floresta escura com aqueles jovens alegres,
todos rodopiavam na dança e as cordas do violino arrebentavam.
Com agitação e estrépito, a delirante caçada à aventura
desenrolava-se às margens do extenso lago Löven. O alarido era
ouvido de longe. A floresta cedia e as árvores caíam, todas as
forças da destruição estavam à solta: o incêndio chamejava, a
corredeira se despencava, os animais selvagens corriam famintos
nos arredores. Sob os cascos dos cavalos de oito patas, toda a
felicidade era despedaçada. Por onde a caçada passasse, o
coração dos homens ardia em desespero, e as mulheres tomadas
por um terror pálido eram forçadas a fugir de casa.
E nós, jovens, ficávamos arrebatados, em silêncio, perturbados,
mas assim mesmo alegres. “Que gente!”, pensávamos. “Nunca
havemos de ver coisa parecida.”
– As pessoas daquela época nunca pensavam no que faziam? –
perguntávamos.
– Claro que pensavam, crianças – respondiam os mais velhos.
– Mas não como nós pensamos – retrucávamos.
E os mais velhos não entendiam o que pretendíamos dizer.
Mas aquilo em que pensávamos era o estranho espírito da
vigilância de si, que já havia tomado conta de nós. Pensávamos
nesse espírito com olhos de gelo e longos dedos curvos, que se
esconde nos mais escuros recônditos da alma e desmancha nosso
ser, assim como as senhoras desmancham pedaços de seda e de
lã.
Aqueles dedos longos, duros e curvos haviam separado cada
pedacinho, até que nosso eu estivesse todo lá, como uma pilha de
trapos, e assim nossos sentimentos mais nobres, nossos
pensamentos mais originais, tudo aquilo que havíamos dito e feito
era examinado, esquadrinhado, desmanchado, os olhos de gelo
tinham observado tudo, e a boca sem dentes tinha aberto um sorriso
zombeteiro e sussurrado:
– Vê, são apenas trapos, nada além de trapos.
Mas devia haver uma pessoa daquela época que tivesse
oferecido a alma àquele espírito com olhos de gelo. E o espírito
ainda estaria lá, observando junto à fonte da ação, com um sorriso
zombeteiro diante do bem e do mal, compreendendo tudo, não
condenando nada, examinando, procurando, desmanchando,
paralisando os movimentos do coração e a força do pensamento
com um sorriso zombeteiro constante.
A bela Marianne trazia o espírito da vigilância de si no próprio
âmago. Ela sabia que aqueles olhos de gelo e aquele sorriso
zombeteiro acompanhavam-na a cada passo, a cada palavra. A vida
para ela havia se transformado em uma encenação da qual era a
única espectadora. Já não era uma pessoa, já não ria, não se
alegrava, não amava, simplesmente desempenhava o papel da bela
Marianne Sinclaire, e o espírito da autovigilância a acompanhava
com olhos vidrados de gelo e dedos hábeis e a via entrar em cena.
Sentia-se dividida em duas metades. Pálida, antipática e
zombeteira era uma das metades daquele eu, que via a maneira
como a outra metade agia, e aquele estranho espírito, que lhe
desmanchava o ser, jamais lhe oferecia uma palavra de consolo ou
de simpatia.
Mas onde teria estado aquele pálido guardião que observava
junto à fonte da ação na noite em que Marianne aprendeu a sentir a
plenitude da vida? Onde estava quando ela, a astuta Marianne,
beijou Gösta Berling diante de cem olhares, e quando se jogou
furiosa em cima de um monte de neve, disposta a morrer? Nessas
horas os olhos de gelo estavam cegos, nessas horas o sorriso
zombeteiro estava paralisado, pois a paixão havia lhe extravasado a
alma. O rumor da delirante caçada à aventura tinha ressoado em
seus ouvidos. Ela tinha sido uma pessoa completa durante aquela
noite terrível.
Ó deus do menosprezo de si, quando Marianne, com um esforço
infinito, conseguiu erguer os braços petrificados e agarrar-se ao
pescoço de Gösta, deves ter, como o velho Beerencreutz, afastado
o rosto da terra para fitar as estrelas.
Naquela noite não tiveste forças. Estavas morto enquanto ela
compunha hinos de amor, morto enquanto ela se apressava rumo a
Sjö em busca do major, morto quando ela viu as chamas iluminarem
o céu de vermelho acima das copas da floresta.
Vê, eles chegaram, os pássaros da tempestade chegaram, os
grifos da paixão arrasadora! Com asas de fogo e garras de aço,
mergulharam do céu em direção a ti, espírito com olhos de gelo, e
cravaram as garras no teu pescoço para jogar-te rumo ao
desconhecido. Morto estavas, e destruído foste.
Mas logo voaram para mais longe, esses pássaros orgulhosos e
enormes, cujo trajeto desconhece qualquer plano e jamais foi
seguido por nenhum observador; e, das profundezas do
desconhecido, o estranho espírito da vigilância de si ressurgiu e
mais uma vez instalou-se na alma da bela Marianne.
Durante todo o mês de fevereiro Marianne esteve doente em
Ekeby. Quando visitou o major em Sjö, tinha contraído varíola. Essa
terrível doença havia se abatido com toda a força sobre Marianne,
que se encontrava terrivelmente gripada e exausta. A morte havia
chegado perto, mas no fim do mês ela estava recuperada. Ainda se
sentia fraca e estava muito desfigurada. Nunca mais a chamariam
de bela Marianne.
No entanto, apenas Marianne e sua enfermeira tinham
conhecimento disso. Nem mesmo os cavalheiros sabiam. O quarto
de doente onde a varíola estabelecera seu reino não era acessível a
qualquer um.
Mas quando é que a autovigilância ganha mais força, senão
durante as longas horas de convalescença? Nessas horas, o
espírito senta-se e não para de nos fitar com aqueles olhos de gelo,
e não para de nos desmanchar com aqueles dedos nodosos e
duros. E, se olharmos bem, percebemos logo atrás uma criatura
ainda mais pálida, que nos encara, nos paralisa e abre um sorriso
zombeteiro, e depois outra e outra criatura, todas abrindo sorrisos
zombeteiros umas para as outras e para o mundo inteiro.
E, enquanto Marianne estava acamada e olhava-se com esses
insistentes olhos de gelo, todos os sentimentos originais morreram
em seu âmago.
Estava lá deitada, fingindo estar doente, estava lá deitada,
fingindo ser infeliz, fingindo estar apaixonada, fingindo ter sede de
vingança.
Tudo era verdade, e no entanto não passava de uma encenação.
Tudo havia se transformado em encenação e irrealidade na
presença daqueles olhos de gelo, que a observavam enquanto eram
observados por outros olhos mais atrás, que eram observados por
outros olhos mais atrás, em uma perspectiva infinita.
Todas as poderosas forças da vida estavam adormecidas.
Marianne tivera forças suficientes para alimentar um ódio abrasador
e um amor abnegado por uma única noite e nada mais.
Não sabia nem ao menos se amava Gösta Berling. Ansiava por
vê-lo, para descobrir se era capaz de tirá-la de si mesma.
Enquanto a varíola reinou, ela tinha apenas um pensamento
claro: tomar o maior cuidado para que a doença não se tornasse
conhecida. Não queria ver os pais e não queria reconciliar-se com o
pai, mesmo sabendo que ele se arrependeria ao descobrir a
gravidade da doença. E assim ordenou que os pais e todas as
demais pessoas soubessem que a aborrecida doença dos olhos,
que sempre a acometia quando visitava o vilarejo natal, obrigara-a a
permanecer em casa a cortinas fechadas. Proibiu a enfermeira de
falar sobre a gravidade da doença, proibiu os cavalheiros de chamar
o médico de Karlstad. Com certeza tratava-se de varíola, embora
fosse um caso leve; na farmácia de Ekeby havia remédios
suficientes para salvar-lhe a vida.
Marianne jamais pensava na morte; simplesmente se mantinha
deitada à espera do dia em que amanheceria curada e pudesse
enfim procurar o pastor na companhia de Gösta para cuidar dos
proclamas.
Chegou o dia em que a doença e a febre haviam-na deixado.
Enfim Marianne tinha o corpo frio e a cabeça no lugar. Sentia-se
bem, como se fosse a única pessoa com a cabeça no lugar em um
mundo de loucos. Não sentia ódio nem amor. Compreendia o pai;
compreendia-os todos. E quem compreende não odeia.
Tinha descoberto que Melchior Sinclaire pretendia fazer um leilão
em Björne para destruir todas as suas posses, com o propósito de
não lhe deixar herança nenhuma. Corria a notícia de que a intenção
era causar a maior destruição possível: primeiro venderia móveis e
utensílios de cozinha, depois animais e ferramentas e por fim a
propriedade, e depois todo o dinheiro seria enfiado num saco e
jogado nas profundezas do lago Löven. De herança restariam o
desperdício, a desordem e a destruição. Marianne abriu um sorriso
aquiescente ao receber a notícia: esse era o caráter daquele
homem, essa era sua forma de agir.
Parecia-lhe estranho ter composto aquele grande hino de amor.
Ela tinha sonhado com uma cabana, como tantas outras. Mas
naquele momento pareceu-lhe estranho haver sonhado em outras
épocas.
Marianne ansiava por estar em meio à natureza. Estava cansada
daquela encenação incessante. Nunca tinha um sentimento forte.
Mal lamentara a perda de sua beleza; mas estremecia ao pensar na
comiseração de estranhos.
Ah, esquecer-se por um único instante de si! Um gesto, uma
palavra, um ato que não fosse calculado!
Certo dia, já com a varíola expurgada do quarto e deitada em um
sofá, Marianne pediu que chamassem Gösta Berling. Disseram-lhe
que tinha viajado para o leilão em Björne.

Em Björne havia de fato um grande leilão. Era uma casa antiga e


abastada. As pessoas haviam percorrido longas distâncias para
estar presentes no leilão.
O grande Melchior Sinclaire jogara todas as posses da casa no
salão principal. Havia milhares de objetos reunidos em pilhas que
iam do chão ao teto.
Ele tinha percorrido a casa como um anjo da destruição no dia do
juízo final, arrastando consigo tudo o que pretendia vender. Os
utensílios de cozinha: as panelas pretas, as cadeiras de madeira, os
canecos de estanho, as bandejas de cobre, tudo isso podia ser
deixado em paz no que dizia respeito a ele, porque nesses objetos
não havia nada que o lembrasse de Marianne; mas foram os únicos
que lhe escaparam à fúria.
No quarto de Marianne ele entrou e pôs-se a devastar tudo. Lá
estavam o armário e a estante de livros, a pequena cadeira que
tinha encomendado ao marceneiro, as quinquilharias e as roupas, o
sofá e a cama; tudo precisava desaparecer.
E depois ele foi andando de cômodo em cômodo. Puxou para
junto de si tudo aquilo que julgava desagradável, e levou grandes
fardos à sala do leilão. Arfava sob o peso dos sofás e dos tampos
de mármore; mas assim mesmo aguentou. E jogou tudo em um
amontoado terrível. Tinha aberto os aparadores e retirado a prataria
da família. Para fora daqui! Marianne havia tocado aqueles objetos.
Melchior Sinclaire encheu seus braços com seda branca como a
neve e toalhas de linho com um palmo de bainhas trabalhadas à
mão, fruto de anos de esforços, e jogou tudo nas pilhas. Para fora
daqui! Marianne não merecia nada daquilo. Ele atravessou os
cômodos com pilhas de porcelana, pouco se importando com as
dúzias de pratos quebrados, e pegando todos os objetos de cobre
com o brasão da família gravado. Para fora daqui! Que outra pessoa
trate de usar isso tudo! Do sótão, jogou montanhas de roupas de
cama: edredons e travesseiros tão macios que se podia afundar
neles como se fossem as ondas do mar. Para fora daqui! Marianne
havia dormido naquelas roupas de cama.
Melchior Sinclaire lançava olhares raivosos em direção aos
antigos móveis familiares. Será que havia uma cadeira onde ela
nunca tivesse se sentado, ou um sofá que nunca tivesse usado, ou
um quadro para o qual nunca tivesse olhado, um castiçal que nunca
a tivesse iluminado, um espelho que nunca tivesse refletido suas
feições? Com uma expressão contristada, o grande Melchior
Sinclaire cerrou o punho em protesto contra aquele mundo de
lembranças. Com gosto teria investido contra tudo aquilo brandindo
um porrete nas mãos a fim de quebrar e despedaçar o quanto fosse
possível.
Mesmo assim, ocorreu-lhe que seria uma vingança ainda mais
fatal pôr tudo em leilão. Tudo haveria de parar nas mãos de
estranhos! Tudo haveria de acabar na sujeira das cabanas
habitadas pelos camponeses e perecer sob os cuidados daquelas
pessoas estranhas e indiferentes! Acaso não conhecia os móveis de
leilões nas cabanas dos camponeses, batidos nos cantos e caídos
em desonra como sua bela filha? Para fora daqui! Que acabassem
todos com o estofamento rasgado e a douradura gasta, com as
pernas quebradas e os tampos arranhados, saudosos da antiga
casa! Para fora! Para longe! Que olhar nenhum os encontrasse, que
mão nenhuma os reunisse!
Quando o leilão começou, ele havia enchido metade do salão
com uma mixórdia de utensílios empilhados.
Do outro lado havia um longo balcão. Atrás, os leiloeiros
cantavam os lances, onde estavam os escrivães que tomavam
notas e onde Melchior Sinclaire tinha um barril de aguardente a
postos. Na outra metade do salão, no vestíbulo e no jardim estavam
os compradores. Havia muita gente, muito barulho e muita alegria.
Os lances eram oferecidos um na sequência do outro, e o leilão
estava muito animado. Ao lado do barril de aguardente, com todas
as posses em uma mixórdia interminável atrás dele, estava Melchior
Sinclaire, meio ébrio e meio louco. Os cabelos erguiam-se em tufos
desgrenhados acima do rosto vermelho, e os olhos reviravam-se,
tristes e injetados. Ele gritava e gargalhava, como se estivesse de
excelente humor, e todos os que faziam um bom lance eram
chamados para tomar um trago.
Em meio às pessoas que lá o viram estava também Gösta
Berling, que havia se esgueirado em meio à multidão de
compradores, mas que evitava aparecer no campo de visão de
Melchior Sinclaire. Ficou pensativo diante daquela visão, e sentiu o
peito confranger-se com o pressentimento de uma catástrofe.
Queria muito saber onde a mãe de Marianne estaria em meio a
tudo aquilo. E então saiu, contrariado na vontade, mas impelido pelo
destino, à procura da sra. Gustava Sinclaire.
Foi necessário atravessar muitas portas até encontrá-la. O
grande patrão da fundição tinha paciência limitada e pouca
tolerância com reclamações e lamúrias femininas. Cansara-se de
ver lágrimas da esposa correrem por causa do destino que havia se
abatido sobre os tesouros da casa. Enfurecera-se com o pranto
motivado por toalhas de linho e roupas de cama, quando o que mais
importava, sua bela filha, estava perdido, e assim a enxotara, de
punhos crispados, por todo o andar, até a cozinha e até a despensa.
Por muito tempo ela não pôde sair, e ele havia se dado por
satisfeito ao vê-la lá, encolhida atrás dos degraus, à espera de um
golpe implacável, talvez da morte. Ele deixou-a lá dentro, mas
trancou a porta e guardou a chave no bolso. Haveria de permanecer
lá enquanto durasse o leilão. Decerto não passaria fome, e aquelas
lamúrias dariam uma trégua aos ouvidos dele.
E ela ainda estava lá, presa na própria despensa, quando Gösta
atravessou o corredor entre a cozinha e o salão. Ele viu o rosto de
Gustava em uma janelinha no alto da parede. Ela estava no alto da
escada, olhando para o lado de fora daquela prisão.
– O que a senhora está fazendo aí? – perguntou Gösta.
– Ele me trancou aqui – ela sussurrou.
– O patrão?
– É. Eu achei que ele acabaria por me matar. Mas ouve, Gösta;
pega a chave da porta do salão, entra na cozinha e usa-a para abrir
a porta da despensa; assim posso sair daqui! Aquela chave serve
aqui.
Gösta atendeu ao pedido, e dois ou três minutos depois aquela
pequena mulher estava na cozinha vazia.
– A senhora devia ter pedido a uma das criadas que abrisse a
porta com a chave do salão – disse Gösta.
– Achas mesmo que eu haveria de ensinar-lhes esse truque? Eu
nunca mais teria paz na despensa. E além do mais aproveitei para
organizar as prateleiras mais altas. Estava mais do que na hora.
Não sei como deixei tanta porcaria se acumular por aqui.
– A senhora tem muitos afazeres – disse Gösta, em tom
conciliatório.
– Podes ter certeza. Se eu não estiver por toda parte, nem o tear
nem a roca trabalham no ritmo necessário. E se…
Nesse ponto ela se deteve e enxugou uma lágrima no canto do
olho.
– Que Deus me ajude… como eu falo! – disse. – Logo já nem
devo ter mais nada do que cuidar. Afinal, ele está vendendo tudo o
que temos.
– É, é uma tristeza – disse Gösta.
– Sabes aquele grande espelho da antessala, Gösta? Era um
espelho único, porque o vidro era inteiriço, sem nenhuma emenda, e
não havia nenhuma imperfeição na douradura. Eu o ganhei da
minha mãe, e agora ele quer vendê-lo.
– Ele está louco.
– Está mesmo. A situação é grave. Ele não vai parar enquanto
não estivermos mendigando na beira da estrada, como a senhora
de Ekeby.
– Não vai chegar a esse ponto – respondeu Gösta.
– Vai, Gösta. Quando foi embora, a senhora de Ekeby previu
infortúnios que agora estão chegando. Ela não teria deixado que ele
vendesse Björne. Imagina que até mesmo as porcelanas dele, os
artigos de cobre da casa dele estão à venda! A senhora não teria
permitido uma coisa dessas.
– Mas o que houve com ele? – Gösta perguntou.
– Ah, é simplesmente porque Marianne não voltou para casa. Ele
andou de um lado para outro, esperando, esperando. Passou dias
inteiros andando de um lado para outro na aleia, esperando pela
filha. Parece estar se entregando à loucura; mas eu não posso dizer
mais nada.
– Marianne acha que ele está furioso com ela.
– Não acha, não. Ela o conhece bem o suficiente; mas é
orgulhosa e não quer dar o primeiro passo. Os dois são duros e
inflexíveis e não se incomodam com essa situação. E eu acabo no
meio disso tudo.
– A senhora por acaso sabe que Marianne há de se casar
comigo?
– Ah, Gösta, ela nunca vai fazer uma coisa dessas. Disse isso só
para irritar o pai. Marianne é mimada demais para se casar com um
homem pobre, e demasiado orgulhosa. Vai para casa e diz-lhe que,
se não voltar logo, há de perder toda a herança! Ele vai jogar tudo
fora em troca de nada.
Gösta sentiu-se furioso com essa resposta. Lá estava aquela
mulher, sentada à mesa da cozinha, sem pensar em nada além de
espelhos e porcelanas.
– A senhora devia se envergonhar! – ele exclamou. – A filha
desta casa foi jogada em um monte de neve, e agora os senhores
acham que é maldade dela não querer voltar. E acham que ela seria
baixa a ponto de abandonar o homem de quem gosta simplesmente
porque de outra forma há de perder a herança!
– Meu caro Gösta, não te enfureças também! Eu mal sei o que
estou dizendo. Tentei de tudo para abrir a porta para Marianne, mas
ele me agarrou e me arrastou para longe. Aqui em casa todos dizem
que eu não entendo nada. Não rejeitarei Marianne se a fizeres feliz,
Gösta. Mas não é fácil fazer uma mulher feliz, Gösta.
Gösta encarou-a. Como pudera erguer a voz contra uma pessoa
daquelas? Era uma mulher assustada e perseguida, mas com um
excelente coração.
– A senhora não perguntou como Marianne está – ele disse
vagarosamente.
Gustava Sinclaire pôs-se a chorar.
– Não hás de enfurecer-te se eu perguntar? – ela disse. – Passei
todo esse tempo querendo perguntar-te. Imagine, tudo o que sei a
respeito dela é que está viva! Durante todo esse tempo não recebi
sequer um cumprimento, nem mesmo quando lhe mandei roupas,
então pensei que tu e ela não queríeis dar nenhum tipo de notícia.
Gösta não aguentava mais. Sentia-se tomado por um desvario,
tomado por uma vertigem – às vezes Deus tinha de mandar lobos
atrás dele para obrigá-lo a obedecer –, mas as lágrimas daquela
senhora, as queixas daquela senhora eram mais difíceis de
aguentar do que os uivos dos lobos. Ele contou-lhe toda a verdade.
– Marianne passou todo esse tempo doente – disse. – Ela teve
varíola. Disseram que hoje havia de levantar-se para deitar no sofá.
Mas eu não a vejo desde a primeira noite.
A sra. Gustava pôs-se de pé com um sobressalto. Deixou Gösta
sozinho e, sem dizer mais uma palavra sequer, correu em busca do
marido.
As pessoas na sala do leilão viram-na se aproximar e sussurrar-
lhe qualquer coisa ao ouvido. Viram que o rosto de Melchior
Sinclaire tornou-se ainda mais vermelho, e que a mão, que
repousava sobre a torneira, de repente deu-lhe uma volta, e a
aguardente começou a se espalhar pelo chão.
Todos perceberam que a sra. Gustava trazia notícias importantes
a ponto de encerrar de imediato o leilão. O martelo dos leiloeiros
não mais bateu, as canetas dos escrivães detiveram-se, não se
ouviram mais lances.
Melchior Sinclaire emergiu de seus pensamentos.
– Muito bem – exclamou –, onde estávamos?
E o leilão recomeçou com toda a força.
Gösta ainda estava na cozinha, e a sra. Gustava voltou
chorando.
– Não adiantou – ela disse. – Eu pensei que ele desistiria ao
saber que Marianne tinha estado doente; mas ele continuou. Ele
quer parar, claro; mas agora tem vergonha.
Gösta deu de ombros e, sem dizer mais nada, despediu-se.
No vestíbulo, deparou-se com Sintram.
– Que evento tão divertido! – ele comentou, esfregando as mãos.
– Gösta, és realmente um mestre! Quem imaginaria o que serias
capaz de aprontar?
– Logo vai ficar ainda mais divertido – Gösta disse a meia-voz. –
O pastor de Broby está aqui com o trenó carregado de dinheiro.
Dizem que pretende comprar Björne, com tudo dentro, e pagar em
espécie. Nessa hora eu quero ver a cara do patrão, tio Sintram.
Sintram encolheu a cabeça entre os ombros e passou um bom
tempo rindo por dentro. Mas logo tratou de ir à sala do leilão e de
procurar Melchior Sinclaire.
– Se queres tomar um trago, Sintram, terás de primeiro fazer um
lance, raios!
Sintram aproximou-se ainda mais.
– Meu camarada, deste sorte como de costume – ele disse. –
Chegou aqui um homem que trouxe um trenó carregado de dinheiro.
Há de comprar Björne com todo o inventário, tanto exterior como
interior. Falou com muita gente, para que fizessem lances em nome
dele. Decerto não quer se expor tão cedo.
– Se o camarada me disser de quem se trata, posso muito bem
oferecer um trago por esse incômodo.
Sintram pegou a bebida e deu dois passos para trás antes de
responder:
– É o pastor de Broby, camarada Melchior.
Melchior Sinclaire tinha muitos amigos melhores que o pastor de
Broby. Os dois tinham uma desavença que durava anos. Corriam
histórias de que o grande patrão da fundição havia se posto de
tocaia em noites escuras, à beira da estrada por onde o pastor
trafegava, e que tinha dado belas surras naquele bajulador e algoz
dos camponeses.
Sintram deu dois passos para trás, mas não pôde evitar de todo
a fúria daquele grande homem. Levou um copo de aguardente no
meio da cara e todo o barril de aguardente nos pés. Mas logo houve
uma cena que por muito tempo lhe alegrou o coração.
– O pastor de Broby quer a minha propriedade? – o patrão
Sinclaire perguntou aos berros. – Vocês estão aqui oferecendo as
minhas coisas para o pastor de Broby? Ah, vocês deviam se
envergonhar! Deviam se comportar direito!
A seguir ele pegou um castiçal e um tinteiro e os jogou em
direção à multidão de pessoas.
Toda a amargura daquele pobre coração por fim se extravasava.
Berrando como um animal selvagem, Melchior Sinclaire brandiu o
punho para as pessoas mais próximas e jogou-lhes tudo que
pudesse ser arremessado. Copos de aguardente e garrafas
atravessaram o aposento voando. Estava fora de si naquela fúria.
– O leilão acabou! – ele disse, aos berros. – Fora daqui! Nunca
na minha vida o pastor de Broby vai arrematar Björne. Fora daqui!
Vou ensinar vocês todos a fazer lances em nome do pastor de
Broby!
E então atirou-se em cima dos leiloeiros e escrivães. Todos
fugiram. No meio daquela mixórdia, tropeçaram no balcão, e o
patrão da fundição investiu com fúria indescritível contra aquela
gente pacata.
Houve fugas e uma enorme confusão. Centenas de pessoas
espremiam-se em direção à porta, fugindo de um único homem. E
ele ficou lá parado, bradando:
– Fora daqui!
Soltou pragas às costas de todos, e de vez em quando desferia
golpes com uma cadeira, que brandia como um porrete.
Melchior Sinclaire perseguiu os visitantes até o vestíbulo, porém
não mais além. Quando o último forasteiro deixou a escada, voltou
para o salão e trancou a porta. Então juntou um colchão e dois
travesseiros, deitou-se, adormeceu no meio de toda aquela
destruição e despertou apenas no dia seguinte.
Quando Gösta chegou à casa, foi informado de que Marianne
gostaria de falar-lhe. Foi uma boa notícia. Estava justamente
pensando em como fazer para falar com ela.
Quando entrou no quarto escuro onde Marianne estava, precisou
deter-se por um instante junto à porta. Não via onde ela estava.
– Gösta, fique aí mesmo! – Marianne lhe disse. – Pode ser
arriscado chegar mais perto.
Mas Gösta havia chegado, subindo os degraus de dois em dois,
tremendo de entusiasmo e anseio. Que importância tinha uma
doença contagiosa? Queria desfrutar da alegria de vê-la!
Pois sua amada era bela. Ninguém tinha cabelos tão macios, um
rosto tão claro e brilhante. Todo aquele rosto era um espetáculo de
linhas harmoniosamente desenhadas.
Gösta pensou nas sobrancelhas, bem definidas e claramente
traçadas, como as pétalas de um lírio, e na atrevida curva do nariz,
e nos lábios, levemente desenhados como ondas, e na oval
alongada das maçãs do rosto e no soberbo contorno do queixo.
E pensou na cor rosada daquela tez, na impressão mágica
deixada pelas sobrancelhas negras como a noite sob os cabelos
claros, e nas pupilas azuis, que cintilavam em meio ao branco puro,
e no brilho úmido no canto do olho.
Era maravilhosa, sua amada. Ele pensou no coração ardente que
se escondia sob aquela superfície orgulhosa. Marianne tinha forças
para entregar-se e para sacrificar-se, escondidas sob a aparência
bela e as palavras orgulhosas. Vê-la era uma bem-aventurança.
Gösta subira a escada em dois saltos, enquanto Marianne
acreditara que podia deter-lhe o passo no umbral da porta. Ele
adentrou o quarto e prostrou-se de joelhos junto à cabeceira da
cama.
Mas a intenção era vê-la, beijá-la e dizer-lhe adeus.
Ele a amava. Jamais deixaria de amá-la; mas tinha um coração
habituado a sofrer.
Ah, onde haveria de encontrá-la, aquela rosa sem apoios e sem
raízes, que ele poderia colher e chamar de sua? Nem mesmo
Marianne, que encontrara jogada e moribunda na beira da estrada,
haveria de manter consigo.
Quando haveria de entoar uma canção de amor tão elevada e
tão pura que não fizesse soar nenhuma nota dissonante? Quando
haveria de erguer o castelo da felicidade sobre fundações que
nenhum outro coração desejasse com angústia e anseio?
Pensou em como dizer-lhe adeus.
“Há uma grande comoção na tua casa”, estava prestes a dizer.
“Meu coração se despedaça ao pensar nisso. Precisas voltar e
devolver o juízo ao teu pai. Tua mãe vive sob uma ameaça
constante. Precisas tornar a casa, minha amada.”
Veja, Gösta tinha essas palavras de abnegação nos lábios, mas
não as proferiu.
Prostrou-se de joelhos junto à guarda da cama da amada,
pegou-lhe a cabeça entre as mãos e a beijou; logo não encontrou
mais as palavras. O coração pôs-se a bater com tanto ímpeto que
parecia disposto a explodir-lhe o peito.
A varíola havia deixado rastros naquele belo rosto. A tez estava
áspera e coberta de cicatrizes. Nunca mais o sangue rubro cintilaria
naquelas faces, nem as delicadas veias azuis revelar-se-iam nas
frontes. Os olhos estavam baços sob pálpebras inchadas. As
sobrancelhas haviam caído, e o brilho esmaltado das escleras
tornara-se amarelado.
Tudo estava destruído. Os traços atrevidos estavam reduzidos a
linhas pesadas e grosseiras.
Não foram poucos os que mais tarde se enlutaram pela beleza
arruinada de Marianne Sinclaire. Por toda a província de Värmland
as pessoas lamentavam a perda daquela tez clara, daqueles olhos
penetrantes e daquelas madeixas loiras. Naquele lugar a beleza é
valorizada como em nenhum outro. Aquele povo alegre se enlutou
como se o país houvesse perdido uma joia preciosa da coroa de sua
honra, como se a própria existência de repente tivesse uma mácula
no fulgor até então perfeito.
Mas o primeiro homem a vê-la depois que havia perdido a beleza
não se entregou à tristeza.
Sentimentos inefáveis preencheram-lhe a alma. Quanto mais a
olhava, mais se enternecia por dentro. O amor cresceu e cresceu,
como uma enchente de primavera. Ondas de fogo saíram-lhe do
coração, preencheram-lhe todo o ser, aquilo tudo subiu-lhe aos
olhos como lágrimas, como suspiros nos lábios, como tremores nas
mãos, por todo o corpo.
Ah, amá-la, protegê-la, oferecer-lhe consolo, consolo!
Ser seu escravo, seu espírito protetor!
Forte é o amor batizado em fogo pelo sofrimento. Gösta não
poderia falar com Marianne acerca de separação e sacrifício. Não
poderia deixá-la. Devia-lhe a própria vida. Seria capaz de cometer
pecados mortais em nome da amada.
Ele não disse uma única palavra dotada de juízo, apenas chorou
e beijou, até que a velha enfermeira achasse que era hora de tirá-lo
do recinto.
Depois que Gösta partiu, Marianne ficou deitada, pensando nele
e naquele movimento. “Como é bom ser amada”, pensou.
Claro, era bom ser amada, mas e quanto a si? O que sentia? Ah,
nada, ainda menos do que nada.
Será que seu amor estaria morto, ou será que havia se esvaído?
Onde estaria oculto o fruto de seu coração?
Será que ainda estava vivo, oculto nos recônditos mais escuros
do coração, enregelando-se sob o olhar fixo daqueles olhos de gelo,
assustado com aquelas risadas pálidas e escarninhas, sufocado por
aqueles dedos nodosos?
“Ah, meu amor!”, ela suspirou, “fruto do meu coração! Vives
ainda ou encontras-te morto, morto como a minha beleza?”

*
No dia seguinte o grande patrão da fundição foi ver sua esposa
logo cedo.
– Trate de pôr ordem na casa, Gustava! – ele disse. – Eu vou
sair e trazer Marianne de volta.
– Claro, meu querido Melchior, logo a ordem há de estar de volta
a esse lugar – ela respondeu.
E assim tudo ficou acertado entre os dois.
Uma hora mais tarde o grande patrão da fundição encontrava-se
a caminho de Ekeby.
Não seria possível encontrar senhor mais nobre e mais
benevolente do que o patrão quando se sentou no trenó de capota
trajando o melhor casaco de pele e o melhor cinturão de viagem.
Naquele momento tinha os cabelos bem penteados e o rosto pálido,
e os olhos pareciam ter afundado nas órbitas.
E não parecia haver fim para o esplendor que se derramava
daquele céu claro sobre o dia de fevereiro. A neve cintilava como os
olhos da menina que ouve sua primeira valsa. As bétulas estendiam
o suave emaranhado de galhos finos e escuros em direção ao
firmamento, e em certas árvores era possível ver um remate de
pequenas agulhas de gelo reluzente.
Um brilho e uma aura festiva pairavam sobre o dia. Os cavalos
erguiam as patas dianteiras como que numa dança, e o cocheiro
sentiu-se levado a estalar o chicote por simples alegria.
Após uma breve viagem, o trenó do grande patrão da fundição
encontrava-se defronte à grande escada que levava à entrada de
Ekeby.
O criado saiu.
– Onde estão os responsáveis pela casa? – perguntou o patrão.
– Saíram para caçar o grande urso do monte Gurlita.
– Todos juntos?
– Todos juntos, patrão. Os que não vão pelo urso vão pela
marmita.
O patrão riu com tanta vontade que o riso ecoou pelo jardim
silencioso. Ele deu uma moeda ao criado por causa daquela
resposta.
– Diz para a minha filha que vim buscá-la! Não vai ser necessário
passar mais frio. Eu trouxe um trenó de capota e uma pele de lobo
para cobri-la.
– O senhor não gostaria de entrar?
– Não, obrigado! Estou bem aqui.
O rapaz desapareceu e a espera do patrão começou.
Naquele dia estava com um humor tão bom que nada seria
capaz de aborrecê-lo. Tinha pensado que esperaria um pouco por
Marianne, que talvez nem sequer tivesse se levantado. Até lá,
trataria de distrair-se olhando ao redor.
Junto ao beiral do telhado havia um longo sincelo que dava
grande trabalho aos raios do sol. Começava na parte de cima; os
raios faziam com que uma gota se desprendesse e pretendiam que
caísse à terra após deslizar ao longo do gelo. Mas, antes mesmo de
chegar à metade do caminho, a gota tornava a congelar. E os raios
do sol faziam constantemente novas tentativas e constantemente
fracassavam. Mas enfim houve um raio que se fixou na ponta do
sincelo, um pequeno raio, que brilhava e coruscava de entusiasmo,
e que logrou atingir o objetivo: de repente uma gota tilintante caiu ao
chão.
O patrão viu tudo aquilo e riu:
– Afinal, não és tão bobo – disse para o raio de sol.
O jardim estava silencioso e deserto. Não se ouvia nenhum som
naquela grande casa. Mas o patrão não se impacientou. Sabia que
as mulheres levam muito tempo para se aprontarem.
Permaneceu sentado, olhando para o pombal. As aves tinham
uma tela a fechar a saída. Ficavam presas durante o inverno, para
que as águias não as exterminassem. De vez em quando uma
pomba enfiava a cabeça branca por entre os fios da trama.
– Está à espera da primavera – disse Melchior Sinclaire. – Mas
por enquanto há de ter paciência.
A pomba aparecia a intervalos tão regulares que o patrão sacou
o relógio do bolso e prestou atenção com o relógio na mão.
Precisamente a cada três minutos a pomba enfiava a cabeça para
fora.
– Não, minha amiguinha – ele disse –, achas que a primavera se
apronta em três minutos? Tens de aprender a esperar.
E ele mesmo teve de esperar; mas tinha bastante tempo.
Os cavalos puseram-se a cavoucar impacientemente a neve,
mas logo foram tomados pela sonolência de tanto piscar sob aquele
sol. Juntaram as cabeças e adormeceram.
O cocheiro estava sentado na boleia com as costas
empertigadas e as rédeas na mão e, com o rosto apontado
diretamente para o sol, dormia – dormia a ponto de roncar.
Mas o patrão da fundição não dormiu. Nunca tinha pensado
menos em dormir do que naquele instante. E poucas vezes tivera
momentos tão prazerosos como durante aquela jovial espera.
Marianne tinha estado doente. Não pudera voltar para casa antes,
mas naquele momento já seria possível. Ah, e claro que haveria de
querer! Então tudo estaria bem novamente.
Naquele momento ela poderia compreender que ele não estava
zangado. Afinal, tinha vindo pessoalmente, com dois cavalos e um
trenó de capota.
Na abertura em frente à colmeia, um chapim-real punha em
prática um plano deveras satânico. Estava à procura do jantar, claro,
e de repente acertou o alvado com a ponta do bico. Mas, dentro da
colmeia as abelhas formavam uma grande nuvem escura. Tudo
funciona de acordo com a mais absoluta ordem, as estalajadeiras
distribuem porções de alimento, as auxiliares correm de boca em
boca levando néctar e ambrosia. E as que se encontram mais no
fundo trocam constantemente de lugar com as que ficam mais à
frente, para que o calor e o conforto sejam distribuídos por igual.
E então se ouve a bicada do chapim-real, e toda a colmeia
transforma-se em um zumbido de curiosidade. Será um amigo ou
um inimigo? Será uma ameaça à colônia? A rainha tem a
consciência pesada. Não pode esperar na paz e na tranquilidade.
Seriam os fantasmas do zangão assassinado a assombrar do lado
de fora?
– Saia para ver o que se passa! – ordena a rainha à irmã
sentinela. E a sentinela põe-se a caminho. Com um “Viva a rainha!”,
precipita-se colmeia afora, e, ah!, de repente o chapim-real está em
cima dela. Com o pescoço esticado e asas trêmulas de expectativa,
prende-a com o bico e a devora, e não há ninguém que possa
comunicar à regente o que aconteceu. E logo o chapim-real volta a
bater, e a abelha-rainha continua a mandar sentinelas, e todas
desaparecem. Nenhuma volta para dar notícias a respeito de quem
estaria batendo. Ai, como é terrível no interior da colmeia escura!
Espíritos sedentos de vingança estão em festa no lado de fora.
Sorte de quem não dá ouvidos! Sorte de quem põe de lado a
curiosidade! Sorte de quem sabe esperar quieto!
O grande Melchior Sinclaire riu tanto que seus olhos se
encheram de lágrimas por causa das mulheres estúpidas na colmeia
e do astuto canalha amarelo no lado de fora.
Esperar não é nenhuma arte quando estamos certos do
resultado e quando existem muitas coisas com as quais ocupar os
pensamentos.
Lá vem o grande cão da propriedade. Ele surge devagar, fixa os
olhos no chão e balança de leve o rabo, como se estivesse às voltas
com um afazer de todo indiferente. Mas de repente o cão põe-se a
cavoucar a neve. Com certeza o velho patife escondera bens a que
não fazia jus naquele lugar.
Mas, assim que ergue a cabeça para ver se poderia devorar tudo
aquilo despreocupadamente, surpreende-se ao ver duas pegas-
rabudas à frente.
– Receptador! – dizem as duas, como se fossem a própria voz da
consciência. – Estamos a serviço da polícia. Entregue-nos o objeto
da receptação!
– Ora, fiquem quietas, suas pilantras! Sou eu o capataz desta
propriedade.
– O próprio! – debocham as duas.
O cachorro investe contra as aves, que fogem batendo
pesadamente as asas. O cachorro corre atrás, pulando e latindo.
Mas, enquanto persegue uma, a outra já está de volta. Ela pousa no
interior do buraco e puxa o pedaço de carne, mas não consegue
erguê-lo. O cachorro puxa a carne de volta para si, segurando-a
com as patas e os dentes. As pegas-rabudas param em frente a ele
e começam a proferir impropérios. O cachorro encara-as com um
olhar amargo enquanto come, e, quando a situação torna-se
demasiado abusiva, corre para espantá-las.
O sol começou a baixar sobre as montanhas no ocidente. O
grande patrão da fundição olhou para o relógio. Eram três horas. E a
mãe, que havia preparado o almoço para o meio-dia!
No mesmo instante o criado saiu e avisou que a srta. Marianne
gostaria de falar-lhe.
O patrão jogou a pele de lobo sobre o braço e subiu a escada
com um humor radiante.
Quando ouviu aqueles passos ponderosos nas escadas,
Marianne ainda não sabia se haveria ou não de acompanhá-lo.
Sabia apenas que tinha de pôr um fim àquela longa espera.
Tinha esperança de que os cavalheiros tornassem a casa; mas
não tornaram. Assim ela mesma teria de fazer com que tudo
acabasse. Já não aguentava.
Tinha imaginado que o pai, enfurecido, haveria de ir-se embora
após uma espera de cinco minutos, ou então que derrubaria a porta
ou tentaria atear fogo na casa.
Mas lá estava ele, tranquilo e sorridente, à espera. Marianne não
sentia ódio nem amor por ele. Mas trazia em si uma voz interna que
por assim dizer a aconselhava a não se entregar mais uma vez
àquele poder. E, além do mais, tinha a intenção de manter a
promessa feita a Gösta.
Se o pai houvesse adormecido, se houvesse falado, se houvesse
perdido a paciência, se houvesse dado sinais de dúvida, se
houvesse pedido que o trenó fosse posto à sombra! Mas não: era o
próprio retrato da paciência e da sabedoria.
Seguro, contagiosamente seguro, de que a filha viria, bastando
para tanto que a esperasse.
Marianne sentia a cabeça doer. Tinha os nervos à flor da pele.
Não poderia ter paz enquanto soubesse que o pai estava lá, à
espera. Era como se a vontade dele a arrastasse, toda amarrada,
escada abaixo.
Teria ao menos de falar-lhe.
Antes de ele chegar, Marianne pedira que abrissem as cortinas, e
deitou-se deixando seu rosto ficar inteiramente iluminado pela luz do
sol.
Certamente tinha o intuito de pô-lo à prova, porém Melchior
Sinclaire mostrava-se um homem admirável naquele dia.
Quando a viu, não fez nenhum gesto, não soltou exclamação
nenhuma. Era como se não tivesse percebido nenhuma mudança
na filha. Marianne sabia o quanto o pai celebrava sua beleza. Mas
ele não a deixou perceber nenhuma nota de tristeza. Conteve-se por
inteiro a fim de não entristecer a filha. Aquilo a comoveu. Marianne
começou a compreender por que a mãe o amava.
Ele não dava nenhuma mostra de hesitação. Havia chegado sem
reprimendas e sem desculpas.
– Quero enrolar-te nesta pele de lobo, Marianne. Não está fria.
Veio o tempo inteiro no meu colo.
De qualquer maneira, ele se aproximou da lareira para esquentar
a pele.
Depois ajudou-a a se levantar do sofá, enrolou-a na pele, ajeitou-
lhe um xale na cabeça, puxou-o por baixo dos braços dela,
amarrando-o nas costas da filha.
Marianne permitiu que tudo aquilo acontecesse. Não tinha
vontade nenhuma. Era bom sentir-se protegida, era delicioso não ter
de sentir vontades. Bom em especial para uma pessoa decomposta,
como ela, para uma pessoa que não tinha sequer um pensamento
ou sentimento próprios.
O grande patrão da fundição a ergueu, levou-a até o trenó,
armou a capota, ajustou a pele ao redor da filha e foi embora de
Ekeby.
Marianne fechou os olhos e suspirou, meio pelo conforto, meio
pela saudade. Estava abandonando a vida, a vida de verdade, mas
talvez não fizesse diferença, uma vez que não sabia viver, mas
apenas representar.

Poucos dias mais tarde a mãe arranjou um encontro entre a filha


e Gösta. Mandou chamá-lo enquanto o patrão da fundição fazia um
de seus longos passeios até os transportadores de lenha e o levou
até Marianne.
Gösta entrou, mas não fez nenhum cumprimento e não falou.
Permaneceu de pé junto à porta, olhando para o chão como um
menino contrariado.
– Gösta! – exclamou Marianne. Estava sentada na poltrona,
observando-o com um olhar meio alegre.
– É, esse é o meu nome.
– Vem cá, chega mais perto de mim, Gösta!
Ele se aproximou devagar, mas não ergueu os olhos.
– Chega mais perto! Ajoelha-te aqui!
– Meu Deus, de que pode adiantar isso tudo? – ele exclamou,
mas assim mesmo obedeceu.
– Gösta, quero dizer-te que pareceu-me ser o melhor voltar para
casa.
– É melhor torcer para que não tornem a jogar a srta. Marianne
em um monte de neve.
– Ah, Gösta, já não gostas de mim? Achas que estou demasiado
feia?
Gösta baixou o rosto de Marianne e a beijou, mas parecia
indiferente.
Marianne estava mesmo alegre. Se Gösta tinha ciúmes de seus
pais, de que importava? Aquilo havia de passar. Logo ela se alegrou
tentando reconquistá-lo. Mal sabia por que ainda o queria, mas o
fato era que o queria. Pensava que, apesar de tudo, pelo menos
uma vez ele a libertara de si mesma. E seria o único capaz de fazer
o mesmo outra vez.
Então Marianne começou a falar, ávida por reconquistá-lo. Disse
que não tinha a intenção de abandoná-lo para sempre, mas que por
um tempo seria necessário cortar relações para manter as
aparências. Ele mesmo vira que o pai dela estivera às raias da
loucura, e que a mãe vivia sob constantes ameaças à vida. Teria de
compreender que ela fora obrigada a voltar para casa.
Nessa hora a fúria de Gösta explodiu em palavras. Não era
preciso fingir. Ele não queria mais ser tratado como um joguete. Ela
o abandonara logo ao chegar a casa, e portanto seria impossível
continuar a amá-la. Quando dois dias antes havia retornado da
caçada e descoberto que ela havia partido sem deixar um
cumprimento, uma palavra, sentira o sangue parar nas veias;
estivera a ponto de morrer de tristeza. Não havia como amar a
mulher responsável por tamanha dor. Além do mais, ela nunca o
amara. Era apenas uma coquete, que queria alguém que a beijasse
e a acariciasse no conforto do lar, nada mais.
Por acaso ele achava mesmo que ela tinha por hábito deixar que
rapazes a acariciassem?
Ah, sim, era precisamente o que achava. As mulheres não eram
tão santas quanto tentavam parecer. Egoísmo e coqueteria do início
ao fim! Não… se ao menos ela soubesse como ele se sentira ao
voltar da caçada! Foi como passar a vau por um rio de águas
geladas. Jamais poderia vencer aquela dor. Haveria de segui-lo
durante o resto da vida. Ele jamais voltaria a ser uma pessoa
completa.
Marianne tentou explicar o que havia se passado. Tentou lembrá-
lo de que lhe fora o tempo inteiro fiel.
Bem, isso não importava mais, porque ele já não a amava. Enfim
a tinha visto de verdade. E ela revelara-se egoísta. Não o amava.
Ela tinha partido sem deixar sequer um cumprimento.
Gösta voltava incessantemente a esse detalhe. Marianne estava
quase admirada com a encenação. E não poderia zangar-se.
Compreendia muito bem aquela raiva. Mesmo assim, não temia um
rompimento definitivo. Mas por fim ela começou a preocupar-se.
Teria mesmo ocorrido uma transformação profunda em Gösta, a
ponto de fazer com que não mais gostasse dela?
– Gösta! – disse Marianne. – Acaso fui egoísta ao procurar o
major em Sjö? Lembro-me bem de que as pessoas tinham varíola
por lá. Tampouco faz bem andar com sapatos de sola fina no frio e
na neve.
– O amor vive de amor, não de favores e boas ações – Gösta
respondeu.
– Então queres que sejamos estranhos de agora em diante,
Gösta?
– Quero.
– Gösta Berling é muito volúvel.
– Estou habituado a ouvir esse tipo de acusação.
Ele mostrava-se frio, impossível de aquecer, e a bem dizer ela
estava ainda mais fria. A vigilância de si permanecia lá, zombando
daquelas tentativas de parecer-se com uma mulher apaixonada.
– Gösta! – ela exclamou, fazendo mais um esforço. – Eu nunca
fui injusta contigo por minha vontade, mesmo que possa ter
parecido. Então suplico: perdoa-me!
– Não posso perdoar-te.
Marianne sabia que, se o sentimento fosse verdadeiro, havia de
reconquistá-lo. E tentava agir de forma passional. Os olhos de gelo
zombavam dela, mas assim mesmo ela tentou. Não queria perdê-lo.
– Gösta, não vás! Não vás assim, enfurecido! Pensa em como
estou feia! Já ninguém mais pode amar-me.
– Eu tampouco – ele respondeu. – Terás de acostumar-te a ter o
coração espezinhado, como outros se acostumam.
– Gösta, eu jamais poderia amar outro além de ti. Perdoa-me!
Não me abandones! És o único capaz de salvar-me de mim mesma.
Gösta empurrou-a para longe.
– Não estás dizendo a verdade – ele retrucou, com uma calma
enregelante. – Não sei o que queres de mim, porém vejo que
mentes. Por que me queres ao teu lado? És tão rica que não te
faltarão pretendentes.
E com essas palavras ele se foi.
E, mal fechou a porta, o sofrimento e a saudade em toda a sua
majestade fizeram sua entrada triunfal no coração de Marianne.
Fora o amor, o próprio fruto de seu coração, que enfim deixara o
recôndito para onde os olhos de gelo haviam-no acuado. Enfim
apareceu esse sentimento aguardado com tanta expectativa, porém
era tarde demais. Ele apareceu, sério e onipotente, enquanto o
sofrimento e a saudade carregavam-lhe o manto real.
Quando pôde dizer a si mesma com relativa certeza que Gösta
Berling a abandonara, Marianne sentiu um sofrimento puramente
físico, tão intenso que chegava quase a tirá-la de si. Apertou as
mãos contra o peito e passou horas a fio no mesmo lugar, lutando
contra uma tristeza sem lágrimas.
E era ela mesma quem sofria, não outra pessoa, não uma atriz.
Era ela mesma.
Por que o pai dela os havia separado? Seu amor não havia
morrido. Foi somente durante o período de fraqueza posterior à
doença que não pôde sentir aquela força.
Ah, Deus, ah, Deus, e pensar que o havia perdido! Ah, Deus, por
que havia despertado tão tarde?
Ah, ele era o único, era o conquistador de seu coração! Vindo
dele, ela aguentaria qualquer coisa. A aspereza e as palavras duras
transformavam-se em humilde amor. Se ele lhe houvesse batido, ela
teria se aproximado com a timidez de um cachorro para lamber-lhe
a mão.
Marianne pegou papel e caneta e escreveu com um ímpeto
terrível. Primeiro escreveu sobre amor e saudade. Depois implorou,
se não pelo amor, ao menos pela misericórdia. Expressou-se como
que em versos.
Não sabia o que fazer para mitigar aquela dor.
Quando terminou, pensou que, se ele tivesse a chance de ver
aquilo, de fato acreditaria que ela o amava. Ora, e por que não
mandar o escrito para ele? No dia seguinte ela o mandaria, na
esperança de que pudesse trazê-lo de volta para si.
No dia seguinte, Marianne saiu de casa angustiada, lutando
contra si própria. O que havia escrito parecia lamentável e estúpido.
Não havia rima nem metro. Era apenas prosa. Ele haveria de rir
daqueles versos.
O orgulho dela também despertara. Se ele não a amasse mais,
seria uma humilhação terrível implorar por aquele amor.
Por vezes a sabedoria a instava a se alegrar por ter partido os
laços que mantinha com Gösta e com todas as situações
lamentáveis que traria consigo.
Mas os tormentos do coração eram tão intensos que por fim os
sentimentos venceram. Três dias após ter tomado consciência do
amor que sentia, Marianne pôs os versos em um envelope com o
nome de Gösta Berling. Apesar disso, o envelope não foi enviado.
Antes que pudesse encontrar um mensageiro adequado, chegaram
notícias a respeito de Gösta Berling que a levaram a perceber que já
era tarde demais para reconquistá-lo.
Mas a tristeza de sua vida foi não ter mandado os versos a
tempo, enquanto ainda podia reconquistá-lo.
Todo o sofrimento concentrava-se neste ponto: “Se eu não
tivesse demorado tanto, se eu não tivesse demorado tantos dias!”.
A felicidade de sua vida, ou pelo menos a realidade de sua vida,
poderia ter sido obtida graças àqueles versos, graças àquelas
palavras escritas. Ela tinha certeza de que o haveriam trazido de
volta.
Mas apesar de tudo a tristeza haveria de prestar-lhe o mesmo
serviço que o amor. Transformou-a numa pessoa completa, capaz
de entregar-se tanto ao bem quanto ao mal. Sentimentos
fervilhantes correram-lhe livres pela alma, sem nenhum obstáculo
imposto pelo frio gélido da vigilância de si. E assim mesmo, apesar
da feiura, foi também muito amada.
Mas dizem que jamais se esqueceu de Gösta Berling. Marianne
lamentou essa perda como se lamenta uma vida inteira
desperdiçada.
E os pobres versos, que a certa altura foram muito lidos, agora
se encontram há muito esquecidos. Mesmo assim, revelam-se
particularmente tocantes, da maneira como os vejo, escritos em
papel amarelado, com tinta desbotada e uma caligrafia de letras
densas e elegantes. O anseio de uma vida inteira se encontra ligado
a essas palavras infelizes, e transcrevo-as com certo tremor místico,
como se fossem imbuídas de poderes ocultos.
Peço que as leia e reflita sobre o que dizem. Quem sabe que
força poderiam ter, caso tivessem sido enviadas? Mesmo assim,
encontram-se suficientemente repletas de paixão para dar
testemunho de um sentimento verdadeiro. Talvez pudessem tê-lo
trazido de volta.
São persuasivas e ternas, mesmo na ausência de forma.
Ninguém poderia desejá-las de outra forma. Ninguém poderia
querer vê-las presas com as correntes da rima e do verso, e, no
entanto, é deveras melancólico pensar que talvez justamente essa
incompletude a tenha impedido de enviá-las a tempo.
Peço que as leia e as ame. Quem as escreveu foi uma pessoa
deveras sofrida.

Amaste, menina, porém não mais


hás de provar a alegria do amor.
A fúria da paixão estremeceu-te a alma.
Alegra-te, pois enfim descansas!
Já não serás alçada aos píncaros do êxtase.
Alegra-te, pois enfim descansas!
Já não serás jogada no abismo do sofrimento,
ah, nunca mais!

Amaste, menina, porém não mais


tua alma há de estar em chamas.
Foste como um tufo de grama seca,
que arde por um breve instante.
Ao ver nuvens de fumaça e pedaços de carvão,
as aves do céu fugiram em revoada.
Que voltem para casa! Já não queimas,
não podes queimar.

Amaste, menina, porém não mais


hás de ouvir a voz do amor.
As forças do peito, como alunos exaustos,
sentados nos duros bancos da escola,
anseiam por jogos e liberdade,
mas já ninguém as chama.
Lá permanecem como sentinelas esquecidas:
já ninguém as chama.

Menina, teu bem-amado se foi,


e com ele o amor e suas alegrias.
Ele, a quem tanto amavas, como se te houvesse ensinado
a voar com asas no vazio do espaço.
Ele, a quem tanto amavas, como se te houvesse oferecido
o único abrigo na cidade inundada,
ele se foi, ele, que sozinho pôde
abrir a porta do teu coração.

Quero pedir-te uma única coisa, a ti, meu amado:


Jamais largues sobre mim o fardo do ódio!
O mais fraco dos fracos não será o coração?
Como viver com o doloroso pensamento
de ser um tormento para outrem?

Ah, meu amado, se quiseres matar-me,


não arranjes punhal, não compres veneno ou corda!
Diz apenas que me queres ver sumir
dos prados verdes da terra, deste reino de vida.
E assim descerei à minha cova.

Deste-me a vida de todas as vidas. Deste-me o amor.


E agora retomas tua dádiva. Ah, eu bem sei.
Mas não o transformes em ódio!
Assim mesmo amo a vida. Ah, lembra-te disso!
Sei que hei de morrer sob o fardo do ódio.
A JOVEM CONDESSA DORME ATÉ ÀS DEZ DA MANHÃ e exige todos os
dias pão recém-assado no desjejum. A jovem condessa faz
bordados e lê poesia. Não entende nada de tecelagem nem do
preparo de comida. A jovem condessa é mimada.
Mas a jovem condessa é alegre e faz com que seu entusiasmo
derrame-se sobre tudo e todos. Perdoam-na de bom grado o longo
sono matinal e o pão recém-assado, posto que não poupa boas
ações para os pobres e mostra-se amistosa com todos.
O pai da jovem condessa é um nobre sueco que morou a vida
inteira na Itália, lá mantido pelo belo país e por uma das mais lindas
filhas daquele belo país. Quando viajou pela Itália, o conde Henrik
Dohna foi recebido na casa desse nobre, conheceu suas filhas,
casou-se com uma delas e levou-a consigo para a Suécia.
Ela, que sempre tinha falado sueco e sido educada para amar
tudo aquilo que era sueco, vive feliz na terra dos ursos. Em meio à
dança de bem viver que revoluteia nas margens do extenso lago
Löven, ela desliza tão alegre que se poderia imaginar que ela
sempre viveu ali. No entanto, claro que entende pouco o significado
de ser condessa. Não há nenhuma opulência, nenhuma
formalidade, nenhuma altivez condescendente nessa jovem e alegre
criatura.
Os velhos senhores eram os que mais gostavam da jovem
condessa. O sucesso que fazia com esses velhos senhores era
notável. Quando era vista em um baile, podia-se ter certeza de que
todos – o presidente do tribunal de Munkerud e o preboste de Bro e
Melchior Sinclaire e o capitão de Berga – diriam às esposas, na
mais absoluta confidência, que, se tivessem conhecido a condessa
trinta ou quarenta anos antes…
– Ora, mas nessa época ela não era nascida – diziam as
senhoras.
E no encontro seguinte acusam-na de roubar o coração a esses
velhos senhores.
As velhas senhoras veem-na com certa angústia. Todas se
lembram muito bem da condessa Märta. Era igualmente boa e bem-
amada quando chegou a Berga. Mas havia se transformado em uma
mulher vaidosa e coquete, sedenta por aventuras, e em pouco
tempo incapaz de pensar em qualquer outra coisa além desses
passatempos.
– Se ao menos tivesse um marido que a fizesse trabalhar! –
diziam as velhas senhoras. – Se ao menos soubesse usar o tear!
Pois o tear consola todas as tristezas, apaga todos os interesses,
e por isso foi a salvação de inúmeras mulheres.
A jovem condessa gostaria muito de ser uma boa dona de casa.
Não imagina nada melhor do que morar como uma boa esposa em
uma boa casa, e com frequência comparece a grandes festas e
senta-se ao lado das velhas senhoras.
– Henrik quer muito que eu me torne uma dona de casa
prendada como a mãe dele é – ela diz. – Ensinem-me a usar o tear!
Então as velhas senhoras soltam um duplo suspiro: o primeiro
em função do conde Henrik, por imaginar que a mãe é uma dona de
casa prendada, e o segundo em função da dificuldade que seria
iniciar aquela criatura inocente em assuntos tão complicados.
Bastava falar sobre novelos e pentes, liços e calas, sobre tafetá,
cetim e sarja para que a cabeça dela começasse a dar voltas, e era
ainda pior quando se falava em sedas e brocados.
Ninguém que veja a jovem condessa pode deixar de perguntar-
se o que a levou a se casar com o estúpido conde Henrik.
Como é estúpido, o coitado! É uma pena que seja como é. E é
uma pena ainda maior que seja estúpido e ainda por cima more em
Värmland.
Já correm muitas histórias sobre a estupidez do conde Henrik, e
ele tem apenas vinte e poucos anos. Às vezes falam sobre a
maneira como entreteve Anna Stjärnhök durante um passeio de
trenós anos atrás.
– Como és linda, Anna – disse.
– Imaginas, Henrik.
– És a criatura mais linda em toda a província de Värmland.
– Decerto que não.
– A mais linda neste passeio, ao menos, és tu.
– Ora, Henrik, tampouco isso.
– Bem, mas com certeza és a mais linda neste trenó. Isso não
podes negar.
Não, ela não podia.
Pois o conde Henrik não é bonito. É tão feio quanto é estúpido.
Costumam dizer a seu respeito que a cabeça que repousa sobre o
fino pescoço é uma herança que tem passado de pai para filho há
alguns séculos. Por isso o cérebro já se encontra tão desgastado
nesse último representante da família.
– Claro está que ele não tem cabeça própria – dizem. – Tomou
emprestada a cabeça do pai. Mal consegue mexê-la. Tem medo que
caia. Basta ver que ele já tem a pele amarelada e rugas na testa.
Aquela cabeça já foi muito usada, tanto pelo pai como pelo avô. Por
que outra razão os cabelos seriam tão finos, os lábios tão exangues
e o queixo tão pontudo?
E o conde tem sempre uma audiência cativa ao redor, que o
incita a falar disparates para então conservá-los, espalhá-los e
incentivá-los.
Sorte dele, que nada percebe. O conde age com cerimônia e
dignidade em todas as ocasiões. Poderia talvez imaginar que as
outras pessoas não são assim? A dignidade assentou-se-lhe no
corpo: ele se move de forma calculada, anda sempre em linha reta e
nunca vira a cabeça, mas faz com que o corpo inteiro a acompanhe.
Anos atrás esteve em Munkerud para uma visita ao presidente
do tribunal. Chegou a cavalo, usando um chapéu alto, calças
amarelas e botas reluzentes, empertigado e altivo na sela. Tudo
correu bem na chegada. Mas, quando montou o cavalo para voltar,
aconteceu que um dos galhos mais baixos na aleia de bétulas
derrubou-lhe o chapéu. Ele apeou do cavalo, botou o chapéu na
cabeça novamente e voltou a cavalgar sob o mesmo galho. Mais
uma vez o chapéu foi derrubado. A cena se repetiu quatro vezes.
O presidente do tribunal por fim se aproximou e disse-lhe:
– E se o camarada se afastasse um pouco mais para o lado da
próxima vez?
Na quinta vez o conde por sorte conseguiu passar ao largo do
galho.
No entanto, mesmo sendo assim, a jovem condessa gosta dele,
apesar da cabeça de velho. Afinal de contas, a condessa não sabia
que na terra natal o conde era rodeado por essa glória de estupidez
quando o viu em Roma. Lá o esplendor da juventude pairava sobre
ele, e a união entre os dois havia se dado em circunstâncias
absolutamente românticas. Era preciso ouvir a condessa contar a
história sobre como o conde teve de raptá-la. Monges e cardeais
haviam se enfurecido ao saber que ela tinha abandonado a religião
da mãe, à qual pertencera antes, para tornar-se protestante. Toda a
plebe havia se revoltado. O palácio do pai dela fora sitiado. Henrik
tinha sido perseguido por bandidos. A mãe e a irmã pediram-lhe que
se abstivesse do casamento. Mas o pai enfureceu-se ao descobrir
que o populacho italiano pretendia impedi-lo de dar a filha a quem
bem entendesse. Assim, ordenou ao conde Henrik que a raptasse.
E, como era impossível para os dois casarem-se em casa sem que
a união fosse descoberta, ela e Henrik se esgueiraram por becos e
por toda sorte de caminho escuro até o consulado da Suécia. E,
quando ela renegou a fé católica e tornou-se protestante, os dois
foram de imediato casados e despachados rumo ao norte em uma
carruagem célere.
– Não houve tempo para os proclamas, sabem? Simplesmente
não houve – a jovem condessa tinha por hábito dizer. – E claro que
foi triste celebrar o matrimônio no consulado e não em uma bela
igreja, mas de outra forma Henrik acabaria sem mim. Na Itália todos
são muito exaltados, tanto o pai como a mãe e também os cardeais
e os monges, todos são muito exaltados. Por isso tudo precisou ser
feito em segredo, e, se o povo tivesse nos visto saindo de
mansinho, com certeza haveria de matar os dois para salvar minha
alma. Henrik naturalmente já estava condenado.
Mas a jovem condessa gosta do marido, mesmo depois que os
dois chegaram a Borg e passaram a levar uma vida tranquila. Ama
no marido o esplendor do nome antigo e os antepassados célebres.
Gosta de ver que sua presença amacia tudo o que há de rígido na
personalidade dele, e que a sua voz torna-se mansa ao falar com
ela. Além do mais, ele toma conta dela e a mima, e como se não
bastasse ela é agora a esposa dele. A jovem condessa
simplesmente não consegue imaginar que uma mulher casada não
goste do marido.
De certa forma o conde também corresponde a seu ideal de
masculinidade. Ele é um homem reto e um amante da verdade.
Jamais faltou com a palavra. Ela o considera um verdadeiro nobre.

*
No dia 18 do mês de março o comissário Scharling comemora o
aniversário, e então muitas pessoas sobem os morros de Broby.
Homens e mulheres do leste e do oeste, conhecidos e
desconhecidos, convidados e não convidados têm por hábito
aparecer na propriedade do comissário. Todos são bem-vindos.
Todos recebem comida e bebida, e no salão de baile há espaço
suficiente para receber os convivas de sete paróquias.
A jovem condessa também comparece, já que sempre vai aos
lugares onde se pode esperar dança e divertimento.
Mas a jovem condessa não está alegre ao chegar. É como se
tivesse o pressentimento de que chegou a sua vez de ser
arrebatada pela delirante caçada à aventura.
Ao longo do caminho ela observara o pôr do sol. O sol baixou em
um céu limpo e não deixou franjas douradas em nuvens leves. A
atmosfera cinzenta do crepúsculo, acossada por rajadas frias de
tempestade, cobriu toda a região.
A jovem condessa testemunhou a luta entre o dia e a noite e a
forma como o medo tomou conta de tudo o que era vivo naquela
batalha grandiosa. Os cavalos apressavam-se com o último fardo
antes de se recolherem ao abrigo de um telhado. Os lenhadores
foram da floresta para casa a passos largos, as criadas voltaram
dos estábulos. Os animais selvagens uivavam na orla da floresta. O
dia, favorito dos homens, foi vencido.
A luz se apagou, as cores se desbotaram. O frio e a feiura eram
tudo o que ela via. Tudo aquilo que desejava, tudo aquilo que
amava, tudo aquilo que fizera parecia igualmente envolto pelas
luzes cinzentas do crepúsculo. Era a hora do cansaço, da derrota,
da fraqueza, tanto para ela como para toda a natureza.
A condessa pensou no próprio coração, que numa felicidade
irrequieta cobria a existência de ouro e púrpura; pensou que esse
mesmo coração um dia talvez perdesse o ímpeto de iluminar o
mundo em que vivia.
– Ah, a fraqueza, a fraqueza do meu próprio coração! – disse
para si mesma. – Deusa sufocante do crepúsculo cinzento, um dia
hás de reinar em minha alma. Então hei de ver a vida feia e em
cores cinzentas, como talvez de fato seja; então meus cabelos hão
de tornar-se brancos, minhas costas curvas, meu intelecto
paralisado.
Nesse mesmo instante o trenó entrou na propriedade do
comissário e, como a jovem condessa olhasse para o alto, o olhar
caiu sobre uma janela gradeada em uma ala da construção e no
rosto grave de uma pessoa logo atrás.
Esse rosto pertencia à senhora de Ekeby, e a jovem condessa
soube então que os prazeres daquela noite estavam todos
arruinados.
Afinal, quando não se vê a tristeza, apenas se ouvem
comentários a seu respeito, como se fosse uma conviva em um país
distante, é possível estar alegre. Mais difícil é manter a alegria no
coração com a mais negra e mais grave necessidade a nos encarar
nos olhos.
A condessa sabe muito bem que o comissário Scharling pôs a
senhora na prisão, e que ela há de responder a uma acusação pelos
atos de violência praticados em Ekeby na mesma noite do grande
baile. Mas não pensou que a senhora estaria detida na propriedade
do comissário, tão perto do salão de baile, a ponto de ser possível
vê-la na própria habitação, tão perto que devia até mesmo ouvir a
música e os alegres barulhos. E pensar na senhora levou toda a
alegria da condessa embora.
Claro que a jovem condessa dança a valsa e a quadrilha.
Participa do minueto e da inglesa, mas entre uma dança e outra
precisa se aproximar da janela e olhar para a outra ala da
construção. Há luz na janela da senhora de Ekeby, e a jovem
condessa a vê indo de um lado para outro no interior do quarto.
Parece não repousar nunca; passa o tempo inteiro andando.
A condessa não tira prazer nenhum daquela dança. Somente
pensa na maneira como a senhora anda de um lado para outro no
interior da cela, como um animal enjaulado. E admira-se de que
todos os outros estejam dançando. Certamente há muitas pessoas
tão ultrajadas quanto ela por saberem que a senhora de Ekeby se
encontra tão perto, no entanto ninguém parece esboçar nenhuma
reação. O povo de Värmland é tolerante.
Mas, a cada vez que olha para fora, os pés lhe parecem mais
pesados na dança, e o riso parece entalar-se-lhe na garganta.
A esposa do comissário percebe-a quando limpa os vidros
embaçados a fim de olhar para fora e se aproxima.
– Quanta miséria! Ah, quanta miséria! – ela sussurra para a
condessa.
– A mim parece quase impossível dançar nesta noite – a
condessa sussurra-lhe de volta.
– Tampouco é minha vontade oferecer um baile com a senhora
trancada lá dentro – responde a sra. Scharling. – Ela passou o
tempo inteiro em Karlstad desde que foi presa. Mas o processo
judicial vai ser instaurado em breve, e por esse motivo trouxeram-na
hoje para cá. Não a podíamos pôr na terrível cadeia do tribunal, e
assim a trouxemos para o quarto do tear, na outra ala. Ela estaria na
minha antessala, condessa, se não fosse toda essa gente aqui hoje.
A condessa mal a conhece, mas a senhora de Ekeby foi como uma
mãe e uma rainha para nós todos. O que há de pensar de nós, que
dançamos aqui enquanto ela passa por tão grande desventura? É
bom que a maioria das pessoas não saiba que está lá.
– Nunca deveriam tê-la prendido – diz a jovem condessa, em tom
peremptório.
– Não, é verdade, condessa; mas não havia mais nada a fazer,
senão desgraças ainda piores talvez acontecessem. Ninguém a
culpou por ter posto fogo nos próprios montes de palha ou por ter
expulsado os cavalheiros, mas o major estava rondando o lugar à
caça dela. Só Deus sabe o que ele seria capaz de lhe fazer se não
estivesse presa. Scharling tem enfrentado muitos aborrecimentos
por haver prendido a senhora de Ekeby, condessa. Até mesmo em
Karlstad as pessoas estavam insatisfeitas com ele por não ter feito
vista grossa, como aconteceu em Ekeby. Mas ele fez o que julgou
ser melhor.
– E agora ela vai ser condenada? – pergunta a condessa.
– Ah, não, condessa, não vai ser condenada. A senhora de
Ekeby vai ser inocentada, mas mesmo assim tudo que tem
enfrentado nesses últimos dias é demais. Ela está perdendo o juízo.
Imagine, uma mulher orgulhosa como ela… como pode admitir que
a tratem como uma criminosa? Melhor seria que a tivessem deixado
solta. Assim talvez ela tivesse escapado por conta própria.
– Então a soltem! – diz a condessa.
– Qualquer um pode fazer isso, menos o comissário ou a esposa
dele – sussurra a sra. Scharling. – Nós dois temos de vigiá-la.
Especialmente hoje, quando tantos amigos dela estão aqui, temos
dois guardas em frente à porta, que está fechada e trancada, para
que ninguém possa se aproximar. Mas, se alguém a tirasse de lá,
condessa, tanto Scharling como eu ficaríamos contentes.
– Será que eu não posso vê-la? – pergunta a jovem condessa.
A sra. Scharling agarra o pulso da condessa e leva-a consigo
para fora do aposento. No vestíbulo, as duas cobrem-se com xales,
e então partem apressadas pelo jardim.
– Não há nenhuma garantia de que ela vá falar conosco – diz a
esposa do comissário. – Mas assim mesmo há de ver que não a
esquecemos.
As duas chegam ao primeiro aposento da outra ala, onde dois
homens estão sentados de guarda em frente à porta trancada, e
avançam sem nenhum tipo de impedimento para encontrar a
senhora de Ekeby. Ela está acomodada em uma sala espaçosa,
mobiliada com teares e outras ferramentas. O cômodo é de fato
usado para tecer, mas tem grades e um ferrolho reforçado para que
possa ser usado como cela em casos de emergência.
Lá dentro a senhora de Ekeby continua a andar de um lado para
outro, aparentemente sem prestar atenção às visitas.
Tem feito andanças constantes durante aqueles dias. Não
consegue pensar em outra coisa, a não ser em percorrer as 30
léguas que a separam da mãe, que a espera em meio às florestas
de Älvdalen. Ela não tem tempo para repousar. Precisa seguir em
frente. E tem uma pressa incansável. A mãe tem mais de 90 anos.
Logo há de estar morta.
Ela mediu o comprimento do assoalho em palmos e pôs-se a
contar as voltas, somando os palmos em côvados e os côvados em
braças e léguas.
O caminho parece longo e árduo, mas nem assim ela ousa
repousar. Passa a vau em meio a montes de neve. Ouve as
florestas eternas farfalharem acima da cabeça. Faz uma pausa na
cabana de toras do finlandês e na cabana de gravetos do carvoeiro.
Às vezes, quando caminhava ao longo de regiões desabitadas por
léguas e mais léguas, via-se obrigada a fazer uma cama de
gravetos quebrados sob a raiz de um espruce caído.
E por fim ela alcança o destino, as 30 léguas acabam, a floresta
se abre e casinhas vermelhas revelam-se em uma propriedade
coberta de neve. O Klarälven surge espumando em uma série de
pequenas corredeiras, e pelo murmúrio familiar ela sabe que chegou
à sua casa.
E a mãe, que a vê chegar mendigando, como havia desejado, vai
ao encontro da filha.
Ao chegar, a senhora de Ekeby mantém a cabeça erguida, olha
ao redor, vê a porta fechada e percebe onde se encontra.
Então se pergunta se não estaria perdendo o juízo e senta-se
para refletir e repousar. Mas logo a seguir encontra-se mais uma vez
a caminho, somando os palmos em côvados e os côvados em
braças e léguas, fazendo breves pausas nas cabanas de toras dos
finlandeses e caminhando sem parar dia e noite, antes de mais uma
vez deixar para trás as 30 léguas.
Durante todo o tempo em que esteve presa ela praticamente não
dormiu.
E as duas mulheres que chegaram para vê-la a encaram cheias
de angústia.
A jovem condessa haveria para sempre de lembrar-se da
senhora de Ekeby naquele lugar, da maneira como andava. Com
frequência ela a vê em sonhos e acorda dessas visões com os olhos
úmidos de lágrimas e um lamento nos lábios.
A velha senhora parece ter sofrido uma lastimável
transformação; os cabelos estão finos e pequenos tufos soltam-se
da trança. O rosto está flácido e descarnado, e as roupas parecem
desalinhadas e rotas. Mas apesar de tudo isso ela ainda conserva a
altivez e o porte de uma rainha, e assim desperta não apenas
comiseração, mas também respeito.
A recordação mais clara da condessa, porém, eram os olhos
fundos, introspectivos, ainda não totalmente privados da luz da
razão, mas prestes a se apagar, com a faísca de um desvario ainda
oculta nas profundezas, o que despertava o temor e o terror de que
no instante seguinte a senhora pudesse saltar com os dentes
prontos para morder e as unhas prontas para dilacerar.
As duas já se encontram há um bom tempo lá quando a senhora
de Ekeby de repente para em frente à jovem e a encara com um
olhar duro. A condessa dá um passo para trás e segura o braço da
sra. Scharling.
Os traços da senhora de Ekeby de repente se enchem de vida e
expressão, os olhos veem o mundo com absoluta clareza.
– Ah não, ah não – ela diz, abrindo um sorriso discreto –, ainda
não está tão ruim assim, minha querida jovem.
A senhora convida-as a se sentarem e senta-se ela mesma.
Adota uma expressão solene à moda antiga, conhecida das festas
em Ekeby e dos bailes reais na residência do governador em
Karlstad. As duas visitantes se esquecem dos andrajos e das
grades e veem apenas a mais orgulhosa e a mais rica mulher de
Värmland.
– Minha cara condessa! – ela diz. – Por que deixar o baile para
visitar uma velha como eu? A senhora deve ser muito bondosa.
A condessa Elisabet não consegue responder. Tem a voz
embargada pela emoção. Quem responde em seu lugar é a sra.
Scharling; diz que a companheira não conseguia dançar porque
ficava pensando na senhora de Ekeby.
– Minha cara sra. Scharling – responde a senhora –, será que fui
longe a ponto de estorvar a alegria das pessoas jovens? Não chore
por mim, minha jovem condessa – ela prossegue. – Eu sou apenas
uma velha triste que merece o destino que teve. As senhoras não
podem achar certo bater na própria mãe...
– Não, mas…
A senhora de Ekeby a interrompe, enquanto afasta os cachos
louros da testa.
– Menina, menina – ela diz –, como pôde casar-se com um idiota
como Henrik Dohna?
– Mas eu o amo!
– Eu entendo, eu entendo – diz a senhora de Ekeby. – Nada
além de uma menina bondosa, que chora com os tristes e ri com os
alegres. Obrigada a dizer “aceito” para o primeiro que apareceu e
disse: “Eu te amo”. Eu sei, eu sei. Mas agora vá dançar, minha cara
condessa! Dance e alegre-se! Não existe mal nenhum dentro de
você.
– Mas eu gostaria de ajudar a senhora.
– Menina – diz a senhora de Ekeby em tom solene –, em Ekeby
morava uma velha que mantinha os ventos do céu cativos. Hoje é
ela quem está cativa, e os ventos estão livres. Será mesmo
estranho que uma tempestade esteja assolando este país?
“Eu, que sou velha, já a vi antes, condessa. Eu a conheço. Sei
que a estrondosa tempestade de Deus paira sobre nós. Ora avança
sobre os grandes reinos, ora sobre as pequenas sociedades
esquecidas. A tempestade de Deus não se esquece de ninguém.
Abate-se tanto sobre os grandes como sobre os pequenos. É
grandioso ver a tempestade de Deus chegar.
“Tempestade de Deus, ó bendita dádiva do Senhor, sopra por
toda a terra! Vozes no ar, vozes na água, sons e temor! Que a
tempestade de Deus seja estrondosa! Que a tempestade de Deus
seja apavorante! Que as rajadas soprem por toda a terra, derrubem
as paredes desaprumadas, quebrem os ferrolhos enferrujados e
destruam as casas decrépitas!
“A angústia há de espalhar-se por toda a terra. Os ninhos dos
passarinhos hão de cair dos galhos. O ninho da águia, no alto do
espruce, há de cair à terra com um grande estrondo, e até mesmo
junto à toca da coruja na fenda da montanha o vento há de bufar
com a língua de um dragão.
“Acreditamos que tudo era bom nesta terra, mas foi um equívoco.
A tempestade de Deus é necessária. Eu entendo, e não reclamo.
Queria apenas estar com minha mãe.”
Naquele instante, a senhora de Ekeby pareceu afundar-se em si
mesma.
– Vá embora, minha jovem! – ela diz. – Já não tenho tempo.
Tenho de ir. Vão embora e tomem cuidado ao tratar com aqueles
que cavalgam as nuvens da tempestade!
Com essas palavras ela retoma sua caminhada. As feições do
rosto afrouxam-se, o olhar torna-se introspectivo. A condessa e a
sra. Scharling têm de deixá-la.
Assim que tornam a encontrar os convivas, a jovem condessa
procura Gösta Berling.
– Eu gostaria de trazer-lhe saudações da senhora de Ekeby – ela
disse. – Ela está aguardando que o sr. Berling tire-a da prisão.
– Neste caso, deixe-a aguardar, condessa.
– Ah, ajude-a, sr. Berling!
Gösta olha com uma expressão sombria para a frente.
– Ora – ele diz –, por que eu haveria de ajudá-la? Qual é a minha
dívida de gratidão? Tudo o que ela fez para mim foi para me
arruinar.
– Mas, sr. Berling…
– Se a senhora de Ekeby não existisse – ele a interrompeu –,
agora eu estaria dormindo sob as florestas eternas. Acaso devo
arriscar minha vida por ela apenas porque fez de mim um cavalheiro
em Ekeby? A condessa acha que esse tipo de ocupação é motivo
de reconhecimento?
A jovem condessa desvia o rosto sem responder-lhe. Está
irritada.
Ela volta para o seu lugar, com pensamentos amargos sobre os
cavalheiros. Tinham chegado com trompas e violinos com a
intenção de fazer os arcos tangerem as cordas até que a crina se
gastasse, sem jamais pensar que essas notas alegres ecoariam no
terrível quartinho da prisioneira. Tinham ido ao baile para dançar até
que as solas dos sapatos se desmanchassem, sem jamais pensar
que a antiga benfeitora podia ver as sombras deslizando por trás
das vidraças embaçadas. Ah, como o mundo era feio e cinzento! Ah,
que sombra terrível a dureza e a necessidade projetavam sobre a
jovem alma da condessa!
Logo a seguir Gösta aparece e convida-a para uma dança.
Ela recusa de imediato.
– A condessa não quer dançar comigo? – ele pergunta, e o rosto
dela se enrubesce.
– Nem com o senhor nem com nenhum outro cavalheiro de
Ekeby – ela diz.
– Então não somos dignos dessa honra?
– Não é honra nenhuma, sr. Berling. Não sinto nenhum prazer
em dançar com homens que ignoram toda e qualquer forma de
gratidão.
Gösta já tinha dado meia-volta.
A cena é vista e ouvida por muita gente. Todos dão razão à
condessa. A ingratidão e a crueldade dos cavalheiros para com a
senhora de Ekeby haviam causado prejuízos a todos.
Mas naqueles dias Gösta Berling era mais perigoso do que um
animal selvagem na floresta. Desde que voltara da caçada e
descobrira a ausência de Marianne, seu coração era uma ferida
aberta. Sentia vontade de cometer uma injustiça sangrenta contra
outras pessoas, e de espalhar a tristeza e o sofrimento tanto quanto
possível.
Se é isso o que ela quer, diz para si mesmo, é isso o que há de
ter. Mas não há de salvar a própria pele. A jovem condessa gosta de
raptos. Pois então teria aquilo de que tanto gosta. Gösta Berling não
tem nada contra aventuras. Por oito dias havia se lamentado por
causa de uma mulher. É tempo demais. Ele chama Beerencreutz, o
coronel, Kristian Bergh, o robusto capitão, e o vagaroso primo
Kristoffer, que jamais hesita perante uma aventura desvairada, e
aconselha-se com esses homens sobre a melhor forma de vingar a
honra ferida da ala dos cavalheiros.

E então a festa chega ao fim. Uma longa fila de trenós aparece


no pátio. Os senhores enrolam-se com peles. As senhoras buscam
as roupas na bagunça quase desesperada do vestiário.
A jovem condessa tem pressa em deixar o odioso baile. Ela é a
primeira dentre as mulheres a se aprontar. Está sorrindo e olhando
para a confusão quando a porta se abre e Gösta Berling surge no
umbral.
Homem nenhum tem o direito de entrar naquele aposento. As
senhoras estão lá com seus escassos cabelos à mostra, uma vez
que tiraram as toucas enfeitadas. E as moças dobraram as barras
dos vestidos por baixo das peles, para que os babados não se
amassem durante a viagem.
Mas, sem dar nenhuma atenção aos gritos que tentavam impedir
sua passagem, Gösta Berling aproxima-se da condessa e a agarra.
E então a ergue nos braços e sai correndo do vestiário para o
vestíbulo, e de lá para a escada.
Os berros das mulheres atônitas não conseguem detê-lo. Ao
seguirem-no, todas veem apenas que ele salta para dentro de um
trenó tendo a condessa nos braços.
E então ouvem o cocheiro estalar o chicote e veem o cavalo pôr-
se em movimento. Todas reconhecem o cocheiro: é Beerencreutz.
Todas reconhecem o cavalo: é Don Juan. E, com enorme
preocupação quanto ao destino da condessa, as mulheres procuram
os homens.
Estes não perdem tempo com muitas perguntas, mas correm em
direção aos trenós. E, tendo o conde à frente, saem à caça do raptor
de mulheres.
Mas ele está no trenó, segurando a jovem condessa. Esqueceu-
se de toda a tristeza, e canta a vertigem e a alegria embriagante da
aventura a plenos pulmões entoando uma canção sobre rosas e
amor.
Estreita o corpo da condessa contra si, mas ela não esboça
nenhuma tentativa de fuga. O rosto, alvo e petrificado, repousa no
peito dele.
Ah, o que fazer quando se tem um rosto pálido e indefeso tão
perto de si, quando se veem os cabelos louros, que obscurecem a
testa branca e cintilante, a se afastar, e quando as pálpebras
cerram-se pesadas sobre o brilho travesso dos olhos cinzentos?
O que fazer quando os lábios rubros empalidecem sob o olhar de
quem contempla?
Beijar, naturalmente beijar os lábios pálidos, as pálpebras
cerradas, a testa branca!
Mas nesse instante a jovem desperta. Ela se afasta. Está tensa.
E com todas as forças ele precisa lutar com ela para que não se
jogue do trenó, até por fim subjugá-la, vencida e trêmula, em um dos
cantos do trenó.
– Vê! – Gösta diz tranquilamente para Beerencreutz. – A
condessa é a terceira que eu e Don Juan transportamos neste
inverno. Mas, enquanto as outras penduravam-se aos beijos no meu
pescoço, essa não quer saber de beijar-me nem de dançar comigo.
Consegues entender as mulheres, Beerencreutz?
Mas quando Gösta deixou o pátio, quando as mulheres gritaram
e os homens praguejaram, quando as sinetas retiniram e os
chicotes estalaram e tudo deu vez a um alarido e uma confusão, os
homens que vigiavam a senhora de Ekeby de repente perceberam
que havia algo estranho.
“O que está acontecendo?”, pensaram. “Por que toda essa
gritaria?”
No mesmo instante a porta se abriu e uma voz gritou-lhes:
– Ela se foi. Ele a levou embora.
Os homens saíram, correndo como loucos, sem nem ao menos
conferir se era a senhora de Ekeby ou outra pessoa que fora levada.
Mas a sorte estava com eles, pois conseguiram lugares em um
trenó que partia. E os dois avançaram por um bom tempo antes de
saber quem todos perseguiam.
Enquanto isso, Bergh e o primo Kristoffer foram tranquilamente
até a porta, forçaram a tranca e abriram para a senhora de Ekeby.
– A senhora está livre – disseram.
Ela saiu. Os dois permaneceram empertigados de ambos os
lados da porta, sem olhar para ela.
– Há um cavalo e um trenó do lado de fora.
A senhora de Ekeby saiu, acomodou-se no veículo e partiu.
Ninguém a seguiu. Ninguém sabia para onde ia.
Ao longo dos morros de Broby, Don Juan aproximava-se da
superfície congelada do lago Löven. O brioso corcel voa à frente. O
vento frio e revigorante sopra no rosto dos viajantes. As sinetas
retinem. As estrelas e a lua reluzem. A neve azulada cintila com
uma luz própria.
Gösta sente o despertar de pensamentos líricos.
– Beerencreutz – ele diz –, vê bem: a vida é isto. Assim como
Don Juan corre levando consigo essa jovem, o tempo corre levando
consigo a humanidade. Tu és a necessidade, que guia a jornada. Eu
sou o desejo, que captura a vontade. E é assim que a vontade, sem
forças, sucumbe cada vez mais.
– Chega de falar! – Beerencreutz grita. – Estão vindo atrás de
nós.
E com estalos de chicote o coronel açula Don Juan a galopar
ainda mais depressa.
– Aqueles são os lobos, e esta é a presa! – exclama Gösta. –
Don Juan, meu velho, imagina que és um jovem alce! Atira-te no
meio dos arbustos, passa em meio ao palude, salta da crista da
montanha rumo ao lago cristalino, atravessa-o a nado com a cabeça
orgulhosamente erguida e desaparece, desaparece na escuridão
densa e tentadora da floresta de espruces! Salta, Don Juan, ó velho
raptor de mulheres! Salta como um jovem alce!
A alegria toma conta daquele velho coração aventureiro em meio
à vertigem do galope. Os gritos dos perseguidores são como uma
canção de triunfo. A alegria toma conta daquele velho coração
aventureiro quando Gösta sente o corpo da condessa estremecer de
medo, quando a ouve bater os dentes.
Mas de repente o punho de aço com que a segurava se afrouxa.
Ele põe-se de pé no trenó e abana sua touca.
– Eu sou Gösta Berling – grita –, senhor de 10 mil beijos e 13 mil
cartas de amor. Um viva para Gösta Berling! Agarre-o quem puder!
E no instante seguinte ele sussurra no ouvido da condessa:
– Acaso a velocidade não é boa? Acaso a jornada não é digna
de um rei? Para além do lago Löven fica o Vänern. Para além do
Vänern fica o mar, por todo lado planícies infindáveis de gelo límpido
e azul-escuro, e mais além um mundo resplandecente. O ribombar
de trovões no gelo congelante, gritos estridentes às nossas costas,
estrelas cadentes acima e o retinir de sinetas à frente! Avante!
Sempre avante! Não tem vontade de experimentar essa jornada,
minha jovem e bela dama?
A condessa então é solta. Ela empurra Gösta com força para
longe.
No instante seguinte ele se prostra de joelhos aos pés dela.
– Eu sou um canalha, um canalha! A condessa não devia ter me
admoestado. Estava lá, elegante e orgulhosa, e jamais imaginou
que as mãos de um cavalheiro pudessem alcançá-la. Você é amada
pelo céu e pela terra. Mas não devia tornar ainda mais pesado o
fardo daqueles que tanto o céu como a terra desprezam.
Ele puxa as mãos da condessa para si e leva-as ao rosto.
– Se ao menos você imaginasse – ele diz – como é ser um pária!
As pessoas nem se perguntam o que estão fazendo. Simplesmente
não se perguntam.
No mesmo instante Gösta percebe que a condessa não tem
nada nas mãos. Ele saca um par de grandes luvas de couro do
bolso e calça-as naquelas mãozinhas.
E assim se acalma por completo. Acomoda-se no interior do
trenó, tão longe da jovem condessa quanto possível.
– A condessa não precisa ter medo – ele diz. – Não vê para onde
estamos indo? Você com certeza sabe que não teríamos coragem
de lhe fazer nenhum mal.
A condessa, que estava quase fora de si devido ao terror que
sentia, percebe naquele instante que o trenó já atravessou o lago e
que Don Juan está subindo as encostas íngremes de Borg.
Eles param o cavalo em frente à propriedade do conde e
permitem à jovem condessa que desça do trenó em frente ao portão
de casa.
Mas, assim que se vê rodeada pela criadagem apressada, a
condessa recobra a coragem e a presença de espírito.
– Andersson, cuide do cavalo! – ela diz para o cocheiro. – Esses
senhores que me trouxeram para casa não gostariam de entrar um
pouco? O conde deve chegar em breve.
– Como a condessa desejar – diz Gösta, descendo prontamente
do trenó. Beerencreutz larga as rédeas sem um instante sequer de
hesitação. Mas a jovem condessa vai à frente e os acompanha ao
salão com uma satisfação perversa que não consegue esconder.
A condessa tinha esperado que os cavalheiros fossem hesitar
ante o convite para encontrar o marido.
Não sabiam que ele era um homem rígido e honrado. Não
temiam o interrogatório que enfrentariam por tê-la agarrado à força e
a obrigado a acompanhá-los no trenó. A condessa queria presenciar
o marido bani-los para sempre daquela casa.
Queria vê-lo chamar a criadagem para apresentar os cavalheiros
como homens que daquele momento em diante jamais deveriam ser
admitidos para além dos portões de Borg. Queria ouvi-lo manifestar
desprezo não apenas pelo tratamento dispensado à esposa, mas
também pela forma como haviam tratado a velha senhora de Ekeby,
antiga benfeitora dos cavalheiros.
O conde, que para a condessa era pura ternura e consideração,
haveria de erguer-se com uma austeridade justificada contra seus
perseguidores. O amor haveria de inflamar-lhe o discurso. O conde,
que a protegia e defendia como se fosse a mais frágil de todas as
criaturas, não admitiria que homens brutos a atacassem como se
fossem aves de rapina a investir contra os pardais. A condessa tinha
sede de vingança.
Beerencreutz, o coronel de espesso bigode grisalho, entrou
destemidamente na sala de jantar e aproximou-se da lareira, que
estava sempre acesa quando a condessa voltava de uma festa.
Gösta parou na escuridão junto à porta e observou a condessa
em silêncio enquanto a criada tirava-lhe o casaco e os trajes de frio.
Enquanto olhava para aquela moça, sentiu uma felicidade que em
muitos anos não havia sentido. Percebeu, como se fosse uma
revelação, muito embora não soubesse como havia feito a
descoberta, que aquela mulher trazia dentro de si uma das mais
belas almas.
Até então, essa alma encontrava-se contida e adormecida, mas a
partir de então haveria de revelar-se. Gösta alegrou-se deveras por
ter descoberto toda a pureza e toda a piedade e toda a inocência
que nela habitavam. Estava quase disposto a rir da expressão que
tinha no rosto, posto que parecia estar muito brava e tinha as faces
coradas e as sobrancelhas franzidas.
“Não imaginas o quanto és delicada e bondosa”, ele pensou.
Esse lado da condessa, voltado para o mundo dos sentidos,
jamais faria justiça àquilo que trazia em seu interior, ele pensou.
Mas a partir daquele instante Gösta Berling teria de servi-la, como
se deve servir a tudo aquilo que é belo e divino. Naturalmente não
havia motivo para se arrepender do comportamento violento
adotado momentos atrás. Se a condessa não estivesse com tanto
medo, se não o tivesse empurrado com tanta força, se ele não
tivesse pressentido que todo aquele ser havia de sentir-se abalado
pela brutalidade, jamais teria descoberto a finura e a nobreza que
nela habitavam.
Antes, ele mesmo não teria acreditado. Afinal, a condessa era
pura alegria e vontade de dançar. Mas apesar de tudo casara-se
com o estúpido conde Henrik.
Claro que ele haveria de servir-lhe como um escravo até a morte:
um cão e um escravo, como o capitão Kristian dizia, e nada mais.
Gösta Berling estava sentado junto da porta, e com as mãos
postas fazia uma espécie de culto. Desde o dia em que sentira a
inspiração flamejar com língua de fogo, jamais vivenciara tamanha
completude da alma. Ele não se deixou incomodar, muito embora o
conde Dohna tivesse entrado com uma quantidade de outras
pessoas que praguejavam e deploravam o comportamento dos
cavalheiros.
Deixou que Beerencreutz enfrentasse aquela tempestade. Mas
esse homem, tendo a vivência de inúmeras aventuras, manteve-se
igualmente calmo ao lado da lareira. Tinha posto um dos pés sobre
a grade da lareira e apoiava o cotovelo no joelho e o queixo na mão
enquanto observava a exaltação dos recém-chegados.
– O que significa isso tudo? – bradou-lhe o pequeno conde.
– Significa que – Gösta respondeu –, enquanto houver mulheres
sobre a terra, haverá igualmente tolos para dançar conforme a
música delas.
O rosto do jovem conde enrubesceu-se.
– Eu perguntei o que isso tudo significa! – ele repetiu.
– Eu também me pergunto – zombou Beerencreutz. – Pergunto-
me o que pode significar a condessa e esposa de Henrik Dohna não
querer dançar com Gösta Berling.
O conde virou-se com um olhar inquisitivo para a esposa.
– Eu não consegui, Henrik! – ela desabafou. – Não consegui
dançar com ele nem com ninguém mais. Eu estava pensando na
senhora de Ekeby, que todos deixaram apodrecer na cadeia.
O pequeno conde endireitou o corpo empertigado e esticou a
cabeça de velho.
– Nós, cavalheiros – disse Beerencreutz –, não permitimos que
ninguém nos ofenda. Quem não quer dançar conosco tem de
acompanhar-nos no trenó. Não fizemos nenhum mal à condessa, e
assim podemos dar fim ao assunto.
– Não! – retrucou o conde. – Não podemos dar fim ao assunto.
Sou eu quem responde pelos atos da minha esposa. E agora
pergunto por que Gösta Berling não se dirigiu a mim com um pedido
de reparação quando a minha esposa o ofendeu.
Beerencreutz abriu um sorriso discreto.
– Eu fiz uma pergunta! – repetiu o conde.
– Não se pede a permissão da raposa para tirar-lhe a pele –
Beerencreutz respondeu.
O conde levou a mão ao peito estreito.
– Eu tenho fama de ser um homem justo – ele exclamou. –
Posso julgar meus criados. Por que não poderia julgar minha
esposa? Os cavalheiros não têm o direito de julgá-la. Sendo assim,
declaro nula a sentença imposta. É como se jamais tivesse existido,
meus caros. É como se jamais tivesse existido!
O conde berrou as palavras em um falsete estridente.
Beerencreutz lançou um olhar apressado rumo à concentração de
pessoas. Não havia sequer um entre os presentes – Sintram e
Daniel Bendix e Dahlberg e todos aqueles que tivessem
acompanhado o conde – que não segurasse o riso diante de todas
aquelas provocações ao estúpido Henrik Dohna.
A princípio a jovem condessa não compreendeu. O que, afinal,
não tinha valor nenhum? Sua angústia, o tratamento ríspido
dispensado pelos cavalheiros àquele corpo delicado, a canção
desvairada, as palavras desvairadas, os beijos desvairados, então
nada disso existira? Não haveria mesmo nada sobre o que a deusa
do crepúsculo não reinasse naquela noite?
– Mas, Henrik…
– Quieta! – disse o conde.
E ele endireitou as costas para fazer a condenação.
– Ai de ti, que, sendo mulher, tiveste a audácia de querer julgar
os homens! – ele diz. – Ai de ti, que, sendo minha esposa,
atreveste-te a ofender uma pessoa cuja mão de bom grado aperto!
O que tens a ver com o fato de que os cavalheiros puseram a
senhora de Ekeby na prisão? Acaso não tinham razão? Jamais hás
de saber como o coração dos homens se enfurece quando ouvem
falar sobre a traição das mulheres! Acaso pretendes seguir por esse
mesmo caminho depois de assumir a defesa de uma mulher
dessas?
– Mas, Henrik…
A condessa queixou-se como uma menina e estendeu os braços
sobre a cabeça como que para se proteger daquelas palavras
cheias de maldade. Talvez jamais tivesse ouvido palavras tão duras
proferidas contra ela. Estava indefesa em meio àqueles homens
brutos, e naquele momento seu único defensor havia se voltado
contra ela. Nunca mais seu coração teria forças para iluminar o
mundo.
– Mas, Henrik, eras tu quem devia me defender!
Gösta Berling começou a prestar atenção nesse momento,
quando já era demasiado tarde. A bem dizer, já não sabia mais o
que fazer. Queria o bem da condessa. Mas não se atreveria a pôr-se
entre marido e mulher.
– Onde está Gösta Berling? – perguntou o conde.
– Aqui! – disse Gösta. Em seguida ele fez uma tentativa
lamentável de tratar o assunto como uma brincadeira. – O conde
estava proferindo um discurso e eu acabei cochilando. O que o
senhor acha de nos deixar ir para casa enquanto os senhores vão
para a cama dormir?
– Gösta Berling, uma vez que a minha condessa negou-se a
dançar contigo, eu agora ordeno que ela beije a tua mão e peça-te
desculpas.
– Meu estimado conde Henrik – disse Gösta, que não conseguia
esconder um sorriso –, não é uma mão que se preste aos beijos de
uma jovem. Ainda ontem esteve vermelha com o sangue de um alce
abatido a tiros, e hoje mesmo esteve suja de fuligem por causa de
uma briga com um carvoeiro. O conde prolatou uma sentença nobre
e altiva. É reparação suficiente. Vem, Beerencreutz!
O conde barrou-lhe o caminho.
– Esperem! – ele disse. – Minha esposa precisa me obedecer.
Quero que a minha condessa saiba o que acontece quando age
movida por caprichos.
Gösta deteve o passo, sem saber o que fazer. A condessa
estava totalmente pálida; mas não se mexeu.
– Vamos! – disse o conde.
– Henrik, eu não consigo.
– Consegues – disse o conde, em tom ríspido. – Consegues.
Mas eu sei o que desejas. Desejas que eu me bata com esse
homem, porque em tua volubilidade decidiste que não gostas dele.
Ora, muito bem; se não queres fazer a reparação devida, eu mesmo
encarrego-me disso. As mulheres gostam que os homens morram
em nome delas. Cometeste o erro, mas não queres saná-lo. Então
eu mesmo preciso me encarregar disso. Vou duelar, minha
condessa. Daqui a poucas horas vou ser apenas um cadáver
ensanguentado.
A condessa encarou o marido por um bom tempo. E então o viu
como era: um estúpido, um covarde que se pavoneava movido por
vaidade e presunção, o mais desprezível dentre todos os homens.
– Acalma-te! – ela disse. Estava fria como o gelo. – Eu vou fazer
o que pedes.
Mas nesse ponto Gösta Berling estava fora de si.
– A condessa não pode! Não, a senhora não pode! A senhora
não passa de uma criança, uma menina fraca e inocente, e ainda ter
de beijar-me a mão! A senhora tem uma alma pura e bela. Nunca
mais hei de aproximar-me. Ah, nunca mais! Trago morte e
destruição a todas as pessoas boas e inocentes. Não me toque.
Tremo ao vê-la como treme o fogo ao ver água. A senhora não
pode!
Ele escondeu as mãos nas costas.
– Para mim já não é problema, sr. Berling. Para mim já não é
problema. Eu peço-lhe desculpas. E peço que me permita beijar-lhe
a mão!
Gösta manteve as mãos nas costas. Considerou a situação.
Aproximou-se da porta.
– Se não aceitas a reparação que minha esposa oferece, sinto-
me obrigado a bater-me contigo, Gösta Berling, e também obrigado
a aplicar um castigo mais duro à condessa.
A condessa deu de ombros.
– Ele está morrendo de medo – ela disse em um sussurro. –
Deixe acontecer! Para mim, uma humilhação não significa nada.
Afinal, era isso que os senhores queriam desde o início.
– Eu acaso quis isso? A senhora acha mesmo que eu quis isso?
Ora, se eu não tiver mãos que possam ser beijadas, então a
senhora há de perceber muito bem que eu não quis isso! –
exclamou.
Então Gösta deu um salto em direção à lareira e pôs as mãos
sobre as chamas. O fogo atingiu-as, a pele enrugou-se, as unhas
estalaram. No mesmo instante, porém, Beerencreutz agarrou-o pela
nuca e o atirou de qualquer jeito contra o chão. Gösta cambaleou
até uma cadeira e sentou-se. Parecia quase envergonhado pela
resolução estúpida. A condessa não haveria de pensar que fizera
aquilo simplesmente como uma bravata? Fazer uma coisa daquelas
em uma sala repleta de gente sem dúvida pareceria uma bravata
estúpida. Não correra sequer um resquício de perigo.
Antes que Gösta pudesse cogitar a ideia de se levantar, a
condessa estava prostrada de joelhos a seu lado. Pegou naquelas
mãos vermelhas e fuliginosas e observou-as.
– Eu vou beijá-las, vou beijá-las – exclamou – assim que não
estiverem demasiado sensíveis e doloridas!
E as lágrimas brotaram de seus olhos enquanto ela via as bolhas
das queimaduras erguerem-se por sob a pele queimada.
Naquele instante Gösta tornou-se para ela uma revelação de
esplendor até então desconhecido. Que ainda pudessem acontecer
daquelas coisas sobre a terra! Que uma coisa daquelas pudesse ser
feita por si! Ah, que homem, que homem era aquele, capaz de tudo,
igualmente enorme no bem como no mal, um homem de feitos
valorosos, de palavra firme, de façanhas brilhantes! Um herói, um
herói, feito de uma substância que não era a de outros homens! Um
escravo do capricho, da vontade momentânea, terrível e desvairado,
mas possuidor de uma força enorme, que nada temia.
A condessa sentira-se desanimada durante toda a noite, não vira
nada além de tristeza, brutalidade e covardia. Mas naquele instante
tudo isso foi esquecido. A jovem condessa voltou a sentir-se alegre
por existir. A deusa do crepúsculo fora vencida. A jovem condessa
viu luzes e cores iluminarem o mundo.

A noite era a mesma na ala dos cavalheiros.


Lá, todos se lamentavam, praguejando contra Gösta Berling. Os
velhos senhores queriam dormir, mas era impossível. Ele não os
deixava em paz. Debalde haviam fechado os dosséis e apagado as
lamparinas. Ele não parava de falar.
Dizia que a jovem condessa era um anjo e que tinha adoração
por ela. Haveria de servi-la, de venerá-la. E naquele instante sentia-
se contente de saber que todos o tinham abandonado. Enfim
poderia dedicar a vida a servir à condessa. Naturalmente, ela o
desprezava. Mas ele se daria por satisfeito se pudesse deitar-se aos
pés dela como um cão.
Acaso os cavalheiros já haviam prestado atenção à ilha de
Lagön, no Löven? Acaso a tinham visto a partir do sul, de onde o
rochedo áspero ergue-se a pique das águas? Acaso o tinham visto a
partir do norte, de onde desce rumo ao lago com uma inclinação
suave, e onde pequenos bancos de areia, cobertos por grandes e
opulentos espruces, avançam rumo à orla d’água e formam as mais
belas lagoas? No alto do cume íngreme, onde ainda se
amontoavam as ruínas de uma antiga fortaleza dos piratas, ele
havia de construir um palácio para a jovem condessa, um palácio de
mármore. Uma escadaria larga, ao pé da qual barcos com flâmulas
tremulantes poderiam ancorar, seria entalhada diretamente na
montanha até as margens do lago. Haveria salões esplêndidos e
torres sobranceiras guarnecidas por merlões dourados. Seria uma
morada digna da jovem condessa. A velha e decrépita casa de
madeira no promontório de Borg não era digna sequer de que a
condessa entrasse.
Enquanto Gösta falava dessa forma, um e outro cavalheiro
começaram a roncar por trás dos dosséis em xadrez amarelo. A
maioria, porém, continuava a praguejar e a lamentar o colega e seus
desvarios.
– Meus caros – disse Gösta Berling, em tom grandiloquente –, eu
vejo a terra verde coberta pelas obras do homem ou pelas ruínas
das obras do homem. As pirâmides pesam sobre a terra, a torre de
Babel atravessou as nuvens, os belos templos e as fortalezas
cinzentas ergueram-se da areia. Mas, de tudo aquilo que foi
construído pelas mãos do homem, o que não caiu ou não há de
cair? Ah, joguem fora a colher de pedreiro e as formas de barro!
Estendam o avental de pedreiro sobre a cabeça e deitem-se para
construir os resplendentes palácios dos sonhos! O que o espírito
quer com templos de pedra e de barro? Construam palácios
sempiternos de visões e sonhos!
E por fim recolheu-se ao descanso, ainda em meio às risadas.
Pouco tempo depois, quando a condessa teve notícias de que a
senhora de Ekeby fora libertada, convidou os cavalheiros para um
jantar.
E assim teve início sua duradoura amizade com Gösta Berling.
Ó FILHOS DE NOSSOS TEMPOS!
Não tenho nada de novo a contar, apenas coisas velhas e quase
esquecidas. Tenho lendas do berçário, onde os pequenos
acomodavam-se em mochinhos baixos ao redor da contadora de
histórias de cabelos brancos, ou do lume na cabana, onde criados e
trabalhadores sentavam-se para conversar enquanto o vapor
desprendia-se das roupas úmidas e eles tiravam facas da bainha
que traziam no pescoço a fim de espalhar manteiga em pães
grossos e macios, ou então da sala, onde velhos gentis-homens
sentavam-se em cadeiras de balanço e, animados pelo uísque
quente com especiarias, falavam sobre tempos idos.
E se uma dessas crianças, que houvesse escutado a contadora
de histórias, os trabalhadores, os velhos gentis-homens, estivesse
postada à janela em uma noite de inverno, não veria nuvens nas
franjas do céu, mas apenas as formas de cavalheiros que
avançavam pelo firmamento em coches bamboleantes de um só
cavalo; as estrelas seriam velas, acendidas na antiga propriedade
do conde no promontório de Borg, e a roca, que rumorejava no
cômodo ao lado, era usada pela velha Ulrika Dillner. Pois a cabeça
da criança estava cheia das pessoas de tempos idos. Era por elas
que a criança vivia, e a elas que adorava.
Mas, se uma criança dessas, com a alma saturada de lendas,
fosse instada a subir ao sótão escuro e a entrar na despensa para
buscar linho ou pão seco, então os pezinhos se apressavam, a
criança descia a escada em marcha acelerada, atravessava o
vestíbulo e adentrava a cozinha. Pois na escuridão lá em cima devia
ter pensado em todas as velhas histórias que ouvira sobre o
malvado patrão da fundição de Fors, sobre esse homem que havia
feito uma aliança com o cão.
O pó do malvado Sintram repousa há muito tempo no cemitério
de Svartsjö, mas ninguém acredita que sua alma tenha ido ao
encontro de Deus, como se lê na lápide.
Enquanto vivia, era um homem desses a cuja residência uma
carruagem pesada, com duas parelhas de cavalos negros, por
vezes chegava numa daquelas longas e chuvosas tardes de
domingo. Um senhor elegante trajando preto desce do veículo e,
com dados e baralhos, ajuda a fazer passar aquelas horas
vagarosas, cuja monotonia leva o senhor da casa ao desespero. A
jogatina continua até depois da meia-noite, e, quando o forasteiro
vai embora ao raiar do dia, sempre deixa atrás de si um agourento
presente de despedida.
Enquanto existiu sobre a terra, Sintram foi um desses homens
cuja chegada é anunciada por espíritos. Uma fantasmagoria os
precede: coches adentram o jardim, chicotes estalam, vozes soam
na escada, a porta do vestíbulo se abre e se fecha. Os cachorros e
as pessoas despertam com o barulho alto, mas não há ninguém
chegando: é apenas a fantasmagoria que os precede.
Ah, os homens terríveis que os espíritos do mal procuram! O que
poderia ser aquele grande cachorro preto que aparecia em Fors na
época de Sintram? Tinha olhos terríveis e faiscantes e uma língua
comprida de onde o sangue gotejava, estendida das profundezas da
goela resfolegante. Certa vez, enquanto os criados estavam
reunidos na cozinha para o jantar, o cachorro arranhou a porta da
cozinha e todas as moças gritaram de medo, mas o maior e mais
forte dentre os criados pegou uma acha em chamas da lareira, abriu
a porta e a enfiou na boca do cachorro.
O animal fugiu com um uivo terrível, com chamas e fumaça a
saírem-lhe da boca, chispas a rodopiarem a seu redor e as pegadas
a reluzirem como fogo pelo caminho.
E não era terrível que toda vez que o patrão voltava de uma
viagem os animais estivessem trocados? Ele saía levando cavalos,
mas, quando voltava à noite, eram sempre touros pretos a puxar a
carruagem. Quando passava, as pessoas que moravam junto à
estrada rural viam os grandes chifres negros delinearem-se contra o
céu noturno e ouviam o mugido dos animais e horrorizavam-se com
as faíscas que os cascos e as rodas faziam sair do cascalho seco.
Ora, claro que os pezinhos tinham de apressar-se para
atravessar o sótão grande e escuro. Imagine se uma coisa terrível,
se aquele cujo nome não deve ser dito aparecesse de repente em
um canto escuro lá em cima! Quem podia estar seguro? Ele não se
mostrava apenas para os maus. A própria Ulrika Dillner não o tinha
visto? Tanto ela como Anna Stjärnhök contavam histórias sobre
havê-lo visto.

Meus amigos, filhos do homem. Vós que dançais, vós que rides!
Peço-vos de todo o coração, dançai com cautela, ride com discrição,
pois enormes desgraças podem vir a ocorrer se vosso sapato de
seda pisar em corações sensíveis em vez de tábuas firmes, e vosso
riso galhardo com trinos de prata pode instigar uma alma à loucura.
Certo é que pés jovens pisaram demasiado forte em Ulrika
Dillner, e que o riso jovem soou demasiado petulante naqueles
ouvidos, pois de pronto ela foi tomada por um desejo irresistível de
ter os títulos e as honrarias de uma mulher casada. Por fim disse
“aceito” à longa corte do malvado Sintram, acompanhou-o a Fors
como esposa e passou a viver separada dos velhos amigos de
Berga, dos antigos e caros afazeres e da antiga preocupação com o
pão de cada dia.
O casamento foi rápido e alegre. Sintram pediu-lhe a mão na
época do Natal, e em fevereiro o matrimônio foi celebrado. Naquele
ano, Anna Stjärnhök morava na casa do capitão Uggla. Era uma boa
substituta para a velha Ulrika, que assim pôde, sem peso na
consciência, sair para conquistar o título de esposa.
Sem peso na consciência, porém não sem arrependimento. O
lugar para onde se mudou não era bom: os cômodos grandes e
vazios pareciam repletos de um terror apavorante. Assim que o dia
escurecia ela começava a sentir calafrios e medo. Estava morrendo
aos poucos com saudade da velha casa.
As longas tardes de domingo eram as mais difíceis. Não
acabavam nunca, nem elas nem a longa sequência de pensamentos
excruciantes que lhe ocupavam a cabeça.
Por fim houve um dia no mês de março, quando Sintram não
voltou da igreja para o jantar, em que ela adentrou o salão no andar
de cima e sentou-se ao piano. Aquele era seu último consolo. O
piano, que tinha um flautista e uma pastora pintados sobre o tampo
branco, era uma herança da antiga casa dos pais. Ela podia confiar
sua angústia ao instrumento, pois ele a entendia.
Mas não parece uma coisa ao mesmo tempo triste e ridícula?
Sabeis o que ela tocou? Uma polca – justo ela, que tinha o coração
tão contristado!
Não sabia tocar outra coisa. Antes que seus dedos se
enrijecessem em torno do batedor de claras e da faca de cozinha,
ela tinha aprendido a tocar aquela única polca. A música ainda lhe
habita os dedos, mas ela não sabe tocar nenhuma outra peça,
nenhuma marcha fúnebre, nenhuma sonata apaixonada, nem ao
menos uma canção popular lamentosa; somente aquela polca.
Ela toca-a sempre que tem uma confidência a fazer ao velho
piano. Toca-a quando tem vontade de chorar e também quando tem
vontade de rir. Tocou-a quando festejou o casamento, quando
chegou pela primeira vez à nova casa e tocava nesse momento.
As velhas cordas entendem-na bem: está amargurada,
amargurada.
Um viajante que passe e ouça a melodia da polca talvez pense
que o malvado patrão da fundição esteja a oferecer um baile para os
vizinhos e amigos, de tão alegre que soa. É uma melodia
extravagantemente alegre e divertida. E, com aquela polca, em
tempos idos ela chamava o sossego e afastava a fome na
propriedade de Berga. Quando aquela música soava, todos
compareciam ao baile. A polca dissipava a força do reumatismo
sobre as juntas e atraía cavalheiros octogenários para o salão. O
mundo inteiro poderia dançar ao som daquela polca, tão alegre soa
– mas a velha Ulrika chora.
Sintram tem criados zangados e irritadiços e animais bravos. Ela
sente falta de rostos amáveis e bocas sorridentes. Esse é o anseio
desesperado que a alegre polca interpreta.
As pessoas têm dificuldade para chamá-la de sra. Sintram. Todos
a chamam de srta. Dillner. Vede, esse é o sentido, que a melodia da
polca explique o arrependimento que sente em relação à vaidade
que a levou a buscar o título de esposa.
A velha Ulrika toca como se quisesse romper as cordas. São
muitas as vozes sobre as quais precisa triunfar: os lamentos dos
camponeses pobres, os impropérios dos trabalhadores sofridos, o
escárnio dos criados insolentes e acima de tudo a vergonha, a
vergonha de ser a esposa de um homem mau.
Foi ao som dessas notas que Gösta Berling dançou com a jovem
condessa Dohna. Marianne Sinclaire e seus muitos admiradores
dançaram a essa toada, e a senhora de Ekeby mexeu o corpo no
mesmo ritmo enquanto o belo Altringer ainda vivia. Ela os vê a
todos, casal após casal, unidos na juventude e na beleza. Uma onda
de alegria passava dos casais para ela, dela para os casais. Era a
polca que punha aquelas faces a enrubescer, aqueles olhos a
cintilar. Mas neste momento a velha Ulrika está separada de tudo
aquilo. Que soe a polca – são muitas as lembranças, são muitas as
doces lembranças sobre as quais precisa triunfar!
Ela toca para mitigar a angústia. O coração por pouco não
explode de horror quando vê o cachorro preto, quando ouve os
criados falarem aos sussurros sobre os touros pretos. Ela toca a
polca muitas e muitas vezes para mitigar a angústia.
E então percebe que o marido chegou em casa. Escuta quando
entra no cômodo e senta-se na cadeira de balanço. O barulho da
cadeira rangendo contra as tábuas do piso é tão familiar que ela
nem ao menos se vira.
E, durante todo o tempo que toca, o rangido prossegue. De
repente ela para de ouvir as notas, e resta apenas o rangido.
Pobre da velha Ulrika, tão atormentada, tão solitária, tão
indefesa, perdida em um país inimigo sem ter sequer um amigo para
quem se queixar, sequer um consolo a não ser aquele piano
desafinado, que lhe responde com uma polca!
É como um surto de riso durante um enterro, uma canção
báquica em uma igreja.
Ainda enquanto a cadeira de balanço range, ela de repente ouve
o piano rir de seu lamento, e se interrompe no meio de um
compasso. Levanta-se e vai até a cadeira de balanço.
Mas no instante seguinte ela se encontra desacordada no chão.
Não era o marido que estava sentado na cadeira de balanço, mas
outro – aquele cujo nome as crianças pequenas não ousam dizer,
aquele que as mataria de susto caso o encontrassem na solidão do
sótão.

*
Será que aquele que tem a alma saturada de lendas pode um dia
livrar-se dessa influência? O vento noturno uiva lá fora, uma figueira
e uma espirradeira açoitam o pilar da sacada com as folhas rijas, o
céu escuro se estende sobre as montanhas e eu, que me sento para
escrever na solidão da noite, com o lampião aceso e a cortina
aberta, eu, que agora estou velha e devia ser sábia, eu sinto os
mesmos calafrios subirem pelas minhas costas, como na primeira
vez em que ouvi essa história, e o tempo inteiro preciso tirar os
olhos do trabalho para ver se ninguém entrou e se escondeu no
canto mais escondido; preciso olhar da sacada para ver se não há
uma cabeça preta erguendo-se acima da balaustrada. Esse medo
não me deixa jamais, o medo despertado pelas velhas histórias em
que a noite é escura e a solidão profunda, e por fim afigura-se tão
profundo que preciso jogar longe a minha pena, encolher-me na
cama e puxar as cobertas até acima da cabeça.
O grande mistério secreto da minha infância foi Ulrika Dillner ter
sobrevivido àquela tarde. Eu não teria.
Por sorte, logo a seguir Anna Stjärnhök chegou a Fors, onde a
encontrou prostrada no assoalho do salão e tratou de reanimá-la.
Mas comigo não teria dado certo. Eu já estaria morta.
E se possível, meus amigos, eu queria poupar-vos de ver esses
velhos olhos chorarem.
E também que evitásseis o constrangimento de ter uma cabeça
grisalha a buscar abrigo em vosso peito, ou ainda mãos enrugadas
a vos abraçar em uma prece silenciosa. Que sejais poupados de
ver, afundados na tristeza, os velhos a quem não podeis consolar!
Afinal, qual é o lamento dos jovens? Eles têm forças, têm
esperança. Mas que miséria quando os velhos choram, que
desespero quando eles, que foram o alicerce de vossa juventude,
sucumbem a um lamento minguado!
Lá estava Anna Stjärnhök, ouvindo a velha Ulrika e pensando
que para ela não havia saída.
A velha chorava e tremia. Tinha o olhar desvairado. Ela falava e
falava, por vezes confusa, como se já não soubesse mais onde se
encontrava. As mil rugas que lhe sulcavam o rosto tinham o dobro
da profundidade normal; os cachos que lhe pendiam sobre os olhos
eram alisados pelas lágrimas; e toda aquela figura alta e magra
convulsionava-se e fungava.
Por fim Anna precisou dar fim àquela miséria. Havia tomado uma
decisão. Iria levá-la consigo de volta para Berga. Verdade que era a
esposa de Sintram, mas em Fors não poderia mais ficar. O patrão
haveria de enlouquecê-la se a mantivesse por lá. Anna Stjärnhök
decidiu levar a velha Ulrika embora.
Ah, como a pobrezinha alegrou-se e horrorizou-se com essa
decisão! Mas claro que não teria a coragem de abandonar a casa e
o marido. Sintram talvez mandasse aquele cão grande e negro em
seu encalço.
Mas Anna Stjärnhök venceu essa resistência, em parte com bom
humor, em parte com ameaças, e meia hora depois tinha-a a seu
lado no trenó. A própria Anna conduziu, e a velha Disa puxou o
trenó. A viagem foi terrível, pois março já ia avançado, mas para a
velha Ulrika foi bom andar mais uma vez no trenó familiar puxado
por aquela égua familiar, que fora uma fiel criada em Berga no
mínimo pelo mesmo tempo que ela.
Como naquele momento estivesse de bom humor e com a
consciência tranquila, aquela velha criada parou de chorar quando
as duas passaram por Arvidstorp, pôs-se a rir quando chegaram a
Högberg e, quando passaram por Munkeby, já estava contando
histórias da juventude, da época em que trabalhava na casa da
condessa em Svaneholm.
Chegaram às desertas e solitárias terras ao norte de Munkeby
por uma estrada irregular e pedregosa. O caminho passava por
todos os morros imagináveis, subindo até o topo em curvas lentas e
descendo de repente em um declive íngreme, mas fazia o menor
trajeto possível no fundo plano do vale, para logo encontrar uma
nova encosta a subir.
Estavam descendo o morro de Västratorp quando a velha Ulrika
calou-se de repente e agarrou com força o braço de Anna. Tinha os
olhos fixos em um grande cachorro preto à beira da estrada.
– Vê! – ela disse.
O cachorro avançou em direção à floresta. Anna mal o viu.
– Anda – disse Ulrika –, anda o mais rápido que podes! Agora
Sintram vai saber que fui embora.
Anna tentou dissipar aquela preocupação com uma risada, mas a
velha Ulrika insistiu.
– Logo vamos ouvir as sinetas do coche dele, como bem hás de
ver. Vamos ouvi-las antes de chegar ao topo do morro seguinte.
E, quando Disa resfolegou por um instante no topo de
Elofsbacken, o retinir de sinetas fez-se ouvir logo abaixo.
Nesse instante a velha Ulrika enlouqueceu de medo. Pôs-se a
tremer, a fungar e a se lamentar como havia feito pouco tempo
antes no salão de Fors. Anna queria incitar Disa, mas a égua
simplesmente virou a cabeça e a encarou com uma expressão de
surpresa inefável. Por acaso ela achava que Disa tinha esquecido
quando era hora do galope e quando era hora do passo? Será que
pretendia ensiná-la a puxar um trenó, justo a ela, que conhecia cada
pedra, cada ponte, cada portão, cada morro havia mais de vinte
anos?
Enquanto isso o retinir das sinetas ia chegando cada vez mais
perto.
– É ele, é ele! Eu reconheço as sinetas! – lamenta a velha Ulrika.
O som se aproxima. Às vezes revela-se tão intenso que Anna se
vira para ver se o cavalo de Sintram não teria a cabeça ao lado do
trenó, às vezes desaparece. As duas ouvem-no ora à direita, ora à
esquerda, mas não veem nenhum outro viajante. É como se apenas
o retinir das sinetas as acompanhasse.
E é desse modo, como quando se volta à noite de uma festa,
assim é naquele momento. As sinetas fazem soar melodias, cantam,
conversam, respondem. A floresta põe a reverberar o barulho que
fazem.
Anna Stjärnhök quase deseja que os perseguidores por fim
cheguem mais perto, para que assim possa ver Sintram e seu
alazão. Ela sente arrepios com o terrível retinir das sinetas.
– Essas sinetas são um verdadeiro tormento – diz.
E logo a palavra é repetida pelas sinetas. “Tormento”, elas
retinem. “Tormento, tormento, tormento, tormento”, cantam em todas
as melodias imagináveis.
Não fazia muito tempo, Anna tinha viajado por aquela mesma
estrada, perseguida por lobos. No escuro, tinha visto as presas
brancas escancaradas e pensado que teria o corpo despedaçado
pelos animais selvagens da floresta, mas mesmo assim não sentiu
medo. Jamais tinha vivido noite tão maravilhosa. Forte e belo fora o
cavalo que a puxara, forte e belo, o homem com quem
compartilhara o júbilo da aventura.
Ah, mas aquela velha égua, e aquela velha, indefesa e trêmula
companheira de viagem! Anna sente-se tão vulnerável que tem
vontade de chorar. Não encontra forma de fugir àquele terrível e
perturbador retinir das sinetas.
Por fim ela se cala e desce do trenó. Tinha de pôr fim àquilo. Por
que fugir, como se tivesse medo daquele canalha malvado e
desprezível?
Finalmente ela vê a cabeça de um cavalo surgir em meio ao
crepúsculo mais denso a cada instante que passava, um trenó
inteiro, e no trenó se encontra ninguém menos do que o próprio
Sintram.
Ela, no entanto, percebe que o trenó, o cavalo e o patrão da
fundição não parecem ter andado pela estrada, mas antes parecem
ter sido criados perante os olhos dela já naquele lugar, para então
surgir em meio ao crepúsculo tão logo houvessem ganhado um
corpo.
Anna joga as rédeas nas mãos de Ulrika e vai ao encontro de
Sintram.
Ele segura o cavalo.
– Veja só – ele diz –, que sorte! Minha cara srta. Stjärnhök,
permita-me pôr meu companheiro de viagem em seu trenó. Ele tem
de ir a Berga ainda hoje à noite, e tenho pressa em voltar para casa.
– Onde está o seu companheiro de viagem?
Sintram levanta o saco de couro e mostra a Anna um homem
adormecido no chão do trenó.
– Ele está um pouco bêbado – diz –, mas que importa? Está
dormindo, afinal. E além disso é um homem conhecido, srta.
Stjärnhök; é Gösta Berling.
Anna sente um calafrio.
– Bem, é como eu costumo dizer – prosseguiu Sintram. – Quem
abandona a pessoa amada vende-a para o cão. Foi assim que caí
em suas garras. Toda a gente acha que faz bem, claro. Que
abandonar é uma coisa boa, e que amar é uma coisa má.
– O que o patrão está dizendo? Sobre o que o patrão está
falando? – perguntou Anna, profundamente abalada.
– Estou dizendo que não devia ter permitido que Gösta Berling a
deixasse, srta. Anna.
– Foi a vontade de Deus, patrão.
– Claro, claro, é assim mesmo; abandonar é uma coisa boa, e
amar é uma coisa má. O bom Deus não gosta de ver as pessoas
felizes. Manda-lhes lobos no encalço. Mas e se não foi Deus quem
os mandou, srta. Anna? Não poderia ter sido eu a chamar meus
pequenos cordeiros cinzentos de Dovrefjäll para caçar aquele rapaz
e aquela moça? Imagine se fui eu a mandar os lobos, por não
querer sofrer com a perda de um dos meus! Imagine se não foi
Deus quem os mandou!
– O senhor não há de me fazer duvidar do que aconteceu, patrão
– Anna diz, com uma voz débil –, pois nesse caso estou perdida.
– Veja – diz Sintram, aproximando-se de Gösta Berling –, veja o
mindinho dele! Essa ferida não cicatriza nunca. Foi daqui que
tiramos o sangue quando ele assinou o contrato. Ele é meu. O
sangue tem uma força própria. Ele é meu, e somente o amor pode
libertá-lo; mas, se eu o mantiver comigo, há de tornar-se um
companheiro e tanto.
Anna Stjärnhök luta e luta para livrar-se do feitiço que tomou
conta dela. Aquilo é loucura, loucura. Ninguém pode entregar a alma
para o maléfico tentador. Mas ela já não controla os pensamentos, o
crepúsculo pesa acima dela enquanto a floresta permanece escura
e silenciosa. Ela não consegue evitar o terrível pavor daquele
momento.
– Será que a senhorita pretende dizer – continua o patrão da
fundição – que já não existe muito a arruinar em Gösta Berling? Não
pense assim! Acaso maltratou camponeses, traiu amigos pobres,
valeu-se de falsidade? Acaso, srta. Anna, foi o amante de mulheres
casadas?
– Começo a acreditar que o patrão seja o próprio cão!
– Então troquemos, srta. Anna! Leve Gösta Berling, leve-o e
case-se com ele! Fique com ele e dê dinheiro às pessoas de Berga!
Renuncio a ele em seu favor, pois a senhorita sabe que ele me
pertence. Pense que fui eu que mandei os lobos naquela noite, e
assim troquemos!
– O que o patrão deseja em troca?
Sintram abriu um sorriso.
– O que eu desejo? Ah, eu me contento com pouco. Quero
apenas essa velha senhora que se encontra no seu trenó, srta.
Anna.
– Tentador, Satanás – gritou Anna –, vade retro! Acaso hei de
trair uma velha amiga que confia em mim? Acaso hei de entregá-la
para ti, para que possas atormentá-la até que perca o juízo?
– Ora, ora, ora, acalme-se, srta. Anna! Pense no assunto! Ele é
um homem jovem e bonito, ela é uma velha cansada. Um dos dois
tem de ficar comigo. Quem a senhorita me concede?
Anna Stjärnhök pôs-se a rir de desespero.
– O patrão acha que vamos trocar almas como as pessoas
trocam cavalos no mercado de Broby?
– Exatamente. Mas, se a srta. Anna quiser, podemos fazer de
outra forma. Podemos refletir sobre a honra da família Stjärnhök.
E assim Sintram começa a chamar e a gritar pela esposa, que
está sentada na frente do trenó de Anna, e, para o indizível terror da
moça, Ulrika prontamente atende ao chamado, sai do trenó e
aproxima-se, trêmula e assustada.
– Veja, veja, que esposa obediente! – diz Sintram. – A srta. Anna
não pode evitar que ela venha quando o marido a chama. E agora
vou tirar Gösta do meu trenó e deixá-lo aqui. Deixo-o para sempre,
srta. Anna. Quem quiser que o pegue.
Sintram abaixa-se para levantar Gösta, porém no mesmo
instante Anna baixa o rosto, fixa-o bem nos olhos e bufa como um
animal em fúria:
– Em nome de Deus, volta para casa! Sabes quem está sentado
na cadeira de balanço do salão à tua espera? Queres mesmo fazer
com que aquele senhor espere?
Para Anna é quase o ponto alto dos horrores do dia testemunhar
o efeito que essas palavras têm sobre o malvado. Sintram puxa as
rédeas para si, dá meia-volta e retorna para casa, incitando o cavalo
aos gritos e chicotadas. A arriscada viagem segue morro abaixo
enquanto uma linha de faíscas surge por baixo de cascos e
pranchas em meio à fina neve de março.
Anna Stjärnhök e Ulrika Dillner encontram-se sozinhas na
estrada, porém não dizem uma palavra sequer. Ulrika estremece ao
perceber o olhar assustado de Anna, e esta não tem nada a dizer à
pobre velha, em cujo favor sacrificou o amado.
Ela queria chorar, enfurecer-se, rolar na estrada e espalhar neve
e areia sobre a cabeça.
Antes conhecera as delícias do amor; naquele instante conhecia-
lhe a amargura. Mas o que era sacrificar seu amor quando
comparado a sacrificar a própria alma do bem-amado?
As duas seguiram rumo a Berga com aquele mesmo silêncio,
mas, quando chegaram e a porta do salão se abriu, Anna Stjärnhök
desmaiou pela primeira e única vez na vida. Lá dentro, Sintram e
Gösta Berling conversavam tranquilamente. A bandeja de uísque
quente com especiarias estava servida. Os dois estavam lá por no
mínimo uma hora.
Anna Stjärnhök desmaiou, porém a velha Ulrika manteve-se
tranquila. Afinal, tinha notado que parecia haver algo de errado com
o homem que as seguira pela estrada.
Depois o capitão Uggla e a esposa resolveram o assunto com o
patrão da fundição, e foi decidido que a velha Ulrika permaneceria
em Berga. Sintram concordou de bom grado.
– Não queria levá-la à loucura – disse.

Ó filhos de nossos tempos!


Não exijo que ninguém acredite nessas velhas histórias. Podem
não ser nada além de um amontoado de mentiras e fantasias. Mas o
remorso que balança e torna a balançar sobre o coração até que
este se ponha a lamentar-se, como as tábuas no salão de Sintram
lamentavam-se sob o peso da cadeira de balanço; mas a dúvida
que soa nos ouvidos, como as sinetas retiniram para Anna Stjärnhök
na floresta deserta – quando é que se tornam mentiras e fantasias?
Ah, se é que um dia pudessem tornar-se!
O BELO PROMONTÓRIO NO LITORAL OESTE DO LAGO LÖVEN, ao redor do
qual as baías deslizam com ondas suaves, esse orgulhoso
promontório, onde se localiza a casa senhorial de Borg, é um local
que se deve galgar com cautela.
Jamais o Löven revela-se mais belo do que quando visto do alto
daquele cimo.
Ninguém pode saber o quanto é belo, esse lago dos meus
sonhos, enquanto não tiver visto, do promontório de Borg, a névoa
matinal dissipar-se por aquela superfície plácida; enquanto não tiver
visto, do pequeno gabinete azul onde tantas memórias residem, as
águas refletirem um pôr do sol vermelho pálido.
Mas assim mesmo eu te digo: não vás até lá!
Pois talvez sejas tomado pela vontade de permanecer nos velhos
salões sobre os quais pesam inúmeras tristezas, talvez queiras
tornar-te proprietário daquele belo terreno, e, se fores jovem, rico e
feliz, talvez lá queiras fazer, como tantos outros, um lar com uma
jovem esposa.
Não, é melhor não veres esse belo promontório, pois em Borg a
felicidade não habita. Sabe que, por mais rico, por mais feliz que
sejas ao mudar-te para lá, as velhas tábuas do assoalho,
impregnadas de lágrimas, logo hão de beber também as tuas
lágrimas, e aquelas paredes, capazes de fazer reverberar tantos
ecos, também hão de reunir os teus suspiros.
Um destino infeliz paira sobre aquela bela propriedade. É como
se a infelicidade estivesse sepultada naquele lugar, mas não
encontrasse paz na sepultura, e assim se reerguesse
continuamente para angustiar os vivos. Se eu fosse o senhor de
Borg, trataria de examinar o solo, tanto a terra pedregosa no parque
de espruces como o assoalho do porão e o rico húmus do terreno,
até encontrar o cadáver dessa bruxa carcomida pelos vermes, e
então eu a enterraria num túmulo em solo consagrado no cemitério
de Svartsjö. E durante o enterro eu não economizaria no pagamento
do sineiro, mas pediria que fizesse os sinos repicarem com força e
por muito tempo em homenagem àquela mulher, e mandaria
presentes suntuosos ao pastor e ao sineiro, para que, com preces e
cânticos redobrados, encomendassem-lhe a alma ao descanso
eterno.
Ou, se isso não resolvesse, em uma noite tempestuosa eu
permitiria ao fogo aproximar-se das paredes de madeira empenada
e destruir tudo, para que mais nenhuma pessoa se deixasse atrair
por aquele lar de infelicidade. A partir de então ninguém pisaria
naquele lugar condenado, e somente as gralhas pretas na torre da
igreja poderiam erigir uma nova construção na grande chaminé,
que, preta e terrível, erguer-se-ia acima das fundações
abandonadas.
Mas assim mesmo eu me sentiria angustiada quando visse as
chamas tomarem conta do teto, quando a fumaça densa, tornada
vermelha pelo brilho do fogo e repleta de faíscas, se espalhasse
pela velha propriedade do conde. Em meio aos estalos e ao
farfalhar eu teria a impressão de ouvir o lamento de lembranças
desvalidas, e no alto das chamas eu teria a impressão de ver
espectros perturbados flutuarem. Eu pensaria em como a tristeza
concilia e em como a desgraça embeleza, e choraria como se um
templo aos deuses de outrora tivesse sido condenado à ruína.
Mas cala-te, tu que não paras de falar em desgraças! Borg ainda
resplandece no alto do promontório, em meio ao parque dos
grandes espruces, e o solo coberto de neve cintila com o brilho
quente do sol em março, e no interior daquelas paredes ainda ecoa
o riso despreocupado da alegre condessa Elisabet.
Aos domingos ela vai à igreja de Svartsjö, próxima a Borg, e
reúne uma pequena companhia para o jantar. Costumam aparecer o
presidente do tribunal de Munkerud e a esposa, o capitão de Berga
e a esposa, o pastor e a esposa e também o malvado Sintram. Se
Gösta Berling estivesse por Svartsjö, andando pela superfície
congelada do lago Löven, a condessa tinha igualmente o hábito de
convidá-lo. Por que não convidar Gösta Berling?
A condessa não sabia que as más línguas faziam correr a notícia
de que Gösta ia com frequência à margem oeste apenas para vê-la.
Talvez fosse também para beber e jogar na casa de Sintram, mas
quanto a isso não se fazem muitas perguntas, pois todos sabem que
o corpo dele é de ferro, enquanto o coração é feito de outra matéria.
Ninguém acredita que possa ver um par de olhos cintilantes
emoldurados por cabelos louros que formam cachos ao redor de
uma fronte alva sem apaixonar-se.
A jovem condessa é boa com ele. Não há nada de estranho
nisso; ela é boa com todos. Põe crianças pobres com roupas
esfarrapadas no colo e, quando encontra um pobre-diabo
alquebrado a andar pelo campo, pede ao cocheiro que pare e leva-o
consigo no trenó.
Gösta costuma ficar no pequeno gabinete azul, de onde se tem
uma vista majestosa do lago, lendo poemas para a condessa. Não
pode haver mal nisso. Gösta não se esquece por um instante
sequer de que ela é uma condessa e ele, um aventureiro errante, e
faz-lhe bem conviver com uma pessoa que lhe pareça nobre e
sagrada. Apaixonar-se pela condessa seria o mesmo que
apaixonar-se pela rainha de Sabá, que adorna a galeria na igreja de
Svartsjö.
Ele deseja apenas servi-la, como um pajem serve à elevada
senhora, amarrando-lhe os cadarços dos patins, segurando-lhe o
novelo de lã, dirigindo-lhe o trenó. Não pode se cogitar um amor
entre os dois, mas ele é o homem certo para encontrar felicidade em
uma paixão romântica e inocente.
O jovem conde é quieto e sério, e Gösta mal cabe em si de tanta
alegria. Ele é o tipo de companhia que a jovem condessa deseja.
Ninguém que a vê, ninguém, pensa que seria o tipo de mulher a
levar consigo um amor proibido. Ela pensa em bailes, em bailes e
alegria. Queria que a terra fosse totalmente plana, sem pedras, sem
montanhas nem mares, para que se pudesse chegar a qualquer
lugar dançando. Queria dançar desde o berço até a sepultura em
delicados sapatos de seda.
Mas os boatos não costumam ser bondosos com mulheres
jovens.
Quando esses convidados chegam a Borg para o jantar, após a
refeição os senhores têm por hábito entrar nos aposentos do conde
para dormir e fumar, enquanto as senhoras costumam afundar-se
nas poltronas do salão e apoiar as veneráveis cabeças nos recostos
altos, mas a condessa e Anna Stjärnhök entram no gabinete azul e
trocam confidências intermináveis.
No domingo seguinte ao que Anna Stjärnhök levou Ulrika Dillner
de volta a Berga, novamente as duas sentaram-se por lá.
Não havia em toda a terra pessoa mais infeliz do que aquela
moça. Toda a jovialidade desaparecera, e sumida estava a zombaria
alegre que dispensava a tudo e a todos que dela se aproximavam.
Tudo o que aconteceu na viagem de volta para casa tornou a
afundar no mesmo crepúsculo de onde havia saído: não lhe resta
uma única impressão clara.
Ou melhor, resta uma, que lhe envenena a alma.
– E se não foi Deus que fez aquilo – ela costumava repetir para
si mesma –, e se não foi Deus que mandou os lobos?
Ela pede um sinal, pede um milagre. Procura no céu e na terra.
Mas não vê dedo nenhum estender-se das nuvens para apontar-lhe
o caminho. Nenhuma imagem de luz e névoa caminha à sua frente.
Quando se senta em frente à condessa no pequeno gabinete
azul, seu olhar cai sobre um pequeno buquê de hepáticas que a
condessa segura entre os dedos alvos. Com a velocidade de um
raio, ocorre-lhe que sabe onde aquelas hepáticas cresceram, que
sabe quem as colheu.
Não é preciso fazer perguntas. Onde, em toda aquela região, as
hepáticas nascem já no início de abril senão no bosque de bétulas
na encosta próxima de Ekeby?
Ela olha e olha para aquelas pequenas estrelas alegres, que
conquistam o coração de todos, para aquelas pequenas profetisas,
que, belas em si mesmas, também refletem o brilho de toda a
beleza que prenunciam, de toda a beleza que está por vir. À medida
que as observa, a alma de Anna Stjärnhök começa a ressoar de
fúria, a ribombar como o trovão, ensurdecedora como o relâmpago.
“Com que direito”, pensa, “a condessa Dohna traz nas mãos esse
buquê de hepáticas, colhido nas margens próximas de Ekeby?”
Todos eram tentadores: Sintram, a condessa, todas as pessoas
que queriam atrair Gösta Berling às coisas más; porém ela haveria
de protegê-lo, haveria de protegê-lo contra todos. Ainda que lhe
custasse o sangue do próprio coração, era o que haveria de fazer.
Anna Stjärnhök pensa que precisa dar um jeito de arrancar as
flores das mãos da condessa e jogá-las fora, pisoteá-las, destruí-las,
antes que as duas saiam do pequeno gabinete azul.
Pensa nisso e começa uma batalha contra as pequenas
florezinhas azuis. No salão, as velhas senhoras apoiam a veneranda
cabeça no encosto da poltrona sem pressentir nada; os senhores
soltam baforadas do cachimbo em harmonia e tranquilidade na sala
do conde, tudo é paz; somente no pequeno gabinete azul trava-se
uma batalha desesperada.
Como agem bem aqueles que mantêm a mão longe da espada,
aqueles que sabem aguardar em silêncio, manter o próprio coração
em paz e permitir que Deus assuma o comando! O coração
intranquilo sempre acaba perdido. O mal sempre torna o mal pior.
Mas Anna Stjärnhök acredita enfim ter visto o dedo na nuvem.
– Anna – diz a condessa –, conta-me uma história!
– Sobre o quê?
– Ah – diz a condessa, passando a mão alva sobre o buquê. –
Não tens uma história de amor, uma história de amar?
– Não, eu não sei nada sobre o amor.
– É o que dizes! Não existe por aqui um lugar chamado Ekeby,
um lugar repleto de cavalheiros?
– Claro – diz Anna –, existe aqui um lugar chamado Ekeby, onde
vivem homens que chupam o tutano da terra, que nos tornam
incapazes de realizar trabalho sério, que destroem nossa tenra
juventude e pervertem nossos gênios. Queres ouvir histórias a
respeito deles? Queres ouvir histórias de amor sobre esses
homens?
– Quero. Eu gosto dos cavalheiros.
E então Anna Stjärnhök fala, fala em estrofes breves, como um
velho hinário, pois sente-se quase sufocada por sentimentos
tempestuosos. O sofrimento oculto estremece por sob cada palavra,
e a condessa a escuta com um misto de temor e interesse.
– O que é o amor de um cavalheiro, o que é a fidelidade de um
cavalheiro? Uma amada à tarde, outra à noite; uma no oeste, outra
no leste. Nada é para ele demasiado alto, nada é demasiado baixo:
um dia é a filha do conde, outro dia é uma jovem mendiga. Nada na
terra é tão amplo quanto seu coração. Mas pobre, pobre daquela
que ama um cavalheiro! Pois tem de ir buscá-lo quando cai bêbado
à beira da estrada. Tem de observar em silêncio quando, na mesa
de jogo, ele põe fora a futura casa do filho. Tem de aguentar que se
tome de paixão por outras mulheres. Ah, Elisabet, se um cavalheiro
pede a uma mulher honrada que lhe conceda uma dança, ela devia
negar; se lhe oferece um buquê de flores, ela devia jogá-las no chão
e pisoteá-las; e, se ela o ama, seria melhor morrer do que desposá-
lo. Um dos cavalheiros era um pastor destituído. Tinha perdido a
batina por embriagar-se. Estava bêbado na igreja. Tinha bebido todo
o vinho da eucaristia. Já ouviste falar a respeito dele?
– Não.
– Assim que foi afastado do sacerdócio, passou a vagar de um
lado para outro como mendigo. Ele bebia como um condenado. E
era capaz de roubar para obter aguardente.
– Como é o nome dele?
– Ele já não está mais em Ekeby… A senhora de Ekeby cuidou
dele, deu-lhe roupas e convenceu tua sogra, a condessa Dohna, a
fazer dele o tutor do teu marido, o jovem conde Henrik.
– Um pastor destituído!
– Ah, ele era um homem jovem e robusto, com bons
conhecimentos. Não havia nada de errado com ele, a não ser no
que dizia respeito à bebida. A condessa Märta não era exigente.
Divertia-se com essas provocações ao preboste e ao pastor. Mas
ordenou que ninguém fizesse nenhuma menção à vida pregressa
daquele homem na frente de seus filhos. Caso isso acontecesse, o
filho perderia o respeito pelo tutor, e a filha tornar-se-ia incapaz de
suportá-lo, posto que era uma santa.
“E então ele veio a Borg. Parava logo ao atravessar a porta,
sentava-se na beira da poltrona, calava-se à mesa e fugia rumo ao
pátio assim que chegavam visitantes.
“Mas lá fora ele costumava encontrar, pelos caminhos ermos, a
jovem Ebba Dohna. Ela não gostava das ruidosas festas que
estrugiam nos salões de Borg desde que a condessa tornara-se
viúva. Não gostava mais de encarar o mundo com um desafio no
olhar. Era uma moça gentil, muito tímida. Mesmo com 17 anos já
completos, era, porém, uma menina fraca, embora muito bela, com
olhos castanhos e um rubor delicado nas faces. O corpo tenro e
esbelto inclinava-se de leve para a frente. As mãozinhas enfiavam-
se nas suas com uma pressão tímida. A boquinha era a mais
silenciosa de todas, e tinha os lábios mais sérios. Ah, e a voz,
aquela voz adorável, que articulava as palavras com esmero e
calma, porém jamais com o vigor da juventude, jamais com o calor
da juventude, mas sempre se arrastando com uma entonação
cansada que parecia o acorde final de um músico exausto!
“Ela não era como as outras. Os pezinhos tocavam o chão com
tanta leveza, com tanta discrição, que era como se fosse não mais
do que uma fugitiva assustada aqui nesta terra. Ela mantinha os
olhos fixos no chão para não se perturbar na contemplação de
grandiosas visões espirituais. Sua alma afastara-se da terra desde a
mais tenra infância.
“Quando era pequena, a avó contava-lhe fábulas, e certa tarde
as duas estavam sentadas ao pé da lareira, mas as fábulas haviam
se acabado. Carsus e Moderus, Lunkentus e a bela Melusina já
tinham surgido e vivido. Como as chamas da lareira, tinham
ganhado vida e brilhado, porém naquela altura os heróis estavam
mortos, e as belas princesas, transformadas em carvão, e assim
seria até que o próximo fogo os despertasse novamente. Mas assim
mesmo a mãozinha da menina repousava sobre o vestido da
senhora, e ela passou os dedinhos de leve por aquela seda, por
aquele tecido divertido, que fazia sons como os de um pequeno
pássaro. E esse roçar foi sua prece, visto que era uma dessas
crianças que nunca pedem com palavras.
“Então a velha começou a contar, em voz mansa, a história de
um menino nascido em Judá, um menino muito pequeno, que havia
nascido para tornar-se um grande rei. Os anjos encheram a terra de
canções de louvor quando ele nasceu. Os reis do Oriente chegaram,
orientados pela estrela-guia, e presentearam-lhe com ouro e
incensos, e os velhos e as velhas predisseram toda a magnificência
vindoura. Esse menino cresceu e tornou-se mais belo e mais sábio
do que todas as outras crianças. Aos 12 anos, já detinha mais
sabedoria do que os altos sacerdotes e os escribas.
“E então a velha contou-lhe sobre a coisa mais linda que já
existiu sobre a terra, a história desse menino, enquanto viveu em
meio aos homens, aos homens maus que não quiseram reconhecê-
lo como rei.
“Contou-lhe que o menino transformou-se em homem, porém os
milagres acompanhavam-no a toda parte.
“Tudo na terra servia-o e amava-o, a não ser os homens. Os
peixes se deixavam capturar em sua rede, o pão enchia-lhe as
cestas, a água transformava-se em vinho quando assim desejava.
“Os homens, porém, não deram uma coroa de ouro a esse
grande rei, tampouco um trono reluzente. Ele não tinha ao redor um
séquito de cortesãos para fazer-lhe mesuras. Deixaram-no andar
entre os homens como um mendigo.
“Mas assim mesmo ele foi muito bom para com os homens, esse
grande rei. Curou suas doenças, devolveu a visão aos cegos e
ressuscitou os mortos.
“‘Mas, disse a velha, ‘as pessoas não quiseram esse bom rei
como senhor.
“‘Mandaram soldados contra ele e o prenderam, e para humilhá-
lo deram-lhe uma coroa, um cetro e um manto de seda e o fizeram
caminhar até o local da execução carregando uma pesada cruz. Ah,
minha pequena, esse bom rei amava as montanhas altas! Durante a
noite costumava galgá-las para conversar com os habitantes
celestes, e durante o dia gostava de sentar-se na encosta e
conversar com aqueles dispostos a ouvi-lo. Mas dessa vez levaram-
no à montanha para crucificá-lo. Cravaram-lhe pregos nas mãos e
nos pés e penduraram esse bom rei numa cruz, como se fosse um
ladrão e um criminoso.
“‘E as pessoas humilharam-no. Somente a mãe e os amigos dele
choraram aquela morte, ocorrida antes que pudesse tornar-se rei.
“‘Ah, como as coisas mortas lamentaram aquela morte!
“‘O sol perdeu o brilho, e a montanha estremeceu; a cortina do
templo rasgou-se e os túmulos abriram-se para os mortos, para que
se levantassem e mostrassem seu luto’.
“Então a pequena apoiou a cabecinha no colo da avó e chorou
como se o coração estivesse prestes a explodir.
“‘Não chores, minha pequena; esse bom rei ergueu-se do
sepulcro e ascendeu ao encontro do pai, no céu.’
“‘Mas, vó’, fungou a pobrezinha, ‘então ele nunca teve um reino?’
“‘Ele está sentado à direita de Deus no céu.’
“Mas isso não foi o bastante para consolá-la. A menina chorou
daquele jeito indefeso e desprendido como somente as crianças
sabem chorar.
“‘Por que foram tão malvados com ele? Por que inventaram de
ser tão malvados com ele?’
“A velha ficou temerosa ao presenciar aquela tristeza
arrebatadora.
“‘Diz, vó, diz que não contaste direito a história! Diz que não
acabou assim! Diz que não foram tão malvados com o bom rei! Diz
que ele teve um reino na terra!’
“A menina abraçou a velha e fez os pedidos com lágrimas que
corriam incessantemente.
“‘Menina, menina’, disse então a avó a fim de consolá-la,
‘existem pessoas que acreditam que um dia ele há de voltar. E
então a terra há de estar sob o poder dele para que a governe. E
esse há de ser um reinado maravilhoso para esta bela terra. Um
reinado de mil anos. E então os bichos ruins vão tornar-se bons: as
crianças pequenas vão brincar junto aos ninhos das serpentes, e os
ursos e as vacas hão de juntos pastar. Ninguém mais vai machucar
ou destruir os outros; as lanças serão transformadas em foices e as
espadas serão reforjadas como arados. E tudo vai ser alegria e
brincadeira, porque os bons hão de ser os donos da terra’.
“Nesse momento o rosto da pequena se iluminou por trás das
lágrimas.
“‘Então o bom rei vai ter um trono, vó?’
“‘Um trono de ouro.’
“‘E criados e um séquito e uma coroa de ouro?’
“‘Exato.’
“‘E ele vem logo, vó?’
“‘Ninguém sabe quando ele vem.’
“‘Será que eu posso me sentar em um banquinho aos pés dele?’
“‘Claro que pode!’
“‘Vó, estou tão contente!’, disse a pequena.
“Tarde após tarde, por vários invernos, aquelas duas sentaram-
se ao pé da lareira e conversaram sobre o bom rei e seu reino. A
pequena sonhava dia e noite com o reino de mil anos. Jamais se
cansava de enfeitá-lo com todas as belezas que era capaz de
imaginar.
“É assim com muitas das crianças silenciosas que nos rodeiam:
simplesmente trazem em si um sonho oculto que não ousam
mencionar. Pensamentos maravilhosos habitam por baixo dos
cabelos macios, os ternos olhos castanhos veem coisas
maravilhosas por trás das pálpebras cerradas, e assim muitas belas
virgens tomam o céu como noivo. Muitas faces coradas desejam
roçar-se nos pés do bom rei com o óleo da unção e enxugá-lo com
os cabelos.
“Ebba Dohna não se atrevia a mencionar o assunto para
ninguém, mas desde aquela tarde vivia apenas para o reino de mil
anos do Senhor, à espera de que retornasse.
“Quando o vermelho do pôr do sol abria os portões do ocidente,
ela se perguntava se não sairia de lá, resplandecendo com uma luz
suave, seguido por milhões de anjos, e se não passaria em frente a
ela e permitiria que tocasse as dobras de seu manto.
“Ela também gostava de pensar nas mulheres devotas, que
tomavam o hábito e nunca mais tiravam os olhos do chão, mas
trancavam-se na paz de um claustro cinzento, na escuridão das
pequenas celas para que sempre pudessem ter visões brilhantes,
surgidas em meio à noite da alma.
“E assim ela cresceu, e assim era quando ela e o novo tutor
conheceram-se nos ermos caminhos do parque.
“Não quero falar mal dele mais do que o necessário. Quero
acreditar que amava essa menina, que logo o escolheu como guia
em andanças solitárias. Acredito que a alma dele recuperou as asas
que havia perdido quando andou ao lado dessa menina silenciosa,
que jamais havia feito confidências a nenhuma outra pessoa. Penso
que ele também deve ter se sentido como um menino bom, devoto e
recatado.
“Mas, se a amava, por que não pensou que não poderia haver
presente pior a oferecer do que seu amor? Ele, um dos rejeitados do
mundo, o que pretendia, o que pensava ao andar lado a lado com a
filha da condessa? O que pensava esse pastor destituído, quando
ela lhe confiou os sonhos pios que tinha? O que queria ele, que
tinha sido e voltaria a ser um brigão e um bêbado sempre que a
oportunidade se apresentasse, ao lado dela, que sonhava com um
noivo celeste? Por que não fugiu para longe, muito longe dela? Não
seria melhor para ele se tivesse errado como um mendigo e um
ladrão por aquele lugar, em vez de aparecer nas aleias de coníferas
e mais uma vez tornar-se bom, devoto e recatado, quando já não
era possível reviver a vida que levara antes, e já não mais era
possível evitar que Ebba Dohna o amasse?
“Mas não aches que ele tinha o aspecto de um pobre-diabo
embriagado, com o rosto pálido e os olhos injetados! Não, era um
homem grandioso, belo e sadio de corpo e alma. Tinha o porte de
um rei e um corpo de ferro, que nada sofrera com a vida
desregrada.”
– E ele ainda vive? – perguntou a condessa.
– Ah, não, acredito que já deva ter morrido. Faz muito tempo que
tudo isso aconteceu.
Anna Stjärnhök sente o âmago estremecer por causa do que faz.
Começa a pensar que jamais há de revelar à condessa quem é
aquele homem sobre quem fala, e que há de fazê-la pensar que
está morto.
– Naquela época ele ainda era jovem – ela diz, voltando à
história. – A alegria de viver reacendeu-se dentro dele. Tinha o dom
das palavras bonitas, e do coração leve e arrebatado.
“Uma tarde, ele falou com Ebba Dohna sobre o amor. Ela não
respondeu, disse apenas aquilo que a avó lhe havia contado em
uma tarde de inverno e descreveu o país de seus sonhos. Depois
ela o levou a fazer uma promessa. Fez com que jurasse que seria
um pregador da palavra de Deus, um dos homens que haviam de
preparar o caminho do Senhor, para apressar seu retorno.
“O que ele faria? Era um pastor destituído, e nenhum caminho
estaria para ele tão fechado como aquele pelo qual ela pretendia
seguir. Mas ele não se atreveu a dizer toda a verdade. Não tinha
coragem de entristecer a doce menina a quem tanto amava. Ele
prometeu tudo o que ela havia pedido.
“Depois não houve mais palavras entre os dois. Estava claro que
um dia ela seria a esposa dele. Aquele não era um amor de beijos e
carícias. Ele mal se atrevia a aproximar-se dela. Ela era sensível
como uma flor delicada. Mas aqueles olhos castanhos por vezes
desviavam-se do chão e procuravam os dele. Nas noites de luar,
quando sentavam-se na varanda, ela apertava o corpo contra o
dele, e então ele beijava-lhe os cabelos sem que ela percebesse.
“Mas, como sabes, o pecado dele consistia em esquecer tanto o
passado como o presente. O fato de que era pobre e humilde era
um detalhe que ele estaria mais do que disposto a esquecer; mas
devia saber que chegaria o dia em que, na alma dela, o amor havia
de erguer-se contra o amor, a terra contra o céu, e então ela seria
obrigada a escolher entre ele e o senhor resplandecente do reino de
mil anos. E ela não era o tipo de mulher capaz de travar uma
batalha dessas.
“Então passou-se o verão, o outono, o inverno. Quando a
primavera chegou e o gelo derreteu, Ebba Dohna adoeceu. A terra
congelada dos vales derreteu, a água desceu pelos morros, os
lagos tornaram-se perigosos e as estradas impossíveis de percorrer
com trenós e carroças.
“E então a condessa Dohna quis que buscassem um médico de
Karlstad. Não havia nenhum outro mais próximo. Mas a ordem foi
em vão. Não houve jeito de convencer os criados a partir em
viagem, fosse à base de pedidos ou ameaças. Prostrou-se de
joelhos na frente do cocheiro, mas ele se negou. Ela teve cãibras e
convulsões de tristeza por causa da filha. É uma mulher tão intensa
na dor quanto na alegria, a condessa Märta.
“Ebba Dohna estava acamada, com pneumonia, e sua vida corria
perigo, mas não era possível buscar um médico.
“Então o tutor foi a Karlstad. Fazer essa jornada naquela situação
era pôr em jogo a própria vida, mas ele a fez mesmo assim.
Precisou atravessar gelo quebradiço e corredeiras frenéticas; às
vezes tinha de cavar degraus no gelo para o cavalo, e às vezes
tinha de tirá-lo da profunda camada de barro que recobria a estrada.
Contam que o médico se recusou a acompanhá-lo, mas que ele, de
pistola na mão, obrigou-o a fazer a viagem.
“Quando retornou, a condessa estava prestes a jogar-se a seus
pés. ‘Leve tudo!’, disse. ‘Diga o que o senhor deseja, o que o senhor
exige, minha filha, minhas posses, meu dinheiro!’
“‘Sua filha’, respondeu o tutor.”
De repente Anna Stjärnhök se cala.
– E depois? E depois? – perguntou a condessa Elisabet.
– Acho que por ora é o bastante – responde Anna, uma dessas
pobres almas que vivem sob a angústia e o temor da dúvida. Faz
uma semana inteira que se encontra nessa situação. Não sabe mais
o que quer. Aquilo que em um momento parece certo no momento
seguinte parece errado. E naquele instante ela deseja que jamais
tivesse começado aquela história.
– Começo a suspeitar que estejas brincando comigo, Anna. Não
entendes que eu preciso ouvir o fim dessa história?
– Não há muito mais a contar. O momento da batalha chegou
para a jovem Ebba Dohna. O amor ergueu-se contra o amor, a terra
contra o céu.
“A condessa Märta contou para a filha sobre a incrível viagem
que o jovem tutor havia feito para salvá-la, e disse-lhe que em troca
haveria de conceder-lhe sua mão em matrimônio.
“A jovem srta. Ebba ia tão avançada no caminho da
convalescença que já se encontrava deitada em um sofá,
completamente vestida. Estava pálida, exausta e ainda mais quieta
do que de costume.
“Ao ouvir essas palavras, ela fixou os olhos castanhos na mãe
com uma expressão crítica e disse: “‘Mãe, então me deste para um
pastor destituído, para um homem que perdeu o direito de servir a
Deus, para um homem que já foi um ladrão e um mendigo?’
“‘Mas, filha, quem foi que te disse essas coisas? Achei que de
nada sabias.’
“‘Eu soube. Ouvi teus convidados falarem a respeito dele no
mesmo dia em que adoeci.’
“‘Mas, filha, pensa que esse homem salvou tua vida!’
“‘Penso que ele me traiu. Devia ter me dito quem era.’
“‘Ele disse que tu o amas.’
“‘Eu o amei. Mas não posso amar um homem que me traiu.’
“‘Mas de que forma ele te traiu?’
“‘Tu não compreenderias.’
“Ela não queria falar com a mãe sobre o sonho com o reino de
mil anos que o amado haveria de ajudá-la a tornar realidade.
“‘Ebba’, disse a condessa, ‘se o amas, não deves fazer
perguntas sobre a vida que ele levou, mas casar-te com ele. O
marido de uma condessa Dohna torna-se rico e poderoso o bastante
para que os pecados de sua juventude sejam perdoados’.
“‘Não me importo com os pecados da juventude dele, mãe; e é
por isso, porque ele não tem como se tornar aquilo que eu gostaria
que se tornasse, que eu não posso me casar com ele.’
“‘Ebba, lembra-te de que eu empenhei minha palavra!’
“A menina ficou pálida como um cadáver.
“‘Mãe, estou dizendo que, se me casares com ele, estarás a me
afastar de Deus.’
“‘Eu escolhi a tua felicidade’, disse a condessa. ‘Não tenho
dúvidas de que hás de ser feliz com esse homem. Afinal, já
conseguiste transformá-lo em um santo. Resolvi ignorar as
exigências da nobreza e esquecer que ele é pobre e desprezado
para que tivesses a oportunidade de endireitá-lo. Sei que estou
fazendo o que é certo. E tu sabes que eu desprezo todos os antigos
preconceitos.’
“Mas tudo isso ela diz simplesmente porque não tolera que
outras pessoas ponham-se contra sua vontade. E talvez porque
realmente pensasse aquilo que disse. Não é fácil compreender a
condessa Märta.
“A menina passou mais um bom tempo deitada no sofá depois
que a condessa a deixou. E então a batalha começou. A terra
ergueu-se contra o céu, o amor contra o amor, mas o amado da
infância saiu vitorioso. Lá de onde estava deitada, daquele sofá, ela
viu o céu do ocidente refulgir com um pôr do sol maravilhoso.
Pensou que aquele era um aceno do bom rei, e, como não pudesse
ser fiel a ele caso vivesse, ela decidiu morrer. Não poderia fazer
outra coisa quando a mãe desejava que pertencesse àquele que
não poderia ser um servo do bom rei.
“Ela foi até a janela, abriu o caixilho e deixou que o ar úmido e
frio do crepúsculo soprasse por todo o seu pobre e débil corpo.
“Para ela seria fácil entregar-se à morte. Era uma certeza caso a
doença retornasse, como de fato retornou.
“E, Elisabet, ninguém sabe melhor do que eu que ela procurou a
morte. Eu a encontrei junto da janela. Ouvi seus delírios febris. Ela
gostava de me ter à cabeceira nos últimos dias de vida.
“Fui eu que a vi morrer, fui eu que a vi quando à tarde estendeu
os braços em direção ao ocidente refulgente e morreu, sorrindo,
como se tivesse visto alguém sair do brilho do pôr do sol para
encontrá-la. E também fui eu que tive de levar a última mensagem
para aquele que tinha amado. Tive de pedir desculpas por ela não
ter se casado com ele. O bom rei não havia permitido.
“Mas não me atrevi a dizer para aquele homem que ele tinha sido
o assassino dela. Não me atrevi a pôr o peso de um tormento
desses sobre os ombros dele. E no entanto ele, que se valeu da
mentira para obter o amor dela, acaso não foi o assassino dela?
Não foi, Elisabet?”
A condessa Dohna já não acaricia aquelas flores azuis. De
repente ela se levanta e deixa o buquê cair ao chão.
– Anna, só podes estar brincando comigo. Dizes que essa é uma
velha história, e que esse homem encontra-se morto há tempos.
Mas eu sei que mal se passaram cinco anos desde a morte de Ebba
Dohna, e falas como se tu mesma houvesses participado disso tudo.
Não és velha. Diz-me quem é esse homem!
Anna Stjärnhök começa a rir.
– Pediste-me que eu contasse uma história de amor. E agora
ouviste uma que te custou lágrimas e preocupações.
– Estás a dizer que mentiste?
– Não contei nada além de mentiras e fantasias!
– Anna, és realmente má.
– Pode muito bem ser. Digamos que não sou demasiado feliz.
Mas as mulheres estão despertas, e os homens dirigem-se ao
salão. Vamos para lá!
No patamar da porta, Anna Stjärnhök é parada por Gösta Berling,
que chega à procura daquelas moças.
– Peço que tenham paciência comigo – ele diz, em meio às
risadas. – Prometo que não vou atormentá-las por mais do que dez
minutos, mas agora precisam ouvir versos!
Ele conta que naquela noite teve um sonho vívido como
raramente tinha, e no sonho escrevia versos. Ele, a quem as
pessoas chamavam de “poeta”, muito embora a alcunha fosse até
então injustificada, tinha se levantado no meio da noite, e, meio
dormindo e meio acordado, pôs-se a escrever. Pela manhã
seguinte, encontrara um poema inteiro em cima da escrivaninha. Ele
jamais teria se imaginado capaz de fazer aquilo. E naquele instante
as mulheres haveriam de ouvi-lo.
Ele começa a ler:

A lua surgiu, trazendo a mais bela hora do dia.


Desde a clara abóbada azul-celeste,
derramou sobre a varanda e a hera seu brilho,
sob o qual em um vaso estremece
o rubro intenso com remates d’ouro de um lírio.
Nos largos degraus da escadaria
estávamos sentados, jovens e anciões satisfeitos,
em silêncio cantando em nossos peitos
as velhas canções na mais bela hora do dia.

Os resedás sopraram delicioso perfume,


e dos recantos escuros em meio à folhagem
sombras vieram pela grama coberta de orvalho.
Da escuridão do corpo a alma lança-se à viagem
para as regiões onde o saber humano é falho,
para as alturas onde azul refulge um lume
vazio de estrelas no firmamento.
Ah, quem pode escapar ao sentimento
com o noturno espetáculo de sombras e perfume?

Uma rosa perdeu a pétala derradeira,


sem que o vento precisasse derrubá-la.
Pensamos: “Bem parte quem a vida assim deixa,
sumindo no espaço como um som que se cala,
como folhas de outono que ao nada tornam sem queixa.
Longa seja dos anos a fileira:
perturbamos a natureza para gozar nossos afetos.
A morte é a paga dos vivos: no fim vamo-nos quietos,
como a rosa que perde a pétala derradeira”.

Com asas a ruflar passou-nos um morcego,


que surgia onde quer que brilhasse o luar.
Mas logo surgiu nas almas confrangidas
a dúvida que nos faz meditar,
a dúvida que pesa sobre nossas vidas:
“Ah, para onde vamos, onde encontrar sossego
quando já não galgarmos os verdes campos da terra?”.
Para quem aponta o rumo ao espírito que erra,
mais fácil seria apontar o rumo a um morcego.

Então ela pôs-me no ombro a cabeça, os suaves cabelos,


ela, que me amava, e sussurrou-me no ouvido:
“Não creias que as almas voem a distante plaga;
quando eu morrer, não aches que rumo ao desconhecido!
A alma da pessoa amada pode acolher o espírito que vaga
e o meu há de morar contigo”.
Que angústia! Meu peito sofre com uma dor atroz.
Logo ela morreria. Seria a última vez para nós?
Seria o meu último beijo nos bastos cabelos?

Anos passaram-se desde então. De quando em vez


torno ao velho local no silêncio da madrugada,
porém tremo ao ver na varanda e na hera o luar.
Ele, que sabe o quanto por lá beijei minha amada,
ele, que gostava de o brilho trêmulo misturar
às lágrimas que eu vertia nos cabelos dela.
Lembrar é sofrer. Que tormento para minha pobre alma aflita
saber que ele é a casa onde ela hoje habita!
Que castigo espera quem se prende a alma tão pura uma vez?

– Gösta – diz Anna, em tom jocoso, enquanto sente na garganta


um nó de angústia –, dizem a seu respeito que o senhor viveu mais
poemas do que outros teriam escrito, sem ter feito mais nada ao
longo da vida inteira; mas, se quer saber de uma coisa, eu acho que
o senhor é melhor poeta à sua maneira. Dá para notar que isso foi
um trabalho feito à noite, como o senhor bem sabe.
– Não tens nenhuma delicadeza.
– Vir até aqui para ler um poema sobre morte e desgraça! O
senhor devia ter vergonha!
Gösta já não a ouve. Tem os olhos fixos na jovem condessa. Ela
permanece sentada e altiva, imóvel como uma estátua. Gösta tem a
impressão de que ela está prestes a desmaiar.
Mas, com enorme dificuldade, uma palavra enfim sai daqueles
lábios.
– Sai daqui! – ela diz.
– Quem? Eu?
– Sai daqui, pastor! – ela balbucia.
– Elisabet, pare com isso!
– Eu quero esse pastor beberrão fora da minha casa!
– Anna, Anna – Gösta protesta –, o que está acontecendo?
– É melhor que vás embora, Gösta.
– Por que hei de ir embora? O que significa isso tudo?
– Anna – diz a condessa Elisabet –, diz para ele, diz para ele…!
– Não, condessa, diz tu!
A condessa range os dentes e executa um movimento forçado.
– Sr. Berling – ela diz, aproximando-se dele –, o senhor tem uma
capacidade admirável de fazer com que as pessoas esqueçam seu
passado. Eu mesma não sabia disso até hoje. Mas acabo de ouvir a
história sobre a morte de Ebba Dohna, e de saber que a descoberta
de que amava um homem indigno acabou por matá-la. Seu poema
me levou a compreender que esse homem é o senhor. Não entendo
como um homem com o passado que o senhor teve poderia
apresentar-se na companhia de mulheres honradas. Isso eu não
consigo entender, sr. Berling. Será que agora fui clara o bastante?
– Foi, condessa. Eu gostaria apenas de dizer umas poucas
palavras em minha defesa. Sempre acreditei, durante o tempo
inteiro, que a senhora sabia de tudo a meu respeito. Nunca tive a
intenção de esconder o que quer que fosse, mas não é nada
agradável bradar os maiores infortúnios da própria vida pelas
estradas.
Ele vai embora.
E no mesmo instante a condessa Dohna finca o pezinho em cima
do pequeno buquê com estrelas azuis.
– Fizeste agora o que eu queria – diz Anna Stjärnhök, em tom
duro, para a condessa –, mas este é também o fim de nossa
amizade. Não imagines que eu possa desculpar a maldade que
demonstraste para com ele. Mandaste-o embora, ridicularizaste-o e
magoaste-o, enquanto eu, eu haveria de segui-lo até a cadeia, até o
pelourinho, se fosse o caso. Sou eu quem há de velar por ele, quem
há de protegê-lo. Fizeste o que eu queria, mas jamais vou perdoar-
te.
– Mas, Anna, Anna!
– Quando te conto uma história dessas, achas mesmo que sinto
alegria? Acaso não passei esse tempo aqui sentada, arrancando o
coração do peito aos pedacinhos?
– E por que fizeste isso?
– Por quê? Porque, bem, porque eu não queria, eu não queria
que ele se tornasse o amante de uma mulher casada…
SILÊNCIO, POR FAVOR, SILÊNCIO!
Sinto minha cabeça zumbir. Deve ser a mamangava que chega
voando. Não, quietos! Sintam esse perfume! Juro – não é o cheiro
de artemísia e lavanda e cerejeira e lilás e narciso? Que maravilha
ter uma experiência dessas numa tarde cinzenta de outono, em
plena cidade! Basta eu começar naquele bendito pedacinho de terra
e logo tudo começa a zumbir e a exalar perfumes ao meu redor, e
sem que eu dê por mim me transporto a um pequeno roseiral
quadrado, repleto de flores e protegido por uma sebe de alfena. Nos
cantos erguem-se caramanchões de lilases guarnecidos por bancos
estreitos de madeira, e ao redor dos canteiros, que têm formato de
flores e estrelas, passam estradinhas cobertas de fina areia branca.
Em três lados do roseiral ergue-se a floresta. A tramazeira e a
cerejeira, que são flores mais ou menos civilizadas e bonitas, são as
mais próximas, e mesclam seus perfumes ao dos lilases. Um pouco
mais além erguem-se as bétulas, e depois surge a floresta de
espruces, a verdadeira floresta, silenciosa e escura e barbuda e
pinicante.
E no quarto lado há uma cabaninha cinzenta.
Esse roseiral que agora recordo pertencia, em idos de 1820, à
velha sra. Moreus, de Svartsjö, que vivia de fazer cobertas para os
camponeses e de preparar comida para festas.
Caros amigos! Dentre tudo aquilo que vos desejo, eu gostaria de
mencionar antes de qualquer coisa um roseiral e um bastidor de
bordar edredons. Desejo-vos um grande e desgastado bastidor de
bordar edredons à moda antiga, com roscas gastas e catracas
batidas, daqueles em que cinco ou seis pessoas trabalham juntas,
competindo em uma disputa de bordados para ver quem faz pontos
bonitos no avesso da coberta, junto ao qual se comem maçãs
assadas e se conversa e se brinca de “viagem para a Groenlândia”
e de “passa-anel” e se ri até que os esquilos da floresta caiam de
cabeça no chão, de tão assustados. Um bastidor para o inverno,
meus caros amigos, e um roseiral para o verão! Não um jardim,
onde é preciso gastar mais dinheiro do que vale o prazer que nos
proporciona, não, mas um roseiral, como antigamente se dizia!
Devíeis ter um assim, para que dele cuidásseis com vossas próprias
mãos. Com pequenos arbustos de roseira-brava no alto de
pequenos montes de terra e uma guirlanda de miosótis ao redor de
tudo, onde a grande e volúvel papoula, que se semeia por conta
própria, pudesse espalhar-se por toda parte, tanto na terra dos
canteiros como na areia dos caminhos, e onde existisse também um
sofá de turfa crestada, no qual haveriam de crescer aquilégias e
fritilárias, tanto no assento como no encosto.
A velha sra. Moreus tinha sido dona de muitas coisas em sua
época. Tinha três filhas alegres e trabalhadoras e uma pequena
cabana à beira da estrada. Tinha moedas guardadas no fundo do
baú, xales de seda antigos, cadeiras de espaldar reto e
conhecimento sobre muitas coisas úteis a quem precisa ganhar o
pão de cada dia por conta própria.
Mas a melhor coisa que tinha era o bastidor de bordar edredons,
que lhe dava trabalho o ano inteiro, e o roseiral, que lhe dava alegria
durante o verão.
Também cumpre dizer que na pequena cabana da sra. Moreus
havia uma inquilina, uma pequena mademoiselle bastante séria,
com cerca de 40 anos de idade, que morava em uma água-furtada
no sótão. Mademoiselle Marie, como sempre a chamavam, tinha
opiniões próprias acerca de muitos assuntos, como em geral
acontece a todos aqueles que passam muito tempo sozinhos e
deixam os pensamentos vagarem sobre as coisas que viram com os
próprios olhos.
A mademoiselle Marie acreditava que o amor era a raiz e a
origem de todo o mal neste mundo repleto de tristezas.
Todas as noites, antes de dormir, tinha por hábito fazer uma
oração de mãos postas. Depois de orar o pai-nosso e pedir a
bênção do Senhor, encerrava sempre pedindo a Deus que a livrasse
do amor.
– Isso só me traria miséria – dizia. – Sou velha e feia e pobre.
Não, preciso ao menos ser poupada de me apaixonar!
Ela passava dia após dia em frente à janela na pequena cabana
da sra. Moreus, fazendo cortinas e toalhas de mesa em ponto
montanhês. Depois vendia tudo para os camponeses e os patrões.
Ponto a ponto, fazia uma cabana para si.
Pois uma pequena cabana no morro com vista para a igreja de
Svartsjö era o que queria; uma cabana bem no alto do morro, com
uma vista livre e desimpedida, era o sonho daquela mulher. Mas ela
não queria sequer ouvir falar a respeito do amor.
Quando nas tardes de verão ouvia o violino soar na encruzilhada
onde ficava a escada que levava ao outro lado da cerca, e na qual o
músico se sentava, e os jovens rodopiavam com a polca até que a
poeira se erguesse, ela dava uma longa volta pela floresta para não
ter de ver nem ouvir aquilo.
No dia 26 de dezembro, quando as noivas camponesas
chegavam em grupos de cinco ou seis para serem vestidas pela sra.
Moreus e suas filhas, quando eram enfeitadas com guirlandas de
murta e coroas de seda com detalhes em vidro, com belos
cachecóis de seda e buquês de lapela com rosas feitas à mão, e os
vestidos eram rematados com guirlandas de flores em tafetá, ela se
trancava no quarto para não ver aquela decoração feita em nome do
amor.
Quando as meninas da sra. Moreus sentavam-se ao redor do
bastidor e o grande cômodo à esquerda do vestíbulo era tomado
pelo conforto do lar, quando as maçãs balançavam-se e suavam no
fogão, penduradas em frente às chamas, quando o garboso Gösta
Berling ou o gentil Ferdinand, que haviam feito uma visita,
brincavam de tirar os fios das agulhas ou levar as meninas a dar
pontos enviesados e o cômodo ressoava com alegria e júbilo e
flerte, e mãos estreitavam-se por baixo do edredom, então a
mademoiselle enrolava a costura, irritada, e ia embora, pois
detestava o amor e os caminhos do amor.
E no entanto conhecia os malfeitos do amor, e sabia contar
histórias a esse respeito. Perguntava-se como uma coisa daquelas
ainda ousava revelar-se sobre a terra, como ele ainda não fugira,
assustado com as queixas dos abandonados e as imprecações
daqueles que haviam se transformado em criminosos, bem como
pelos lamentos daqueles que haviam acabado presos com grilhões
odiosos. Perguntava-se como as asas permitiam que voasse tão
leve e tão solto, em vez de, sob o peso da vergonha e do
sofrimento, fazê-lo afundar em profundezas inefáveis.
Não, ela tinha sido jovem como todas as outras, mas jamais
caíra de amores pelo amor. Jamais havia se deixado atrair por
danças e carícias. O violão da mãe estava pendurado no sótão,
empoeirado e sem cordas. Jamais havia feito soar canções fúteis de
amor.
A roseira da mãe estava na janela. Ela a regava de vez em
quando. Mas não gostava das flores, pois eram filhas do amor. As
folhas estavam empoeiradas. As aranhas brincavam entre os
galhos, e os botões jamais floriam.
E no roseiral da sra. Moreus, onde as borboletas esvoaçavam e
os pássaros cantavam, onde as flores perfumadas enviavam
mensagens de amor para as abelhas, onde tudo falava sobre aquela
coisa odiosa, ela raras vezes punha os pés.
Mas chegou o dia em que a congregação de Svartsjö
encomendou um órgão para a igreja. Foi no verão que antecedeu o
reinado dos cavalheiros. Um jovem construtor de órgãos foi até lá.
Também ele tornou-se inquilino da sra. Moreus e foi alojado,
também ele, em uma pequena água-furtada no sótão.
E então montou aquele órgão de sons maravilhosos, cujos
graves terríveis por vezes irrompem no meio de um salmo tranquilo
– ninguém sabe como ou por quê – e levam as crianças a chorar na
igreja durante a missa de Natal.
Pode-se muito bem duvidar que esse jovem construtor de órgãos
fosse um mestre de seu ofício. Mas assim mesmo era um sujeito
alegre, com raios de sol no olhar. Tinha palavras amistosas para
todo mundo, tanto ricos como pobres, tanto jovens como velhos. E
logo tornou-se um bom amigo das senhorias – ah, mais até do que
amigo!
Quando voltava à noite do trabalho, segurava o novelo da sra.
Moreus e trabalhava ao lado das meninas no roseiral. Depois
declamava Axel e cantava Fritjof. Juntava o rolo de linha de
mademoiselle Marie, por mais vezes que ela o derrubasse, e
chegou até mesmo a arrumar seu relógio de pêndulo.
Não chegava ao fim de nenhum baile sem ter dançado com
todas, da senhora mais velha à menina mais jovem, e, se uma
adversidade qualquer o afligia, sentava-se ao lado da primeira
mulher que aparecesse e fazia-lhe confidências. Ah, era um homem
saído dos sonhos das mulheres!
Não se pode dizer que jamais tenha falado sobre amor com
quem quer que seja. Mas, semanas depois de ter se instalado no
pequeno quarto na água-furtada da sra. Moreus, todas as meninas
haviam se apaixonado por ele, e até mesmo a pobre mademoiselle
Marie percebeu que suas orações tinham sido em vão.
Foi uma época de tristezas e uma época de alegrias. Lágrimas
foram vertidas sobre o bastidor e apagaram as marcas de giz. À
noite, muitas vezes uma sonhadora pálida sentava-se no
caramanchão de lilases, e no quartinho de mademoiselle Marie o
violão recém-encordoado fazia soar fúteis canções de amor que
aprendera com a mãe.
O jovem construtor de órgãos, no entanto, permanecia alegre e
despreocupado, distribuindo sorrisos e favores em meio àquelas
mulheres tomadas de anseios, que o disputavam enquanto estava
ocupado com o trabalho. E por fim chegou o dia em que ele teve de
partir.
A condução estava em frente à porta. A valise estava amarrada à
parte de trás da carroça, e o jovem deu-lhes adeus. Beijou a mão da
sra. Moreus e abraçou as meninas chorosas, beijando-as no rosto.
Ele próprio também chorou na despedida, pois tivera um verão
ensolarado naquela pequena cabana cinzenta. Por fim ele olhou ao
redor, procurando mademoiselle Marie.
De repente ela apareceu na antiga escada que levava ao sótão
vestindo seus melhores trajes. Tinha o violão pendurado no pescoço
com uma larga cinta de seda verde, e na mão trazia um buquê de
rosetas, pois naquele ano a roseira da mãe havia florido. Ela postou-
se à frente do jovem, empunhou o violão e cantou:

É hoje que nos deixas. Volta se puderes!


Escuta a voz da amizade!
Sê feliz – não esqueças quem te ama
nos vales e bosques de Värmland!

Depois ela pôs as flores na lapela dele e deu-lhe um beijo na


boca. Ah, e então sumiu novamente pela escada do sótão, aquela
velha aparição!
O amor havia se vingado e feito dela um espetáculo aos olhos de
todos. Mas ela nunca mais se queixou. Nunca mais abandonou o
violão e nunca mais se esqueceu de cuidar da roseira da mãe.
Enfim caiu de amores pelo amor, a despeito dos tormentos, das
lágrimas, do anseio.
– Antes triste com ele do que feliz sem ele – passou a dizer.

O tempo passou. A senhora de Ekeby foi expulsa, os cavalheiros


chegaram ao poder e então aconteceu, como agora mesmo foi dito,
que Gösta Berling, num domingo à tarde, leu um poema para a
condessa de Borg e desde então foi proibido de se apresentar
naquela casa.
Dizem que, quando fechou a porta do vestíbulo ao sair, Gösta viu
trenós chegando a Borg. Ele lançou um olhar em direção à
mulherzinha que vinha no veículo mais à frente. Por mais triste que
o momento fosse para ele, tornou-se ainda mais triste com aquela
visão. Apressou-se para não ser reconhecido, mas pressentimentos
de uma desgraça ocuparam-lhe os pensamentos. Será que a
conversa lá dentro havia conjurado aquela mulher? Uma desgraça
sempre traz outra consigo.
Mas os criados saíram às pressas, os sacos de pés foram
abertos e os abrigos de pele foram postos de lado. Quem havia
chegado? Quem era aquela mulherzinha que se erguia no trenó?
Era de fato Märta Dohna, a famosa condessa!
A mais espirituosa e tresloucada dentre todas as mulheres. As
alegrias do mundo haviam-na alçado ao trono e feito dela uma
rainha. As brincadeiras e as zombarias eram os súditos sobre os
quais governava. O jogo e a dança e a aventura tinham sido a parte
que lhe coubera no quinhão da vida.
Já não estava longe de tornar-se uma quinquagenária, mas era
uma dessas sábias que não calculam o passar dos anos.
– Velho é quem não ergue os pés na dança ou os lábios na graça
– dizia. – É essa pessoa que conhece o terrível fardo dos anos, não
eu.
O gáudio não ocupara o trono imperturbado na juventude dessa
mulher, mas as mudanças e as inseguranças só faziam aumentar o
prazer suscitado por essa agradável companhia. A majestade com
asas de borboleta um dia frequentava o café oferecido nos
aposentos das senhoras da corte no palácio de Estocolmo e no dia
seguinte dançava em Paris trajando casaca e bengala. Visitara os
acampamentos de Napoleão, acompanhara a esquadra de Nelson
nas águas azuis do Mediterrâneo, estivera no congresso de Viena e
atrevera-se a viajar a Bruxelas para frequentar um baile na véspera
de uma famosa batalha.
E, onde quer que se encontrasse o gáudio, lá estava Märta
Dohna, sua rainha. Dançando, jogando e brincando, a condessa
Märta corria o mundo. O que não tinha visto, o que não tinha vivido?
Dançara ao redor de tronos derrubados, apostara o principado nas
cartas e com suas brincadeiras provocara guerras devastadoras! A
alegria e a loucura tinham sido e continuariam a ser a razão de sua
vida. O corpo não estava demasiado velho para a dança, nem o
coração demasiado velho para o amor. Desde quando cansam as
comédias e os bailes de máscara, as histórias divertidas e as
canções lamentosas?
Quando o gáudio por vezes se sentia desterrado no turbulento
mundo transformado em campo de batalha, ela tinha por hábito
passar um tempo mais curto ou mais longo na antiga propriedade do
conde, às margens do extenso lago Löven. Da mesma forma, foi
para lá que se dirigiu quando os príncipes e séquitos tornaram-se
demasiado tristes na época da Santa Aliança. Foi durante uma
dessas visitas que a condessa teve por bem fazer de Gösta Berling
o tutor de seu filho. Ela sentia-se bem por lá. O gáudio jamais tivera
um reino tão esplêndido. Lá havia música e jogos, homens amantes
de aventuras e mulheres belas e alegres. Lá não lhe faltavam festas
e bailes, passeios de barco ao luar, passeios de trenó por florestas
escuras ou acontecimentos dramáticos e as dores e tristezas do
amor.
Mas desde a morte da filha ela interrompera as visitas a Borg.
Não tinha visto o lugar ao longo dos últimos cinco anos. Naquela
ocasião, tinha ido ver como a nora vivia a vida em meio à floresta de
espruces, aos ursos e aos montes de neve. Considerava uma
questão de honra fazer a viagem e certificar-se de que o estúpido
Henrik não a atormentasse até a morte com os aborrecimentos que
causava. A partir daquele momento, ela seria o anjo gentil da
harmonia doméstica. O sol e a alegria estavam guardados em
quarenta valises de couro, a alegria era sua camareira, o chiste, seu
cocheiro e a brincadeira, sua dama de companhia.
E, quando subiu apressadamente os degraus, foi recebida de
braços abertos. O antigo quarto no primeiro andar estava à sua
espera. O criado, a dama de companhia e a camareira, as quarenta
valises de couro, as trinta chapeleiras, os nécessaires e os xales e
os casacos de pele, tudo aos poucos foi levado para o interior da
casa. Havia agitação e barulho por todo lado. Ouviam-se batidas
nas portas e passos nos degraus. Estava muito claro que a
condessa Märta havia chegado.

Foi numa tarde de primavera, embora o mês ainda fosse abril e o


gelo ainda não tivesse derretido. Mademoiselle Marie tinha aberto a
janela. Sentada no quarto, tocava o violão e cantava.
Estava tão concentrada no violão e nas memórias que não
percebeu quando um carro chegou pela estrada e parou em frente à
cabana. No carro estava a condessa Märta, que se alegrou ao ver
mademoiselle Marie na janela com o violão pendurado no pescoço,
entoando velhas e desgastadas canções de amor com os olhos
voltados para o céu.
Por fim a condessa desceu do carro e entrou na cabana, onde as
gentis meninas ocupavam-se com o bastidor. Ela nunca era solene;
o vento da revolução havia soprado ares novos para dentro
daqueles pulmões.
Não tinha culpa de ser condessa, como tinha por hábito dizer,
mas apesar disso queria viver uma vida que lhe agradasse. Sentia-
se tão à vontade em um casamento de camponeses como nos
bailes da corte. Interpretava comédias para as criadas quando não
havia outra plateia, e espalhava alegria por todas as sociedades
onde se mostrasse com o belo rosto e a maneira exuberante de
viver.
A condessa encomendou edredons da sra. Moreus e elogiou as
meninas. Olhou ao redor no roseiral e contou as aventuras que tinha
vivido ao longo da viagem. Ela sempre tinha uma aventura para
contar. E por fim atreveu-se a subir ao sótão pavorosamente estreito
e íngreme para visitar mademoiselle Marie na água-furtada.
Lá deixou os olhos negros repousarem sobre aquela mulherzinha
solitária enquanto a voz melodiosa acariciava-lhe os ouvidos.
A condessa também lhe comprou cortinas. Não poderia viver em
Borg sem cortinas de ponto montanhês em todas as janelas, e em
todas as mesas queria ter uma toalha de mesa feita por
mademoiselle Marie.
Depois ela pegou o violão emprestado e cantou canções de
alegria e amor. E então contou histórias para ela, e mademoiselle
Marie sentiu-se transportada para dentro daquele mundo divertido e
efervescente. E o riso da condessa tinha uma música tão melodiosa
que até mesmo os pássaros enregelados do roseiral se puseram a
cantar ao ouvi-la, e o rosto, que dificilmente poderia ser descrito
como bonito, posto que a tez vinha estragada pela maquiagem e
pelos rasgos de sensualidade em estado bruto ao redor da boca,
mademoiselle julgou tão encantador que chegou a perguntar-se
como o espelho poderia deixar que desaparecesse uma vez que o
houvesse capturado sobre a superfície polida.
Quando ela foi embora, despediu-se de mademoiselle Marie com
um beijo e convidou-a a fazer uma visita a Borg.
O coração de mademoiselle Marie ficou tão vazio quanto o ninho
das andorinhas na época de Natal. Era uma mulher livre, porém
ansiava por grilhões como um escravo liberto já no outono da vida.
E então começou novamente uma época de alegria e uma época
de tristezas para mademoiselle Marie, embora dessa vez não tenha
durado muito tempo: foram apenas oito dias curtos.
A condessa levava-a com frequência para Borg. Interpretava
comédias para ela e contava-lhe sobre os pretendentes, e
mademoiselle Marie ria como nunca dantes rira. As duas tornaram-
se melhores amigas. A condessa logo soube de tudo a respeito do
jovem construtor de órgãos e daquele adeus. E no crepúsculo
deixou que mademoiselle Marie se acomodasse no parapeito da
janela no pequeno gabinete azul. Lá, pendurou-lhe a correia do
violão ao redor do pescoço e fez com que cantasse canções de
amor. Depois a condessa sentou-se para observar como a silhueta
magra e seca e a cabecinha feia daquela menina velha se
delineavam contra o céu vermelho no fim da tarde, e disse que a
pobre mademoiselle parecia uma castelã cheia de anseios. Mas
todas as canções versavam sobre pastores bondosos e pastoras
cruéis, e a voz de mademoiselle Marie era a mais estridente que se
pode imaginar, e compreende-se que a condessa tenha achado
graça daquela comédia.
Depois, como seria de esperar, houve festa em Borg quando da
visita feita pela mãe do conde. E tudo transcorreu com alegria, como
de costume. Mas a companhia não era demasiado numerosa.
Foram convidados apenas os moradores da paróquia.
O salão de jantar localizava-se no andar de baixo, e ao fim do
banquete aconteceu que os convivas não tornaram a subir os
degraus, mas acomodaram-se nos aposentos da condessa Märta,
localizados mais ao fundo. E então a condessa pegou o violão de
mademoiselle Marie e pôs-se a cantar para a companhia. Era uma
senhora divertida, a condessa Märta, e sabia imitar a toda sorte de
gente. E naquele instante teve a ideia de imitar mademoiselle Marie.
Voltou os olhos em direção ao céu e começou a cantar com a
vozinha fina e esganiçada de uma criança.
– Ah, não, ah, não, condessa! – implorou mademoiselle Marie.
Mas a condessa divertia-se, e a maioria dos convivas não
conseguiu segurar o riso, embora talvez sentissem pena de
mademoiselle Marie.
A condessa pegou um punhado de pétalas de rosa secas de um
pot-pourri, aproximou-se de mademoiselle Marie com gestos
trágicos e cantou com profundo arrebatamento:

É hoje que nos deixas. Volta se puderes!


Escuta a voz da amizade!
Sê feliz – não esqueças quem te ama
nos vales e bosques de Värmland!

Depois espalhou as pétalas de rosa sobre a cabeça da


convidada. As pessoas riram, porém mademoiselle Marie estava
furiosa. Naquele instante, parecia capaz de arrancar os olhos da
condessa.
– És má, Märta Dohna – disse. – Nenhuma mulher honrada
deveria conviver contigo.
A condessa Märta também se irritou.
– Fora daqui, mademoiselle! – exclamou. – Já aguentei loucuras
suficientes dessa mulher.
– Sim, vou embora – disse mademoiselle Marie –, porém antes
gostaria de receber pelas cortinas e toalhas de mesa com que
decoraste a casa.
– Esses trapos velhos! – exclamou a condessa. – A senhora quer
ser paga por esses trapos? Leve-os consigo! Nunca mais quero vê-
los por aqui! Leve-os agora mesmo consigo!
Depois a condessa atirou as toalhas de mesa em cima de
mademoiselle Marie e arrancou as cortinas, pois estava realmente
tomada de fúria.
No dia seguinte, a jovem condessa pediu à sogra que fizesse as
pazes com mademoiselle Marie, mas a condessa não quis. Estava
farta daquela mulher.
A condessa Elisabet então se pôs a caminho e comprou de
mademoiselle Marie todo o estoque de cortinas e distribuiu-as no
andar de cima. Assim mademoiselle Marie sentiu que a justiça tinha
sido feita.
A condessa Märta fez muitas brincadeiras com a nora a respeito
do amor que tinha por cortinas de ponto montanhês. Ela sabia
guardar a raiva e mantê-la nova e fresca por anos a fio. Era uma
pessoa de muitos talentos.
HAVIA UM VELHO PÁSSARO DE RAPINA na ala dos cavalheiros. Passava
o tempo empoleirado no recanto da lareira, cuidando para que o
lume não se apagasse. Era um pássaro cinzento e desgrenhado. A
pequena cabeça com o grande bico e os olhos baços inclinava-se
tristemente para a frente sobre o pescoço longo e magro que saía
de uma densa gola de pele. Pois o pássaro de rapina andava com
um traje de pele tanto no inverno como no verão.
Outrora pertencera ao enxame que tomara conta da Europa na
época do grande imperador, mas como se chamava e o título que
detinha eram coisas que já ninguém se atrevia a dizer. Em Värmland
sabia-se apenas que participara das grandes guerras, que agira
impiedosamente nas batalhas estrondosas e que, após 1815,
precisara orientar o curso de voo para bem longe da pátria ingrata.
Tinha encontrado refúgio junto ao príncipe herdeiro da Suécia, que o
aconselhara a desaparecer na distante Värmland. E assim era o
tempo: aquele cujo nome levara mundos inteiros a estremecer de
repente sentia-se feliz ao saber que ninguém sequer conhecia o
nome outrora temido.
Ele havia feito ao príncipe herdeiro a promessa solene de não se
afastar de Värmland e de não revelar quem era. E então fora
mandado para Ekeby com uma carta manuscrita do príncipe
herdeiro para a senhora de Ekeby, na qual constavam as mais altas
recomendações. Foi assim que a ala dos cavalheiros abriu as portas
para aquele homem.
A princípio havia muita curiosidade sobre aquele homem célebre
que se escondia por trás de um nome inventado. Mas aos poucos
ele se transformou em um cavalheiro e em um habitante de
Värmland. Lá, chamavam-no de primo Kristoffer, sem que ninguém
soubesse ao certo de onde viera essa denominação.
Mas não é bom para uma ave de rapina viver engaiolada.
Compreende-se que o primo Kristoffer estivesse acostumado a pular
de galho em galho e a ser alimentado na mão do tratador. Outrora a
carnificina e o medo da morte haviam lhe posto o sangue em
chamas. A um homem desses, o torpor da paz causa aversão.
Talvez seja verdade que tampouco os outros cavalheiros fossem
pássaros completamente domesticados, mas nenhum deles tinha o
sangue tão quente quanto o primo Kristoffer. Uma caçada ao urso
era a única atividade capaz de reacender-lhe a vontade de viver, ou
então uma mulher – uma mulher em particular.
Ele havia tornado à vida quando, uma década antes, encontrara
pela primeira vez a condessa Märta, que já na época era viúva. Uma
mulher imprevisível como a guerra, excitante como o perigo, uma
criatura vivaz e destemida. Ele a amava.
E agora estava lá, velho e cinzento, sem poder sequer pedi-la em
casamento. Já fazia cinco anos que não a via. Ele definhava e
morria devagar, como fazem as águias em cativeiro. A cada ano que
passava, tornava-se mais seco e mais gelado. Precisava cada vez
mais do casaco de pele e de estar perto da lareira.

E agora está lá, enregelado, cinzento e desgrenhado, na manhã


daquele dia, quando à tarde os tiros de Páscoa seriam disparados e
a bruxa de Páscoa, queimada. Os cavalheiros estão todos fora, mas
ele permanece sentado no recanto da lareira.
Ah, primo Kristoffer, primo Kristoffer, acaso não sabes?
Ela chegou sorrindo, a encantadora primavera.
A natureza desperta do sono lânguido, e no céu azul espíritos
com asas de borboleta rodopiam em animadas brincadeiras.
Próximo às rosas dos arbustos selvagens, essas feições reluzem
em meio às nuvens.
A terra, essa grande mãe, começa a viver. Com o entusiasmo de
uma criança, ergue-se do mergulho na cheia da primavera, do
banho na chuva de primavera. As pedras e o solo reluzem de
alegria. “Rumo ao ciclo da vida!”, rejubilam-se até as menores
partículas. “Planemos como asas pelo ar puro. Brilhemos nas faces
das meninas em flor.”
Os alegres espíritos da primavera nadam com o ar e a água para
dentro dos corpos, saltam como enguias no sangue, põem o
coração a balançar. É o mesmo som por toda parte. Essas criaturas
com asas de borboleta arrebatam o coração e as flores e tudo capaz
de vibrar e fazem soar como mil alarmes de tempestade: “Diversão
e alegria, diversão e alegria! Ela enfim chegou, a sorridente
primavera”.
Mas o primo Kristoffer permanece sentado sem nada
compreender. Inclina a cabeça em direção aos dedos enrijecidos e
sonha com chuvas de balas e com a honra ganha no campo de
batalha. Em seus pensamentos, conjura louros e rosas que não
exigem a beleza frágil da primavera para florescer.
Mas assim mesmo dá pena ver aquele forasteiro solitário no alto
da ala dos cavalheiros, sem povo, sem pátria, ele, que nunca ouve
os sons da língua dos compatriotas, ele, que há de ser enterrado em
um túmulo sem nome no cemitério de Bro. Será mesmo culpa sua
ter nascido águia, destinado a perseguir e a matar? Ah, primo
Kristoffer, por muito tempo sonhaste na ala dos cavalheiros!
Levanta-te e bebe o vinho espumante da vida nos altos palácios!
Sabe, primo Kristoffer, que uma carta chegou para a senhora de
Ekeby naquele dia, uma carta real, guarnecida com o sinete do reino
da Suécia! A carta foi endereçada para a senhora, mas o conteúdo
diz respeito a ti. É estranho ver-te lendo a carta, velho pássaro de
rapina. Teus olhos brilham e tua cabeça se ergue. Vês a porta da
gaiola abrir-se e o espaço aberto à disposição das tuas asas.

O primo Kristoffer põe-se a cavoucar o fundo do baú de roupas.


Logo encontra o uniforme angustiosamente preservado, com
detalhes em ouro, e a seguir o veste. Ajusta o chapéu emplumado
na cabeça e logo deixa Ekeby para trás, montado no soberbo cavalo
branco.
Aquilo é muito diferente de permanecer enregelado no recanto
da lareira. Naquele momento também ele percebe que a primavera
chegou.
Ergue-se na sela e põe o cavalo a galopar. O dólmã forrado com
peles tremula. A pluma do chapéu se balança. O homem
rejuvenesceu como a própria terra. Por fim está desperto ao cabo de
um longo inverno. O antigo ouro ainda reluz. O rosto de guerreiro
destemido enche-se de orgulho sob o chapéu de três bicos.
É uma cavalgada singular. Do chão nascem riachos, e anêmonas
brotam por onde ele passa. Os pássaros cantam e rejubilam-se ao
redor daquele refém libertado. Toda a natureza toma parte naquela
alegria.
O primo Kristoffer chega com a opulência dos vitoriosos. A
primavera cavalga à frente em uma nuvem. Está leve e airoso,
aquele espírito de luz. Traz o cromorno nos lábios e mal se aguenta
de felicidade. E, ao redor do primo Kristoffer, um grupo de velhos
companheiros de armas incita os cavalos. É a felicidade que se
ergue na sela, e a honra no corcel magnífico, e o amor no árabe
impetuoso. É uma cavalgada singular, feita por um cavaleiro
singular. O tordo bem-falante o encoraja:
– Primo Kristoffer, primo Kristoffer! Para onde cavalgas? Para
onde cavalgas?
– Vou a Borg casar, vou a Borg casar! – responde o primo
Kristoffer.
– Não vás para Borg, não vás para Borg! O homem solteiro
desconhece a tristeza – grita o tordo ao vê-lo passar.
Mas o primo Kristoffer não dá ouvidos ao alerta. Segue
cavalgando, morro acima e morro abaixo, até finalmente chegar. Ele
apeia do cavalo e é levado à presença das condessas.
Tudo corre bem. A condessa Märta demonstra misericórdia para
com ele. O primo Kristoffer logo vê que ela não se negaria a adotar
seu vistoso nome ou a reinar em seu palácio. Está sentado,
postergando o momento arrebatador em que há de mostrar-lhe a
carta real. Aproveita cada momento da espera.
Ela fala e o distrai com mil histórias. Ele ri de tudo, aprecia tudo.
Mas, enquanto os dois se encontram sentados num dos cômodos
onde a condessa Elisabet pendurou as cortinas de mademoiselle
Marie, a condessa põe-se a contar a história daqueles objetos. E ela
enfeita a história tanto quanto lhe é possível.
– Veja – ela diz, por fim –, veja como sou má! Essas cortinas
estão aqui para que todo dia e toda hora eu pense no meu pecado.
É uma expiação sem igual. Ah, esse horrível ponto montanhês!
O valoroso guerreiro a encara com fogo no olhar.
– Eu também sou velho e pobre – diz –, e passei dez anos
sentado no recanto da lareira, ansiando pela minha amada. A
misericordiosa condessa também daria risadas disso?
– É diferente! – exclama a condessa.
– Deus tirou-me a felicidade e a pátria e me obrigou a comer o
pão dos outros – diz o primo Kristoffer, em tom grave. – E assim eu
aprendi a respeitar a pobreza.
– O senhor também! – grita a condessa, erguendo as mãos. –
Como as pessoas são virtuosas! Ah, como tornaram-se virtuosas!
– Sim – ele diz. – Veja, condessa, que, se Deus um dia me
devolver a riqueza e o poder, hei de dar-lhes melhor serventia do
que botá-las à disposição de uma senhora mundana, uma primata
maquiada e sem coração que faz troça da pobreza.
– Bem faz o senhor, primo Kristoffer.
E então o primo Kristoffer sai do cômodo e cavalga de volta a
Ekeby. Mas os gênios não o seguem, o tordo não grita, e ele já não
mais vê o sorriso da primavera.
Chegou a Ekeby quando os tiros de Páscoa seriam disparados e
a bruxa de Páscoa, queimada. A bruxa de Páscoa é uma grande
boneca de palha, com um rosto de trapo onde os olhos, o nariz e a
boca são desenhados a carvão. Está trajada com roupas que foram
jogadas fora pela mendiga das redondezas. O atiçador e a vassoura
estão postos logo ao lado, e o chifre de óleo encontra-se pendurado
naquele pescoço. A bruxa está pronta para fazer a viagem a
Blåkulla.
O major Fuchs carrega a espingarda e a dispara para o alto,
diversas vezes seguidas. Uma fogueira de gravetos é acesa, a
bruxa é jogada nela e logo começa a queimar agradavelmente.
Claro que os cavalheiros fazem tudo o que podem – de acordo com
métodos antigos e comprovados – para aniquilar o poder do mal.
O primo Kristoffer observa tudo com uma expressão melancólica.
De repente saca a grande carta real da manga do uniforme e a atira
no fogo. Só Deus sabe o que estava pensando. Talvez imaginasse
que era a própria condessa Märta que ardia na fogueira. Talvez
achasse que, uma vez que no fundo aquela mulher era feita apenas
de palha e trapo, não haveria nada de realmente valioso sobre a
terra. Ele volta à ala dos cavalheiros, acende a lareira e esconde o
uniforme. Mais uma vez senta-se ao pé do fogo, e a cada dia que
passa torna-se mais cinzento e mais desgrenhado. E morre aos
poucos, como fazem as velhas águias em cativeiro. Já não é
prisioneiro, mas tampouco tem vontade de aproveitar a liberdade. O
espaço é todo seu. O campo de batalha, a honra e a vida o
esperam. Mas ele não tem mais forças para abrir as asas e voar.
ÁRDUOS SÃO OS CAMINHOS que os homens percorrem nesta terra.
Desertos, paludes, montanhas.
Por que tanta tristeza permanece guardada até se perder no
deserto ou afundar no palude ou sucumbir na montanha? Onde
estão as meninas que colhem flores, onde estão as princesas das
fábulas, em cujo rastro nascem rosas, onde estão aquelas que hão
de espalhar flores pelos caminhos árduos?
Agora Gösta Berling, o poeta, decidiu casar-se. Está à procura
de uma noiva que seja pobre o bastante, humilde o bastante,
rejeitada o bastante para um pastor louco.
Mulheres bonitas e nobres já o amaram, mas não podem
disputar sua mão. O rejeitado escolhe entre as rejeitadas.
Quem há de escolher, quem há de procurar?
Em Ekeby por vezes aparece uma menina pobre que mora em
um vilarejo na floresta entre as montanhas e vende vassouras.
Nesse vilarejo, onde reinam a pobreza constante e a miséria
disseminada, existem muitas pessoas que não se encontram em
seu perfeito juízo, e a menina das vassouras é uma dessas
pessoas.
Mas ela é bonita. Os bastos cabelos negros formam tranças tão
grossas que mal lhe cabem na cabeça; as bochechas são
delicadamente arredondadas, o nariz é reto e tem o tamanho certo,
os olhos são azuis. Ela pertence a um tipo de beleza melancólica,
como a madona – uma beleza que ainda se encontra nas belas
meninas que andam pelas margens do extenso lago Löven.
Ah, e foi nela que Gösta encontrou sua noiva! Uma vendedora de
vassouras meio tresloucada é uma boa esposa para um pastor
louco. Nada poderia ser mais adequado.
Ele precisa apenas viajar a Karlstad para arranjar as alianças, e
depois os dois vão passar um dia alegre às margens do Löven. Que
riam mais uma vez de Gösta Berling quando noivar com a menina
das vassouras, quando celebrar o matrimônio com ela! Que riam!
Acaso tivera ideia mais extravagante?
Acaso o rejeitado não deve seguir o caminho dos rejeitados, o
caminho da ira, o caminho da tristeza, o caminho da infelicidade?
Nesse caso, que mal faz cair, que mal faz arruinar-se? Existe
alguém que se preocupe em impedi-lo? Existe alguém que lhe
estenda uma mão amiga, ou uma bebida refrescante? Onde estão
as meninas que colhem flores, onde estão as princesas das fábulas,
onde estão aquelas que hão de espalhar flores pelos caminhos
árduos?
Não, não, a jovem e gentil condessa de Borg não há de interferir
nos planos de Gösta Berling. Tem de pensar na própria reputação,
tem de pensar na ira do marido e no ódio da sogra, e assim não
pode fazer nada para impedi-lo.
Durante o longo culto na igreja de Svartsjö ela há de baixar a
cabeça, com as mãos postas, e rezar por ele. Em noites insones,
poderá chorar e angustiar-se por ele, mas ela não tem flores a
espalhar pelo caminho daquele rejeitado, nenhuma gota d’água a
oferecer para aquele que tem sede. Ela não estende a mão para
afastá-lo da beira do abismo.
Gösta Berling não faz questão de envolver a escolhida em seda
e joias. Ele deixa que vá de casa em casa com as vassouras, como
de costume, mas quando reunir todos os homens e as mulheres
importantes para uma grande festa em Ekeby fará o anúncio do
noivado. Então há de chamá-la da cozinha, como se houvesse
chegado de suas longas andanças, com a poeira do caminho e a
sujeira nas roupas, talvez maltrapilha, talvez despenteada, com o
olhar confuso e com um fluxo de palavras confusas nos lábios. E há
de perguntar aos convidados se não escolheu uma noiva adequada,
se o pastor louco não devia se orgulhar de uma noiva tão bela,
daquele suave rosto de madona, daqueles olhos azuis e
sonhadores.
Esse era seu plano, que ninguém soubesse antes da hora, mas
não lhe foi possível manter o segredo, e uma das pessoas que
passaram a conhecê-lo foi a jovem condessa Dohna.
Mas o que poderia fazer para impedi-lo? O dia do noivado
chegou, e o crepúsculo desceu. A condessa está na janela do
gabinete azul, olhando para o norte. Quase imagina ver Ekeby,
ainda que a névoa e as lágrimas obscureçam-lhe a visão. Bem vê
como a casa de três andares resplende com três fileiras de janelas
iluminadas, e pensa no champanhe servido nas taças, no som dos
brindes e na maneira como Gösta Berling deve estar anunciando o
noivado com a menina das vassouras.
Se ela estivesse ao lado dele e lentamente pousasse a mão em
seu braço, ou simplesmente lhe lançasse um olhar amistoso, será
que ele não estaria a afastar-se do mau caminho dos rejeitados? Se
uma palavra sua tinha bastado para levá-lo a cometer um ato de
desespero, será que uma palavra sua não seria capaz de impedi-lo?
A jovem condessa estremece ao pensar no pecado que Gösta há
de cometer contra aquela pobre menina desventurada. Estremece
ao pensar no pecado contra aquela coitadinha, que há de ser levada
a amá-lo, talvez por nada mais do que um simples chiste. Talvez – e
nesse momento a condessa estremece ainda mais ao pensar no
pecado que ele comete contra si mesmo – para acorrentar um fardo
à sua vida e assim negar para sempre ao espírito a chance de
chegar às alturas.
E a culpa era principalmente dela. Com uma palavra
condenatória, o havia posto no mau caminho. Ela, que tinha
chegado para abençoar, para mitigar – por que havia posto mais um
espinho na coroa do pecador?
Ah, mas ela já sabe o que fazer! Vai pedir que encilhem os
cavalos pretos para o trenó, atravessar depressa o Löven, entrar na
propriedade de Ekeby, postar-se em frente a Gösta Berling e dizer
que não o despreza, que não sabia o que dizia quando o expulsou
de sua casa… Não, ela não poderia agir dessa forma; ficaria
envergonhada e acabaria não dizendo uma única palavra. Ela, como
mulher casada, tinha de tomar cuidado. Surgiriam muitos boatos
maldosos se fizesse qualquer coisa do tipo. Mas, se não fizesse, o
que aconteceria com ele?
Ela tem de fazer a viagem.
Mas logo pensa que uma viagem daquelas seria impossível. Já
nenhum cavalo pode atravessar o gelo do Löven. O gelo derrete e já
começa a desprender-se da terra. Está solto, rachado, terrível. A
água gorgoleja para cima e para baixo, e em certos pontos acumula-
se em poças escuras, enquanto em outros o gelo revela-se em uma
brancura ofuscante. Mesmo assim, o gelo é cinzento por causa da
sujeira na neve derretida, e os caminhos parecem longas listras
pretas sobre aquela superfície.
Como ela pode cogitar a hipótese de fazer a viagem? A velha
condessa Märta, sua sogra, jamais permitiria uma coisa assim.
Durante toda a tarde ela teve de ficar sentada ao lado dela no salão,
ouvindo as antigas histórias da corte que fazem a alegria da velha.
E no entanto a noite chega e o marido encontra-se longe; ela
está livre.
Não pode pegar o trenó e não pode chamar a criadagem, mas a
angústia leva-a para fora de casa. Não há como agir de outra forma.
Árduos são os caminhos que os homens percorrem nesta terra.
Desertos, paludes, montanhas.
Mas aquele caminho noturno através do gelo que derrete – a que
posso compará-lo? Não é o mesmo caminho que as meninas que
colhem flores têm de percorrer, um caminho perigoso, instável,
resvalante, o caminho das que desejam curar feridas abertas, o
caminho das que desejam endireitar as coisas, o caminho do pé
ligeiro, do olhar rápido e do coração cheio de coragem e amor?
Já passava da meia-noite quando a condessa chegou à orla de
Ekeby. Ela tinha caído no gelo, saltado por cima de fissuras, corrido
por lugares onde as pegadas que deixava enchiam-se com a água
que brotava, já tinha escorregado, se arrastado.
A andança fora árdua. Ela havia chorado enquanto caminhava.
Estava molhada e exausta, e em meio ao gelo a escuridão, a
solidão e o vazio podem dar origem a pensamentos terríveis.
Por fim, já perto de Ekeby, precisara caminhar com água pelas
canelas antes de chegar à terra firme. E, quando chegou à orla, não
teve coragem de fazer mais nada além de sentar-se em uma pedra
e chorar de exaustão e desespero.
Os filhos do homem percorrem caminhos difíceis, e as meninas
que colhem flores por vezes sucumbem ao lado da cesta no
momento exato em que chegam ao caminho que desejavam
enfeitar.
Aquela jovem e distinta senhorita era, no entanto, uma pequena
e amável heroína. Não tinha percorrido caminhos semelhantes na
iluminada terra natal. Deve ter se sentado à beira daquele lago
terrível e atroz, molhada, exausta e infeliz, como de fato é, e
pensado nos caminhos delicados e floridos das terras ao sul onde
havia nascido.
Mas para ela não se trata de uma questão entre norte e sul.
Afinal, encontra-se no meio da vida. E não chora de saudade. A
menina que colhe flores, a pequena heroína, chora porque está tão
cansada que não há de chegar ao caminho que deseja enfeitar.
Chora porque acredita que chegou demasiado tarde.
E então as pessoas chegam correndo ao longo da orla. Passam
depressa, sem vê-la, mas ela ouve o que dizem.
– Se a barragem romper, a forja está perdida – diz uma voz.
– E também o moinho e as oficinas e os aposentos do ferreiro –
outra voz completa.
Então ela recupera a coragem, levanta-se e os segue.

O moinho e a forja de Ekeby localizavam-se em um pequeno


dique estreito, ao redor do qual estrugiam as águas do
Björksjöälven. O rio corria depressa rumo ao dique depois de ser
fustigado pela imponente corredeira mais acima até espumar, e, a
fim de proteger o solo construído da ação da água, por lá existia
naquela época um enorme molhe. Mas a barragem havia
envelhecido, e os cavalheiros reinavam soberanos em Ekeby.
Naquela época a dança corria solta pelos morros da fundição, mas
ninguém se dava ao trabalho de ver como o frio e a correnteza
agiam sobre a velha barragem de pedra.
Então veio a cheia da primavera, e a barragem começou a ceder.
A corredeira em Ekeby é um enorme rochedo de granito, por
onde as ondas do Björksjöälven rumorejam. Perdem-se na vertigem
da queda, precipitam-se e revoluteiam. Tomam-se de raiva e jogam
espuma umas nas outras, tornam a rolar por cima de uma pedra,
por cima de uma tora, para então cair novamente, sem parar, sem
parar em meio à espuma, aos murmúrios, aos rumores.
E nesse momento essas ondas exasperadas e indômitas, ébrias
com o ar da primavera, entregam-se à vertigem da recém-
conquistada liberdade e investem contra a antiga barragem de
pedra. Chegam bufando e atropelando, chocam-se contra a
barragem e então recuam, como se tivessem batido as cabeças
grisalhas. É uma investida formidável; as ondas empunham grandes
lascas de gelo como escudos, empregam toras como aríetes,
batem, batem, batem contra a pobre muralha, mas de repente é
como se tivessem recebido ordens para assumir a posição de
sentido. Logo se afastam, e junto vem uma grande pedra que se
desprende da barragem e com um grande estrondo afunda na
correnteza.
As ondas parecem surpresas, param, celebram, refletem… e
então partem novamente para o ataque! Lá estão outra vez, com
lascas de gelo e toras, indecentes, implacáveis, indômitas,
enlouquecidas pela sede de destruição.
– Se a barragem ruísse – dizem as ondas –, se a barragem
ruísse, logo chegaria a vez da forja e do moinho.
“Chegou o dia da liberdade… abaixo os homens e as obras dos
homens! Sujaram-nos com carvão, polvilharam-nos com farinha,
puseram-nos jugos como se fôssemos bois, fizeram-nos dar voltas,
prenderam-nos, confinaram-nos atrás de comportas, obrigaram-nos
a empurrar pesadas rodas, a carregar toras desajeitadas. Mas agora
vamos conquistar nossa liberdade.
“O dia da liberdade chegou! Escutai, ondas do Björksjön, escutai,
irmãos e irmãs dos pântanos e charcos, dos córregos e riachos!
Vinde, vinde! Precipitai-vos no Björksjöälven, vinde com forças
renovadas, trovejando, bufando, dispostas a triunfar sobre a
opressão de séculos, vinde! A muralha da tirania há de ruir. Morte a
Ekeby!”
E as ondas acodem. Uma atrás da outra, precipitam-se
corredeira abaixo com as cabeças apontadas contra a barragem,
para assim contribuir para aquela causa maior. Ébrias com a recém-
conquistada liberdade da primavera e robustas, estão todas de
acordo em soltar pedra atrás de pedra, monte atrás de monte no
que diz respeito ao molhe precário.
Mas por que os homens deixam que as ondas indômitas se
enfureçam sem oferecer resistência? Acaso Ekeby está morta?
Não, há homens por lá, um grupo de homens confusos, atônitos,
indefesos. A noite é escura, e não veem uns aos outros – não veem
sequer o próprio caminho. A corredeira estruge, e terrível é o
ribombar do gelo que se parte e das toras que se chocam; é
impossível ouvir a própria voz. A desvairada vertigem que anima as
ondas estrondeantes ocupa também a cabeça dos homens, que
acabam desprovidos de pensamentos, desprovidos de juízo.
O sino da propriedade repica.
– Que ouçam todos aqueles que tiverem ouvidos! Nós, que
estamos aqui junto à forja de Ekeby, logo havemos de perecer. O rio
está sobre nós. A barragem estremece, a forja corre perigo, o
moinho corre perigo e também nossas simples moradas, amadas
mesmo na humildade.
As ondas pensam que o repicar do sino chama suas amigas,
posto que homem nenhum aparece. Mas nas florestas e nos
charcos há pressa.
– Mandai ajuda, mandai ajuda! – o sino repica.
– Após uma escravidão de séculos, enfim nos tornamos livres.
Vinde, vinde! – estrugem as ondas. A massa de água ribombante e
o repicar do sino da propriedade anunciam a morte de toda a honra
e de todo o esplendor de Ekeby.
E, durante todo esse tempo, não param de chegar à casa
senhorial mensagens que indagam sobre os cavalheiros.
Mas acaso estão dispostos a pensar na forja e no moinho? Uma
centena de convivas estão reunidos nos amplos salões de Ekeby. A
menina das vassouras aguarda na cozinha. O emocionante
momento da surpresa chegou. O champanhe borbulha nas taças e
Julius se levanta para fazer o discurso da festa. Todos os velhos
aventureiros de Ekeby alegram-se com a surpresa paralisante que
logo há de se abater sobre a companhia.
No gelo do lago Löven, a jovem condessa Dohna percorre um
caminho terrível e perigosíssimo para levar palavras de alerta a
Gösta Berling. Ao pé da corredeira as ondas investem contra a
honra e o poder de Ekeby, mas nos amplos salões há somente
alegria e uma expectativa ansiosa; a luz das velas cintila e o vinho
enche as taças. Lá dentro ninguém pensa naquilo que se move em
meio à noite escura e tempestuosa de primavera.
E então o momento chega. Gösta se levanta e sai para buscar a
noiva. Tem de atravessar o vestíbulo, cujas grandes portas
encontram-se abertas de par em par. Ele para, olha para a noite
escura como se fosse carvão… E ouve, ouve.
Ouve o sino repicar, a corredeira estrugir. Ouve o ribombar do
gelo que racha, o alarido das toras que se chocam, a estrondosa,
zombeteira e triunfante canção de liberdade entoada pelas ondas
revoltosas.
E então sai rumo à noite, esquecido de tudo. Que todos passem
o resto da vida lá dentro com as taças erguidas; naquele momento,
não se importa mais com isso. Que a noiva espere, que o discurso
do patrão Julius morra em seus lábios. Não haverá troca de alianças
naquela noite, a surpresa paralisante não haverá de abater-se sobre
a esplendorosa companhia.
Ai de vós, ondas revoltosas! Chegou mesmo a hora de lutar por
vossa liberdade! Logo Gösta Berling chega à corredeira, logo as
pessoas ganham um líder, logo a coragem se acende nos corações
aterrorizados, logo o defensor sobe na muralha, logo uma enorme
batalha começa.
Escutai a maneira como exorta as pessoas! Ele dá ordens. Põe
todos em atividade.
– Precisamos de luz, luz acima de tudo! Não há de bastar-nos o
lampião do moleiro. Veem aqueles montes de galhos? Levem-nos
para o alto da encosta e acendam uma fogueira! Esse é um trabalho
para mulheres e crianças. Depressa! Acendam uma grande e
flamejante fogueira! Precisamos iluminar nosso trabalho, para que
seja visto ao longe e traga-nos mais ajuda. E não a deixem se
apagar! Tragam palha, tragam galhos, façam com que as labaredas
ergam-se até o céu!
“E vejam, vejam, homens adultos, aqui está o trabalho de vocês!
Temos aqui toras, temos aqui tábuas; amarrem-nas para fazer uma
barragem de emergência, que possamos firmar contra a muralha
que cede. Depressa, depressa, ao trabalho! Façam-na maciça e
firme! Arranjem pedras e sacos de areia para firmar a estrutura!
Depressa! Que se ergam os machados, que ribombem os martelos,
que os serrotes ranjam nas tábuas secas!
“E quanto aos rapazes? Vamos, vamos, seus imprestáveis!
Arranjem paus, arranjem estacas e venham para o frenesi da
batalha! Para a barragem, rapazes, em meio às ondas que bufam,
revoluteiam e cobrem-nos de branca espuma! Evitem, frustrem,
impeçam esses ataques, capazes de fazer as muralhas ruírem!
Afastem as toras e as lascas de gelo e, se nada mais surtir efeito,
atirem-se lá para baixo e segurem as pedras soltas com as próprias
mãos! Mordam-nas, segurem-nas com garras de ferro! Lutem, seus
imprestáveis de coração selvagem! Tratem agora mesmo de subir à
muralha! Vamos defender cada palmo de terra.”
Gösta assume uma posição à frente da barragem e logo está
coberto de espuma; o chão estremece sob seus pés, as ondas
ribombam e se enfurecem ao mesmo tempo que o coração
selvagem alegra-se com o perigo, a balbúrdia, a batalha. Ele ri e fala
alegres disparates para os rapazes a seu redor. Jamais teve noite
tão divertida.
O trabalho de salvamento avança depressa: as chamas
flamejam, os machados ribombam e a barragem mantém-se de pé.
Os demais cavalheiros e a centena de convidados também
chegam à corredeira. As pessoas chegam correndo, vindas de perto
e de longe, todos põem-se a trabalhar, na fogueira, na barragem de
emergência, nos sacos de areia, na trêmula e precária barragem de
pedra.
E logo os lenhadores têm a barragem de emergência pronta,
logo se põem a firmá-la contra o molhe decrépito. Mantenham as
pedras e os sacos de areia a postos, com estacas e cordas, para
que nada mais se mova, para que a vitória seja dos homens e as
ondas derrotadas voltem ao trabalho escravo!
E então acontece: logo antes do momento decisivo, Gösta pousa
os olhos na mulher que se encontra sentada em uma pedra junto à
margem do rio. As labaredas da fogueira a iluminam onde está, com
o olhar fixo nas ondas. Não era possível vê-la de maneira clara e
nítida em meio à névoa e à espuma, mas os olhos dele não
paravam de buscá-la. De tempos em tempos Gösta precisava olhar
para ela. Sentia como se a mulher tivesse um assunto a confiar-lhe.
Em meio a todas aquelas centenas de pessoas que se
ocupavam e trabalhavam à margem do rio, ela era a única que se
mantinha imóvel, e era para ela que o olhar dele invariavelmente se
voltava, porque não via ninguém além dela.
A mulher se encontra tão longe que as ondas batem-lhe nos pés,
e a espuma também a atinge. Deve estar encharcada. Traja roupas
escuras, com um xale preto na cabeça, e se encontra sentada com
as costas recurvas, apoiando o queixo nas mãos e olhando
fixamente para ele, no exato lugar onde se encontra sobre o molhe.
Ele sente o chamado e a atração naquele olhar, embora não possa
sequer discernir o rosto; não consegue pensar em nada além
daquela mulher sentada junto às ondas de crista branca.
“É a donzela do Löven, que veio às águas do rio para me levar à
ruína”, ele pensa. “Está lá, chamando por mim, chamando por mim;
preciso escorraçá-la daqui.”
Todas essas ondas de crista branca parecem ser os exércitos
pretos da mulher. Foi ela que as instigou, quem as incitou a lançar o
ataque.
– Realmente preciso escorraçá-la daqui – ele diz.
Gösta pega um croque, avança rumo à terra e apressa-se em
direção à mulher.
Abandona o posto no ponto extremo do molhe para escorraçar a
donzela do lago. Naquele momento de exaltação, foi como se as
forças do mal estivessem a lutar contra ele. Não sabia o que pensar,
não sabia no que acreditar, mas tinha de escorraçar aquele demônio
da pedra na margem do rio.
Ai, Gösta, por que teu lugar se encontra vazio no momento
decisivo? Logo chegam com a barragem de emergência, uma longa
fileira de homens posta-se no molhe. Têm pedras e cordas e sacos
de areia para fazer peso e firmá-la no lugar, estão todos a postos,
aguardando, escutando. Mas onde estão as ordens do líder? Onde
está a voz que devia pedir e organizar?
Não, Gösta Berling persegue a donzela do lago, não se ouve sua
voz, suas ordens não chegam a ninguém.
A barragem de emergência tem de ser firmada sem ele. As
ondas se afastam, a barragem afunda na água e logo vêm as
pedras e os sacos de areia. Mas como o trabalho é levado a cabo
sem o líder? Nada de cautela, nada de ordem. As ondas novamente
avançam, quebram com fúria renovada contra o novo obstáculo e
põem-se a derrubar os sacos de areia, romper as cordas, soltar as
pedras. E funciona, funciona! Em meio a júbilo e zombaria, as ondas
erguem toda a barricada sobre os fortes ombros, puxam-na,
arrancam-na, e por fim a têm em seu poder. Abaixo essa fútil
medida de proteção! Que afunde no Löven! E então os ataques
voltam-se novamente para a decrépita e indefesa barragem de
pedra.
Mas Gösta Berling persegue a donzela do lago. Ela o viu
enquanto se aproximava, brandindo o croque que trazia na mão.
Mostrou-se assustada. Foi como se pensasse em jogar-se na água,
mas logo ela se recompõe e corre rumo a terra.
– A donzela do lago! – Gösta grita, enquanto lhe desfere um
golpe com o croque. Ela foge às pressas rumo aos arbustos de
amieiro-negro, enfia-se no meio dos galhos densos e para.
Gösta solta o croque, avança e põe a mão no ombro da mulher.
– É tarde para estar fora de casa, condessa Elisabet – ele diz.
– Deixe-me em paz, sr. Berling, deixe-me voltar para casa!
No mesmo instante ele obedece-lhe e vira-se para o outro lado.
Mas, como não apenas é uma dama nascida em berço de ouro,
mas também uma mulher gentil e incapaz de suportar a ideia de
haver provocado o desespero de outrem, posto que é uma menina
que colhe flores, que sempre traz rosas na cesta para enfeitar até
mesmo os caminhos mais solitários, no mesmo instante ela se
arrepende e toma a mão dele.
– Eu vim – ela diz, gaguejando –, eu vim para… Ah, sr. Berling, o
senhor não fez mesmo uma coisa dessas? Diga-me que o senhor
não fez…! Senti um medo terrível ao vê-lo correndo em minha
direção, mas era justamente o senhor que eu desejava encontrar.
Eu queria pedir-lhe que não mais pensasse naquilo que eu disse na
última vez, e que voltasse a fazer visitas como de costume.
– Como foi que a condessa veio até aqui?
Ela começou a rir nervosamente.
– Eu sabia que chegaria tarde demais, mas não quis contar para
ninguém que eu viria a pé. Além do mais, como o senhor bem
compreende, já não se pode mais atravessar o lago de carro.
– A condessa atravessou o lago a pé?
– Sim, atravessei, mas agora, sr. Berling, diga-me! O senhor está
noivo? Por favor, compreenda. Eu gostaria muito que não estivesse.
Parece muito injusto, sabe? E sinto como se eu tivesse culpa nisso
tudo. O senhor não devia ter se fixado tanto nas minhas palavras.
Sou uma forasteira que não conhece os hábitos desta terra. E Borg
está tão vazia desde que o senhor parou com as visitas, sr. Berling!
Gösta Berling sente, em meio aos arbustos úmidos de amieiro-
negro naquele chão alagadiço, como se alguém o cobrisse de rosas.
Faz vau com rosas até os joelhos enquanto as flores cintilam na
escuridão e ele sorve-lhes avidamente o perfume.
– O senhor fez mesmo uma coisa dessas? – a condessa repete.
Gösta Berling precisa decidir se responde e põe fim àquela
angústia, muito embora sinta uma alegria enorme por causa daquilo.
Mas não; ele se enche de um intenso calor e uma intensa luz ao
pensar no caminho que a condessa percorreu, ao pensar no quanto
se encontra molhada, enregelada e angustiada, e no quanto a voz
parece ter chorado!
– Não – ele diz –, não estou noivo.
Então novamente ela toma-lhe a mão e a acaricia.
– Estou tão feliz, tão feliz! – diz a condessa, e logo a voz se
quebra, cedendo sob o peso da angústia, estremecendo com a
intensidade do choro.
Há flores suficientes no caminho do poeta. A escuridão, o mal e o
ódio são expulsos de seu coração.
– Como a senhora é boa, como a senhora é boa! – ele diz.
Logo acima, as ondas investem contra toda a honra e todo o
esplendor de Ekeby. As pessoas já não têm mais líder, ninguém
inspira coragem e esperança naqueles corações, e então o molhe
cede, as ondas encobrem-no, e por fim avançam, com a certeza da
vitória, rumo ao dique, onde se erguem a forja e o moinho. Ninguém
mais trabalha para resistir às ondas, ninguém mais pensa em outra
coisa além de salvar vidas e pertences.
É natural para aqueles dois jovens que Gösta acompanhe a
condessa até em casa. Afinal, não pode deixá-la sozinha em meio à
noite escura, não pode deixar que novamente vagueie sozinha por
cima do gelo que derrete. Os dois nem ao menos se lembram de
que talvez precisem dele na forja, pois estão demasiado felizes por
haverem retomado a amizade.
Seria fácil imaginar que esses dois jovens nutrem amor um pelo
outro, mas quem há de saber com certeza? A aventura luminosa
dessas vidas chegou a mim somente em cacos e fragmentos. Não
sei nada, ou praticamente nada, sobre aquilo que existia nas
profundezas daquelas almas. O que tenho a dizer sobre os
fundamentos que os levaram a agir dessa forma? Sei apenas que
naquela noite uma mulher jovem e bela arriscou a vida, a honra, a
reputação e a saúde para voltar a pôr um pobre-diabo no caminho
certo. Sei apenas que naquela noite Gösta Berling permitiu que o
poder e a opulência do bem-amado lar ruíssem em favor daquela
que por ele havia vencido o medo da morte, o medo da vergonha, o
medo do castigo.
Amiúde os acompanho em pensamento enquanto atravessam o
gelo naquela noite terrível, que no entanto teve um desfecho tão
propício. Não acredito que naquelas almas houvesse alguma coisa
oculta ou proibida, que precisasse ser vencida e oprimida justo
naquele instante, enquanto vagavam em meio ao gelo, alegres,
conversando sobre tudo o que acontecera durante a separação.
Ele é mais uma vez o escravo dela, o pajem que se prostra aos
pés da patroa, e ela é a senhora.
Os dois sentem-se perfeitamente alegres, perfeitamente felizes.
Nenhum dos dois diz uma única palavra que signifique o amor.
Rindo, ambos caminham com os pés a chapinhar pela água da
orla. Riem ao encontrarem o caminho, ao perderem-no, ao
escorregarem, ao caírem, ao se levantarem, riem o tempo inteiro.
Tudo volta a ser uma brincadeira divertida, uma vida abençoada,
e os dois voltam a ser crianças que haviam se comportado mal e
brigado. Ah, mas como é bom fazer as pazes e recomeçar a
brincadeira!
Os rumores iam e vinham. Aos poucos o tempo levou a história
da travessia que a condessa fez sobre o gelo até Anna Stjärnhök.
– Agora vejo – disse ela – que Deus não tem apenas uma única
corda para o arco. Hei de acalmar meu coração e permanecer onde
sou necessária. Deus pode transformar Gösta Berling em um
homem sem minha ajuda.
MEUS CAROS AMIGOS, se vos acontecer de encontrar um pobre-diabo
à beira da estrada, uma criatura tristonha, que tenha o chapéu
pendurado nas costas e carregue os sapatos na mão, para não se
proteger das queimaduras do sol nem das pedras do caminho, um
coitado indefeso, que por livre vontade chame para si mesmo toda
sorte de desventura – pois bem, deixai-o para trás em temeroso
silêncio! Esse é o expiador de pecados, como bem sabeis, o
expiador de pecados a caminho dos santos sepulcros.
O expiador de pecados traja um manto rústico e vive à base de
água e pão seco, mesmo que seja um rei. Tem de ir a pé, não de
carro. Tem de pedir, não ter. Tem de dormir em meio aos cardos.
Tem de desgastar as lápides com genuflexões. Tem de bater com o
açoite cortante nas costas. Não pode sentir doçura senão no
sofrimento, não pode sentir prazer senão na tristeza.
A jovem condessa Elisabet certa vez trajou o manto rústico e
percorreu caminhos repletos de espinhos. O coração acusava-a de
haver pecado. Ansiava pela dor assim como o viajante exausto
anseia por um banho revigorante. Chamou para si mesma
desventuras terríveis enquanto rejubilava-se ao chegar cada vez
mais fundo na noite do sofrimento.
Seu marido, o jovem conde com a cabeça de velho, foi a Borg na
manhã que se sucedeu à noite em que o moinho e a forja de Ekeby
foram destruídos pela cheia da primavera. Mal havia chegado
quando a condessa Märta pediu que o chamassem a fim de narrar-
lhe coisas extraordinárias.
– A tua esposa saiu ontem à noite, Henrik. Passou horas longe.
E voltou para casa na companhia de um homem. Eu o ouvi desejar-
lhe boa-noite. E também sei quem é. Eu a ouvi quando saiu e
quando chegou, mesmo que não fosse essa a minha intenção.
Henrik, ela está a trair-te. Está a trair-te aquela criatura de ares
inocentes que pendura cortinas em ponto montanhês por todas as
janelas apenas para me incomodar. Ela nunca te amou, meu pobre
rapaz. O pai queria apenas vê-la bem-casada. Ela te aceitou para
que tivesse quem a sustentasse.
A condessa Märta falou com tanta malícia que o conde Henrik
acabou furioso. Disse que pediria o divórcio. Mandaria a esposa de
volta para o pai.
– Não, meu amigo – disse a condessa Märta –, dessa forma ela
acabaria demasiado entregue às forças do mal. Ela é mimada e
mal-educada. Permite-me tomar conta dela, permite-me pô-la
novamente no caminho do dever!
E o conde chamou a condessa para dizer-lhe que a partir
daquele momento estaria sob as ordens de sua mãe.
Ah, a cena que veio logo a seguir! Outra mais lamentável não
deve jamais ter se desenrolado naquele lar consagrado à tristeza.
O jovem conde fez com que a jovem condessa ouvisse muitas
palavras duras. Estendeu as mãos para o céu e lamentou-se por ter
permitido que seu nome fosse arrastado na lama por uma mulher
sem virtude. Brandiu o punho cerrado em frente ao rosto da esposa
e perguntou-lhe que castigo julgava suficiente para uma falta como
aquela.
A condessa não teve medo do marido. Estava convencida de ter
agido da maneira correta. Disse-lhe que havia pegado uma gripe
terrível e que aquilo era castigo suficiente.
– Elisabet – disse a condessa Märta –, esse assunto não é
motivo de brincadeiras.
– Nós duas – respondeu a jovem – jamais concordaríamos em
relação aos momentos certos para a seriedade e as brincadeiras.
– Mas, Elisabet, assim mesmo precisas compreender que
nenhuma mulher virtuosa abandona o lar no meio da noite para
vagar por aí com um célebre aventureiro.
Nesse momento Elisabet Dohna percebeu que a sogra estava
decidida a arruiná-la. Viu que teria de lutar com todas as forças para
evitar que uma desgraça terrível a atingisse.
– Henrik – ela pediu –, não deixes que a tua mãe se ponha entre
nós dois! Permite-me contar o que foi que se passou! És um homem
justo, e não hás de julgar sem antes ter me ouvido. Permite-me
contar tudo para ti, e então hás de ver que não fiz mais do que agir
segundo os princípios que me ensinaste.
O conde fez um gesto que indicava uma aquiescência silenciosa,
e a condessa Elisabet contou a história de como havia posto Gösta
Berling no mau caminho. Falou sobre tudo o que havia se passado
no pequeno gabinete azul, e sobre como fora levada pela
consciência a sair de casa para salvar aquele a quem havia
injustiçado.
– Eu não tinha direito a julgá-lo – ela disse –, e o meu próprio
marido ensinou-me que nenhum sacrifício é grande demais quando
se trata de desfazer uma injustiça. Não é verdade, Henrik?
O conde olhou para a mãe.
– O que a senhora pensa a respeito disso? – ele perguntou. O
corpo estava todo empertigado em sinal de dignidade, e a testa alta
e estreita franzia-se em rugas majestosas.
– Acredito – respondeu a condessa –, acredito que Anna
Stjärnhök é uma moça inteligente e que sabia muito bem o que
estava fazendo ao contar essa história para Elisabet.
– A senhora entende-me mal de caso pensado – disse o conde.
– Perguntei o que pensa a respeito dessa história. A condessa
Märta Dohna tentou mesmo convencer a própria filha, minha irmã, a
casar-se com um pastor destituído?
A condessa Märta passou um instante calada. Ah, esse Henrik,
tão estúpido, tão estúpido! Naquele momento estava a trilhar o
caminho errado. O cão de caça da condessa estava perseguindo o
próprio caçador enquanto deixava a lebre escapar. Mas, se Märta
Dohna passou um instante sem responder, esse instante não durou
muito.
– Meu caro amigo! – começou, dando de ombros. – Existem
boas razões para não revisitar as velhas histórias sobre aquele
homem, e são essas mesmas razões que agora me levam a pedir-te
que evites um escândalo público. A bem dizer, o mais provável é
que tenha falecido durante a noite passada.
Ela falava em um tom gentil e lamentoso, mas não havia uma
palavra de verdade no que dizia.
– Hoje Elisabet dormiu até tarde, e por isso não sabe que
pessoas foram mandadas ao lago à procura do sr. Berling. Ele não
retornou a Ekeby, e acredita-se que possa ter se afogado. O gelo
partiu-se hoje pela manhã. Vê, a tempestade o quebrou em mil
pedaços.
A condessa Elisabet olhou para fora. O lago estava praticamente
limpo.
E então teve pena de si mesma. Quisera fugir da justiça divina.
Havia mentido e fingido. Havia jogado o manto branco da inocência
sobre as próprias costas.
A desesperada prostrou-se de joelhos perante o marido, e a
confissão de repente escapou-lhe dos lábios.
– Julga-me, rejeita-me! Eu o amei. Não duvides de que eu o
amei! Estou arrancando os cabelos, arrancando as minhas roupas
de tristeza. Já não me importo com mais nada, agora que está
morto. Já não me importo em me proteger. Hás de saber toda a
verdade. Neguei o amor do meu coração ao meu marido e
entreguei-o a um forasteiro. Ah, eu, a rejeitada, eu sou uma dessas
mulheres seduzidas por um amor proibido!
Ó jovem desesperada, prostra-te aos pés dos teus juízes e
conta-lhes tudo! Dá boas-vindas ao martírio! Dá boas-vindas à
desonra! Ah, como hás de fazer com que os raios celestes caiam
sobre a tua jovem cabeça?
Conta ao teu marido que sentias medo quando o sofrimento te
dominava, enorme e irresistível, que estremecias com a vileza do
teu coração! Melhor teria sido encontrar fantasmas no cemitério que
demônios em tua própria alma.
Conta-lhes como, longe do rosto de Deus, te sentiste indigna de
pisar a superfície da terra! Lutaste em meio a orações e lágrimas.
“Ah, Deus, salva-me! Ah, filho de Deus, temido pelos demônios,
salva-me!”, imploraste.
Diz-lhes que te pareceu melhor esconder tudo! Ninguém devia
conhecer tua vileza. Acreditavas que agir daquela forma era seguir a
vontade de Deus. Acreditavas trilhar o caminho de Deus tentando
salvar o homem que amavas. Mas ele nada sabia a respeito do
amor que sentias. Não devia ter acabado em perdição por tua
causa. Acaso sabias o que era certo? Acaso sabias o que era
errado? Somente Deus sabia, e ele julgou-te. E derrubou o ídolo do
teu coração. E abriu-te o longo e revigorante caminho da penitência.
Diz-lhes que sabes não haver salvação na ocultação! Os
demônios adoram as trevas. Que as mãos do juiz peguem o açoite!
O castigo há de se derramar como um bálsamo sobre a ferida do
pecado. Teu coração anseia pelo sofrimento.
Diz-lhes tudo isso enquanto te prostras de joelhos e torces as
mãos em uma tristeza profunda, falando no tom aflito do desespero,
com uma risada estridente que dá boas-vindas aos pensamentos de
castigo e desonra, até que o teu marido te agarre e te levante do
chão!
– Trata de comportar-te como uma condessa Dohna, senão vou
ter de pedir à minha mãe que te castigue como se fosses criança!
– Faz comigo o que bem entenderes!
E então veio a sentença do conde:
– Minha mãe interveio em teu favor. Por isso hás de continuar
morando em minha casa. Mas a partir de agora ela manda e tu
obedeces.

Veja o caminho da penitência! A jovem condessa transformou-se


na mais humilde dentre as criadas. Por quanto tempo, ah, por
quanto tempo?
Por quanto tempo um coração orgulhoso pode dobrar-se? Por
quanto tempo lábios impacientes podem calar-se, por quanto tempo
uma mão ligeira pode ser contida?
Doce é a vileza da humilhação. Enquanto as costas doem por
causa do trabalho duro, o coração mantém-se em silêncio. Para
quem dorme poucas horas em uma cama de palha, o sono chega
sem que o convidem.
Que a velha se transforme em um espírito do mal para
atormentar a jovem! Ela agradece à benfeitora. O mal que traz
consigo ainda não morreu. Que a tire da cama diariamente às
quatro horas da manhã! Que dê àquela trabalhadora inexperiente
uma quantidade desarrazoada de trabalho no pesado tear! Faz bem.
Pode ser que a expiadora de pecados não tenha forças suficientes
para sozinha empunhar o açoite.
Quando chega o momento da grande lavagem de primavera, a
condessa Märta instala-a na lavanderia, ao lado da tina. Vai
pessoalmente observar o trabalho desempenhado.
– A água está demasiado fria na sua tina – ela diz, tirando água
fervente de uma panela e derramando-a sobre os braços nus da
jovem.
O dia é frio quando chega a hora de as lavadeiras postarem-se
às margens do lago para enxaguar as roupas. Nuvens de
tempestade deslizam pelo céu e cobrem-nas com um misto de
chuva e neve. Os vestidos das lavadeiras acabam encharcados e
pesados como chumbo. O trabalho com a tábua de bater roupas é
pesado. O sangue brota por baixo das unhas delicadas.
Mas a condessa Elisabet não se queixa. Abençoada seja a
bondade de Deus! Onde mais o expiador de pecados encontra
doçura a não ser no sofrimento? As pontas cortantes do açoite
caem-lhe suavemente, como se fossem pétalas de rosa, sobre o
dorso.
Aquela jovem mulher logo há de saber que Gösta Berling
encontra-se vivo. A velha queria apenas enganá-la para que
confessasse. O que mais? Veja o caminho de Deus! Veja a direção
indicada por Deus! Foi assim que atraiu a pecadora para o caminho
da reconciliação.
Havia apenas uma coisa com a qual se angustiar. Como haveria
de relacionar-se com a sogra, cujo coração Deus havia endurecido
por causa dela? Ah, ele haveria de julgá-la com misericórdia.
Precisara ser má para ajudar a pecadora a reconquistar o amor de
Deus.
Não imaginava a frequência com que almas experimentadas em
toda sorte de bem-aventurança buscam prazer na crueldade.
Quando a lisonja e as carícias, a vertigem da dança e o encanto da
brincadeira faltam a uma alma impaciente e obscurecida, esta
mergulha nas profundezas mais negras em busca da crueldade. No
sofrimento dos homens e animais existe motivo de alegria para as
sensibilidades entorpecidas.
A velha não percebe maldade nenhuma. Imagina estar somente
aplicando um castigo à esposa leviana. E assim com frequência
mantém-se acordada à noite, pensando sobre novas maneiras de
atormentá-la.
Certa tarde atravessa a casa tendo ao lado a condessa, que
ilumina o caminho com uma vela. Ela segura a vela na mão, sem
castiçal.
– A vela acabou – diz a jovem.
– Quando a luz acaba, o castiçal arde – responde a condessa
Märta.
E as duas continuam até que o pavio fumegante se extinga na
mão queimada.
Mas aquilo é pueril. Existem martírios da alma que transcendem
qualquer sofrimento do corpo. A condessa Märta chama convidados
e faz com que a própria senhora da casa sirva-os à própria mesa.
Veja, esse é o grande dia da expiadora de pecados. Pessoas
estranhas veem-na humilhada. Veem que já não é digna de sentar-
se à mesa com o marido. Ah, com que desprezo aqueles olhares
pairam sobre ela!
E tudo se torna pior, três vezes pior. Nenhum olhar encontra os
olhos dela. Todos à mesa permanecem calados e cabisbaixos, tanto
os homens como as mulheres, desanimados.
Mas ela recolhe tudo aquilo como se fosse carvão em brasa para
despejar sobre a própria cabeça. Será que seu pecado é mesmo tão
horrível? Será que estar a seu lado é uma vergonha?
E logo vem a tentação. Pois, veja, Anna Stjärnhök, que era
amiga da jovem condessa, e o presidente do tribunal de Munkerud,
que estava sentado ao lado na mesa, agarram-na quando se
aproxima, puxam a fôrma de assar, empurram uma cadeira à frente
e não a deixam ir embora.
– Senta, menina, senta! – diz o presidente do tribunal. – Não
fizeste mal nenhum.
E em uníssono os convidados declaram que, a não ser que lhes
fizesse companhia à mesa, todos iriam embora. Nenhum dos
convivas é assistente de carrasco. Ninguém está a serviço de Märta
Dohna. E ninguém se deixa enganar tão facilmente quanto um
conde estúpido.
– Ah, meus bons senhores! Ah, meus queridos amigos! Não
sejam tão piedosos! Assim os senhores me obrigam a confessar
meu pecado. Existe uma pessoa que me é muito querida.
– Menina, decerto não sabes o que é o pecado. Não conheces
tua própria inocência. Gösta Berling nem ao menos sabia que
gostavas dele. E agora volta ao lugar que ocupas na tua casa! Não
fizeste mal nenhum.
Os convivas passam um tempo querendo animá-la, e assim
também se tornam crianças alegres. O riso e a brincadeira ecoam
ao redor da mesa.
Aquelas pessoas sensíveis e arrebatadas são boas, mas mesmo
assim são também enviadas do tentador. Querem fazê-la acreditar
que é uma mártir, e assim escarnecer abertamente da condessa
Märta, como se esta fosse uma bruxa. Não entendem, porém, o que
se passa. Não compreendem que a alma busca pureza, que a
expiadora de pecados é obrigada pelo coração a sujeitar-se às
pedras do caminho e às queimaduras do sol.
Às vezes a condessa Märta a obriga a sentar-se por longos dias
em silêncio junto ao bastidor, e então lhe conta um sem-número de
histórias sobre Gösta Berling, pastor e aventureiro. Quando a
memória não lhe basta, a condessa fantasia, simplesmente inventa,
para que aquele nome soe por dias a fio nos ouvidos da jovem. E
aquilo é o que mais lhe instila temor. Nesses dias ela percebe que a
expiação não há de ter fim jamais. O amor que sente não há de
morrer. A jovem condessa acredita que há de morrer antes. As
forças do corpo aos poucos começam a falhar. Com frequência ela
adoece.
– Por onde anda o teu herói? – a condessa pergunta, em tom
escarninho. – Dia após dia espero vê-lo à frente dos cavalheiros.
Por que não invade Borg, não te instala no trono e não aprisiona a
mim e ao teu marido na torre? Será que já foste esquecida?
A jovem quase tinha vontade de defendê-lo e dizer que ela
mesma o havia proibido de oferecer qualquer tipo de ajuda. Mas
não, o melhor era calar-se, calar-se e obedecer.
Dia após dia o fogo da exasperação a consumia. Tinha febres
constantes e sentia-se tão exausta que mal se aguentava de pé.
Queria apenas morrer. As poderosas forças da vida estão vencidas.
O amor e a alegria não se atrevem a mover-se. Ela já não teme o
sofrimento.

É como se o marido já não quisesse saber que ela existe. Passa


quase o tempo inteiro trancado no quarto, estudando caligrafias
elaboradas e parágrafos impressos em tipos antigos de leitura difícil.
Lê cartas da nobreza em pergaminhos ornados com o sinete do
reino da Suécia, grande e opulento, formado com cera vermelha e
guardado em uma caixa de madeira torneada. Contempla antigos
brasões de armas com lírios em um campo branco e grifos azuis. É
isso o que entende, e é isso o que interpreta com desenvoltura. Lê e
relê antigos discursos fúnebres e detalhes pessoais acerca dos
nobres condes Dohna, cujas proezas são comparadas às dos heróis
de Israel e dos deuses gregos.
Veja, essas coisas antigas haviam lhe dado alegria. Ele, porém,
não se digna mais pensar na jovem esposa.
A condessa Märta fez um comentário que matou todo o amor que
nele havia: “Ela casou-se contigo pelo dinheiro”. Nenhum homem
tolera ouvir isso. Acaba com todo o amor. E naquele instante ele
sentia-se indiferente a tudo o que dizia respeito à jovem esposa. Se
a mãe a pusesse de volta no caminho do dever, seria bom. Henrik
nutria profunda admiração pela mãe.
Essa miséria estendeu-se por um mês inteiro. E no entanto não
foi uma época tão agitada e tempestuosa como talvez pareça
quando os acontecimentos são reunidos em poucas páginas
escritas. A condessa Elisabet manteve-se sempre calma nas
aparências. Somente ao ouvir que Gösta Berling havia morrido
deixara-se vencer pela emoção. Mas a angústia por não ter
conseguido manter vivo o amor pelo marido era tão grande que
provavelmente ela teria permitido que a condessa Märta a
atormentasse até a morte, se um dia a velha governanta não lhe
tivesse dirigido a palavra.
– A condessa precisa falar com o conde – disse. – Meu Deus, a
condessa é uma menina! A condessa talvez nem ao menos saiba o
que esperar, mas eu vejo muito bem o que está acontecendo.
Mas era justamente isso o que a jovem condessa não podia dizer
ao marido enquanto ele nutrisse uma suspeita tão obstinada.
Naquela mesma noite a condessa vestiu-se em silêncio e saiu.
Trajava o vestido simples de uma camponesa e levava um embrulho
nas mãos. Pretendia fugir de casa e nunca mais voltar.
Não se afastava para fugir dos tormentos e do sofrimento.
Acreditava tão somente que Deus havia lhe dado um sinal de que
devia partir, de que devia cuidar da saúde e das forças do corpo.
Ela não seguiu rumo ao oeste, atravessando o lago, pois lá
morava aquele de quem tanto gostava. Tampouco seguiu rumo ao
norte, pois lá moravam vários de seus amigos, e tampouco seguiu
rumo ao sul, pois muito, muito ao sul localizava-se a casa do pai, de
onde não queria se aproximar mais um passo sequer. Seguiu então
rumo ao leste, pois lá sabia não ter um lar, não ter amigos queridos,
não ter conhecidos, não ter auxílio ou consolo.
Não seguiu com passos leves, pois não acreditava ter feito as
pazes com Deus. Mas assim mesmo estava contente por saber que
daquele momento em diante carregaria o fardo de seu pecado em
meio a estranhos. Os olhares indiferentes pousariam sobre ela,
reconfortantes como o aço que repousa sobre um membro inchado.
Pretendia vagar até que encontrasse uma pequena e humilde
propriedade na orla da floresta, onde ninguém a conhecesse.
“Aconteceu-me aquilo que podeis ver, e meus pais mandaram-me
embora”, diria. “Dai-me comida e um teto até que eu mesma possa
ganhar meu pão! Tenho algum dinheiro.”
E assim ela avançou pela noite clara de junho, pois o mês de
maio havia se passado durante todo aquele sofrimento. Ah, o mês
de maio! Como é bonito quando as bétulas misturam o esverdeado
pálido à escuridão da floresta de espruces, e quando o vento sul
chega trazendo calor!
Devo parecer ingrata com outros que desfrutaram das tuas
delícias, ó belo mês! Não elogiei tua beleza com nem uma palavra
sequer.
Ah, maio, tu, mês querido e luminoso, já prestaste atenção a uma
criança que, sentada no colo, escuta a mãe contar-lhe uma fábula?
Enquanto ouvem histórias sobre gigantes maus e os sofrimentos
amargos de belas princesas, as crianças mantêm a cabeça erguida
e os olhos abertos, mas, se a mãe começa a falar sobre alegria e
sobre a luz do sol, os pequenos fecham os olhos e adormecem em
silêncio, com a cabecinha junto ao peito dela.
Vê, belo mês, também eu sou uma criança dessas. Que outros
escutem histórias sobre as flores e a luz do sol; para mim quero as
noites escuras, repletas de visões e aventuras, para mim os
destinos trágicos, para mim os sofrimentos de corações indomáveis
tomados pela tristeza.
ERA PRIMAVERA, e o ferro de todas as fundições na província de
Värmland estava prestes a ser levado para Gotemburgo.
Mas em Ekeby ainda não havia ferro nenhum para ser levado.
No outono por vezes faltara água, e na primavera os cavalheiros
haviam governado.
Durante aquela época a cerveja forte e amarga espumava pela
larga escada de granito na corredeira de Björsjöfallet, e o extenso
lago Löven não estava cheio de água, mas de aguardente. Durante
aquela época a gusa não fora posta na forja, mas os ferreiros
postavam-se de camisa e sapatos de madeira em frente às lareiras
virando enormes assados em longos espetos, ao mesmo tempo que
os ajudantes usavam longas tenazes para segurar capões
recheados com toucinho sobre as brasas. Naqueles dias, a dança
correu solta pelos morros da fundição. As pessoas dormiam sobre a
mesa de carpintaria e jogavam cartas em cima da bigorna. Naqueles
dias, não se forjou nenhum ferro.
Mas a primavera chegou, e no escritório comercial em
Gotemburgo as pessoas esperavam o ferro de Ekeby. Buscaram o
contrato, firmado pelo senhor e pela senhora, onde se mencionavam
entregas da ordem de milhares de quintais.
Mas de que importava aos cavalheiros o contrato firmado pela
senhora? A alegria, o violino e o divertimento reinavam. Os
cavalheiros faziam de tudo para que a dança corresse solta pelos
morros da fundição.
O ferro chegava de Stömme, o ferro chegava de Sölje. O ferro de
Kymsberg atravessava áreas desabitadas até as margens do
Vänern. Vinha de Uddeholm e de Munkfors e de todas as várias
fundições. Mas onde está o ferro de Ekeby?
Acaso Ekeby já não é uma das mais célebres fundições de
Värmland? Ninguém mais zela pela honra daquela antiga
propriedade? Como cinzas ao vento, o lugar é deixado nas mãos
dos levianos cavalheiros. Eles deixam que a dança corra solta pelos
morros da fundição. O que mais poderiam fazer aqueles péssimos
intelectos?
Mas corredeiras e rios, veleiros e barcaças, portos e comportas
perguntam e indagam:
– O ferro de Ekeby não vem?
E da floresta aos lagos, das montanhas aos vales há vozes que
sussurram e indagam:
– O ferro de Ekeby não vem? Já não vem mais ferro nenhum de
Ekeby?
E nas profundezas da floresta a carvoaria põe-se a rir, e as
grandes cabeças dos martinetes nas forjas escuras parecem abrir
um sorriso zombeteiro, as minas abrem as goelas e gargalham, as
escrivaninhas no escritório de compras, onde o contrato da senhora
encontra-se guardado, contorcem-se de tanto rir.
– Já ouviram coisa mais engraçada? Não chegou ferro nenhum
de Ekeby! Na melhor fundição de toda a província de Värmland não
há ferro nenhum!
Levantai-vos, despreocupados, levantai-vos, desvalidos! Acaso
pretendeis deixar que tamanha vergonha se abata sobre Ekeby? Ah,
por amor aos lugares mais belos dessa terra fértil de Deus, por amor
aos objetos de desejo que se encontram em caminhos longínquos,
por amor aos nomes que não podeis dizer em meio a forasteiros
sem que vossos olhos encham-se de lágrimas, levantai, cavalheiros!
Salvai a honra de Ekeby!
Ora, mas se o martinete descansa em Ekeby, deve haver
trabalhado nas outras seis fundições. Lá deve haver ferro suficiente,
e mais do que suficiente.
Então Gösta Berling põe-se a caminho para falar com os
capatazes das seis fundições.
Mas cabe desde já dizer que a Högfors, localizada às margens
do Björksjöälven, logo acima de Ekeby, ele não viu razão para viajar.
O lugar era demasiado próximo de Ekeby, e havia praticamente
estado sob o controle dos cavalheiros.
Mas Gösta fez uma viagem de 3 léguas rumo ao norte e chegou
a Lötafors. O lugar é bonito; quanto a isso não resta dúvida. A parte
alta do Löven se expande naquela região, e logo atrás localiza-se o
monte Gurlita, com o cume íngreme e ares de natureza indômita e
romantismo, que convêm muito bem a um velho morro. Mas a forja,
a forja não está como devia. A roda está quebrada, e assim passou
durante o ano inteiro.
– Ora, e por que não a consertaram?
– Porque o marceneiro, meu caro amigo, o marceneiro, o único
em toda a região que seria capaz de consertá-la, estava ocupado
com outras coisas. Não conseguimos forjar sequer 1 quintal.
– E por que não mandaram chamar o marceneiro?
– Chamar o marceneiro! Como se não estivéssemos dispostos a
chamá-lo onde quer que estivesse! Ele simplesmente não pôde vir.
Está construindo pistas de bolão e gazebos em Ekeby.
Prontamente Gösta compreende qual será o resultado da
viagem.
Ele segue mais ao norte, até chegar a Björnidet. Também esse
um lugar belo e esplendoroso, com uma paisagem digna de um
palácio. A grande casa senhorial domina um vale semicircular,
rodeado em três lados por grandes elevações e no quarto pelo
Löven, que naquele ponto chega ao fim. E Gösta sabe que não
existe lugar melhor para caminhadas ao luar e arroubos de paixão
do que as margens ao longo do rio, que avançam para além da
corredeira e seguem rumo à forja, envolta por um enorme arco de
pedra encravado na própria montanha. Mas e ferro? Por acaso há
ferro?
Não, claro que não. O carvão havia faltado, e de Ekeby não
chegara dinheiro para fazer o pagamento dos carvoeiros e do
transporte. Não houvera atividade nenhuma durante o inverno.
Então Gösta toma o caminho do sul. Chega a Hån, na margem
leste do Löven, e a Lövstafors, nas profundezas da floresta, mas
não obtém resultados melhores. Não há ferro em lugar nenhum, e
por toda parte parece ser por culpa dos cavalheiros.
Assim Gösta retorna a Ekeby e, com uma expressão
consternada no rosto, os cavalheiros pegam os 150 quintais que
restavam no armazém, com a consciência pesada de tristeza, posto
que ouvem toda a natureza zombar de Ekeby, e têm a impressão de
que o chão se convulsiona em choro, as árvores ameaçam-nos com
gestos furiosos e a grama e as plantas lamentam o fato de que a
honra de Ekeby foi perdida.

Mas por que tantas palavras e tanto espanto? Há ferro em


Ekeby!
Está lá, carregado nas barcaças às margens do rio Klarälven,
pronto para zarpar rio afora, pronto para ser pesado na balança de
Karlstad, pronto para ser levado por um dos veleiros do Vänern até
Gotemburgo. A honra de Ekeby está salva!
Mas como isso foi possível? Afinal, em Ekeby não há mais do
que 150 quintais de ferro, e nas demais fundições não há ferro
nenhum. Como é possível que barcaças carregadas agora estejam
a levar uma quantidade enorme de ferro para a balança de
Karlstad? Ah, para saber a resposta é necessário perguntar aos
cavalheiros.
Os cavalheiros estão a bordo daqueles feios e pesados veículos
aquáticos, e têm o intuito de acompanhar pessoalmente o ferro de
Ekeby a Gotemburgo. Não bastaria que um barqueiro qualquer, que
um mortal qualquer acompanhasse o ferro. Os cavalheiros
chegaram com garrafas e quitutes, com trompas e violinos, com
espingardas e varas de pesca e baralhos. Estão dispostos a fazer
de tudo pelo estimado ferro, e a não o abandonar enquanto não tiver
sido descarregado no cais de Gotemburgo. Eles próprios vão
carregar e descarregar, cuidar de velas e timões. São os homens
certos para uma tarefa como essa. Haveria banco de areia no
Klarälven ou elevação no leito do Vänern que não conhecessem? O
leme e as talhas não se encontram tão seguros naquelas mãos
como arcos e rédeas?
Se há uma coisa que os cavalheiros amam é ferro nas barcaças.
Cuidam daquilo como se fosse o mais fino cristal, estendendo lonas
sobre a carga. Nenhum canto pode ficar descoberto. São aquelas
barras cinzentas e pesadas que hão de restaurar a honra de Ekeby.
Nenhum forasteiro pode encará-las com um olhar indiferente. Ah,
Ekeby, terra do anseio! Que tua honra resplandeça!
Nenhum dos cavalheiros ficou em casa. O tio Eberhard levantou-
se da escrivaninha, e o primo Kristoffer deixou o recanto da lareira.
Até mesmo o gentil Löwenborg está lá. Ninguém pode fugir do
compromisso quando se trata da honra de Ekeby.
Mas para Löwenborg não faz bem ver o rio Klarälven. Passou 37
anos sem vê-lo, e desde então não havia posto os pés num barco.
Ele detesta a superfície reluzente dos lagos e os rios cinzentos.
Acodem-lhe lembranças demasiado nítidas de eventos tristes
quando desliza pela água, e assim costuma evitá-la; mas hoje não
pôde manter-se em casa. Também ele precisou sair para salvar a
honra de Ekeby.
O que ocorreu foi que 37 anos antes Löwenborg viu a noiva
afogar-se nas águas do Klarälven, e desde então sua pobre cabeça
amiúde se mostra confusa.
Quando ele olha para o rio, sua velha cabeça não tarda a se
embaralhar. Aquele rio cinzento, que corre com inúmeras ondas
cintilantes, é uma enorme serpente de escamas prateadas à espera
da presa. Os altos e pardos bancos de areia, em meio aos quais o
rio abriu seu leito, são as paredes de uma armadilha em cujo fundo
a serpente espreita, e a larga estrada, que abre um buraco na
parede e em meio à areia profunda segue a vau até a balsa, ao lado
da qual as barcaças encontram-se amarradas, é a entrada para
aquele terrível covil da morte.
E o velhinho permanece lá, observando com olhinhos azuis. Os
longos cabelos brancos esvoaçam com todos os ventos, e as
bochechas, que em geral desabrocham em um leve matiz de rosa,
encontram-se totalmente pálidas de angústia. Ele tem certeza, como
se lhe houvessem garantido, que logo alguém há de aparecer
naquela estrada e cair na bocarra da serpente que espreita.
Naquele momento os cavalheiros pretendem soltar os cabos e
pegar as longas varas para empurrar as barcaças rumo à corrente,
mas Löwenborg grita:
– Parem, digo-lhes, parem, pelo amor de Deus!
Os cavalheiros entendem que está confuso porque sente a
embarcação balançar sob os pés, mas assim mesmo todos param e
erguem as varas.
E Löwenborg, que vê o rio à espreita e vê que alguém há de
necessariamente cair naquelas águas, aponta com um gesto de
alerta para a estrada, como se alguém estivesse a percorrê-la.
Todos sabem que às vezes a vida gosta de aprontar
coincidências como aquela que ocorreu logo a seguir. Aqueles que
ainda conseguem surpreender-se devem ter se admirado ao
descobrir que os cavalheiros estavam com as barcaças no
ancoradouro da balsa do Klarälven justamente na manhã que se
sucedeu à noite em que a condessa Elisabet havia começado a
vagar rumo ao leste. Mas com certeza seria ainda mais estranho
que essa jovem não tivesse encontrado ajuda na necessidade. E
assim aconteceu que ela, que passara a noite inteira andando,
chegou à estrada que levava à balsa justamente no instante em que
os cavalheiros pretendiam zarpar, de maneira que todos se
mantiveram de pé com os olhos fixos nela enquanto falava com o
balseiro, que soltava as amarras. Estava vestida como uma
camponesa, e ninguém imaginou quem poderia ser. Mesmo assim,
porém, mantiveram os olhares fixos nela, porque tinha um ar
conhecido. Enquanto ela permanecia lá, falando com o balseiro,
uma nuvem de poeira ergueu-se na estrada, e em meio a essa
nuvem foi possível vislumbrar uma grande caleche amarela. Ela
compreendeu que aquele era um veículo de Borg, que estavam à
procura dela e que naquele momento seria descoberta. Escapar na
balsa já não seria possível, e o único esconderijo viável seria na
barcaça dos cavalheiros. Ela precipitou-se naquela direção sem
nem ao menos ver que tipo de gente havia a bordo. E foi bom não
ter visto, pois de outra forma talvez houvesse preferido jogar-se sob
as patas dos cavalos a fugir naquela direção.
Quando já se encontrava a bordo, ela gritou apenas:
– Escondam-me, escondam-me!
E então tropeçou e caiu em cima da carga de ferro. Mas os
cavalheiros pediram-lhe calma. Empurraram a barcaça para dentro
do rio, para que assim chegasse à corrente e fosse levada a
Karlstad, no momento exato em que a caleche chegou ao
ancoradouro da balsa.
No carro estavam o conde Henrik e a condessa Märta. O conde
saltou para fora a fim de perguntar ao balseiro se tinha visto sua
condessa. Mas, como o conde Henrik sentisse certo
constrangimento ao ver-se obrigado a indagar sobre a esposa
fujona, disse apenas:
– Tem algo faltando aqui!
– Exato – disse o balseiro.
– Tem algo faltando aqui. Por acaso o senhor não viu?
– Sobre o que o senhor está falando?
– Não vem ao caso, mas tem algo faltando aqui. Por acaso hoje
o senhor não levou algo para a outra margem do rio?
Foi assim que o conde não descobriu nada, e a condessa Märta
precisou falar com aquele homem. Em um minuto, soube que a
pessoa que faltava encontrava-se a bordo de uma das barcaças que
deslizavam lentamente pelas águas do rio.
– Quem são as pessoas naquela barcaça?
– Ora, são os cavalheiros, como temos por hábito chamá-los.
– Ah! – exclama a condessa. – Neste caso a tua esposa está em
boas mãos, Henrik. O melhor é voltarmos de imediato para casa.

Na barcaça não reinava uma alegria tão profunda como a


condessa Märta a princípio imaginara. Desde o aparecimento da
caleche amarela, a jovem assustada mantinha-se encolhida atrás da
carga, sem se mexer e sem pronunciar uma palavra sequer.
Simplesmente mantinha o olhar fixo na margem.
É provável que somente ao ver a caleche amarela se afastar
tenha reconhecido os cavalheiros. Ela pôs-se de pé às pressas. Foi
como se quisesse fugir novamente, porém viu-se logo impedida pelo
homem mais próximo e voltou a afundar atrás da carga com um
lamento.
E os cavalheiros não se atreveram a fazer-lhe perguntas ou
dirigir-lhe a palavra. Ela dava a impressão de estar às raias da
loucura.
A cabeça daqueles homens despreocupados deve ter começado
a pesar com tamanha responsabilidade. Aquele ferro já era um fardo
e tanto para ombros mal-acostumados, e a partir daquele momento
ainda teriam de zelar por uma jovem aristocrata que fugira do
marido.
Ao encontrarem aquela jovem durante as festas do inverno,
certos cavalheiros haviam se lembrado da irmã mais nova que
outrora amavam. Ao brincar e brigar com essa irmã mais nova, era
preciso tomar cuidado, e ao falar com ela era preciso vigiar-se para
não usar palavras feias. Se um menino estranho a tivesse
perseguido numa brincadeira descontrolada ou entoado canções
ofensivas, o irmão ter-se-ia jogado sobre o forasteiro com uma
amargura infinita e batido quase até matá-lo, pois a irmã mais nova
jamais poderia ouvir grosserias, sofrer alguma tristeza ou deparar-se
com o mal e o ódio.
A condessa Elisabet tinha sido a irmãzinha alegre de todos
aqueles homens. Quando pousou as mãozinhas em cima dos
punhos rígidos daqueles homens, foi como se dissesse: “Vê como
sou frágil! Mas tu és meu irmão mais velho; tu hás de proteger-me
dos outros, e também de ti mesmo”. E todos haviam sido corteses
desde que a viram.
Naquele momento os cavalheiros encaravam-na com terror e mal
a reconheciam. Parecia magra e sofrida, o pescoço já não era
arredondado e o rosto parecia translúcido. Devia ter se machucado
durante as andanças da noite, pois de uma pequena ferida junto à
fronte gotas de sangue brotavam, e os cabelos louros e ondulados
da franja haviam se tornado pegajosos por causa do sangue. O
vestido estava sujo por causa das longas andanças pelos caminhos
orvalhados, e os sapatos estavam surrados. Os cavalheiros tinham
um sentimento terrível de que aquela era uma estranha. A condessa
Elisabet que haviam conhecido não tinha um olhar tão intenso e tão
desvairado. A pobre irmãzinha com certeza tinha sido levada à
loucura. Foi como se um espírito vindo de outra dimensão estivesse
lutando contra a alma legítima pela supremacia sobre aquele corpo
maltratado.
Mas não era necessário preocupar-se quanto ao que fazer com
ela. Os antigos pensamentos da condessa logo tornaram a
despertar. A tentação volta a assaltá-la. Deus quer novamente pô-la
à prova. Veja, ela está entre amigos! Será que pretende abandonar
o caminho da expiação?
A jovem condessa levantou-se e gritou que precisava ir embora.
Os cavalheiros tentaram acalmá-la. Disseram-lhe que estava a
salvo. Que a protegeriam de qualquer tipo de perseguição.
Ela pediu apenas que a deixassem ocupar o pequeno barco que
acompanhava a barcaça e que a deixassem remar até a margem
para seguir a jornada sozinha.
Mas claro que os cavalheiros não poderiam permitir. O que seria
feito dela? Melhor seria manter-se na companhia deles. Não
passavam de um bando de homens pobres, mas assim mesmo
encontrariam uma forma de ajudá-la.
Então a jovem condessa torceu as mãos e pediu que a
deixassem ir embora. Mas os cavalheiros não poderiam atender a
esse pedido. Ao verem-na tão fraca e tão necessitada, chegaram a
pensar que morreria na estrada.
Gösta Berling estava um pouco afastado e tinha o olhar fixo na
água. Talvez a jovem condessa preferisse não o ver. Ele não sabia,
mas seus pensamentos já riam e brincavam. “Agora ninguém sabe
onde essa jovem se encontra”, pensou; “podemos levá-la de pronto
a Ekeby. Vamos mantê-la escondida por lá, nós, cavalheiros, e
vamos tratá-la bem. Ela há de ser nossa rainha, nossa senhora,
mas ninguém há de saber que lá se encontra. Vamos tratá-la muito,
muito bem. Talvez vivesse feliz entre nós; haveríamos de celebrá-la
como se fosse a filha de todos os velhos”.
Ele jamais ousara decidir, mesmo em foro íntimo, se de fato a
amava. Não teria como possuí-la sem pecado, e não queria arrastá-
la para uma relação vil ou sórdida; quanto a isso tinha certeza.
Mantê-la, porém, escondida em Ekeby e ser bom com ela, uma vez
que outros haviam sido maus, e deixá-la aproveitar tudo de bom que
a vida tem a oferecer – ah, que sonho, que sonho tão feliz!
Mas logo Gösta despertou dessas fantasias, pois a jovem
condessa estava no mais absoluto desespero, e suas palavras
tinham o tom cortante do desespero. Havia se posto de joelhos em
meio aos cavalheiros e pedido que a deixassem ir.
– Deus ainda não me perdoou! – ela bradava. – Deixem-me ir!
Gösta percebeu que nenhum dos outros seria capaz de
obedecer-lhe, e compreendeu que teria de agir por conta própria.
Ele, que a amava, teria de fazer aquilo.
Teve certa dificuldade para se mexer; era como se o corpo
resistisse à sua vontade, mas por fim arrastou-se para junto dela e
disse que estava disposto a levá-la a terra.
A condessa levantou-se no mesmo instante. Gösta desceu-a ao
pequeno barco e remou até a margem leste. Ele atracou, baixou um
estreito portaló e ajudou-a a descer do barco.
– O que será feito da senhora a partir de agora, condessa? – ele
perguntou.
Ela levantou o dedo com uma expressão séria e apontou para o
céu.
– Quando encontrar qualquer dificuldade, condessa…
Gösta não conseguia falar; a voz lhe faltava; mas a jovem
compreendeu o que dizia e respondeu:
– Quando eu precisar, faço chegar uma mensagem ao senhor.
– Eu gostaria de tê-la protegido de todo o mal – ele disse.
A condessa estendeu a mão em despedida, e a partir de então
ele não conseguiu dizer mais nada. Aquela mãozinha pareceu-lhe
fria e frouxa.
A condessa não tinha consciência de mais nada, a não ser por
aquelas vozes internas que a obrigavam a partir e viver em meio a
pessoas estranhas. Mal sabia que naquele momento deixava para
trás o homem que amava.
Então Gösta a deixou em terra e remou novamente rumo à
barcaça dos cavalheiros. Quando subiu a bordo, estava tremendo
de cansaço e parecia exausto e sem forças. Tinha a impressão de
haver concluído o trabalho mais difícil de toda a sua vida.
Por mais uns dias conseguiu manter a coragem, até que a honra
de Ekeby estivesse salva. Levou o ferro até a balança localizada em
Kanikenäset, mas logo passou um bom tempo sem forças e sem
nenhuma alegria de viver.
Os cavalheiros não perceberam nenhuma alteração enquanto
permaneciam a bordo. Gösta ativava cada nervo para manter vivas
a alegria e a incúria, pois era com a alegria e a incúria que haviam
de salvar a honra de Ekeby. Como aquela empresa audaciosa
poderia dar certo se a tentassem com os rostos preocupados e os
corações entristecidos?
Se é mesmo verdade o que dizem os boatos, segundo os quais
dessa vez os cavalheiros tinham mais areia do que ferro nas
barcaças, se é mesmo verdade que carregaram e descarregaram
incessantemente sempre as mesmas barras na balança de
Kanikenäset, até que milhares de quintais tivessem sido pesados,
se é mesmo verdade que tudo isso pôde acontecer porque o fiscal
da balança e sua equipe foram deveras bem tratados à base de
quitutes e bebidas levados de Ekeby, então podemos ter certeza de
que devem ter se regozijado com as barcaças de ferro.
Mas quem pode saber, a essa altura? No entanto, se assim foi, é
certo que Gösta Berling não dispôs de tempo para entristecer-se. De
qualquer modo, tampouco sentiu o perigo ou o gáudio da aventura.
E, tão logo fez a primeira queixa, sucumbiu ao desespero.
– Ah, Ekeby, minha terra amada – exclamou para si mesmo –,
que tua honra resplandeça!
Assim que os cavalheiros receberam o recibo do fiscal da
balança, carregaram o ferro em um dos veleiros do Vänern. Era
comum que barqueiros contratados se encarregassem da viagem a
Gotemburgo, e as fundições de Värmland em geral não tinham
grandes preocupações com o ferro uma vez que tivessem em sua
posse o recibo do fiscal da balança comprovando que a entrega fora
realizada. Mas os cavalheiros não queriam deixar o assunto pela
metade: pretendiam acompanhar o ferro até Gotemburgo.
No caminho ocorreu o acidente. Uma tempestade caiu à noite, o
veleiro tornou-se incontrolável, foi levado em direção a um recife e
afundou com toda a preciosa carga. Trompas e baralhos e garrafões
de vinho ainda cheios foram a pique. Mas, quando visto sob a ótica
adequada, de que importava que o ferro estivesse perdido? De
qualquer forma a honra de Ekeby estava salva. E, ainda que o
próprio senhor de Ekeby tivesse de sentar-se e, numa
correspondência circunspecta, comunicar aos atacadistas da cidade
grande que não desejava receber o pagamento, uma vez que o ferro
não lhes fora entregue, não faria diferença nenhuma. Ekeby era
uma fundição rica, e sua honra estava salva.
Mas e se portos e comportas, se minas e carvoarias, se veleiros
e barcaças começassem a cochichar histórias suspeitas? E se um
sussurro abafado cruzasse as florestas, dizendo que toda aquela
jornada não passava de uma farsa? E se imaginassem, por toda a
província de Värmland, que jamais houvera mais do que 150
quintais nas barcaças, e que o naufrágio fora cuidadosamente
planejado? Nesse caso uma proeza arriscada fora levada a efeito e
a astúcia dos cavalheiros tivera êxito. Nada disso prejudicaria a
honra da antiga fundição.
Mas já faz muito tempo. É possível que os cavalheiros tenham
comprado ferro de outra parte, ou que o tenham encontrado em um
armazém até então desconhecido. A verdade sobre uma história
dessas jamais será descoberta. O fiscal da balança negava-se a
ouvir histórias sobre um possível embuste, e afinal de contas devia
saber o que acontecera.
Ao chegarem em casa, os cavalheiros ouviram as novidades. O
casamento do conde Dohna seria anulado. O conde havia
despachado o mordomo rumo à Itália, para que recolhesse provas
de que o casamento fora ilegal desde o início. O mordomo voltou no
verão com informações a contento. No que consistiam – ora, quanto
a isso não faço a menor ideia. É preciso ter cautela ao tratar dessas
velhas histórias, que são como rosas antigas: perdem facilmente as
pétalas se chegamos demasiado perto. Dizem que o matrimônio na
Itália não fora celebrado por um sacerdote habilitado. Não sei de
mais nada, mas assim mesmo o fato é que o casamento entre o
conde Dohna e Elisabet von Thurn foi declarado nulo pelo tribunal
de Bro.
Naturalmente a jovem não soube de nada disso. Vivia em meio a
camponeses em lugares distantes, caso ainda vivesse.
HAVIA ENTRE OS CAVALHEIROS UM HOMEM que já mencionei por nome
como sendo um grande músico. Era um homem alto e de aspecto
rústico, com uma grande cabeça e cabelos pretos e bastos. Não
devia ter muito mais do que 40 anos nessa época, mas tinha feições
grosseiras e modos vagarosos. Por causa disso, muitos o
imaginavam mais velho. Era um homem bom, porém melancólico.
Certa tarde pôs o violino debaixo do braço e afastou-se de
Ekeby. Não disse adeus a ninguém, embora tivesse a intenção de
nunca mais voltar. Sentia-se repugnado pela vida naquele lugar
desde o infortúnio da condessa Elisabet. Caminhou sem parar
durante a tarde inteira e a noite inteira, até que, ao nascer do sol,
chegou a uma pequena casa senhorial chamada Lövdala, que lhe
pertencia.
Era tão cedo que ainda não havia ninguém de pé. Liljecrona
sentou-se na gangorra verde localizada em frente à casa e
examinou a propriedade. Meu Deus! Não havia lugar mais belo. O
gramado em frente à casa estendia-se por uma encosta suave e era
coberto por uma grama fina e verdejante. Não havia outro igual. As
ovelhas pastavam nele e as crianças pisoteavam-no com suas
brincadeiras, mas assim mesmo a grama permaneceu sempre
densa e viçosa. A foice jamais passava por lá, mas ao menos uma
vez por semana a senhora da casa pedia que limpassem as farpas
e a palha e as folhas secas da grama sadia. Ele olhou para o
caminho de areia em frente à casa e com um gesto brusco recolheu
os pés. Na tarde anterior as crianças haviam feito desenhos com o
ancinho, e seus pés haviam causado um terrível estrago naquele
belo trabalho. Como tudo crescia naquele lugar! As seis tramazeiras
que vigiavam o pátio eram altas como faias e largas como
carvalhos. Certamente ninguém vira árvores como aquelas em outra
parte. Pareciam belas com os troncos grossos, revestidos de liquens
amarelos e grandes pencas de florezinhas brancas que se
revelavam em meio ao verde-escuro. Ele pensou em um céu
coalhado de estrelas. Era espantoso ver como as árvores cresciam
naquele pátio. Havia um velho salgueiro de tronco tão largo que
nem mesmo dois homens conseguiriam abraçá-lo. Naquela altura
estava oco e apodrecido, e um raio arrancara-lhe o topo, mas o
salgueiro não estava disposto a morrer. Toda primavera um novo
broto verde nascia no alto do tronco quebrado para mostrar que
ainda vivia. O pado junto à empena que dava para o leste havia se
transformado em uma árvore tão grande que fazia sombra em toda
a casa. O telhado de turfa estava branco com as pétalas caídas,
uma vez que o pado já havia florido. E as bétulas, dispostas em
pequenos grupos aqui e acolá pelos campos, sem dúvida haviam
encontrado um paraíso naquela terra. Cresciam de maneiras tão
distintas que pareciam haver se decidido a imitar todas as demais
árvores. Uma parecia uma tília, frondosa e exuberante, com um arco
branco na copa; outra parecia uniforme e triangular como um
choupo; e uma terceira havia deitado os galhos como se fosse um
chorão. Nenhuma se parecia com a outra, e todas eram
maravilhosas.
Então Liljecrona levantou-se e deu a volta na casa. Lá o pomar
era tão belo que foi preciso deter o passo e tomar fôlego. As
macieiras estavam em flor. Ah, disso ele sabia. Tinha visto que as
outras macieiras faziam o mesmo em outras propriedades, mas
além disso não havia outra semelhança, pois em nenhum outro
lugar as macieiras floriam como naquela propriedade, onde as via
florir desde que havia se casado. Andou com as mãos entrelaçadas,
avançando pelo caminho de areia que subia e descia. O chão era
branco, e as árvores eram brancas com toques de matiz rosado.
Jamais vira paisagem tão bonita. Conhecia aquelas árvores como
as pessoas conhecem os próprios irmãos e irmãs. As macieiras-
astracã estavam totalmente brancas, bem como as árvores que
davam frutos no inverno. Mas as flores das macieiras-douradas
eram róseas, e as das macieiras-do-paraíso, inteiramente
vermelhas. A mais bela de todas era a antiga macieira-brava, que
dava maçãs tão amargas que ninguém podia comê-las. Essa árvore
não poupava nas flores, que mais pareciam um grande monte de
neve ao sol da manhã.
Pois não se esqueça de que era manhã bem cedo! O orvalho
punha todas as folhas a brilhar, todo o pó fora levado embora. Atrás
das montanhas cobertas pela floresta, ao pé das quais se localizava
a propriedade, os primeiros raios de sol chegavam depressa. Era
como se a copa dos espruces ardesse em chamas. Acima dos
recém-floridos campos de trevo, acima das lavouras de centeio e
cevada e acima dos tenros brotos de aveia pairava uma névoa
finíssima, um diáfano véu de beleza, e as sombras projetavam-se
fortes como ao luar.
Liljecrona parou e olhou para os grandes canteiros de
especiarias entre os caminhos do pomar. Ele sabe que a patroa da
casa e as criadas estiveram trabalhando. Revolveram, capinaram e
adubaram, retirando as ervas daninhas e compactando a terra até
que tudo ficasse leve e bonito. Depois de terem nivelado a terra e
marcado as bordas dos canteiros, pegaram barbantes e sarrafos e
demarcaram linhas e quadrados. Por fim percorreram os caminhos
com passinhos alegres e semearam até que todas as linhas e
quadrados estivessem preenchidos. E as crianças participaram e
sentiram a mais pura alegria e entusiasmo em poder ajudar, mesmo
que fosse um trabalho duro passar tempo com as costas recurvadas
e estender os braços por cima dos canteiros largos. E fizeram tudo
com enorme vontade, como todos podem imaginar.
Naquela altura as sementes começavam a brotar.
Que Deus as abençoe, pois erguiam-se cheias de coragem, tanto
as ervilhas quanto os feijões com seus dois brotinhos gorduchos! E
como as cenouras e os nabos haviam vingado! As mais divertidas
de todas, porém, eram as folhas da salsa-crespa, que erguiam de
leve a camada de terra e brincavam de esconde-esconde com a
vida.
E havia um pequeno canteiro onde o barbante não estava muito
reto e onde os pequenos quadrados pareciam um mostruário de
tudo aquilo que se podia plantar e semear. Era a terra dos filhos.
E Liljecrona apoiou o violino contra o queixo e pôs-se a tocar. Os
pássaros começaram a cantar na grande sebe que protegia o pomar
do vento norte. Não seria possível a uma criatura dotada de voz
permanecer calada em uma manhã incrível como aquela. O arco
movia-se como que por vontade própria.
Liljecrona andou para cima e para baixo pelos caminhos
enquanto tocava. “Não”, pensou, “não existe lugar mais belo”. O que
era Ekeby em comparação a Lövdala? Sua casa tinha o telhado de
turfa e um único andar. Ficava na orla da floresta, ao pé da
montanha, e tinha o longo vale à frente. Não havia nada de especial
nisso. Não havia lagos, não havia cachoeiras, não havia parques ou
margens verdejantes, mas assim mesmo o lugar era belo. E era
belo porque aquela era uma casa boa e pacata. A vida por lá era
leve. Tudo aquilo que em outros lugares teria causado amargura e
ódio lá era aplacado com brandura. Assim deve ser em um lar.
No interior da construção, a dona da casa dorme em um quarto
que dá para o pomar. Ela acorda de repente e ouve, porém não se
mexe. Permanece com um sorriso nos lábios, escutando. A melodia
aos poucos se aproxima, e por fim é como se o músico estivesse ao
pé da janela. Não é a primeira vez que ela ouve os sons de um
violino na janela. Ele costuma aparecer assim, o marido, quando os
cavalheiros estão às voltas com proezas especialmente
tresloucadas em Ekeby.
E lá está, confessando-se e suplicando perdão. Descreve para a
esposa as forças tenebrosas que o levaram para longe daquilo que
mais amava, a esposa e os filhos. Mas ele os ama. Ah, sem dúvida
os ama!
Enquanto o marido toca, a esposa levanta-se e veste-se, sem
saber ao certo o que fazer. Está demasiado concentrada na música.
– Não foram o luxo nem o bem viver que me levaram até lá – ele
toca –, nem o amor de outras mulheres, nem a honra, mas a
tentadora exuberância da vida. A doçura, a amargura, as riquezas,
tudo isso eu tinha de sentir ao meu redor. Mas já tive o bastante
disso tudo, e hoje me sinto cansado e satisfeito. Não quero mais
deixar minha casa. Perdoa-me! Tem piedade de mim!
Então ela afasta a cortina e abre a janela, e vê aquele rosto
bonito e bondoso.
Ela é uma mulher boa, e também sábia. Seu olhar pousa com as
mesmas bênçãos do sol sobre tudo aquilo que encontra. Ela reina, e
ela cuida. Onde quer que se encontre, tudo precisa crescer e
prosperar. Traz a felicidade dentro de si.
Liljecrona sobe no parapeito, aproxima-se dela e sente-se feliz
como um jovem apaixonado.
Depois ele a ergue e a carrega nos braços até o pomar, levando-
a para baixo das macieiras. Lá lhe diz o quanto tudo aquilo é belo e
mostra-lhe os canteiros de especiarias e as plantações das crianças
e as divertidas folhinhas de salsa-crespa.
Quando as crianças acordam, tudo se transforma em júbilo e em
deslumbre com a chegada do pai. As crianças o prendem. Ele tem
de ver tudo o que há de novo e de diferente: o monjolo que bate à
margem do riacho, o ninho no salgueiro e os dois potros nascidos
poucos dias antes.
Depois o pai, a mãe e as crianças fazem um longo passeio rumo
aos campos. Ele precisa ver o centeio de pé, a grama crescida e as
batatas a lançar folhas enrugadas.
Precisa ver as vacas voltando do pasto e cumprimentar os
recém-chegados às baias dos bezerros e dos cordeiros, colher ovos
e dar pão aos cavalos.
As crianças passam o dia inteiro em seus calcanhares. Nada de
deveres, nada de trabalho, apenas caminhar de um lado para outro
na companhia do pai!
À noite ele toca polcas para as crianças, e durante o dia inteiro
comporta-se como um camarada e um companheiro de brincadeiras
tão excelente que todos dormem com uma oração fervorosa
pedindo que o pai fique para sempre naquela casa.
Ele permanece lá por oito dias e sente-se alegre como um garoto
durante o tempo inteiro. Está apaixonado pela casa, pela esposa e
pelas crianças, e não pensa em Ekeby sequer por um instante.
Mas logo chega a manhã em que tem de ir embora. Já não
aguenta; aquilo era felicidade em demasia. Ekeby era mil vezes pior,
mas Ekeby estava no centro do redemoinho de acontecimentos. Ah,
havia tanta coisa com que sonhar e sobre as quais tocar! Como
poderia viver longe das façanhas dos cavalheiros e do extenso lago
Löven, em cujas margens a delirante caçada à aventura se
desenrolava?
Em sua casa, tudo seguia um curso tranquilo. Tudo prosperava e
crescia sob os cuidados da dona da casa. Todos viviam numa
felicidade silenciosa naquela propriedade. Tudo o que alhures teria
causado discórdia e amargura lá se passava sem queixas nem
dores. Tudo era como devia ser. Se mesmo assim o dono da casa
ansiava por viver como um cavalheiro em Ekeby, o que mais resta a
dizer? Será que adianta queixar-se do sol no firmamento porque
todo fim de tarde ele desaparece no Ocidente e deixa a terra às
escuras?
Quem pode ser invencível sem entrega? Quem pode ser
vitorioso sem paciência?
A BRUXA DE DOVRE AGORA CAMINHA PELAS MARGENS DO LÖVEN. Foi lá
que a viram, pequena e corcunda, trajando uma túnica de couro e
um cinturão ornado com prata. Como sai do covil dos lobos para o
mundo dos homens? O que essa velha das montanhas procura na
exuberância dos vales?
Ela chega pedindo esmolas. Mostra-se sovina, ávida por ganhar
presentes, mesmo sendo rica. Nas fendas das montanhas, a velha
esconde lingotes de prata branca, e nos viçosos prados ocultos
entre as montanhas pastam seus grandes rebanhos de vacas pretas
com chifres de ouro. Mesmo assim, ela vaga usando sapatos de
casca de bétula e trajes de couro ensebados, cujos arremates em
linhas de cores variadas revelam-se por baixo da sujeira dos
séculos. Ela tem musgo no cachimbo e pede esmolas aos mais
pobres. Que a vergonha recaia sobre uma pessoa assim, que nunca
agradece, nunca tem o suficiente!
Ela é velha. Quando será que o brilho rosado da juventude
pairou sobre aquele rosto largo de pele marrom, que reluz de sebo,
sobre aquele nariz achatado e aqueles olhinhos estreitos, que
brilham em meio à sujeira como brasas em meio às cinzas? Quando
foi que ela, ainda moça, sentou-se no pasto de verão e respondeu
com a trombeta às canções de amor do pastor? Ela viveu centenas
de anos. Nem os mais velhos conseguem lembrar-se de uma época
em que não vagava pela região. Os pais já a conheceram velha
quando ainda eram jovens. E ela tampouco está morta. Eu, que
escrevo, já a vi pessoalmente.
Ela é poderosa. Ela, filha de bruxos finlandeses, não se dobra
perante ninguém. Os pés largos não deixam pegadas sobre o
cascalho das estradas. Ela pode invocar o granizo, pode controlar o
relâmpago. Pode fazer com que rebanhos inteiros se percam, e
pode mandar o lobo atacar as ovelhas. O bem que pode fazer é
pouco, e o mal é muito. É melhor estar de bem com ela. Se lhe pedir
seu único cabrito e um marco inteiro de lã, dê-lhe o que pede!
Senão o cavalo cai, a cabana arde, a vaca adoece, a criança morre,
a avarenta dona da casa perde o juízo.
Ela nunca é uma convidada bem-vinda. O melhor, no entanto, é
cumprimentá-la com um sorriso no rosto. Pois como saber a serviço
de quem a mensageira de infortúnios anda pelo vale? Ela não está
naquela missão apenas para encher a trouxa de mendiga. Maus
agouros acompanham-na, as larvas revelam-se, a raposa e a coruja
entoam canções assombrosas no lusco-fusco, e serpentes
vermelhas e pretas, que cospem veneno, saem da floresta e
aproximam-se das casas.
Ela é orgulhosa. Naquela cabeça encontra-se oculta a poderosa
sabedoria dos antepassados. Isso eleva-lhe a alma. Runas
preciosas estão gravadas no cajado. Ela não aceitaria vendê-lo nem
por todo o ouro do vale. Sabe entoar canções mágicas, preparar
rituais, conhece as ervas certas, sabe disparar projéteis mágicos por
cima de um espelho d’água e atar nós de tempestade.
Quem me dera poder interpretar os estranhos pensamentos de
uma mente de séculos! Uma vez longe da escuridão da floresta e
das imponentes montanhas, o que deve pensar da gente dos vales?
Para ela, que acredita em Thor, o matador de gigantes, e nos
poderosos deuses finlandeses, os cristãos são como cachorros
domesticados diante de um lobo-cinzento. Indômita como a
nevasca, forte como a corredeira, jamais poderia amar os filhos da
planície.
E assim mesmo torna a descer das montanhas para ver aqueles
vultos de anões. As pessoas estremecem de medo quando a veem,
mas a destemida filha da natureza intocada caminha segura em
meio àquela gente, protegida pelo medo. As façanhas de sua
linhagem não foram esquecidas, tampouco as suas. Assim como o
gato confia nas unhas, a bruxa confia na sabedoria da cabeça e na
força das canções mágicas ensinadas pelos deuses. Nenhum outro
rei se encontra mais seguro em seu trono do que ela no reino do
medo, onde governa.
A bruxa de Dovre atravessou muitos vilarejos. Agora chega a
Borg, e não se furta a aproximar-se da casa do conde. Raras vezes
toma o rumo da cozinha. Ela sobe os degraus dos terraços. Pisa
com os largos sapatos de casca de bétula nos caminhos ladeados
por flores, segura como se andasse pelos caminhos do pasto na
montanha.
Por acaso nesse mesmo instante a condessa Märta sai à escada
para admirar o esplendor daquele dia de junho. No caminho de areia
mais abaixo, duas criadas param no trajeto até a despensa. Estão
saindo da sauna, onde defumam o toucinho, e carregam presuntos
recém-defumados em um pau estendido entre as duas.
– A condessa gostaria de cheirar? – perguntam as criadas. –
Para ver se o toucinho está defumado o suficiente?
A condessa Märta, que era a dona da casa em Borg naquela
época, inclina o corpo para a frente, por cima do parapeito, e olha
para o toucinho, porém no mesmo instante a velha finlandesa põe a
mão em um dos presuntos.
Veja essa pele marrom e brilhosa, essa grossa manta de
gordura! Sinta o cheiro fresco dos galhos de zimbro nos presuntos
recém-defumados! Ah, comida para os deuses antigos! A bruxa quer
se apropriar de tudo aquilo. Ela põe a mão no toucinho.
Ah, a filha da montanha não está acostumada a pedir e implorar!
Acaso não é graças à sua misericórdia que as flores desabrocham e
os homens vivem? A geada e a tempestade e a enchente – tudo
obedece à sua vontade. E por isso não lhe parece digno implorar e
pedir. Ela põe a mão no que deseja, e aquilo passa a lhe pertencer.
Mas a condessa Märta não conhece o poder da velha.
– Saia daqui, velha mendiga! – ela diz.
– Me dá o presunto! – diz a bruxa de Dovre, que anda no dorso
dos lobos.
– Essa mulher é louca! – exclama a condessa. E ordena às
criadas que entrem na despensa com o fardo que carregam.
Aqueles olhos seculares ardem de raiva e cobiça.
– Me dá o presunto marrom! – ela repete. – Ou então as coisas
vão correr mal para ti.
– Antes dar tudo às pegas do que a uma pessoa como a
senhora.
Nesse momento a velha estremece em meio a uma tempestade
de fúria. Ergue às alturas o cajado com inscrições de runas e o
brande com movimentos desvairados. Os lábios deixam escapar
palavras estranhas. Os cabelos põem-se de pé, os olhos brilham, o
rosto se contorce.
– Pois é a ti que as pegas hão de comer! – a bruxa grita, por fim.
E assim ela se afasta, balbuciando maldições, brandindo
desvairadamente o cajado. Ela volta para casa. Não segue rumo ao
sul. E nesse ponto a filha das terras selvagens completa a missão
que a levou a descer as montanhas.
A condessa Märta permanece na escada e ri daquela fúria
desarrazoada. Mas logo o riso há de silenciar naqueles lábios, pois
lá vêm elas! A condessa não acredita no que está vendo. Pensa que
está sonhando, mas lá estão as pegas que hão de comê-la.
De parques e pomares, as aves voam em direção a ela, dezenas
de pegas, com as garras abertas e os bicos estendidos para atacar.
Chegam em meio a um alarido de gargalhadas. As asas pretas e
brancas reluzem ante os olhos da condessa. Ela vê, como que em
um delírio por trás da revoada, todas as pegas da região se
aproximarem, o céu inteiro repleto de asas pretas e brancas. No
brilho forte do sol matinal, as cores metálicas daquelas penas
reluzem. As plumas do pescoço eriçam-se como as das aves de
rapina enfurecidas. Em círculos cada vez menores, aqueles
monstros voam ao redor da condessa, investindo com bicos e
garras contra seu rosto e suas mãos. Ela se vê obrigada a refugiar-
se no vestíbulo e fechar a porta. Apoia-se contra a madeira com a
respiração ofegante enquanto as pegas gargalham e voam em
círculos lá fora.
E assim a condessa fechou-se também ao viço e à doçura do
verão, bem como à alegria de viver. A partir daquele momento, sua
vida se resumiu a cômodos fechados e cortinas puxadas, ao
desespero, à angústia, a uma confusão às raias da loucura.
E esta história pode muito bem parecer um desvario, mas assim
mesmo deve ser verdadeira. Centenas de pessoas haveriam de
reconhecê-la e dar testemunho de que esta é a velha história.
As pegas empoleiraram-se no parapeito da escada e no telhado.
Postaram-se como que à espera de que a condessa se revelasse
para tornar a atacá-la. Firmaram residência no parque e lá
permaneceram. Era impossível afugentá-las da propriedade. E era
ainda pior quando se disparavam tiros. Para cada uma que caía,
dez novas chegavam voando. De tempos em tempos enormes
grupos tinham de afastar-se para buscar comida, mas fiéis
sentinelas mantinham-se sempre a postos. E, se a condessa Märta
aparecesse, se olhasse por uma janela ou simplesmente afastasse
uma cortina por um instante que fosse, se tentasse ir até a escada,
no mesmo instante as pegas acudiam. Toda aquela terrível revoada
investia contra a casa em um ribombante ruflar de asas, e a
condessa tornava a fugir rumo aos cômodos mais recolhidos.
Ela vivia no quarto além da antessala vermelha. Muitas vezes
ouvi descrições desse cômodo naquela época de terror, quando
Borg foi sitiada pelas pegas. Pesadas coberturas nas portas e
janelas, grossos tapetes no assoalho, pessoas discretas falando aos
sussurros.
No coração da condessa habitava o mais exangue horror. Os
cabelos ficaram grisalhos. A pele encheu-se de rugas. Ao cabo de
um mês, havia se transformado em uma velha. Em seu coração,
não teria como pôr em dúvida a existência de um odioso feitiço. Ela
acordava sobressaltada à noite, gritando que as pegas estavam a
devorá-la. Passava os dias chorando por causa desse fado
inelutável. Evitando a companhia de outras pessoas, temerosa de
que a revoada perseguisse qualquer visitante, passava a maior
parte do tempo em silêncio, com as mãos a tapar o rosto,
balançando-se para a frente e para trás na cadeira, apática e
prostrada naquele ar viciado, por vezes levantando-se para bradar
lamúrias.
Ninguém tinha vida mais amarga. Seria possível não lamentar
esse destino?
Já não tenho muita coisa a dizer sobre a condessa, e aquilo que
contei não teve nada de bom. É como se a consciência me
acusasse. Mesmo assim, a condessa fora uma pessoa boa e alegre
na juventude, e muitas histórias divertidas a seu respeito alegraram-
me o coração, embora esta não fosse a ocasião para contá-las.
Ocorre que, embora essa pobre andarilha não soubesse, a alma
tem uma fome perpétua. Não se pode viver de frivolidades e
brincadeiras. Quando não recebe outro alimento, a alma põe-se a
agir como um animal selvagem, destruindo primeiro aos outros e por
fim a si mesma.
Essa é a moral da história.
ERA ÉPOCA DO SOLSTÍCIO DE VERÃO, como é também agora, enquanto
escrevo. A mais bela época do ano havia chegado.
Era uma época em que Sintram, o malvado patrão de Fors,
angustiava-se e lamentava-se. Irritava-se com a vitória da luz sobre
as horas do dia, e com a derrota da escuridão. Enfurecia-se com a
folhagem exuberante que envolvia as árvores, e com o tapete
colorido que cobria o solo.
Tudo era envolto pela beleza. A estrada, por mais cinza e
poeirenta que fosse, também ganhava uma franja de flores, flores
amarelas e violeta de verão, erva-cicutária e cornichão.
Quando os esplendorosos dias de verão pairavam acima das
montanhas e o repicar dos sinos da igreja de Bro vibrava pelo ar até
Fors, quando a indizível tranquilidade no dia do descanso reinava
por toda a região – foi então que Sintram ergueu-se em fúria. Tinha
a impressão de que Deus e os homens atreviam-se a esquecer que
ele existia, e assim decidiu ir à igreja, também ele. As pessoas, que
se rejubilavam com o verão, haveriam de vê-lo, Sintram, o amante
da noite sem aurora, da morte sem ressurreição, do inverno sem
primavera.
Estava usando um casaco de pele de lobo e luvas grossas.
Pediu que encilhassem o cavalo zaino, atrelassem-no à frente de
um trenó e prendessem sinetas nos arreios reluzentes. E assim,
equipado como se fizesse 30 graus abaixo de zero, foi à igreja.
Imaginava que o ranger sob as pranchas devia-se ao frio tremendo.
Imaginava que a espuma branca no dorso do cavalo era geada. Não
sentia calor nenhum. Sintram emanava frio como o sol emana calor.
Ele avançou ao longo da planície a norte da igreja de Bro. Havia
vilarejos grandes e ricos por aquele caminho e por aqueles campos,
onde melodiosas cotovias voavam. Jamais ouvi as cotovias
entoarem melodias como naqueles campos. Muitas vezes perguntei-
me se Sintram conseguia fazer-se de mouco perante aquelas
centenas de cantores.
Durante a viagem foi preciso deixar para trás muitas coisas que o
teriam irritado, caso tivesse se dignado olhá-las. Teria visto duas
bétulas recurvadas junto à porta de cada uma das cabanas, e pelas
janelas abertas teria visto tetos e paredes enfeitados com flores e
gravetos verdejantes. A menor dentre as meninas pobres andava
pela estrada com um punhado de lilases na mão, e todas as
camponesas tinham um pequeno buquê enfiado no lenço.
Os postes de maio com flores murchas e guirlandas tristes
erguiam-se nos pátios. A grama ao redor estava pisoteada, pois
alegres danças haviam decorrido em meio à noite de verão.
Nas margens do Löven as jangadas de troncos amontoavam-se.
As pequenas velas brancas tinham sido hasteadas para honrar o
dia, muito embora nenhum vento as enchesse, e todos os mastros
traziam uma guirlanda verde.
Os fiéis chegavam pelos muitos caminhos que levam a Bro. As
mulheres estavam magníficas nos vestidos claros de verão,
costurados à mão especialmente para aquele dia. Todas estavam
vestidas para a festa.
E as pessoas não se cansavam de alegrar-se com a paz no dia
do descanso e o repouso do trabalho diário, com o calor agradável,
com a lavoura promissora e com os morangos que amadureciam à
beira da estrada. Atentavam para a calma do dia, para o céu limpo e
a canção das cotovias, e diziam:
– Parece mesmo o dia do Senhor.
E então Sintram chegou no trenó. Praguejou e estalou o chicote
acima do cavalo trabalhador. A areia fazia estranhos rumorejos sob
as pranchas, e o som estridente das sinetas abafava o repicar dos
sinos da igreja. A testa franzia-se-lhe em rugas furiosas sob a touca
de pele.
Os fiéis sentiram calafrios e imaginaram ter visto o próprio cão.
Nem mesmo naquela festa de verão poderiam esquecer-se do frio e
da maldade. Amargo é o destino dos que vagam pela terra.
As pessoas que estavam de pé na sombra da igreja ou sentadas
no muro do cemitério à espera do culto observaram-no com uma
admiração silenciosa quando se aproximou da porta. Aquele dia
esplendoroso acabara de encher o coração de todos com a alegria
de poder andar pelos caminhos da terra e aproveitar a doçura da
existência. Mas naquele momento, quando viram Sintram, o
pressentimento de uma estranha desgraça tomou conta de todos.
Sintram entrou na igreja e sentou-se, batendo as luvas no banco,
de maneira que o ruído das garras de lobo, que estavam costuradas
no interior da pele, fez-se ouvir por toda a igreja. Algumas mulheres,
que já haviam se acomodado nos bancos mais à frente,
desmaiaram ao ver aquele vulto peludo e tiveram de ser levadas
para fora.
Mas ninguém se atreveu a expulsar Sintram. As pessoas
respiravam com dificuldade, mas Sintram era temido demais para
que alguém se atrevesse a ordenar que saísse da igreja.
O velho preboste debalde falou sobre o luminoso festival de
verão. Ninguém lhe deu ouvidos. As pessoas pensavam apenas no
frio e na maldade e naquela estranha desgraça que o malvado
patrão da fundição fazia pressentir.
Quanto tudo acabou, as pessoas viram o malvado subir a
encosta do morro onde se localiza a igreja de Bro. Olhou para baixo,
em direção ao estreito de Broby, e acompanhou com o olhar para
além da casa do preboste e dos três promontórios na margem oeste
do Löven. E as pessoas viram quando crispou o punho e o brandiu
acima do estreito e das margens verdejantes. Depois o olhar do
patrão desceu rumo ao sul, rumo à parte inferior do Löven, até os
promontórios azulados que pareciam encerrar o lago. E em seguida
percorreu léguas rumo ao norte, passando pelo monte Gurlita e
chegando até Björnidet, onde o lago acaba. Olhou para leste e para
oeste, onde as longas montanhas ladeiam os vales, e tornou a
crispar o punho. E todos sentiram que, se tivesse um feixe de
relâmpagos na mão direita, fruiria de uma felicidade desmedida ao
lançá-los contra aquela terra pacata, disseminando a desgraça e a
morte tanto quanto lhe fosse possível. Pois naquela altura Sintram
tinha o coração tão acostumado ao mal que já não sentia nenhuma
alegria senão aquela causada pela miséria. Aos poucos aprendeu a
amar tudo que era feio e vil. Era mais louco do que o mais
desvairado lunático, mas ninguém percebia.
A seguir, estranhos boatos correram pela região. Dizia-se que,
quando o vigia apareceu para fechar a igreja, o palhetão da chave
quebrou-se, porque havia um papel dobrado metido na fechadura. O
vigia entregou-o ao preboste. Era, como bem se compreende, uma
mensagem, destinada a uma criatura de outro mundo.
As pessoas falavam aos cochichos sobre o que se poderia ler
nessa mensagem. O preboste havia queimado o papel, mas o vigia
observou enquanto aquela coisa do demônio ardia. As letras haviam
brilhado vermelhas sobre um fundo preto. Não houvera como deixar
de ler. E leu, segundo dizem, que o malvado pretendia causar
destruição por toda aquela terra enquanto pudesse avistar a torre da
igreja. Ele queria ver a floresta tomar conta da igreja. Queria ver os
ursos e as raposas morando nas casas dos homens. Queria ver os
campos abandonados, e as propriedades vazias de cães e de
lebres. O malvado queria servir a seu mestre causando a desgraça
de cada uma daquelas pessoas. Era o que havia prometido.
E as pessoas encararam o futuro com um desespero silencioso,
pois sabiam que o poder do malvado era grande, que odiava tudo
aquilo que vivia, que queria ver a natureza selvagem tomar conta do
vale e que com enorme gosto valer-se-ia da peste ou da fome ou da
guerra para afastar todos aqueles que gostavam do trabalho bom e
alegre.
COMO NADA MAIS CONSEGUIA ALEGRAR GÖSTA BERLING depois que
ajudara a jovem condessa a fugir, os cavalheiros decidiram recorrer
à boa senhorita Música, uma fada poderosa, capaz de consolar
inúmeros desafortunados.
Para tanto, em uma tarde de julho fizeram abrir as portas e
escancarar as janelas do grande salão de Ekeby. Entraram o sol e o
vento, o sol grande e vermelho do fim de tarde, o ar suave e
vaporoso do entardecer fresco.
As capas rendadas foram tiradas dos móveis, o piano foi aberto e
o pano que envolvia os lustres venezianos foi retirado. Os grifos
dourados sob os tampos de mármore reluziram novamente ao
reencontrar a luz. As deusas brancas dançaram sobre o fundo preto
acima do espelho. As variadas flores de damasco resplandeciam no
fulgor da tarde. E rosas foram colhidas e levadas para dentro. Todo
o salão encheu-se de perfume. Lá havia rosas incríveis, sem nomes
conhecidos, que de países estrangeiros haviam sido levadas para
Ekeby. Lá estavam as amarelas, em cujos veios o sangue brilha
vermelho como em uma pessoa, e também as brancas de bordas
irregulares, e as rosicler de grandes folhas, que na borda das
pétalas revelam-se transparentes como água, e as vermelho-
escuras com sombras negras. Levaram para dentro as rosas de
Altringer, vindas de países longínquos para alegrar os olhos de
belas mulheres.
E então partituras e estantes de música foram carregadas, e
também metais e arcos e violinos de todos os tamanhos, pois a boa
senhorita Música há de reinar em Ekeby na tentativa de oferecer
consolo a Gösta Berling!
A senhorita Música escolheu a sinfonia Oxford, do amistoso
Haydn, para que os cavalheiros a ensaiassem. O patrão Julius
empunha a batuta enquanto os outros cuidam dos seus
instrumentos. Todos os cavalheiros sabem tocar. De outro modo não
seriam cavalheiros.
Quando tudo está pronto, mandam chamar Gösta. Ele continua
fraco e desanimado, mas alegra-se com o salão opulento e a
música que se encontra prestes a escutar. Pois sabe-se muito bem
que, para os que sofrem e se atormentam, a boa senhorita Música é
a melhor das companhias. Alegre e brincalhona como uma criança.
Impetuosa e encantadora como uma jovem mulher. Boa e sábia
como os velhos que viveram uma boa vida.
E então os cavalheiros tocam, devagar e suavemente.
O pequeno Ruster leva a ocasião a sério. Lê a partitura com os
óculos na ponta do nariz, beija a flauta de maneira a extrair os
melhores timbres e põe os dedos a brincar pelas chaves e furos. O
tio Eberhard senta-se debruçado por cima do violoncelo, com a
peruca caída por cima da orelha e os lábios tremendo de emoção.
Berg posta-se orgulhoso com o longo fagote. Por vezes se esquece
de soprar com toda a força dos pulmões, porém nessas horas Julius
golpeia aquela cabeça dura com a batuta.
A apresentação é boa, é magistral. Das notas mortas na
partitura, os músicos invocam a própria senhorita Música. Estende o
teu manto de magia, querida senhorita Música, e leva Gösta Berling
ao país da alegria, onde costumava viver!
Ah, que fosse Gösta Berling a estar pálido e desanimado, e
aqueles velhos senhores a animá-lo, como se fosse um menino!
Assim há de faltar alegria em Värmland.
Eu sei por que os velhos o amavam. Sei bem como as noites de
inverno podem ser longas, e sei como a tristeza pode tomar conta
do espírito em propriedades isoladas. Entendo como era quando
Gösta aparecia.
Imagine uma tarde de domingo, quando o trabalho repousa e os
pensamentos se anuviam! Imagine um vento norte insistente, o frio
cortante no cômodo, um frio que nenhuma lareira poderia aliviar!
Imagine uma única vela, que precisa o tempo inteiro ser avivada!
Imagine os monótonos salmos vindos da cozinha!
Ah, e então as sinetas retinem, e então pés ligeiros batem a neve
em frente à porta, e então Gösta Berling chega ao cômodo. Ele ri e
faz gracejos. Ele é vida, é calor. Abre o piano e põe-se a tocar de
forma que impressiona os outros com aquelas velhas cordas. Sabe
cantar todas as canções, tocar todas as melodias. Faz todos os
habitantes da casa felizes. Nunca sentiu frio, nunca se sentiu
cansado. Os tristes esqueciam as tristezas ao vê-lo. Ah, como tinha
bom coração! Como era bondoso para com os pobres e os fracos! E
como era genial! Ah, só mesmo ouvindo os velhos falarem a
respeito dele. Mas naquele momento, enquanto os cavalheiros
tocam, Gösta desata a chorar. Pensa que a vida, a vida como um
todo é terrível. Inclina a cabeça em direção às mãos e chora. Os
cavalheiros mostram-se horrorizados. Aquelas não são as lágrimas
suaves e curativas que a senhorita Música costuma trazer. Ele
soluça desesperadamente. Os cavalheiros, atônitos, largam os
instrumentos.
A boa senhorita Música, que tanto aprecia Gösta Berling, até
mesmo essa senhorita fica a ponto de perder a coragem, mas de
repente lembra-se de que ainda tem um guerreiro poderoso em
meio àqueles homens.
Trata-se do gentil Löwenborg, ele, que perdeu a noiva para o rio
de águas turvas e que, mais do que todos os outros, é um escravo
de Gösta Berling. Löwenborg aproxima-se do piano. Dá a volta,
toca-o cautelosamente e acaricia as teclas com a mão delicada.
Na ala dos cavalheiros, Löwenborg tem uma grande mesa de
madeira na qual pintou um teclado e onde colocou uma estante de
música. E é lá que passa horas com os dedos a correr sobre as
teclas pretas e brancas. Ensaia escalas e estudos, e é lá que toca
seu Beethoven. Jamais toca outra coisa além de Beethoven. A
senhorita Música foi-lhe deveras misericordiosa, de forma que pôde
copiar muitas das 32 sonatas.
Mas o velho não se arrisca jamais em outro instrumento que não
seja a mesa de madeira. Diante do piano, sente um terror
formidável. Aquilo o atrai, porém o assusta ainda mais. Aquele
instrumento desafinado, no qual tantas polcas haviam sido
marteladas, é para ele um santuário. Não se atreve a profaná-lo.
Imagine que aquela coisa fantástica e cheia de cordas pudesse dar
vida à obra do grande mestre! Basta encostar o ouvido no piano e
no mesmo instante ele começa a ouvir os andantes e os scherzi
insinuarem-se lá dentro. Sim, o piano é o altar mais propício à
adoração da senhorita Música. Mas ele nunca tocou em coisa
parecida. Jamais há de ser rico a ponto de poder comprar um
daqueles para si, e por isso jamais teve a coragem de tocar. A
senhora de Ekeby tampouco mostrou-se disposta a abrir o piano
para Löwenborg.
Ele já o ouviu tocar polcas e valsas e fazer soar as melodias de
Bellman. Com a música secular, porém, mesmo aquele instrumento
maravilhoso não poderia fazer mais do que desafinar e lamentar-se.
Mas, se Beethoven viesse, o instrumento faria ouvir sons claros e
harmoniosos.
E naquele momento Löwenborg pensa que talvez tenha chegado
a sua hora com Beethoven. Ele vai tomar coragem, tocar o santuário
e fazer com que seu jovem senhor e amo se alegre com melodias
até então adormecidas.
Löwenborg senta-se e começa a tocar. Sente-se agitado e
inseguro, mas avança por dois ou três compassos, busca as
sonoridades certas, franze a testa, faz mais uma tentativa e por fim
leva as mãos ao rosto e começa a chorar.
Ah, querida senhorita Música, é um momento amargo para ele! O
santuário afinal não é um santuário. Não há sons claros e
harmoniosos adormecidos lá dentro, não há trovões imponentes e
poderosos, não há tempestades enormes e ruidosas. Nenhuma das
infindáveis harmonias que soavam no paraíso esconde-se lá dentro.
Aquele é apenas um velho piano desafinado e nada mais.
Mas logo a senhorita Música acena para o astuto coronel. Ele
leva Ruster consigo, e ambos descem à ala dos cavalheiros para
buscar a mesa de Löwenborg, onde as teclas se encontram
pintadas.
– Vê bem, Löwenborg – diz Beerencreutz –, aqui está o teu
piano! Toca para Gösta!
E então Löwenborg para de chorar e senta-se, disposto a tocar
Beethoven para o jovem amigo triste. Sem dúvida ele haveria de
alegrar-se.
Na cabeça do velho soam os sons mais sublimes. Acredita
firmemente que Gösta ouve toda a beleza daquela apresentação.
Gösta sem dúvida percebe que o amigo toca particularmente bem
naquela tarde. É como se todas as dificuldades houvessem
desaparecido. Löwenborg executa trechos rápidos e passagens
complicadas sem nenhum problema. Toca os acordes mais difíceis.
Gostaria que o próprio mestre estivesse a ouvi-lo.
Quanto mais toca, mais arrebatado fica. Ele ouve cada nota com
uma força sublime.
“Tristeza, tristeza”, ele toca, “por que eu não haveria de amar-te?
Por que teus lábios são frios, tuas bochechas pálidas, por que teu
abraço sufoca, teus olhares petrificam?
“Tristeza, tristeza, és uma dessas mulheres belas e orgulhosas
cujo amor é difícil de conquistar, mas arde com mais força do que os
outros. Foste tu, rejeitada, quem apertei contra o peito e amei!
Acariciei-te até afastar o frio, e teu amor trouxe-me a bem-
aventurança.
“Ah, como sofri! Ah, como ansiei desde que perdi aquela que
primeiro amei! A noite escura reinava ao meu redor e também
dentro de mim. Eu estava afundado em pesadas súplicas
inatendidas. O céu estava fechado para a minha longa espera. Do
firmamento coalhado de estrelas não veio nenhum espírito doce que
pudesse oferecer-me consolo.
“Meu anseio, porém, rasgou a cortina que me obscurecia a visão.
Chegaste flutuando até mim em uma ponte de luar. Vieste na luz, ó
minha amada, e com lábios sorridentes! Gênios alegres
circundavam-te. Traziam coroas de rosas. Brincavam com cítaras e
flautas. Ver-te foi uma bem-aventurança.
“Mas então desapareceste, desapareceste! E não havia
nenhuma ponte de luar para mim quando eu quis acompanhar-te.
Eu estava na terra, sem asas, preso à matéria. Meu lamento foi
como o rugido de um animal selvagem, como o trovão ensurdecedor
no céu. Eu queria mandar o relâmpago como mensageiro para ti.
Amaldiçoei a terra verdejante. Que um incêndio queime as plantas,
e que a peste se abata sobre as pessoas! Clamei pela morte e pelo
abismo. Pensei que os tormentos do fogo eterno seriam carícias se
comparados à miséria em que eu me encontrava.
“Tristeza, tristeza! Foi então que me ofereceste a tua amizade.
Por que motivo eu não haveria de amar-te, como os homens amam
as mulheres duras e orgulhosas, cujo amor é difícil de conquistar,
mas arde com mais força do que os outros?”
Foi assim que ele tocou, aquele pobre místico. Estava lá
sentado, ardendo de entusiasmo e arrebatamento, ouvindo os mais
belos sons, certo de que Gösta também devia ouvi-los e sentir-se
consolado.
Sentado, Gösta o observava. A princípio manteve-se indiferente
àquela farsa, mas aos poucos tornou-se cada vez mais terno. O
velho parecia irresistível enquanto deliciava-se com Beethoven.
E Gösta começou a pensar em como aquele homem, naquele
instante tranquilo e despreocupado, também havia afundado no
sofrimento, também havia perdido sua amada. E lá estava ele, com
uma alegria radiante, sentado junto a uma mesa de madeira. Seria
preciso mais para a bem-aventurança de uma pessoa?
Gösta sentiu-se humilhado.
– Ora, Gösta – disse para si mesmo –, será que já não
consegues mais tolerar e aguentar? Tu, que foste endurecido pela
pobreza ao longo de uma vida inteira, tu, que ouviste cada árvore da
floresta, cada tufo do prado falar sobre resignação e paciência, tu,
que foste criado em uma terra onde o inverno é rigoroso e o verão
ameno, acaso esqueceste a arte de resistir?
“Ah, Gösta, um homem tem de suportar tudo aquilo que a vida
oferece com bravura no coração e um sorriso nos lábios, pois de
outra forma não é um homem. Sente quanta saudade quiseres por
ter perdido a tua amada, deixa que os tormentos da consciência
devorem-te e estraçalhem-te por dentro, porém mostra-te como um
homem, e como um homem de Värmland! Deixa teu olhar iluminar-
se de alegria, e encontra os teus amigos com palavras alegres!
“A vida é dura, a natureza é dura. Mas a coragem e a alegria
servem ambas de contrapeso para essa dureza, pois de outra forma
ninguém as suportaria.
“Coragem e alegria! É como se essas fossem os deveres
primeiros da vida. Jamais as negligenciaste antes, e não hás de
negligenciá-las agora.
“Acaso és pior do que Löwenborg, sentado junto ao teclado de
madeira? Acaso és pior do que os outros cavalheiros, os corajosos,
os despreocupados, os eternamente jovens? Bem sabes que
nenhum deles escapou ao sofrimento.”
E então Gösta os observa. Ah, que festa! Estão todos sentados,
profundamente sérios, escutando aquela música que ninguém ouve.
De repente Löwenborg é arrancado dos sonhos por uma risada
divertida. Ele ergue as mãos do teclado e escuta como que em um
transe. É a velha risada de Gösta Berling, aquela boa, amistosa e
contagiante risada. É a música mais doce que o velho já ouviu em
toda a vida.
– Eu sabia que Beethoven havia de ajudar-te, Gösta! –
exclamou. – Estás bem outra vez.
Foi assim que a boa senhorita Música curou a melancolia de
Gösta Berling.
EROS, DEUS TODO-PODEROSO! Bem sabes que muitas vezes se tem a
impressão de que seria possível livrar-se da tua influência. Todos os
sentimentos doces que unem as pessoas umas às outras parecem
estar mortos no coração atingido. A loucura estende as garras para
alcançar o infeliz, porém logo chegas com tua onipotência, tu,
protetor da vida; e, como a vara daquele santo, pões a florescer o
coração ressequido.
Ninguém é mais avaro do que o pastor de Broby, ninguém vive
mais afastado dos semelhantes por causa do mal e da inclemência.
Seu quarto passa o inverno sem ver o fogo; ele senta-se em um
banco de madeira sem pintura, veste-se com andrajos, vive de pão
seco e se enfurece quando um mendigo aparece à porta. Deixa o
cavalo passar fome na estrebaria e vende o feno; suas vacas
pastam a grama seca à beira da estrada e o musgo nas paredes da
casa. Pela estrada ouvem-se os balidos das ovelhas famintas. Os
camponeses atiram-lhe a comida que os cachorros não comem, as
roupas que os pobres rejeitam. Ele tem a mão estendida para
esmolar, as costas recurvadas para agradecer. Mendiga dos ricos e
empresta para os pobres. Se vê uma moeda, seu coração queima
de angústia enquanto não a tem no bolso. Infeliz é aquele que não
se encontra pronto para o dia do vencimento!
O pastor casou-se tarde, mas o melhor seria jamais haver se
casado. A esposa morreu exausta e atormentada. Hoje sua filha
trabalha na casa de estranhos. Ele está velho, mas a idade não traz
nenhum alento à sua luta. A loucura da avareza jamais o abandona.
Mas um belo dia, no começo de agosto, uma pesada carruagem,
puxada por quatro cavalos, sobe os morros de Broby. Uma bela
dama chega com trajes opulentos, cocheiro, criado e camareira.
Está lá para falar com o pastor de Broby. Ela o amara na época da
juventude.
Quando o pastor trabalhou como tutor na propriedade em que a
dama morava com o pai, os dois haviam se amado, muito embora
familiares orgulhosos os tivessem separado. E naquele momento
ela volta pelos morros de Broby para vê-lo antes de morrer. Tudo
que a vida ainda pode lhe conceder é rever o amado da juventude.
A dama elegante aproxima-se no grande veículo e sonha. Não
sobe os morros de Broby para visitar a casinha pobre de um pastor.
Encontra-se a caminho daquele pequeno recanto no parque onde o
amado a espera. Ela o vê, ele é jovem, sabe beijar, sabe amar. E
agora, quando tem a certeza de vê-lo, aquela imagem ressurge com
rara nitidez. Como é bonito, como é bonito! Ele sabe deixar-se
arrebatar, sabe deixar-se arder, preenche-lhe todo o ser com o fogo
do arrebatamento.
Ela está pálida, murcha e velha. Ele talvez não a reconheça aos
60 anos, porém ela não faz a viagem para ser vista, mas para ver,
para ver o amado da juventude, que se manteve ileso mesmo com
as investidas do tempo e permanece jovem, belo, caloroso.
Ela vem de tão longe que não ouviu sequer uma palavra a
respeito do pastor de Broby.
Então a carruagem sobe os morros, e na encosta vê-se a casa
pastoral.
– Por misericórdia de Deus – lamenta-se um mendigo à beira da
estrada –, uma moeda para um homem pobre!
A nobre dama joga-lhe uma moeda de prata e pergunta se a
casa pastoral de Broby encontra-se próxima.
O mendigo encara a dama com um olhar aguçado e matreiro.
– A casa pastoral fica mais adiante – diz –, mas o pastor não
está em casa. Não há ninguém por lá.
A pequena e elegante dama parece empalidecer. O recanto no
parque desaparece, o amado não está mais lá. Como poderia
imaginar que naquele instante, após quarenta anos de espera,
haveria de reencontrá-lo?
O que aquela dama bondosa pretendia fazer na casa pastoral?
A dama bondosa fora até lá para encontrar o pastor. Conhecera-
o em tempos antigos.
Quarenta anos e 60 léguas haviam-nos separado. E, a cada
légua que se aproximava, ela deixava para trás seis meses, um ano,
com todo o fardo de tristezas e lembranças, de maneira que,
quando chegou à casa pastoral, era mais uma vez uma moça de 20
anos sem tristezas e sem lembranças.
O mendigo que a encara percebe quando se transforma de uma
moça de 20 anos em uma velha de 60, e então de uma velha de 60
anos novamente para uma moça de 20.
– O pastor volta à tarde – diz o mendigo. O mais sábio a fazer
seria voltar para a estalagem de Broby e retornar à tarde. É à tarde
que, segundo o mendigo, o pastor há de estar em casa.
No instante seguinte a carruagem com aquela pequena dama
murcha desce os morros que levam à estalagem, porém o mendigo
permanece trêmulo, olhando para ela. Sente vontade de prostrar-se
de joelhos e beijar os rastros deixados pelas rodas.
Elegante, de barba recém-feita e bem aprumado, com sapatos
de fivelas lustrosas e meias de seda, com galões e abotoaduras,
naquela tarde o pastor de Broby apresenta-se à esposa do preboste
de Bro.
– Uma dama elegante – ele diz –, filha de um barão! A senhora
acha que eu, homem pobre que sou, posso convidá-la a entrar?
Meu assoalho é preto, minha antessala é vazia de móveis e o teto
da sala está verde de bolor e umidade. Ajude-me, por favor! Pense
que essa mulher é a nobre filha de um conde!
– Diga que o senhor não se encontra!
– Minha cara, essa mulher viajou 60 léguas para ver a mim,
homem pobre que sou. Nem imagina como eu vivo. Eu não tenho
sequer uma cama a oferecer-lhe. Não tenho sequer uma cama para
oferecer aos criados.
– Ora, então deixe que se vá embora!
– Tenha piedade! A senhora não entende o que estou querendo
dizer? Antes dar tudo aquilo que tenho, tudo aquilo que com o meu
trabalho e meu esforço consegui juntar, do que saber que ela foi
embora sem que eu pudesse recebê-la sob o meu teto. Ela tinha 20
anos quando a vi pela última vez, e já se passaram quarenta anos
desde então! Pense nisso, senhora! Ajude-me para que eu possa tê-
la em minha casa! Aqui está o meu dinheiro, se dinheiro puder
ajudar, mas para isso é preciso mais do que dinheiro.
Ah, Eros! As mulheres te amam. Antes dar cem passos por ti do
que pelos outros deuses.
Na casa do preboste de Bro esvaziam-se os cômodos, esvazia-
se a cozinha, esvazia-se a despensa. Na casa do preboste de Bro
as carroças de trabalho são enchidas e levadas para a casa
pastoral. Quando o preboste voltar da comunhão, há de encontrar
cômodos vazios, olhar para dentro da cozinha e indagar sobre o
jantar, sem encontrar quem lhe responda. Nada de jantar, nada da
esposa, nada da criada! Quem poderia ajudá-lo? Eros assim quis,
Eros, o onipotente.
Logo no início da tarde a pesada carruagem sobe os morros de
Broby. E a pequena dama está sentada, imaginando se uma nova
desventura haveria de acontecer, se poderia mesmo ser verdade
que estivesse indo ao encontro da única alegria de sua vida.
E então a carruagem chega à casa pastoral, mas para no portão.
O grande veículo é demasiado largo, o portão é demasiado estreito.
O cocheiro estala o chicote, os cavalos sobressaltam-se, o criado
pragueja, mas a roda de trás está irremediavelmente presa. A filha
do conde não consegue entrar na casa do amado.
Mas lá vem alguém! Lá vem ele! Ele estende-lhe a mão para que
apeie da carruagem e a carrega nos braços, cuja força permanece
inalterada; no abraço, o calor parece ser o mesmo de antes,
quarenta anos antes. Ela o olha nos olhos, que naquele momento
brilham como brilhavam quando tinham apenas 25 primaveras.
Sente-se acometida por uma tempestade de sentimentos, mais
quentes do que nunca. Lembra-se de que certa vez ele a levou nos
braços até o terraço. Ela, que achava que seu amor vivera por todos
aqueles anos, tinha no entanto olvidado como era ser carregada em
braços fortes, olhar para olhos jovens e luzidios.
Ela não vê que ele está velho. Vê apenas os olhos, os olhos.
Não vê o assoalho preto, o teto verde de umidade; vê tão
somente aqueles olhos luzidios. Naquela hora o pastor de Broby é
um homem imponente, um senhor deveras belo. E torna-se ainda
mais belo à medida que a olha.
Ela ouve-lhe a voz, a voz clara e toante, cujas notas chegam-lhe
como se fossem carícias. E então ele fala somente para ela. Para
que precisaria dos móveis do preboste nos cômodos vazios? Para
que comida? Para que criados? Aquela dama envelhecida mal daria
pela falta dessas coisas. Ela ouve a voz dele e olha em seus olhos.
Nunca, nunca dantes ela fora tão feliz!
Ele faz uma mesura delicada e orgulhosa, como se ela fosse
uma princesa, e ele o escolhido! E emprega modos de falar antigos
ao dirigir-lhe a palavra. Ela não faz mais que sorrir e alegrar-se.
No final da tarde ele estende-lhe o braço, e os dois caminham
pelo velho pomar decrépito. Ela não vê nada de feio e nada de
abandonado. Arbustos descuidados transformam-se em sebes
podadas, os inços transformam-se em tapetes planos e brilhosos de
grama viçosa, longas aleias projetam sombra e em nichos de verde-
escuro resplandecem estátuas brancas da juventude, da fidelidade,
da esperança, do amor.
Ela sabe que ele foi casado, mas não se lembra. Como poderia
lembrar-se de uma coisa dessas? Ela tem 20 anos, ele, 25. Ele sem
dúvida não tem mais do que 25; é jovem e está repleto de forças.
Será mesmo o homem que há de se tornar o avaro pastor de Broby,
aquele jovem sorridente? Por vezes ele ouve ao pé do ouvido um
sussurro a trazer maus agouros. Mas os lamentos dos pobres, as
maldições dos traídos, os rictos do desprezo, as canções de
escárnio, a zombaria – nada disso existe naquele instante. O
coração dele arde com o mais puro e inocente amor. Acaso é aquele
o jovem orgulhoso que há de amar o ouro a tal ponto que por ele
estará disposto a rastejar na mais sórdida imundície e mendigar dos
viajantes, sofrer humilhações, sofrer com a vergonha, sofrer com o
frio, sofrer com a fome para obtê-lo? Acaso estaria mesmo disposto
a deixar que a própria filha passasse fome e a atormentar a esposa
por aquele ouro miserável? É impossível. Ele não seria assim. Ele é
uma pessoa boa, como todas as outras. Não é nenhum monstro.
A amada da juventude não anda ao lado de um canalha
desprezado, indigno da profissão que tomou para si! Não mesmo.
Ah, Eros, deus onipotente, não naquela tarde! Naquela tarde ele
não é o pastor de Broby, nem mesmo no dia seguinte ou no outro.
E no outro ela parte. O portão se abre. A carruagem desce os
morros de Broby com toda a velocidade que os cavalos
descansados podem atingir.
Que sonho, que sonho maravilhoso! Não houve uma única
nuvem durante aqueles três dias!
Ela voltou sorrindo para o palácio e para as memórias. Nunca
mais ouviu o nome dele ser mencionado, não fez mais perguntas a
seu respeito. Desejava continuar a sonhar aquele sonho por quanto
tempo ainda vivesse.
O pastor de Broby sentou-se na casa deserta e chorou como um
desesperado. Ela o havia rejuvenescido. Será que tornaria a ser
velho? Será que o espírito do mal haveria de voltar e torná-lo
desprezível, desprezível como dantes fora?
O PATRÃO JULIUS RETIROU SEU BAÚ VERMELHO DA ALA DOS
CAVALHEIROS. Encheu com fragrante aguardente da Pomerânia um
cantil verde, que o acompanhara em muitas viagens, e abasteceu a
grande marmita de madeira entalhada com manteiga, toucinho e um
naco de queijo velho com matizes de verde e marrom, presunto
gordo e panquecas que nadavam em geleia de framboesa.
Depois o patrão Julius saiu e, com lágrimas nos olhos, despediu-
se de toda a opulência de Ekeby. Pela última vez passou a mão nas
bolas de boliche desgastadas e no rosto gorducho das crianças que
viviam no morro da fundição. Andou pelos recantos do pomar e
pelas grutas no parque. Entrou em cavalariças e estábulos, afagou a
garupa dos cavalos, mexeu no chifre dos animais bravos e deixou
que os cordeiros lambessem-lhe as mãos. Por fim aproximou-se
com os olhos rasos de lágrimas da casa senhorial, onde o café da
manhã de despedida o esperava.
Como a existência é sofrida! Como pode encerrar tanta
escuridão? Havia veneno na comida, bile no vinho. A garganta dos
cavalheiros tinha um nó tão apertado quanto a dele. A bruma das
lágrimas turvava os olhares. O discurso da despedida foi
interrompido por fungadas. Como a existência é sofrida! Daquele
momento em diante, sua vida seria um anseio interminável. Jamais
disporia os lábios em um sorriso, e as canções morreriam em sua
memória como as flores morrem no outono. Haveria de empalidecer,
cair ao chão e murchar como uma rosa atingida pela geada, como
um lírio sedento. Jamais os cavalheiros tornariam a ver o pobre
Julius. Pressentimentos sombrios acossavam-lhe a alma como as
sombras de nuvens perseguidas por uma tempestade cruzam
nossos campos recém-adubados. O patrão Julius tornaria a casa
para morrer. Naquele instante, radiante de saúde e de bem-estar,
postou-se ante os demais cavalheiros. Nunca mais o veriam
daquela maneira. Nunca mais haveriam de perguntar-lhe, em tom
de brincadeira, quando fora a última vez que vira os dedos dos pés,
nunca mais desejariam que suas bochechas fossem bolas de
boliche. O mal já estava instalado no fígado e nos pulmões. Roendo
e devorando. Por muito tempo ele soubera. Tinha os dias contados.
Ah, mas que ao menos os cavalheiros de Ekeby guardassem
memórias eternas do falecido! Ah, que não o esquecessem jamais!
Mas o dever o chamava. Em casa, a mãe o esperava. Por
dezessete anos havia esperado que o filho voltasse de Ekeby para
casa. Naquela ocasião escrevera-lhe um chamado, e ele havia de
atendê-lo. Sabia que aquilo seria a morte, mas assim mesmo havia
de atendê-lo como um bom filho.
Ah, as festas divinas! Ah, os doces gramados nas margens do
lago, a orgulhosa corredeira! Ah, as aventuras jubilosas, o assoalho
branco e liso do salão, a bem-amada ala dos cavalheiros! Ah, as
trompas e os violinos, ah, a vida de alegria e felicidade! A morte era
separar-se de tudo isso.
Então o patrão Julius foi à cozinha e despediu-se das criadas.
Uma por uma, da governanta a uma humilde agregada que lá se
encontrava, ele abraçou e beijou com movimentos largos. As
criadas choravam e lamentavam-se com aquele destino. Que um
senhor tão bom e tão divertido houvesse de morrer! Que nunca mais
houvessem de vê-lo!
O patrão Julius deu ordens de que sua sege fosse trazida do
depósito e sua égua fosse trazida da cavalariça.
A voz quase faltou ao patrão Julius quando deu essa ordem.
Afinal, a sege não poderia continuar morando em paz no depósito
de Ekeby, afinal a velha Kajsa havia de afastar-se da cocheira
habitual! Ele não diria nada de ruim a respeito da mãe, mas ela
devia ter pensado na sege e em Kajsa, mesmo que não houvesse
pensado no filho. Como haveriam de aguentar a longa viagem?
O mais amargo, no entanto, foi a despedida dos cavalheiros.
O pequeno e rotundo patrão Julius, mais feito para rolar do que
para caminhar, tinha um sentimento trágico em cada fibra do corpo.
Lembrou-se do grande ateniense que calmamente havia ingerido
um cálice de veneno em meio a um círculo de discípulos aos
prantos. Lembrou-se do rei Gustav Vasa, quando profetizou que
chegaria o dia em que o povo da Suécia haveria de querer retirá-lo
da terra.
E por fim cantou sua melhor canção. Pensou no cisne, que morre
cantando. Era assim que desejava ser lembrado, como um espírito
nobre, que não se entrega a lamentações, mas que se afasta levado
por uma melodia.
Finalmente o derradeiro cálice foi esvaziado, a última canção foi
cantada, o último abraço foi dado. Ele vestiu a capa, já com o
chicote na mão. Todos os olhos estavam úmidos, e os seus próprios
encontravam-se tão anuviados pela bruma cada vez mais densa da
tristeza que já não enxergava mais nada.
Então os cavalheiros agarraram-no e o levantaram. Os gritos de
viva ecoaram ao redor. Quando tornaram a largá-lo, ele não sabia
onde estava. Um chicote estalou, e o veículo moveu-se sob os pés
do rotundo patrão. E assim foi levado. Quando recuperou o uso dos
olhos, notou que estava na estrada.
Os cavalheiros haviam de fato chorado e se deixado tomar por
uma profunda saudade, mas a tristeza não sufocara todos os
movimentos alegres do coração. Um dentre eles – teria sido Gösta
Berling, o poeta, ou Beerencreutz, o velho combatente apreciador
de carteado, ou ainda o entediado primo Kristoffer? – tinha dado
ordens de que Kajsa não fosse tirada da cavalariça, e tampouco a
sege mofada do depósito. Em vez disso, um enorme boi de pelagem
branca fora atrelado a um carroção de feno, e depois o baú
vermelho, a marmita de madeira entalhada tinham sido postos lá
dentro, e por fim o próprio patrão Julius, com olhos marejados de
lágrimas, fora posto em cima, não da marmita nem do baú, mas no
dorso do boi de pelagem branca.
Veja, assim são os homens! Demasiado fracos para encarar toda
a amargura da tristeza! Claro que os cavalheiros lamentaram pelo
amigo que se afastava para morrer, por aquele lírio que fenecia aos
poucos, por aquele cisne abatido. Mas assim mesmo a melancolia
no coração dos cavalheiros foi aliviada quando viram o antigo
companheiro se afastar no dorso do grande boi de pelagem branca
enquanto o corpo rotundo estremecia em soluços, os braços
estendidos para um último abraço sucumbiam ao desespero e os
olhos procuravam justiça no céu implacável.
Já na estrada a névoa começou a dissipar-se para o patrão
Julius, e ele percebeu que estava montado no dorso de um animal
de passos balouçantes. E então dizem que começou a pensar sobre
tudo o que pode se passar em dezessete longos anos. A velha
Kajsa estava visivelmente transformada. Será que a ração de aveia
e os campos de trevo em Ekeby poderiam ter causado aquilo? E ele
gritou – não sei se as pedras à beira da estrada ou os pássaros nos
matagais ouviram –, mas é verdade que gritou:
– Que o diabo me carregue! Não acredito que brotaste chifres,
Kajsa!
Ao fim de mais um momento de ponderação ele permitiu-se
lentamente escorregar das costas do boi, e então subiu no carroção,
sentou-se em cima da marmita e entregou-se novamente a
pensamentos sombrios.
Dentro em pouco, quando já se aproximava de Broby, ouviu uma
canção cadenciada:

Um, dois
três, quatro.
Os caçadores vêm do mato.

Essas notas vieram-lhe ao encontro, mas os caçadores


mencionados na canção não estavam em parte alguma; eram
apenas as senhoritas de Berga e duas das belas filhas do
presidente do tribunal de Munkerud que se aproximavam
caminhando pela estrada. Tinham posto as pequenas trouxas de
mantimentos na ponta de longas varas, que lhes repousavam nos
ombros como espingardas, e avançavam corajosamente em meio
ao calor de verão, cantando em uníssono: “Um, dois, três, quatro…”.
– Para onde vai, patrão Julius? – gritaram ao encontrá-lo, sem
perceber a nuvem de tristeza que lhe toldava o semblante.
– Vou para longe da casa do pecado e da vaidade – respondeu o
patrão Julius. – Não quero mais estar na companhia de vagabundos
e malfeitores. Estou indo para a casa da minha mãe.
– Ah! – exclamaram todas. – Não pode ser! O senhor não pode
abandonar Ekeby!
– Posso – respondeu o patrão Julius, e então bateu com o punho
cerrado no baú de roupas. – Como Ló fugiu de Sodoma e Gomorra,
fujo agora eu de Ekeby. Por lá já não existe nenhum homem justo.
Mas, quando a terra sucumbir e a chuva de enxofre cair do céu, hei
de alegrar-me com a justiça do juízo divino. Adeus, meninas! E
tomem cuidado com Ekeby!
E depois dessas palavras ele quis seguir viagem, porém essa
não era a ideia das meninas. Tinham por objetivo subir até
Dunderklätten para escalar o monte, mas o caminho era longo, e por
isso teriam grande prazer em usar o carroção de Julius para chegar
ao pé da encosta.
Felizes delas, que dispunham ainda de tempo para se alegrar
com o sol da vida sem precisar de um rícino a fim de proteger a
cabeça! Em dois minutos as meninas haviam conseguido o que
desejavam. O patrão Julius deu meia-volta e subiu em direção a
Dunderklätten. Permaneceu sentado em cima da marmita com um
sorriso nos lábios enquanto o carroção enchia-se de meninas. Ao
longo do caminho cresciam margaridas e camomilas e látiros. O boi
às vezes tinha de parar para descansar um pouco. Nessas horas as
meninas desciam para colher flores. Não tardou para que
imponentes guirlandas ornassem a cabeça de Julius e os chifres do
boi.
Mais adiante chegaram às bétulas e aos amieiros-negros. As
meninas quebraram galhos para enfeitar o carroção. Logo parecia
um pequeno bosque à parte. O dia inteiro passou-se em meio a
entusiasmo e brincadeiras.
O patrão Julius sentia-se cada vez mais terno e cada vez mais
iluminado à medida que o dia avançava. Dividiu o conteúdo da
marmita entre as meninas e cantou canções. Quando estavam no
topo de Dunderklätten, admirando aquele belo e orgulhoso
panorama, tão exuberante que os olhos de todos se umedeceram
com tamanho esplendor, Julius sentiu o coração bater com força, as
palavras brotaram de seus lábios e ele pôs-se a falar sobre a amada
terra.
– Ah, Värmland – disse –, ó bela, ó maravilhosa! Amiúde, quando
te vejo à minha frente em um mapa, indago o que haverias de
pensar, mas agora compreendo aquilo que és. És uma velha
eremita devota, que passa o tempo inteiro sentada em silêncio, a
sonhar de pernas cruzadas com as mãos a repousar no colo. Tens
um gorro pontudo a cobrir-te os olhos semicerrados. És uma
sonhadora, uma idealista sagrada, e também deveras bela.
Florestas intermináveis são tuas vestes. Longas fitas de águas azuis
e atavios de morros azuis rematam-na. És tão simples que os
forasteiros não veem o quanto és bela. És pobre como os piedosos
almejam ser. Permaneces sentada, enquanto as ondas do Vänern
lavam-te os pés e as pernas cruzadas. À esquerda tens os campos
de minério e as minas. Lá está o teu coração palpitante. Ao norte
tens paisagens belas e escuras de solidão e segredo. Lá está tua
fronte sonhadora.
“Quando te vejo, tu, como uma gigante, tu, sempre tão séria,
meus olhos se enchem de lágrimas. És dura na tua beleza, és
contemplação, pobreza, abnegação, mas assim mesmo vejo, em
meio a essa austeridade toda, as delicadas feições da ternura. Vejo-
te e venero-te. Basta que eu olhe para tuas amplas florestas, basta
que me roces uma dobra do teu manto para que minha alma se
cure. Hora após hora, ano após ano eu venho olhando para o teu
rosto sagrado. Que segredos escondes por baixo das pálpebras
baixadas, ó deusa da abnegação? Acaso decifraste o enigma da
vida e da morte, ou ainda meditas, ó sagrada, ó gigante? Para mim
és a guardiã dos grandes pensamentos solenes. Mas vejo pessoas
aproximarem-se e rodearem-te, criaturas que não parecem jamais
ter percebido a solene majestade em tua fronte. Veem apenas a
beleza do teu rosto e do teu corpo, e assim deixam-se cativar de tal
forma que se esquecem de tudo.
“Ai de mim, ai de todos nós, filhos de Värmland! Beleza, beleza e
nada mais é o que exigimos da vida. Nós, filhos da abnegação, da
solenidade, da pobreza, erguemos as mãos em uma longa prece e
suplicamos por esse único bem, a beleza. Que a vida seja como um
buquê de rosas, floresça de amor, de vinho e de alegria, e que as
rosas estejam ao alcance de todos! Vê, é o quanto desejamos, e
nossa terra exibe os traços da austeridade, da solenidade, da
abnegação. Nossa terra é o símbolo da meditação eterna, mas não
temos pensamentos.
“Ah, Värmland, ó bela, ó maravilhosa!”
E assim falou com lágrimas nos olhos e a voz a tremer de
emoção. As meninas ouviram-no cheias de admiração e com a
respiração suspensa. Não imaginavam as profundezas de
sentimentos que se escondiam por baixo daquela superfície de
alegria e gracejo.
Quando a tarde se aproximou do fim todos voltaram a subir no
carroção, e as meninas somente notaram para onde o patrão Julius
estava a levá-las quando pararam em frente à escada de Ekeby.
– Vamos entrar e dançar um pouco, meninas – disse o patrão
Julius.
O que disseram os cavalheiros ao ver o patrão Julius chegar com
uma guirlanda de flores murchas ao redor do chapéu e o carroção
cheio de meninas?
– Achamos mesmo que as meninas o haviam carregado –
disseram –, pois de outro modo teria voltado horas antes.
Pois os cavalheiros lembravam-se de que aquela era a 17ª vez
que o patrão Julius tentava deixar Ekeby, sempre uma vez a cada
ano que passava. E naquele instante o patrão Julius já tinha
esquecido tanto aquela tentativa quanto todas as demais. Sua
consciência sucumbiu novamente a um sono de um ano.
Era um homem divertido, o patrão Julius. Leve na dança, alegre
no carteado. A caneta, o pincel e o arco caíam igualmente bem em
sua mão. Tinha um coração sensível, belas palavras nos lábios e a
garganta repleta de belas canções. Mas de que tudo isso lhe teria
servido, caso não tivesse igualmente uma consciência que se
deixasse pressentir uma vez por ano, como as efeméridas que se
libertam das tristes profundezas e ganham asas para viver poucas
horas em meio à luz do dia e ao brilho do sol?
A IGREJA DE SVARTSJÖ É BRANCA TANTO POR FORA COMO POR DENTRO,
o branco está nas paredes, no púlpito, nos bancos, no coro, no teto,
nos arcos das janelas, na toalha do altar, tudo é branco. Na igreja de
Svartsjö não existem adornos, não existem imagens, não existem
brasões. Acima do altar vê-se apenas uma cruz de madeira com um
pano de linho branco. Antigamente não era assim. O teto era repleto
de pinturas, e muitas imagens coloridas de pedra e de barro
enchiam a casa de Deus.
Certa vez, muito tempo atrás, um artista de Svartsjö havia
observado o céu de um dia de verão e prestado atenção à viagem
das nuvens rumo ao sol. Tinha visto as nuvens brancas e
reluzentes, ainda baixas pela manhã, elevarem-se cada vez mais
alto; tinha visto todos aqueles colossos desapressados erguerem-se
para investir rumo às alturas. Desfraldaram velas como barcos.
Ergueram estandartes como guerreiros. Tomaram conta de todo o
céu. À frente do sol, o rei do espaço, aqueles monstros cada vez
maiores postaram-se e assumiram formas inócuas. Havia um leão
de boca aberta. Este transformou-se em uma senhora empoada.
Havia um gigante com braços sufocadores. Este deitou-se como
uma esfinge sonhadora. Outras enfeitavam a nudez branca com
mantos de bordas douradas. Outras aplicavam maquiagem
vermelha sobre as faces brancas como a neve. Lá estavam as
planícies. Lá estavam as florestas. Lá estavam as fortalezas
muradas com altas torres. As nuvens brancas tornaram-se as
senhoras do céu de verão. Preencheram por completo a abóbada
azul. Alcançaram o sol e o atravessaram.
“Ah, que bonito”, pensou então o piedoso artista; “se os espíritos
arrebatados pudessem subir por essas montanhas e ser levados por
um navio balouçante cada vez mais alto!”
E no mesmo instante compreendeu que as nuvens brancas de
verão eram as naus em que singram almas bem-aventuradas.
Ele as viu. Lá estavam, em massas deslizantes, com lírios nas
mãos e coroas de ouro na cabeça. O céu ecoava as canções que
entoavam. Os anjos deslocaram-se com asas largas e fortes ao
encontro delas. Ah, que quantidade de bem-aventurados! À medida
que as nuvens se espalhavam, tornavam-se cada vez mais
numerosos. Descansavam em leitos de nuvem como nenúfares em
um lago. Enfeitavam-nas como os lírios enfeitam o prado. Que
ascensão jubilosa! Nuvem rolava atrás de nuvem. E todas estavam
repletas de exércitos celestiais com armaduras de prata, de
cantores imortais com mantos rematados em púrpura.
Mais tarde esse artista havia pintado o teto da igreja de Svartsjö.
Lá, desejara reproduzir as nuvens montantes daquele dia de verão,
que levavam os bem-aventurados à maravilha do céu. A mão que
empunhara o pincel era forte, mas também um pouco rígida, de
maneira que as nuvens mais pareciam os cachos crespos de uma
peruca do que montanhas crescentes de névoa fofa. E assim,
embora as criaturas sagradas tivessem ganhado forma na fantasia
do pintor, ele não as conseguira reproduzir, mas apenas as vestira à
maneira humana com longas capas vermelhas e mitras engomadas
ou em túnicas negras com golas rígidas. Havia lhes dado cabeças
grandes e corpos pequenos, e as havia provido de lenços e livros de
oração. Frases latinas saíam-lhes da boca, e para as figuras que o
artista considerava mais sublimes havia cadeiras de madeira no
dorso das nuvens, para que pudessem confortavelmente ir ao
encontro da eternidade.
Mas todos sabiam que espíritos e anjos jamais haviam se
revelado para o pobre artista, e assim ninguém se admirou muito ao
perceber que as figuras não eram dotadas de beleza supraterrena.
A pintura devota feita por aquele bom mestre parecia a muitos
repleta da mais absoluta ternura, e havia despertado inúmeros
movimentos santos. E talvez fosse digna de ser vista também por
nossos olhos.
Mas, durante o ano dos cavalheiros, o conde Dohna mandara
pintar toda a igreja de branco. E assim a pintura do teto fora
destruída. Os santos de barro foram igualmente aniquilados.
Ah, os santos de barro!
Seria melhor se a necessidade humana pudesse despertar em
mim uma tristeza como a que senti perante aquele declínio, se a
maldade dos homens contra os homens pudesse me encher de uma
amargura como a que senti por causa daquelas imagens.
Imagine! Havia um Santo Olavo de coroa em cima do elmo,
machado na mão e um gigante ajoelhado sob os pés. Em cima do
banco de pregação havia uma Judite de camisa vermelha e saia
azul, com uma espada numa das mãos e na outra uma ampulheta,
em vez da cabeça do general assírio. Havia uma misteriosa rainha
de Sabá, de blusa azul e túnica vermelha, com um pé de ganso no
fim de uma das pernas e a mão cheia de livros sibilinos. Havia um
São Jorge deitado sozinho em um banco no coro, pois tanto o
cavalo como o dragão tinham sido destruídos. Havia um São
Cristóvão com o cajado florido e um São Érico de cetro e machado,
trajando um longo manto com flores douradas.
Passei muitos domingos sentada na igreja de Svartsjö,
lamentando a ausência das imagens e por elas ansiando. Eu não
teria me importado se lhes faltassem narizes ou pés, se a douradura
estivesse desbotada e as cores esfareladas. Eu as teria visto
rodeadas pelo brilho das lendas.
Deve ter sido sempre assim com esses santos, que perdiam
cetros ou orelhas ou mãos e precisavam ser consertados e limpos.
A congregação se cansou de tudo aquilo e quis livrar-se deles. Mas
os camponeses talvez não tivessem feito mal nenhum aos santos,
não fosse pelo conde Dohna. Foi ele quem permitiu que os tirassem
de lá.
Eu o odiei por isso como apenas uma criança pode odiar. Odiei-o
como o mendigo faminto odeia a senhora da casa que lhe nega um
pedaço de pão. Odiei-o como um pescador pobre odeia o menino
travesso que lhe destruiu a rede e fez um furo em seu barco. Acaso
não senti fome e sede durante esses longos cultos? Pois ele levara
embora o pão que havia de nutrir-me o espírito! Acaso eu não
ansiava pela infinitude, pelas alturas celestes? Pois ele estragara o
meu alimento e destruíra a rede com que eu havia de capturar
visões divinas!
No mundo dos adultos não existe lugar para o ódio verdadeiro.
Como hoje eu poderia odiar uma criatura tão digna de pena como o
conde Dohna ou um louco como Sintram ou uma senhora mundana
como a condessa Märta? Mas quando eu era criança! Sorte deles
que já estavam mortos havia muito tempo.
O pastor talvez estivesse no púlpito falando sobre paz e
reconciliação, mas de nosso lugar na igreja aquelas palavras não
eram ouvidas jamais. Ah, se eu tivesse aqueles velhos santos de
barro! Com certeza haveriam pregado de forma que eu pudesse não
apenas ouvir, mas também compreender.
Naquele mesmo instante, porém, eu pensava sobre a forma
como haviam sido roubados e destruídos.
Quando o conde Dohna pediu a anulação de seu casamento em
vez de procurar a esposa e legalizá-lo, houve uma indignação geral,
pois todos sabiam que a esposa havia deixado a casa apenas para
que não fosse atormentada até a morte. E naquele momento o
conde parecia desejoso de reconquistar a misericórdia de Deus e a
consideração dos homens por meio de uma boa obra, e assim
mandou reformar a igreja de Svartsjö. Fez com que pintassem a
igreja toda de branco e retirassem as pinturas do teto. Ele mesmo,
na companhia dos criados, carregara as imagens em um barco e as
jogara nas profundezas do Löven.
Como um homem daqueles se atrevia a tocar a magnificência do
Senhor?
Ah, que um malfeito como aquele pudesse ocorrer! A mão que
havia cortado a cabeça de Holofernes acaso já não empunhava
mais a espada? A rainha de Sabá acaso já havia esquecido todo o
conhecimento oculto, mais letal do que uma seta envenenada?
Santo Olavo, Santo Olavo, velho viking, São Jorge, São Jorge, velho
matador de dragões, o ribombar de vossas façanhas morreu, a
glória do milagre apagou-se! Mas os santos não quiseram usar de
violência contra os destruidores. Uma vez que os camponeses de
Svartsjö não queriam mais emprestar cores aos mantos ou
douraduras às coroas, permitiram que o conde Dohna os levasse e
os jogasse nas profundezas infinitas do Löven. Não queriam mais
desfigurar a casa de Deus. Ah, coitados! Será que ainda se
lembram da época em que orações e genuflexões lhes eram
oferecidas?
Pensei naquele barco com a carga de santos, a deslizar pela
superfície do Löven numa tarde calma de verão. O homem que
remava fazia gestos lentos e lançava olhares tímidos em direção
aos estranhos passageiros que ocupavam a proa e a popa, mas o
conde Dohna, que lhes fazia companhia, não teve medo. Pegou os
santos um por um com as nobres mãos e jogou-os na água. Tinha a
fronte clara e respirava profundamente. Sentia-se como um
defensor da mais pura doutrina evangélica. E não aconteceu
nenhum milagre em honra daqueles velhos santos. Silentes e
desanimados, afundaram rumo à aniquilação.
Mas na manhã do domingo seguinte a igreja de Svartsjö erguia-
se em esplendorosa brancura. Já nenhuma imagem perturbava a
contemplação da paz interior. Somente com os olhos da alma os
piedosos eram capazes de contemplar o esplendor do céu e o
semblante dos santos. As preces humanas alçavam-se em asas
poderosas rumo ao Altíssimo. Nunca mais haveriam de prender-se
às dobras dos mantos de santos.
Ah, verde é a terra, amada morada dos homens, e azul é o céu,
o objetivo de todos os anseios! O mundo reluz em cores. Por que a
igreja é branca? Branca como o inverno, nua como a pobreza,
pálida como a angústia! Não brilha na geada como as florestas de
inverno. Não cintila em pérolas e rendas como uma noiva branca. A
igreja ergue-se em um tom frio e branco de cal, sem uma única
imagem, um único quadro.
Naquele domingo o conde Dohna sentou-se no coro em uma
cadeira ornada com flores para ser visto e admirado por todos.
Naquele momento receberia honras como o homem que mandara
consertar os velhos bancos, destruíra as imagens desfiguradoras,
mandara instalar novas vidraças nas janelas rotas e mandara caiar
toda a igreja. Sem dúvida sentira-se livre para fazer tais coisas. Se
queria apaziguar a ira do Altíssimo, tudo bem que lhe decorasse o
templo o quanto fosse possível. Mas por que receber homenagens a
esse título?
Ele, que com uma dureza irredimida na consciência, poderia ter
se prostrado de joelhos no banco da vergonha e implorado aos
irmãos e irmãs que clamassem por Deus para que o aceitasse em
seu templo. Seria melhor para ele estar lá como um pobre malfeitor
do que sentar-se à frente do coro, honrado e bendito, para receber
homenagens pela tentativa de reconciliar-se com Deus.
Ah, conde, sem dúvida Ele esperava ver-te no banco da
vergonha! Não teria se deixado enganar pelo fato de que os homens
não tiveram coragem de denunciar-te. Ainda é o Deus zeloso que
faz as pedras falarem quando os homens se calam.
Quando o culto encerrou-se e os últimos salmos foram entoados,
ninguém deixou a igreja, mas em vez disso o pastor subiu ao púlpito
para fazer um discurso de agradecimento ao conde. Mas o discurso
não foi muito longe.
Pois as portas abriram-se de par em par, e os velhos santos
tornaram a entrar na igreja, pingando com a água do Löven, sujos
de lodo verde e barro escuro. Talvez houvessem pressentido que lá
se faria o elogio daquele que os havia jogado rumo à aniquilação,
que os havia expulsado da santa casa de Deus para afundá-los nas
frias ondas destruidoras. Os velhos santos queriam dar uma palavra
sobre o assunto.
Não gostam do barulho monótono das ondas. Estão
acostumados a salmos e a orações. Calaram-se e deixaram tudo
acontecer enquanto acreditavam que aquilo era feito em honra de
Deus. Mas não foi o caso. Lá está o conde Dohna, com sua honra e
reputação, na parte da frente do coro, para ser venerado e admirado
na casa de Deus. Isso os santos não podem tolerar. Por esse motivo
saíram do túmulo molhado e entraram em procissão na igreja,
reconhecíveis perante os olhos de todos. Lá está santo Olavo, com
a coroa ao redor do chapéu, e são Érico, com as flores amarelas na
capa, e o cinzento são Jorge e são Cristóvão, ninguém mais. Judite
e a rainha de Sabá não tinham aparecido.
Mas, quando as pessoas recuperam-se do espanto, um sussurro
audível atravessa a igreja:
– Os cavalheiros!
Ora, claro que são os cavalheiros. Todos vão diretamente ao
encontro do conde e, sem dizer uma palavra, tiram-no da cadeira,
colocam-no em cima dos ombros, levam-no para fora da igreja e o
largam no chão.
Não dizem nada, e não olham nem para a esquerda nem para a
direita. Simplesmente tiram o conde Dohna da casa de Deus e, ao
completar essa tarefa, afastam-se novamente, tomando o caminho
mais próximo rumo ao lago.
Não se aborreceram nem gastaram muito tempo a explicar o que
pretendiam. Era claro o bastante. “Nós, cavalheiros de Ekeby, temos
uma ideia nossa. O conde Dohna não é digno de ser admirado na
casa de Deus. Por isso havemos de levá-lo para fora. Que o traga
de volta quem assim quiser.”
Mas ninguém levou o conde de volta. O discurso de
agradecimento do pastor jamais foi proferido. As pessoas saíram
todas juntas da igreja. Não houve ninguém que pensasse outra
coisa a não ser que os cavalheiros tinham agido de maneira justa.
Todos se lembraram da jovem e brilhante condessa terrivelmente
atormentada em Borg. Lembraram-se daquela que sempre fora boa
para com os pobres, que sempre fora tão bela que simplesmente
vê-la era um consolo.
Era pena ter de receber na igreja um bando desvairado, mas
tanto o pastor como a congregação sabiam que haviam estado a
ponto de pregar uma peça ainda maior ao Todo-Poderoso. E assim
permaneceram envergonhados perante aqueles velhos loucos.
– Quando as pessoas calam, as pedras falam – disseram.
Mas ao cabo daquele dia o conde Henrik não pôde mais sentir-se
bem em Borg. Em uma noite escura no início de agosto uma
carruagem fechada aproximou-se da grande escada. Todos os
criados rodearam-na, e a condessa Märta saiu envolta em xales,
com um denso véu a tapar-lhe o rosto. O conde a levava pela mão,
porém ela tremia e estremecia. Foi apenas com a mais absoluta
dificuldade que puderam fazê-la atravessar o vestíbulo e a varanda.
Por fim, quando entrou no veículo, o conde saltou atrás dela, as
portas bateram e o cocheiro fez com que os cavalos se pusessem a
correr descontroladamente. Na manhã seguinte, quando as pegas
acordaram, a condessa tinha ido embora.
A partir de então o conde passou a viver no sul. Borg foi vendida
e trocou muitas vezes de proprietário. Todos adoravam o lugar. Mas
devem ter sido poucos os que lá viveram com alegria.
O ANDARILHO DE DEUS, CAPITÃO LENNART, chegou em uma tarde de
agosto à estalagem de Broby e adentrou a cozinha. Estava a
caminho de casa, em Helgesäter, situada um terço de légua a
noroeste de Broby, na orla da floresta.
O capitão Lennart ainda não sabia que havia de tornar-se um dos
andarilhos de Deus sobre a terra. Tinha o coração cheio de uma
alegria brincalhona por saber que havia de rever sua casa. Tinha
enfrentado destinos sombrios, mas naquele momento estava em
casa, e a partir de então tudo ficaria bem. Mal sabia que havia de
tornar-se um daqueles que não podem repousar sob o próprio teto,
não podem aquecer-se com a própria estufa.
O andarilho de Deus, capitão Lennart, tinha uma disposição
alegre. Como não encontrasse ninguém na cozinha, mexeu em tudo
lá dentro, como se fosse um menino travesso. Às pressas, passou a
trama de maneira errada no tear e desarrumou o fuso da roca.
Jogou o gato na cabeça do cachorro e riu tanto que a risada ecoou
por toda a casa quando aqueles dois velhos camaradas deixaram
que o calor do momento quebrasse o velho elo de amizade e
investiram um contra o outro com garras expostas, olhares furiosos
e pelos eriçados.
Logo a estalajadeira acudiu, chamada pelo alarido. Postou-se no
marco da porta e olhou para aquele homem que ria dos animais
briguentos. Conhecia-o bem, mas na última vez em que o vira ele ia
sentado na carroça de prisioneiros com as mãos presas em um par
de algemas. Cinco anos e meio antes, durante o mercado de
inverno em Karlstad, ladrões haviam roubado as joias da esposa do
chefe da província. Muitos anéis, pulseiras e fivelas deveras
apreciados por essa nobre senhora, por serem na maior parte
heranças e presentes, haviam desaparecido. Jamais tornaram a
encontrá-los. Mas logo começou a circular pela região um boato
segundo o qual o capitão Lennart, de Helgesäter, seria o ladrão.
A camponesa jamais compreendera de que forma um boato
desses podia surgir. Acaso não era um homem bom e honrado, o
capitão Lennart? Vivia feliz com a esposa, que havia levado para
casa fazia dois ou três anos, posto que somente tarde na vida
conseguira reunir os meios necessários para se casar. Acaso não
tinha uma situação favorável por causa do salário e da morada? O
que levaria um homem nessas condições a roubar velhas pulseiras
e velhos anéis? E parecia-lhe ainda mais estranho que um boato
desses tivesse recebido tanto crédito e parecesse tão
indubitavelmente demonstrado a ponto de o capitão Lennart ser
despedido, perder a Ordem da Espada e acabar condenado a cinco
anos de trabalhos forçados.
Quanto ao próprio, reconheceu que tinha ido ao mercado, mas
afirmou ter ido embora antes mesmo que se começasse a falar em
roubo. Na estrada havia encontrado uma velha fivela, que levara
consigo para casa e dera para as crianças. Mas era uma fivela de
ouro que fazia parte dos objetos roubados. Essa foi a sua desgraça.
Mas na verdade fora tudo culpa de Sintram. O malvado patrão da
fundição havia feito o papel de denunciante e providenciado o
testemunho incriminatório. Foi como se tivesse de livrar-se do
capitão Lennart, pois logo em seguida um julgamento foi iniciado
contra ele próprio quando se descobriu que tinha vendido pólvora
para os noruegueses durante a guerra de 1814. As pessoas
acreditavam que Sintram tinha medo do testemunho que o capitão
Lennart poderia dar contra ele. No fim, acabou inocentado por falta
de provas.
A estalajadeira não se cansava de olhar para aquele homem.
Tinha cabelos grisalhos e as costas recurvadas, pois sem dúvida
havia passado por muitas dificuldades. Mas o semblante amistoso e
a disposição alegre continuavam lá. Ainda era o mesmo capitão
Lennart que a havia levado até o altar quando estava noiva e que
havia dançado em seu casamento. Com certeza ainda devia parar e
conversar com todas as pessoas que encontrava pelo caminho, e
também jogar moedas para as crianças. Ainda diria para as velhas
enrugadas que pareciam mais jovens e mais belas a cada dia que
passava, e ainda seria capaz de postar-se em cima de um barril e
tocar violino para as pessoas que dançavam ao redor do mastro de
maio. Ah, meu Deus!
– E então, Karin – ele disse –, não tem coragem de olhar para
mim?
O capitão Lennart fora até lá para ter notícias sobre como as
pessoas estavam em sua casa, e também para descobrir se
estavam à sua espera. Tinham de saber que havia terminado de
cumprir a pena.
A estalajadeira deu-lhe uma notícia extraordinária. A esposa fora
decidida como um homem. Tinha arrendado a casa ao novo
proprietário, e tudo havia corrido bem. As crianças estavam com boa
saúde e vê-las era sempre uma alegria. E sem dúvida estavam à
espera do capitão. A esposa era uma mulher deveras rígida, que
nunca dizia o que estava pensando, mas a estalajadeira sabia que
ninguém havia usado a colher do capitão Lennart ou sentado em
sua cadeira durante o período de ausência. Naquela primavera não
havia se passado sequer um dia sem que a esposa subisse até a
pedra no alto dos morros de Broby e olhasse para a estrada a fim de
ver se não estava voltando. E havia feito roupas novas para ele,
roupas costuradas à mão, nas quais trabalhara praticamente
sozinha. Ora, por essas coisas todas era possível saber que o
esperava, ainda que nada dissesse.
– Então eles não acreditam? – perguntou o capitão Lennart.
– Não, capitão – respondeu a camponesa. – Ninguém acredita.
Naquela hora o capitão Lennart saiu da cabana, pois queria ir
para casa.
E aconteceu que no lado de fora encontrou bons e velhos
amigos. Os cavalheiros de Ekeby tinham acabado de chegar à
estalagem. Sintram os havia convidado para comemorar seu
aniversário. E os cavalheiros não hesitaram por um instante sequer
antes de apertar a mão do condenado e desejar-lhe um bom
retorno. Também Sintram fez assim.
– Meu caro Lennart – disse –, bem sabes que Deus teve um
propósito com isso tudo!
– Cala a tua boca, canalha! – gritou o capitão Lennart. – Achas
que ignoro que não foi Nosso Senhor quem te salvou do cadafalso?
Os outros riram. Mas Sintram não demonstrou nenhuma
contrariedade. Não tinha nada contra essas insinuações relativas a
uma aliança com o coisa-ruim.
Pois bem, logo os homens tornaram a levar o capitão Lennart
para dentro da estalagem a fim de que todos esvaziassem um copo
de boas-vindas. Depois ele poderia seguir viagem. Mas a partir de
então o plano começou a dar errado. O capitão Lennart havia
passado cinco anos sem beber daquelas coisas traiçoeiras. E talvez
não houvesse comido nada ao longo do caminho, e sentia-se
exausto devido à longa jornada. Consequentemente, sua cabeça
pôs-se a rodar após dois ou três copos.
Quando os cavalheiros o deixaram num estado em que já não
sabia mais o que fazia, começaram a lhe oferecer copo atrás de
copo, sem que assim lhe desejassem nenhum tipo de mal; era a
mais pura bondade para com aquele homem, que nada de bom
havia provado ao longo de cinco anos.
No mais, o capitão Lennart era o mais sóbrio dentre os homens.
E podemos também pensar que não tinha por objetivo embriagar-se;
queria apenas tornar a casa e encontrar a esposa e os filhos. Mas
em vez disso o capitão Lennart deitou-se no banco da taverna e
pôs-se a cochilar.
Enquanto estava deitado por lá, tentadoramente desacordado,
Gösta pegou um pedaço de carvão e suco de airela-vermelha e
começou a pintá-lo. Deu-lhe traços dignos de um criminoso, o que
bem convinha a um homem que acabara de sair da cadeia. Deu-lhe
um olho preto, desenhou uma cicatriz vermelha por cima do nariz,
puxou o cabelo por cima da testa em tufos desgrenhados e sujou-
lhe todo o rosto com fuligem.
Todos passaram um tempo rindo, e logo Gösta quis limpar aquilo.
– Deixa assim – disse Sintram –, para que ele mesmo também
veja ao acordar! Decerto vai achar graça.
E assim tudo ficou como estava, e os cavalheiros não pensaram
mais no capitão. A esbórnia durou toda a noite. A companhia
separou-se apenas com o raiar do dia. Naquela altura havia mais
vinho do que juízo na cabeça de todos.
A questão passou a ser o que fazer com o capitão Lennart.
– Temos de levá-lo para casa – disse Sintram. – Imaginem como
a esposa há de se alegrar ao vê-lo! Seria um prazer testemunhar
essa alegria. Sinto-me comovido só de pensar. Vamos levá-lo para
casa!
Todos se sentiram comovidos com essa ideia. Meu Deus, como
aquela mulher havia de se alegrar, a rígida senhora de Helgesäter!
Logo sacudiram o capitão Lennart até despertá-lo e o puseram
em um dos veículos que os cavalariços sonolentos haviam
preparado muito tempo antes. E assim todo o grupo dirigiu-se a
Helgesäter. Uns ainda cochilavam e por pouco não caíam para fora
do veículo, enquanto outros cantavam para manterem-se
acordados. O aspecto geral não era melhor que o de um bando de
farristas confusos e de rostos inchados.
Mas apesar de tudo os homens chegaram, deixaram os cavalos
no quintal e avançaram em uma fila solene até a escada.
Beerencreutz e Julius carregavam o capitão Lennart entre eles.
– Endireita-te, Lennart! – diziam para ele. – Estás em casa! Não
vês que aqui é a tua casa?
O capitão Lennart abriu os olhos e quase tornou a ficar sóbrio.
Comoveu-se ao perceber que os amigos o haviam acompanhado
até em casa.
– Meus amigos – disse, parando a fim de falar a todos –, eu
perguntei a Deus, meus amigos, por que tanto mal se abateu sobre
mim.
– Ah, cala a boca, Lennart! Nada de pregações! – ruge
Beerencreutz.
– Deixa-o falar! – diz Sintram. – Está a falar bem.
– Eu perguntei a Deus, porque eu não entendia, mas agora
entendo. Ele queria mostrar-me os amigos que tenho. Meus amigos,
que me acompanharam até em casa para ver a minha alegria e a da
minha esposa! Pois a minha esposa me espera. O que são cinco
anos de miséria comparados a isso?
Nesse mesmo instante, punhos rígidos bateram na porta. Os
cavalheiros não tinham mais tempo para ouvir discursos.
Ouviu-se certa movimentação. As criadas acordaram e olharam
para fora. Vestiram-se às pressas, mas não se atreveram a abrir a
porta para o grupo de homens. Por fim a tranca da porta foi aberta.
A própria esposa do capitão saiu.
– O que os senhores querem? – ela perguntou.
Foi Beerencreutz quem respondeu:
– Temos aqui o seu marido.
Então trataram de empurrar o capitão Lennart, e ela o viu
cambaleante, bêbado, com o rosto de um criminoso. E mais atrás
estava todo aquele bando de homens embriagados e trôpegos.
Ela deu um passo para trás quando ele se aproximou de braços
abertos.
– Foste como um ladrão – exclamou a esposa – e voltaste como
um farrista! – E com essas palavras quis voltar para dentro.
O capitão Lennart não entendeu. Quis acompanhar a esposa,
mas ela pôs a mão no peito do marido e o empurrou para trás.
– Achas que pretendo receber um homem na tua situação como
senhor da minha casa e dos meus filhos?
A porta fechou-se mais uma vez, e a tranca tornou a baixar-se.
O capitão Lennart atirou-se contra a porta e começou a sacudi-la.
Nessa hora os cavalheiros não puderam se conter, e então
puseram-se a rir. Ele havia demonstrado certeza em relação à
esposa, mas naquele momento ela não queria saber do marido. Era
ridículo, pensaram.
Quando o capitão Lennart ouviu as risadas, correu atrás dos
homens e quis bater-lhes. Os cavalheiros correram e saltaram para
o interior do veículo. Ele correu atrás, mas na pressa tropeçou em
uma pedra e caiu. Logo tornou a levantar-se, mas não deu
continuidade à perseguição. Uma ideia ocorreu-lhe em meio àquela
confusão. Neste mundo nada ocorre a não ser pela vontade de
Deus. Nada.
– Para onde queres me levar? – ele perguntou. – Sou uma pluma
levada pelo teu sopro. Sou teu joguete. Para onde queres me levar?
Por que fechas os portões da minha própria casa?
O capitão Lennart afastou-se de casa, acreditando que essa era
a vontade de Deus.
Quando o sol nasceu, postou-se no alto dos morros de Broby e
olhou para o vale. Ah, os pobres habitantes do vale não sabiam que
o Salvador estava próximo! Nenhum coitado e nenhum desvalido
havia feito guirlandas com galhos de airela-vermelha para enfeitar a
porta da cabana. Não havia, nos umbrais que logo iria galgar, folhas
de lavanda nem flores do campo. Mãe nenhuma havia tomado o
filho nos braços para que presenciasse aquela chegada. O interior
das cabanas não estava limpo nem arrumado, com a lareira coberta
de zimbro fragrante. Os homens não trabalhavam com afinco no
campo, de forma que o Salvador pudesse alegrar-se ao ver lavouras
bem-cuidadas e valas bem escavadas.
Ah, de onde estava, o Salvador via com olhar angustiado o
estrago feito pela seca, as colheitas perdidas e a maneira como as
pessoas mal pareciam ocupar-se com a preparação da terra para a
colheita seguinte. Ele olhou para as montanhas azuis, e o sol forte
da manhã revelou panoramas queimados por onde os incêndios
florestais haviam passado. Viu as bétulas na beira da estrada quase
destruídas pela seca. Compreendeu a partir de pequenos sinais – o
cheiro do mosto, que sentiu passando ao lado de uma propriedade,
as cercas desmoronadas, a pouca lenha cortada e levada para casa
– que as pessoas não se cuidavam, que a penúria era real e que
aquela gente buscava consolo na indiferença e na aguardente.
Mas talvez fosse bom ter visto o que viu. Pois ao capitão Lennart
não fora dado ver lavouras viçosas crescerem em seus campos,
observar o carvão arder em sua lareira, sentir as mãozinhas suaves
dos filhos a estreitar a sua, ter uma esposa piedosa a seu lado.
Talvez fosse bom para ele, cujos pensamentos eram oprimidos por
uma tristeza profunda, saber que havia outros a quem podia
consolar na pobreza. Talvez fosse bom para ele que aquela fosse
uma época amarga, em que a inclemência da natureza visitava a
casa dos mais pobres com a necessidade, e em que muitas
pessoas afortunadas faziam o quanto podiam a fim de arruiná-los.
O capitão Lennart postou-se lá, nos morros de Broby, e pensou
que talvez Deus precisasse dele.
Cumpre dizer que os cavalheiros não compreendiam que culpa
poderiam ter pela dureza da esposa. Sintram manteve-se calado.
Pelos arredores corriam boatos difamatórios acerca da esposa, que
teria se mostrado demasiado orgulhosa para receber de volta um
bom homem. Diziam que ela interrompia de imediato qualquer um
que pretendesse falar-lhe a respeito do marido. Não suportava
nenhuma menção a seu nome. O capitão Lennart nada fez para
levá-la a pensar de outra forma.
Era o dia seguinte.
Um velho camponês estava no leito de morte em Högbergsbyn.
Já recebera o sacramento, e as forças vitais extinguiam-se; havia de
morrer.
Inquieto como um homem prestes a embarcar numa longa
viagem, pede que levem sua cama da cozinha para a sala, e da sala
para a cozinha. E assim, não por causa do pesado estertor ou do
olhar velado, percebe-se que a hora chegou.
Ao redor estão a esposa, os filhos e os criados. Ele foi um
homem feliz, rico e admirado. Não está sozinho no leito de morte.
Uma quantidade incontável de estranhos rodeia-o na hora extrema.
O velho fala a respeito de si como se estivesse perante Deus, e com
suspiros frequentes e comentários solenes os presentes confirmam-
lhe que as palavras ditas são verdadeiras.
– Eu fui um trabalhador dedicado e um bom patrão para os meus
criados – diz. – Sempre amei minha esposa como se fosse a minha
mão direita. Cuidei dos meus filhos com disciplina e bem-querer.
Não bebi. Não ultrapassei os limites do meu terreno. Não forcei o
cavalo a subir os morros. Não deixei que as vacas passassem fome
no inverno. Não deixei que as ovelhas sofressem com a lã no verão.
E ao redor os criados repetiam chorando, como se fosse um eco:
– O senhor foi um bom patrão. Ah, meu Deus! Não forçou o
cavalo a subir os morros, não deixou que as ovelhas suassem com
a lã no verão.
Mas, do outro lado da porta, sem que ninguém percebesse, um
pobre havia entrado na casa para implorar por comida. Ele também
ouve as palavras do moribundo, postado em silêncio junto à porta.
E o doente prossegue:
– Eu desbastei a floresta, drenei o prado. Conduzi o arado por
sulcos retos. Construí o celeiro três vezes maior para uma colheita
três vezes maior do que aquelas feitas pelo meu pai. Com moedas
reluzentes, mandei fazer três cálices de prata. Meu pai fez somente
um.
As palavras do moribundo chegam ao homem atrás da porta. Ele
ouve o testemunho que o homem oferece de si mesmo como se
estivesse perante o trono de Deus. Ouve os criados e as crianças
repetirem:
– Ele conduziu o arado por sulcos retos, de fato.
– Deus há de me conceder um bom quarto no céu – diz o velho.
– Nosso senhor há de bem receber nosso bom patrão – dizem os
criados.
O homem junto à porta ouve essas palavras e se enche de
horror, ele, que por cinco anos tem sido o joguete de Deus, uma
pluma levada pelo sopro divino.
O homem se aproxima do moribundo e toma-lhe a mão.
– Amigo, amigo! – exclama, com a voz tremendo de angústia. –
Já pensaste quem é o Senhor perante o qual logo hás de te
apresentar? É um Deus grandioso, um Deus terrível. A terra é o
campo que lhe pertence. A tempestade é seu cavalo. Todo o
firmamento estremece sob o peso de seus passos. E tu te postas
perante ele e dizes: “Conduzi o arado por sulcos retos, cultivei
centeio, derrubei a floresta”. Acaso pretendes jactar-te perante
Deus, medir-te com ele? Não conheces a força do Deus a cujo reino
hás de rumar em breve!
Os olhos do velho se abrem, a boca treme de horror, os
estertores tornam-se mais pesados.
– Não te apresentes perante Deus com palavras grandiosas! –
prossegue o andarilho. – Os poderosos da terra são para ele como
a palha do trigo debulhado. A labuta de Deus é construir novos sóis.
Foi ele quem cavou os oceanos e ergueu as montanhas. Foi ele
quem vestiu a terra com plantas. Ele é um trabalhador sem igual, e
não hás de medir-te com ele. Curva-te diante dele, fugaz alma
humana! Prostra-te na poeira diante do Senhor teu Deus! A
tempestade divina se abate sobre ti. A ira divina paira acima de ti
como o relâmpago. Curva-te! Agarra-te como um menino às dobras
do manto e implora por ajuda! Deita-te na poeira e implora por
misericórdia! Humilha-te, alma humana, perante o teu criador!
Os olhos do moribundo encontram-se arregalados, as mãos se
juntam, porém o rosto se acende e os estertores cessam.
– Alma humana, fugaz alma humana! – exclama o homem. – Tão
certo como em tua hora extrema demonstraste humildade perante
Deus, certo é que ele há de pôr-te nos braços como um menino e
conduzir-te à glória do céu!
O velho solta um derradeiro suspiro e tudo acaba. O capitão
Lennart abaixa a cabeça e pede a todos no recinto que rezem em
meio a pesados suspiros.
Quando erguem os olhos, o velho camponês encontra-se na
mais silenciosa paz. Os olhos ainda parecem brilhar com o reflexo
de visões sublimes, os lábios sorriem e o rosto parece belo. Ele viu
Deus.
“Ó grande e bela alma humana”, pensam todos que o veem,
“enfim rompeste os grilhões do pó! Em tua hora extrema, alçaste-te
à altura do criador. Humilhaste-te perante ele, e ele pôs-te no braço
como se fosse uma criança.”
– Ele viu Deus – diz o filho, cerrando os olhos do falecido.
– Ele viu o céu se abrir – fungam as crianças e os criados.
A velha senhora da casa pousa a mão trêmula na mão do
capitão Lennart.
– O senhor o ajudou no instante mais difícil, capitão.
O capitão está mudo. O dom das palavras e das ações
grandiosas foi-lhe concedido. Ele não sabe como. Treme como uma
borboleta recém-saída do casulo, enquanto as asas estendem-se
nos raios do sol, brilhando como os próprios raios do sol.

Foi aquele momento que levou o capitão Lennart ao encontro


das pessoas. De outra forma teria ido para casa e mostrado o rosto
digno para a esposa, mas a partir daquele instante passou a
acreditar que Deus precisava dele. Tornou-se o andarilho de Deus,
que chegava com ajuda para os pobres. A penúria na época era
grande, e havia uma enorme miséria que a sabedoria e a bondade
podiam ajudar mais do que o ouro e o poder.
Certo dia o capitão Lennart foi ao encontro dos camponeses
pobres que moravam na região do monte Gurlita. Em meio àquela
gente a necessidade era grande; as batatas tinham acabado e a
semeadura do centeio na terra queimada não podia se concretizar,
posto que não havia sementes.
Então o capitão Lennart pegou um pequeno barco a remo,
atravessou a diagonal do lago, em direção a Fors, e pediu a Sintram
que desse centeio e batata aos pobres. Sintram o recebeu bem.
Levou-o a celeiros grandes e bem fornidos e também ao porão,
onde se encontravam as batatas da colheita passada, e deixou-o
encher todos os sacos que levara consigo.
Mas, quando viu o barco a remo, Sintram achou-o demasiado
pequeno para uma carga tão grande. O malvado fez com que os
sacos fossem postos em um de seus grandes barcos e ordenou ao
robusto Måns, seu criado, que remasse até a outra margem. Ao
capitão Lennart restou apenas o barco a remo vazio.
Mesmo assim, ele ficou atrás de Måns, pois esse homem era um
mestre do remo e tinha uma força tremenda. E assim o capitão
Lennart pôs-se a sonhar enquanto atravessava o belo lago e
pensava no maravilhoso destino das sementes. Naquele momento
seriam jogadas na terra queimada em meio a pedras e tocos, mas
logo haveriam de crescer e lançar raízes no terreno selvagem. Ele
pensa na delicada grama verde-clara que há de vestir a terra, e em
pensamento abaixa-se e passa a mão pelas folhinhas delicadas. E
então pensa em como o outono e o inverno ainda hão de lançar-se
sobre as pobrezinhas, e em como elas hão de manter a saúde e a
coragem apesar de tudo, para crescer de verdade quando a
primavera chegar. Seu velho coração de soldado alegra-se ao
pensar na haste firme, que há de se erguer a vários palmos de
altura com uma espiga pontuda no alto. As plumas delicadas nos
pistilos hão de tremer, a pólvora vegetal há de fumegar até as copas
das árvores e logo, ao fim de uma batalha e de uma angústia
visíveis, a espiga há de saciar-se com um grão doce e macio. E
então, quando a foice passar e a grama cair e chegar a hora da
debulha, quando a mó transformar os grãos em farinha e a farinha
transformar-se em pão, ah, quanta fome não seria saciada pelos
grãos levados no barco logo à frente!
O criado de Sintram atracou no fundeadouro do povoado de
Gurlita, e muita gente faminta aproximou-se do barco. Então aquele
homem disse, conforme o patrão havia lhe ordenado:
– Camponeses, o patrão da fundição envia-vos malte e grãos.
Ouviu dizer que não tendes aguardente.
Nessa hora as pessoas ficaram enlouquecidas. Correram para o
barco e jogaram-se na água para apanhar os sacos, mas claro que
aquela não era a intenção do capitão Lennart. Ele também havia
chegado, e enfureceu-se ao ver a iniciativa das pessoas. Queria que
a batata fosse usada como alimento e o centeio como semente.
Jamais havia pensado em pedir malte.
Ele gritou para que as pessoas deixassem os sacos de lado, mas
ninguém lhe deu ouvidos.
– Que o centeio se torne areia em vossa boca e a batata pedra
em vossa garganta! – ele gritou, pois estava profundamente
amargurado ao ver que as pessoas brigavam pelos grãos.
E no mesmo instante foi como se o capitão Lennart tivesse
operado um milagre. Duas mulheres que brigavam por um saco
fizeram um furo e encontraram somente areia lá dentro. Os homens
que haviam erguido os sacos de batata sentiram um grande peso,
como se estivessem repletos de pedras.
Tudo aquilo era areia e pedra, tão somente areia e pedra. As
pessoas sucumbiram a um horror silencioso perante o operador de
milagres enviado por Deus. O próprio capitão Lennart por um
instante sentiu-se paralisado de espanto. Apenas o corpulento Måns
ria.
– Vai-te embora, homem – disse o capitão Lennart –, antes que
esses camponeses percebam que jamais houve nada além de areia
nesses sacos! De outro modo, temo que possam afundar-te o barco.
– Não tenho medo – disse o sujeito.
– Vai-te embora mesmo assim! – disse o capitão Lennart, com
uma voz tão cheia de autoridade que o homem pôs-se a caminho.
Depois o capitão Lennart explicou a toda gente que Sintram os
havia logrado, mas as pessoas negaram-se a acreditar em qualquer
outra coisa que não fosse a ocorrência de um milagre. Boatos a
respeito do ocorrido espalharam-se depressa, e como as pessoas
têm verdadeiro amor por histórias maravilhosas, logo todos
acreditavam que o capitão Lennart era capaz de operar milagres.
Foi assim que ganhou uma força enorme entre os camponeses, que
passaram a chamá-lo de andarilho de Deus.
ERA UMA BELA TARDE DE AGOSTO. As águas do Löven estavam
plácidas e espelhadas, a névoa envolvia as montanhas e a
temperatura havia baixado.
Então Beerencreutz, o coronel de bigode grisalho, atarracado,
forte como um gigante e sempre com um baralho no bolso, chegou
caminhando às margens do lago e acomodou-se em um barco a
remo de fundo chato. Com ele estavam o major Anders Fuchs, seu
velho irmão de armas, e o pequeno Ruster, o flautista, que fora
tamboreiro dos Caçadores de Värmland e por muitos anos vinha
fazendo companhia ao coronel na condição de amigo e criado.
Na outra margem do lago fica o cemitério da igreja, o malcuidado
cemitério de Svartsjö, ornado por umas poucas cruzes tortas e
tilintantes, irregular como um campo jamais arado e coberto por
cabelo-de-porco e capim-amarelo, postos lá para lembrar a todos
que a vida de uma pessoa jamais é igual à da outra, mas varia como
as folhas da grama. Não há estradinhas de cascalho, não há
árvores que projetem sombra, mas apenas a grande tília no velho e
esquecido túmulo de um pastor. Um muro de pedra alto e anguloso
circunda aquele pobre espaço. Pobre e desolado é o cemitério, feio
como o rosto de um avaro, emurchecido pelos lamentos daqueles
cuja alegria roubara. E no entanto os que lá repousam são bem-
aventurados, eles, que foram enterrados em solo consagrado em
meio a salmos e orações. Acquilon, o tocador, que morrera no ano
anterior em Ekeby, teve de ser enterrado no lado de fora do muro.
Esse homem, outrora tão orgulhoso e cortês, esse valente guerreiro,
esse audaz caçador, esse jogador, que mantinha a sorte cativa,
acabou por destruir a herança dos filhos, tudo aquilo que havia
juntado, tudo aquilo que a esposa havia cuidado. Tinha abandonado
a esposa e os filhos muitos anos antes para levar a vida de
cavalheiro em Ekeby. Em uma tarde do verão anterior apostara no
carteado a propriedade que lhes garantia o sustento. Em vez de
honrar a dívida, preferiu dar-se um tiro. E o cadáver do suicida foi
enterrado fora do muro coberto de musgo que rodeava o pobre
cemitério.
Desde que morrera, os cavalheiros eram doze. Desde que
morrera, ninguém havia aparecido para ocupar o lugar do 13º,
ninguém a não ser o senhor das trevas que na noite de Natal surgira
na porta da fornalha.
Os cavalheiros julgaram que aquele era um destino mais amargo
que o de seu antecessor. Claro que sabiam que um deles tinha de
morrer a cada ano que passava. Que mal havia nisso? Cavalheiros
não podem envelhecer. Se os olhos baços não pudessem distinguir
as cartas, se as mãos trêmulas não pudessem erguer o copo, o que
seria a vida para eles, e o que seriam eles para a vida? Mas jazer
como um cachorro junto ao muro do cemitério, onde a grama que
recobre o solo não tem descanso, mas sofre o tempo inteiro com os
cascos das ovelhas que pastam, com as feridas abertas por pás e
arados, onde o andarilho chega sem diminuir a marcha e as
crianças brincam sem conter as risadas e as brincadeiras, repousar
lá, onde o som não chegará por causa do muro de pedra quando os
anjos do dia do juízo despertarem com trombetas os mortos que
descansam no lado de dentro! Ah, repousar lá!
Naquele instante Beerencreutz põe-se a remar para chegar à
outra margem do Löven. No fim da tarde, atravessa o lago dos meus
sonhos, em cujas margens vi deuses caminharem e em cujas
profundezas meu palácio mágico se ergue. Deixa para trás as
lagunas de Lagön, onde os espruces se erguem da água,
enraizados em bancos de areia baixos e circulares, e onde os
destroços da fortaleza viking ainda podem ser avistados no íngreme
topo da ilha. Atravessa o parque de espruces no promontório de
Borg, onde o velho espruce dependura-se em grossas raízes sobre
a fenda onde um poderoso urso fora capturado, e onde antigos
túmulos e sepulturas testemunham a antiguidade do lugar.
Rema ao redor do promontório, desce um pouco abaixo do
cemitério e então segue por um gramado bem-cuidado, que
pertence ao conde de Borg, até o túmulo de Acquilon.
Ao chegar, abaixa-se e passa a mão pela grama, da maneira
como passamos a mão nas cobertas de um amigo doente que
repousa. Depois pega o baralho e senta-se ao lado do túmulo.
– Johan Fredrik está demasiado sozinho por aqui. Deve sentir
vontade de jogar um carteado.
– É uma pena e uma vergonha que um homem desses esteja
aqui do lado de fora – diz o grande caçador de ursos Anders Fuchs,
sentando-se ao lado.
Mas o pequeno Ruster, o flautista, fala com a voz embargada
enquanto as lágrimas correm de seus olhinhos vermelhos.
– Depois do senhor, coronel, depois do senhor esse foi o melhor
homem que eu conheci!
Aqueles três homens dignos sentam-se ao redor do túmulo e
distribuem as cartas, sérios e compenetrados.
Olho para o mundo e vejo muitos túmulos. Lá repousa um dos
grandes, sob o peso do mármore. A marcha fúnebre soa ao redor.
As bandeiras são baixadas a meio pau em volta do túmulo. Vejo os
túmulos dessas pessoas, que em vida foram tão amadas. Flores,
umedecidas por lágrimas e acarinhadas por beijos, descansam
leves sobre os tapetes verdejantes. Vejo túmulos ocultos, túmulos
pretensiosos, lugares de repouso mendazes e outros que nada
dizem, porém jamais dantes vira as cartas do Arlequim e do Bobo
com guizo no chapéu serem oferecidas para alegrar o ocupante de
um túmulo.
– Johan Fredrik ganhou – diz o coronel, cheio de orgulho. – Não
estou nada surpreso! Fui eu quem o ensinou a jogar. Ora, mortos
estamos nós três, e ele se encontra sozinho na vida.
E com essas palavras ele recolhe as cartas, levanta-se e, na
companhia dos outros, retorna a Ekeby.
Assim o morto poderia saber e sentir que nem todos haviam
esquecido dele ou de seu túmulo abandonado. Estranhas são as
homenagens rendidas por corações selvagens àqueles que amam,
mas aquele que jaz do lado de fora do muro, ele, cujos restos
mortais não puderam encontrar paz em solo consagrado, pode
apesar de tudo sentir-se alegre ao saber que nem todos o
renegaram.
Meus amigos, filhos do homem, quando eu morrer, certo é que
hei de repousar no meio do cemitério, no túmulo dos meus pais.
Certo é que não roubei o sustento dos meus, não ergui a mão para
atentar contra a minha própria vida, mas também é certo que não
ganhei tamanho amor, e certo é que ninguém há de fazer por mim
tanto quanto os cavalheiros fizeram por aquele ímpio. Sem dúvida
ninguém há de aparecer à tarde, no pôr do sol, e sentir-se triste e
solitário na morada dos mortos, para então pôr vistosas cartas em
minha mão descarnada.
Tampouco há de aparecer – o que para mim seria melhor, posto
que as cartas pouco me atraem – com violino e arco ao pé da
sepultura, para que o meu espírito, enquanto vaga ao redor da
matéria efêmera, se embale na torrente de sons como um cisne em
ondas cintilantes.
MARIANNE SINCLAIRE ESTAVA SENTADA EM SILÊNCIO NO QUARTO,
durante uma tarde no fim de agosto, organizando cartas e outros
papéis.
Ao redor tudo era uma grande desordem. Grandes valises de
couro e caixas rematadas em ferro haviam sido postas no recinto.
Roupas cobriam os sofás e as cadeiras. Tudo fora removido do
sótão, dos armários e das cômodas envernizadas, a seda e o linho
cintilavam, as joias aguardavam o polimento, os xales e as peles
seriam escolhidos e examinados.
Marianne preparava-se para uma longa viagem. O retorno ao lar
era incerto. Estava em um momento decisivo de sua vida, e por
esse motivo queimou diversas cartas e diários. Não queria viver sob
o peso de lembranças passadas.
E lá, sentada, de repente viu-se com um maço de antigos versos
nas mãos. Eram as letras de antigas canções que a mãe tinha por
hábito cantar para ela quando era pequena. Ela soltou o barbante
que as prendia e começou a ler.
Abriu um sorriso triste após ter lido por certo tempo. Aquelas
velhas canções revelavam uma estranha sabedoria.
Não acredites na felicidade, não acredites nos sinais da
felicidade, não acredites em rosas nem em folhas bonitas!
Não acredites no riso!, diziam. Vê, a bela virgem Valborg anda
em uma carruagem dourada e seus lábios sorriem, mas ela está
triste como se os cascos e as rodas atropelassem a felicidade em
sua vida.
Não acredites na dança!, diziam. Muitos pés correm leves por
salões reluzentes, mas a consciência pesa como chumbo. Alegre e
entregue ia Kerstin na dança, mas na dança perdeu sua tenra vida.
Não acredites em gracejos!, diziam. Muitos sentam-se à mesa
com gracejos nos lábios, mas ela quer morrer de tristeza. Lá está a
jovem Adeline, que finge deixar que lhe ofereçam o coração fresco
do conde Fröjdenborg, certa de que essa é a visão necessária para
que tenha forças para morrer.
Ó antigas canções, em que acreditar? Em lágrimas e tristeza?
É simples fazer com que lábios tristes sorriam, mas lábios felizes
não podem chorar. Em lágrimas e suspiros creem as antigas
canções, somente em tristeza e em sinais de tristeza. A tristeza é
real, é constante, é a raiz da montanha sob a areia fofa. Na tristeza
podemos confiar, e também nos sinais da tristeza.
A alegria é apenas uma tristeza disfarçada. A bem dizer não
existe na terra nada além de tristeza.
– Quantos lamentos – disse Marianne –, como a antiga
sabedoria deixa a desejar perante a exuberância da vida!
Ela se aproximou da janela e olhou para o pomar, onde os pais
faziam um passeio. Andavam de um lado para outro pelos caminhos
largos e falavam sobre tudo o que viam, sobre a grama no chão e os
pássaros no céu.
– Vê – disse Marianne –, lá vai um coração que suspira de
tristeza sem que jamais se tenha sentido tão feliz!
E no mesmo instante pensou que talvez tudo estivesse nas
pessoas, que a tristeza e a alegria dependiam tão somente da
maneira de ver as coisas. Indagou se teria sido a felicidade ou a
infelicidade que a acometera naquele ano. Mal sabia a resposta.
Tinha vivido uma época amarga. Estivera doente da alma.
Sentira-se prostrada no chão sob o peso de uma humilhação
profunda. Pois, ao voltar para casa, tinha dito a si mesma: “Não
quero ter más recordações do meu pai”. Mas não era o que o
coração dizia. “Ele me causou uma tristeza mortal”, dizia o coração,
“separou-me daquele que eu amava e lançou-me no desespero ao
bater em minha mãe. Não lhe desejo mal nenhum, mas tenho medo
dele”. E então percebeu que tinha de forçar-se a permanecer
sentada quando o pai sentava-se a seu lado. A vontade que sentia
era de fugir. Tentava conter-se, tentava falar com ele como fazia de
costume e passava quase o tempo inteiro em sua companhia.
Conseguia manter-se sob controle, porém aquele era um sofrimento
indescritível. Por fim passou a sentir repulsa por tudo que dizia
respeito a ele: a voz rústica e altissonante, a maneira pesada de
caminhar, as mãos grandes, toda aquela figura de gigante. Não lhe
desejava mal nenhum, não queria machucá-lo, mas não podia mais
aproximar-se dele sem uma sensação de medo e repulsa. Mas o
coração acuado por fim se vingou. “Não me deixaste amar”, disse,
“mas eu ainda sou teu senhor; por fim hás então de odiar”.
Acostumada como estava a prestar atenção a tudo que ocorria
em seu âmago, Marianne percebeu que a repulsa tornava-se cada
vez maior, crescia a cada dia que passava. Ao mesmo tempo, era
como se a partir de então estivesse para sempre presa em casa. Ela
compreendia que o melhor seria ir ao encontro de outras pessoas,
mas não conseguia fazer isso após a doença. Jamais haveria
nenhum tipo de trégua em tudo aquilo. Haveria de sentir-se cada
vez mais atormentada, e um dia todo aquele controle falharia, e ela
investiria contra o pai e revelaria toda a amargura de seu coração, e
então haveria confronto e infelicidade.
E assim se passaram a primavera e o início do verão. Em julho
ela noivou com o barão Adrian para que pudesse ter a própria casa.
Em uma bela tarde o barão Adrian entrou no jardim montado em
um cavalo magnífico. O casaco de hussardo brilhava ao sol, as
esporas, o sabre e a cinta reluziam e faiscavam, para não falar do
próprio rosto saudável e do olhar sorridente. O próprio Melchior
Sinclaire foi à escada recebê-lo quando chegou. Marianne estava
sentada junto à janela, costurando. Vira-o chegar e escutara cada
palavra que aquele homem trocava com seu pai.
– Bom dia, cavaleiro Raio de Sol! – exclamou o patrão da
fundição ao recebê-lo. – Como estás galante! Não vieste para cá em
busca de uma noiva, ou acaso vieste?
– De fato, tio, foi exatamente para isso que vim – o barão
respondeu com uma risada.
– Não tens vergonha, garoto? O que tens para sustentar tua
esposa?
– Nada, tio. Se eu tivesse qualquer coisa, não havia de casar-
me.
– Não digas, não digas, cavaleiro Raio de Sol! Mas e esse
casaco galante? Tiveste meios para obtê-lo.
– Comprei-o a crédito, tio.
– E o cavalo que montas? Esse cavalo vale um bom dinheiro,
meu caro. De onde o tiraste?
– O cavalo não é meu, tio.
Essa resposta soou irresistível para o grande patrão da fundição.
– Deus esteja contigo, rapaz! – ele exclamou. – Precisas mesmo
de uma esposa que tenha alguma coisa. Se conquistares Marianne,
podes levá-la!
E foi assim que os dois se entenderam antes mesmo que o barão
Adrian apeasse do cavalo. Melchior Sinclaire, porém, sabia muito
bem o que fazia, pois o barão Adrian era um bom homem.
Logo o pretendente aproximou-se de Marianne e de imediato
explicou a que viera.
– Ah, Marianne, minha querida Marianne! Já falei com o tio.
Quero muito tomar-te por minha esposa. Diz que aceitas, Marianne!
Ela havia descoberto a verdade. O velho barão, pai daquele
homem, tinha se deixado enganar e mais uma vez comprara minas
esgotadas. O velho barão tinha comprado minas ao longo de uma
vida inteira, e jamais encontrara o que quer que fosse em qualquer
uma delas. A mãe se mostrara preocupada com o endividamento do
velho barão, e naquele instante o filho pedia a mão de Marianne
Sinclaire para salvar a casa do pai e o próprio casaco de hussardo.
A família morava em Hedeby, na margem oposta do Löven,
quase em frente a Björne. Marianne bem conhecia o barão Adrian,
porque os dois tinham a mesma idade e haviam brincado juntos
ainda em criança.
– Bem poderias casar-te comigo, Marianne. Eu levo uma vida
miserável. Tenho de montar cavalos emprestados e não consigo
pagar o que devo ao meu alfaiate. Isso não pode continuar assim.
De outra forma vou ser obrigado a dizer adeus e dar-me um tiro.
– Mas, Adrian, que casamento seria esse? Não sentimos amor
um pelo outro.
– Ora, no que diz respeito ao amor, não me importo nem um
pouco com essa bobagem – ele tratou de explicar. – Gosto de
montar um bom cavalo e também de caçar, mas não sou um
cavalheiro; sou um trabalhador. Se eu simplesmente tivesse uma
forma de ganhar dinheiro para que eu pudesse assumir a
propriedade dos meus pais e proporcionar sossego à minha mãe,
para mim seria o bastante. Eu mesmo trataria de arar e semear a
terra, pois gosto de trabalhar.
E então o jovem barão a encarou com olhos honrados, e ela
soube que falava a verdade e que era um homem digno de
confiança. Marianne noivou com ele, acima de tudo para sair de
casa, mas também porque sempre havia gostado dele.
Mesmo assim, jamais haveria de esquecer o mês que se seguiu
à tarde de agosto em que o noivado foi anunciado, aquela época de
loucura.
O barão Adrian mostrava-se mais triste e mais quieto a cada dia
que passava. Aparecia com frequência em Björne, ocasionalmente
mais de uma vez no mesmo dia, porém Marianne não deixava de
notar que estava muito abatido. Na companhia de outras pessoas
ele ainda fazia gracejos, mas quando os dois estavam a sós ele
tornava-se impossível, um retrato do silêncio e do aborrecimento.
Ela bem sabia o que o afligia. Não era fácil casar-se com uma
mulher feia. Ele sentia repulsa pela esposa. E ninguém sabia melhor
do que ela mesma o quanto era feia. Havia deixado claro que não
desejava carícias nem manifestações de amor, mas assim mesmo o
barão Adrian se atormentava ao pensar naquela mulher como
esposa, e tudo se tornava pior a cada dia que passava. Por que se
angustiava tanto? Por que não cancelava o noivado? Ela havia lhe
dado sinais claros. Quanto a si, não poderia fazer nada. O pai
simplesmente havia lhe dito que sua reputação não suportaria mais
aventuras no que dizia respeito a um noivado. E assim ela havia
sentido um profundo desprezo por aqueles dois homens, e qualquer
saída pareceria boa o suficiente desde que pudesse fugir.
E assim, poucos dias após a grande festa de noivado, uma
reviravolta chegou de forma inesperada e estranha.

No caminho de areia em frente à escada de Björne havia uma


grande pedra, motivo de incômodo e irritação. Os carros viravam ao
atingi-la, os cavalos e as gentes tropeçavam, as criadas, que
vinham com pesados tarros, batiam-se e derramavam o leite, mas a
pedra continuava sempre lá, uma vez que por lá havia estado
durante muitos anos. Já estava lá na época dos pais do patrão da
fundição, muito antes que se cogitasse a ideia de construir a
propriedade de Björne. O patrão Sinclaire não via motivos para tirá-
la de lá.
Mas em um dos últimos dias de agosto aconteceu que duas
criadas que levavam uma tina muito pesada tropeçaram na pedra.
As duas caíram e se machucaram bastante, e houve uma grande
má vontade com a pedra.
Ainda era a hora do desjejum. O patrão estava dando o passeio
matinal, mas, como havia gente na casa entre as oito e as nove
horas, a dona Gustava ordenou aos homens que desenterrassem a
pedra.
Chegaram com pás e hastes de metal, cavaram e labutaram e
por fim retiraram aquele velho estorvo à paz do buraco onde se
encontrava. Por fim o levaram à parte de trás do pátio. Era trabalho
para seis homens.
Mal a pedra fora removida, o patrão chegou em casa e reparou
naquela miséria. Foi tomado pela raiva. Achava que a propriedade
não era mais a mesma. Quem se atrevera a mover a pedra? Ora,
dona Gustava tinha dado ordens. Ah, de fato as mulheres não têm
coração. Acaso a esposa não sabia que sentia verdadeiro amor por
aquela pedra?
Então o patrão foi até a pedra, ergueu-a com suas próprias
forças e levou-a através do pátio e do jardim de volta para o lugar
onde antes se encontrava, e a jogou de volta lá. E era uma pedra
que seis homens tinham laborado para retirar da terra. Essa façanha
foi admirada por toda a província de Värmland.
Enquanto o patrão carregava a pedra ao longo da propriedade,
Marianne estava na janela do salão de jantar, observando-o. Jamais
o tinha visto com uma expressão de tal maneira terrível. Aquele era
seu senhor, um homem temível com forças imensuráveis, um
senhor desarrazoado e caprichoso que jamais se importava com
qualquer outra coisa a não ser a própria vontade.
Estavam tomando o desjejum, e ela tinha uma faca de cozinha
na mão. Sem dar por si, ergueu a faca.
Dona Gustava segurou-lhe o pulso.
– Marianne!
– O que houve, mãe?
– Ah, Marianne, pareces tão estranha! Eu tive medo.
Marianne passou um bom tempo a observá-la. Já aos 50 anos
era uma mulherzinha seca, grisalha e cheia de rugas. Amava como
amam os cachorros, sem importar-se com os golpes e as bofetadas.
Em geral tinha boa disposição, mas assim mesmo causava uma
impressão triste. Era como uma árvore vergastada pelas
tempestades à beira-mar: nunca tivera a tranquilidade necessária
para crescer. Tinha aprendido a ser discreta, a mentir quando
necessário, e com frequência tentava parecer mais estúpida do que
era para evitar reprimendas. Em tudo era obra do marido.
– A senhora lamentaria muito se o pai morresse? – perguntou
Marianne.
– Marianne, estás brava com o teu pai. Estás sempre brava com
ele. Por que as coisas não podem ficar bem agora que arranjaste
um noivo?
– Ah, mãe! Eu não consigo evitar. Acaso é minha culpa, se tenho
medo dele? A senhora não vê como ele é? Que motivo eu teria para
gostar dele? É um homem brusco e grosseiro, e atormentou-te a
ponto de envelheceres antes do tempo. Por que haveria de ser
nosso senhor? Afinal, ele se comporta como um louco. Por que eu
haveria de honrá-lo e respeitá-lo? Ele não é um homem bom, não é
um homem misericordioso. Eu sei que ele é forte. Pode matar-nos
quando bem entender. Pode expulsar-nos de casa quando bem
entender. Mas seria esse o motivo para amá-lo?
Nesse ponto dona Gustava já não estava como antes. Tinha se
enchido de forças e falou com palavras cheias de autoridade.
– Marianne, precisas tomar cuidado. Parece-me quase como se
o teu pai tivesse razão quando te trancou fora de casa no inverno
passado. Hás de ver que um castigo te espera. Tens de aprender a
tolerar sem odiar, Marianne, a sofrer sem vingar-te.
– Ah, mãe, eu sou tão infeliz!
Logo a seguir chegou o momento decisivo. Do lado de fora da
porta, mãe e filha ouviram um baque.
Jamais descobririam se Melchior Sinclaire estava na escada e,
através da porta aberta do salão, ouvira cada palavra dita por
Marianne ou se haviam sido os esforços físicos a causar o derrame.
Quando saíram para a rua, encontraram-no desacordado. As duas
jamais tiveram coragem de fazer qualquer pergunta sobre o
ocorrido. Melchior Sinclaire não deu sinal de ter ouvido o que quer
que fosse. Marianne jamais teve coragem de pensar que teria
cometido uma vingança involuntária. Mas a visão do pai caído na
escada que levava à porta da casa onde aprendera a odiá-lo serviu
para tirar a amargura de seu coração.
Logo ele recuperou a consciência e, após um repouso de poucos
dias, estava de volta ao normal, embora não estivesse nem um
pouco normal.
Marianne viu os pais andando ao longo do pomar. Agora era
sempre daquela forma. Ele nunca saía sozinho, jamais se afastava,
queixava-se de estranhos e de tudo aquilo que o separasse da
esposa. A idade havia chegado para ele. Não conseguia mais
escrever uma carta. A esposa tinha de ajudá-lo. Já não decidia nada
sozinho, mas perguntava-lhe a respeito de tudo, e por fim tudo
acontecia de acordo com a vontade dela. E ele era sempre gentil e
amistoso. O próprio Melchior Sinclaire percebeu a mudança que
havia se operado, bem como a felicidade da esposa.
– Agora ela está bem – disse um dia para Marianne, apontando
para dona Gustava.
– Ah, meu querido Melchior – ela exclamou –, bem sabes que eu
preferia que recuperasses tua saúde.
E era um desejo sincero. A alegria dela era falar sobre o grande
patrão da fundição na época em que ainda dispunha de todas as
forças. Falava sobre a vida desregrada que levara, digna dos
cavalheiros de Ekeby, e sobre como fizera negócios e ganhara
muito dinheiro justamente quando ela acreditava que aquele homem
desatinado haveria de perder a casa e as posses da família. Mas
Marianne sabia que a mãe era feliz apesar de todas as queixas. Ser
tudo para aquele homem era o bastante para ela. Os dois pareciam
velhos, alquebrados antes do tempo. Marianne imaginava-se capaz
de ver a vida que os esperava. Aos poucos o pai haveria de tornar-
se cada vez mais fraco, o derrame voltaria e o tornaria ainda mais
dependente, e a mãe velaria por ele até que a morte os separasse.
Mas o fim ainda podia estar muito longe. Dona Gustava teria a
chance de aproveitar um tempo em paz. Tinha de ser assim,
pensava Marianne. A vida tinha uma dívida para com ela.
E para ela própria a vida também se tornara melhor. Nenhum
desespero a obrigava a casar-se para ter outro senhor. Seu coração
ferido havia encontrado paz. O ódio efervescera tanto quanto o
amor, mas ela já não pensava nos sofrimentos que havia lhe
custado. Ela tinha de reconhecer que havia se tornado uma pessoa
mais verdadeira, mais rica e mais nobre do que antes. O que
poderia querer diferente em tudo o que acontecera? Seria mesmo
verdade que todo sofrimento era um bem? Será que tudo pode ser
transformado em felicidade? Marianne tinha começado a considerar
bom tudo aquilo que podia contribuir para que atingisse um grau de
humanidade mais elevado. As velhas canções não tinham razão. A
tristeza não era a única constante. Naquele momento ela estava
disposta a viajar e a encontrar um lugar onde pudesse sentir-se em
casa. Se o pai ainda tivesse a antiga disposição, jamais lhe teria
permitido desfazer o noivado. Mas naquela altura dona Gustava já
havia se encarregado disso. Marianne tinha até mesmo conseguido
garantir que o barão Adrian recebesse o auxílio financeiro de que
precisava.
E também nele podia ela pensar com alegria. Afinal, havia de
livrar-se dele. Com a disposição alegre e a vontade de viver, ele
sempre a fizera lembrar-se de Gösta; e a partir de então poderia vê-
lo feliz novamente. Mais uma vez haveria de tornar-se o cavaleiro
Raio de Sol que havia chegado com um brilho resplandecente à
casa de seu pai. Ela trataria de arranjar-lhe terra onde pudesse arar
e cavar tanto quanto o coração desejasse, e também de assegurar
que levaria uma bela noiva ao altar.
Com esses pensamentos, Marianne senta-se disposta a
escrever-lhe e a devolver-lhe a liberdade. Escreve palavras suaves
e convincentes, compreensão disfarçada de gracejo, porém assim
mesmo de forma que o levasse a perceber o quão sério falava.
Enquanto escreve, ouvem-se cascos de cavalo na estrada.
“Meu caro cavaleiro Raio de Sol”, ela pensa, “esta é a última
vez”.
O barão Adrian vai diretamente ao quarto dela.
– Ora, Adrian, entraste aqui? – E Marianne olha aterrorizada para
todas as malas.
Ele mostra-se de imediato tímido e arredio, e balbucia um pedido
de desculpas.
– Estou escrevendo uma carta para ti – ela diz. – Toma, podes lê-
la agora mesmo.
Ele pega a carta e ela senta-se e o observa enquanto lê.
Marianne espera ver aquele rosto iluminar-se com uma alegria
repentina.
Mas após uma breve leitura o rosto torna-se esbraseado e ele
joga a carta no chão, pisa-lhe em cima e pragueja com uma
verdadeira torrente de pragas.
Um tremor leve toma conta de Marianne. Ela não é uma novata
no estudo do amor, porém jamais compreendeu aquele rapaz
inexperiente, aquele menino em corpo de homem.
– Adrian, meu querido Adrian! – ela diz. – Que comédia é essa
que interpretas comigo? Diz-me a verdade!
Ele se aproxima e simplesmente começa a sufocá-la com
carícias. Pobre rapaz, que tanto havia se angustiado e ansiado!
Logo a seguir ela olhou para fora. Dona Gustava ainda estava lá,
falando com o grande patrão da fundição sobre flores e pássaros, e
lá estava ela, tagarelando sobre o amor. “A vida fez com que nós
duas conhecêssemos sua implacável seriedade”, Marianne pensou,
com um sorriso melancólico. “O que nos consola é termos, cada
uma, uma criança grande com a qual brincar.”
Mesmo assim, foi bom sentir-se amada. Foi doce ouvi-lo falar
aos sussurros sobre a magia que dela emanava, sobre a timidez
que ele sentira durante a primeira conversa entre os dois. Naquele
momento ele não percebera a força que ela tinha. Ah, ninguém
poderia se aproximar dela sem amá-la, mas ela o tinha assustado, e
ele sentira-se estranhamente acuado.
Não era felicidade nem infelicidade, mas ela tentaria viver com
aquele homem.
Começou a entender a si mesma e a pensar no que as antigas
canções diziam sobre a pomba-rola, esse pássaro do anseio. A
pomba-rola jamais bebe água límpida, mas primeiro a turva com a
pata, para que assim melhor se ajuste à sua disposição melancólica.
Marianne tampouco buscaria a fonte da vida para beber felicidade
límpida em estado puro. Turvada pela tristeza, a vida lhe agradava
mais.
MINHA PÁLIDA AMIGA, A MORTE LIBERTADORA, chegou em agosto,
quando as noites estavam brancas de luar, à casa do capitão Uggla.
Mas não se atreveu a entrar logo após a chegada àquela casa
hospitaleira, pois são poucos os que apreciam sua companhia.
Minha pálida amiga, a morte libertadora, tem o coração repleto
de coragem. Sua vontade é cavalgar pelos ares, montada em
incandescentes balas de canhão. Ela recebe a granada sibilante na
nuca e ri com a explosão e os estilhaços que voam. Roda em uma
dança fantasmagórica pelo cemitério e de bom grado adentra os
salões da peste no hospital, porém treme ao chegar no umbral dos
justos, à porta dos bons. Pois não pretende ser recebida com choro,
mas com a alegria silenciosa que liberta espíritos dos grilhões do
sofrimento, ela, que liberta os espíritos do peso da matéria e
permite-lhes experimentar a maravilhosa vida no espaço.
No antigo bosque atrás da casa, onde ainda hoje bétulas
estreitas de tronco alvo estendem-se para receber a luz do céu nas
escassas folhas da copa, a morte chegou. No bosque, que na época
era jovem e cheio de um verde exuberante, minha amiga pálida
escondia-se durante o dia, mas à noite postava-se na orla da
floresta, branca e pálida, com a foice reluzindo ao luar.
Ah, Eros! Foste o deus que com maior frequência dominou o
bosque. Os antigos já contavam histórias sobre amantes que
outrora buscavam aquela tranquilidade. E ainda hoje, quando passo
em frente à propriedade de Berga e reclamo das encostas difíceis e
do pó sufocante, alegro-me ao ver o bosque com aqueles troncos
brancos, que brilham para rememorar o amor na beleza da
juventude.
A morte, porém, estava lá, e os bichos da noite a viram. Noite
após noite as pessoas de Berga ouviram a raposa uivar anunciando
a chegada dela. A serpente deslizava pelo caminho de areia até a
porta da casa. Não podia falar, mas todos entendiam que aquilo era
um presságio. E na macieira em frente à janela da esposa do
capitão a coruja fazia com que lhe ouvissem os guinchos. Pois toda
a natureza conhece a morte e estremece.
Ocorreu que o presidente do tribunal de Munkerud e a esposa,
que voltavam de uma festa na casa pastoral de Bro, passaram em
frente à propriedade de Berga às duas horas da madrugada e viram
uma candeia acesa no quarto das visitas. Viram claramente a
chama amarela e a luz branca, e mais tarde falaram admirados
sobre aquela luz que ardia em plena noite de verão.
Então as alegres senhoritas de Berga riram e disseram que o
presidente do tribunal havia tido uma visão, pois as velas de sebo
daquela casa tinham sido todas queimadas ainda em março. Então
o capitão praguejou contra a ausência de convidados por dias e
semanas a fio. Mas a esposa do capitão manteve-se calada, pois
aquela vela branca com a chama clara em geral mostrava-se
quando uma pessoa de sua família estava prestes a ser levada pela
morte, pela morte libertadora.
Logo em seguida, em um dia luminoso de agosto, Ferdinand
voltou do trabalho de agrimensura nas florestas ao norte. Chegou
pálido e doente, com uma doença incurável já instalada nos
pulmões, e, assim que o viu, a esposa do capitão soube que o filho
logo haveria de morrer.
Logo haveria de ir embora, aquele filho tão bom, que jamais
havia causado uma única tristeza aos pais. O jovem rapaz deixaria
para trás a diversão e a alegria desta terra, bem como a bela e
amada noiva que o esperava, e as ricas terras e os ribombantes
martinetes que haveriam de lhe ter pertencido.
Finalmente, quando a minha pálida amiga morte lá havia estado
por um ciclo inteiro da lua, tomou coragem e certa noite aproximou-
se da casa. Pensou que, se a fome e a penúria tinham sido
recebidas naquele lugar com rostos alegres, por que não haviam de
receber também a ela com alegria?
Subiu lentamente pelo caminho de areia, projetando uma sombra
escura pelo gramado onde as gotas do orvalho brilhavam sob o luar.
Não chegou como uma ceifadora alegre com o chapéu ornado de
flores. Chegou com as costas recurvadas, como uma doente
esquálida, trazendo a foice oculta nas dobras do manto, enquanto
corujas e morcegos esvoaçavam ao redor.
Naquela noite a esposa do capitão, que estava acordada, ouviu
batidas no parapeito da janela, e então ergueu o corpo na cama e
perguntou:
– Quem bate?
E os velhos contam que a morte lhe respondeu:
– É a morte que bate.
Então ela se levantou, abriu a janela e viu morcegos e corujas
esvoaçando ao luar, mas não viu a morte.
– Vem – ela disse a meia-voz –, amiga e libertadora! Por que
demoraste tanto? Por ti esperei, por ti chamei. Vem e liberta o meu
filho!
Então a morte esgueirou-se para dentro da casa, alegre como
uma pobre majestade destronada, que na fragilidade da velhice
recupera a coroa, alegre como uma criança chamada a brincar.
No dia seguinte a esposa do capitão sentou-se junto ao leito do
filho e pôs-se a conversar sobre a bem-aventurança dos espíritos
libertos e a vida maravilhosa que levavam.
– Eles trabalham – ela diz –, eles labutam. Que artistas, meu
filho, que artistas! Quando estiveres na companhia deles, o que hás
de tornar-te? Um desses escultores sem cinzel que criam rosas e
lírios, um dos mestres do fulgor ao entardecer. E, quando o sol
descer, no ápice da beleza, hei de sentar-me aqui e pensar: foi
Ferdinand quem fez.
“Meu querido, pensa! São tantas coisas a ver, tantas coisas a
fazer! Pensa em todas as sementes que na primavera têm de ser
despertadas, nas tempestades que têm de ser conduzidas, nos
sonhos que têm de ser enviados! E pensa nas longas viagens pelo
espaço entre um mundo e outro!
“E lembra de mim, meu filho, quando contemplares toda essa
beleza! Tua pobre mãe nunca viu nada além de Värmland.
“Mas um dia hás de apresentar-te diante do Senhor e pedir-lhe
que te conceda um dos pequenos mundos que rolam pelo espaço, e
ele há de concedê-lo a ti. E, quando o receberes, esse pequeno
mundo há de ser frio e cheio de abismos e penhascos, e vazio de
flores e bichos. Mas tu hás de trabalhar nessa estrela que Deus há
de conceder-te. Hás de trazer-lhe luz e calor e ar, hás de criar
plantas e cotovias e gazelas de olhos límpidos, hás de fazer com
que as corredeiras despenquem nos abismos, hás de erguer
montanhas e cobrir as planícies com as rosas mais rubras. E,
quando eu morrer, Ferdinand, quando minh’alma estremecer diante
dessa longa viagem e temer a separação dos lugares conhecidos,
hás de estar à minha espera do outro lado da janela, em uma
carruagem puxada por aves-do-paraíso, em uma carruagem de
ouro, meu Ferdinand.
“E minha pobre alma intranquila há de ser posta em tua
carruagem, ao teu lado, com as honras de uma rainha. Depois
vamos atravessar os espaços que separam os mundos cintilantes,
e, quando chegarmos à província dos céus e tudo se tornar cada
vez mais esplendoroso, então hei de perguntar-te, eu, que não sou
capaz de compreender: ‘Não vamos parar aqui ou então lá?’.
“Mas tu hás de rir por dentro, em silêncio, e açular as aves que
nos puxam. Por fim vamos chegar ao menor dentre todos os
mundos, porém assim mesmo o mais belo que já vi, e lá vamos
parar em frente a um palácio dourado onde tu me deixas entrar na
morada da alegria eterna.
“Lá as despensas e as estantes de livros estão sempre cheias. A
floresta de espruces não se ergue por lá como aqui em Berga, para
ocultar a beleza do mundo; vejo imensos mares e planícies
ensolaradas, e mil anos passam como um dia.”
E assim morreu Ferdinand, levado por visões doces, rindo com a
beleza do futuro.
Minha amiga pálida, a morte libertadora, jamais cumprira o dever
com maior doçura. Pois claro que havia pessoas que choraram junto
ao leito de morte de Ferdinand Uggla, mas o próprio doente riu do
vulto com a foice que se sentou na beira da cama, e a mãe ouviu-
lhe os estertores como se fossem a mais doce música. Temia que a
morte não conseguisse levar a cabo aquela tarefa, e quando tudo
acabou as lágrimas brotaram-lhe dos olhos, mas foram lágrimas de
alegria as que caíram sobre o rosto inerte do filho.
Jamais minha amiga pálida fora tão celebrada como no enterro
de Ferdinand Uggla. Se tivesse ousado mostrar-se, teria aparecido
com um chapéu de plumas e um manto de remates dourados para
dançar em frente ao cortejo fúnebre que seguia rumo ao cemitério,
mas naquele instante estava sentada, essa velha solitária, encolhida
junto ao muro do cemitério com o velho manto preto, observando o
cortejo se aproximar.
Ah, que cortejo inusitado! O sol e as nuvens claras alegravam o
dia, longas filas com medas de centeio enfeitavam os campos, as
maçãs-astracã no pomar do preboste reluziam claras e translúcidas
enquanto no roseiral do sineiro brilhavam as dálias e as cruzes-de-
jerusalém.
Foi esse cortejo inusitado que avançou em meio às tílias. À
frente do caixão enfeitado com guirlandas, lindas crianças
espalhavam flores. Não se viam trajes de luto, não se viam rostos
cobertos por véus negros, não se viam golas altas com remates
largos, posto que ela, a esposa do capitão, havia desejado que o
filho, morto em meio à alegria, não fosse ao encontro do repouso
eterno acompanhado por um cortejo triste, mas pelo vistoso cortejo
de um matrimônio.
A mais próxima do caixão era Anna Stjärnhök, a bela e radiante
noiva do falecido. A coroa nupcial cingia-lhe a cabeça, o véu descia-
lhe pelas costas e ela trajava um longo vestido de noiva feito de
seda branca furta-cor. E, com todos esses atavios, foi celebrar o
matrimônio junto ao túmulo, com um noivo defunto.
Mais atrás vinham pares formados por nobres senhoras e
homens elegantes. As esplendorosas e reluzentes senhoras
chegavam usando fivelas e broches faiscantes, com pérolas
brancas como o leite e braceletes de ouro. As plumas daqueles
turbantes erguiam-se com sedas e rendas acima dos cachos, e dos
ombros pendiam finos xales de seda, outrora ganhos como presente
de casamento, que desciam por vestidos de seda iridescente. E os
homens vinham com grande pompa, usando peitilhos volumosos e
fraques de gola alta com botões dourados e coletes de brocado
solene ou de veludo ricamente bordado. Era um cortejo de
casamento. Fora esse o desejo da esposa do capitão.
Quanto à própria, seguia atrás de Anna Stjärnhök, conduzida
pelo marido. Se tivesse um vestido de brocado reluzente, tê-lo-ia
usado na ocasião; se tivesse joias e um turbante cintilante, tê-los-ia
usado para honrar o filho naquele dia solene. Mas na altura tinha
apenas aquele vestido preto de tafetá e aquelas rendas amareladas
que já haviam comparecido a inúmeras festas, bem como àquela.
Embora os convidados para o enterro tivessem chegado com
pompa e esplendor, não havia um único olho seco enquanto, sob o
silêncio quebrado apenas pelo retinir do sino, o cortejo avançava em
direção ao túmulo. Homens e mulheres choravam, nem tanto pelo
falecido, mas por si mesmos. Veja, lá estava a noiva, lá estava o
noivo sendo carregado, lá estavam os convivas, enfeitados para
uma festa, e assim mesmo – quem pisa os caminhos verdejantes
dessa terra e não se sabe entregue à melancolia, à tristeza, à
desgraça e à morte? As pessoas caminhavam e choravam,
pensando que nada na terra era capaz de protegê-las.
A esposa do capitão não chorava, era a única que tinha os olhos
secos.
Quando as preces foram ditas e o túmulo foi coberto, todos
afastaram-se rumo aos coches. Somente a esposa do capitão e
Anna Stjärnhök mantiveram-se ao pé do túmulo para dar um último
adeus ao morto. A mais velha sentou-se na elevação do túmulo, e
Anna se acomodou logo ao lado.
– Sabes – disse a esposa do capitão –, eu disse a Deus: “Deixa
que a morte libertadora venha e leve o meu filho, deixa-a levar esse
filho que tanto amo rumo à paz dos jardins silenciosos, e assim
nenhuma lágrima que não seja de alegria há de umedecer-me os
olhos. Quero acompanhá-lo ao túmulo com uma cerimônia de
casamento, e minha roseira vermelha, a roseira exuberante que fica
defronte à janela do meu quarto, eu vou levar para que fique ao lado
dele no cemitério”. E foi isso o que aconteceu. Meu filho morreu.
Recebi a morte como uma amiga, chamei-a pelos nomes mais
doces, chorei lágrimas de alegria ao ver o rosto inerte do meu filho,
e no outono, quando as folhas caírem, hei de trazer minha roseira
vermelha para cá. Mas tu, que estás aqui sentada ao meu lado,
sabes por que fiz essas preces a Deus?
Ela lançou um olhar interrogativo em direção a Anna Stjärnhök,
mas a garota manteve-se pálida e silenciosa. Talvez lutasse para
abafar as vozes interiores, que já naquele lugar, em cima do túmulo
do morto, começavam a sussurrar-lhe, a dizer-lhe que afinal estava
livre.
– A culpa é tua – disse a esposa do capitão.
Então a menina desabou como se a tivessem atingido com uma
paulada. Não disse uma única palavra.
– Anna Stjärnhök, outrora foste orgulhosa e voluntariosa.
Brincaste com o meu filho, levaste-o e depois o abandonaste. E
depois? Ele teve de aceitar a situação, como tantos outros. Talvez
porque ele e todos nós amássemos teu dinheiro tanto quanto te
amávamos. Mas depois voltaste, voltaste com uma bênção para a
nossa casa, foste terna e serena, forte e bondosa ao voltares.
Dedicaste-nos o teu amor, tornaste-nos felizes, Anna Stjärnhök, e
nós que somos pobres nos prostramos aos teus pés.
“E mesmo assim, mesmo assim eu desejaria que não tiveste
vindo. Porque assim eu não precisaria ter pedido a Deus que
abreviasse a vida do meu filho. No Natal passado ele teria
suportado perder-te, mas, desde que te conheceu da maneira como
de fato és, ele já não teria a força necessária.
“Sabe, Anna Stjärnhök, tu, que hoje puseste o vestido de noiva
para acompanhar o meu filho, que, se ele tivesse vivido, jamais
haverias de acompanhá-lo nesse vestido à igreja de Bro, pois tu não
o amavas.
“Eu percebia. Vieste apenas por compaixão, pois queria tornar
nosso fardo mais leve. Mas não o amavas. Achas que não
reconheço o amor ao vê-lo onde está, e que não compreendo ao ver
quando falta? Então eu pensei: que Deus tire a vida do meu filho
antes que ele possa abrir os olhos!
“Ah, quem dera o tivesses amado! Ah, quem dera jamais tivesses
vindo a nós para tornar nossa vida mais doce, quando não o
amavas! Eu conhecia o meu dever. Se ele não houvesse morrido,
eu teria de lhe dizer que não o amavas, que pretendias casar-te com
ele por seres o próprio espírito da compaixão. Eu teria sido obrigada
a libertar-te, e a partir de então a felicidade da vida dele estaria
perdida. Vê, foi por isso que pedi a Deus que ele pudesse morrer,
para que eu não tivesse de perturbar a paz que tinha no coração. E
eu me alegrei ao ver as bochechas macilentas, regozijei-me ao ouvir
a respiração estertorante, temi que a morte não conseguisse
terminar o seu trabalho.”
Ela calou-se à espera de uma resposta, porém Anna Stjärnhök
ainda não conseguia falar; apenas escutava as muitas vozes nas
profundezas da alma.
Por fim a esposa do capitão explodiu em desespero:
– Ah, bem-aventurados são os que podem chorar pelos seus
mortos, os que podem verter rios de lágrimas! Quanto a mim, tenho
de postar-me de olhos secos junto à sepultura do meu filho, tenho
de alegrar-me com essa morte. Como sou infeliz!
Nesse momento Anna Stjärnhök apertou a mão com força contra
o peito. Lembrou-se da noite de inverno em que havia prometido
que seu jovem amor estava destinado a oferecer apoio e consolo
àquela gente pobre e estremeceu. Será que tudo havia sido em
vão? Será que o sacrifício feito teria sido rejeitado por Deus? Será
que tudo haveria de transformar-se em uma maldição?
Mas, se ela sacrificasse tudo, será que Deus não ofereceria sua
bênção a essa obra e permitiria que se tornasse uma portadora de
felicidade, uma fortaleza, um auxílio para as pessoas?
– O que é preciso para que possas chorar pelo teu filho? – ela
perguntou.
– É preciso que eu não acredite mais no testemunho oferecido
por esses meus velhos olhos. Se eu acreditasse que amavas o meu
filho, então eu poderia chorar essa perda.
No instante seguinte a menina se levantou com os olhos
brilhando de arrebatamento. Tirou o véu de noiva e estendeu-o
sobre o túmulo, tirou a guirlanda e a coroa e colocou-as ao lado.
– Vê agora como eu o amo! – ela exclamou. – Ofereci-lhe o meu
véu e a minha coroa. Consagro-me por inteiro ao teu filho. Nunca
mais hei de pertencer a outro.
Então a esposa do capitão se levantou. Passou um instante
calada, todo seu corpo pôs-se a tremer e o rosto contorceu-se, mas
por fim vieram as lágrimas, as lágrimas de tristeza.
Minha amiga pálida, porém, a morte libertadora, estremeceu ao
ver aquelas lágrimas. Nem mesmo naquela circunstância haviam-na
recebido com alegria, nem mesmo naquela circunstância haviam se
alegrado de coração com a sua chegada.
Ela baixou o capuz sobre o rosto, esgueirou-se para fora dos
muros do cemitério e desapareceu pelo campo em meio às medas
de centeio.
SE AS COISAS MORTAS TAMBÉM AMAM, se a terra e a água distinguem
os amigos dos inimigos, eu bem gostaria de conquistar esse amor.
Gostaria que a terra verdejante não sentisse meus passos com o
peso de um fardo. Gostaria que perdoasse que, por minha causa,
tem de ser ferida com arados e grades, e que de bom grado se
abrisse para receber meu corpo morto. E eu gostaria que a onda,
cujo espelho reluzente meus remos partem, tivesse comigo a
mesma paciência que uma mãe tem com a criança cheia de
entusiasmo que lhe sobe ao colo sem atentar para a seda lisa do
vestido de gala. Com o ar puro, que ondula sobre as montanhas
azuis, eu gostaria de travar amizade, e também com o sol reluzente
e as belas estrelas. Pois a mim com frequência parece que as
coisas mortas sentem e sofrem como as vivas. Não há, entre elas e
nós, uma diferença tão grande quanto em geral se pensa. Que tipo
de matéria terrestre não participa do ciclo da vida? Acaso o pó que
se ergue da estrada não foi acariciado como cabelos macios ou
amado como mãos boas e benfazejas? Acaso a água no sulco
deixado pelas rodas dos veículos não correu antes como sangue
por um coração palpitante?
O espírito da vida continua a residir nas coisas mortas. O que
pressente enquanto dorme um sono desprovido de sonhos? Ouve a
voz de Deus. Será que também ouve a voz dos homens?
Ó filhos de nossos tempos, nunca percebestes? Quando a
discórdia e o ódio tomam conta da terra, as coisas mortas também
sofrem. Nessas horas a onda torna-se cobiçosa e indômita como um
saqueador, o campo torna-se estéril como um avaro. Mas ai daquele
por quem a floresta suspira e as montanhas choram!
Estranho foi o ano em que os cavalheiros governaram. Tenho a
impressão de que a intranquilidade das pessoas naquela época
pode ter perturbado a paz das coisas mortas. Como descrever o
contágio que se espalhou por aquelas plagas? Não seria o caso de
acreditar que os cavalheiros seriam os deuses do povoado, e que
em tudo infundiam seu espírito? Um espírito de aventura,
despreocupação e ímpeto.
Caso se pretendesse discutir tudo o que aconteceu durante
aquele ano entre as pessoas que moravam às margens do Löven, o
mundo inteiro haveria de se espantar. Pois foi quando velhos
amores redespertaram e novos amores floriram. Foi quando velhos
ódios reacenderam-se e vinganças havia muito esperadas
lançaram-se sobre a presa. Foi quando todos se arrojaram cheios
de entusiasmo rumo à doçura da vida – bailes e brincadeiras, jogos
e bebedeiras era o que procuravam. Foi quando se revelou tudo
aquilo que se esconde nos recônditos mais ocultos da alma.
De Ekeby partiu o contágio dessa intranquilidade. Primeiro
espalhou-se por fundições e casas senhoriais, impelindo as pessoas
rumo ao pecado e à desgraça. Em certa medida pudemos
acompanhá-lo, posto que os velhos guardaram memórias dos
acontecimentos nas grandes propriedades, mas pouco sabemos
sobre o quanto se espalhou em meio ao povo. Mesmo assim,
ninguém duvida de que a intranquilidade daquela época espalhou-
se de cidade a cidade, de cabana a cabana. Onde havia um vício
escondido, este se revelou; onde havia uma rusga entre marido e
mulher, esta se transformou em abismo; mas, onde havia grande
virtude ou grande força de vontade, estas também se revelaram.
Pois nem tudo que aconteceu resumia-se ao mal. Mesmo assim, foi
uma época em que o bem trouxe consequências tão devastadoras
quanto o mal. Foi como nos grandes vendavais nas profundezas da
floresta, quando as árvores caem umas por cima das outras, um
espruce leva o outro consigo e até mesmo o solo estremece sob o
peso dos gigantes que tombam.
Não duvideis de que a loucura tenha se espalhado em meio a
criados e camponeses! Por toda parte surgiram corações selvagens
e cérebros confusos. Jamais a dança surgira nas encruzilhadas com
tanta alegria, jamais os barris de cerveja esvaziaram-se com tanta
celeridade, jamais os grãos foram lançados em tamanha quantidade
no alambique. Jamais houvera tantas festas, jamais houvera
caminho mais curto entre uma palavra colérica e o gume da faca.
Mas essa intranquilidade não se espalhou somente entre as
gentes. Espalhou-se em meio a tudo aquilo que era vivo. Jamais os
lobos e ursos haviam causado mais estragos, jamais as raposas e
corujas haviam feito sons mais terríveis e espreitado com mais
audácia, jamais as ovelhas haviam se perdido tanto na floresta,
jamais tanta doença havia se espalhado entre os rebanhos.
Quem pretende ver como as coisas se relacionam umas com as
outras precisa se afastar da cidade e viver em uma cabana solitária
na orla da floresta. Precisa vigiar a carvoaria à noite ou morar nos
extensos lagos noite e dia durante um mês claro de verão enquanto
as jangadas de troncos fazem a lenta viagem até o Vänern. É assim
que se aprende a interpretar os sinais da natureza e se compreende
que as coisas mortas são feitas das vivas. E assim essa pessoa há
de ver que, quando há intranquilidade na terra, a paz das coisas
mortas é perturbada. As pessoas sabem disso. É nessas épocas
que as ninfas da floresta apagam a carvoaria, as donzelas do lago
destroem os barcos, os espíritos aquáticos trazem doenças e os
duendes fazem com que as vacas passem fome. E assim foi
naquele ano. Jamais a cheia de primavera havia causado tanto
estrago. O moinho e a forja de Ekeby não foram as únicas vítimas.
Pequenos riachos, que outrora, quando a primavera lhes havia
conferido forças, no máximo conseguiriam levar uma caixa vazia,
daquela vez investiram contra propriedades inteiras e as arrastaram
consigo. Jamais se ouvira o trovão causar tantos prejuízos antes do
solstício de verão; depois do solstício, ninguém mais o ouviu. E
então veio a seca.
A chuva não caiu em nenhum daqueles longos dias. Do meio de
junho ao início de setembro, a região de Lövsjö não se banhou em
nada além de luz do sol ininterrupta.
A chuva recusava-se a cair, a terra a alimentar, os ventos a
soprar. A luz do sol corria sozinha pela terra afora. Ah, a bela luz do
sol, essa luz que traz consigo a vida – como hei de contar sobre as
maldades que fez? A luz do sol é como o amor. Quem não conhece
os malfeitos que cometeu? E, assim mesmo, quem poderia deixar
de perdoá-lo? A luz do sol é como Gösta Berling. Traz alegria a
todos, e portanto todos se calam acerca do mal que provocou.
Uma seca dessas logo após o solstício de verão não seria tão
danosa em outras províncias como foi em Värmland. Mas lá a
primavera chegara tarde. A grama ainda não tinha crescido e jamais
haveria de crescer. O centeio ficou sem comida, justo quando
deveria produzir alimento na espiga. O centeio semeado na
primavera, com o qual grande parte do pão era feito naquela época,
trazia uma plumagem rala no alto de hastes com menos de um
palmo de altura. Os nabos plantados tarde não puderam crescer, e
nem mesmo as batatas conseguiram extrair sustento daquela terra
empedrada.
Em anos como esse as pessoas angustiam-se nas cabanas
humildes da floresta, e das montanhas o medo desce até o povo
mais calmo da planície.
– A mão de Deus está à procura de alguém – dizem as pessoas.
E cada uma bate no peito e pergunta:
– Serei eu? Ó mãe, ó natureza, serei eu? É por medo de mim
que a chuva mantém-se distante? É por raiva de mim que a terra
implacável resseca e endurece? E a eterna luz do sol, será que a
cada novo dia sai alegre de um céu limpo para amontoar brasas
vivas sobre a minha cabeça? Ou será que é a mim que a mão de
Deus procura?
Enquanto os grãos de centeio mirram nas pequenas espigas,
enquanto a batata não consegue extrair sustento da terra, enquanto
os rebanhos de olhos vermelhos que resfolegam de calor
amontoam-se ao redor de fontes com água cada vez mais escassa,
enquanto a angústia pelo futuro aperta o coração, estranhas
conversas atravessam a província.
– Essas catástrofes não acontecem sem motivo – dizem as
pessoas. – Quem será que a mão de Deus procura?
Era um domingo de agosto. O culto havia chegado ao fim. As
pessoas caminhavam aos bandos pelas estradas ensolaradas. Ao
redor viam-se florestas crestadas pelo sol e lavouras arruinadas. O
centeio estava posto em medas, porém era escasso e os feixes
eram finos. As pessoas que precisavam fazer queimadas tiveram
um trabalho fácil e produtivo naquele ano, porém aconteceu muitas
vezes de atearem fogo também na floresta. E o que os incêndios
florestais haviam poupado, os insetos haviam destruído. A floresta
de espruces havia perdido as agulhas e estava nua como uma
floresta decídua no outono; as folhas da bétula pendiam
esfarrapadas, tendo apenas as nervuras ainda no lugar.
Àqueles grupos de pessoas entristecidas não faltava assunto.
Muitos contavam histórias sobre as dificuldades enfrentadas nos
anos de 1808 e 1809, bem como no rigoroso inverno de 1812,
quando os pardais morreram congelados. A fome não era uma
estranha, pois aquela gente conhecia-lhe o austero semblante. As
pessoas sabiam fazer pão com a casca das árvores e sabiam que
as vacas podiam ser ensinadas a comer musgo.
E uma mulher havia experimentado um novo tipo de pão feito de
airelas-vermelhas e farinha de cevada. Levara amostras consigo,
para que todos provassem. Estava orgulhosa da invenção.
Mas por todos os lados pairava a mesma pergunta, nos olhos
arregalados e nos lábios sussurrantes:
– Quem, ó Senhor, a tua mão procura?
– Tu, Deus da austeridade, quem te negou preces e boas ações,
para que assim nos prives de nosso humilde pão?
Um homem que pertencia a um dos grupos mais pessimistas,
que havia seguido rumo a Sundsbron, no oeste, e subido os morros
de Broby, a certa altura parou em frente à estrada que levava à casa
do avaro pastor de Broby. Pegou um graveto seco no chão e o
atirou no caminho.
– Secas como esse graveto foram as preces que esse homem
ofereceu a Nosso Senhor – disse.
O homem que estava mais próximo também se deteve. Pegou
um galho seco e o atirou no mesmo lugar em que o outro graveto
havia caído.
– Essa é uma justa homenagem a esse pastor – disse.
O terceiro do grupo seguiu o exemplo dado.
– Ele foi como a seca. Deixou-nos apenas com palha e gravetos.
O quarto disse:
– Damos-lhe agora o mesmo que nos deu.
E o quinto:
– Atiro-lhe isto para que sofra com a vergonha eterna. Que acabe
seco e mirrado como secou este galho!
– Comida seca para o pastor seco – disse o sexto.
As pessoas que vinham mais atrás viram o que esses homens
faziam e ouviram o que diziam. E naquele instante muitos
encontraram uma resposta para a pergunta que se faziam.
– Deem-lhe o que merece! Foi ele quem trouxe essa seca –
dizia-se nos grupos.
E todos pararam, todos falaram e jogaram um galho antes de
prosseguir.
Na junção entre as duas estradas logo havia um amontoado de
gravetos e palha, o monte da vergonha erguido para o pastor de
Broby.
Era a vingança de todo um povo. Ninguém ergueu a mão contra
o pastor nem lhe disse pessoalmente uma única palavra. Os
corações desesperados desfizeram-se de uma parte do fardo que
carregavam ao jogar um graveto seco naquele monte. Não foi uma
vingança direta. Simplesmente indicaram o culpado pelo castigo
imposto por Deus.
– Se não te louvamos da forma correta, vê, é culpa desse
homem! Sê piedoso, Senhor, e faz com que ele sofra sozinho! Nós o
marcamos com a vergonha e a desonra. Não estamos com ele.
Logo tornou-se um hábito que todas as pessoas, ao passar em
frente à casa pastoral, jogassem um graveto seco no monte da
vergonha. “Que Deus e os homens possam vê-lo!”, pensavam. “Eu
também desprezo esse homem que fez com que a ira de Deus se
abatesse sobre nós.”
O velho avaro logo percebeu o monte à beira da estrada. Pediu
que o tirassem de lá. Havia quem dissesse que usava os gravetos
para alimentar o fogão da cozinha. No dia seguinte havia um novo
monte no mesmo lugar, e, tão logo o pastor mandava tirá-lo de lá,
um novo monte surgia.
Os galhos secos diziam:
– Que vergonha! Que vergonha, o pastor de Broby!
Foram dias muito quentes e muito secos. Pesado por causa da
fumaça, marcado pelo cheiro de incêndio, o ar pairava acima da
região como um desespero opressivo que todos respiravam. Os
pensamentos tornavam-se confusos naquelas cabeças quentes. O
pastor de Broby havia se transformado no demônio da seca. Era o
que os camponeses acreditavam, como se o velho avaro vigiasse as
fontes do céu.
Logo a opinião das pessoas tornou-se clara para o pastor de
Broby. Ele compreendeu que o percebiam como sendo a origem
daquela desgraça. Era porque a ira de Deus voltava-se contra ele
que aquela terra agonizava. A tripulação de um navio que sofresse
com a calmaria no mar teria lançado sortes. E ele seria o homem a
ser jogado ao mar. O pastor tentara rir daquela gente e daqueles
gravetos, mas, ao ver que aquilo não havia parado ao cabo de uma
semana, ele parou de rir. Ah, quanta puerilidade! O que aqueles
gravetos secos poderiam fazer? Ele compreendeu que o ódio
acumulado por anos a fio tentava manifestar-se. Mas que
importava? Não estava habituado ao amor.
Nada disso contribuiu para que o pastor se tornasse mais afável.
Talvez houvesse pensado em tornar-se uma pessoa melhor em
função da visita feita por aquela velha dama. Mas a partir de então
já não seria possível. Não admitiria ser forçado a tornar-se uma
pessoa melhor.
Mas aos poucos aquele monte superou-o em forças. Não
conseguia pensar em outra coisa, e a opinião que todos mantinham
lançou raízes também nele mesmo. Aquele monte de gravetos
secos era um testemunho horrível. E o pastor dava atenção ao
monte, contava os galhos lançados a cada novo dia. Aquela ideia
alastrou-se e invadiu todos os seus outros pensamentos. O monte o
perturbava.
A cada dia que passava, via-se obrigado a dar mais razão às
pessoas. Ele decaiu e envelheceu em poucas semanas. Passou a
sofrer com cãibras e peso na consciência. Mas era como se tudo
pudesse ser atribuído a uma causa única. Era como se o peso na
consciência pudesse ir embora e o peso da idade pudesse deixá-lo,
bastando para tanto que o monte parasse de crescer.
Por fim ele começou a passar dias inteiros observando. Mas as
pessoas foram implacáveis, e logo começaram a jogar novos
gravetos à noite.
*

Certo dia Gösta Berling chega de viagem pela estrada. O pastor


de Broby está sentado à beira da estrada, velho e decrépito. Ele
junta os gravetos secos e os dispõe em montes e fileiras, brincando,
como se tivesse voltado a ser menino. Gösta sente-se abatido ao
presenciar tamanha miséria.
– O que o senhor está fazendo? – ele pergunta, enquanto salta
depressa do veículo.
– Ah, estou juntando esses gravetos. Não é nada de mais.
– O senhor devia ir para casa em vez de ficar aqui sentado à
beira da estrada.
– É melhor ficar aqui.
Então Gösta Berling senta-se ao lado daquele homem.
– Não é fácil ser pastor – ele diz logo a seguir.
– Aqui embaixo, onde há pessoas, não há problema – responde
o pastor. – Lá em cima é pior.
Gösta compreende de imediato esse comentário. Sabe que
existem congregações ao norte da província de Värmland onde às
vezes não existe sequer uma casa pastoral; são grandes paróquias
florestais onde os finlandeses moram em cabanas sem chaminés,
regiões pobres com duas ou três pessoas morando em um raio de
léguas onde o pastor é o único homem de prestígio. O pastor de
Broby havia passado mais de vinte anos em uma paróquia dessas.
– É para lá que nos mandam quando somos jovens – diz Gösta.
– É impossível suportar a vida naquele tipo de lugar. Aquilo destrói
um homem pela vida inteira. São muitos os que sucumbem nas
regiões ao norte.
– É verdade – diz o pastor de Broby. – A solidão arruína as
pessoas.
– O pastor chega com energia e entusiasmo – diz Gösta – e faz
pregações e exortações, pensando que tudo vai dar certo e que as
pessoas logo hão de trilhar caminhos mais retos.
– De fato é assim mesmo.
– Mas logo se torna claro que as palavras não ajudam. A
pobreza é um obstáculo no caminho. A pobreza impede qualquer
tipo de melhoria.
– A pobreza – repete o pastor. – A pobreza destruiu a minha
vida.
– O jovem pastor chega por lá pobre como todos os outros –
Gösta continua. – E diz para o beberrão: “Para de encher a cara!”.
– E então o beberrão responde – o pastor o interrompe –,
dizendo: “Dê-me coisa melhor do que a aguardente! A aguardente é
um casaco de pele no inverno, uma brisa fresca no verão. A
aguardente é uma cabana quente e uma cama macia. Dê-me essas
coisas e prometo não beber mais!”.
– E então – Gösta prossegue –, o pastor diz ao ladrão: “Não
roubes!”, e para o malvado: “Não batas na tua esposa”, e para o
supersticioso: “Acredita em Deus e não no chifrudo ou no troll”. Mas
então o ladrão responde: “Dê-me pão!”, e o malvado diz: “Faça-nos
ricos, e assim não haverá motivo para brigas!”, e o supersticioso:
“Eduque-me!”. Mas quem pode ajudar essas pessoas sem ter
dinheiro?
– É verdade, a mais pura verdade! – exclama o velho. – As
pessoas acreditam em Deus, porém mais ainda no diabo, e acima
de tudo no troll da montanha e no duende do celeiro. Todos os frutos
da terra eram destruídos no alambique. Ninguém era capaz de ver
um fim para aquela miséria. Na maioria das cabanas cinzentas
passava-se necessidade. A tristeza oculta deixava um gosto amargo
na língua das mulheres. O mal-estar levava os homens a beber.
Eles não podiam cuidar de campos e de rebanhos. Temiam o gentil-
homem e debochavam do pastor. O que fazer com essa gente?
Ninguém entendia o que eu falava do púlpito. Ninguém acreditava
no que eu tinha a ensinar. E não havia ninguém com quem me
aconselhar, ninguém que pudesse me ajudar a manter o moral
elevado!
– Há quem tenha suportado – diz Gösta. – A misericórdia de
Deus foi tão grande que não retornaram dessa vida como homens
destruídos. Tiveram forças suficientes para suportar a solidão, a
pobreza e a desesperança. Fizeram o pouco bem que podiam sem
jamais se desesperarem. Esses homens sempre existiram, e ainda
existem. Eu os considero verdadeiros heróis. Enquanto eu viver,
pretendo honrá-los. Eu não conseguiria suportar.
– Eu não consegui – acrescenta o pastor.
– O pastor do norte pensa – diz Gösta após um momento de
reflexão – que há de se tornar um homem rico, um homem
desmesuradamente rico. Nenhum pobre consegue enfrentar o mal.
E então o pastor se põe a acumular riquezas.
– Se não acumulasse riquezas, haveria de beber – responde o
velho –, pois vê demasiada miséria.
– Ou então haveria de tornar-se preguiçoso e perder todas as
forças. É perigoso aparecer naquela região quando não se nasceu
por lá.
– É preciso tornar-se duro para acumular riquezas. Primeiro faz-
se de conta, e depois passa a ser um hábito.
– É preciso tornar-se duro tanto consigo como com os outros –
emenda Gösta. – É difícil acumular riquezas. É preciso nutrir ódio e
desprezo, é preciso passar frio e fome e endurecer o coração. É
quase como esquecer por que motivo se começou a acumular.
O pastor de Broby lança um olhar tímido em direção a Gösta.
Pergunta para si mesmo se Gösta não estaria a fazer um deboche.
Mas Gösta parece entusiasmado e sério. É como se estivesse
falando em causa própria.
– Foi assim que aconteceu comigo – o velho diz a meia-voz.
– Mas Deus protege esses homens – Gösta acrescenta. – Faz
com que neles despertem os pensamentos da juventude, depois
que acumulou riquezas suficientes. Dá a esses pastores um sinal de
que o povo de Deus precisa de ajuda.
– Mas e se o pastor não agir de acordo com o sinal, Gösta
Berling?
– Não há como resistir – Gösta responde, com um sorriso alegre.
– Ele sente-se atraído pelo doce pensamento de que pode ajudar os
pobres a construir moradas quentes.
O pastor olha para as pequenas construções que fez usando os
gravetos retirados do monte da vergonha. Quanto mais fala com
Gösta, mais se convence de que aquele homem tem razão. Ele
sempre havia nutrido a ideia de fazer boas ações tão logo houvesse
acumulado o suficiente. E aferra-se a essa vontade. Naturalmente
tivera essa ideia.
– Mas então por que o pastor nunca constrói essas moradas? –
ele pergunta, de maneira tímida.
– Porque sente-se constrangido. Muita gente poderia achar que
faz o que sempre quis fazer por medo das pessoas.
– O pastor não suporta a ideia de ser forçado, é bem verdade.
– Mas assim mesmo pode ajudar em segredo. Neste ano muita
ajuda vai ser necessária. O pastor poderia encontrar uma pessoa
disposta a distribuir esses presentes. Eu percebo o sentido disso
tudo! – exclama Gösta, com os olhos faiscando. – Este ano milhares
de pessoas vão ganhar pão daquele sobre quem não param de
lançar imprecações.
– Assim há de ser, Gösta.
Uma embriaguez tomou conta daqueles dois, que tão pouco
correspondiam à vocação que haviam escolhido para si. A vontade
que sentiam na juventude, de servir a Deus e às pessoas, havia
retornado. Ambos fartavam-se com as boas ações que haviam de
fazer. Gösta seria o ajudante do pastor.
– Primeiro temos de arranjar pão – diz o pastor.
– Depois vamos arranjar professores. Vamos ensinar as pessoas
a cultivar a terra e a cuidar dos bichos.
– Vamos construir estradas e estabelecer novos povoados.
– Vamos construir comportas para as corredeiras de Berg, para
que haja uma ligação entre o Löven e o Vänern.
– Toda a riqueza que existe na floresta há de transformar-se em
uma bênção redobrada quando abrir-se um caminho para o mar.
– Sua cabeça acabaria pesada com tantas bênçãos! – exclama
Gösta.
O pastor levanta o rosto. Os dois percebem nos olhos um do
outro o mesmo arrebatamento.
Mas no instante seguinte ambos os olhares voltam-se para o
monte da vergonha.
– Gösta – diz o velho –, para fazer tudo isso seriam necessárias
as forças de um jovem, mas eu estou às portas da morte. Bem vês
por quê.
– Dê um jeito nisso!
– Mas como, Gösta Berling?
Gösta aproxima-se do pastor e encara-o fundo nos olhos.
– Peça a Deus que chova! – ele diz. – O senhor tem uma
pregação a fazer no domingo. Peça a Deus que chova!
O velho pastor encolhe-se de terror.
– Se isso tudo é mesmo verdade, se não foi o senhor quem
trouxe a seca a essas paragens, se o senhor quer servir ao
Altíssimo mesmo na adversidade, então peça a Deus que chova!
Esse há de ser o sinal. É assim que vamos descobrir se Deus quer
o que o senhor quer.
Quando Gösta retomou a viagem pelos morros de Broby,
surpreendeu-se consigo mesmo e com o arrebatamento que o havia
invadido. Aquela podia ser uma vida bonita. Mas não era para ele.
Ao norte, as pessoas não queriam saber dos serviços que tinha a
prestar.

*
Na igreja de Broby a pregação havia chegado ao fim, e as preces
costumeiras haviam sido feitas. O pastor estava prestes a descer a
escada do púlpito. Mas hesitou. Por fim prostrou-se de joelhos,
ainda lá em cima, e suplicou que chovesse.
Suplicou como um homem desesperado, com palavras escassas
e desconexas.
– Se é o meu pecado que despertou a tua ira, castiga-me
somente a mim! Se tens piedade, tu, que és o Deus da misericórdia,
faz com que chova! Afasta de mim essa vergonha! Faz com que
chova e atende às minhas preces! Faz com que a chuva caia na
lavoura dessa gente pobre! Dá pão ao teu povo!
O dia estava quente a ponto de causar um desconforto
insuportável. A congregação havia assistido à pregação como que
entorpecida, mas, ao ouvir esses sons entrecortados, esse
desespero rouco, todos despertaram.
– Se ainda existe um caminho para a minha salvação, traz a
chuva…
O pastor calou-se. As portas estavam abertas. De repente uma
rajada de vento soprou. Correu ao longo do chão, ergueu-se ao
chegar à igreja e trouxe consigo uma nuvem de poeira, cheia de
gravetos e palha. O pastor não pôde continuar. Deixou o púlpito com
passos trôpegos.
As pessoas estremeceram. Seria aquilo uma resposta?
A rajada de vento fora apenas o prenúncio da tempestade. As
nuvens chegaram com uma velocidade sem igual. Quando os
salmos foram entoados e o pastor se encontrava no altar, os
relâmpagos faiscaram e o trovão ribombou, abafando o som de suas
palavras. Quando o sineiro tocou o salmo de saída, as primeiras
gotas tamborilaram contra as vidraças esverdeadas, e todas as
pessoas da congregação saíram depressa para ver a chuva. Mas
não se contentaram em vê-la. Houve quem chorasse, houve quem
risse enquanto deixava que as águas da tempestade escorressem-
lhes pelo corpo. Ah, como fora grande a necessidade! Como tinham
sido infelizes! Mas Deus era bom. Deus havia feito com que a chuva
caísse. Quanta alegria, quanta alegria!
O pastor de Broby foi o único que não saiu rumo à chuva.
Manteve-se ajoelhado em frente ao altar e não se levantou. A
alegria foi excessiva. Ele morreu de júbilo.
A CRIANÇA VEIO AO MUNDO EM UMA CABANA DE CAMPONESES, na
margem oeste do Klarälven. A mãe da criança tinha chegado lá e
procurado trabalho no início de junho. Segundo havia contado à
família do senhor, as coisas lhe haviam corrido mal, e a mãe lhe
tratara com tanta dureza que se vira obrigada a fugir de casa.
Chamava-se Elisabet Karlsdotter, mas não quis dizer de onde vinha,
pois nesse caso talvez comunicassem aos avós que estava lá, e
caso a encontrassem ela seria atormentada até a morte – quanto a
isso tinha certeza. Não tinha pedido nenhum ordenado, apenas
comida e um teto sobre a cabeça. Podia trabalhar tecendo ou fiando
ou mesmo cuidando das vacas, conforme desejassem. Se assim
quisessem, também estava disposta a pagar pelo alojamento.
Ela tinha sido astuta o bastante para chegar à propriedade de
pés descalços, com os sapatos debaixo do braço; tinha mãos
calejadas, falava com o sotaque da região e trajava as roupas de
uma camponesa. Todos acreditaram na história.
O senhor da fazenda achou-a franzina, e não imaginou que fosse
capaz de oferecer grande ajuda na lida. Mas a pobrezinha tinha de
viver em algum lugar. E assim deixaram que ficasse.
Havia algo nela que fazia com que todos na propriedade
tratassem-na de maneira amistosa. Ela havia encontrado um bom
lugar. As pessoas eram sérias e lacônicas. A senhora da casa
tomou-se de simpatia por ela tão logo descobriu que sabia tecer. As
duas pegaram um tear emprestado na propriedade do preboste e a
mãe da criança passou o verão inteiro sentada ao tear.
Não ocorreu a ninguém que era necessário poupá-la. Ela
trabalhou o tempo inteiro como uma camponesa. E também gostava
muito do trabalho. Já não se sentia infeliz. A vida em meio aos
camponeses lhe agradava, mesmo que tivesse de renunciar a todos
os confortos habituais. Mas tudo era feito de maneira simples e
tranquila naquele lugar. As ideias de todos giravam em torno do
trabalho, e os dias passavam de maneira tão regular e tão uniforme
que era possível enganar-se em relação ao dia e imaginar que ainda
se estava no meio da semana quando o domingo chegava.
Certo dia no fim de agosto houve pressa na colheita de aveia, e a
mãe da criança saiu com todos os outros para amarrar os feixes.
Esforçou-se mais do que devia, e assim a criança nasceu
prematura. Era esperada para outubro.
Naquele momento a senhora da casa estava de pé na sala com
a criança no colo, para aquecê-la ao pé do fogo, pois a pobrezinha
estava congelando em pleno calor de agosto. A mãe da criança
estava no quarto, ouvindo o que as pessoas diziam acerca do
menino. Imaginava os criados e criadas que acudiam para vê-lo.
– Pobrezinho! – diziam o tempo inteiro, e a seguir ouvia-se
sempre, infalivelmente:
– Pobrezinho de ti, que não tens pai!
Mas não reclamavam do choro do menino. De certa forma
estavam convencidos de que precisava chorar, e, ao fim e ao cabo,
até que era um menino robusto para a pouca idade. Se ao menos
tivesse um pai, tudo estaria bem, era o que pensavam.
A mãe, deitada, ouvia e pensava. De repente o assunto pareceu-
lhe assumir uma grande importância. Como o pobrezinho haveria de
se arranjar na vida?
Antes ela tinha feito planos. Passaria o primeiro ano na fazenda.
Depois alugaria um quarto e passaria a ganhar a vida com o tear.
Pretendia ganhar o suficiente para custear a comida e as roupas da
criança. O marido podia continuar achando que era uma mulher
indigna. Ela tinha pensado que talvez a criança viesse a ser melhor
pessoa caso a educasse sozinha, sem que um pai estúpido e
presunçoso se encarregasse disso.
Mas naquele momento, com o menino já nascido, não era assim
que via a situação. Naquele momento, achou que tinha sido egoísta.
– O menino precisa de um pai – disse para si mesma.
Se o pequeno não fosse um pobrezinho tão digno de pena, se
pudesse comer e dormir como as outras crianças, se a cabecinha
não estivesse sempre caída para o lado do ombro, se não tivesse
chegado tão próximo da morte ao ser acometido pelas convulsões,
essa questão não teria um peso incomensurável.
Não seria fácil tomar uma decisão, mas assim mesmo ela teria
de tomá-la o quanto antes. O menino estava com três dias, e os
camponeses de Värmland raramente demoram mais do que isso
para batizar os filhos.
Mas com que sobrenome o pequeno seria inscrito no registro da
igreja, e o que o pastor desejaria saber a respeito da mãe? Seria
com certeza uma injustiça contra o menino registrá-lo sem o nome
do pai. E se aquele menino se tornasse um homem fraco e doente,
como ela poderia explicar tê-lo privado das vantagens oferecidas
pelo berço e pela riqueza?
A mãe da criança sem dúvida tinha notado que a chegada de um
recém-nascido ao mundo costuma ser acompanhada por grande
alegria e celebração. Mas naquele momento pareceu-lhe que viver
seria difícil para o pequeno, que despertava a comiseração de
todos. Ela queria vê-lo dormir em meio a rendas e seda, como
convém ao filho de um conde. Queria vê-lo rodeado de alegria e
orgulho.
A mãe da criança também começou a achar que estava
cometendo uma injustiça demasiado grande contra o pai. Acaso
tinha o direito de manter o filho apenas para si? Não seria possível.
Uma coisinha tão preciosa como aquela, cujo valor não podia ser
medido pela capacidade humana, haveria mesmo de ficar somente
a seus cuidados? Não seria uma forma muito justa de agir.
Mas ela não queria voltar para o marido. Temia que pudesse
acabar morta. Mas o pequeno corria um risco ainda maior. Podia
morrer a qualquer momento, e não fora batizado.
E aquilo que a levara a fugir de casa, o pecado enorme que
morava em seu coração, havia desaparecido. Ela já não sentia amor
nenhum por quem quer que fosse além do pequeno. Não seria um
dever excessivo fazer o quanto estivesse ao seu alcance para que o
filho ocupasse o lugar que merecia na vida.
A mãe da criança mandou chamar o senhor e a senhora da casa
e explicou-lhes tudo. O homem viajou a Borg para dizer ao conde
Dohna que a condessa estava viva e tivera um filho.
O camponês voltou tarde da noite. Não tinha encontrado o
conde, que estava viajando, mas encontrara o pastor de Svartsjö e
com ele discutira o assunto.
E assim a condessa descobriu que seu casamento fora anulado
e que já não tinha marido.
O pastor lhe escreveu uma carta amistosa, na qual a convidava a
morar em sua casa.
Uma carta escrita por seu pai para o conde Henrik, que deve ter
chegado a Borg dois ou três dias após a fuga de casa, também lhe
foi enviada. Foi justamente essa carta, em que o velho pedia ao
conde que apressasse a legalização do casamento, que sugerira ao
conde a maneira mais simples de livrar-se da esposa.
Pode-se imaginar que a mãe da criança tenha sido tomada por
uma raiva mais intensa do que a tristeza ao ouvir o relato do
camponês.
O sono fugiu-lhe durante toda a noite. “O menino precisa de um
pai”, ela não parava de pensar.
Na manhã seguinte, a seu pedido, o camponês foi a Ekeby
buscar Gösta Berling.
Gösta fez muitas perguntas àquele homem lacônico, mas não
descobriu nada. Sim, a condessa tinha estado naquela casa durante
todo o verão. Estava sadia e trabalhando. E então tinha dado à luz
uma criança. O menino era franzino, porém a mãe logo estaria
novamente bem-disposta.
Gösta perguntou se a condessa sabia que o casamento tinha
sido anulado.
Sim, ela sabia. Tinha descoberto no dia anterior.
E, durante toda a viagem, Gösta alternou entre episódios de
febre e calafrios.
O que a condessa podia querer com ele? Por que havia
mandado chamá-lo?
Gösta pensou na vida de verão que se vivia às margens do
Löven. Os dias haviam passado em meio a gracejos, brincadeiras e
passeios, e durante todo esse tempo a condessa havia trabalhado e
sofrido.
Jamais havia considerado a possibilidade de tornar a vê-la. Ah,
se tivesse ousado sonhar! Nesse caso poderia apresentar-se como
um homem melhor. Pois o que descobria ao olhar para trás, além
das loucuras de sempre?
Às oito da noite Gösta Berling chegou e foi levado diretamente à
mãe da criança. O quarto estava na penumbra. Ele mal conseguia
vê-la. O senhor e a senhora da casa também se apresentaram.
Nesse ponto é preciso dizer que a condessa, cujo rosto alvo luzia
para Gösta em meio ao crepúsculo, era a criatura mais excelsa e
mais pura que existia, a alma mais bela que um dia se revestira de
matéria terrena. Quando ele voltou a receber a bênção daquela
proximidade, quis prostrar-se de joelhos e agradecer-lhe por revelar-
se mais uma vez para ele, porém estava tão repleto de
arrebatamento que não sabia o que dizer nem o que fazer.
– Minha cara condessa Elisabet! – foi tudo o que exclamou.
– Boa noite, Gösta!
A condessa estendeu-lhe a mão, que novamente parecia estar
macia e translúcida. Manteve-se deitada em silêncio enquanto
Gösta lutava contra o arrebatamento.
A mãe da criança não foi tomada por sentimentos tempestuosos
ao vê-lo. Simplesmente se espantou ao ver que parecia centrar toda
a atenção nela, quando naquele instante era preciso compreender
que tudo dizia respeito apenas à criança recém-nascida.
– Gösta – ela disse, em um tom delicado –, precisas me ajudar,
como outrora prometeste. Sabes que o meu marido abandonou-me,
e assim o meu filho acabou sem pai.
– Claro, condessa, mas essa é situação que pode ser mudada.
Agora que existe uma criança, sem dúvida é possível obrigar o
conde a legalizar o casamento. Tenha a certeza de que eu me
disponho a ajudá-la!
A condessa abriu um sorriso discreto.
– Achas mesmo que pretendo forçar o conde Dohna a me aceitar
de volta?
O sangue ferveu na cabeça de Gösta. Nesse caso, o que a
condessa podia querer? O que podia solicitar-lhe?
– Vem cá, Gösta! – ela disse, estendendo-lhe a mão. – Não
fiques bravo comigo pelo que hei de dizer agora, mas pensei que tu,
que és, que és…
– Um pastor destituído, um beberrão, um cavalheiro, o assassino
de Ebba Dohna… eu bem conheço a lista de méritos.
– Já estás zangado, Gösta?
– Eu preferia que a condessa não dissesse mais nada.
A mãe da criança, porém, prosseguiu:
– Muitas quiseram ser tua esposa por amor, Gösta, mas comigo
não é isso o que se passa. Se te amasse, eu não me atreveria a
falar como agora falo. Pelo meu próprio bem, eu não queria ter de
pedir-te uma coisa dessas, Gösta, mas, como vês, pelo bem do meu
filho estou disposta. Sem dúvida compreendes o que pretendo
pedir-te. Sei que é uma grande humilhação para ti, porque sou uma
mulher solteira com uma criança. Pensei que não estarias disposto,
porque és ainda pior do que os outros, mas, ah!, eu também pensei
nisso. Acima de tudo, porém, pensei que poderias estar disposto,
porque és um homem bom, Gösta, porque és um herói e assim
podes sacrificar-te. Mas talvez seja pedir demais. Uma coisa dessas
talvez seja impossível para um homem. Se tens desprezo por mim,
se para ti seria repulsivo ser mencionado como pai do filho de um
outro, então basta que digas! Não hei de zangar-me. Entendo que
seja pedir demais, mas o meu filho é doente, Gösta. E é terrível que
no batizado não seja possível dizer o nome do marido da mãe que o
trouxe ao mundo.
Gösta, que a ouvira durante todo esse tempo, teve o mesmo
sentimento de quando, naquele dia de primavera, teve de pô-la em
terra e abandoná-la à própria sorte. Naquele momento tinha de
ajudá-la a destruir o próprio futuro, todo o próprio futuro. Ele, que a
amava, teria de fazer aquilo.
– Faço tudo o que a condessa pedir de mim – disse.
No dia seguinte Gösta falou com o preboste de Bro, posto que
Bro é a congregação-mãe de Svartsjö, para que fossem feitos os
proclamas.
O bom e velho preboste comoveu-se com a história e prometeu
assumir toda a responsabilidade por aquele casamento.
– Sim – disse o preboste –, tens de ajudá-la, Gösta; tens mesmo.
De outra forma talvez enlouquecesse. Ela imagina ter causado
prejuízos à criança, por tê-la privado da posição que devia ocupar
na vida. Tem uma consciência muito sensível, essa mulher.
– Mas eu sei que vou fazê-la infeliz! – exclamou Gösta.
– Não podes fazer uma coisa dessas, Gösta. Precisas tornar-te
um homem de juízo a partir de agora, com uma esposa e um filho
dos quais precisas cuidar.
Nesse meio-tempo o preboste faria uma viagem a Svartsjö para
falar com o pastor e com o presidente do tribunal. No fim aconteceu
que, no domingo seguinte, dia 1º de setembro, os proclamas do
casamento entre Gösta Berling e Elisabet von Thurn foram feitos em
Svartsjö.
Logo depois, a mãe da criança foi levada com grande cuidado
para Ekeby, onde o menino foi batizado.
O preboste falou com ela e disse-lhe que ainda dispunha de
tempo para voltar atrás na decisão de casar-se com um homem
como Gösta Berling. Devia escrever para o pai antes.
– Eu não vou me arrepender – disse a condessa. – Imagine se o
meu filho morrer antes de ter pai!
Quando chegou o terceiro dia dos proclamas, a mãe da criança
já estava recuperada e de pé havia vários dias. À tarde o preboste
chegou a Ekeby e celebrou a união entre ela e Gösta Berling. Mas
ninguém achou que aquilo era um casamento. Não houve
convidados. Simplesmente se arranjou um pai para a criança, nada
mais.
Mesmo em silêncio, a mãe da criança parecia radiante de
alegria, como se tivesse atingido um objetivo importante na vida. O
noivo estava abatido. Pensava que aquela mulher havia jogado fora
o próprio futuro ao casar-se com ele. Notou horrorizado que na
verdade mal existia para ela. Todos os pensamentos daquela mulher
diziam respeito à criança.
Dois ou três dias mais tarde o pai e a mãe enlutaram-se. A
criança havia morrido durante um acesso de convulsões.
Muitos tiveram a impressão de que a mãe não se lamentara tanto
e de maneira tão profunda quanto as pessoas haviam imaginado. O
brilho do triunfo pairava acima dela. Era como se houvesse um
júbilo em saber que havia jogado fora todo o próprio futuro em nome
daquela criança. Quando o pequeno encontrasse os anjos, no
entanto, haveria de recordar que tivera na terra uma mãe que o
amara.

Tudo isso ocorreu de maneira silenciosa e discreta. Quando os


proclamas do casamento de Gösta Berling e Elisabet von Thurn
foram feitos em Svartsjö, a maioria das pessoas não sabia nem ao
menos quem era o noivo. Os pastores e os senhores que estavam a
par da situação pouco falavam a respeito. Era como se temessem
que alguém que tivesse perdido a fé no poder da consciência
pudesse interpretar mal a forma de agir daquela jovem mulher. As
pessoas tinham um enorme, enorme medo de que alguém pudesse
aparecer e dizer: “Vejam, afinal ela não tinha superado o amor que
sentia por Gösta! E agora se casou com ele valendo-se de um
pretexto nobre”. Ah, os velhos cercavam aquela jovem mulher de
cuidados. Jamais admitiriam que falassem mal dela. Mal admitiam
que havia pecado. Recusavam-se a ver o pecado que maculava
aquela alma que temia profundamente o mal.
Por volta da mesma época, outro grande evento fez com que o
casamento de Gösta recebesse pouca atenção.
Aconteceu que o major Samzelius sofreu um acidente. Estava
cada vez mais estranho e mais arredio. Passava quase o tempo
inteiro sozinho, observando os ursos.
E também havia se transformado em um homem perigoso, visto
que sempre tinha consigo a espingarda carregada e de tempos em
tempos a disparava sem prestar muita atenção no alvo. Certo dia foi
mordido por um urso manso, porque sem querer o alvejara. O
animal ferido lançou-se contra ele quando estava perto da grade e
conseguiu dar-lhe uma enorme mordida no braço. Em seguida o
urso fugiu e correu para a floresta.
O major caiu de cama e morreu desse ferimento logo antes do
Natal. Se a esposa do major soubesse que estava doente, poderia
ter reassumido o controle sobre Ekeby. Mas os cavalheiros bem
sabiam que ela não retornaria enquanto o ano deles não houvesse
chegado ao fim.
SOB A ESCADA DO MEZANINO NA IGREJA DE SVARTSJÖ existe um
pequeno depósito onde são guardadas velhas pás de coveiro,
bancos quebrados, placas obsoletas e outras coisas sem nenhuma
serventia.
Lá, onde o pó se acumula em camadas grossas e por assim
dizer esconde-o de todos os olhares, há também um baú com
entalhes de madrepérola em um riquíssimo mosaico de marchetaria.
Quando se limpa o pó que recobre aquela superfície, o baú parece
brilhar e cintilar como a encosta da montanha em uma fábula. O baú
se encontra trancado, e tem a chave muito bem guardada; não se
pode usá-lo. Nenhum mortal deve pôr os olhos naquele baú.
Ninguém sabe o que se esconde lá dentro. Somente quando o
século XIX chegar ao fim a chave poderá ser posta na fechadura
para que a tampa seja erguida e os tesouros até então guardados
possam ser admirados.
Foi assim que ordenou o proprietário do baú.
Na placa de latão sobre a tampa há uma inscrição: “Labor vincit
omnia”[4]. Uma outra inscrição, porém, talvez fosse mais adequada.
“Amor vincit omnia”[5], deveria afirmar a placa. Até mesmo o velho
baú no depósito sob a escada do mezanino é testemunha da
incomensurável força do amor.
Ah, Eros, deus onipotente!
Tu, ó amor, és decerto eterno. As pessoas já são velhas sobre a
terra, porém acompanhaste-as ao longo dos tempos.
Onde estão os deuses do Oriente, os heróis poderosos que
traziam relâmpagos como armas, eles, que nas margens dos rios
sagrados recebiam ofertas de leite e mel? Estão mortos. Mortos
estão Bel, o possante guerreiro, e Thoth, o gigante com cabeça de
íbis. Mortos estão os fabulosos deuses que repousavam sobre as
nuvens do Olimpo, e também os realizadores de façanhas que
tinham em Valhall sua morada. Todos os deuses antigos estão
mortos, a não ser Eros, Eros, o todo-poderoso.
A obra de Eros é tudo o que você enxerga. É ele quem dá
continuidade às linhagens. Note essa presença por toda parte!
Aonde você pode ir sem encontrar as pegadas desse deus nu? O
que os seus ouvidos percebem onde o farfalhar das asas de Eros
não é a tônica da melodia? Ele habita o coração das pessoas e a
semente adormecida da cevada. Note com tremor a presença dele
nas coisas mortas!
O que existe que não anseie e não sinta atração? O que existe
que escape a esse poder? Todos os deuses da vingança hão de
cair, todas as divindades da força e da violência. Tu, ó amor, és
decerto eterno.

O velho tio Eberhard está sentado junto da escrivaninha, um


móvel admirável com cem gavetas, tampo de mármore e remates
em latão escuro. Trabalha com desvelo e afinco, sozinho na ala dos
cavalheiros.
Ah, Eberhard, por que não te deixas tomar de arrebatamento em
trilhas e florestas nestes últimos dias do verão evanescente, como
fazem os demais cavalheiros? Ninguém, tu bem sabes, venera a
deusa da sabedoria sem receber castigo. Tuas costas estão
recurvadas aos sessenta e poucos anos, os cabelos em tua cabeça
não são teus, as rugas insinuam-se em tua fronte, que se ergue
acima de olhos fundos, e a decadência da idade se desenha em mil
rugas ao redor de teus lábios descarnados.
Ah, Eberhard, por que não te deixas tomar de arrebatamento em
trilhas e florestas? A morte há de separar-te da escrivaninha antes
da hora, visto que não permites à vida levar-te para longe dela.
O tio Eberhard faz uma grossa linha de tinta sob a última linha
escrita. Das inúmeras gavetas da escrivaninha, tira maços de papel
amarelado e rabiscado – as diferentes partes de sua grande obra, a
obra que há de eternizar o nome de Eberhard Berggren. Mas, no
exato instante em que ele acaba de pôr maço em cima de maço e
observa-os com um encanto silencioso, de repente a porta se abre e
a jovem condessa adentra o cômodo.
Lá está ela, a jovem soberana daqueles velhos senhores! Ela, a
quem os cavalheiros servem e que veneram mais do que os avós
servem ao primeiro neto e o veneram. Lá está ela, que os
cavalheiros haviam encontrado na pobreza e na doença, para então
cobri-la com toda sorte de maravilhas, como o rei da história fez
com a beldade pobre que encontrara na floresta. E é para ela que
as trompas e os violinos agora soam em Ekeby. É para ela que tudo
se movimenta, respira e trabalha naquela grande propriedade.
Está bem agora, embora ainda muito fraca. A solidão na enorme
casa parece-lhe demasiada, e, como sabe que os cavalheiros estão
longe, quer ver que aspecto tem quando vista a partir da famosa ala
dos cavalheiros.
Então se esgueira devagar para dentro daquele cômodo e olha
para cima, em direção às paredes de estuque e aos dosséis em
xadrez amarelo, porém se constrange ao perceber de repente que o
cômodo não se encontra vazio.
O tio Eberhard aproxima-se com modos solenes e a leva para
junto da grande pilha de papéis rabiscados.
– Veja, condessa! – ele diz. – Minha obra finalmente está pronta.
Agora tudo aquilo que escrevi há de correr mundo afora. Agora
coisas grandiosas vão acontecer.
– E o que é que vai acontecer, tio Eberhard?
– Ah, condessa, um raio há de cair dos céus, um raio que ao
mesmo tempo ilumina e mata. Desde que Moisés o retirou das
nuvens de tempestade do monte Sinai e o colocou no propiciatório,
nos recônditos do templo, desde então o velho Jeová se encontra
sentado em segurança, mas agora as pessoas hão de ver que tudo
não passa de superstição, de vazio, de vapor, do feto natimorto de
nossa própria imaginação. Ele há de afundar muito baixo, a ponto
de transformar-se em nada – disse o velho, pousando a mão
enrugada sobre o maço de papéis. – Aqui está tudo, e ao ler estas
páginas as pessoas hão de acreditar. Hão de subir a um lugar mais
alto, de onde poderão contemplar a própria estupidez, e assim vão
usar a cruz como lenha e as igrejas como silos, e vão pôr os
pastores a arar a terra.
– Ah, tio Eberhard – diz a condessa, com um leve arrepio –, o
senhor é mesmo um homem assim tão terrível? Há mesmo coisas
terríveis assim nessas páginas?
– Terríveis? – repete o velho. – Essa é a mais pura verdade. Mas
parecemos meninos que escondem o rosto no vestido da mãe tão
logo encontram um estranho. Acostumamo-nos a nos esconder da
verdade, da estranheza sempiterna. Mas agora essa verdade há de
chegar e viver entre nós, e assim há de ser conhecida por todos.
– Por todos?
– Não apenas pelos filósofos, mas por todos, entende,
condessa? Por todos.
– E assim Jeová há de morrer?
– Ele e todos os anjos, todos os santos, todos os demônios,
todas as mentiras.
– Mas, nesse caso, quem há de determinar o curso do mundo?
– Por acaso a condessa acredita que alguém já alguma vez o
determinou? Por acaso a condessa acredita nessa providência que
se importa com pardais e pelos de cachorro? Ninguém jamais
determinou o curso do mundo, e ninguém jamais há de determiná-
lo.
– Mas e quanto a nós, quanto às pessoas? O que vai ser de
nós?
– O mesmo que sempre fomos: pó. Quem foi queimado já não
pode queimar, posto que se encontra morto. Somos lenha rodeada
pelas labaredas da vida. A chama da vida espalha-se de uma
pessoa para a outra. As pessoas acendem-se, queimam e apagam-
se. Essa é a vida.
– Ah, tio Eberhard, mas então não existe uma vida espiritual?
– Não.
– Uma vida no além?
– Não.
– E não existe bem nem mal, nem propósito nem esperança?
– Não!
A jovem condessa aproxima-se da janela. Observa as folhas
amarelas do outono, sobre dálias e ásteres cabisbaixos por causa
das hastes quebradas pelos ventos do outono. Vê as ondas negras
do Löven, o céu tempestuoso e escuro do outono, e por um tempo
sente-se disposta a renegar a própria fé.
– Tio Eberhard – diz –, como o mundo é cinza e feio, como tudo
parece vão! Eu gostaria de me deitar e morrer.
Mas então a condessa ouve como que um lamento nas
profundezas da alma. As poderosas forças da vida e os sentimentos
efervescentes gritam pela alegria de viver.
– Mas então não existe nada – ela pergunta – que possa conferir
beleza à vida, uma vez que o senhor tirou de mim tanto Deus
quanto a imortalidade?
– O trabalho – responde o velho.
Mas a condessa torna a olhar para fora, e um sentimento de
desprezo por aquela sabedoria pobre toma conta dela. O insondável
ergue-se à sua frente, ela sente o espírito que tudo habita,
pressente a força que reside na matéria aparentemente morta, mas
que pode transformar-se em milhares de vidas multiformes. E, com
esse pensamento vertiginoso, procura um nome para a presença do
espírito de Deus na natureza.
– Ah, tio Eberhard – diz –, o que é o trabalho? Por acaso é um
deus? Por acaso é um fim em si mesmo? Diga outra coisa!
– Não conheço outra coisa – responde o velho.
E por fim a condessa encontra o nome que procurava, um nome
pobre, com frequência maculado.
– Tio Eberhard, por que não o amor?
Nesse momento um sorriso discreto cruza aqueles lábios
descarnados e por mil rugas atravessados.
– Aqui – exclama o filósofo, batendo com o punho fechado sobre
o pesado maço de papéis –, aqui todos os deuses são mortos, e eu
não me esqueci de Eros. O que é o amor, senão o anseio da carne?
Por que deveria estar acima das outras necessidades do corpo?
Façamos então um deus da fome! Façamos então um deus do
cansaço! Seriam deuses igualmente dignos. Já chega dessas
sandices! Viva a verdade!
A jovem condessa baixa a cabeça. Não é nada disso, não é
verdade, mas ela não pode confrontá-lo.
– O senhor machucou minha alma – ela diz –, mas nem assim eu
acredito no que ouvi. O senhor pode matar os deuses da vingança e
da violência, nada mais.
Mas o velho toma-lhe a mão, coloca-a sobre o livro e responde
com o fanatismo dos céticos:
– Quando terminar de ler, a senhora vai acreditar.
– Que isso nunca mais apareça diante dos meus olhos! –
exclama a condessa. – Pois, se eu acreditar nessas coisas, já não
poderei viver.
E, afundada em tristeza, ela se afasta do filósofo. Ele passa mais
tempo sentado às voltas com ruminações mesmo depois que a
condessa se vai.
Aqueles velhos maços, repletos de escritos heréticos, ainda não
foram postos à prova mundo afora. O nome do tio Eberhard ainda
não foi elevado às alturas da notoriedade.
Sua grande obra encontra-se oculta em um baú no pequeno
depósito sob a escada do mezanino na igreja de Svartsjö. Somente
na virada do século há de ver a luz do dia.
Mas por que tudo isso? Será que temia não ter comprovado sua
tese? Será que temia perseguição? Mal conheceis o tio Eberhard.
Tratai portanto de compreender! Esse homem foi um amante da
verdade, não da honra. E assim tratou de sacrificar esta, e não
aquela, para que uma menina a quem amava como um pai tivesse a
chance de morrer crendo naquilo que tinha de mais caro na vida.
Ó amor, tu és decerto eterno!
NINGUÉM CONHECE O LUGAR AO PÉ DA MONTANHA onde os espruces
crescem próximos uns dos outros e grossas camadas de musgo fofo
recobrem o solo. Como haveriam de conhecê-lo? Jamais sentiu o
peso de passos humanos; nenhuma língua humana jamais lhe deu
um nome. Nenhum caminho leva a esse local oculto. Rochas
erguem-se ao redor, arbustos retorcidos vigiam-no, árvores caídas
encerram-no, o pastor o desconhece e a raposa o despreza. É o
recôndito mais solitário de toda a floresta, e neste instante milhares
de pessoas o procuram.
Que enorme procissão de exploradores! Encheriam não apenas
a igreja de Bro, mas também a de Lövvik e a de Svartsjö. Ah, que
enorme procissão de exploradores!
Os filhos dos senhores, que ainda não podem acompanhá-la,
mantêm-se na beira da estrada ou perto dos portões em frente aos
quais passa a grande procissão. Os pequenos não sabiam que o
mundo abrigava um grupo tão grande como aquele, uma quantidade
tão incalculável de gente. Quando crescerem, ainda hão de se
lembrar daquela longa e ondulante torrente de pessoas. Os olhos
hão de encher-se de lágrimas com a simples lembrança da
impressão arrebatadora causada pela incontável procissão que
avança pelas estradas, onde por dias a fio viam-se apenas
andarilhos solitários, bandos de mendigos ou a carroça de um
camponês.
Todos os que moram às margens da estrada saem e perguntam:
– Por acaso uma desgraça se abateu sobre esta terra? O inimigo
está a atacar-nos? Para onde vão, andarilhos? Para onde vão?
– Estamos em uma busca – respondem os andarilhos. – Há dois
dias buscamos. E vamos buscar também hoje, posto que logo não
aguentaremos mais. Buscamos por toda a floresta de Björne e nos
montes cobertos de espruces a oeste de Ekeby.
A procissão vinha de Nygård, um lugarejo pobre nas montanhas
a leste. A bela menina de cabelos pretos e bastos com faces
rosadas encontra-se desaparecida há oito dias. A menina das
vassouras, que Gösta Berling queria transformar em noiva, perdeu-
se nas grandes florestas. Faz oito dias que ninguém a vê.
Então as pessoas saíram de Nygård para conduzir buscas pela
floresta. E cada pessoa que encontraram pelo caminho dispôs-se a
acompanhar e ajudar nessas buscas. As pessoas saíam de todas as
cabanas para juntar-se à procissão.
E com frequência ocorre de um recém-chegado perguntar:
– Homens de Nygård, como foi que isso aconteceu? Por que
deixaram a bela menina andar sozinha por caminhos
desconhecidos? A floresta é profunda, e Deus privou-a do juízo.
– Ninguém a perturba – as pessoas respondem –, e ela não
perturba ninguém. Ela caminha segura como uma criança. Quem
pode estar mais a salvo do que aqueles a quem o próprio Deus tem
o dever de guardar? Ela sempre voltou.
E então a procissão avançou rumo às florestas a leste, que
separam Nygård da planície. Agora, pelo terceiro dia seguido, as
pessoas passam em frente à igreja de Bro para subir rumo às
florestas a oeste de Ekeby.
Mas por onde a procissão passa surge também uma tempestade
de espanto. O tempo inteiro alguém precisa se afastar do grupo
para responder a perguntas.
– O que vocês querem? O que estão procurando?
– Procuramos a menina de olhos azuis e cabelos escuros. Ela
saiu para morrer na floresta. Está desaparecida há oito dias.
– Por que ela saiu para morrer na floresta? Estava passando
fome? Estava infeliz?
– Não passava necessidade, mas o infortúnio se abateu sobre
ela na última primavera. Ela viu Gösta Berling, o pastor louco, e o
amou por muitos anos. Não teve escolha. Deus privou-a do juízo.
– De fato, Deus a privou do juízo, homens de Nygård.
– O infortúnio veio na última primavera. Antes, ele nunca tinha
olhado para ela. Mais tarde, porém, disse que havia de tomá-la por
noiva. Foi apenas um gracejo e ele logo a deixou, mas ela não se
consolou. Voltou muitas vezes a Ekeby. Mantinha-se o tempo inteiro
no pé dele. E ele cansou-se disso. Quando a menina fez a última
visita a Ekeby, os cavalheiros soltaram os cachorros em cima dela.
Desde então ninguém mais a viu.
Saiam todos de casa, saiam todos de casa! Estamos tratando de
uma vida humana. Uma pessoa saiu para morrer na floresta. Será
que ela já pode estar morta? Ou será que vagueia sem encontrar o
caminho certo? A floresta é grande e o juízo dela está com Deus.
Sigam a procissão, sigam-na! Deixem a aveia nas medas até que
o fino grão caia da espiga, deixem que a batata apodreça na terra,
soltem os cavalos para que não morram de sede na estrebaria,
deixem a porta do estábulo aberta para que as vacas possam dormir
sob um teto à noite, deixem que as crianças venham junto, pois às
crianças Deus ouve! Deus está com os pequenos e lhes guia os
passos. São as crianças que podem ajudar quando a sabedoria
humana se vê frustrada.
Venham todos, homens, mulheres e crianças! Quem se atreve a
permanecer em casa? Quem pode saber que não há de ser o
escolhido por Deus? Venham todos que precisam de misericórdia,
para que sua alma jamais vagueie indefesa por lugares secos,
jamais busque repouso sem encontrá-lo! Venham! Deus privou essa
menina de juízo e a floresta é grande.
Quem há de encontrar o ponto onde os espruces crescem mais
próximos uns dos outros e o musgo é mais fofo? Não há um vulto
escuro no fundo do penhasco? Não, é apenas o formigueiro das
formigas marrons. Louvado seja aquele que guia o caminho dos
loucos, ninguém mais!
Ah, que procissão! Não uma procissão solene que saúda o
vencedor, que joga flores pelo caminho e enche-lhe os ouvidos com
gritos de júbilo, não a procissão dos peregrinos que avança em meio
a salmos e sibilantes golpes de chicote a caminho dos sepulcros de
santos, não a procissão de emigrantes em carroças de carga que
rangem, em busca de novos lares para os necessitados, não um
exército com armas e tambores, mas apenas camponeses trajando
roupas de trabalho feitas de burel com os aventais de couro gastos,
apenas as esposas com o tricô de meias nas mãos e as crianças
nas costas ou na barra do vestido.
É grandioso ver as pessoas reunirem-se em torno de um grande
objetivo. Que saiam para cumprimentar seus benfeitores, para
louvar a Deus, para buscar novas terras, para defender a pátria, que
saiam! Mas não é a fome, não é o temor a Deus, não é a
perturbação da paz que move essas pessoas. Essa é uma agrura
sem utilidade, um esforço sem recompensa. Todos saíram apenas
para procurar uma louca. Por mais gotas de suor, por mais passos,
por mais angústia, por mais preces que tudo isso custe, não haverá
nenhuma recompensa além do reencontro com uma coitadinha
perdida, cujo juízo encontra-se com Deus.
Ah, como não amar essa gente? Seria possível a quem estava
na beira da estrada e viu a procissão passar não sentir os olhos
encherem-se de lágrimas ao relembrar a cena, os homens com
feições duras e mãos calejadas, as mulheres com testas
prematuramente enrugadas e as crianças exaustas que Deus
haveria de conduzir ao local certo?
A melancólica procissão dos que procuram enche toda a estrada.
Medem a floresta com olhares sérios e avançam em meio à tristeza,
pois sabem que mais procuram uma morta do que uma viva.
Aquele vulto escuro no fundo do penhasco, será mesmo o
formigueiro ou uma árvore derrubada? Queiram os céus que seja
apenas uma árvore derrubada! Mas não se pode ver de maneira
clara quando os espruces crescem tão próximos uns dos outros.
A procissão é tão longa que os primeiros, os homens mais fortes,
já estão na floresta a oeste de Björne, enquanto os últimos, os
aleijados, os velhos arruinados pelo trabalho e as mulheres que
levam crianças nos braços, mal deixaram para trás a igreja de
Broby.
E assim toda a serpenteante procissão adentra a floresta escura.
A luz do sol matinal ilumina o espaço sob a copa dos espruces, e o
sol poente há de encontrar os grupos quando estes saírem da
floresta.
É o terceiro dia de buscas, e as pessoas acostumaram-se àquele
trabalho. Procuram no fundo do penhasco, em cuja rocha o pé
resvala, sob as árvores derrubadas, onde pernas e braços
facilmente seriam quebrados, sob os galhos dos espruces que
crescem próximos uns dos outros e que, ao estenderem-se sobre o
musgo fofo, convidam ao repouso.
A toca do urso, o abrigo da raposa, a casa do texugo, o chão
escuro da carvoaria, os arbustos de airela-vermelha, o espruce de
agulhas brancas, a montanha, por onde o fogo lavrou um mês
antes, as pedras jogadas pelo gigante, tudo isso foi encontrado, mas
não o lugar no fundo do penhasco onde a escuridão se encontra.
Ninguém esteve lá para ver se o vulto era um formigueiro, o tronco
de uma árvore caída ou uma pessoa. Ah, de fato parece uma
pessoa, mas ninguém esteve lá para vê-la.
O sol da tarde encontra a procissão do outro lado da floresta,
mas a jovem a quem Deus privou de juízo não é encontrada. O que
as pessoas hão de fazer agora? Acaso pretendem empreender
buscas na floresta uma vez mais? A floresta é escura e perigosa; há
pântanos sem fundo e fendas vertiginosas. E o que aquelas
pessoas, que nada encontraram à luz do sol, poderiam encontrar
depois que o sol fosse embora?
– Vamos a Ekeby! – uma voz exclama no grupo.
– Vamos a Ekeby! – gritam todos juntos. – Vamos a Ekeby!
– Vamos perguntar aos cavalheiros por que soltaram os
cachorros em cima da menina a quem Deus privou de juízo! Por que
levaram uma louca ao desespero! Nossas pobres crianças choram
famintas, nossas roupas estão rasgadas, os cereais permanecem
nas medas enquanto os grãos caem da espiga, as batatas
apodrecem na terra, nossos cavalos correm soltos ao redor, nossas
vacas estão sem cuidados e nós mesmos estamos quase mortos de
cansaço, mas tudo é culpa dos cavalheiros. Vamos a Ekeby pedir
satisfação! Vamos a Ekeby!
“Neste ano maldito tudo de ruim se abate sobre nós,
camponeses. A mão de Deus paira com peso sobre nós; o inverno
há de nos trazer a fome. Quem será que a mão de Deus procura?
Não era o pastor de Broby. As orações dele chegaram aos ouvidos
de Deus. Quem mais, senão os cavalheiros? Vamos a Ekeby!
“Eles destruíram a propriedade e jogaram a senhora na estrada
como se fosse uma mendiga. Foi por culpa deles que não tivemos
trabalho! Foi por culpa deles que passamos fome! A necessidade é
obra daqueles homens. Vamos a Ekeby!”
E assim o grupo de homens abatidos e amargurados desce rumo
à grande propriedade de Ekeby. Mulheres famintas com crianças
aos prantos nos braços seguem-nos, e por último vêm os aleijados e
os velhos arruinados pelo trabalho. E a amargura se espalha com
uma força cada vez maior entre as diferentes partes do grupo, dos
velhos para as mulheres e das mulheres para os homens fortes na
frente da procissão.
É a cheia de outono que se aproxima. Cavalheiros, lembram-se
da cheia de primavera? Pois agora há novas ondas descendo as
montanhas. Agora uma nova destruição ameaça a honra e o poder
de Ekeby.
Um trabalhador que passa o arado em um pasto na orla da
floresta ouve o grito enfurecido das pessoas. Ele desatrela um dos
cavalos, monta-lhe no dorso e galopa em direção a Ekeby.
– A desgraça está a caminho – ele grita –, os ursos estão a
caminho, os lobos estão a caminho, os trolls estão a caminho para
tomar Ekeby!
O homem corre por toda a propriedade em um desvario de
medo.
– Todos os trolls da floresta estão à solta! – grita. – Os trolls
estão chegando para tomar Ekeby! Salve-se quem puder! Os trolls
estão vindo para tocar fogo na propriedade e matar os cavalheiros!
E atrás do homem ouvem-se o rumor e o alarido da multidão que
avança. A cheia de outono corre em direção a Ekeby.
Será que dessa vez sabe o que pretende, aquela devastadora
vaga de amargura? Será que deseja sangue, será que deseja
assassinato, será que deseja pilhagem?
Não são pessoas que se aproximam, mas trolls da floresta, os
bichos selvagens da natureza intocada. Nós, forças das trevas, que
temos de nos manter ocultas sob a terra, nós ainda estamos livres
por um instante de bem-aventurança. A vingança nos libertou.
São os espíritos das montanhas, que escavaram o minério, são
os espíritos das florestas, que derrubaram árvores e vigiaram
carvoarias, são os espíritos dos campos, que fizeram o pão crescer.
Estão livres e voltam-se à destruição. Morte a Ekeby, morte aos
cavalheiros!
É lá que a aguardente corre em torrentes. É lá que o ouro se
acumula sob os arcos do porão. É lá que as despensas estão
repletas de grãos e de carne. Por que os filhos da justiça haveriam
de passar fome enquanto os criminosos têm de tudo à farta?
Mas agora o tempo acabou, o cálice transbordou, cavalheiros!
Para os lírios que jamais fiaram, para os pássaros que jamais
ajuntaram em celeiros, o cálice transbordou! E na floresta está
aquela que vos julga: somos mensageiros dela. Não são o
comissário e o presidente do tribunal que fixam a sentença. É
aquela que está na floresta que vos julga.
Do alto da grande construção os cavalheiros veem as pessoas
chegarem. Já sabem do que são acusados. Mas pelo menos dessa
vez aqueles homens são inocentes. Se a pobre menina foi morrer
na floresta, não foi porque soltaram os cachorros em cima dela,
senão porque oito dias antes Gösta Berling casou-se com a
condessa Elisabet.
Mas de que adianta falar com a turba furiosa? Todos estão
cansados, todos estão famintos. A vingança impele-os adiante, a
sede de pilhagem os incita. Chegam todos correndo em meio a
gritos desvairados, e à frente vai o trabalhador que enlouqueceu de
medo.
– Os ursos estão a caminho, os lobos estão a caminho, os trolls
estão a caminho para tomar Ekeby!
Os cavalheiros puseram a jovem condessa no aposento mais
escondido. Löwenborg e o tio Eberhard vigiam-na enquanto os
demais saem em direção ao povo. Estão postados junto da escada
em frente à casa senhorial, desarmados e sorridentes, quando o
primeiro grupo ruidoso chega.
E as pessoas detêm-se à frente daquele pequeno grupo de
homens tranquilos. Lá estão aqueles que na amargura fulgurante
queriam jogá-los ao chão e pisoteá-los sob os saltos de ferro, como
as pessoas da fundição de Sund haviam feito com o encarregado e
inspetor cinquenta anos antes. Entretanto, haviam esperado portas
cerradas e armas em punho; haviam esperado resistência e batalha.
– Caros amigos – dizem os cavalheiros –, caros amigos, estão
todos cansados e famintos! Permitam-nos oferecer-lhes um pouco
de comida! E, para começar, tomem um pequeno trago da
aguardente feita aqui mesmo em Ekeby!
As pessoas não querem saber dessa conversa; ouvem-se um
alarido e ameaças. Mas os cavalheiros não se deixam abater.
– Esperem um pouco – dizem –, esperem apenas um segundo!
Vejam, Ekeby encontra-se aberta. A porta do porão está aberta, a
despensa está aberta, a leiteria está aberta. As mulheres estão
cansadas, as crianças choram. Permitam-nos oferecer-lhes comida!
Depois os senhores podem matar-nos. Não temos como fugir. E
além disso o sótão está cheio de maçãs. Deixem-nos buscar maçãs
para as crianças!

Uma hora mais tarde a festa corre solta em Ekeby. A maior festa
já vista naquela grande propriedade é celebrada durante aquela
noite de outono, sob a enorme lua cheia.
Pilhas de achas foram acesas, e por todo o pátio as fogueiras
ardem umas ao lado das outras. As pessoas estão sentadas em
grupos, desfrutando do calor e do repouso, enquanto as dádivas da
terra chovem sobre todos.
Os homens mais decididos entraram no estábulo e pegaram tudo
o que pudesse ser necessário. Novilhos e ovelhas foram carneados,
e mesmo um que outro animal maior. Os animais foram
esquartejados e assados em um estalar de dedos. Aquelas
centenas de famintos fartam-se de comida. Os animais são retirados
e carneados um atrás do outro. Parece que todo o estábulo será
esvaziado em uma noite.
E justo por aqueles dias haviam saído as fornadas de outono.
Desde que a condessa Elisabet fora morar por lá houvera uma
retomada nas atividades domésticas. Era como se a bela jovem não
se recordasse ao menos por um instante de que era esposa de
Gösta Berling. Nem ele nem ela davam mostras dessa situação,
mas por outro lado a condessa Elisabet tornou-se dona de casa.
Assim como uma mulher boa e útil deve sempre fazer, procurou com
grande afinco afastar a modorra e leviandade que reinavam em
Ekeby. E foi obedecida. As pessoas redescobriram certo bem-estar
ao ter novamente uma senhora da casa.
Mas de que adiantava naquele momento ter o jirau da cozinha
cheio de pães? De que adiantava ter feito queijo e batido manteiga
durante o mês de setembro em que estivera lá? De que adiantava?
Foi preciso dar tudo o que havia, para que assim não
incendiassem Ekeby e matassem os cavalheiros! Foi preciso dar o
pão, a manteiga, o queijo! Foi preciso dar os barris de bebida e os
canecos de cerveja, os presuntos da despensa, as barricas de
aguardente, as maçãs!
Como pode a riqueza de Ekeby apaziguar a ira das pessoas?
Que fossem embora sem causar nenhum dano grave já seria motivo
de alegria.
No fundo, tudo o que acontece é por causa da jovem que agora é
a senhora da casa em Ekeby. Os cavalheiros são homens corajosos
e hábeis no manejo de armas e teriam se defendido caso
houvessem seguido a consciência. Se não fosse por ela, uma jovem
fraca e delicada que reza em favor dos pobres, teriam preferido
afastar aqueles gritos cobiçosos à base de tiros.
À medida que a noite avança, os grupos tornam-se mais
contidos. O calor e o repouso e a comida e a aguardente apaziguam
a terrível ira que sentiam. As pessoas começam a fazer gracejos e a
rir. Estão na celebração que sucede ao funeral da menina de
Nygård. “Quem se furta a beber e a fazer gracejos ao fim do funeral
devia se envergonhar! É nessas horas que mais precisamos disso.”
As crianças atiram-se em cima das grandes quantias de frutas
que são trazidas. As crianças pobres das pequenas propriedades,
que consideram arandos e airelas verdadeiras guloseimas, jogam-
se em cima das maçãs-astracã, que se desmancham na boca, das
maçãs-do-paraíso, doces e alongadas, das maçãs-limão de casca
amarelo-clara, das peras com bochechas vermelhas e das ameixas
de todos os tipos: amarelas, vermelhas e pretas. Ah, nada é bom o
suficiente para o povo quando a este convém demonstrar força.
Quando a meia-noite se aproxima, a impressão é de que os
grupos preparam-se para ir embora. Os cavalheiros param de trazer
comida e vinho, de abrir as rolhas e de verter cerveja. E soltam um
suspiro de alívio quando sentem que o perigo está prestes a passar.
Justo nesse instante, porém, surge uma luz em uma janela da
grande construção. Todos que a veem iluminada soltam um grito. É
uma jovem que traz uma lamparina nas mãos.
A cena dura apenas um instante. A visão desaparece, mas as
pessoas imaginam ter reconhecido a mulher.
– Ela tinha cabelos pretos e bastos e faces rosadas! – exclamam.
– Ela está aqui. Eles a esconderam aqui.
– Ah, cavalheiros, então os senhores a mantêm por aqui? A
nossa menina, a quem Deus privou do juízo, está sendo mantida em
Ekeby? O que fizeram com ela, seus ímpios? Pois saibam que os
senhores deixaram-nos angustiados durante a semana inteira, e que
nos fizeram procurá-la por três dias inteiros! Chega de vinho e de
comida! Ai de nós, que aceitamos presentes dos senhores! Tratem
de trazê-la para cá! Depois vamos pensar no que fazer com os
senhores.
O animal selvagem rosna e ruge. Com saltos impressionantes,
avança em direção a Ekeby.
As pessoas são rápidas, porém ainda mais rápidos são os
cavalheiros. Eles batem a porta e a fecham com a tranca. Mas o que
poderiam fazer contra o bando de invasores? As portas são abertas
uma a uma. Os cavalheiros são empurrados para o lado, pois não
dispõem de armas. São espremidos pelo grupo a ponto de não mais
poderem mexer-se. As pessoas querem entrar e encontrar a menina
de Nygård.
Encontram-na no aposento mais escondido da casa. Ninguém
dispõe de tempo para ver se os cabelos são claros ou escuros.
Simplesmente a erguem e a levam para fora. Dizem-lhe que não
precisa temer. São os cavalheiros que têm contas a acertar. As
pessoas foram até lá para salvá-la.
Mas as que naquele instante saem da casa encontram outra
procissão.
No lugar mais ermo da floresta já não se encontra o cadáver de
uma mulher que caiu da encosta íngreme e morreu na queda. Uma
criança a encontrou. Os que ainda conduziam buscas pela floresta
carregam-na sobre os ombros. O grupo se aproxima.
Na morte, a menina é ainda mais bela que em vida. Parece bela
com os longos cabelos negros. Faz uma linda figura, e a partir de
então a paz eterna há de pairar sobre aquela beleza.
Erguida sobre os ombros dos homens, a menina é levada por
entre os grupos de pessoas. Todos se calam por onde a menina
passa. Com os rostos voltados para baixo, todos prestam
homenagem à majestade da morte.
– Ela acabou de morrer – sussurram os homens que a
transportam. – Decerto caminhava pela floresta ainda hoje.
Acreditamos que tentou fugir de nós, que a procurávamos, e então
caiu da encosta.
Mas quem é essa menina de Nygård que está sendo retirada de
Ekeby?
A procissão que vem da floresta encontra a procissão que sai da
casa. As fogueiras ardem por todo o pátio ao redor. As pessoas
veem as duas mulheres e as reconhecem. A outra, claro, é a jovem
condessa de Borg.
– Ora, o que significa isso? Acaso trata-se de um novo malfeito
que acabamos por descobrir? Por que a jovem condessa encontra-
se aqui em Ekeby? Por que nos disseram que estava longe, ou até
mesmo que havia morrido? Em nome da justiça divina, temos o
dever de arrojar-nos sobre os cavalheiros e pisoteá-los até virarem
pó sob os nossos saltos de ferro!
Então se ergue uma voz altissonante. Gösta Berling está de pé
sobre a balaustrada e começa a falar.
– Ouçam-me, seus animais, seus demônios! Acaso pensam que
não temos espingardas e pólvora aqui em Ekeby, seus desatinados?
Acaso pensam que não sinto vontade de abatê-los todos, como se
fossem cachorros loucos? Mas aquela mulher intercedeu em favor
de vocês. Ah, se eu soubesse que pretendiam tocá-la, agora vocês
estariam todos mortos.
“Por que bufam hoje à noite, e por que aparecem à nossa porta
como saqueadores e ameaçam-nos com incêndio e assassinato? O
que temos a ver com as suas meninas loucas? O que sei eu quanto
ao local para onde fugiram? A verdade é que fui bom para com ela.
Eu devia ter soltado os cachorros em cima dela; teria sido melhor
para nós dois, mas não foi o que fiz. Tampouco lhe prometi que a
desposaria; eu nunca fiz uma coisa dessas. Não se esqueçam!
“Mas agora eu lhes digo: soltem a mulher que tiraram da casa.
Soltem-na, eu digo; e que as mãos que a tocaram queimem para
sempre no fogo do inferno! Não entendem que ela está tão acima de
vocês quanto o céu está acima da terra, que é tão delicada quanto
vocês são grosseiros, que é tão boa quanto vocês são maus?
“Pois agora eu vou dizer quem é essa mulher. Em primeiro lugar,
é um anjo do céu, e em segundo lugar foi casada com o barão de
Borg. Mas a sogra maltratava-a dia e noite. Ela tinha de se ajoelhar
à beira do rio e lavar roupa como se fosse uma criada ordinária,
apanhou e foi tão atormentada que nem mesmo as suas mulheres
podem ter uma vida pior. Por pouco ela não se atirou nas águas do
Klarälven, porque os tormentos estavam acabando com sua vida. E
eu me pergunto quem dentre vocês, seus canalhas, estava lá para
salvar a vida dela! Nenhum de vocês estava lá; mas nós,
cavalheiros, estávamos. É claro que estávamos.
“E quando mais tarde ela deu à luz um menino na casa de um
camponês e o conde enviou uma mensagem dizendo: ‘Casamo-nos
no estrangeiro, à revelia das leis e do ordenamento jurídico. Não és
minha esposa, e eu não sou teu marido. Teu filho não me diz
respeito’ – bem, quando a situação chegou a esse ponto e ela não
quis que a criança aparecesse sem paternidade no registro da
igreja, com certeza vocês haveriam de tornar-se presunçosos se ela
pedisse: ‘Case-se comigo! O meu filho precisa de um pai’. Mas ela
não escolheu nenhum de vocês. Escolheu Gösta Berling, o pastor
pobre que nunca mais há de pregar a palavra de Deus. Bem, eu
lhes digo, seus rústicos, que nunca fiz coisa mais difícil, porque eu
era tão indigno que mal aguentava olhá-la nos olhos, mas tampouco
me atrevia a dizer não, tamanho era aquele desespero.
“Sendo assim, pensem o mal que quiserem de nós, cavalheiros,
mas quanto a ela fizemos todo o bem que podíamos. E foi por causa
dela que não matamos todos vocês a tiro agora à noite. Então eu
lhes digo: soltem-na e vão embora, pois de outra forma a terra pode
se abrir para engolir vocês! E, quando forem embora daqui, peçam a
Deus que os perdoe por terem entristecido e assustado uma mulher
tão boa e tão pura! Agora saiam daqui! Já aturamos vocês por
tempo suficiente!”
Muito antes que o discurso se encerrasse, os homens que
carregavam a condessa puseram-na em um dos degraus de pedra,
e então um camponês enorme se aproximou cheio de consideração
e estendeu-lhe a mão enorme.
– Obrigado e boa noite! – ele disse. – Não queríamos fazer mal
nenhum, condessa.
Depois veio outro camponês que lhe deu um cauteloso aperto de
mão.
– Obrigado e boa noite! Não fique triste por nossa causa!
Gösta saltou da balaustrada e postou-se ao lado dela. Os
homens apertaram também a mão dele.
Depois as pessoas se aproximaram devagar, uma atrás da outra,
para desejar-lhes boa-noite antes de partir. Estavam novamente
acuadas, eram novamente pessoas, como tinham sido pela manhã
ao sair de casa, antes que a fome e a vingança as houvessem
transformado em animais selvagens.
Olhavam bem nos olhos da condessa, e Gösta percebeu que a
expressão de inocência e piedade fazia as lágrimas brotarem de
muitos olhos. Em todos havia uma reverência silenciosa àquela
nobilíssima visão. Eram pessoas que se alegravam ao saber que
uma delas evidenciava tamanho amor ao bem.
Nem todos puderam apertar a mão da condessa. Afinal, era
muita gente, e a jovem condessa estava cansada e fraca. Mas
assim mesmo todos puderam admirá-la, e então apertar a mão de
Gösta; pois o braço dele sem dúvida aguentaria o esforço.
Gösta sentia-se como que em um sonho. Naquela noite, sentiu
um novo amor correr pelo coração.
“Ah, meu povo”, ele pensou, “ah, meu povo, como o amo!”. Ele
sentiu o quanto amava o grupo que se afastou em meio à escuridão
da noite com a menina morta na frente da procissão, todas aquelas
vestes rústicas e calçados malcheirosos, todos aqueles que viviam
em cabanas cinzentas na orla da floresta, todos aqueles que não
sabiam manusear uma pena e que com frequência tampouco
sabiam ler, todos aqueles que ignoravam a plenitude e a riqueza da
vida, porque conheciam apenas a batalha pelo pão de cada dia.
Gösta Berling amava-os com uma ternura dolorosa e ardente,
que fez as lágrimas brotarem-lhe dos olhos. Ele não sabia o que
fazer por aquelas pessoas, mas assim mesmo as amava, cada uma
delas, com todos os defeitos, problemas e fragilidades. Ah, meu
Deus, se pudesse chegar o dia em que toda aquela gente pudesse
retribuir esse amor!
E então ele acordou do sonho. A esposa pôs a mão em seu
braço. As pessoas tinham ido embora. Os dois estavam sozinhos na
escada.
– Ah, Gösta, Gösta, como pudeste?
Ela levou as mãos ao rosto e pôs-se a chorar.
– O que eu disse é verdade – ele exclamou. – Eu nunca prometi
à menina de Nygård que a desposaria. “Vem na próxima sexta-feira
para ver uma coisa engraçada” foi tudo o que eu disse. Não é minha
culpa se ela gostava de mim.
– Ah, não é isso! Mas como pudeste dizer às pessoas que eu era
boa e pura? Gösta, Gösta, acaso não sabes que eu te amei quando
ainda não podia? Eu senti vergonha diante das pessoas, Gösta.
Quase morri de vergonha.
E então o corpo da condessa estremeceu com o choro.
Gösta olhou para a esposa.
– Ah, minha amiga, minha amada! – ele disse em silêncio. –
Como és bem-aventurada, tu, que és tão boa! Como és bem-
aventurada, tu, que trazes contigo uma alma tão bela!
NA DÉCADA DE 1770 NASCEU NA ALEMANHA aquele que viria a tornar-se
o erudito e eclético Kevenhüller. Era filho de um conde e poderia ter
morado em um castelo e cavalgado ao lado do imperador se assim
desejasse, mas não foi o que aconteceu.
Teria preferido instalar pás de moinho na mais alta torre do
castelo, transformar o salão dos cavaleiros em uma forja e a sala de
visitas em uma oficina de relojoaria. Teria preferido encher o castelo
de rodas corrupiantes e alavancas laborantes. Mas, como não fora
possível, ele deixou de lado toda a pompa e dedicou-se à arte da
relojoaria. Aprendeu tudo o que se podia aprender sobre
engrenagem, molas e pêndulos. Aprendeu a fazer relógios solares e
relógios estelares, pêndulos com canários maviosos e pastores de
trompa em punho, carrilhões que enchiam um campanário inteiro
com o estranho maquinário e mecanismos tão pequenos que
cabiam no interior de um medalhão.
Quando recebeu o diploma de mestre relojoeiro, colocou a
mochila nas costas, pegou um cajado e foi vagando de um lugar ao
outro para estudar tudo aquilo que funcionava com rodas e
engrenagens. Kevenhüller não era um simples relojoeiro; queria ser
um grande inventor e um grande benfeitor do mundo.
Depois de ter vagado por muitos países, tomou o rumo de
Värmland para estudar os moinhos e a arte da mineração. Em uma
bela manhã de verão, aconteceu de estar atravessando o mercado
de Karlstad. Mas também nessa bela manhã a ninfa da floresta
havia decidido estender o passeio rumo à cidade. A sublime dama
também estava atravessando o mercado, porém vindo da direção
oposta, e assim encontrou Kevenhüller.
Foi um encontro digno de um mestre relojoeiro! Ela tinha olhos
verdes e reluzentes, cabelos louros que chegavam quase até o chão
e vinha envolta em trajes de seda verde cambiante. Sendo feiticeira
e pagã como de fato era, era também mais bela do que todas as
mulheres cristãs que Kevenhüller já vira. Ele parou, confuso, e fitou-
a enquanto vinha em sua direção.
A ninfa da floresta fez um caminho em linha reta desde os mais
profundos recônditos da floresta, onde as samambaias têm a altura
de árvores, onde os espruces gigantescos repelem a luz do sol, que
somente pinga como gotas douradas sobre o musgo amarelo, e
onde as lineias crescem em cima de pedras cobertas de líquen.
Claro que já desejei estar no lugar de Kevenhüller para vê-la
chegando envolta em folhas de samambaia, com agulhas de
espruce a prender os bastos cabelos e uma pequenina serpente
negra em volta do pescoço. Imagine-a com o andar lépido de um
animal selvagem, trazendo consigo a fragrância refrescante de
resina e morango, de musgo e lineia!
Como as pessoas devem tê-la encarado ao vê-la atravessar o
mercado de Karlstad! Os cavalos assustaram-se com o brilho dos
longos cabelos, que voavam na brisa do verão. Os meninos de rua
correram em seu encalço. Os homens largaram a balança e o cutelo
para admirá-la, boquiabertos. As mulheres gritaram pelo bispo e
pelo cabido para que expulsassem a criatura da cidade.
Quanto à ninfa da floresta, simplesmente andava tranquila e
majestosa, mal esboçando um sorriso diante de todo aquele
alvoroço, quando Kevenhüller percebeu os dentes afilados de
predador brilharem por trás dos lábios rubros.
Ela tinha uma capa sobre os ombros, para que ninguém
descobrisse quem era, mas o acaso quis que esquecesse de
esconder a cauda. E naquele momento a cauda se arrastava sobre
as pedras do calçamento.
Kevenhüller também viu a cauda e pareceu-lhe doloroso que
uma dama tão bem-nascida se expusesse daquela forma ao ridículo
dos citadinos, de maneira que fez uma mesura para a beldade e
disse cheio de cortesia:
– Vossa senhoria não faria a bondade de levantar a cauda?
A ninfa da floresta se comoveu não apenas com a boa vontade,
mas também com a polidez. Parou defronte a Kevenhüller e o
encarou com tanta intensidade que ele sentiu como se chispas
luminosas tivessem saído daqueles olhos diretamente rumo a seu
coração.
– Kevenhüller, presta bem atenção – disse a ninfa da floresta. –
Doravante hás de poder fazer com tuas mãos quaisquer obras que
desejares, mas apenas uma de cada tipo.
Ela falou assim e cumpriu a palavra empenhada. Pois quem não
sabe que aquela dama trajada de verde, saída dos recônditos da
floresta, tem o poder de conceder engenho e capacidade
extraordinários àqueles que recebem sua graça?
Kevenhüller instalou-se em Karlstad e lá alugou uma oficina.
Martelava e trabalhava dia e noite. Em oito dias havia criado um
portento. Era um carro que andava sozinho. Subia e descia morros,
andava devagar e depressa e podia ser dirigido e guiado, detido e
posto em marcha segundo a vontade do operador. Era um carro
extraordinário.
A partir de então Kevenhüller tornou-se um homem célebre e fez
amigos por toda a cidade. Sentia tanto orgulho do carro que foi até
Estocolmo mostrá-lo para o rei. Não foi preciso esperar por cavalos
alugados nem discutir com o condutor. Não foi preciso sacolejar na
carruagem nem dormir no banco de madeira da estação. Ele fez a
viagem cheio de orgulho no carro que havia construído e chegou em
poucas horas.
Foi diretamente ao castelo, e o rei saiu com homens e mulheres
da corte para vê-lo conduzir. As pessoas não se cansavam de
elogiá-lo.
Então o rei disse:
– Kevenhüller, bem podes dar-me esse carro.
Embora ele tenha negado o pedido, o rei insistiu em querer o
carro para si.
Então Kevenhüller percebeu que na comitiva do rei havia uma
dama de cabelos louros e vestido verde. Claro que a tinha
reconhecido, e no mesmo instante compreendeu que fora ela a
sugerir que o rei pedisse o carro. Entrou em desespero. Não podia
aceitar que outra pessoa fosse proprietária daquele carro, mas
tampouco se atrevia a dizer não ao rei. Por fim guiou o carro em alta
velocidade contra a muralha do castelo, de maneira que o quebrou
em mil pedaços.
Quando retornou a Karlstad, tentou fazer um novo carro. Mas
não foi possível. E então Kevenhüller sentiu pavor do talento que a
ninfa da floresta havia lhe concedido. Ele havia deixado uma vida de
incúria no castelo do pai a fim de tornar-se um benfeitor das
pessoas, não para criar objetos mágicos que somente uma pessoa
conseguiria usar. E de que adiantaria tornar-se um grande mestre,
ou até mesmo o maior dentre todos os mestres, se não pudesse
multiplicar seus portentos de maneira que fossem úteis a milhares
de pessoas?
Aquele homem erudito e eclético tanto desejava um trabalho
calmo e tranquilo que se tornou canteiro e pedreiro. Foi nessa época
que construiu a grande torre de cantaria ao pé de Västra Bron,
tendo por modelo a torre de menagem do castelo de cavaleiros do
pai; a vontade que tinha era de erguer fileiras de construções,
pórticos, jardins, muralhas e guaridas, para que todo um castelo de
cavaleiros surgisse em Klarälvsstranden.
E lá dentro haveria de concretizar seu grande sonho de infância.
Tudo que dissesse respeito à indústria e à manufatura encontraria
um lar nos salões do castelo. Moleiros brancos e ferreiros pretos,
relojoeiros com viseiras de pala verde para os olhos cansados,
tingidores com as mãos escurecidas, tecelões, torneiros, limadores
– todos manteriam uma oficina no castelo.
E tudo correu bem. Com as pedras que havia talhado,
Kevenhüller ergueu uma torre usando as próprias mãos. Colocou
pás na parte mais alta, para que a torre fosse também um moinho, e
a partir de então resolveu dedicar-se à forja.
Um belo dia Kevenhüller parou-se a observar as pás fortes e
leves que se moviam com o vento. E então o velho mal o afligiu.
Foi como se a dama trajada de verde mais uma vez o tivesse
encarado com olhos reluzentes e lhe posto o cérebro a arder.
Trancou-se na oficina sem comer e sem descansar, trabalhando
sem nenhum tipo de intervalo. Ao fim de oito dias tinha um novo
portento.
Certo dia Kevenhüller subiu no telhado da torre e começou a fixar
asas aos ombros.
Dois meninos de rua e um colegial que estavam sentados no
atracadouro e distraíam-se pescando alburnos viram-no lá em cima
e soltaram um grito ouvido por toda a cidade. Os três puseram-se
em movimento, e correndo e resfolegando subiram e desceram a
rua batendo em todas as portas enquanto gritavam:
– Kevenhüller vai voar! Kevenhüller vai voar!
Quanto ao próprio, encontrava-se absolutamente tranquilo no
telhado da torre, prendendo as asas às costas, e nesse meio-tempo
grupos de pessoas saíram aos borbotões das ruas estreitas na
antiga Karlstad.
As criadas abandonaram a panela no fogo e a massa que
fermentava. As senhoras largaram as meias que tricotavam,
puseram os óculos e apressaram-se rua afora. Os juízes e o
burgomestre ergueram-se da mesa do tribunal. O diretor da escola
atirou a gramática para um canto e os meninos saíram correndo das
classes sem pedir permissão. Toda a cidade corria em direção a
Västra Bron.
Logo a ponte estaria tomada de gente. O Salttorget estava
apinhado, e a multidão estendia-se desde a margem do rio até a
casa do bispo. A multidão era maior até mesmo do que aquela que
se reunia durante a festa dos apóstolos Pedro e Paulo, quando se
viam muitos curiosos, e maior até mesmo do que aquela que se
amontoou quando o rei Gustav III percorreu a cidade puxado por
oito cavalos em uma carreira tão desvairada que o carro mantinha-
se apenas em duas rodas nas curvas.
Kevenhüller enfim terminou de prender as asas e levantou voo.
Ruflou as asas por duas vezes, e então viu-se livre em pleno ar.
Deitou-se e nadou pelo oceano de ar que pairava acima da terra.
Tomava fôlegos profundos; o ar era puro e forte. Ele sentiu o
peito expandir-se, e o velho sangue de cavaleiro pôs-se a fervilhar.
Esvoaçou como um pombo e planou como a águia; as asas eram
rápidas como as da andorinha, e ele avançava seguro como o
falcão. E então olhou para a multidão presa à terra que o via deitar-
se e nadar em pleno ar. Quem dera pudesse fazer um par de asas
para cada uma daquelas pessoas! Quem dera pudesse dar a cada
uma daquelas pessoas o poder de ascender rumo ao ar fresco! Que
pessoas maravilhosas não haveriam de tornar-se! A memória da
grande tristeza de sua vida não o abandonou sequer naquele
instante. Ele não poderia desfrutar sozinho de um momento como
aquele. Ah, se ao menos conseguisse falar com a ninfa da floresta!
E naquele momento ele viu, com os olhos quase ofuscados pela
forte luz do sol e pelo ar cintilante, que alguém se aproximava
voando em sua direção. Viu o movimento de grandes asas, como as
suas, e entre as asas divisou uma silhueta humana. Os cabelos
dourados esvoaçavam, a seda verde tremulava, os olhos indômitos
reluziam. Era ela! Era ela!
Kevenhüller não pôde conter-se. Com uma velocidade
impressionante, investiu sobre aquele milagre para beijá-la ou
esbofeteá-la – não saberia dizer qual –, mas, enfim, para obrigá-la a
quebrar a maldição que havia lançado sobre a existência dele.
Nessa investida desesperada, a razão e o juízo traíram-no. Ele não
viu para onde avançava, pois via apenas os cabelos esvoaçantes e
os olhos indômitos. Ele chegou muito perto e estendeu os braços
para agarrá-la. Nesse instante as asas dele prenderam-se às
daquela visão, porém as asas dela eram mais fortes. As asas de
Kevenhüller partiram-se e quebraram-se, e ele rodopiou no ar e
caiu, não sabia onde.
Quando recobrou a razão e o juízo estava no alto da torre, com a
máquina voadora destruída ao lado. Tinha voado de encontro ao
próprio moinho. As pás o haviam segurado e dado voltas enquanto
o mantinham preso, e então o jogaram sobre o telhado da torre.
Esse foi o fim da brincadeira.
Kevenhüller voltou a ser um homem desesperado. O trabalho
honrado despertava-lhe repulsa, e ele não mais se atrevia a dedicar-
se às artes daquelas maravilhas. Se criasse mais um único portento
e acabasse por destruí-lo, talvez o coração não aguentasse a
tristeza. E, se não o destruísse, talvez enlouquecesse pensando que
não poderia mais fazer nenhum uso daquele talento.
Kevenhüller então pegou a mochila e o cajado, deixou o moinho
da maneira como estava e decidiu partir em busca da ninfa da
floresta.
Arranjou um cavalo e um veículo, pois já não era jovem e lépido
ao andar. Muitos dizem que, ao chegar a uma floresta, apeou do
veículo, entrou em meio às árvores e pediu aos gritos que a dama
trajada de verde saísse daqueles recônditos.
– Ninfa da floresta! Ninfa da floresta, sou eu, Kevenhüller! Sou
eu! Venha! Venha!
Mas ela não apareceu.
Foi durante essas viagens que chegou a Ekeby, uns poucos anos
antes que a senhora fosse expulsa. Por lá foi muito bem recebido, e
por lá ficou. E o grupo na ala dos cavalheiros foi aumentado com a
figura alta e forte desse cavaleiro, um senhor rápido, que sabia
como proceder tanto perante um caneco de cerveja como em um
grupo de caça. Suas memórias de infância haviam retornado.
Deixou que o chamassem de barão, e cada vez mais ganhava os
ares de um velho pirata alemão, com o grande nariz aquilino, as
sobrancelhas sisudas e a barba cerrada, pontuda na parte inferior
do queixo e destemidamente torcida para cima sobre os lábios.
E então se tornou um cavalheiro entre os cavalheiros, não sendo
melhor do que nenhum outro homem naquele grupo que as pessoas
imaginavam ter sido oferecido ao coisa-ruim pela senhora de Ekeby.
Os cabelos encaneceram e o cérebro pôs-se a dormir. Estava tão
velho que já nem acreditava nas próprias façanhas da juventude.
Não era mais aquele homem com o poder de criar portentos. Não
fora ele o inventor do carro semovente nem da máquina voadora.
Não, aquilo eram apenas histórias, histórias!
Mas aconteceu que a senhora foi expulsa de Ekeby, e os
cavalheiros tornaram-se os senhores daquela grande propriedade. E
nesse momento começou por lá uma vida que jamais fora pior. Uma
tempestade se abateu sobre a região. Todas as velhas loucuras
ressurgiram com o arrebatamento da juventude, todo o mal pôs-se
em movimento, todo o bem estremeceu, as pessoas lutavam na
terra e os espíritos no firmamento. Os lobos vieram de Dovre
trazendo bruxas no dorso, as forças da natureza tiveram livre curso
e a ninfa da floresta chegou a Ekeby.
Os cavalheiros não a reconheceram. Acharam que era uma
mulher pobre e necessitada que fora escorraçada por uma sogra
cruel. E então lhe deram abrigo, trataram-na como uma rainha e a
amaram como a uma menina.
Somente Kevenhüller percebeu quem era. A princípio ele estava
cego como os demais. Mas um dia ela trajou um vestido de seda
verde cambiante, e, quando a viu daquela maneira, Kevenhüller a
reconheceu.
Lá estava ela, envolta em seda no melhor sofá de Ekeby,
enquanto todos aqueles senhores faziam papel de tolos para servi-
la. Um servia de cozinheiro e o outro de camareiro; um servia de
palestrante, outro de músico da corte, ainda outro de sapateiro.
Todos haviam assumido uma ocupação.
Corria a notícia de que estava doente, aquela feiticeira má,
porém Kevenhüller bem sabia o que estava por trás da doença. Ela
os havia feito passar ridículo, a todos.
Kevenhüller tentou alertar os cavalheiros.
– Vejam aqueles dentes afiados – disse –, e os olhos reluzentes
e indômitos! É a ninfa da floresta; todo o mal pôs-se em movimento
nesta época terrível. Pois eu digo que a ninfa da floresta veio para
nos destruir! Eu já a encontrei antes.
Mas, tão logo viu a ninfa da floresta e a reconheceu, Kevenhüller
foi acometido pela vontade de trabalhar. As ideias puseram-se a
arder e fervilhar, as mãos doíam com a vontade de empunhar o
martelo e a lima; ele não pôde lutar contra si próprio. Com o coração
amargurado, vestiu o jaleco de trabalho e trancou-se em uma antiga
forja, que haveria de tornar-se uma oficina.
E então um grito saiu de Ekeby e espalhou-se por toda a
província de Värmland:
– Kevenhüller está trabalhando!
E as pessoas escutavam com a respiração suspensa, tentando
ouvir os golpes do martelo que soavam na oficina trancada, o roçar
da lima e o resfolegar do fole.
Um novo portento veria a luz do dia. O que haveria de ser? Será
que daquela vez Kevenhüller ensinaria as pessoas a caminhar em
cima da água, ou então a subir até as Plêiades?
Nada é impossível para um homem como aquele. Vimos com
nossos próprios olhos quando cruzou o ar batendo asas. Vimos seu
carro andar pelas ruas. Kevenhüller tem o talento da ninfa da
floresta, e para ele nada é impossível.
Certa noite, no primeiro ou segundo dia de outubro, o portento
ficou pronto. Ele saiu da oficina trazendo-o na mão. Era uma roda
que girava sem parar. E, enquanto rodava, os raios brilhavam como
fogo, emitindo luz e calor. Kevenhüller havia criado um sol. Quando
saiu da oficina trazendo aquilo na mão, a noite ficou tão clara que os
pardais começaram a pipilar e as nuvens tingiram-se com os tons
rubros da aurora.
Era a mais extraordinária dentre todas as invenções. Em toda a
terra, ninguém mais haveria de sofrer com a escuridão ou com o
frio. A simples ideia de uma invenção como aquela lhe causava
vertigem. O sol do dia continuaria a nascer e a se pôr todos os dias,
mas, quando desaparecesse, milhares e milhares daquelas rodas
de fogo haveriam de chamejar província afora, e o ar tremularia de
calor como nos dias mais quentes do verão. As pessoas fariam
colheitas fartas sob o céu estrelado em pleno inverno, morangos e
airelas-vermelhas cobririam o solo da floresta durante o ano inteiro e
o gelo jamais haveria de prender a água.
Estando pronta, a invenção haveria de criar uma nova terra. A
roda de fogo seria o casaco dos pobres e o sol dos mineiros. Seria a
fonte de energia das fábricas, a vida da natureza, uma nova e bem-
aventurada existência para a humanidade. Ao mesmo tempo,
porém, ele sabia que tudo aquilo era um sonho e que a ninfa da
floresta jamais lhe permitiria construir outras rodas. E, tomado pela
ira e pela sede de vingança, Kevenhüller pensou que haveria de
matá-la, e a partir de então mal sabia o que estava fazendo.
Foi até a casa senhorial e colocou a roda de fogo no vestíbulo,
sob a escada. A ideia era que a casa pegasse fogo e aquela
feiticeira queimasse lá dentro.
Depois ele voltou à oficina e permaneceu em silêncio, escutando.
Ouviram-se vozes e gritos na propriedade. Naquele instante foi
possível notar que uma grande façanha estava em curso.
Ah, corram, gritem, façam alarido! Lá dentro arde a ninfa da
floresta, a quem vocês envolveram em seda!
Será que se contorcia em tormento? Será que fugia das chamas
de um aposento ao outro? Ah, aquela seda verde há de queimar, e
as chamas hão de brincar naqueles cabelos bastos! Coragem,
chamas, coragem! Peguem-na, consumam-na! A bruxa está a
queimar! Não temam pelos feitiços recitados, chamas! Deixem-na
queimar! Há os que passaram uma vida inteira queimando por
causa dela.
Sinos retiniram, carros avançaram, mangueiras surgiram, a água
veio do lago e as pessoas acudiram ao local vindas de todos os
vilarejos próximos. Havia gritos, lamentações e ordens, era o teto
que havia cedido, era o terrível crepitar e ribombar de um grande
incêndio. Mas nada disso perturbou Kevenhüller. Estava sentado no
tronco de rachar lenha, esfregando as mãos.
E de repente ouviu um estalo, como se o céu houvesse
desabado, e levantou-se em um arroubo de júbilo.
– Está feito! – exclamou. – Ela não pode ter escapado; deve ter
sido esmagada sob o peso das vigas ou então queimada pelas
chamas. Está feito!
Então Kevenhüller pensou na honra e no poder de Ekeby, que
tiveram de ser oferecidos em sacrifício para tirar aquela criatura do
mundo. Os salões esplendorosos, onde tanto júbilo havia passado,
os cômodos por onde havia ecoado a alegria das lembranças, as
mesas que se envergavam sob a fartura de refeições deliciosas, o
precioso mobiliário antigo, prata e porcelana que já não podiam ser
recuperados…
E então ele se pôs de pé com um grito repentino. A roda de fogo,
o sol que havia construído, aquele modelo do qual tudo dependia –
será que não o havia posto sob a escada para causar o incêndio?
Kevenhüller olhou para si mesmo, petrificado de horror.
– Será que estou louco? – indagou. – Como pude fazer uma
coisa dessas?
No mesmo instante abriu-se a bem fechada porta da oficina e a
dama trajada de verde entrou.
A ninfa da floresta estava no patamar da porta, bela e com um
discreto sorriso nos lábios. O vestido verde não tinha nenhuma
mancha ou defeito, e a fumaça não havia se alojado nos cabelos
bastos. A ninfa estava tal como a havia encontrado no mercado de
Karlstad na época da juventude, com a cauda de animal selvagem
solta entre os pés, e trazia consigo o ar indômito e o cheiro da
floresta.
– Ekeby está queimando! – ela disse, em meio a risadas.
Kevenhüller tinha a marreta erguida e pretendia atirá-la na
cabeça dela, porém logo percebeu que trazia nas mãos a roda de
fogo.
– Mas veja o que eu trouxe para ti! – ela disse.
Kevenhüller prostrou-se de joelhos.
– Quebraste o meu carro, destruíste as minhas asas e arruinaste
a minha vida. Tem compaixão, tem piedade de mim!
A ninfa da floresta sentou-se na bancada de marceneiro, sempre
com o aspecto jovem e travesso, como surgira naquele primeiro
encontro no mercado de Karlstad.
– Creio que sabes quem sou – ela disse.
– Eu te conheço, e sempre te conheci – disse o pobre homem. –
És a encarnação do gênio. Mas agora me liberta! Leva esse teu
dom embora! Leva esse dom de criar portentos! Deixa-me ser um
homem comum! Por que me persegues? Por que me persegues?
– Louco! – disse a ninfa da floresta. – Eu nunca te desejei mal
nenhum. Dei-te uma grande recompensa, mas também posso levá-
la embora, se não te agrada. Mas pensa bem! Hás de te arrepender.
– Não, não – exclamou Kevenhüller –, leva de mim esse dom de
criar portentos!
– Antes tens de destruir isso aqui – ela disse, jogando a roda de
fogo aos pés dele.
Kevenhüller não hesitou. De pronto fez a marreta descer sobre
aquele reluzente sol de fogo, que não passava de um feio objeto
mágico caso não pudesse ser útil a milhares de pessoas. Chispas
voaram pelo recinto, fragmentos e labaredas dançaram ao redor e
por fim o último portento estava reduzido a estilhaços.
– Muito bem. Agora vou levar embora o dom que havia te dado –
disse a ninfa da floresta.
Foi quando ela chegou à porta para ir embora e foi banhada pelo
brilho rubro do incêndio que Kevenhüller a viu pela última vez.
Parecia mais bela do que nunca, embora não maldosa; apenas
austera e orgulhosa.
– Louco! – ela disse. – Acaso te impedi de fazer com que outros
reproduzissem as tuas criações? O que mais eu poderia querer,
senão poupar o homem de gênio do trabalho manual?
E com essas palavras a ninfa da floresta se foi. Kevenhüller
passou uns dias louco. Depois voltou a ser um homem comum.
Mas durante a loucura havia posto fogo em Ekeby. Apesar disso,
ninguém se machucou. Mas foi uma profunda tristeza para os
cavalheiros que aquela casa hospitaleira, onde haviam desfrutado
de tantos bons momentos, sofresse tantos estragos na época em
que a governavam.
A PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DE OUTUBRO É O DIA de abertura do grande
mercado de Broby, que dura oito dias. É o grande evento do outono.
O mercado é precedido por fornadas de quitutes e pelo abate de
animais; as roupas novas de inverno podem ser usadas pela
primeira vez, os pratos de fim de semana, como bolo de queijo e
biscoitos com queijo marrom, passam o dia inteiro em cima da
mesa, as doses de aguardente dobram e o trabalho repousa. Há
uma festa em todas as propriedades. Criados e trabalhadores
recebem o ordenado e entabulam longas discussões sobre tudo o
que pretendem comprar no mercado. As pessoas chegam de longe
em pequenos grupos, com mochilas nas costas e cajados na mão.
Muitos levam os animais para o mercado. Terneiros e cabritos, que
empacam com as pernas dianteiras fincadas no chão, causam
muitas irritações para o dono e muita alegria para os observadores.
Os quartos de hóspedes nas casas senhoriais encontram-se
repletos de visitantes benquistos. As notícias correm e os preços de
bens e animais são negociados. As crianças sonham com presentes
e dinheiro para gastar no mercado.
E que tumulto não se arma pelos morros de Broby e pela grande
área do mercado no primeiro dia! Barracas foram montadas nos
locais onde os comerciantes da cidade expõem suas mercadorias,
enquanto as pessoas de Dalarna e Västergötland empilham os
produtos em intermináveis fileiras de bancas, sobre as quais uma
cobertura de tecido ondula ao vento. Claro que há equilibristas,
realejos, violinistas cegos e bem-humorados, bem como leitores da
sorte, vendedores de caramelos e bancas de aguardente. Para além
das barracas, recipientes de madeira e pedra encontram-se
dispostos em filas. Cebolas e raiz-forte, peras e maçãs são vendidas
pelos jardineiros das grandes propriedades. Em uma considerável
extensão do terreno encontram-se panelas de cobre com
acabamento reluzente.
Mesmo assim, percebe-se no movimento do mercado que a
necessidade impera em Svartsjö e em Bro e também em Lövvik e
em outras paróquias de Lövsjö. As vendas estão fracas nas
barracas e bancas. A maior parte do movimento ocorre no mercado
de animais, pois muita gente precisa vender tanto a vaca como o
terneiro para enfrentar o inverno. E também ocorrem as
imprevisíveis e emocionantes trocas de cavalos.
O mercado de Broby é um local alegre. Se ao menos houvesse
dinheiro para tomar uns dois tragos e manter o moral alto! Mas não
é apenas a aguardente que traz alegria. Quando chegam ao
mercado, veem as massas que se movimentam de um lado para
outro e ouvem a multidão que grita e gargalha, as pessoas que
moram isoladas na floresta sentem uma vertigem de alegria, tornada
ainda mais intensa pelo fervilhar da vida no mercado.
Claro que se faz muito comércio no meio de tanta gente, mas
isso não é o mais importante. O mais importante é levar um grupo
de familiares e amigos até as carroças para oferecer-lhes salame de
ovelha, pão com queijo marrom e aguardente, ou então convencer
as meninas a levarem hinários e lenços de seda ou ainda escolher
presentes para as crianças.
Todas as pessoas que não precisam tomar conta da casa e dos
animais vão ao mercado de Broby. Lá estão os cavalheiros de
Ekeby e camponeses das florestas de Nygård, comerciantes de
cavalo da Noruega, finlandeses das florestas ao norte e vigaristas
da estrada.
Às vezes todo esse mar rumoroso transforma-se em uma
voragem, que rodopia em anéis vertiginosos ao redor de um ponto
central. Ninguém sabe o que há nesse ponto, até que de repente
dois ou três policiais abrem espaço em meio à multidão para acabar
com uma briga ou reerguer uma carroça virada. E no instante
seguinte um novo bando de gente rodeia um vendedor que bate
boca com uma jovem atilada.
Por volta do meio-dia tem início a grande briga. Os camponeses
afirmam que os gotas do oeste[6] estão usando um côvado
demasiado curto; ao redor daquelas bancas começam uma
discussão e um entrevero que logo dão lugar à violência. Todos
sabem que, para muitos dos que naquela época não viam nada
além de miséria e necessidade, era quase uma alegria poder dar
uma bofetada, a despeito de quem fosse atingido. E, tão logo os
mais fortes e dispostos veem que há uma briga em curso, acodem
vindos de todos os lados. Os cavalheiros querem apenas se
aproximar para restaurar a paz a seu modo, e os homens do vale
correm para ajudar os gotas do oeste.
O robusto Måns de Fors é o mais entusiasmado com a
brincadeira. Está bêbado, e também furioso. Acaba de derrubar um
dos gotas do oeste e logo começa a dar-lhe uma surra, mas,
quando o homem solta um grito de ajuda, seus conterrâneos
aparecem e tentam obrigar o robusto Måns a soltar aquele
camarada. Então o robusto Måns derruba os fardos de tecido de
uma das bancas e agarra a própria bancada, feita de grossas
tábuas e medindo 1 côvado de largura e 8 côvados de comprimento,
e a empunha como arma.
É um homem perigoso, o robusto Måns. Foi ele quem derrubou
uma parede a chutes quando estava preso em Filipstad, e além
disso era capaz de tirar sozinho um barco do rio e carregá-lo nas
costas. Assim se entende por que quando, usando a bancada, se
põe a desferir golpes ao redor, todo o grupo foge, inclusive os gotas
do oeste. Mas o robusto Måns corre atrás daqueles homens,
desferindo golpes ao redor com a bancada. Para ele já não é uma
questão de amigos ou inimigos; quer apenas alguém em quem
possa bater, agora que tem uma arma.
As pessoas fogem desesperadas. Homens e mulheres gritam e
correm. Mas como seria possível às mulheres fugir, sendo que
muitas levam crianças nos braços? As barracas e carroças
interrompem o caminho, e bois e vacas, assustados com o barulho,
impedem que se afastem.
Um grupo de mulheres foi encurralado em um canto entre as
barracas, e é para lá que o gigante avança. Será que não tinha
avistado um gota do oeste no meio do grupo? O robusto Måns
ergue a bancada e então a faz descer com toda a força. Com uma
angústia trêmula e pálida, as mulheres estão prestes a receber o
impacto, encolhidas sob o peso daquele golpe mortal.
Mas, quando a bancada desce com um assovio, quebra-se ao
encontrar os braços erguidos de um homem. Esse homem não
havia se encolhido, mas ergueu o corpo em meio à multidão; esse
homem tinha espontaneamente recebido o golpe para salvar muitos
outros. As mulheres e as crianças estão ilesas. Um homem
interrompeu a violência do golpe, mas naquele momento encontra-
se desacordado no chão.
O robusto Måns não torna a erguer a bancada. Encontrou os
olhos do homem no momento em que a bancada atingia-lhe a
cabeça, e aquilo o paralisou. Ele permite que a polícia o algeme e o
leve sem oferecer resistência.
Mas, em uma velocidade impressionante, corre pelo mercado o
boato de que o robusto Måns matou o capitão Lennart. Dizem que
ele, que sempre foi um amigo do povo, morreu para salvar mulheres
e crianças indefesas.
E então o silêncio cai sobre todo o mercado, onde pouco antes a
vida fervilhava em todo o seu esplendor. O comércio para, a briga é
interrompida, as comemorações em volta das marmitas encerram-se
e os equilibristas tentam em vão chamar os espectadores.
O amigo do povo morreu, e o povo está de luto. Uma multidão
silenciosa se aproxima do lugar onde tombou. O capitão Lennart
está caído no chão, ainda inconsciente; não se veem ferimentos,
mas o próprio crânio parece estar afundado.
Homens colocam-no delicadamente em cima da bancada que o
gigante empunhava. Têm a impressão de que o capitão ainda está
vivo.
– Para onde vamos levá-lo? – perguntam-se uns aos outros.
– Para casa! – responde uma voz ríspida no grupo.
Ah, bons homens, levem-no para casa! Ponham-no sobre os
ombros e levem-no para casa! O capitão foi o joguete de Deus,
como uma pluma levada pelo sopro divino. Levem-no agora para
casa!
Essa cabeça ferida já repousou no duro beliche da prisão e na
palha do celeiro. Permitam que agora volte para casa e repouse em
um travesseiro macio! Esse homem sofreu com vergonhas e
tormento desmerecidos; foi escorraçado da própria casa. Vivia como
um fugitivo, vagando pelos caminhos de Deus onde os pudesse
encontrar, mas o país sonhado era o lar cujas portas Deus lhe havia
fechado. Talvez hoje esse lar esteja aberto para um homem que
morreu para salvar mulheres e crianças indefesas.
Assim não se apresenta como um criminoso acompanhado por
beberrões trôpegos. Chega acompanhado por um povo em luto,
cujas humildes moradas visitou enquanto o ajudava a vencer o
sofrimento. Levem-no para casa!
E assim os homens fazem. Seis homens apoiam a bancada em
que o capitão Lennart repousa sobre os ombros e levam-no para
longe do mercado. Por onde passam, as pessoas abrem caminho e
fazem silêncio, os homens tiram os chapéus e as mulheres fazem
mesuras, como na igreja, quando o nome de Deus é pronunciado.
Muitos choram e enxugam os olhos, enquanto outros começam a
falar sobre o grande homem que foi o capitão Lennart: bom, resoluto
e temente a Deus. É curioso notar que, tão logo um dos
carregadores se cansa, outro se aproxima devagar e escora a
bancada sobre o ombro.
E por fim o capitão Lennart passa pelo local onde se encontram
os cavalheiros.
– Acho que vou junto para me assegurar de que ele chegue bem
em casa – diz Beerencreutz, deixando o lugar na beira da estrada
para ir até Helgesäter. O exemplo é seguido por muitos.
O mercado torna-se quase deserto; as pessoas acompanham o
capitão Lennart até Helgesäter. É preciso assegurar-se de que
chegue bem em casa. Todos os itens necessários que seriam
comprados permanecem sem serem comprados; os presentes para
as crianças são esquecidos, a compra do hinário não se concretiza
e o lenço de seda, que havia brilhado nos olhos da menina, é
deixado em cima do balcão. Todos precisam acompanhar o capitão
Lennart e assegurar-se de que chegue bem em casa.
Quando o cortejo chega a Helgesäter, tudo está quieto e deserto.
Novamente os punhos do coronel batem contra a porta fechada.
Todos os criados encontram-se no mercado, e a esposa do capitão
está cuidando sozinha da casa. É ela quem abre a porta.
E então pergunta, como já perguntou outra vez:
– O que os senhores querem?
Ao que o coronel responde, como já respondeu outra vez:
– Temos aqui o seu marido.
A esposa o observa, empertigado e seguro como de costume. E
vê os homens mais atrás, que choram, e então toda a massa de
pessoas ao fundo. Ela está na escada, diante de centenas de olhos
lacrimosos que a encaram com expressões angustiadas. Por último,
vê o homem que se encontra deitado em cima da maca improvisada
e aperta a mão contra o peito.
– Esse é o verdadeiro rosto dele – a mulher balbucia.
Sem perguntar mais nada, ela se abaixa, solta a tranca,
escancara a porta do vestíbulo e então acompanha os outros até o
quarto.
O coronel e a esposa do capitão puxam a cama de casal e
estendem o edredom, e então o capitão Lennart é novamente posto
sobre as plumas macias e o linho branco.
– Ele está vivo? – ela pergunta.
– Está – responde o coronel.
– Há esperança?
– Não. Não há nada a fazer.
O silêncio abate-se sobre o quarto, e de repente a mulher tem
uma ideia.
– Todas essas pessoas estão chorando pelo capitão?
– Estão.
– O que foi que ele fez?
– A última coisa que fez foi permitir ao robusto Måns que o
matasse para salvar a vida de mulheres e crianças.
A esposa do capitão passa um tempo em silêncio, pensando.
– Que expressão ele tinha, coronel, quando voltou para casa dois
meses atrás?
O coronel sobressalta-se. Agora compreende. Somente agora
compreende.
– Gösta tinha acabado de pintá-lo!
– Então foi por causa de um gracejo dos cavalheiros que o
impedi de entrar na própria casa. Quem vai assumir a
responsabilidade pelo que aconteceu, coronel?
Beerencreutz ergue os largos ombros.
– Boa parte da responsabilidade é minha.
– Isso deve ser a pior coisa que o senhor já fez.
– Por isso nunca percorri um caminho mais doloroso do que este
até Helgesäter no dia de hoje. E além disso há outros dois culpados.
– Quem?
– Um é Sintram; o outro é você. Você é uma mulher rígida. Sei
que muitos quiseram falar-lhe a respeito do seu marido.
– É verdade – ela responde.
E então ela pede que o coronel fale sobre a bebedeira em Broby.
Ele conta tudo, da melhor forma possível, enquanto ela o escuta
atentamente. O capitão Lennart permanece desacordado na cama.
O quarto já se encontra cheio de pessoas que choram, e ninguém
pensa em despachar aquele bando entristecido. Todas as portas
estão abertas, todos os cômodos, escadas e vestíbulos estão
ocupados por gente angustiada, que se amontoa até o pátio em
grupos numerosos.
Quando o coronel termina de falar, a esposa do capitão ergue a
voz e diz:
– Se há cavalheiros no interior desta casa, peço que saiam
daqui. Para mim é doloroso vê-los agora, junto ao leito de morte do
meu marido.
Sem mais uma palavra, o coronel se levanta e vai embora. O
mesmo fazem Gösta Berling e outros cavalheiros que
acompanharam o capitão Lennart. As pessoas abrem timidamente o
caminho para o pequeno grupo de homens humilhados.
Quando se afastam, a esposa do capitão diz:
– Alguém que tenha estado com o meu marido poderia me dizer
como ele se comportou e o que fez durante esse tempo?
E então as pessoas lá dentro começam a dar testemunhos sobre
o capitão Lennart para a esposa, que o havia julgado injustamente e
endurecido o coração em relação ao marido. E por mais uma vez a
linguagem dos antigos hinos se fez ouvir. Homens que nunca leram
outro livro além da Bíblia começam a falar. Com metáforas retiradas
do livro de Jó, com giros de frase sacados da época patriarcal, falam
sobre o andarilho de Deus, que vagava de um lado para outro
ajudando as pessoas.
Leva tempo até que todos possam falar. Enquanto o entardecer e
a noite chegam, as pessoas seguem falando, e uma atrás da outra
se aproximam e contam histórias sobre o capitão diante da esposa,
que não quisera ouvir menção ao nome daquele homem.
Há os que relatam que o capitão os encontrou doentes e então
os curou. Há as brigas que ajudou a apartar. Há os desvalidos a
quem fez justiça, há os ébrios a quem impôs a sobriedade. Cada
pessoa exposta a uma necessidade insuportável tinha uma
mensagem sobre o andarilho de Deus, que sempre as tinha
ajudado, nem que fosse oferecendo uma centelha de esperança ou
de fé.
Durante toda a noite a linguagem dos hinários soou no quarto do
doente.
No pátio, grupos numerosos aguardavam o desfecho. Todos
sabem o que acontece no interior da casa. O que se diz em voz alta
junto ao leito de morte é sussurrado de um homem para o outro até
chegar à rua. Os que têm palavras a dizer chegam mais para a
frente.
– Aqui está mais um que pode dar testemunho – uma voz diz,
abrindo espaço. E então as pessoas surgem da escuridão, dão seu
testemunho e voltam a desaparecer na escuridão.
– O que foi que ela disse? – as pessoas no lado de fora
perguntam quando alguém sai. – O que ela disse, a rígida senhora
de Helgesäter?
– Está radiante como uma rainha. Sorri como uma noiva. Ela
puxou a cadeira do capitão para junto da cama e pôs lá em cima as
roupas que fez para ele.
Mas de repente faz-se silêncio entre todos os presentes.
Ninguém diz, mas todos pressentem ao mesmo tempo: “o capitão
está morrendo”.
O capitão Lennart abre as pálpebras e olha ao redor.
Vê a casa, as pessoas, a esposa, as crianças e as roupas, e
sorri. Mas ele despertou apenas para morrer. Solta um último
estertor e por fim se apaga.
Os testemunhos cessam, mas uma voz começa a entoar um hino
fúnebre. Todos a acompanham e, transportada por centenas de
vozes toantes, a canção ergue-se ao céu.
A terra despede-se daquela alma que vai embora.
ESTA HISTÓRIA TEVE INÍCIO MUITOS ANOS ANTES que os cavalheiros
assumissem o controle de Ekeby. O pastorinho e a pastorinha
brincavam juntos na floresta, erguendo pequeninas casas feitas de
pedras chatas, colhendo frutas silvestres e fazendo cornetas de
amieiro. Ambos haviam nascido na floresta. A floresta era a casa
onde encontravam abrigo. Viviam em paz com tudo o que havia por
lá, como as pessoas vivem em paz com criados e animais
domésticos.
Para os pequenos, o lince e a raposa eram os cães domésticos,
a doninha era o gato, a lebre e o esquilo eram os cavalos, a coruja e
o tetraz moravam em gaiolas, os espruces eram os criados e as
bétulas jovens eram os convivas de suas festas. Conheciam a toca
onde a serpente hibernava toda enrodilhada e, ao banhar-se no rio,
viam a cobra-d’água nadar pela água límpida, mas não temiam a
cobra nem as donzelas do lago: essas criaturas faziam parte da
floresta, que era sua casa. Lá, nada era capaz de assustá-los.
E nas profundezas da floresta localizava-se a pequena
propriedade onde o pastorinho morava. Para lá seguia uma estrada
irregular, ladeada por montanhas que encobriam o sol, e nas
proximidades havia um pântano sem fundo de onde uma bruma fria
se erguia durante todo o ano. Essa morada não parecia atraente
para os habitantes da planície.
O pastorinho e a pastorinha um dia haveriam de contrair
matrimônio, habitar a pequena propriedade na floresta e viver do
trabalho que faziam com as próprias mãos. Mas antes do
casamento o flagelo da guerra se abateu sobre o país, e o
pastorinho foi convocado. Voltou para casa sem ferimentos e com
braços e pernas intactos, porém as marcas dessa jornada o
acompanharam por toda a vida. Tinha visto a maldade do mundo e
as terríveis atitudes dos homens contra os homens. Já não tinha
condições de ver o bem.
No início ninguém percebeu nenhum tipo de mudança. Com a
amada de infância, procurou o pastor e solicitou a publicação dos
proclamas. A pequena propriedade logo acima de Ekeby tornou-se a
casa deles, como fora acertado muito tempo antes, mas naquela
casa não havia conforto.
A esposa olhava para o marido como se fosse um estranho.
Desde o retorno da guerra ela não o reconhecia. Dificilmente ele ria,
e pouco falava. Ela temia o marido.
Ele não lhe causava irritação e não lhe fazia maldade nenhuma,
e além disso trabalhava com afinco. Mas assim mesmo era pouco
querido, uma vez que pensava mal de todos. Quanto a si mesmo,
sentia-se como um forasteiro odiado. Os animais da floresta haviam
se transformado em inimigos. A montanha que encobria o sol e o
pântano de onde se erguia a bruma haviam se transformado em
antagonistas. A floresta é uma morada terrível para quem tem maus
pensamentos.
Os que vivem rodeados pela natureza intocada precisam de
memórias luminosas! De outro modo veem apenas opressão e
assassinato em meio a plantas e animais, como antes viram em
meio aos homens. Ele espera maldades de todos aqueles que
encontra.
Nem o próprio Jan Hök, o soldado, conseguira descobrir o que o
havia destruído para que nada lhe parecesse bom. O lar quase não
lhe oferecia paz. Os filhos, crescidos lá, eram fortes, mas também
indômitos. Tornaram-se homens endurecidos e corajosos, mas
também viviam um incessante conflito com as outras pessoas.
A esposa foi levada pela tristeza a desbravar os segredos da
natureza intocada. Em pântanos e recônditos, procurava ervas
medicinais. Pensava sobre as criaturas que viviam sob a terra, e
sabia que sacrifício oferecer para agradar-lhes. Sabia curar doenças
e oferecia conselhos para aliviar as dores do amor. Ganhou fama de
feiticeira e passou a ser evitada, mesmo que prestasse grandes
serviços às demais pessoas.
Certa vez a esposa decidiu conversar com o marido sobre aquilo
que o afligia.
– Desde que voltaste da guerra – ela disse –, pareces estar
destruído. O que aconteceu contigo por lá?
O marido se levantou e esteve prestes a bater nela, e o mesmo
acontecia todas as vezes que ela falava sobre a guerra. O marido
era tomado por uma ira descontrolada. Não tolerava ouvir a palavra
“guerra” de ninguém, e logo passou a ser um fato conhecido que
não suportava falar sobre o assunto. A partir de então as pessoas
começaram a tomar cuidado com esse tema.
Mas nenhum dos camaradas de guerra diria que tinha feito mais
mal do que os outros. Havia lutado como um bom soldado. Aquilo
era simplesmente o resultado dos horrores que tinha visto, e que o
assustaram de tal maneira que desde então não via nada além do
mal. Toda aquela tristeza enorme tinha origem na guerra. Ele sentia
que a natureza o odiava por ter feito parte daquilo. Os mais
esclarecidos podiam consolar-se pensando que haviam lutado em
nome da honra e da pátria. Mas o que sabia ele a respeito disso?
Sabia apenas que tudo o odiava porque havia derramado sangue e
feito o mal.
Quando a senhora foi expulsa de Ekeby, ele morava sozinho na
cabana. A esposa tinha morrido, e os filhos estavam longe. Mas na
época do mercado a pequena propriedade na floresta se enchia de
convidados. Ciganos de cabelos negros e pele escura alojavam-se
por lá. Sentiam-se mais à vontade na casa daquele homem que
todos evitavam. Pequenos cavalos de pelagem longa subiam pela
estrada, puxando carroças cheias de ferramentas para estanhar,
crianças e pilhas de trapos. As mulheres precocemente
envelhecidas, de semblante inchado pelo fumo e pela bebida, e os
homens, com rosto austero e pálido e corpo robusto,
acompanhavam as carroças. Quando os ciganos chegavam à
pequena propriedade na floresta, a atmosfera tornava-se alegre.
Levavam consigo a aguardente, o carteado e as risadas. Contavam
histórias sobre roubos, trocas de cavalos e brigas sangrentas.
Na sexta-feira começou o mercado de Broby, e a essa altura o
capitão Lennart estava morto. O robusto Måns, que desferiu o golpe
mortal, era filho do velho que habitava a pequena propriedade na
floresta. Quando os ciganos sentaram-se juntos por lá na tarde de
domingo, estenderam a garrafa de aguardente para o velho Jan Hök
com uma frequência maior do que o normal e falaram com ele sobre
a vida na prisão, a comida dos prisioneiros e os processos judiciais,
pois muitas vezes haviam se envolvido com essas coisas.
O velho estava sentado em cima do tronco de rachar lenha, no
recanto da lareira, e falava pouco. Aqueles grandes olhos baços
encaravam o grupo desarranjado que preenchia o recinto. O
crepúsculo havia caído, mas a lareira emitia luz. E essa luz revelava
trapos, miséria e necessidade.
Logo a porta foi aberta devagar, e duas mulheres entraram. Era a
jovem condessa Elisabet, acompanhada pela filha do pastor de
Broby. Ela pareceu estranha e radiante ao velho, quando entrou
naquele círculo de luz. Contou para os que estavam lá dentro que
Gösta Berling não fora visto em Ekeby após a morte do capitão
Lennart. Ela e a criada haviam passado a tarde inteira na floresta a
procurá-lo. E naquele instante a jovem condessa viu que naquele
recinto havia homens que tinham vindo de longe e conheciam todos
os caminhos. Acaso não o tinham visto? Ela fizera a visita para
descansar e perguntar se não o tinham visto.
A pergunta foi em vão. Ninguém tinha visto Gösta Berling.
Ofereceram uma cadeira para a condessa. Ela sentou-se e
passou um tempo em silêncio. O barulho na cabana havia se
calado. Todos a encaravam admirados. Por fim a condessa
assustou-se com aquele silêncio, teve um sobressalto e tentou
entabular uma conversa sobre assuntos triviais.
Dirigiu-se ao velho que estava no canto.
– Se bem me recordo, ouvi histórias de que o senhor foi soldado
– ela disse. – Conte uma história da guerra!
O silêncio tornou-se sepulcral. O velho permaneceu sentado,
como se não tivesse ouvido.
– Eu gostaria muito de ouvir histórias de guerra de um homem
que esteve lá – prosseguiu a condessa, mas logo se interrompeu,
pois o pastor de Broby começou a balançar a cabeça enquanto a
encarava. Devia ter dito palavras inadequadas. Todas as pessoas lá
reunidas olharam para ela como se houvesse transgredido a lei
mais elementar da decência. E de repente uma das ciganas ergueu
a voz cortante e perguntou:
– Deve ser a senhora que foi condessa em Borg.
– Sim, sou eu.
– Deve ter sido bem diferente de correr pela floresta atrás de um
pastor louco. Que troca!
A condessa se levantou e despediu-se de todos. Já havia
descansado o bastante. A mulher que havia falado seguiu-a porta
afora.
– Por favor, entenda – disse. – Eu precisava dizer alguma coisa,
porque não há como falar com o velho sobre a guerra. Ele não
aguenta ouvir essa palavra. Eu tive boa intenção.
A condessa Elisabet afastou-se depressa, mas logo deteve o
passo. Olhou para a floresta ameaçadora, a montanha que encobria
a paisagem e o pântano fumarento. Morar naquele lugar devia ser
terrível para os que têm os pensamentos repletos de memórias
dolorosas. Ela teve pena do velho, que permanecia lá dentro tendo
ciganos por companhia.
– Srta. Anna Lisa – disse –, vamos dar meia-volta! As pessoas lá
dentro nos trataram bem; fui eu que me comportei mal. Quero falar
com o velho sobre coisas mais alegres.
E, feliz por ter encontrado alguém para consolar, a condessa
voltou à cabana.
– O que acontece – disse – é que eu acredito que Gösta Berling
está andando pela floresta e contemplando acabar com a própria
vida. Por isso é importante que seja encontrado e impedido o quanto
antes. Eu e a srta. Anna Lisa tivemos a impressão de vê-lo de vez
em quando, mas logo ele tornava a desaparecer. Está no mesmo
ponto da montanha onde a menina de Nygård morreu. Ocorreu-me
que eu não precisaria ir até Ekeby para solicitar ajuda. Aqui há
muitos homens céleres que facilmente poderiam capturá-lo.
– Despachem-se, homens! – exclamou a cigana. – Se a
condessa não acha que está acima de pedir favores ao povo da
floresta, ponham-se agora mesmo a caminho.
Os homens levantaram-se e deram início às buscas.
O velho Jan Hök se manteve sentado, olhando para a frente com
um olhar vazio. Parecia assustadoramente triste e austero. A jovem
condessa não encontrava palavras que pudesse dizer-lhe. Então
percebeu que havia uma criança doente em cima de um fardo de
palha e que uma das mulheres sentia dor na mão. E no mesmo
instante pôs-se a ajudar os doentes. Logo fez amizade com aquelas
mulheres fofoqueiras e foi apresentada às crianças.
Uma hora mais tarde os homens voltaram. Entraram na cabana
trazendo Gösta Berling amarrado. Colocaram-no em frente à lareira.
As roupas estavam sujas e rasgadas, as feições pareciam
emaciadas e o olhar desvairado. A jornada dos últimos dias fora
terrível. Havia se deitado no chão úmido, havia enterrado as mãos e
o rosto no musgo, arrastado o corpo por rochedos, atravessado a
mais densa mata. Não acompanhara os homens de boa vontade,
mas esses por fim o imobilizaram e o amarraram.
Quando o viu daquela maneira, a esposa foi tomada pela fúria.
Não desatou os braços e pernas amarrados, mas deixou-o jogado
no chão. Com desprezo, virou-lhe as costas.
– Então é assim que te apresentas! – ela disse.
– Eu já não pretendia aparecer diante dos teus olhos – ele
respondeu.
– Então não sou tua esposa? Então não é meu direito esperar
que me procures também na tristeza? Estive à tua espera por dois
dias de amarga angústia.
– Fui eu que precipitei a desgraça sobre o capitão Lennart. Como
ousaria apresentar-me diante de ti? Como?
– Poucas vezes demonstraste medo, Gösta.
– O único favor que posso fazer para ti, Elisabet, é livrar-te de
mim.
Um desprezo indescritível relampejou por sob as sobrancelhas
franzidas da condessa.
– Queres fazer de mim a esposa de um suicida!
O semblante de Gösta contorceu-se.
– Elisabet, entremos na floresta silenciosa para falar a sós!
– Por que essas pessoas não podem nos ouvir? – ela exclamou,
falando com uma voz estridente. – Acaso somos melhor do que
elas? Acaso existe alguém por aqui que tenha causado mais tristeza
e mais estragos do que nós? Eles são filhos da floresta e das
estradas, odiados por todos os homens. Pois saibam que a tristeza
e o pecado também perseguem o senhor de Ekeby, o bem-amado
Gösta Berling! Achas que a tua esposa julga-te melhor do que
qualquer uma dessas pessoas, ou acaso pensas tu mesmo dessa
forma?
Gösta ergueu-se com dificuldade sobre o cotovelo e a encarou
com desprezo recém-desperto.
– Não sou tão canalha quanto dizes.
E então Elisabet ouviu a história daqueles últimos dias. No
primeiro dia, Gösta vagara pela floresta, assolado pela consciência
pesada. Não suportava olhar no rosto de outra pessoa. Mas
tampouco pensava em morrer. Pretendia simplesmente afastar-se
rumo a uma terra distante. No domingo, porém, deixou aquelas
alturas para trás e foi à igreja de Bro. Novamente queria ver as
pessoas, os pobres da região de Lövsjö, pessoas famintas a quem
sonhara em servir quando se sentou junto ao monte da vergonha
com o pastor de Broby, e que aprendera a amar quando as viu se
afastarem noite adentro com a menina morta de Nygård.
O culto já havia começado quando Gösta chegou à igreja. Ele se
esgueirou até o mezanino e olhou para as pessoas lá embaixo. E
naquele instante foi assaltado por horríveis tormentos. Quisera falar
com as pessoas, oferecer-lhes consolo na pobreza e na
desesperança. Se ao menos pudesse falar na casa de Deus, teria –
por mais desesperado que estivesse – oferecido palavras de
consolo e libertação para todos.
A seguir deixou a igreja, entrou na sacristia e escreveu a
proclamação que sua esposa já conhecia. Prometera que o trabalho
em Ekeby seria retomado e que grãos haveriam de ser distribuídos
entre os mais pobres. Gösta nutria a esperança de que a esposa e
os cavalheiros pudessem manter a promessa depois que se fosse.
Ao sair, descobriu um caixão em frente à assembleia da
paróquia. Era um caixão rústico, feito às pressas, mas assim mesmo
ornado com tecido preto e coroas de airela-vermelha. Gösta
compreendeu que era o caixão do capitão Lennart. As pessoas
haviam pedido à esposa dele que apressasse o funeral para que a
grande multidão de frequentadores do mercado pudesse
acompanhar o enterro.
Ele olhava para o caixão quando sentiu uma mão pousar em seu
ombro. Sintram havia se aproximado.
– Gösta – disse –, se quiseres pregar uma peça inesquecível a
alguém, trata de morrer! Não existe nada mais astuto do que morrer,
nada mais capaz de enganar um homem honrado que não enxerga
maldade nenhuma. Trata de morrer, eis o que digo!
Aterrorizado, Gösta ouviu as palavras do malvado. Esse
queixava-se do fracasso de planos bem traçados. Queria ver o
vilarejo às margens do Löven abandonado. Por isso havia feito dos
cavalheiros os senhores do lugar; por isso havia deixado que o
pastor de Broby empobrecesse as pessoas; por isso havia chamado
a seca e a fome. A batalha decisiva seria travada no mercado de
Broby. Inflamadas por tantas desgraças, as pessoas haveriam de
entregar-se ao roubo e ao assassinato. Depois os julgamentos
haveriam de empobrecê-las. A fome, o caos e toda sorte de
infortúnio haveriam de reinar. Por fim a região haveria de tornar-se
tão feia e tão odiosa que ninguém mais estaria disposto a morar lá,
tudo por obra de Sintram. Para ele, isso seria motivo de alegria e
orgulho, posto que era mau. Amava as regiões desabitadas e o solo
intocado. Mas aquele homem, disposto a morrer no momento certo,
havia estragado tudo.
Por fim Gösta perguntou-lhe para que tudo haveria servido.
– Teria sido agradável para mim, Gösta, posto que sou mau. Sou
o urso que ataca os rebanhos na montanha, a nevasca que cai
sobre a planície, e gosto de perseguir e matar. Chega, digo eu,
chega de pessoas! Não gosto delas. Posso até deixar que corram
entre as minhas garras e deem saltos, porque isso pode ser
divertido por um tempo; mas agora estou farto de brincadeiras,
Gösta, e agora quero partir para o ataque; agora quero matar e
destruir.
O homem estava louco, completamente louco. Muito tempo antes
começara a brincar com essas artes infernais, e naquele momento o
mal o havia dominado por completo; imaginava ser um espírito do
abismo. Sintram tinha nutrido e cultivado o mal dentro de si, e este
por fim tomara conta de sua alma. E assim a maldade pode
enlouquecer uma pessoa, como fazem o amor e a reflexão.
O malvado patrão da fundição estava furioso, e em sua ira havia
começado a arrancar as coroas e os tecidos que enfeitavam o
caixão, porém nesse momento Gösta Berling gritou:
– Não toque nesse caixão!
– Ora, ora, ora, por quê? Se quiser, eu posso jogar meu amigo
Lennart no chão e pisotear essas coroas! Não vês o que ele me
aprontou? Não vês que cheguei em uma bela caleche cinzenta?
Naquele instante Gösta Berling percebeu que em frente ao muro
do cemitério havia carroças de prisioneiros, com o comissário e
outros servidores públicos da região.
– Ora, ora, ora, acaso não devo mandar um agradecimento à
esposa do capitão em Helgesäter, que ontem se pôs a ler papéis
antigos para descobrir provas contra mim naquele caso da pólvora?
Acaso não devo avisá-la de que seria melhor haver se dedicado a
preparar bebidas e assar pães em vez de mandar o comissário e os
servidores públicos da região em meu encalço? Acaso não devo
receber nada pelas lágrimas que derramei para convencer Scharling
a me deixar vir até aqui e fazer uma prece junto ao caixão do meu
bom amigo?
E então Sintram começou mais uma vez a arrancar o tecido.
Gösta Berling postou-se bem ao lado dele e segurou-lhe os
braços.
– Eu faço qualquer coisa para que o senhor não toque nesse
caixão! – ele disse.
– Faz o que bem entenderes! – retrucou o louco. – Grita, se
quiseres! Eu ainda consigo fazer alguma coisa antes que o
comissário chegue. Briga comigo, se quiseres! Seria uma visão e
tanto aqui no morro da igreja. Briguemos em meio a coroas e
mortalhas!
– Patrão, eu quero comprar a paz para este defunto, por mais
alto que seja o preço. Tire-me a vida, tire-me tudo!
– Fazes uma grande promessa, meu rapaz.
– E pretendo cumpri-la, patrão.
– Então te mata agora!
– Posso muito bem fazer isso, mas antes preciso me assegurar
de que o caixão se encontra em paz sob a terra.
E assim foi. Sintram pediu que Gösta fizesse um juramento,
segundo o qual não mais haveriam de existir doze horas depois que
o capitão Lennart fosse enterrado.
– Assim posso ter certeza de que jamais hás de tornar-te um
sujeito bom – disse Sintram.
Para Gösta Berling, foi uma promessa fácil. Estava feliz de poder
dar a liberdade à esposa. O peso na consciência o havia deixado
morto de cansaço. A única coisa que o horrorizava era saber que
tinha prometido à senhora de Ekeby não morrer enquanto a filha do
pastor de Broby fosse criada na propriedade. Mas Sintram disse que
já não se podia considerá-la uma criada, visto que havia herdado a
fortuna do pai. Gösta respondeu que o pastor de Broby havia
escondido suas posses tão bem que ninguém pudera encontrar
aqueles tesouros. Então Sintram riu e disse que estavam todos
escondidos em meio aos ninhos das pombas no campanário de
Broby. A seguir foi embora, e Gösta retornou à floresta. O melhor
parecia ser que morresse no mesmo local onde a menina de Nygård
havia morrido. E por lá passou a tarde inteira vagando. Tinha visto a
esposa na floresta, e por isso não conseguira tirar a própria vida
naquele momento.
Foi essa a história que contou enquanto permanecia amarrado
no chão da pequena propriedade na floresta.
– Ah! – exclamou a esposa, em tom melancólico. – Como estou
acostumada a tudo isso! Modos heroicos, façanhas heroicas!
Sempre disposto a pôr as mãos no fogo, Gösta! Sempre disposto a
jogar-te fora a ti mesmo! Como essas coisas outrora me pareciam
grandiosas! Mas hoje aprecio a compostura e a tranquilidade. Que
serviço prestaste ao morto com essa promessa? E se Sintram
tivesse mesmo derrubado o caixão e arrancado os tecidos? Teriam
reerguido o caixão e arranjado novos tecidos e novas coroas. Se
tivesses posto a mão no caixão daquele bom homem diante dos
olhos de Sintram e jurado viver para ajudar a gente pobre que ele
queria destruir, então eu teria motivo para apreciar o teu gesto. Se
ao veres as pessoas na igreja tivesses pensado: “Eu quero ajudar
essa gente, quero empregar todas as minhas forças para ajudar
essa gente”, em vez de colocares esse fardo sobre os ombros da
tua esposa e de velhos com forças minguantes, eu teria igualmente
motivo para apreciar o teu gesto.
Gösta Berling manteve-se calado por um tempo.
– Nós, cavalheiros, não somos homens livres – ele disse, por fim.
– Prometemos uns aos outros viver pela alegria e somente pela
alegria. Ai de nós todos se um de nós fracassar!
– Ai de ti – disse a condessa, indignada –, o mais covarde dentre
todos os cavalheiros e também o que mais tarda a se tornar uma
pessoa melhor! Ontem à tarde todos os onze estavam sentados na
ala dos cavalheiros com semblantes tristes. Havias desaparecido, o
capitão Lennart havia desaparecido, o esplendor e a honra de
Ekeby haviam desaparecido. Nenhum tocou a bandeja onde estava
o uísque quente com especiarias, e nenhum se apresentou diante
de mim. Por fim a srta. Anna Lisa, que está aqui, foi procurá-los. Ela
é uma mulher trabalhadora, que por anos vem lutando
implacavelmente contra a indolência e o desleixo.
“‘Hoje estive novamente em casa, procurando o dinheiro do meu
querido pai’, ela disse aos cavalheiros, ‘mas não encontrei nada.
Todas as promissórias estão riscadas, e as gavetas e os armários
estão todos vazios’.
“‘É uma pena, srta. Anna Lisa’, sentenciou Beerencreutz.
“‘Quando foi embora de Ekeby’, continuou a filha do pastor de
Broby, ‘a senhora pediu que eu cuidasse de sua casa. Se agora
encontrasse o dinheiro do meu querido pai, eu trataria de reconstruir
Ekeby. Mas, como não encontrei nada que pudesse trazer para
casa, eu trouxe o monte da vergonha do meu querido pai, uma vez
que uma grande vergonha há de se abater sobre mim quando a
minha patroa retornar e perguntar o que fiz com Ekeby’.
“‘Não se preocupe tanto com uma coisa que não foi sua culpa,
srta. Anna Lisa!’, Beerencreutz retrucou.
“‘Mas eu não trouxe o monte da vergonha só para mim’, disse a
filha do pastor de Broby. ‘Eu também o trouxe para os bons
cavalheiros. Por favor, meus senhores! Meu querido pai não foi o
único a provocar vergonha e estragos neste mundo.’
“E então Anna Lisa aproximou-se dos cavalheiros, um por vez, e
largou gravetos secos aos pés de cada um. Uns praguejaram,
enquanto outros deixaram que continuasse. Por último,
Beerencreutz disse, com a voz de um importante senhor:
“‘Muito bem. Obrigado. Mas agora a senhorita pode se retirar.’
“Quando ela foi embora, Beerencreutz deu um murro tão forte na
mesa que os copos chegaram a saltar.
“‘A partir de agora’, disse, ‘sobriedade absoluta! A aguardente
não há de fazer com que esse tipo de coisa suceda mais uma vez a
mim’. Depois se levantou e saiu.
“Logo todos os homens seguiram-no. Sabes para onde foram,
Gösta? Sim, até o rio, até o promontório, onde antes se erguiam o
moinho e a forja de Ekeby, e então se puseram a trabalhar.
Começaram a arrastar troncos e pedras e a dar um jeito no lugar.
Os velhos tiveram um momento difícil. A tristeza tomou conta de
muitos. Já não podiam suportar a desonra de haver destruído
Ekeby. Bem sei que vós, cavalheiros, evitais o trabalho, porém
agora os outros assumiram essa vergonha. E além disso, Gösta,
pretendem mandar a srta. Anna Lisa até a senhora de Ekeby a fim
de buscá-la. E tu? O que fazes tu?”
Gösta ainda conseguiu encontrar uma resposta.
– O que exiges de mim, um pastor destituído? Sou rejeitado
pelos homens e odioso aos olhos de Deus.
– Eu também estive hoje na igreja de Broby, Gösta. Trago para ti
os cumprimentos de duas mulheres. “Diz a Gösta”, disse Marianne
Sinclaire, “que mulher nenhuma se envergonha do homem que
amou!” “Diz a Gösta”, disse Anna Stjärnhök, “que agora estou bem!
Trato de cuidar das minhas propriedades. As pessoas falam que
logo hei de ser como a senhora de Ekeby. Não penso no amor;
somente em trabalho. E também em Berga as pessoas venceram a
amargura inicial da tristeza. Mas todos estamos de luto por Gösta.
Acreditamos nele e oramos a Deus por ele. Mas quando, quando há
de tornar-se homem?”
“Então és rejeitado pelos homens?”, prosseguiu a condessa.
“Tiveste amor demasiado; essa foi tua desgraça. Mulheres e
homens amaram-te. Bastava que risses e brincasses, bastava que
cantasses e jogasses, e as pessoas dispunham-se a tudo perdoar.
O que te aprazia fazer era ao mesmo tempo o bem de todos. E
agora ousas dizer-te rejeitado! E serás mesmo odioso aos olhos de
Deus? Por que não acompanhaste o cortejo do capitão Lennart?
“Como ele morreu em um dia de mercado, sua fama chegou a
lugares distantes. Depois do culto, milhares de pessoas
compareceram à igreja. O cemitério, o muro e os campos ao redor
estavam repletos de gente. O cortejo fúnebre organizou-se em
frente à assembleia paroquial. Faltava apenas o velho preboste. Ele
estava doente e não fizera a pregação. Mas havia prometido
comparecer ao enterro do capitão Lennart. E por fim chegou,
andando com a cabeça baixa e sonhando acordado, como sói fazer
agora na velhice, e postou-se à frente do cortejo. Não havia nada de
estranho na maneira como se portava. O velho já havia participado
de muitos cortejos fúnebres. Avançou pelo caminho familiar sem
olhar para cima. Fez as orações e jogou terra no tampo do caixão e
não percebeu muita coisa. Mas por fim o sineiro começou a entoar
um cântico. Eu jamais acreditaria que aquela voz rústica, que em
geral costumava entoar os cânticos sozinha, pudesse despertar o
preboste dos sonhos em que se encontrava.
“Mas o sineiro não se pôs a cantar sozinho. Centenas e centenas
de outras vozes juntaram-se à sua. Homens, mulheres e crianças
cantavam. E então o preboste despertou daquelas ruminações.
Passou os dedos por cima dos olhos e subiu no monte de terra para
ver. Jamais havia visto um grupo tão numeroso de luto. Os homens
usavam chapéus de enterro velhos e puídos. As mulheres usavam
aventais brancos com dobras largas. Todos cantavam, todos tinham
lágrimas nos olhos, todos estavam de luto.
“E por fim o velho preboste começou a tremer e a angustiar-se. O
que diria para aquelas pessoas enlutadas? Era preciso que lhes
oferecesse uma palavra de consolo.
“Quando a canção silenciou, o preboste estendeu os braços em
direção às pessoas.
“‘Vejo que o povo está de luto’, disse, ‘e a tristeza é mais pesada
para aqueles que por um bom tempo ainda devem galgar os
caminhos da terra do que para mim, que logo hei de ser levado
daqui’.
“A seguir calou-se, aterrorizado. A voz estava demasiado fraca, e
ele hesitava ao escolher as palavras.
“Logo, porém, recomeçou. A voz havia recobrado o vigor da
juventude, e os olhos reluziam.
“Ele fez um belo sermão para nós, Gösta. Primeiro contou-nos
tudo o que sabia a respeito do andarilho de Deus. Depois lembrou-
nos de que não havia sido o brilho externo ou um talento especial o
responsável por fazer daquele homem uma pessoa tão honrada
como era naquele momento, mas tão somente o fato de que havia
trilhado os caminhos de Deus. E então pediu a nós, em nome de
Deus e de Cristo, que nos portássemos da mesma forma. Todos
deviam amar o próximo e oferecer-lhe ajuda. Todos deviam pensar
bem uns dos outros. Todos deviam agir como o bom capitão
Lennart, pois para tanto não é preciso nenhum dom especial,
apenas uma disposição piedosa. E depois o preboste interpretou
para nós tudo o que tinha acontecido este ano. Disse que era uma
preparação para a época do amor e da felicidade, que sem dúvida
estava prestes a chegar. Ele já tinha visto a bondade humana se
manifestar como raios esparsos. Mas logo haveria de se revelar por
inteiro, como um sol reluzente.
“E para nós todos foi como se tivéssemos ouvido um profeta
falar. Todos queriam amar uns aos outros, todos queriam ser bons.
“O preboste ergueu o rosto e as mãos e fez com que a paz se
derramasse por toda aquela terra. ‘Em nome de Deus’, ele disse,
‘que cesse a intranquilidade! Que a paz habite vossos corações e
toda a natureza! Que as coisas mortas e os animais e as plantas
conheçam a tranquilidade e parem de causar danos!’.
“E foi como se a mais santa paz descesse sobre a região. Foi
como se as alturas tivessem se iluminado, e os vales sorrido, e a
névoa do outono trajasse um manto rosado.
“Depois ele clamou por alguém disposto a ajudar o povo.
‘Alguém há de vir’, disse. ‘Não é a vontade de Deus que
desapareçais agora. Deus há de fazer despertar alguém capaz de
saciar-vos a fome e levar-vos por seus caminhos.’
“E nessa hora todos pensaram em ti, Gösta. Todos sabíamos que
o preboste falava a respeito de ti. As pessoas que haviam escutado
a tua confissão foram para casa falando a respeito de ti. E enquanto
isso andavas pela floresta, disposto a morrer! As pessoas estão à
tua espera, Gösta. Nas casas ao redor, as pessoas estão sentadas,
conversando sobre o dia em que o pastor louco de Ekeby há de
retornar e ajudá-las para que tudo fique bem. Tu és o herói daquela
gente, Gösta. És o herói de toda a gente.
“Ora, Gösta, é certo que o velho falou a respeito de ti, e espero
que agora isso possa convencer-te a viver. E eu, Gösta, que sou tua
esposa, eu digo que deves simplesmente afastar-te daqui e cumprir
com o teu dever. Não imagines ser um emissário de Deus. Todos
podem desempenhar esse papel, como bem entendes. Hás de
trabalhar sem façanhas heroicas, não hás de brilhar e surpreender,
e hás de cuidar para que teu nome não soe com muita frequência
nos lábios das pessoas. Pensa bem antes de retirares a palavra que
empenhaste com Sintram! Recebeste agora como que o direito a
morrer, e a vida não deve oferecer-te muita alegria de agora em
diante. Outrora eu tinha o desejo de voltar para o sul, Gösta. Como
eu me sentia culpada, parecia felicidade demais ser tua esposa e
poder seguir-te vida afora. Mas agora eu vou ficar. Se ousares viver,
hei de permanecer aqui. Mas não esperes nenhuma alegria! Hei de
obrigar-te a galgar um caminho cheio de grandes responsabilidades.
Jamais esperes de mim palavras de alegria e esperança! Toda a
tristeza e toda a desgraça que nós dois causamos vão ser as
sentinelas de nosso lar. Será que um coração que sofreu tanto
quanto o meu pode amar ainda mais? Sem lágrimas e sem alegria
hei de andar ao teu lado. Pensa bem, Gösta, antes de optar por
viver! O caminho que vamos trilhar é o da penitência.”
A condessa não esperou pela resposta. Simplesmente acenou
para a filha do pastor de Broby e foi-se embora. Quando chegou à
floresta, começou a chorar amargamente, e assim seguiu até Ekeby.
Ao chegar, notou que havia esquecido de falar sobre assuntos mais
agradáveis do que a guerra com Jan Hök, o soldado.
Na pequena propriedade na floresta, tudo ficara em paz e
silêncio durante sua ausência.
– Louvado seja o senhor Deus! – exclamou de repente o velho
soldado.
Todos o encararam. Havia se levantado e olhava avidamente ao
redor.
– Maldade, tudo tem sido maldade – disse. – Tudo o que vi
desde que abri os meus olhos foi maldade.
“Homens maus, mulheres más! Ódio e ira nas florestas e nos
campos! Mas ela é boa. Uma pessoa boa esteve na minha casa.
Quando eu estiver aqui sozinho, hei de me lembrar dela. Ela há de
me acompanhar pela estrada da floresta.”
O soldado se debruçou por cima de Gösta, soltou a corda e o
ergueu. Depois tomou-lhe a mão com um gesto solene.
– Odioso aos olhos de Deus – ele disse, fazendo um gesto
afirmativo com a cabeça. – Essa é a questão. Mas agora não mais!
E tampouco eu, posto que essa mulher esteve em minha casa. Ela é
boa.
No dia seguinte, o velho Jan Hök procurou o comissário
Scharling.
– Quero pegar a minha cruz – ele disse. – Fui um homem mau, e
por isso tive filhos maus.
E pediu que fosse mandado para a prisão no lugar do filho, mas
o pedido não pôde ser atendido.
A melhor dentre todas as velhas histórias é aquela sobre a
maneira como Jan Hök acompanhou o filho, andando ao lado da
carroça de prisioneiros e dormindo em frente à prisão, sem jamais
abandoná-lo enquanto cumpria a pena. Um dia essa história
também há de encontrar quem a conte.
NOS DIAS QUE ANTECEDERAM O NATAL A SENHORA fez uma viagem até
a região de Lövsjö, mas chegou a Ekeby somente na própria
véspera. Esteve doente ao longo de toda a viagem. Teve febre alta e
pneumonia, mas apesar disso ninguém jamais a vira tão alegre ou
dela ouvira tantas palavras amistosas.
A filha do pastor de Broby, que havia passado uma temporada
com a senhora na fundição de Älvdalsskogarna desde o mês de
outubro, vinha sentada a seu lado no trenó e de bom grado teria
apressado a viagem, embora não pudesse impedir a senhora de
parar os cavalos e chamar cada andarilho que encontrava para junto
do trenó a fim de perguntar sobre as últimas notícias.
– Como vão as coisas aqui em Lövsjö? – perguntou a senhora.
– Vamos bem – veio a resposta. – Tempos melhores estão por
vir. O pastor louco de Ekeby e a esposa estão nos ajudando a todos.
– Estamos vivendo bons tempos – disse outro. – Sintram foi-se
embora. Os cavalheiros de Ekeby estão trabalhando. O dinheiro do
pastor de Broby foi encontrado no campanário. É tanto dinheiro que
a honra e o poder de Ekeby podem agora ser restaurados. E além
disso também serve para dar pão aos famintos.
– Nosso velho preboste despertou mais uma vez para a vida com
forças renovadas – disse um terceiro. – Todos os domingos ele fala
conosco sobre a chegada do reino de Deus. Quem haveria de
pecar? O reino dos bons se aproxima.
Então a senhora continuou a viagem, devagar, perguntando a
todos os que encontrava:
– Como vão as coisas? Não falta nada por aqui?
E o calor da febre e a dor no peito se acalmavam quando lhe
respondiam:
– Aqui vivem duas mulheres boas e ricas, Marianne Sinclaire e
Anna Stjärnhök. As duas ajudam Gösta Berling a ir de casa em casa
para garantir que ninguém passe fome. E hoje em dia ninguém joga
os grãos no alambique.
Foi como se a senhora de Ekeby houvesse celebrado um longo
culto no trenó. Havia chegado a uma terra santa. Viu rostos velhos e
marcados tornarem-se límpidos ao falar sobre os novos tempos que
haviam chegado. Os doentes esqueciam o sofrimento para elogiar
aquele dia de alegria.
– Todos queremos ser como o bom capitão Lennart – diziam as
pessoas. – Todos queremos ser bons. Todos queremos acreditar no
bem. Não queremos causar mal a ninguém. E assim havemos de
antecipar a chegada do reino de Deus.
A senhora descobriu que todos estavam tomados pelo mesmo
espírito. Nas casas senhoriais, refeições gratuitas eram servidas aos
mais necessitados. Quem tinha trabalho a fazer tratava de fazê-lo, e
em todas as fundições da senhora havia uma intensa atividade.
Jamais havia se sentido mais disposta do que naquele momento,
enquanto estava lá sentada com o vento frio a soprar-lhe no peito
dolorido. Não conseguia passar por nenhuma propriedade sem fazer
uma parada a fim de perguntar.
– Agora tudo está bem – diziam os criados. – Havia por aqui uma
grande penúria, mas os bons senhores de Ekeby estenderam-nos a
mão. A senhora há de se admirar com tudo o que foi feito por aqui.
O moinho está quase pronto, a forja encontra-se em pleno
funcionamento e a casa queimada foi toda reconstruída até a
cumeeira.
Foram a necessidade e os acontecimentos comoventes que os
transformaram a todos. Ah, aquilo não havia de durar muito tempo!
Mas assim mesmo era bom voltar a uma terra onde uns ajudavam
os outros e todos se esforçavam por fazer o bem. A senhora
descobriu-se capaz de perdoar aos cavalheiros, e por isso
agradeceu a Deus.
– Anna Lisa – disse –, eu, que sou velha, estou aqui imaginando
que já me encontro no céu dos bem-aventurados.
Quando por fim chegou a Ekeby e os cavalheiros vieram às
pressas ajudá-la a sair do trenó, mal a reconheceram, pois estava
tão alegre e tão bondosa quanto a jovem condessa. Os mais velhos,
que a tinham visto ainda moça, sussurravam uns para os outros:
– Quem voltou não é a senhora de Ekeby, é Margareta Celsing!
Grande foi a alegria dos cavalheiros ao vê-la tão bondosa e tão
livre de todos os pensamentos de vingança, porém esta deu lugar à
tristeza assim que descobriram o quanto a senhora estava doente.
Foi preciso levá-la às pressas até o quarto de visitas, na ala do
estúdio, e colocá-la na cama. Mas no patamar da porta ela se virou
e dirigiu-se aos cavalheiros.
– Foi a tempestade de Deus – ela disse. – Foi a tempestade de
Deus. Hoje eu sei que tudo aconteceu por um bem maior.
E com essas palavras a porta do quarto para onde levaram a
doente foi cerrada, e os cavalheiros não mais a viram.
Mas há muito a se dizer para os moribundos. As palavras custam
a sair da língua quando sabemos que no cômodo ao lado encontra-
se alguém cujos ouvidos logo hão de fechar-se para sempre. “Ah,
meu amigo, meu amigo”, temos vontade de dizer, “será que podes
me perdoar? Acreditas que eu sempre te amei, apesar de tudo?
Como pude causar-te uma tristeza tão profunda enquanto
caminhávamos juntos por aqui? Ah, meu amigo, obrigado pela
alegria que me concedeste!”.
Eis o que temos vontade de dizer, bem como muitas, muitas
outras coisas.
Mas a senhora tinha uma febre abrasadora, e as vozes dos
cavalheiros não conseguiam alcançá-la. Será que jamais haveria de
saber que tinham trabalhado, assumido a obra da antiga senhora e
por fim salvado a honra e o esplendor de Ekeby? Será que jamais
haveria de saber essas coisas?
Logo depois os cavalheiros foram até a forja. Todo o trabalho por
lá estava parado, mas os homens jogaram carvão novo e gusa nova
na fornalha a fim de preparar uma fundição. Não chamaram os
ferreiros, que passavam o Natal em casa, mas trabalharam
pessoalmente na fornalha. Se pelo menos a senhora vivesse até
que o martinete tornasse a soar, este trataria de dizer-lhe o quanto
era necessário.
A tarde chegou, e logo a noite caiu sobre o trabalho. A muitos
dos homens pareceu estranho que mais uma vez fossem celebrar o
Natal na forja.
O experiente Kevenhüller, que fora o construtor da forja e do
moinho naquela época tão inesperada, e Kristian Bergh, o possante
capitão, mantinham-se perto da fornalha e cuidavam do metal
fundido. Gösta e Julius transportavam o carvão. Quanto aos outros
homens, uns se encontravam sentados na bigorna, sob o martinete
erguido, enquanto os demais haviam se acomodado em carrinhos
de carvão ou em pilhas de gusa. Löwenborg, o velho místico,
conversava com o tio Eberhard, o filósofo, que se encontrava
sentado a seu lado, em cima da bigorna.
– Hoje à noite Sintram morre – disse.
– Por que justo hoje à noite? – perguntou Eberhard.
– Bem sabe o meu camarada que no ano passado fizemos uma
aposta. Não fizemos nada que não fosse adequado à nossa
condição de cavalheiros, e assim ele perdeu.
– Mas, se o camarada acredita mesmo nisso, sabe também que
fizemos muitas coisas indignas de um cavalheiro. Em primeiro lugar,
não ajudamos a senhora; em segundo lugar, começamos a
trabalhar; e, em terceiro lugar, não parece certo que Gösta Berling
não tenha se matado quando fez essa promessa.
– Eu pensei em tudo isso – respondeu Löwenborg –, mas
acredito que o camarada não tenha entendido a questão de maneira
adequada. Fomos proibidos de agir em nome de vantagens próprias
e mesquinhas, mas não de agir movidos pelo amor, pela honra ou
pela eterna bem-aventurança. Acredito que Sintram tenha perdido.
– Pode ser que o camarada tenha razão.
– Eu sei que estou certo. Ouvi sinetas a tarde inteira, porém não
eram sinetas de verdade. Logo ele vai estar aqui.
E aquele pequeno velho manteve-se sentado, observando a
porta da forja, que estava aberta, e o pedaço de céu azul pouco
estrelado que se via mais ao fundo.
Em seguida ele se levantou.
– O camarada agora vê? – ele perguntou, em um sussurro. – Lá
está ele, chegando de fininho. O camarada não o vê na porta?
– Nada vejo – respondeu o tio Eberhard. – O camarada deve
estar demasiado sonolento.
– Eu o vi nitidamente sob o céu claro. Estava usando a longa
pele de lobo e a touca de pele. Mas agora se encontra em meio à
escuridão, e já não o vejo. Lá! Está perto da fornalha! Está ao lado
de Kristian Bergh, mas claro que Kristian não o vê. Inclina-se para a
frente e joga alguma coisa no fogo. Ah, que aspecto terrível! Tomem
cuidado, meus amigos, tomem cuidado!
Assim que Löwenborg terminou de falar, uma labareda ergueu-se
da fornalha e cobriu os ferreiros e ajudantes de chispas e escória.
Mas ninguém se machucou.
– Ele quer vingança – sussurrou Löwenborg.
– O camarada perdeu a razão! – exclamou Eberhard. – Achei
que já havia se fartado disso.
– Podemos imaginar e desejar coisas, mas de pouco ajuda. O
camarada não vê que Sintram está ao lado do poste, rindo de nós?
Não acredito! Está tentando soltar o martinete!
Löwenborg se levantou e puxou Eberhard consigo. No instante
seguinte, o martinete estrugiu contra a bigorna. Fora apenas uma
trava que havia se soltado, mas Eberhard e Löwenborg tinham
escapado por muito pouco da morte.
– Veja, camarada! Ninguém tem poder sobre nós! – disse
Löwenborg, em tom triunfante. – Mas parece que ele deseja
vingança.
E então Löwenborg chamou Gösta Berling.
– Gösta, vai cuidar das mulheres! Pode ser que ele também se
revele para elas. Elas não estão acostumadas a ver esse tipo de
coisa. E podem se assustar. Quanto a ti, Gösta, toma cuidado,
porque ele tem muito rancor de ti, e pode ser que detenha também
certo poder em função daquela promessa. Pode ser.
Mais tarde chegou a notícia de que Löwenborg estava certo, e
Sintram havia morrido na noite de Natal. Uns diziam que havia se
enforcado na prisão. Outros acreditavam que os servidores da
justiça haviam secretamente permitido que o matassem, posto que o
julgamento parecia favorável a ele, e seria inaceitável permitir que
um homem daqueles investisse mais uma vez contra as pessoas de
Lövsjö. E havia outros que acreditavam que um senhor de pele
escura havia chegado em uma carruagem negra, puxada por
cavalos negros, para levá-lo embora da prisão. E Löwenborg não foi
o único a vê-lo durante a noite de Natal. Também foi visto em Fors e
nos sonhos de Ulrika Dillner. Muitos contaram que Sintram havia se
revelado para eles, até que por fim Ulrika Dillner levou o cadáver
para o cemitério de Bro. Ela também fez com que os maus
servidores fossem afastados de Fors e estabeleceu uma gestão
mais justa. Desde então o fantasma desapareceu.
Conta-se que antes que Gösta Berling fosse à propriedade um
forasteiro dirigiu-se à ala do estúdio e lá deixou uma carta para a
senhora. Ninguém conhecia o mensageiro, mas a carta foi levada
para dentro e posta na mesa ao lado da doente. Logo depois a
senhora teve uma melhora repentina; a febre passou, as dores
cessaram e ela mais uma vez teve condições de ler a missiva.
Os velhos quiseram acreditar que aquela melhora era o resultado
da influência de forças das trevas. Sintram e seus amigos poderiam
tirar proveito de que a senhora de Ekeby lesse aquela missiva.
Tratava-se de um documento escrito com sangue em um papel
negro. Os cavalheiros sem dúvida o teriam reconhecido. Fora
assinado na noite de Natal do ano anterior, na forja de Ekeby.
E naquele momento, deitada, a senhora lia e descobria que, por
ter agido como uma bruxa e consignado a alma dos cavalheiros ao
inferno, estava condenada a perder Ekeby. Esse foi o tipo de
desvario que teve a oportunidade de ler naquela ocasião. Ela
examinou a data e a assinatura e descobriu a seguinte anotação ao
lado do nome de Gösta: “Considerando que a senhora de Ekeby
aproveitou-se de minha fraqueza a fim de me afastar do trabalho
honrado e manter-me em Ekeby como um cavalheiro, e
considerando que me transformou no assassino de Ebba Dohna ao
revelar-lhe que eu era um pastor destituído, subscrevo o presente
documento”.
A senhora dobrou cuidadosamente o papel e colocou-o de volta
no envelope. Depois fez silêncio e pensou sobre aquilo que havia
descoberto. Tomada por uma profunda amargura, percebeu que
aquela era a ideia que as pessoas faziam dela. Não passava de
uma bruxa e de uma feiticeira para todos aqueles a quem havia
servido, a quem havia oferecido trabalho e pão. Aquela era a
recompensa que recebia ao final – e aquele havia de ser o legado
que deixava. As pessoas comuns seriam incapazes de pensar de
outra forma a respeito de uma adúltera.
Mas o que esperar daqueles simplórios? Tinham vivido longe
dela. Mas aqueles pobres cavalheiros, que tinham vivido graças à
misericórdia da senhora e conheciam-na bem, mesmo aqueles
pobres cavalheiros acreditaram ou fingiram acreditar na história para
arranjar um pretexto que lhes permitisse tomar Ekeby para si. Os
pensamentos da senhora corriam a uma velocidade extraordinária.
Uma ira e uma profunda sede de vingança abrasaram-lhe o cérebro
febril. Ela pediu à filha do pastor de Broby, que a velava junto com a
condessa Elisabet, que mandasse uma mensagem a Högfors
solicitando a presença do encarregado e do inspetor. Desejava fazer
o testamento.
Mais uma vez a senhora pôs-se a pensar. Tinha as sobrancelhas
franzidas, e o semblante contorcia-se de maneira terrível por causa
do sofrimento.
– A senhora está muito doente – disse a condessa, com a voz
mansa.
– De fato estou mais doente do que jamais estive.
Fez-se novamente silêncio, mas logo a senhora tornou a falar
com uma voz dura e austera:
– É estranho pensar que mesmo a senhora, condessa, mesmo a
senhora, a quem todos amam, há de ser também uma adúltera.
A jovem condessa sobressaltou-se.
– Se não em atos, pelo menos em pensamentos e desejos, e
entre essas coisas não há diferença. Eu, que estou aqui deitada,
bem sei que não há diferença.
– Eu sei.
– E no entanto a senhora é feliz. A senhora pode desfrutar do
amado sem nenhum pecado. Nenhum espectro sombrio há de surgir
entre vocês dois quando se encontrarem. Vocês têm o direito de
pertencer um ao outro perante o mundo, de amar um ao outro à luz
do dia, de andar lado a lado pela vida afora.
– Ah, senhora, senhora!
– Como foi que a senhora atreveu-se a permanecer ao lado
dele? – exclamou a velha, com uma rispidez cada vez maior. –
Arrependa-se, arrependa-se enquanto é tempo! Volte para casa,
para a companhia do seu pai e da sua mãe, antes que venham
amaldiçoá-la! Acaso a senhora ousa considerar Gösta Berling seu
marido? Fuja para longe desse homem! Vou deixar-lhe Ekeby de
herança. Vou deixar-lhe o poder e o esplendor de herança. Acaso a
senhora ousa compartilhar isso tudo com ele? Acaso a senhora
ousa aceitar a felicidade e a honra? Eu ousei. Lembra-se de como
tudo aconteceu para mim? Lembra-se da ceia de Natal em Ekeby?
Lembra-se da prisão na propriedade do comissário?
– Ah, senhora! Nós, pecadoras, andamos lado a lado, sem
jamais conhecer a felicidade. Estou aqui para cuidar de que
felicidade nenhuma se instale aqui em nosso lar. Pensa que não
anseio por voltar para casa, senhora? Ah, pois anseio com
amargura por retornar ao apoio e à proteção do lar, porém nunca
mais vou desfrutá-lo. Hei de morar aqui com temor e tremor,
sabendo que tudo o que eu fizer há de resultar em pecado e
tristeza, sabendo que a cada pessoa a quem ajudar eu vou estar
derrubando outra. Demasiado fraca e insensata para a vida, porém
assim mesmo obrigada a viver, presa a uma penitência eterna.
– É com esses pensamentos que enganamos nossos corações!
– bradou a senhora. – Mas tudo isso é fraqueza. A senhora não
quer se afastar dele; eis o verdadeiro motivo.
Antes que a condessa pudesse responder, Gösta Berling entrou
no recinto.
– Gösta, vem cá! – a senhora disse no mesmo instante, com a
voz ainda mais dura e mais estridente. – Vem, tu que és admirado
por todos em Lövsjö! Vem, tu que vais ter um legado como salvador
do povo! Agora hás de ouvir o que aconteceu à tua velha senhora, a
quem deixaste vagar província afora, entregue ao desprezo e ao
abandono.
“Primeiramente quero dizer-te o que aconteceu na primavera
passada, quando cheguei à casa da minha mãe, pois tens de
conhecer o fim dessa história.
“No mês de maio, cheguei caminhando à fundição em
Älvdalsskogarna, Gösta. Naquele instante eu parecia pouco mais do
que uma velha mendiga. Quando cheguei, disseram-me que a
minha mãe estava na leiteria. Segui para lá e passei um bom tempo
em silêncio junto da porta. Ao meu redor havia longas prateleiras
com panelas de cobre cheias de leite. E a minha mãe, que tinha
mais de 90 anos, pegava as panelas uma a uma para separar a
nata. Apesar da idade, ela ainda era rápida, mas eu bem notei o
quanto lhe custava endireitar as costas para alcançar as panelas.
Eu não sabia se ela tinha me visto, mas logo ela dirigiu-se a mim
com uma voz estranhamente aguda.
“‘Então tudo aconteceu da maneira como eu desejava!’, disse. Eu
queria falar-lhe e pedir que me perdoasse, mas não havia como. Ela
não ouvia uma palavra do que eu dizia. Estava surda como uma
porta. Mas logo tornou a falar: ‘Podes vir me ajudar’, disse.
“Eu me aproximei e comecei a desnatar o leite. Peguei as
panelas, uma após a outra, e guardei-as todas no lugar, tomando
cuidado no manuseio da escumadeira, e ela se mostrou satisfeita.
Minha mãe jamais havia confiado a tarefa de desnatar o leite a uma
criada, mas naturalmente eu sabia como ela gostava que aquilo
fosse feito.
“‘Agora já podes assumir este trabalho’, ela disse. Assim eu
soube que havia me perdoado.
“E já no instante seguinte ela parecia incapaz de trabalhar.
Passava a maior parte dos dias cochilando na cadeira. Ela morreu
poucas semanas antes do Natal. Eu queria muito ter vindo antes,
Gösta, mas não podia abandonar minha velha mãe.”
A senhora calou-se. Começou a sentir dificuldade para respirar,
mas assim mesmo se recompôs e continuou a falar:
– É verdade, Gösta, que gostava de ter-te comigo aqui em
Ekeby. Contigo é assim; todos se alegram de estar em tua
companhia. Se fosses um homem constante, terias recebido de mim
um grande poder. Minha esperança sempre foi que encontrasses
uma boa esposa. Primeiro achei que seria Marianne Sinclaire, pois
eu via que ela te amava já quando vivias na floresta como lenhador.
Depois achei que seria Ebba Dohna, e um dia, quando fui a Borg
fazer uma visita, disse-lhe que eu havia de deixar Ekeby como
herança para ti se a tomasses por esposa. Se procedi mal ao agir
dessa forma, peço-te perdão.
Gösta prostrou-se de joelhos ao lado da senhora e pousou a
testa na beira da cama. Soltou um gemido pesado.
– Diz-me, Gösta, como pretendes viver? Como hás de cuidar da
tua esposa? Diz-me! Bem sabes que eu sempre desejei o teu bem.
E Gösta respondeu-lhe com um sorriso, enquanto sentia o peito
quase rasgar-se de tristeza:
– Antigamente, quando eu quis ser um trabalhador aqui em
Ekeby, a senhora me deu uma pequena propriedade com uma casa
para morar, e essa propriedade ainda hoje é minha. No outono eu
deixei tudo em ordem. Löwenborg ajudou-me, e nós dois caiamos o
telhado, colocamos papel de parede e pintamos a casa. Löwenborg
chama o pequeno cômodo interno de “gabinete da condessa”, e ele
andou por muitas propriedades da região à procura de móveis
arrematados nos leilões da casa senhorial. Ele tratou de comprá-los,
e hoje se encontram lá dentro poltronas estofadas e baús com
ferragens reluzentes. Mas no grande cômodo externo repousam o
tear da senhora da casa e o meu torno, minhas ferramentas e toda
sorte de outras coisas, e eu e Löwenborg passamos muitas tardes
juntos falando sobre a minha vida com a condessa naquela cabana.
Minha esposa, porém, só vai saber disso agora. Nosso plano era
contar tudo a ela quando saíssemos de Ekeby.
– Continua, Gösta!
– Löwenborg sempre falava sobre como seria bom ter uma
criada na casa. “No verão esse promontório de bétulas tem uma
beleza abençoada”, costumava dizer, “mas no inverno o lugar é
demasiado solitário para uma esposa jovem. Podes ter uma criada,
Gösta”.
“E eu concordei com ele, mas não sabia de onde tirar dinheiro
para manter uma criada. Um belo dia ele chegou trazendo partituras
e aquela mesa com as teclas pintadas e colocou tudo no interior da
cabana. ‘Então és tu, Löwenborg, quem há de ser minha criada?’,
eu perguntei. Ele respondeu que se faria necessário. Acaso eu
esperava que a jovem condessa fosse preparar comida e carregar
lenha e água? Não, eu não pretendia que fizesse nada disso, pelo
menos não enquanto eu tivesse dois braços capazes de trabalhar.
Mas Löwenborg pensou que seria ainda melhor se fôssemos dois,
para que assim ela pudesse passar o dia bordando no sofá. Não
havia como saber quantos cuidados uma mulher delicada como
aquela haveria de precisar, ele disse.”
– Continua! – disse a senhora. – Ouvir-te alivia os meus
tormentos. Achaste que a tua jovem condessa queria morar numa
cabana?
Gösta percebeu o tom de zombaria, mas assim mesmo
prosseguiu:
– Ah, senhora, eu não me atrevi a pensar uma coisa dessas, mas
seria tão bom se ela quisesse! Daqui são 8 léguas até o médico
mais próximo. Ela, que tem mãos delicadas e coração sensível,
encontraria trabalho suficiente tratando feridas e acalmando febres.
E eu pensei que todos os desvalidos poderiam encontrar essa bela
mulher na cabana. Em meio aos pobres existe muita tristeza que
pode ser aliviada com palavras bondosas e uma disposição
amigável.
– Mas e quanto a ti, Gösta Berling?
– Eu tenho o trabalho no torno e na mesa de marcenaria,
senhora. De agora em diante pretendo viver minha própria vida. Se
minha esposa não quiser me acompanhar, então paciência. Ainda
que me oferecessem todas as riquezas do mundo, não seria o
bastante. Quero viver a minha própria vida. Pretendo ficar aqui
como um homem pobre em meio aos camponeses, ajudando-os da
maneira possível. Essa gente precisa de uma pessoa que saiba
tocar polca nos casamentos e nos festejos de Natal; que saiba
escrever cartas para os filhos que moram longe; e essa pessoa sou
eu. Mas devo continuar pobre, senhora.
– Seria uma vida dura para vocês, Gösta.
– Não, senhora, nada disso; bastaria que estivéssemos um ao
lado do outro. Além dos pobres, os ricos e alegres também
haveriam de procurar-nos. Encontraríamos alegria suficiente em
nossa cabana. Os convidados não se importariam de ver a comida
ser preparada diante de seus olhos nem reclamariam de comer de
dois em dois no mesmo prato.
– E onde está a serventia disso tudo, Gösta? Que fama haverias
de ganhar?
– Grande seria a minha fama, senhora, caso os pobres se
lembrassem de mim por dois ou três anos após a minha morte. A
serventia está em plantar macieiras nos cantos da casa, em ensinar
aos camponeses músicos as melodias dos antigos mestres e em
saber que os filhos desta terra aprenderam boas canções para
cantar floresta adentro.
“Acredite, senhora, eu sou o mesmo Gösta Berling louco de
outrora. Um camponês músico é o máximo que posso tornar-me,
mas assim mesmo é o bastante. Tenho muitos pecados a expiar.
Para mim, chorar e arrepender-me não serve. Quero fazer os
pobres felizes; essa é a minha penitência.”
– Gösta – disse a senhora –, essa é uma vida demasiado
pequena para um homem com as tuas forças. Quero dar-te Ekeby.
– Ah, senhora! – Gösta exclamou, apavorado. – Não faça de mim
um homem rico! Não me imponha um dever como esse! Não me
separe dos pobres.
– Quero dar Ekeby para ti e para os cavalheiros – repetiu a
senhora. – És um homem de virtude, abençoado pelo povo. Digo-te
o mesmo que me disse a minha mãe: “Tens de assumir esse
trabalho”.
– Não, senhora, não podemos aceitar uma coisa dessas. Justo
nós, que cometemos grandes injustiças e provocamos grandes
tristezas!
– Escuta-me. Eu quero dar Ekeby para ti e para os cavalheiros.
A senhora falava com um tom grave e duro, sem a gentileza
habitual. Estava tomada pela angústia.
– Senhora, não ofereça uma tentação como essa aos velhos!
Assim todos haveriam de tornar-se mais uma vez preguiçosos e
beberrões. Deus do céu! Cavalheiros ricos! O que seria de nós?
– Eu quero dar-te Ekeby, Gösta, mas primeiro tens de me
prometer que vais conceder liberdade à tua esposa. Vê bem… uma
mulher delicada como essa não serve para ti. Ela já sofreu o
suficiente na terra dos ursos. E anseia por voltar ao vilarejo natal.
Tens de deixá-la ir. É por isso que eu quero dar-te Ekeby.
Nesse momento a condessa Elisabet aproximou-se da senhora e
ajoelhou-se ao lado da cama.
– Já não anseio mais, senhora. Meu marido resolveu esse
enigma e descobriu uma vida que posso viver. Já não preciso andar
grave e fria ao lado dele, lembrando-o de anseios e penitências. A
pobreza, a necessidade e o trabalho árduo podem cumprir essa
tarefa. Os caminhos que levam aos pobres e doentes hei de trilhar,
livre de todo pecado. Já não temo a vida aqui no norte. Mas não o
transforme em um homem rico, senhora! Neste caso não me atrevo
a ficar.
A senhora levantou-se na cama.
– Vocês exigem toda a felicidade para vocês! – exclamou,
ameaçando-os com os punhos cerrados. – Toda a felicidade e todas
as bênçãos! Não, que Ekeby pertença aos cavalheiros, para que
assim se arruínem! Que o marido e a mulher se separem, para que
assim se arruínem! Sou uma bruxa, uma feiticeira, e hei de incitá-los
à maldade! Hei de tornar-me aquilo que contam a meu respeito!
A senhora de Ekeby pegou a carta e jogou-a no rosto de Gösta.
O papel negro esvoaçou e caiu ao chão. Gösta prontamente o
reconheceu.
– Pecaste contra mim, Gösta. Suspeitaste da mulher que foi para
ti como uma segunda mãe. E agora te negas a receber meu
castigo? Pois vou deixar-te Ekeby, e assim hás de arruinar-te, pois
és fraco. Hás de mandar tua esposa para casa, para que ninguém
consiga salvar-te. E hás de morrer tendo um nome tão odiado
quanto o meu. O legado de Margareta Celsing é o legado de uma
bruxa. O teu há de ser o legado de um esbanjador e de um algoz
dos camponeses.
Logo a senhora voltou a afundar nos travesseiros, e então tudo
ficou em silêncio. Durante esse silêncio ouviu-se uma pancada
abafada, e logo outra. O martinete começara a entoar sua
ribombante canção.
– Ouça! – disse Gösta Berling. – Esse som é o legado de
Margareta Celsing! Esse não é um cortejo de cavalheiros bêbados.
Esse é o hino da vitória do trabalho, entoado para honrar uma
mulher boa que dedicou a vida ao trabalho. Acaso a senhora ouve a
voz do martinete? “Obrigado”, diz, “obrigado pelo bom trabalho,
obrigado pelo pão que deste aos pobres, obrigado pelos caminhos
que abriste, obrigado pelas terras que desbravaste! Obrigado pela
alegria que deixaste reinar em teus salões!” – “Obrigado”, diz essa
voz, “e descansa em paz! Tua obra há de viver e perdurar. Tua
propriedade para sempre há de ser um lugar onde se trabalha com
alegria”. – “Obrigado”, diz a voz, “e não nos julgues, a nós que nos
desviamos do caminho! Tu, que agora começas a viagem rumo aos
campos de paz, lembra com alegria de nós, que ainda vivemos!”
Gösta calou-se, porém o martinete continuou a falar. Todas as
vozes que haviam falado em tom de amizade e doçura com a
senhora de Ekeby misturaram-se ao som do martinete. E aos
poucos a tensão abandonou-lhe as feições. Logo o semblante
relaxou, e foi como se a sombra da morte o toldasse.
A filha do pastor de Broby entrou e avisou que os senhores de
Högfors haviam chegado. A senhora dispensou-os. Não queria fazer
testamento nenhum.
– Ah, Gösta Berling, homem de muitas façanhas – disse ela –, vê
como venceste mais uma vez! Abaixa-te e permite que eu te
abençoe!
A febre voltou com força redobrada. Começaram os estertores
que precedem a morte. O corpo relaxou em meio a um profundo
sofrimento, porém não tardou para que a alma estivesse alheia a
tudo isso. Começou a divisar o céu que se abre para os moribundos.
Uma hora se passou, e o breve embate contra a morte chegou
ao fim. A senhora jazia tão bela e tão tranquila que os presentes
sentiram-se profundamente tocados.
– Minha querida senhora! – exclamou Gösta. – Já a vi assim
outrora! Este é o momento em que Margareta Celsing torna à vida.
Desta vez para jamais se dobrar perante a senhora de Ekeby.

Quando os cavalheiros retornaram da forja, depararam-se com a


notícia da morte da senhora.
– Ela ouviu o martinete? – perguntaram.
Sim, ela ouvira, e assim os cavalheiros puderam dar-se por
satisfeitos.
E mais tarde puderam saber que havia pretendido deixar-lhes
Ekeby de herança, mas que o testamento não chegara a ser feito.
Esse desfecho foi recebido como uma grande honraria, e serviu
como pretexto para que os cavalheiros se gabassem pelo resto da
vida. Mas ninguém jamais os ouviu lamentar as riquezas que
haviam perdido.
Dizem também que naquela noite de Natal Gösta Berling postou-
se ao lado da jovem esposa e fez seu último discurso para os
cavalheiros. Estava devastado com o destino que se abatera sobre
todos, porque afinal precisariam ir embora de Ekeby. Nada mais os
esperava senão as moléstias da velhice. Uma acolhida fria espera o
velho azedo na casa do amigo que o recebe. O pobre cavalheiro
que se vê obrigado a hospedar-se nas propriedades dos
camponeses não conhece dias felizes. Longe dos amigos e das
aventuras, ele definha sozinho.
Foi assim que falou com aqueles homens despreocupados, com
aqueles homens endurecidos contra todas as reviravoltas do
destino. Mais uma vez tratou-os como nobres deuses antigos que
houvessem surgido para trazer alegria à terra do ferro e à época do
ferro. No entanto, lamentou que aquele jardim das delícias, onde a
alegria esvoaça com asas de borboleta, terminasse infestado de
larvas, com os frutos destruídos.
Bem sabia que a alegria era um bem para os filhos da terra e que
precisava existir. Mas, como um pesado enigma, pairava sobre todo
o mundo a questão de como um homem pode ser ao mesmo tempo
alegre e bom. Era a pergunta mais fácil, e ao mesmo tempo a mais
difícil, segundo disse. Até então, os cavalheiros jamais haviam
solucionado o enigma. Mas, naquele momento, Gösta queria
acreditar que haviam aprendido, que haviam todos aprendido com
os anos de alegria e necessidade e desgraça e felicidade.

Ah, senhores cavalheiros, nesta hora também eu sinto o gosto


amargo do adeus. Esta é a última noite que velamos juntos. Já não
hei de ouvir vosso riso matreiro nem vossas canções joviais.
Despeço-me agora de vós e de todas as gentes alegres às margens
do Löven.
Meus velhos queridos! Outrora me destes bons presentes. Para
aquela que vivia em profunda solidão, trouxestes uma primeira
mensagem sobre as exuberantes transformações da vida. Vi
quando travastes formidáveis batalhas dignas do Ragnarök às
margens do lago de minha infância. E o que vos dei eu?
Acaso vos agradaria saber que vossos nomes hão de soar na
companhia das bem-amadas propriedades? Que todo o brilho de
vossas vidas torne a cair sobre a terra onde vivestes! Borg ainda
está de pé, Björne ainda está de pé, Ekeby permanece às margens
do Löven, rodeada por um esplendor de corredeiras e lagos,
parques e prados sorridentes, e, quando as pessoas postam-se nas
varandas largas, as histórias enxameiam como abelhas no verão.
E, por falar em abelhas, permiti-me contar mais uma velha
história! O pequeno Ruster, que foi tamboreiro na vanguarda do
exército sueco que chegou à Alemanha em 1813, jamais se cansava
de contar histórias sobre o maravilhoso país ao sul. As pessoas por
lá eram altas como campanários, as andorinhas eram grandes como
águias, e as abelhas eram como gansos.
– E as colmeias, então?
– As colmeias eram como colmeias normais.
– E como é que as abelhas entravam?
– Tinham de se virar, ora – dizia o pequeno Ruster.
Querido leitor, acaso não devo também eu dizer o mesmo? As
enormes abelhas da fantasia esvoaçaram ao nosso redor por dias e
anos, mas para entrar na colmeia da realidade – ora, para isso têm
mesmo de se virar.
HÁ POUCOS ROMANCISTAS GENIAIS; AS ROMANCISTAS GENIAIS SÃO, com
certeza, ainda mais raras. As grandes poetas, pouco numerosas,
são no entanto suficientes para que se possa com elas formar um
buquê, mas um grande romance pressupõe um olhar livre lançado
sobre a vida que o costume social, até hoje, dificilmente permitiu às
mulheres; supõe também, nos melhores casos, uma abundância de
potencial criativo que as mulheres, ao que parece, raramente
tiveram ou pelo menos puderam manifestar, e que até agora só se
expressou abertamente na maternidade fisiológica. Uma única e
admirável exceção a essa norma: Murasaki Shikibu, certamente
uma das maiores romancistas do mundo, floresceu no Japão do
século XI. Apesar de dois ou três nomes intermediários que
poderíamos citar, mas que, pensando bem, acabam se excluindo,[1]
as outras grandes romancistas situam-se todas no século XIX ou no
século XX. A lista, que cada um de nós poderá refazer conforme lhe
aprouver, comporta no máximo uma dezena de nomes, e ainda
assim alguns deles, como o de George Sand, constam mais pela
personalidade da mulher do que pelo gênio da escritora. É bastante
surpreendente constatar que as anglo-saxãs e, depois delas, as
escandinavas constituem a maioria. Entre essas mulheres de
grande talento ou geniais, nenhuma, a meu ver, situa-se acima de
Selma Lagerlöf. Ela é, de qualquer modo, a única que se alça
constantemente ao nível da epopeia e do mito.
Uma vida aparentemente comum: infância feliz na velha herdade
de Märbacka, onde ela nasceu, em 20 de novembro de 1858, de
uma família de proprietários de terras, funcionários públicos e
pastores. A doença “certa”, uma coxalgia congênita, que se declara
por volta dos 3 anos e faz da menina uma criança sedentária,
mergulhada nos livros, atenta às histórias que os velhos contam à
sua volta. Uma adolescência e uma juventude melancólicas: um
primeiro baile, onde ninguém convida a manca para dançar; um pai
mais quimérico do que prático, que no final se trata com ajuda de
doses de aguardente; a certeza de logo perder a herdade querida;
Selma conseguindo arduamente a permissão para fazer seus
exames de escola normal com vista a uma carreira de professora do
Estado que garantiria, bem precariamente, sua subsistência –
projeto que faz os pais menearem a cabeça, numa época em que as
profissões liberais ainda eram novidade para as mulheres. Alguns
anos sombrios passados em Landskrona, perto de Malmö,
exercendo seu ofício de professora; Märbacka é leiloada, como
seriam em seus romances a fazenda dos Ingmarsson e a do pai de
Marianne Sinclaire; depois de longos esforços para encontrar um
tom e um estilo próprios, a publicação, aos 33 anos, de A saga de
Gösta Berling. A celebridade imediata, e logo a glória, trazendo-lhe
a possibilidade de dedicar-se apenas ao trabalho literário; em 1909,
o prêmio Nobel, que permite a Selma resgatar Märbacka.
De resto, algumas grandes viagens, empreendidas
corajosamente por essa meio inválida; uma amizade longa e
ardente com uma jovem viúva pertencente à sociedade judia de
Göteborg, pessoa muito bonita, doentia, machucada pela vida, que,
não sem talento, também escreve livros. “A companheira de
viagem”, como enigmaticamente dizia Selma, que, quando Sophie
morreu, cerca de vinte anos antes dela, confessará
melancolicamente: “Eu tinha certeza de sua afeição; muitas vezes
ela me fez sofrer e muitas vezes eu a fiz sofrer”. Por outro lado, a
terna fidelidade à família, à mãe, principalmente, e à tia Lovisa,
evocada com tanta simpatia em Märbacka. Uma participação, aliás
moderada, no movimento feminista na época em que ainda era
novidade na Suécia (a jovem Selma é contemporânea da primeira
mulher médica de seu país e da primeira mulher a obter doutorado
em letras). Grandes preocupações de proprietária rural, trazidas
pela retomada de Märbacka; participação no movimento pacifista já
antes de 1914; grandes doações à sua comunidade camponesa e
aos escritores pobres; uma generosidade sem limites durante as
duas guerras, tanto de ordem financeira como pessoal, destinando o
próprio pagamento por artigos, conferências, leituras públicas em
favor de pessoas desalojadas ou que passavam fome e, em
seguida, das populações alemãs ou russas que sofriam os efeitos
do bloqueio ou da inflação, e finalmente da Finlândia no decorrer da
“guerra de inverno”. Tudo indica que a impossibilidade de ajudar
pessoalmente esse país que ela amava foi o golpe de misericórdia
para Selma, envelhecida e cansada. Ela morreu de um ataque de
paralisia[2] em Märbacka, em 16 de março de 1940.
Uma vida é o que se faz dela: esses poucos detalhes, que
encontro na riquíssima biografia de Selma Lagerlöf de autoria de
Elin Wagner[3], trazem-nos ao mesmo tempo tudo e nada. Alguns
outros acrescentam vislumbres: ficamos sabendo que essa mulher,
cujo gênio parece provir inteiramente da tradição popular, lia muito,
e em várias línguas, e que levou muito a sério suas funções de
membro da Academia Sueca e do júri do Nobel. Carlyle influenciara
sua juventude: ao que parece, por efeito de uma singular osmose, o
tom e o estilo de Gösta Berling devem muito ao austero poeta
escocês. Mais tarde, ela leu Swedenborg e nele encontrou uma
confirmação de sua própria segunda visão, que a botava em
sintonia com outros mundos.[4] Exercícios de ioga ajudaram-na a
melhorar seu estado físico e também, sem dúvida, a reforçar sua
surpreendente serenidade, a despeito do choque dos
acontecimentos mundiais, que acabariam por transtornar sua
geração. Não parece que ela tenha avançado muito nesse caminho,
mas trata-se de um método do qual é impossível não sair
enriquecido e mudado para sempre, se for abordado seriamente.
Esse exotismo surpreende, no entanto, da parte da grande
narradora de Värmland: lembramos daquelas figuras minúsculas e
misteriosas sentadas na clássica pose da contemplação, pernas e
mãos cruzadas, que ornamentam alguns bronzes vikings,
imperceptíveis pontos de contato entre o extremo Norte e um
Oriente mais próximo do que se acreditaria. Uma escultora mais
recente da Suécia, Tyra Lundgren (1897-1979), num baixo-relevo
dedicado às mulheres suecas famosas, representou Selma Lagerlöf
no centro, sob a árvore de Boddhi, rodeada pelo brilhante grupo que
inclui ao mesmo tempo Santa Brígida e Cristina da Suécia, Fredrika
Bremer e Ellen Key. A sabedoria de Selma, sua humanidade, sua
tranquila desenvoltura no visível e no invisível merecem esse lugar
de honra.

Já se falou muito, e de modo bastante confuso, de romance-rio:


em Selma Lagerlöf temos uma espécie de epopeia-rio, procedente
das próprias fontes do mito. Nasce entre as correntes e corredeiras
que, em A saga de Gösta Berling, alimentam impetuosamente as
fundições de Ekeby, com seu gorgolejar de neve derretida, suas
espumas de superstições, suas folhas mortas e seus escombros do
século passado misturados à louca alegria da juventude. Esta
primeira obra talvez seja a mais espontânea da grande escritora, um
imenso hino à vida ao mesmo tempo que um canto de revolta
inocente. Em seguida o rio passa por desfiladeiros mais severos: em
Jerusalem 1: Dalarne [Jerusalém 1: Dalarna] reflete as montanhas
escuras e verdes, as florestas açoitadas pelo furacão, os campos
sagrados de tempo imemorial pelo sofrimento humano que Ingmar
Ingmarsson e o velho Mattas se recusam a abandonar, mesmo que
pela Terra Santa. Ele arrasta em sua enchente o tronco de árvore
que atinge no coração o grande Ingmar envelhecido, esforçando-se
para salvar um pequeno grupo de crianças levadas pelas águas. Em
Jerusalem 2: I det heliga landet [Jerusalém 2: Na Terra Santa], o rio
passa subterrâneo sob a aridez do deserto. Em A maravilhosa
viagem de Nils Holgersson pela Suécia ele irriga toda a Suécia, da
Lapônia ao Sund, espelhando o voo triangular dos gansos
selvagens acompanhados pelo velhaco Nils, que, de tanto ver o
mundo, assistir aos trabalhos e aos sofrimentos dos homens,
participar da existência perseguida dos animais, acaba por adquirir a
disposição e a sabedoria necessárias para ajudar seus velhos pais
em sua pobre fazenda. Ampliado às dimensões de um estuário,
misturado às águas do oceano, ele envolve o vasto arquipélago de
ilhas e ilhotas, ora sorridentes, ora sombrias, que são os contos e as
novelas de Selma Lagerlöf, publicados em coletâneas como
Osynliga länkar [Os laços invisíveis], Troll och människor [Trolls e
homens/O mundo dos trolls], Tösen från Stormyrtorpet [A garota de
Stormyrtorpet/A garota do pântano] e outros. Num relato que evoca
a austera Suécia do século XVI, Herr Arnes penningar [O dinheiro
do sr. Arnes/O tesouro], ele cerca com suas ondas geladas a ilha
em que se escondem os assassinos do velho padre. Em Bannlyst [O
exilado] e em Charlotte Löwensköld, obras pesadas, atormentadas,
contestáveis, escritas mais no fim da vida, ele se suja com a
maldade e o insano egoísmo humano; arrasta em seus redemoinhos
os cadáveres da batalha de Jutland. Lambe enfim com suas
ondulações apaziguadas as paisagens em que uma velha senhora
revive ternamente sua infância.
Também os personagens têm envergadura épica. Beberrão,
jogador, devasso, o pastor destituído Gösta queima como chama,
espalhando à sua volta a alegria e a loucura de viver. No entanto,
ele é também o mendigo que trocou por aguardente o saco de
farinha que a menininha faminta lhe confiara para guardar; o ingrato
supersticioso que deixa expulsarem de Ekeby sua protetora porque
a toma por uma feiticeira, ainda que mais tarde venha a acolhê-la
novamente e a velar por ela em seu leito de morte; o desesperado
romântico que sonha em morrer na paz das florestas finlandesas,
sedutor de todas as belas mulheres e amante de nenhuma, até o dia
em que se casará com uma mulher abandonada que precisa de sua
ajuda e terá um fim faustiano de homem útil. Ao lado dele, a
senhora de Ekeby, cachimbo e pragas na boca, ora vestida de
sedas e pérolas recebendo seus convidados de Natal, ora ajudando
a transportar suas cargas de minério através do lago perigoso, é
uma das figuras femininas mais robustas que o romance do século
XIX produziu. Só precisa escolher as cenas inesquecíveis: aquela
em que ela confessa ao jovem transgressor que sua vida fora tão
dura e difícil quanto a de um mendigo e que teria tantas razões
quanto ele, se escutasse a si mesma, para optar pelo suicídio; a
cena em que recebe à mesa sua mãe, que viera censurá-la por sua
má conduta, e as duas mulheres se insultam e continuam a comer
placidamente, ao passo que os convivas, petrificados, já não ousam
falar nem tocar nos talheres; enfim, a cena em que, despojada por
sua vez, chega a pé à casa da mãe quase centenária e a encontra
na leiteria ocupada em desnatar o leite; sem que seja pronunciada
uma palavra, a velha senhora estende à filha pródiga a escumadeira
que até então nunca havia confiado a ninguém, entregando-lhe
assim seu lugar na casa.
Com os dois Jerusalem, o ritmo adapta-se ao passo lento dos
camponeses. Os personagens movem-se com prudência,
preocupados em não alterar nada, nem dos costumes estabelecidos
nem do misterioso acordo entre os espíritos da natureza e o
homem, até que uma crise de fanatismo lança alguns deles nos
caminhos da Terra Santa. A obra começa pelas famosas páginas
em que Ingmar Ingmarsson, andando atrás do arado, imagina
consultar seu pai e seus ancestrais reunidos numa fazenda celeste:
deve ou não se empenhar em ir buscar sua noiva condenada a três
anos de detenção por infanticídio, à saída da prisão? Ingmar sente
que teria sido penoso para Brita celebrar o batismo antes do
casamento, mas os velhos não ignoram que o costume de se
antecipar à cerimônia nupcial reina no campo por toda parte e em
todos os tempos. “É duro para você deparar com uma mulher má”,
diz o pai. “Não, pai, Brita não era má; ela era orgulhosa.” “É a
mesma coisa.” Como se casar, de fato, se o enterro do velho na
primavera ocasionou grandes despesas, se não há dinheiro para
pintar e rebocar a propriedade e propiciar uma refeição de núpcias?
Mas Ingmar, ao ver passar na estrada um pintor de casas com seus
potes de tinta e seus pincéis, acredita ter recebido o conselho que
lhe prometiam seus ancestrais: percorrendo um lento trajeto em que
cada parada é uma etapa de calvário para seu orgulho, vai buscar a
noiva, que protesta, temendo o desprezo que lhe será dispensado
na própria aldeia. É domingo: Ingmar tem a coragem de entrar na
igreja com ela, que é tomada pelo súbito desejo de assistir ao ofício;
as outras mulheres sairão do banco em que ela se senta, perto da
entrada. Mas logo o desprezo se transformará em respeito; os
camponeses reconhecerão naquele homem que soube levar a cabo
sua provação o digno sucessor dos velhos de Ingmarsgard.[5]
Quando nos perguntamos de onde os homens e as mulheres de
Selma Lagerlöf tiram sua força, pensamos primeiramente nos
extremos rigores da austeridade protestante, na qual a própria
autora foi educada. Certa em parte, a resposta no entanto é simples
demais. Esses personagens tão próximos do mundo natural
parecem sobretudo motivados por uma adesão estrita à ordem das
coisas; suas boas resoluções crescem como as árvores ou fluem
como as fontes. É preciso ter em conta, também, a longa herança
humana que abrange não apenas a terna piedade popular de antes
da Reforma (o luteranismo sueco nunca rompeu completamente
com os ritos e as lendas da cristandade medieval), mas também o
legado dos ricos e sombrios “tempos pagãos”. Sob a rigidez
protestante, sua virtude, no antigo sentido da palavra, está ligada
menos à observância de um preceito ou à fé num dogma do que aos
poderes profundos do homem e da raça. Não é apenas
metaforicamente ou no decorrer de um devaneio que Ingmar
Ingmarsson é aconselhado por seus ancestrais. Estamos tão
habituados a, por um lado, desprezar os bons sentimentos,
considerados por tantos de nós como falsidade, e, por outro,
enxergar a grandeza como simples pompa teatral, que é difícil, num
primeiro momento, aceitar essa virtude tão inserida no ser quanto o
grão da madeira do carvalho é interior a ele.
O crítico dinamarquês George Brandès, que “lançou” Selma
Lagerlöf, notou imediatamente em Gösta Berling “a fria pureza” das
cenas de amor. Talvez estivesse enganado: essa frieza queima. Seu
ponto de vista nos indica pelo menos que o naturalismo dos anos
1880-1890 podia entender mal, tanto quanto o pan-erotismo nos
dias atuais, o que constitui o conteúdo passional e sensual de uma
obra. Os personagens de Gösta Berling, é fato, não fazem sexo, ou
pelo menos não sob nossos olhos, e os amores adúlteros da
senhora [de Ekeby] situam-se antes do primeiro capítulo. Mas, como
em toda grande arte austera, é simbolicamente, e não por detalhes
fisiológicos, que se expressa o amor carnal. Mais ainda do que os
beijos dados por Gösta na jovem condessa Dohna, as cantorias
selvagens, a velocidade do trenó, o frio e os fogos da noite evocam
o orgasmo amoroso. Um de seus contos nos mostra um rústico
arrebatando uma troll deitada na floresta, e a orgia das borboletas
pilhando as flores prefigura as emoções do jovem diante da bela
moça nua: lembramos a “jovem giganta” de Baudelaire, mas com
uma inocência primeva adicional. Selma é herdeira da grande
tradição épica, em que as relações sexuais são subentendidas ou
descritas com castidade, sejam quais tenham sido, aliás, as
realidades extremamente cruas da época. A bela Helena é
apresentada por Homero como a digna esposa de Páris; o imenso
gozo conjugal de Zeus e Hera é expresso pela eclosão de flores no
chão que lhes serve de leito. Em Selma Lagerlöf, o casamento, com
suas alegrias e seus tormentos, está situado bem no centro; seus
ritos sensuais permanecem secretos, mas, sob as saias amplas e os
corpetes camponeses de Brita, de Barbro ou de Anna Svärd, sob as
roupas opulentas de senhora provinciana de Charlotte Löwensköld,
não duvidamos de que haja carne.
O símbolo aparece novamente no retrato dos jovens amores de
Gabriel e de Gertrude, nos dois Jerusalem: torna-se a água pura da
fonte subterrânea da qual Gertrude morre por não beber e que, para
buscar, Gabriel arriscaria a vida. Outras vezes, os longos prazeres
dos noivados são alegorizados pelo madeiramento da casa que o
noivo constrói alegremente, pelos lençóis, guardanapos e toalhas
tecidos pela noiva. Amaldiçoado como é por toda sociedade
tradicional, o adultério se enobrece com aristocrática desenvoltura
por parte da senhora, com pungente coragem por parte da jovem
Ebba, de início aterrorizada pela ideia do escândalo, mas decidindo-
se afinal a florir, com conhecimento de todos, a cruz de madeira de
seu filho isolado num canto do cemitério, depois de o marido recusar
ao menino o direito de dormir no túmulo de família[6]. Enfim, a moça
perdida não cai tão baixo nessa sociedade rústica quanto cairia na
época na sociedade burguesa. Brita, como vimos, se reergue
apesar de seu infanticídio; a garota do pântano, que prefere não
perseguir seu sedutor na justiça ao vê-lo fazer um falso juramento,
reconquista seu lugar na estima pública e faz um belo casamento
camponês.
A oposição pagão-cristão situa-se entre nós em nível quase
primário, sendo que o termo pagão supostamente significa a
liberdade sexual, em grande parte imaginária, da Antiguidade, e o
termo cristão com frequência evoca uma religiosidade de pura
rotina, intimamente aliada às convenções e às decências sociais,
mas da qual estão ausentes as grandes virtudes propriamente
cristãs, a caridade, a humildade, a pobreza e o amor de Deus.
Naquele Norte escandinavo, ainda tão próximo de sua era pagã, o
contraste se estabelece de outra maneira. Os elementos pagãos
são percebidos como elementares, no sentido literal da palavra,
presenças terríveis ou benignas, irredutíveis à ordem humana, que
nos rodeiam por todos os lados e com as quais nosso espírito pode
entrar em acordo desde que não tenha perdido a faculdade de ver o
invisível no visível. É assim que a encantadora Maja Lisa encontra
“Neck”, o belo cavalo branco mágico, imemorial gênio das Águas,
que a vê com olhos de enamorado humano.[7] O tomte[8] vela pela
boa manutenção das casas senhoriais e elimina delas os maus
patrões; ele é, assim como os próprios velhos empregados, a
consciência da casa.[9] Os espíritos da floresta avisam o carvoeiro
Stark quando sua carvoaria pega fogo, mas desaparecem para
sempre quando fanáticos cortam a roseira onde o “povo dos
pequenos” vinha se abrigar em sua soleira.[10] O pescador,
cumulado de dons pelas ondinas, se afoga quando seu pastor, para
desenfeitiçá-lo, o faz beber do cálice da comunhão algumas gotas
da água do lago na qual uma interdição mágica o impedia de tocar.
[11] Na vigorosa novela intitulada Bannlyst [O exilado], um dos dois

criminosos obrigados a viver na floresta é um rico camponês cristão,


considerado fora da lei por ter matado um monge; o outro, pagão,
filho de saqueadores, jamais conheceu a vida protegida e os
costumes relativamente consolidados de uma aldeia. O camponês,
reverenciado como um deus pelo adolescente meio selvagem, aos
poucos lhe ensina os preceitos da religião na qual ainda crê, embora
tenha infringido seus mandamentos. Esse progresso moral resulta
paradoxalmente em traição: o jovem denuncia e mata o amigo, cuja
alma ele acredita estar salvando ao obrigá-lo a padecer seu castigo.
A fé cristã e os modos heroicos da vida primitiva destroem-se
mutuamente.
Ao que parece, de acordo com determinados fragmentos de
obras de juventude, a Selma daqueles anos viu no cristianismo uma
fé alta demais e estreita demais para abarcar toda a realidade e, na
cruz, o símbolo de uma salvação que não salva necessariamente
todos os homens. Mais no final, ela ainda dizia não acreditar na
Redenção; por outro lado, encontramos, na margem de um livro que
ela lia na época, uma invocação a Jesus. Essas conjunturas sobre
seu pensamento pessoal importam menos do que a conotação
profundamente cristã de determinados grandes contos impregnados
do fervor, que poderíamos dizer existencial, da pia Idade Média. A
menina que se indignara com o fato de um pastor intolerante jogar
na água os santos pintados de sua igreja de aldeia reagiu diante
desse puritanismo obtuso como diante dos pietistas cortando a
roseira das fadas: ela se dispõe a beber água diretamente de todas
as fontes. A história do rei Olaf Trygvasson, morto por uma
selvagem rainha viking cujos avanços ele recusou, contém uma das
mais puras visões marianas da literatura: Olaf, num sonho
premonitório, vê-se derrotado durante uma batalha naval, deitado
sangrando no fundo do mar; a terna Mãe de Deus avança nas
águas glaucas, que formam à sua volta colunas e arcos de catedral,
ergue-o, apoia-o e caminha lentamente com ele, passando do azul
do mar ao azul do céu.[12] Ainda mais pungente é a história do rei
Olaf Haraldson, enganado por um monarca que lhe enviou como
esposa, em lugar de sua filha legítima, a filha bastarda de uma
escrava. Intensamente tentado a matar, Olaf no entanto poupa a
cúmplice da impostura; sente-se bastante forte para alçar aquela
mulher até ele, em vez de se deixar rebaixar e aviltar por ela. “Teu
rosto resplandece, rei Olaf!” Mas estejamos atentos: Olaf é menos
motivado pela humildade cristã do que por uma certeza íntima que
se eleva do fundo de seu ser. Num plano muito alto, essa diferença
desaparece: não deixa de ser verdade que Olaf Haraldson, tal como
Ingmar Ingmarsson ou Anna Svärd, extrai essa força sobretudo do
mais íntimo de si mesmo.[13]
Em determinados contos cuja simplicidade, até mesmo bonomia,
poderia induzir-nos a erro, introduz-se uma nota dissonante, não de
ironia, como por volta da mesma época em Anatole France, mas de
lúcido amargor, atenuando o que se tomava por ingênuo folclore
cristão. Diante das súplicas de são Pedro, Jesus enviou seu anjo
para buscar no fundo do Inferno a mãe do apóstolo e levá-la ao céu.
Alguns condenados agarram-se às asas e às roupas do anjo, mas a
velha implacável dá um jeito para fazer com que se soltem. Quando
o último dos infelizes recai no abismo, o anjo, como que cansado,
deixa cair também a velha e com um bater de asas sai do precipício
infinito. Levamos conosco nosso inferno: nem mesmo Deus tem o
poder de nos transformar o suficiente para entrarmos no céu.[14]
Em vários relatos, corrente pagã e corrente cristã se
amalgamam. A velha Agneta, em sua cabana à beira de uma
geleira, longe demais das estradas até mesmo para poder dar a um
passante a esmola de um copo de água, sofre com sua vida inútil.
Um monge a aconselha a prestar ajuda aos mortos que rondam pela
montanha, e a partir de então, todas as noites, ela queimará seus
cepos e suas velas para oferecer uma festa de calor e de luz aos
danados que padecem os tormentos do frio do antigo Inferno
escandinavo; nunca mais ela será inútil e só.[15] A velha Béda das
Trevas finlandesas oferece uma merenda às comadres da
vizinhança para celebrar o sol, que, naquele dia, sai vencedor de um
eclipse indicado no calendário da cozinha. Em seu frio povoado
dominado pelo flanco de uma montanha, o sol, é seu melhor amigo;
ela o homenageia como o faria um ancestral do Edda. Mas uma
menção do Senhor ao qual se deve o sol nos remete da ação de
graças pagã ao Cântico das criaturas.[16]
O apogeu desse sincretismo instintivo está em Legenden om
Julrosorna [A lenda da rosa de Natal], conto primoroso, que
seríamos tentados a não ler, pois o excesso de produções tolas para
jornais ilustrados nos enfastiaram dos contos de Natal. É a história
da floresta de Goinge, submersa, pouco antes da meia-noite, no
momento em que os sinos da planície começam a soar a
Natividade, por uma onda de luz e de calor que faz a neve derreter.
A noite quase polar triunfa novamente, mas uma onda mais forte faz
o capim reverdecer e as folhas crescerem; uma terceira traz as aves
migratórias que constroem seus ninhos, chocam seus ovos,
ensinam seus filhotes a voar, enquanto os animais da terra dão à
luz, alimentam suas crias e, sem medo, misturam-se aos homens.
Mais uma pulsação de luz, e ao canto dos pássaros vem se mesclar
o canto dos anjos. Mas esse prodígio ao qual até os bandidos
escondidos na floresta têm direito a assistir é abolido quando um
monge desconfiado, que vê nessa fantasmagoria a obra do
Demônio, espanta uma pomba que lhe pousara no ombro. O
esplendor de Natal não voltará a Goinge. Além da imagem
profundamente satisfatória do Éden bíblico, aqui nos aproximamos
do mundo sagrado da Índia: o tempo resplandece; as plantas, os
animais, as estações florescem e passam num instante que parece
cadenciado por uma respiração eterna.
Os animais, como vimos, participam dessa reaparição do Éden.
É natural: mesmo feroz ou astuto, o animal é de antes da Culpa;
mantém em si a inocência primitiva que sacrificamos. Na obra de
Selma Lagerlöf, com muita frequência é a partir de um crime
cometido contra um animal que se desenrola a série de maldições
para o homem. Durante a época de Natal, o velho Ingmar,
surpreendido pela tempestade, refugiou-se impunemente na toca de
um urso; em seguida, ele rompe a trégua de Deus e parte à caça do
poderoso animal, que o abate mortalmente, e a família do grande
camponês enterra sem honras aquele homem que infringiu os
termos de um pacto.[17] Em Jerusalem 1: Dalarne, o ancestral de
Barbro quebrou as costas de um cavalo cego que lhe foi vendido por
um negociante trapaceiro: seus descendentes masculinos nascem
cegos e idiotas, até o dia em que Ingmar Ingmarsson resgata essa
culpa por meio de uma boa ação heroica. Em outra obra, a
inocência do animal aplaca o desespero do homem diante dos
caminhos do mundo. O eremita Hatto, de braços erguidos, imóvel
como um faquir da Índia, pede a Deus que aniquile este mundo em
que reina o mal. Mas seus braços rugosos assemelham-se a galhos
de árvore, e lavandiscas constroem um ninho na palma de uma de
suas mãos. Como que sem querer, o santo homem se interessa
pelo trabalho inteligente dos pássaros e por sua frágil obra-prima de
musgos e gravetos. Quando os filhotes saem dos ovos, ele os
defende contra um gavião, embora saiba que toda vida caminha
necessariamente para a morte. Finalmente ele para de implorar a
aniquilação total, não podendo suportar que aqueles inocentes
sejam destruídos. Um ninho prevaleceu sobre a iniquidade dos
homens: “Os homens, certamente, não valiam os pássaros, mas
talvez Deus visse o universo como ele via aquele ninho”.[18]
No romance pedagógico que é A maravilhosa viagem de Nils
Holgersson pela Suécia, os animais ensinam ao filhote de homem a
prudência, a tenacidade, a coragem. Ele exerce a piedade
devolvendo os filhotes ao esquilo enjaulado; sabe alguma coisa da
resignação do velho cão que só espera de seu dono um tiro de fuzil;
da velha vaca leiteira apta para a bancada do açougueiro depois da
morte da velha fazendeira que lhe confiava seus sofrimentos,
apoiada em seu flanco na hora da ordenha. Os animais das fábulas
de La Fontaine são homens deliciosamente disfarçados de animais
do galinheiro ou das florestas; aqui, a simpatia e o sentimento da
insegurança comum derrubam o muro das espécies. Quando o
velho ganso-guia, Akka de Kebnaikaise, pergunta ao menino se ele
não acha que os gansos selvagens mereceriam ter alguns pedaços
de lande onde estivessem ao abrigo dos caçadores, para alguns de
nós a lição surtiu efeito.
Duas obras-primas que mergulham a criança humana na vida
primitiva, O livro da selva e Nils Holgersson, nasceram mais ou
menos na mesma época, no despontar do século que mais
selvagemente devastou e dessacralizou a natureza e, assim, o
homem. Selma Lagerlöf admitia ter sido influenciada por Kipling,
mas esses dois livros produzidos por temperamentos diferentes se
parecem tão pouco quanto a selva indiana e a lande da Lapônia.
Mowgli adolescente é uma espécie de jovem deus que possui as
“palavras mestras”, ajudado pelos animais a destruir a aldeia da
qual ele quer se vingar, de volta ao mundo humano (e por quanto
tempo?) pelo chamado amoroso da festa da primavera. Nils só
voltará à sua pequena fazenda. Encontramos a humilde moral
utilitária que permite aos dalecarlianos sobreviverem na “Jerusalém
que mata”. O livro da selva e Nils Holgersson têm o mesmo destino,
que é o de serem considerados livros infantis, ao passo que sua
sabedoria e sua poesia dirigem-se a todos. Selma Lagerlöf, de fato,
escrevera cientemente para os alunos suecos. Mas, além deles, ela
fala a nós.
Nessa obra tão dominada pela noção do bem divino ou cósmico,
o mal parece ser percebido como um acidente ou um crime humano.
Os mais sombrios contos fantásticos de Selma Lagerlöf raramente
provocam em nós o horror quase visceral buscado por tantos
apreciadores do sobrenatural. O Diabo em Gösta Berling é apenas
uma paródia e seu demonismo é rudimentar. Selma sempre se
recusou a dizer se o furacão que precipita a conversa dos
camponeses, em Jerusalem 1: Dalarne, era na verdade uma
tempestade espiritual, a passagem do Maligno traduzida pela antiga
caçada infernal das mitologias do Norte, ou simplesmente um
tempestade. Mas basta comparar os Jerusalem com outra obra-
prima mais obscura, La Colline inspiré [A colina inspirada], de
Barrès, para perceber que os dalecarlianos visionários mantêm até
o fim uma espécie de integridade heroica; os iluminados de Barrès,
ao contrário, atolam-se numa zona mais ou menos demoníaca, em
todo caso repleta de larvas. Isso certamente se deve ao fato de que
Barrès, católico por formação e escolha, recua com pavor mesclado
de nostalgia diante de tudo o que representa para ele a tentação ao
desregramento; os dalecarlianos, por sua vez, por mais
desaprovados ou censurados que sejam, permanecem na grande
tradição da dissidência protestante.[19]
O mal ronda igualmente nesses livros de bondade, sob suas
formas habituais de violência, devassidão ou hipocrisia: estamos
diante de idílios tingidos de vermelho. Já em Antikrists mirakler [Os
milagres do anticristo], há a história de uma festa dada por uma
velha inglesa a aldeões sicilianos nas ruínas de seu teatro antigo:
depois de oferecer, à guisa de recital de canto, algumas romanças
de seu país, aplaudidas polidamente, a imprudente arrisca-se a
interpretar uma ária da Norma; eclodem os risos e os apupos, e a
multidão alegre obriga a infeliz a repetir três vezes sua ária, vítima
grotesca entregue aos animais do circo. O assassinato de uma
família inteira, em Herr Arnes penningar, é de uma violência à
Truman Capote. Em Bannlyst, a cena em que escórias humanas,
meio marujos, meio malfeitores, empenham-se em obrigar um
miserável, ainda mais mal-afamado do que eles mesmos, a comer
carne de serpente é quase insuportável. A Selma Lagerlöf de Gösta
Berling evocava com simpatia as chamas do ponche iluminando o
rosto dos cavalheiros; o bêbado maltratado pela vida, em En fallen
kung [O rei deposto] era ainda uma espécie de farrapo sublime, um
Rembrandt num cenário salvacionista. Em Luftballongen [O balão], o
beberrão não é mais do que um indeciso, odioso como podem ser
os fracos; tem-se a impressão de estar lendo um panfleto para uma
associação pela abstinência, sem as relações sutis do pai e dos
filhos, doces sonhadores que, se não lhes fosse dado morrer jovens,
talvez acabassem como o pai. Com a mesma arte refinada sob
formas simples, orquestra-se no início de Löwensköldska ringen [O
anel de Löwensköld] a conversa de um casal camponês que se
anima a cometer um roubo sacrílego, sem que jamais tenha sido
pronunciada nenhuma palavra comprometedora.
A hipocrisia, vício das sociedades bem-pensantes, vê-se por toda
parte corajosamente destinada ao último círculo. Charlotte
Löwensköld, publicado em 1927, é dominado pela desagradável
personalidade do pastor Karl Arthur Ekenstedt, monstro de mentira
para consigo mesmo, que semeia a desgraça à sua volta sem
jamais deixar de se pretender aprovado e guiado por Deus. Com a
venenosa Théa, mulher do organista, fêmea sedutora que
conseguiu apropriar-se dele, forma o único casal repugnante da
obra da romancista sueca; suas silhuetas deformadas
perambulando de uma feira para outra parecem saídas do canto de
uma tela de Bosch. É surpreendente que Selma Lagerlöf tenha
atribuído às duas mulheres de sua velhice, a aristocrática Charlotte
e a rústica Anna Svärd, tesouros de indulgência para essa crápula
eclesiástica. É de acreditar que haja em uma das duas mulheres um
resto de ternura pelo homem que ela amou, na outra respeito por
aquele marido socialmente inferior a ela, ou estaremos mais em
zonas de penumbra sensual que Selma Lagerlöf não ilumina?
Pensamos na pequena e encantadora Elsalil de Herr Arnes
penningar que ama, primeiro sem o reconhecer, em seguida com
pleno conhecimento de causa, o assassino que exterminou toda a
sua família e que, se pudesse, nem a ela teria poupado? “Amei um
lobo”, ela diz a si mesma. Mas continua a amá-lo.
A despeito de alguns toques de moralismo quase inevitáveis,
dados o tempo e o lugar, Selma quase não julga seus personagens;
bastam seus atos. O grande romancista julga pouco; é sensível
demais à diversidade e à especificidade dos seres para não ver
neles os fios de uma tapeçaria cujo conjunto não abrangemos.
Como nossos camponeses, esses suecos pensam obscuramente
que no mundo há de tudo. Em En historia från Halland [Uma história
de Halland], um dos contos em que Selma melhor fez sentir a
inexplicável atração de uma pessoa por outra, o jovem fazendeiro
que abandonou sua pobre propriedade para seguir o cigano Jan,
criado e marido de sua mãe, não se indigna nem por ter sido
arruinado por ele nem por ter sido envolvido numa complicação que
o leva à prisão: “Ele era de outra espécie e forçado a agir de acordo
com as leis de sua espécie”. Não é apenas entre dois homens, é
entre dois modos de vida que a autora não escolhe: o do camponês
sedentário que nunca conheceu nada além de sua árdua tarefa
habitual e o do vadio esbanjador, às vezes infiel e astuto, mas que
em alguns momentos arrasta os seres a uma dança de alegria.
*

Eu disse o suficiente para mostrar que Selma Lagerlöf, no que é


excelente, iguala-se aos maiores. Nem sempre ela é excelente.
Mesmo nos anos mais propícios, algumas obras dão a impressão de
depressão entre dois cumes. Liljecronas hem [A casa de Liljecrona],
entre outras, não desprovidas de um encanto de conto ou de balada
antiga, seriam pálidas se não fossem iluminadas pelos reflexos que
grandes livros da mesma autora lançam sobre elas. Antikrists
mirakler, publicado pouco depois de Gösta Berling, foi recebido com
uma mescla de elogios e objeções; estas, sobretudo, atualmente se
impõem. Nele, o folclore italiano, absorvido às pressas, é de um
pitoresco superficial, e a história, evidentemente pré-fabricada, de
um menino Jesus substituído no altar por uma imitação que é o
Anticristo, ou seja, o socialismo (dir-se-ia o comunismo quarenta
anos depois), é quase irritante de tanto simplismo. A autora tem o
mérito de ter visto sob a Sicília para turistas a indigência
camponesa, e é muito ter ousado dizer já em 1894 que o culto
exclusivo do progresso é uma idolatria ateia, mas talvez não fosse o
caso de dizê-lo assim. Um romance curto, Körkarlen [O motorista/O
condutor], escrito em 1912 sob encomenda de uma associação de
luta contra a tuberculose, trata o problema da pós-vida, mas, a
despeito de experiências vividas muito profundamente pela autora,
ele nos informa sobre essas regiões fronteiriças pouca coisa que já
não se tenha dito melhor em outros lugares.[20] Kejsarn av
Portugallien [O imperador de Portugal], que é de 1914, foi recebido
com admiração; é possível julgar muito complacentemente
prolongada essa história de um dócil megalomaníaco que, em
imaginação, alça sua filha, prostituta em Lund, à categoria de
imperatriz.
“Minha alma tornou-se pobre e sombria; voltou ao estado
selvagem”, anotava Selma Lagerlöf em 1915. Dois ou três anos
depois, num poema que permaneceu inédito enquanto era viva, ela
se mostra em sua mesa de trabalho, esgotada pela tarefa de
escritora que lhe parece consistir numa “coleta desesperada de
gravetos, de fiapos de palha e de lascas de casca de árvore”, depois
sentindo subitamente voltar-lhe a alma, “essa desertora”, e alma,
aqui, parece significar gênio. “Pairei sozinha sobre os campos de
batalha”, responde tristemente a alma, “passei ao ataque com o
povo torturado das trincheiras; acompanhei os refugiados em suas
estradas rumo à miséria e ao exílio; naufraguei com os navios
torpedeados, e, nos submarinos mortíferos, espreitei a presa...
Padeci a sorte das populações famintas; fiz vigília nas cidades sobre
as quais bombas choviam sub-repticiamente... Vivi na casa dos
príncipes destronados e dos perseguidos que tomaram o poder”.
Essas experiências de união com a dor do mundo deveriam inspirar
outras grandes obras a Selma envelhecida. Mas o cansaço chegara,
e a dúvida de que a literatura ainda servisse para alguma coisa;
faltava tempo para deixar essas novas experiências amadurecerem
como precisam para poder ser exprimidas. Bannlyst, que se
consuma em paisagens de guerra, não fora, ela sabia, uma obra
bem-sucedida. Os vinte anos que restavam veriam a lenta gestação
de Löwensköldska ringen, em que algumas cenas pungentes se
alternam com finas pinturas do século passado, mas em que
abundam as lentidões, as repetições e, aqui e ali, sequências
melodramáticas de romance noir. A autora visivelmente já não
domina sua obra. Ela esforçou-se para inventar um epílogo em que
Karl Arthur Ekenstedt morresse bem-visto: não conseguiu.[21] Todo
romancista autêntico sabe que não se faz o que se quer de seus
personagens.
“Continuo perplexa no que diz respeito ao sentido da vida”,
Selma dissera imprudentemente a um jornalista, em 1926. Essa
sábia confissão provocou a indignação de seu público; a dúvida
filosófica não era o que os leitores esperavam de seu ídolo. Como
sempre acontece quando um escritor alcança a grande celebridade,
seus entusiastas tinham formado sobre ela uma ideia sumária, em
parte extraída de seus grandes livros admirados com base na
confiança ou lidos apenas para buscar neles belas histórias, em
parte derivada da inevitável propaganda organizada em torno de
sua pessoa e de seus escritos. Dois anos antes, Märbacka, mais
acessível que as antigas obras-primas, oferecera aos leitores uma
imagem enternecida e jovial do passado familiar da escritora, da
qual a piedade filial eliminava as pequenezas e os conflitos
inevitáveis. Selma criança era descrita com encanto, mas de acordo
com as convenções que os adultos adotam para falar da infância.
Não há mal em que uma velha senhora evoque gentilmente seus
primeiros anos, e seria muito duro o leitor que resistisse às graças,
metade sorriso metade lágrimas no canto dos olhos, de Märbacka.
Mas a grande narradora épica estava morta.
Tudo é perigoso para o escritor que envelhece (o escritor jovem
também corre riscos, mas riscos diferentes). A obscuridade e a
solidão são perigosas; a popularidade também o é. É perigoso
mergulhar sem volta no seu mundo interior; igualmente perigoso é
dispersar-se em trabalhos e ocupações de outra ordem. Selma
coberta de honras talvez fosse menos livre do que professora em
Landscrona. Sua celebridade tomava forma de recepções oficiais,
discursos a serem ouvidos ou proferidos, grupos de escoteiros
excursionando para Märbacka, cantatas executadas no dia de seu
aniversário pelas meninas das escolas, visitas de jornalistas e de
admiradores de todos os tipos, moscas atraídas pela glória.
Septuagenária, ela dissera sua intenção “de entrar na região
silenciosa da velhice”. Nunca penetrou nela. Seus leitores a
impediam, assim como as necessidades de dinheiro, menos para si
mesma do que para as empreitadas e as causas às quais se
dedicara, e também, decerto, o humilde desejo que todo bom
escritor tem de continuar escrevendo. Mas ela duvidava de si
mesma. “Eu quis acreditar pelo maior tempo possível que tudo isso
(suas obras recentes) tinha algum valor. Mas não é nada disso;
agora tenho certeza”, confessava em 1937. Às vezes ela se
enganava. Skriften på jordgolvet [Escrita no chão], composto em
1933 e a cujos direitos ela renunciou em favor dos intelectuais
alemães perseguidos, contém uma descrição quase visionária do
pátio das lapidações, no interior do templo de Jerusalém, muito
digna da Selma de outrora. Apesar da moralidade demasiado
acentuada da conclusão, seu Cristo convertendo a mulher adúltera
tem lugar ao lado de um outro Cristo, este imbuído de insólita
sensualidade: O homem que morreu, de D. H. Lawrence, cerca de
vinte anos mais novo do que Selma Lagerlöf e que morreu quinze
anos antes dela. Os poetas das gerações sucessivas se
contradizem – e dizem a mesma coisa.
De tempos em tempos, no entanto, Märbacka abria suas portas
para outros visitantes que não estudantes em busca de autógrafos
ou delegações de funcionários dos correios. Em 1938, uma jovem,
emocionada – ela mesma o disse – como uma enamorada, trouxe
suas homenagens à velha senhora quase octagenária: era Greta
Garbo. Quarenta e seis anos antes, Sophie Elkan, nascida Sophie
Salomon, apresentara-se da mesma maneira, mas ela trazia,
conforme permitia a moda da época, um espesso véu, que Selma,
atravessando o recinto, levantara à força para admirar sua beleza.
Naquele ínterim, passara-se a vida inteira.
Mas pouco importava. As grandes obras já um pouco esfumadas
pela distância continuavam ali, como paisagens no pano de fundo
de uma tela: as florestas e as corredeiras de Ekeby dos cavalheiros,
as montanhas severas e as colinas verdes de Jerusalem 2, os
campos e as landes vistas por Nils do alto das nuvens, e sobretudo
os admiráveis contos, puros como os lagos impolutos. Num desses
relatos, o velho coronel Berenkreuz, retirado numa fazenda, passa o
tempo que lhe resta tecendo uma tapeçaria gigantesca, com lãs ora
vivas, ora escuras, em cujo desenho ele pôs secretamente tudo o
que acredita saber da vida. Numa clara noite de verão, ele ouve
alguém invisível atravessar a trama, sem a alterar, aproximar-se de
sua cama, bater os saltos apresentando armas: “É a Morte, meu
coronel”. A Morte podia vir interromper a tarefa da tecelã de
Märbacka.

Mount Desert Island, 1975

MARGUERITE YOURCENAR (1903-1987) é escritora, autora de Memórias de Adriano e


A obra em negro, romances históricos que a consagraram pelo estilo clássico, pela
erudição e pela sutileza com que aborda grandes temas, como a moralidade e o destino.
Nascida em Bruxelas, teve uma educação clássica que valorizou o estudo de várias
línguas e viagens pela Europa, até que, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, se
mudou para os Estados Unidos. Em 1981, tornou-se a primeira mulher membro da
Academia Francesa, instituição que existe desde o século XVII.

* Tradução Monica Stahel


Notas

[1] Jogos de baralho nos quais é comum fazer apostas em dinheiro.


[Todas as notas são desta edição, exceto menção contrária.]
[2] Antiga moeda sueca dos séculos XVI e XVII. Até hoje o termo é
usado coloquialmente para se referir à coroa sueca.
[3] Bebida à base de cerveja.
[4] Em latim, no original: “O trabalho vence tudo”.
[5] Em latim, no original: “O amor vence tudo”.
[6] Habitantes da província de Västergötland.
Posfácio

[1] Marie de France é uma exímia narradora, e Madame de La


Fayette transpõe para o gênero da novela algo da discrição e da
intensidade de Racine. Mas nem uma nem outra são romancistas
propriamente ditas. [Nota da autora.]
[2] De acordo com os biógrafos, Selma Lagerlöf morreu dias após
sofrer uma hemorragia cerebral.
[3] Elin Wagner. Selma Lagerlöf. Paris: Stock, 1950.
[4] Das experiências parapsicológicas, mais ou menos convincentes,
anotadas por Selma Lagerlöf, cito apenas, por sua beleza, esta
transmissão de pensamento: tarde da noite, a escritora estava
acabando um romance à cabeceira de sua mãe doente, demasiado
cansada e ausente para que ela pudesse lhe falar de seu livro; a
obra terminava com um improviso apaixonado do velho cavalheiro
de Ekeby, o violinista Liljecrona. De manhã, a velha senhora contou
que ouvira no sono uma maravilhosa ária de violino. [N. A.]
[5] Selma Lagerlöf disse à sua biógrafa Hanna Astrup Larsen (Selma
Lagerlöf. Nova York: AbeBooks, 1936) que às vezes se incluiu em
seus livros, mas quase sempre por meio dos personagens
masculinos – “particularmente, Ingmar Ingmarsson, trabalhador duro
e tenaz”. Podemos imaginar um leve sorriso de sua parte. [N. A.]
[6] Gravskriften [Inscrição, ou Epitáfio].
[7] Märbacka.
[8] Criatura do folclore escandinavo, semelhante a um duende.
[9] Tomten på Töreby [O tomte de Töreby].
[10] Jerusalem 1 e 2.
[11] Vattnet i Kyrkviken [A água em Kyrkviken].
[12] Sigrid Storråda [também traduzido como: Sigrid, a Soberba].
[13] Astrid.
[14] Vår Herre och Sankte Per [Nosso Senhor e são Pedro].
[15] Gamla Agneta [A velha Agneta].
[16] Solförmörkelsedagen [Eclipse solar].
[17] Gudsfreden [A trégua de Deus].
[18] Legenden om fågelboet [A lenda do ninho de pássaros].
[19] Alguns contos e Antikrists mirakler [Os milagres do anticristo]
provam a simpatia de Selma Lagerlöf pelo catolicismo italiano de
sua época; ela não deixa de ter um toque de condescendência
divertido e alguns erros. Mais interessante talvez seja seu
tratamento respeitoso para com o islã. É um mendigo piedoso,
descendente do Profeta, que ajuda os dalecarlianos perseguidos em
Jerusalém. Gertrude, afetada por distúrbios mentais, acredita
reconhecer Cristo num dervixe de belo olhar grave; mais tarde, ela
fica sabendo que se trata de um dervixe gritador e assiste aterrada
aos ritos vocais da seita; mas, ao voltar completamente à razão,
antes de deixar Jerusalém, ela vai beijar-lhe a mão. “Não era Jesus,
mas de todo modo era um santo homem.” [N. A.]
[20] Selma Lagerlöf, aliás, mantinha distância com respeito ao
espiritismo. Depois da morte de Sophie Elkan, repeliu um médium
que se dizia portador de uma mensagem dela. [N. A.]
[21] Entretanto é lastimável que, nas últimas páginas da versão
publicada do livro, o personagem nos seja mostrado regenerado
depois de dois ou três anos passados na África convertendo negros.
Selma Lagerlöf devia saber que ninguém se desvencilha a tão baixo
preço da hipocrisia. [N. A.]
© Editora Carambaia, 2020
Gösta Berlings Saga [Estocolmo, 1891]
Posfácio: “Selma Lagerlöf, conteuse épique”, in: Marguerite Yourcenar, Sous bénéfice
d’inventaire © Éditions Gallimard, 1962, 1978.
The cost of this translation was defrayed by a subsidy from the Swedish Arts Council,
gratefully acknowledged.
O custo desta tradução foi subsidiado pela Swedish Arts Council, pelo que agradecemos.
Edição de texto
Ana Lima Cecilio
Preparação
Andréa Stahel M. Silva
Revisão
Ricardo Jensen de Oliveira e Huendel Viana A partir do projeto gráfico da edição numerada
de
Paula Astiz

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

L172s
Lagerlöf, Selma, 1858-1940
A saga de Gösta Berling [recurso eletrônico] / Selma Lagerlöf ; tradução Guilherme da Silva Braga ; [posfácio
Marguerite Yourcenar]
1. ed.
São Paulo: Carambaia, 2021.
recurso digital; 15 MB
Tradução de: Gösta Berlings saga
Formato: ebook
Requisitos do sistema: autoexecutável Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-86398-21-2 (recurso eletrônico)
1. Romance sueco. 2. Livros eletrônicos. I. Braga, Guilherme da Silva. II. Yourcenar, Marguerite. III. Título.
20-67559 / CDD 839.73 / CDU 82-31(485))
Meri Gleice Rodrigues de Souza Bibliotecária — CRB-7/6439
EDITORIAL
Fabiano Curi (diretor editorial) Graziella Beting (editora-chefe) Kaio Cassio (assistente
editorial) Karina Macedo (assistente de coordenação editorial) Laura Lotufo (editora de
arte) Lilia Góes (produtora gráfica) COMUNICAÇÃO E IMPRENSA Clara Dias

ADMINISTRATIVO
Lilian Périgo
Marcela Silveira
EXPEDIÇÃO
Nelson Figueiredo

EDITORA CARAMBAIA
Av. São Luís, 86, cj. 182
01046-000 São Paulo SP
contato@carambaia.com.br
www.carambaia.com.br
O Golem
Meyrink, Gustav
9786586398182
304 páginas

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Obra-prima da literatura fantástica, O Golem, do austríaco


Gustav Meyrink (1868-1932) entusiasmou autores como H. P.
Lovecraft e Jorge Luís Borges ao retratar a vida de uma
vizinhança em Praga, cenário de uma série de acontecimentos
aparentemente inexplicáveis. Lançado em 1915, o livro fez um
sucesso estrondoso, vendendo 250 mil exemplares na época.
Publicado em diversos países e fonte de inspiração para filmes,
óperas e peças de teatro, o romance ganha nova tradução
direta do original alemão, em edição numerada e limitada a
1.000 exemplares.

O Golem é uma criatura antropomórfica do folclore judaico, feita por


mãos humanas a partir do barro. Segundo a lenda que atraiu o
interesse de escritores românticos tardios no século XIX, esse
personagem gigantesco foi criado em Praga por um rabino para
defender a comunidade judaica de ataques antissemitas, mas teria
se voltado contra o criador.

A presença do Golem de Praga na trama criada por Meyrink é uma


entre numerosas referências a tradições místicas e ocultistas, mas
tem grande importância simbólica. É uma espécie de força irracional
e destruidora que paira sobre as intrincadas vivências do
personagem central, Athanasius Pernath, mestre joalheiro cujo
passado é obscuro até para ele mesmo. Pernath vive no Bairro
Judeu de Praga, onde se passa a maior parte da história. Um dos
aspectos mais impressionantes do texto de Meyrink é a descrição
desse ambiente lúgubre, de pouca luz natural, onde as construções
angulosas parecem se amontoar, povoadas de figuras estranhas
que habitam suas vielas, corredores, escadas e passagens ocultas.

Entre essas figuras há personagens assombrosos: um sinistro


vendedor de ferro-velho, uma esquálida prostituta adolescente, um
surdo-mudo que recorta silhuetas em papel, um sábio versado no
conhecimento religioso e sua filha encantadora, um marionetista e
um jovem estudante com missão de vingança. Pernath se envolve
em questões essenciais da vida desses personagens enquanto
persegue uma busca da própria identidade por meio de indagações
espirituais. Toda a narrativa é atravessada pelo tema do duplo, e os
estudos do inconsciente, então em andamento por Sigmund Freud,
encontram-se refletidos na fluidez narrativa de O Golem, em que
realidade, sonho e alucinação convivem sem limites precisos.

A edição da CARAMBAIA sai em versão digital e em edição


numerada de 1.000 exemplares, com projeto do estúdio Bloco
Gráfico, que faz referência tipográfica ao expressionismo e ao
movimento Plakatstil de design de cartazes. Na capa, o desenho do
título representa a criatura da lenda judaica em suas imensas
proporções.

O texto tem tradução do original em alemão por Petê Rissatti e


posfácio de Luiz S. Krausz, escritor e professor de Literatura da
Universidade de São Paulo.

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Mecanismos internos
Coetzee, J. M.
9786586398151
384 páginas

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Além de ser um dos principais romancistas vivos, premiado em


2003 com o Nobel, o sul-africano J. M. Coetzee é também autor
de refinados ensaios. Mecanismos internos – textos sobre
literatura (2000-2005) reúne 21 textos do romancista sobre
outros escritores. Neles, quem fala é o professor de literatura e
crítico literário, funções que o autor octogenário exerce desde
muito jovem.

Os textos que compõem a edição foram publicados entre 2000 e


2005, alguns como introduções de livros e a maioria como resenhas
na New York Review of Books. Dos autores analisados, todos
começaram a produzir no século XX, com exceção de Walt
Whitman. E sete, como Coetzee, foram premiados com o Nobel de
Literatura: William Faulkner, Samuel Beckett, Saul Bellow, Gabriel
García Márquez, Nadine Gordimer, Günter Grass e V. S. Naipaul.
Também tem um peso importante a vivência dos totalitarismos da
primeira metade do século XX, sobretudo nos autores de língua
alemã, como Robert Musil e Walter Benjamin.

Os ensaios de Coetzee não são apresentações, tampouco


homenagens. O empenho demonstrado em cada texto para iluminar
as obras em questão nunca é menos que rigoroso. Coetzee
compara traduções e biografias, passa em revista as referências
intelectuais e leituras dos autores analisados, busca paralelos em
outras obras e encontra influências insuspeitas.
Extremamente contido em suas aparições e declarações públicas,
Coetzee não se esquiva de dar opiniões nos ensaios deste livro,
criando um impressionante painel de conquistas e frustrações da
literatura contemporânea ao testar limites, como ele próprio faz em
sua obra mais recente.

A este volume segue-se outro, com novos textos de Coetzee sobre


outros autores, Ensaios recentes, reunindo artigos escritos entre
2006 e 2017. Nesse segundo tomo, Coetzee retrocede a autores de
épocas mais remotas, como Daniel Defoe, Nathaniel Hawthorne, J.
W. Goethe, Gustave Flaubert e Liev Tolstói, e retorna a outros três:
Walser, Beckett e Philip Roth, entre outros.

As capas dos dois volumes, baseadas em composições tipográficas,


são de autoria do Estúdio Campo. Os livros saem pelo selo
Ilimitada, cujo projeto gráfico é do Bloco Gráfico. A tradução é de
Sergio Flaksman e os textos de apresentação são do jornalista
Márcio Ferrari. Ambos os volumes trazem índices remissivos com a
relação dos autores e obras citados.

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Ensaios recentes
Coetzee, J. M.
9786586398168
352 páginas

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Coletânea de ensaios reúne a produção crítica mais recente do


premiado escritor sul-africano J. M. Coetzee. Com 23 textos, ela
compõe um panorama crítico da literatura mundial, feito por um
dos mais renomados autores contemporâneos. Da análise de
obras célebres de autores europeus e russos à crítica
detalhada de obras produzidas na Argentina, Austrália ou
Namíbia, passando por escritores de períodos mais remotos.

Ao conceder o Nobel de Literatura a J. M. Coetzee, em 2003, a


Academia Sueca elogiou "a composição habilidosa, os diálogos
férteis e o brilho analítico" dos romances do escritor sul-africano.
Esse rigor que o autor, que completou 80 anos em 2020, aplica a
sua obra ficcional está presente nestes ensaios sobre literatura.
Neles, o romancista e professor universitário recorre a dados
biográficos, correspondências e parentescos literários como
instrumentos de análise.

Lançado simultaneamente a Mecanismos internos, que contém


artigos publicados entre os anos 2000 e 2005, Ensaios recentes
reúne sua produção crítica escrita entre 2006 e 2017. Nos 23 textos,
destacam-se artigos iluminadores sobre obras que poderiam ser
consideradas exauridas de tão célebres, como Madame Bovary, de
Gustave Flaubert, A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, e Os
sofrimentos do jovem Werther, de J. W. Goethe, ou a obra de
escritores de épocas mais remotas, como Daniel Defoe.
Neste segundo volume, Coetzee amplia a análise sobre autores que
abordou no primeiro, como Robert Walser, Philip Roth e Samuel
Beckett. Do último, que foi objeto da pesquisa de doutorado de
Coetzee, o volume traz quatro ensaios, dedicados a seus romances.
Outro autor estudado pelo escritor no início da carreira e retomado
neste livro é Ford Madox Ford, tema de sua dissertação de
mestrado no Reino Unido. A seleção conta ainda com um belo
ensaio sobre Zama, do argentino Antonio Di Benedetto, traz textos
sobre os australianos Patrick White e Les Murray, além de um artigo
sobre o interessante diário de Hendrik Witbooi, chefe de um dos
grupos Khoisan, povos originários da Namíbia, no qual comenta o
processo da ocupação europeia pelo interior do continente africano
e seu projeto de genocídio.

As capas dos dois volumes, baseadas em composições tipográficas,


são de autoria do Estúdio Campo. Os livros saem pelo selo
Ilimitada, cujo projeto gráfico é do Bloco Gráfico. A tradução é de
Sergio Flaksman e os textos de apresentação são do jornalista
Márcio Ferrari. Ambos os volumes trazem índices remissivos com a
relação dos autores e obras citados.

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Salammbô
Flaubert, Gustave
9786586398113
464 páginas

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Uma aventura épica que alia exotismo a reconstrução histórica,


sensualidade a violência, universo mítico a paixões
impossíveis. Ambientada na Cartago do século III a.C., durante
a primeira Guerra Púnica, Salammbô foi escrita por um dos
maiores nomes das letras francesas, Gustave Flaubert (1821-
1880). Às vésperas do bicentenário do autor, esta que foi uma
de suas principais obras ganha nova tradução pela
CARAMBAIA.

A história começa durante um banquete, nos jardins da casa do líder


militar cartaginês general Amílcar Barca, para comemorar o
aniversário da batalha de Monte Érice, na Sicília, que opôs os
exércitos arregimentados por Amílcar contra os romanos, durante a
primeira das guerras púnicas (264-241 a.C.). É ali, durante o festim,
que o mercenário líbio Mâthos avista Salammbô, filha do general e
sacerdotisa de Tanit, a deusa da Lua e protetora de Cartago. Essa
aparição sensual de Salammbô não sairá da memória do soldado,
que no entanto será um dos principais líderes da revolta dos
mercenários contra Amílcar, depois que este reconhece não ter
recursos para pagar o soldo devido aos estrangeiros que estiveram
sob suas ordens lutando contra os romanos.

Obcecado pela ideia de voltar a encontrá-la, decide roubar um véu


sagrado dos aposentos de Salammbô na companhia do escravo
liberto Espêndio, seu braço direito. Mais tarde, o sumo sacerdote de
Cartago ordena que Salammbô vá resgatar o véu. Dessa forma, a
disputa pela posse do objeto sagrado e pelo coração de sua dona
(prometida pelo pai ao vilão, o rei númida Narr'Havas) se misturam
aos embates em campo de batalha até um final digno de todas as
peripécias que o precederam.

Salammbô foi o romance que Flaubert escreveu imediatamente


depois do abalo estético e moral provocado por Madame Bovary
(1856). Do retrato realista de uma mulher insatisfeita na província
francesa no século XIX, o escritor saltou para essa aventura épica,
ambientada no norte da África no século III a.C.

O "romance cartaginês", como ele o chamava, foi uma de suas


principais empreitadas literárias. Para escrevê-lo, o Flaubert dedicou
cinco anos de sua vida, municiou-se de documentos, fez longas
viagens para o Oriente Médio e leu mais de 200 obras, sobretudo
estudos clássicos de historiadores como Políbio, Plínio ou Plutarco.
Tudo para reconstruir minuciosamente a antiga Cartago, inserindo
no enredo personagens e episódios fictícios.

A nova tradução desse épico ficou a cargo de Ivone Benedetti, e a


edição conta com um posfácio inédito de Samuel Titan Jr., professor
de literatura da Universidade de São Paulo, tradutor e especialista
na obra de Flaubert.

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Enervadas
Chrysanthème
9786586398021
168 páginas

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Livro raro de uma das preciosidades mais bem guardadas da


literatura brasileira, a carioca Chrysanthème (1870-1948), autora
importante do início do século XX, uma das pioneiras ao levar
as causas feministas para a literatura. Enervadas, um romance
de 1922 , contém passagens de críticas veementes contra a
submissão e os limites à liberdade reservados às mulheres,
além de ser uma divertida crônica sobre as classes abastadas
do Rio de Janeiro na República Velha.

Moderna e dona de "um temperamento inimigo da fixidez e da


banalidade", a protagonista Lúcia recebe, no primeiro capítulo do
livro, o diagnóstico médico de que é uma "enervada", categoria na
qual a ciência da época reunia uma ampla gama de mulheres
insatisfeitas. O plural do título se refere também às amigas de Lúcia,
que considera suas semelhantes. A protagonista, no entanto,
questiona o diagnóstico: ser "enervada" significaria apenas ter
desejo de beijar esse médico, a quem confessa seus "gostos,
sonhos e temperamentos"? "Certamente que não", diz ela. "Isso é
ser-se humano e mais nada."

O romance recua, em forma de diário, à vida amorosa da


protagonista curiosa e sexualmente livre. Atraída pelos dotes de
dançarino de um funcionário do Ministério do Exterior, casa-se com
ele, mas logo se entedia e, ao ver-se explorada, segue-se a
inevitável separação. Ao longo da narrativa, sucedem-se flertes e
romances, entremeados por uma vida social intensa e algum
consumo de morfina. Lúcia compartilha dúvidas e insatisfações com
amigas fiéis: Maria Helena, lésbica; Laura, namoradeira em série;
Magdalena, cocainômana; e Margarida, satisfeita mãe de muitos
filhos.

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