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Capa
Prólogo I: O pastor
Prólogo II: O mendigo
O panorama
A noite de Natal
A ceia de Natal
Gösta Berling, o poeta
La cachucha
O baile em Ekeby
Os antigos veículos
O grande urso no monte Gurlita
O leilão em Björne
A jovem condessa
Histórias de fantasmas
A história de Ebba Dohna
Mademoiselle Marie
O primo Kristoffer
Os caminhos da vida
A expiação
O ferro de Ekeby
A casa de Liljecrona
A bruxa de Dovre
O solstício de verão
A senhorita Música
O pastor de Broby
O patrão Julius
Os santos de barro
O andarilho de Deus
O cemitério da igreja
As antigas canções
A morte libertadora
A seca
A mãe da criança
Amor vincit omnia
A menina de Nygård
Kevenhüller
O mercado de Broby
A pequena propriedade na floresta
Margareta Celsing
Notas
Créditos
ENFIM O PASTOR ESTAVA NO PÚLPITO.
As cabeças da congregação se ergueram. Ah, finalmente estava
lá! O culto não seria cancelado naquele domingo, como fora no
domingo anterior e em muitos outros.
O pastor era jovem, alto, esbelto e tinha uma beleza radiante.
Com um elmo na cabeça, uma espada e uma armadura, seria
possível esculpi-lo em mármore e tomá-lo como o mais belo filho de
Atenas.
Ele tinha o olhar profundo de um poeta e o queixo determinado e
firme de um general; tudo nele era belo, delicado, expressivo,
permeado pela bondade e pela espiritualidade.
As pessoas da igreja sentiram-se estranhamente subjugadas ao
vê-lo. Era mais costumeiro que saísse da taverna na companhia de
gente alegre e camarada como Beerencreutz, o coronel de farto
bigode grisalho, e o robusto capitão Kristian Bergh.
Havia bebido tanto que por muitas semanas não pudera cumprir
seus deveres, e a congregação fora obrigada a registrar uma queixa
formal sobre isso, primeiro ao preboste e depois ao bispo e à
catedral. Naquele momento, o bispo tinha chegado à paróquia para
fazer um inquérito rigoroso. Estava sentado no coro, com a cruz de
ouro no peito, rodeado pelos pastores escolares de Karlstad e
outros de congregações das vizinhanças.
Não havia dúvida de que o comportamento do pastor havia
ultrapassado os limites do permitido. Naquela época, na década de
1820, as pessoas eram tolerantes com a bebida, mas esse homem
tinha negligenciado as obrigações religiosas em nome da bebedeira
e estava a ponto de perder o posto que ocupava.
O pastor aguardava no púlpito enquanto o último verso do salmo
era entoado.
Enquanto estava lá, foi tomado de repente por uma certeza, uma
certeza de que tinha somente inimigos na igreja, inimigos em todos
aqueles bancos. Os senhores na galeria, os camponeses na parte
baixa da igreja, os garotinhos no coro eram todos inimigos, somente
inimigos. Era um inimigo que operava o órgão, um inimigo que o
tocava. No banco dos sacristãos, ele tinha inimigos. Todos o
odiavam, até mesmo as crianças pequenas levadas para a igreja,
até mesmo o vigia da igreja, um soldado rígido e austero que servira
em Leipzig.
O pastor sentiu vontade de prostrar-se de joelhos e implorar por
misericórdia.
Mas no instante seguinte uma fúria silenciosa se abateu sobre
ele. Lembrou-se de como tudo havia se passado quando, um ano
antes, ocupara o púlpito pela primeira vez. Ele tinha sido um homem
irrepreensível naquela época, e agora estava lá, encarando o
homem com a cruz de ouro no pescoço, que havia chegado para
julgá-lo.
Enquanto lia o introito, ondas de sangue subiam-lhe ao rosto,
uma atrás da outra: era a fúria.
Era verdade que havia bebido, mas quem poderia acusá-lo por
isso? Por acaso tinham visto a casa pastoral onde ele era obrigado
a morar? Com a inóspita e escura floresta de espruces junto à
janela? A umidade pingava do telhado preto e escorria pelas
paredes emboloradas. Não entendiam que a aguardente era
necessária para manter o moral elevado quando a chuva e as
nevascas entravam por vidraças partidas, quando a terra
malcuidada negava-se a oferecer pão suficiente para afastar a
fome?
Ele imaginava ser o sacerdote que aquela gente merecia. Afinal,
todos bebiam. Por que só ele haveria de exercer a temperança? O
homem que enterrou a esposa não encheu a cara de cerveja, após
o funeral? O pai que batizou o filho não promoveu uma bebedeira
logo depois da cerimônia? Os paroquianos bebiam no caminho de
volta da igreja, e a maioria já estava bêbada quando chegava em
casa. Um pastor bêbado seria ótimo para aquela gente.
Foi nas visitas pastorais, quando, com um sobretudo fino, viajava
léguas por lagos congelados, onde todos os ventos enregelantes se
encontravam, foi no balanço enfrentado em pequenas embarcações
nesses mesmos lagos, sob chuvas e tormentas, foi nas intempéries,
quando precisava descer do trenó e puxar o cavalo por montes de
neve da altura de casas, ou ainda quando passava a vau em meio
aos charcos da floresta, foi nessas ocasiões todas que ele tomara
gosto pela aguardente.
O ano se arrastava em uma pesada melancolia. Camponeses e
senhores passavam o dia com os pensamentos presos à terra, mas
à noite todos os espíritos desfaziam-se dos grilhões, libertados pela
aguardente. Os impulsos afloravam, o coração se acalentava, a vida
tornava-se radiante, a música soava, as rosas emanavam perfume.
A taverna da estalagem havia se tornado para ele um jardim de
flores no sul: uvas e azeitonas pairavam acima de sua cabeça,
bases de mármore reluziam em meio à folhagem escura, sábios e
poetas vagavam sob as copas de palmeiras e plátanos.
Não; ele, como pastor no púlpito, sabia que sem aguardente a
vida não podia ser vivida naquele fim de mundo; todos os ouvintes
sabiam disso, e mesmo assim queriam julgá-lo.
Queriam tirar-lhe a batina porque havia entrado bêbado na casa
de Deus. Ah, mas será que toda aquela gente acreditava, será que
queriam mesmo acreditar que havia outro Deus além da
aguardente?
Ele terminou de ler o introito e ajoelhou-se para rezar o pai-
nosso.
O silêncio foi tanto que não se ouviam sequer as respirações
durante a oração. Mas de repente o pastor segurou firme, com as
duas mãos, a faixa que envolvia a batina. Pareceu-lhe que a
congregação inteira, com o bispo à frente, se aproximava do púlpito
para arrancar-lhe a batina. Estava de joelhos e não virou a cabeça,
mas pôde sentir que o puxavam, e viu a todos com enorme clareza,
tanto o bispo como os pastores escolares, os prebostes, os
sacristãos, o sineiro e a congregação inteira em uma longa fila de
pessoas que o agarravam e o sacudiam a fim de lhe tirar a batina. E
ele imaginou vividamente que todas aquelas pessoas, que o
puxavam com grande ímpeto, haveriam de cair umas por cima das
outras, escada abaixo, tão logo a batina se soltasse. E toda a fileira
seguinte, que não havia segurado a batina, mas apenas a bainha do
casaco, também haveria de cair.
Viu tudo isso com tanta clareza que chegou a sorrir, prostrado de
joelhos, embora ao mesmo tempo sentisse um suor frio brotar-lhe
da testa. Tudo aquilo era deveras sinistro.
Então agora ele se tornaria um pária em função da aguardente!
Seria um pastor destituído. Haveria na terra coisa mais miserável?
Seria um mendigo à beira da estrada, dormiria bêbado na
sarjeta, andaria vestido em andrajos, na companhia de vagabundos.
A oração chegou ao fim. Ele deveria começar a ler o sermão.
Mas de repente ocorreu-lhe um pensamento que deteve as palavras
em seus lábios. Pensou que aquela seria a última vez que ocuparia
o púlpito a fim de proclamar a glória de Deus.
Pela última vez – esse pensamento tomou conta do pastor.
Esqueceu-se de tudo relacionado à aguardente e ao bispo. Pensou
que precisava aproveitar a ocasião e oferecer um testemunho da
glória de Deus.
Imaginou que o chão da igreja, com todos os ouvintes, afundava,
afundava cada vez mais, e que o teto da igreja se abria, e que de
repente ele podia olhar para o céu. Estava sozinho, completamente
sozinho no púlpito, e seu espírito elevou-se rumo ao céu revelado
nas alturas, sua voz tornou-se forte e vasta, e ele proclamou a glória
de Deus.
Estava inspirado. Renunciou ao que tinha escrito; os
pensamentos acudiam-lhe como uma revoada de pombas dóceis.
Sentia como se não fosse ele próprio falando, mas também
compreendia que aquilo era o que havia de mais sublime em toda a
terra, e que ninguém poderia chegar mais longe em majestade e
esplendor do que ele, que de lá proclamava a glória de Deus.
Enquanto a língua de fogo da inspiração chamejava, ele falou,
mas, assim que essa língua se apagou e o teto voltou a fechar-se
sobre a igreja e o chão a se erguer das profundezas em que havia
afundado, ele baixou a cabeça e chorou, pois acreditava que a vida
já lhe havia oferecido seu grande momento, e que esse havia
passado.
Ao fim do culto deram-se a inspeção e a assembleia. O bispo
perguntou à congregação se alguém tinha qualquer tipo de queixa
contra o pastor.
O pastor não estava mais furioso e renitente como antes do
sermão. Naquele instante, envergonhou-se e baixou a cabeça. Ah,
todas as terríveis histórias de bebedeira que haveriam de vir à baila!
Mas não surgiu nenhuma. Todos se mantiveram em absoluto
silêncio ao redor da grande mesa paroquial.
O pastor ergueu o rosto: primeiro olhou para o sineiro; não, ele
estava calado; depois para os sacristãos; e por fim olhou para os
camponeses e os patrões das fundições. Todos estavam calados.
Tinham os lábios apertados e olhavam levemente constrangidos
para a mesa.
“Com certeza estão à espera de que alguém comece”, pensou o
pastor.
Um dos sacristãos pigarreou.
– Na minha opinião, temos aqui um pastor excepcional – disse.
– O reverendo bispo ouviu como ele conduz a pregação –
acrescentou o sineiro.
O bispo fez um comentário qualquer sobre os frequentes
cancelamentos dos cultos.
– O pastor tem o direito de adoecer, como todo mundo –
afirmaram os camponeses.
O bispo sugeriu que havia insatisfação com o tipo de vida que o
pastor levava.
Os camponeses defenderam-no em uníssono. O pastor da
paróquia era jovem e não havia nada de errado com ele. Não, se
continuasse a pregar como havia feito naquele dia, não haveriam de
trocá-lo nem mesmo pelo bispo.
Não havia nenhum reclamante, de forma que não poderia haver
juiz nenhum.
O pastor sentiu o coração se enternecer e o sangue voltar a
correr leve pelas veias. Ah, saber que não estava mais entre
inimigos, saber que os havia conquistado, quando já não imaginava
continuar a ser pastor!
Ao fim da inspeção, o bispo, os pastores escolares, os prebostes
e os homens mais eminentes da paróquia jantaram na casa
pastoral.
Uma das mulheres da vizinhança havia se encarregado dos
preparativos para o jantar, uma vez que o pastor era solteiro. Tinha
cuidado de tudo da melhor forma possível, e o pastor surpreendera-
se ao ver que a casa já não parecia tão sinistra. A longa mesa de
jantar estava posta no pátio, sob a copa dos espruces, e parecia
muito agradável com a toalha branca, a porcelana azul e branca, os
copos polidos e os guardanapos dobrados. Duas bétulas
debruçavam-se por cima da entrada, havia ramos de zimbro a
enfeitar o chão do vestíbulo, a cumeeira estava decorada com uma
guirlanda de flores, em todos os cômodos havia flores, o cheiro de
bolor se dissipara e os vidros esverdeados das janelas reluziam
agradavelmente ao sol.
O coração do pastor se encheu de alegria. Ele pensou que nunca
mais iria beber.
Não havia ninguém que não estivesse alegre naquela mesa de
jantar. Aqueles homens, que tinham se mostrado tolerantes e
generosos, estavam alegres, e também estavam alegres os mais
distintos pastores por terem escapado de todo e qualquer
escândalo.
O caridoso bispo ergueu o copo e disse que havia embarcado
naquela viagem com a consciência pesada, uma vez que ouvira
rumores desagradáveis. Tinha partido imaginando encontrar um
Saulo, mas eis que Saulo já estava transformado em Paulo, em um
homem que haveria de trabalhar mais do que todos os outros. E o
pio senhor continuou a falar sobre os muitos talentos daquele irmão
mais jovem, e também a elogiá-lo. Não para que se tornasse
arrogante, mas para que pudesse envidar todos os esforços e vigiar
a si mesmo, como devem fazer todos aqueles que carregam um
fardo deveras pesado e precioso nas costas.
O pastor não se embebedou durante o jantar, mas bebeu o
suficiente para sentir-se alterado. Uma felicidade enorme e
inesperada subiu-lhe à cabeça. O céu havia permitido que a língua
de fogo da inspiração chamejasse acima dele, e as pessoas haviam
retribuído com amor. O sangue continuou a correr-lhe pelas veias
com o calor da febre e a uma velocidade impressionante, mesmo
quando a noite caiu e os convivas partiram. Durante a madrugada,
ele sentou-se no quarto, ainda desperto, e deixou que o ar noturno
entrasse pela janela aberta para resfriar aquela febre de bem-
aventurança, aquela agitação deliciosa que o impedia de dormir.
De repente uma voz se fez ouvir.
– Estás acordado, pastor?
Um homem atravessou o gramado e aproximou-se da janela. O
pastor olhou para fora e reconheceu o capitão Kristian Bergh, um de
seus fiéis companheiros de bebedeira. O capitão Kristian era um
homem sem rumo e sem posses, e um verdadeiro gigante no porte
e nas forças. Era grande como o monte Gurlita e estúpido como um
troll da montanha.
– Claro que estou de pé, capitão Kristian – respondeu o pastor. –
Achas que esta é uma noite para se dormir?
E ouça agora o que o capitão Kristian respondeu ao pastor! Esse
gigante tinha lá seus pressentimentos, e havia compreendido que o
pastor estava pronto para mais uma bebedeira. Ele nunca mais teria
sossego, pensou o capitão Kristian, pois aqueles pastores escolares
de Karlstad, que já lhe haviam feito uma visita, podiam voltar a
qualquer momento e retirar-lhe a batina, caso bebesse.
Mas naquela altura o capitão Kristian já havia pesado a mão para
atingir um fim nobre, já tomara as providências necessárias para
que aqueles pastores escolares nunca mais voltassem – nem eles
nem o bispo. Doravante o pastor e seus amigos poderiam beber o
quanto quisessem na casa pastoral.
Ouça que grande façanha levou a efeito Kristian Bergh, esse
possante capitão! Quando o bispo e os dois pastores escolares
subiram na carruagem fechada e as portas estavam bem, bem
fechadas, o próprio capitão ocupou o assento do cocheiro e os
conduziu por 2 ou 3 léguas naquela noite clara de verão.
E então Kristian Bergh fez com que os reverendos sentissem
como são frágeis as amarras que mantêm a vida presa ao corpo do
homem. Em meio a uma carreira desatinada, deixou que os cavalos
galopassem. Era o que mereciam por não tolerarem que um homem
honrado se embriagasse.
Acha que o capitão os levou pelo caminho, acha que evitou os
solavancos? Pois ele passou por cima de sulcos e de terrenos
irregulares, avançou em um galope desenfreado morro abaixo,
correu ao longo da orla de maneira que a água revoluteasse em
torno das rodas, esteve prestes a atolar no palude e desceu por
rochas nuas de maneira que os cavalos andassem com as patas
rígidas e escorregassem. E durante todo esse tempo o bispo e os
pastores escolares mantinham-se com o rosto pálido atrás das
cortinas de couro, murmurando súplicas. Jamais haviam feito
viagem pior.
E imagine a expressão naqueles rostos quando chegaram à
estalagem de Rissäter, vivos, porém sacudidos como chumbo numa
bolsa de couro!
– O que significa isso, capitão Kristian? – perguntou o bispo
assim que abriu a porta da carruagem.
– Significa que o bispo deve pensar duas vezes antes de fazer
outra visita a Gösta Berling – respondeu o capitão Kristian, que
havia pensado na frase de antemão para não errar.
– Avise então a Gösta Berling – disse o bispo – que nem eu nem
nenhum outro bispo vamos tornar a visitá-lo!
Veja, foi essa bravata que o possante capitão Kristian contou ao
pastor ainda de pé junto à janela em meio àquela noite de verão.
Pois o capitão Kristian tinha acabado de ir à estalagem com os
cavalos e de voltar para dar as boas-novas ao pastor.
– Podes agora ficar tranquilo, meu pastor e irmão – disse.
Ah, capitão Kristian! Os pastores escolares tinham ficado com o
rosto pálido atrás da cortina de couro, mas naquela noite clara de
verão o pastor deu a impressão de estar ainda mais pálido que eles.
Ah, capitão Kristian!
O pastor chegou a erguer o braço e esteve prestes a desferir
uma terrível bofetada contra o rosto tosco e estúpido daquele
gigante, porém se deteve. Fechou a janela com um estrondo e
parou no meio do cômodo, brandindo o punho cerrado.
Ele, um homem para quem a língua de fogo da inspiração havia
chamejado, ele, que havia proclamado a glória de Deus, de repente
pensou que Deus só podia estar brincando com ele.
Acaso o bispo não havia de crer que o capitão Kristian fora
enviado por ordem do pastor? Acaso não havia de crer que passara
o dia inteiro às voltas com mentiras e hipocrisias? A partir daquele
momento, o bispo haveria de levar a sério a investigação contra ele;
a partir daquele momento, haveria de suspendê-lo e destituí-lo.
Quando a manhã chegou, o pastor não estava em casa. Não se
preocupara em estar lá para apresentar sua defesa. Deus havia
brincado com ele. Deus não queria ajudá-lo. Ele sabia que acabaria
por ser destituído. Era a vontade de Deus. Seria melhor aceitá-la de
uma vez por todas.
Tudo isso se passou no começo do século XIX, em uma paróquia
distante localizada no oeste da província de Värmland.
Foi a primeira agrura que se abateu sobre Gösta Berling; porém
não a última.
Para os potros que não aguentam esporas e chicotes a vida é
árdua. A cada dor que os aflige, disparam em carreira por caminhos
fortuitos rumo ao fundo do abismo. Assim que o caminho torna-se
pedregoso e a viagem preocupante, não sabem fazer mais que
derrubar a carga e correr em desvario.
EM UM DIA FRIO DE DEZEMBRO UM MENDIGO surgiu vagando pelos
morros de Broby. Trajava os mais sórdidos andrajos e usava
sapatos tão gastos que a neve fria umedecia-lhe os pés.
O Löven é um lago longo e delgado em Värmland, que em dois
ou três pontos afunila-se em estreitos longos e delgados. Ao norte,
sobe rumo às florestas dos finlandeses, e ao sul desce rumo ao lago
Vänern. Muitas paróquias estendem-se ao longo dessas margens,
mas a paróquia de Bro é a maior e a mais rica. Ocupa boa parte das
orlas do lago, tanto na margem leste como na margem oeste, mas é
na margem oeste que se encontram as maiores casas senhoriais,
como Ekeby e Björne, conhecidas pela opulência e pela beleza, e o
grande povoado de Broby, servido por estalagem, tribunal,
comissariado, casa pastoral e mercado.
Broby fica em uma encosta íngreme. O mendigo passara em
frente à estalagem, localizada no pé do morro, e arrastava-se em
direção à casa pastoral, localizada no ponto mais alto.
À frente, no morro, seguia uma menininha que puxava um trenó
carregado com um saco de farinha. O mendigo apressou-se em
alcançar a menina e pôs-se a falar com ela.
– Que potrinha tão pequena para uma carga tão grande! – disse.
A criança virou-se e olhou para ele. Era uma menina de cerca de
12 anos com olhos atentos e penetrantes e lábios apertados.
– Quisesse Deus que a potrinha fosse menor e a carga maior,
porque assim duraria mais – respondeu a menina.
– Então é tua própria comida que levas para casa?
– Com a graça de Deus. Preciso arranjar minha própria comida,
por menor que eu seja.
O mendigo pôs a mão na parte traseira do trenó para empurrá-lo.
A menina virou-se e o encarou.
– Não penses que ganharás algo em troca disso – ela disse.
O mendigo começou a rir.
– Tu deves ser a filha do pastor de Broby – ele disse.
– Sou mesmo. Muitos têm pais mais pobres, mas ninguém tem
um pior. É a mais pura verdade, embora seja uma vergonha que a
própria filha dele precise dizer isso.
– Dizem que é um homem avaro e malvado, o teu pai.
– Avaro ele é, e malvado também, mas a filha deve ser ainda pior
enquanto viver, segundo dizem por aí.
– E pelo que estou vendo as pessoas têm razão. Mas o que eu
queria mesmo saber é onde arranjaste esse saco de farinha.
– Não vai fazer muita diferença se eu contar. Eu peguei os grãos
do celeiro do meu pai hoje pela manhã e estou voltando do moinho.
– E ele não poderá ver-te quando apareceres com o saco?
– Abandonaste a escola demasiado cedo. O meu pai está
fazendo visitas à paróquia, entendes?
– Alguém está subindo o morro atrás de nós. Ouço o rumor das
pranchas. Imagina se for ele!
A menina escutou e olhou ao redor, e então começou a chorar.
– É o meu pai – ela fungou. – Ele vai me matar. Ele vai me matar.
– Enfim, agora os bons conselhos são preciosos, e os conselhos
rápidos, mais valiosos do que ouro e prata – disse o mendigo.
– Escuta – disse a menina –, tu podes me ajudar. Pega a corda e
puxa o trenó, porque assim o meu pai vai pensar que é teu.
– Mas depois o que eu vou fazer com isso? – perguntou o
mendigo, passando a corda por cima do ombro.
– Carrega-o para onde quiseres, mas leva-o à casa pastoral
depois que escurecer! Eu posso cuidar de ti. Mas precisas levar o
saco e o trenó, entendido?
– Vou tentar.
– Deus tenha piedade de ti, caso não apareças! – gritou a
menina enquanto corria para longe, apressando-se para chegar em
casa antes do pai.
O mendigo virou o trenó com o coração pesado e o levou até a
estalagem.
O coitado havia se entregado a um sonho enquanto caminhava
pela neve com os pés quase descalços. Estava caminhando e
pensando nas grandes florestas a norte do Löven, nas grandes
florestas dos finlandeses.
Lá, na paróquia de Bro, onde naquele momento andava ao longo
do estreito que liga as águas do Övre Löven ao Nedre Löven,
naquela região famosa pela riqueza e pela alegria, onde há uma
casa senhorial ao lado da outra, fundição ao lado de fundição, lá
todos os caminhos eram demasiado árduos, todos os cômodos
demasiado exíguos, todas as camas demasiado duras para ele. Lá
não lhe restava mais do que ansiar com amargura pela serenidade
das grandes florestas eternas.
Lá ele ouvia ruídos no interior de cada celeiro, como se o
debulhar dos grãos jamais chegasse ao fim. Carregamentos de
madeira e trenós repletos de carvão deixavam sem parar aquelas
florestas inexauríveis. Incontáveis cargas de minério eram
transportadas pelos fundos sulcos da estrada, marcada por
centenas de outras rodas. Ele viu trenós repletos de gente
apressarem-se de uma propriedade a outra, e sentiu como se a
alegria segurasse as rédeas e a beleza e o amor deslizassem sobre
aquelas pranchas. Ah, como aquele coitado ansiava pela
serenidade das grandes florestas eternas!
Era por lá, onde as árvores se erguem a prumo como pilares no
terreno plano, onde a neve repousa em camadas ponderosas sobre
os galhos imóveis, onde o vento perde as forças e não faz mais do
que brincar em silêncio com as agulhas das copas altaneiras, era
por lá que desejava perambular cada vez mais, até que um dia as
forças lhe faltassem e ele caísse sob as grandes árvores para
morrer de fome e frio.
Ansiava pelo grande e sussurrante túmulo às margens do Löven,
onde seria vencido pelas forças da aniquilação, onde enfim a fome,
o frio, o cansaço e a aguardente poderiam desfazer aquele pobre
corpo, que a tudo havia suportado.
Ele chegou à estalagem e quis passar a noite ali. Entrou na
taverna e sentou-se para sucumbir a um descanso letárgico no
banco junto à porta, sonhando com as florestas eternas.
A estalajadeira solidarizou-se com o homem e ofereceu-lhe um
gole de aguardente. Chegou mesmo a oferecer-lhe uma segunda
dose, ao ver que pedia com tanta insistência.
Mas não quis dar-lhe mais do que isso, e o mendigo então
desesperou-se. Precisava beber mais daquela aguardente forte e
doce. Precisava sentir mais uma vez o coração dançar no peito e os
pensamentos arderem na embriaguez. Ah, o doce produto do grão!
O sol do verão, o canto dos pássaros no verão, o perfume e a
beleza do verão pairavam em meio àquela onda branca. Mais uma
vez, antes de sumir em meio à noite e à escuridão, queria beber do
sol e da felicidade.
E então trocou primeiro a farinha, depois o saco de farinha e
enfim o trenó por copos de aguardente. Em troca, conseguiu uma
boa embriaguez e dormiu a maior parte da tarde em um banco da
taverna.
Ao acordar, compreendeu que lhe restava apenas uma coisa a
fazer. Posto que aquele corpo miserável assumira por completo o
controle de sua alma, posto que teria bebido qualquer coisa que
uma criança lhe confiasse, posto que era uma vergonha para o
mundo, a única coisa a fazer seria livrar o mundo de tanta miséria.
Era preciso devolver a liberdade à própria alma e permitir que ela se
encontrasse com Deus.
Ele sentou-se no banco da taverna e começou o julgamento de si
mesmo: “Gösta Berling, pastor destituído, acusado de ter bebido a
farinha de uma criança faminta, foi condenado à morte. Que morte?
A morte nos montes de neve”.
Ele pegou a touca e saiu aos tropeços. Não estava nem de todo
desperto nem de todo sóbrio. Chorou com pena de si mesmo, com
toda a pobre alma conspurcada que havia de libertar.
Ele não foi longe e não se desviou do caminho. Já na beira da
estrada havia um monte de neve bastante alto. Foi dali que se jogou
para a morte. Fechou os olhos e tentou dormir.
Ninguém sabe quanto tempo passou lá deitado, mas ainda
estava vivo quando a filha do pastor de Broby chegou correndo pela
estrada carregando um lampião e o encontrou no monte de neve à
beira da estrada. Tinha-o esperado horas a fio. Naquele momento,
havia descido os morros de Broby na tentativa de encontrá-lo.
Ela o reconheceu de pronto, e então começou a sacudi-lo e a
gritar com todas as forças para acordá-lo.
Precisava saber o que tinha feito com o saco de farinha.
Precisava chamá-lo de volta à vida por um instante que fosse,
para que assim o homem pudesse contar-lhe que fim haviam levado
o trenó e o saco de farinha. O doce pai haveria de dar-lhe uma surra
tremenda caso houvesse perdido o trenó. Ela mordeu um dos dedos
do mendigo e arranhou-lhe o rosto enquanto gritava
desesperadamente.
De repente uma pessoa montada em um trenó surgiu na estrada.
– Quem diabos está gritando desse jeito? – perguntou uma voz
ríspida.
– Eu quero saber o que esse sujeito fez com o meu saco de
farinha e o meu trenó – disse a menina, fungando, enquanto batia
com os punhos fechados no peito do mendigo.
– Ele está congelado, e o esmurras desse jeito? Levanta-te daí,
fera!
A pessoa era uma mulher grande e grosseira. Ela desceu do
trenó e aproximou-se do monte de neve. Agarrou a menina pela
nuca e jogou-a na estrada. Depois se abaixou, passou os braços por
baixo do corpo do mendigo e o levantou. Então levou-o até o trenó e
o instalou lá dentro.
– Vem comigo até a estalagem, fera – a mulher gritou para a filha
do pastor –, para que possamos ouvir o que tens a dizer sobre essa
história!
*
Puxe o grande trenó de madeira para dentro da forja, pare bem
no meio da peça e largue um forro de carroça em cima das ripas!
Assim temos uma mesa. Viva a mesa! A mesa está pronta!
Traga agora as cadeiras, tudo que pode ser usado para se
sentar! Traga os bancos de sapateiro com três pernas e os caixotes
vazios! Traga as antigas cadeiras estragadas já sem espaldar, e
traga os trenós sem pranchas e a velha carruagem! Hahaha, traga a
velha carruagem! Vai ser a tribuna do orador.
Veja só, faltam-lhe uma das rodas e toda a cabine! Resta apenas
a boleia, com o assento estragado, a turfa do forro saindo para fora
e o couro avermelhado pelo tempo. Aquela velha ruína tem a altura
de uma casa. Segure, segure, ou então tudo cai!
Viva! Viva! É noite de Natal em Ekeby.
Atrás do dossel de seda que guarnece a larga cama, o major
dorme com a esposa, na certeza de que os cavalheiros fazem o
mesmo. Os criados e as criadas precisam dormir, empapuçados
como se encontram de mingau e cerveja amarga, mas o mesmo não
se pode dizer a respeito dos senhores na ala dos cavalheiros. Como
alguém poderia imaginar que a ala dos cavalheiros estaria
dormindo?
Não há ferreiros de calças curtas vertendo metal derretido, os
garotos cobertos de fuligem não empurram carrinhos de carvão, o
martinete encontra-se pendurado como um braço de punho cerrado
próximo ao teto; o lugar todo está vazio, os fornos não abrem a
bocarra para devorar carvão e o fole não arfa. É Natal. A forja
dorme.
Dorme, dorme! Ah, tu, filho do homem, dormes, enquanto os
cavalheiros mantêm-se acordados! As longas tenazes encontram-se
de pé no chão, com velas de sebo nas garras. Do caldeirão de
cobre reluzente as chamas azuis do conhaque flambado se erguem
rumo à escuridão do teto. O lampião de Beerencreutz está
pendurado no martinete. O ponche amarelo reluz na jarra como um
sol ardente. Há mesas, há bancos. Os cavalheiros celebram o Natal
na forja.
Há alegria e barulho, cantorias e música. O barulho da festa
noturna, porém, não desperta ninguém. Toda a balbúrdia da forja
morre em meio ao forte murmúrio da corredeira lá fora.
Há alegria e barulho. Imagine se a senhora os visse naquele
momento!
O que faria? Com certeza haveria de sentar-se entre eles e
esvaziar um cálice. A senhora é uma mulher decidida, que não foge
de uma boa cantoria nem de uma sessão de carteado. A mulher
mais rica de Värmland, destemida como um homem, orgulhosa
como uma rainha. Ela adora cantorias acompanhadas por vibrantes
trompas e violinos. Gosta do vinho e das cartas, e da mesa repleta
de alegres convivas. Queria ver a despensa exaurida, dança e
diversão nas salas e câmaras, e a ala dos cavalheiros cheia de
cavalheiros.
Veja-os ao redor da jarra de ponche, um cavalheiro ao lado do
outro! São doze no total, doze homens. Nada de borboletas, nada
de janotas, mas homens cuja fama tarda a morrer em Värmland:
homens corajosos, homens fortes.
Nada de pergaminhos secos, nada de sacos de dinheiro
amarrados; são homens pobres, homens despreocupados,
cavalheiros em tempo integral.
Nada de meninos na barra do vestido da mãe, nada de senhores
sonolentos na própria morada. São homens viajantes, homens
alegres, cavaleiros de mil aventuras.
Há muitos anos a ala dos cavalheiros encontra-se vazia. Ekeby
não é mais o refúgio escolhido pelos cavalheiros. Oficiais
aposentados e nobres empobrecidos já não andam por Värmland
em coches bamboleantes de um só cavalo. Mas deixe que os
mortos vivam, deixe que se levantem, alegres, despreocupados,
eternamente jovens!
Todos esses homens célebres sabem tocar um ou mais
instrumentos. Todos são tão cheios de peculiaridades e tiradas, de
caprichos e canções, como um formigueiro é cheio de formigas, mas
assim mesmo cada um tem características próprias e a virtude
própria do cavalheiro, que o distingue dos demais.
E, dentre aqueles que se encontram sentados ao redor da jarra
de ponche, eu gostaria de mencionar Beerencreutz, o coronel com o
grande bigode grisalho, apreciador de carteado, declamador dos
versos de Bellman, e com ele o amigo e camarada de guerra, o
calado major, o grande caçador de ursos Anders Fuchs, e, como
terceiro na trupe, o pequeno Ruster, o tamboreiro, que por muito
tempo fora criado do coronel, mas ascendera à posição de
cavalheiro graças à habilidade no preparo de ponche e na execução
do baixo contínuo. Depois, é preciso mencionar o velho segundo-
tenente Rutger von Örneclou, o encantador de mulheres, usando
lenço de pescoço e peruca, ornado com um peitilho e maquiado
como uma dama. Era um dos mais distintos cavalheiros, juntamente
com Kristian Bergh, o possante capitão, que era um herói
formidável, embora se deixasse enganar com a mesma facilidade
que os gigantes das fábulas. Na companhia desses dois, com
frequência também se via o pequeno e rotundo patrão Julius, um
homem atilado, divertido e talentoso: orador, pintor, cantor e
contador de anedotas. De bom grado pregava peças no segundo-
tenente acometido pela gota e no gigante estúpido.
Também havia Kevenhüller, o grande alemão, inventor do carro
semovente e da máquina voadora, ele, cujo nome ainda ecoa pelas
florestas sussurrantes. Um gentil-homem no berço e até mesmo na
aparência, com grandes bigodes torcidos, barba pontuda, nariz
aquilino e olhos estreitos e oblíquos em meio a uma teia de rugas.
Lá estava o primo Kristoffer, o valoroso guerreiro que jamais deixava
as paredes que formavam a ala dos cavalheiros, a não ser por
ocasião de uma caça ao urso ou de outra aventura temerária, e ao
lado dele o tio Eberhard, o filósofo, que não havia se fixado em
Ekeby por causa dos prazeres e da brincadeira, mas para, sem
nenhum tipo de preocupação com o próprio sustento, levar a cabo
seu grande trabalho sobre a ciência das ciências.
Por último, menciono agora o melhor de todo o grupo, o gentil
Löwenborg, um homem religioso que era bom demais para este
mundo e pouco entendia os caminhos dos homens, e Liljecrona, o
grande músico que tinha uma boa casa e sentia vontade constante
de visitá-la, mas assim mesmo via-se obrigado a permanecer em
Ekeby, pois seu espírito precisava de riqueza e de diversidade para
suportar a vida.
Todos os onze já haviam deixado a juventude para trás, e muitos
já tinham chegado à velhice, mas entre todos havia um que somava
apenas 30 anos e ainda dispunha de todas as forças do corpo e da
alma. Era Gösta Berling, o cavalheiro dos cavalheiros, que sozinho
era maior orador, cantor, músico, caçador, bebedor e jogador do que
todos os outros juntos. Evidenciava toda a virtude de um cavalheiro.
Em que homem a senhora de Ekeby o havia transformado!
Veja-o no alto da tribuna! A escuridão desce do teto preto em
festões pesados por cima dele. Sua cabeça luminosa reluz em meio
ao negrume, como a dos jovens deuses, dos jovens arautos da luz
que ordenaram o caos. Belo, alinhado e sedento por aventura, é lá
que se encontra.
Mas fala com profunda seriedade.
– Cavalheiros e irmãos! Aproximamo-nos da meia-noite, a festa
já vai bastante avançada e chega a hora de fazer um brinde ao 13º
conviva.
– Meu camarada Gösta! – exclama o patrão Julius. – Não há
nenhum 13º; somos apenas doze.
– Em Ekeby, todo ano morre um homem – Gösta prossegue, com
a voz mais sombria. – Um dos cavalheiros da ala morre; morre um
de nossos companheiros alegres, despreocupados e eternamente
jovens. O que mais lhes restaria? Cavalheiros não podem
envelhecer. Se nossas mãos trêmulas não pudessem erguer o copo,
se nossos olhos baços não pudessem distinguir as cartas, o que
seria a vida para nós, o que seríamos nós para a vida? Um dos
treze que celebram a noite de Natal na forja de Ekeby precisa
morrer, porém todo ano chega um novo para completar nosso
número. Um homem hábil no ofício da alegria, que saiba tocar
violino e jogar cartas, precisa aparecer e completar nosso grupo.
Borboletas velhas deviam morrer enquanto o sol de verão ainda
brilha. Um brinde ao 13º!
– Mas, Gösta, somos apenas doze – os cavalheiros retrucam,
sem erguer os copos.
Gösta Berling, a quem chamavam de poeta, embora nunca
escrevesse versos, continua, com a tranquilidade inabalada:
– Cavalheiros e irmãos! Acaso esqueceram-se de quem são? Os
senhores são aqueles que sustêm a força da alegria em Värmland.
Os senhores são aqueles que tangem as cordas, promovem a
dança, fazem com que as canções e a música ressoem por toda a
região! Os senhores sabem manter os corações longe do ouro, as
mãos longe do trabalho. Se os senhores não existissem, a dança
morreria, o verão morreria, as rosas morreriam, o carteado morreria,
a canção morreria, e em toda esta região abençoada não haveria
mais nada além de ferro e de patrões de fundições. A alegria há de
viver tanto quanto os senhores. Por seis anos celebrei a noite de
Natal na forja de Ekeby, e até hoje ninguém se recusou a beber à
saúde do 13º.
– Mas, Gösta – insistem os cavalheiros –, se somos apenas
doze, como beber à saúde do 13º?
Uma preocupação profunda desenha-se no rosto de Gösta.
– Então somos apenas doze? – ele pergunta. – Por quê? Acaso
devemos morrer e deixar esta terra? Acaso no ano que vem
devemos ser apenas onze, e no ano seguinte apenas dez? Acaso
nossos nomes devem passar à lenda, com o nosso grupo
aniquilado? Eu invoco o 13º, pois levantei-me para beber à saúde
dele! Das profundezas do mar, das entranhas da terra, do céu, do
inferno eu o chamo, aquele que há de completar o grupo dos
cavalheiros.
Então a chaminé range, então a porta da fornalha se abre, então
o 13º aparece.
É hirsuto, tem rabo e cascos de cavalo, chifres e barba pontuda,
e diante daquela visão todos os cavalheiros sobressaltam-se com
um grito.
Gösta Berling, porém, brada com júbilo incontido:
– O 13º chegou! Longa vida ao 13º!
E foi assim que ele, o velho inimigo dos homens, chegou àquela
companhia destemida a fim de perturbar a paz da noite sagrada. O
amigo das bruxas, aquele que assina contratos com sangue em
papel negro, ele, que dançara com a condessa em Ivarsnäs por sete
dias e não pudera ser afastado sequer por sete pastores, ele
chegou.
Os pensamentos cruzam a uma velocidade desatinada a cabeça
dos aventureiros, quando o veem. Todos se perguntam de quem ele
está atrás naquela noite.
Muitos estavam prontos para sair correndo de medo, porém logo
compreenderam que o chifrudo não havia chegado para levá-los a
seu reino obscuro, mas que o tilintar das taças e as melodias das
canções haviam-no atraído. Ele queria aproveitar a alegria dos
homens durante a sagrada noite de Natal e livrar-se do fardo da
governança durante aquele tempo de alegria.
Ó cavalheiros, cavalheiros, quem de vós acaso se lembra que é
noite de Natal? É agora que os anjos cantam para os pastores nos
campos. É agora que as crianças estão deitadas, com receio de cair
em sono profundo e não acordar a tempo da maravilhosa canção
matutina. Logo chegará a hora de acender as velas de Natal na
igreja de Bro, e mais longe, em meio às casas na floresta, o rapaz
preparou uma tocha de resina para iluminar o caminho da menina
até a igreja. Em todos os lares a dona da casa pôs velas na janela
para quando a procissão da igreja passar. O sineiro, ainda
sonolento, começa a entoar os salmos de Natal, enquanto o velho
preboste está deitado, avaliando se tem voz suficiente para a missa:
“Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade entre os
homens!”.
Ó cavalheiros, melhor teria sido que, naquela noite de paz,
houvésseis permanecido em vossas camas em vez de travar
convívio com o príncipe das trevas!
Mas eles o recebem com gritos de boas-vindas, como Gösta
havia feito. Um cálice cheio de conhaque flamejante foi posto em
sua mão. Os cavalheiros oferecem-lhe o lugar de honra junto à
mesa, e então o veem com alegria, como se aquele rosto feio de
sátiro carregasse ainda os prazenteiros traços da juventude amada.
Beerencreutz convida-o para um carteado, o patrão Julius canta
para ele suas melhores canções e Örneclou entabula uma conversa
sobre mulheres bonitas, essas criaturas maravilhosas que tornam a
vida mais agradável.
Ele sente-se bem, o chifrudo, quando, com o porte de um
príncipe, inclina-se para trás na boleia da velha carruagem e, com a
mão armada de garras, leva o cálice aos lábios sorridentes.
Mas Gösta Berling naturalmente faz um discurso em sua
homenagem.
– Escute-me, vossa senhoria – diz. – Por muito tempo o
esperamos aqui em Ekeby, posto que dificilmente teria acesso a
outro tipo de paraíso. Aqui vivemos sem fiar nem semear, como
vossa senhoria talvez já saiba. Aqui as codornas assadas voam-nos
direto à boca, aqui a cerveja amarga e a aguardente doce escoam
em córregos e riachos. Este é um bom lugar, vossa senhoria!
“Nós, cavalheiros, em verdade também o esperávamos, pois
nossa companhia não estava completa. Veja, o caso é que somos
mais do que aquilo que parecemos; somos a antiga companhia dos
doze, sobre a qual versa o poema, que viaja através dos tempos.
Éramos doze quando guiamos o mundo em meio às nuvens no topo
do Olimpo, e doze quando os pássaros moravam na copa
verdejante da árvore Yggdrasil. Aonde quer que o poema fosse, nós
o seguíamos. Acaso não fomos doze homens robustos ao redor da
távola redonda do Rei Artur, e acaso não andamos como doze
paladinos no exército de Carlos Magno? Um de nós foi Thor, outro
Júpiter, e ainda hoje todos os homens nos veem assim. As pessoas
decerto pressentem o lume divino por sob os trapos, a juba de leão
sob a pele de asno. O tempo não foi bondoso conosco, mas,
quando lá estamos, a forja transforma-se em Olimpo e a ala dos
cavalheiros, em Valhall.
“No entanto, vossa senhoria, nossa companhia não estava
completa. Pois todos sabemos que na companhia dos doze,
celebrada no poema, deve sempre haver um Loki, um Prometeu.
Sentimos falta dele.
“Vossa senhoria, eu lhe dou as boas-vindas!”
– Vede, vede! – diz o cão. – Que palavras gentis, que palavras
gentis! E pensar que não arranjei tempo para vos responder!
Negócios, rapazes, negócios. Dentro em pouco tenho de sair, mas
de outra forma eu teria gosto em permanecer convosco em qualquer
papel que fosse. Muito obrigado pelo convite, meus velhos
conversadores! Em breve tornaremos a ver-nos.
Quando os cavalheiros perguntam a que lado vai, ele responde
que a nobre senhora de Ekeby o espera para tratar da renovação do
contrato.
Um grande espanto toma conta dos cavalheiros.
A senhora de Ekeby é uma mulher austera e capaz. Consegue
levar um barril de centeio nas costas. Acompanha a carga de
minério, que vem da mina em Bergslagen, por todo o longo caminho
até Ekeby. Dorme como um camponês no chão do celeiro, usando
um saco como travesseiro. No inverno, por vezes cuida da carvoaria
e, no verão, acompanha uma jangada pelo lago Löven. Uma
senhora de autoridade. Pragueja como um menino de rua e governa
as sete fundições e as propriedades dos vizinhos como um rei,
governa a própria paróquia e as paróquias vizinhas – enfim, governa
toda a bela província de Värmland. Mas para os cavalheiros
desabrigados age como verdadeira mãe, e por isso todos tapam os
ouvidos quando ouvem as difamações espalhadas à boca miúda
segundo as quais teria parte com o diabo.
Assim, os cavalheiros perguntam com grande espanto que tipo
de contrato poderia ter com ela.
E ele responde, o tenebroso, que concedeu à senhora as sete
fundições em troca de, uma vez por ano, o envio de uma alma.
Ah, o terror que confrange os corações dos cavalheiros!
Todos já sabiam, claro, mas não haviam compreendido.
Em Ekeby, todo ano morre um homem, um dos cavalheiros da
ala morre, morre um daqueles companheiros alegres,
despreocupados e eternamente jovens. O que mais lhes restaria?
Cavalheiros não podem envelhecer. Se as mãos trêmulas não
pudessem erguer o copo, se os olhos baços não pudessem
distinguir as cartas, o que seria a vida para eles, e o que seriam eles
para a vida? As borboletas deviam morrer enquanto o sol ainda
brilha.
Mas é nesse instante que todos percebem o real sentido daquilo
tudo.
Ai daquela mulher! Por isso lhes deu tantas boas refeições, por
isso os deixa beber da cerveja amarga e da doce aguardente: para
que, dos salões de bebedeira e da mesa de carteado em Ekeby,
acabassem por encontrar, com passos cambaleantes, o rei da
danação, um por ano, a cada ano que passava.
Ai daquela mulher, daquela bruxa! Homens fortes e maravilhosos
haviam chegado a Ekeby, chegado para sucumbir! Porque era lá
que ela os arruinava. Aqueles cérebros não passavam de
cogumelos, aqueles pulmões não passavam de cinzas, e os
espíritos não passavam de uma escuridão quando caíam de cama,
já no leito de morte, e preparavam-se para aquela longa viagem
sem esperança, sem alma, sem virtude.
Ai daquela mulher! Foi assim que outros morreram, homens
melhores do que eles, e era assim que haveriam de morrer.
Mas os cavalheiros não passam demasiado tempo paralisados
sob o peso do terror.
– Tu, rei da danação! – exclamaram. – Com essa bruxa não hás
de jamais firmar um contrato em sangue; ela há de morrer.
Kristian Bergh, o possante capitão, tem a mais pesada marreta
da forja escorada no ombro. Pretende enterrá-la até o cabo na
cabeça da bruxa. Nenhuma outra alma há de ser por ela sacrificada.
– Quanto a ti, chifrudo, devíamos pôr-te em cima da bigorna e
botar o martinete a trabalhar. Com as tenazes, devíamos segurar-te
sob os golpes do martinete para ensinar-te a não correr atrás das
almas de cavalheiros.
Mas ele é covarde, o senhor das trevas, e a conversa acerca do
martinete em nada lhe agrada. Ele chama Kristian Bergh de volta e
põe-se a regatear com os cavalheiros.
– Peguem as sete propriedades este ano, cavalheiros, peguem-
nas para os senhores, e deem-me a senhora de Ekeby!
– Achas mesmo que somos tão vis quanto essa mulher? –
retruca o patrão Julius. – Queremos Ekeby e todas as demais
propriedades, mas, no que diz respeito à senhora, trata de
consegui-la por tua própria conta.
– O que pensa Gösta, o que pensa Gösta? – pergunta o gentil
Löwenborg. – Gösta Berling precisa falar! Precisamos ouvir a
opinião dele em uma decisão de tanta importância.
– Tudo isso é uma loucura – diz Gösta Berling. – Cavalheiros,
não se deixem enganar! O que somos nós para a senhora de
Ekeby? Com nossas almas pode acontecer o que tiver de acontecer,
mas a depender de minha vontade não vamos nos tornar canalhas
ingratos e nos portar como patifes e traidores. Comi à mesa dessa
senhora por muitos anos para traí-la agora.
– Gösta, tu bem podes ir para o inferno se quiseres! Quanto a
nós, preferimos tornar-nos senhores de Ekeby.
– Todos estão mesmo loucos ou simplesmente beberam a ponto
de perder o juízo? Por acaso acreditam que isso seja verdade? Por
acaso acreditam mesmo que esse é o cão? Não percebem que tudo
não passa de uma enganação?
– Vede, vede – diz o senhor das trevas –, esse homem não
percebe que está no caminho, mesmo após sete anos em Ekeby.
Não percebe que já chegou muito longe.
– Cala a boca, criatura! Eu mesmo ajudei a te enfiar nessa
fornalha.
– Como se fizesse diferença! Como se eu não fosse um demônio
tão bom quanto qualquer outro! É isso mesmo, Gösta Berling; já
estás comprometido. Já estás melhor, graças ao tratamento
recebido da senhora.
– Foi ela que me salvou – diz Gösta. – O que seria de mim sem
ela?
– Ora, ora! Como se ela não tivesse bons motivos para manter-te
aqui em Ekeby! Tu podes atrair muita gente para a armadilha, pois
tens grandes talentos. Certa vez tentaste escapar, deixaste-a dar a ti
uma pequena propriedade, e assim viraste um trabalhador, porque
querias comer do teu próprio pão. Todos os dias ela passava em
frente à propriedade, sempre tendo belas moças por companhia.
Certa vez Marianne Sinclaire a acompanhava; então tu largaste a pá
e o avental de couro, Gösta Berling, e voltaste a ser um cavalheiro.
– A estrada passava lá, cretino.
– Claro, claro, a estrada passava lá. Depois chegaste a Borg,
passaste a trabalhar como tutor de Henrik Dohna e quase lograste
tornar-te genro da condessa Märta. E foi graças a quem que a
jovem Ebba Dohna ouviu dizer que eras um pastor destituído, para
então recusar os teus avanços? Foi graças à senhora de Ekeby,
Gösta Berling. Queria-te de volta.
– Grande coisa! – Gösta retruca. – Ebba Dohna morreu logo
depois. Eu jamais a teria conquistado.
Nesse momento o senhor das trevas aproximou-se dele e bufou
em seu rosto:
– Morreu, claro que morreu. Ou melhor, matou-se por causa de ti,
embora ninguém tenha te contado.
– Como demônio, vais muito bem – diz Gösta.
– Posso assegurar-te que foi a senhora a cuidar de tudo. Queria-
te de volta à ala dos cavalheiros.
Gösta soltou uma gargalhada.
– Como demônio, vais muito bem – ele brada, descontrolado. –
Por que não haveríamos de fazer um contrato contigo? Decerto
podes arranjar-nos as sete fundições, se assim quiseres.
– Que bom ver que já não te pões contra a própria felicidade!
Os cavalheiros soltaram um suspiro de alívio. A situação havia
chegado a um ponto em que já não conseguiam fazer mais nada
sem Gösta. Se ele não tivesse aceitado as condições do negócio,
com certeza nada teria sido feito. Ademais, para aqueles
cavalheiros empobrecidos era uma grande coisa arranjar sete
fundições sobre as quais pudessem governar.
– Prestem bem atenção – diz Gösta. – Assumimos as sete
fundições para salvar as nossas almas, porém não para nos
tornarmos patrões que contam dinheiro e pesam minério de ferro.
Não queremos tornar-nos pergaminhos ressequidos, não queremos
tornar-nos sacos de moeda amarrados, mas queremos ser e
permanecer cavalheiros.
– Sábias palavras – murmurou o senhor das trevas.
– Sendo assim, se quiseres nos dar as sete fundições durante
um ano, podemos aceitá-las, mas presta bem atenção: se durante
esse tempo fizermos qualquer coisa indigna de um cavalheiro, se
fizermos qualquer coisa sábia, útil ou digna de uma velha, então
leva-nos os doze e, quando o ano acabar, trata de dar as fundições
para quem bem entenderes.
O cão esfregou as mãos de entusiasmo.
– Se todos nós, porém, nos comportarmos como legítimos
cavalheiros – Gösta continua –, prometes nunca mais fazer
contratos que digam respeito a Ekeby, e nada recebes por esse ano,
seja de nós, seja da senhora.
– É muito duro – diz o cão. – Ah, meu caro Gösta, com certeza
eu posso levar pelo menos uma alma, uma única alminha
condenada, não? Com certeza eu posso levar a senhora. Por que
estás a proteger a senhora?
– Não faço negócios com esse tipo de mercadoria – afirma Gösta
–, mas, se fazes questão de levar alguém, leva o velho Sintram, de
Fors; ele está pronto, e isso eu garanto.
– Vede, vede; não parece má ideia – diz o senhor das trevas,
sem nem ao menos piscar os olhos. – Cavalheiros ou Sintram, uns
ou o outro. Vai ser um bom ano.
E então o contrato foi assinado com o sangue do mindinho de
Gösta Berling, no papel preto do cão, usando a pena de ganso que
ofereceu.
Quando tudo acabou, os cavalheiros rejubilaram-se. A partir
daquele instante, toda a beleza do mundo havia de pertencer-lhes
por um ano inteiro, e depois tratariam de encontrar um jeito.
Todos afastam as cadeiras, dispõem-se em círculo ao redor do
caldeirão de conhaque flamejante que se encontra no centro do
assoalho preto, e dão início a uma dança vigorosa. No interior do
círculo o cão dança com saltos impressionantes, e por fim cai
deitado ao lado do caldeirão, emborca-o e começa a beber.
Então Beerencreutz atira-se ao lado dele, e também Gösta
Berling, e a seguir todos os outros deitam-se em um círculo ao redor
do caldeirão, que passa de boca em boca. Por fim um gesto
desajeitado o vira, e a bebida quente e grudenta escorre sobre
todos aqueles que estavam deitados.
Quando se levantam praguejando, o cão já desapareceu, mas a
promessa dourada que havia feito paira como se fossem coroas
reluzentes sobre a fronte dos cavalheiros.
NO DIA DE NATAL A SRA. SAMZELIUS oferece uma grande ceia em
Ekeby.
Preside como anfitriã uma mesa posta para cinquenta convivas.
Senta-se em meio ao esplendor e à magnificência; lá, não se faz
acompanhar pelo casaco curto de couro, pela saia listrada de lã e
pelo cachimbo de barro. Ela farfalha em seda, o ouro pesa-lhe nos
braços, as pérolas cingem-lhe o pescoço alvo.
E onde estão nessa hora os cavalheiros, onde estão aqueles
que, no assoalho preto da forja, beberam do caldeirão de cobre
lustroso à saúde dos novos senhores de Ekeby?
No canto junto da estufa os cavalheiros se encontram sentados a
uma mesa à parte; nesse dia, não têm lugar à mesa principal. A
comida lhes chega atrasada, o vinho é escasso, para lá não se
voltam os olhares das mais belas mulheres, ninguém ouve os
gracejos de Gösta.
Mas os cavalheiros são como potros mansos, como bichos
selvagens de barriga cheia. À noite, mal e mal dedicaram uma hora
de sono e logo saíram para o culto de Natal, iluminados por tochas e
estrelas. Viram as luzes de Natal, ouviram os salmos de Natal e
tinham no semblante a expressão de meninos sorridentes.
Esqueceram-se da noite de Natal passada na forja como em geral
esquecemos os sonhos ruins.
Grande e poderosa é a senhora de Ekeby. Quem se atreve a
erguer a mão para atingi-la, quem se atreve a abrir a boca para
testemunhar contra ela? Decerto não cavalheiros empobrecidos,
que por muitos anos comeram do seu pão e dormiram sob o seu
teto. A senhora pode sentá-los onde bem entender, pode bater-lhes
a porta na cara quando bem entender, e os cavalheiros nem sequer
teriam forças para escapar dessa violência. Que Deus tenha
piedade daquelas almas! Longe de Ekeby, jamais poderiam viver.
Na mesa principal os convivas regozijam-se: lá brilham os lindos
olhos de Marianne Sinclaire, lá soa a risada discreta da alegre
condessa Dohna.
Mas entre os cavalheiros a atmosfera é lúgubre. Não seria
simples permitir que aqueles homens que seriam atirados no abismo
por causa da senhora pudessem sentar-se à mesa dos outros
convivas? Que disposição humilhante era aquela, com uma mesa
no canto da estufa? Como se os cavalheiros não fossem dignos o
bastante para conviver com pessoas de bem!
A senhora orgulha-se de sentar-se entre o conde de Borg e o
preboste de Bro. Os cavalheiros mostram-se abatidos qual meninos
rejeitados. E durante esse tempo os pensamentos noturnos
ressurgem naquelas cabeças.
Como tímidos convivas, os caprichos alegres, as mentiras
divertidas começam a chegar à mesa no canto da estufa. E lá a fúria
da noite e a promessa da noite mantêm a influência sobre aqueles
cérebros. Claro que o patrão Julius convence Kristian Bergh, o
possante capitão, de que as perdizes assadas ora servidas ao redor
da mesa principal não chegariam a todos os convivas da ceia, mas
esse comentário não desperta nenhuma alegria.
– Não vão chegar – ele diz. – Eu sei quantas foram compradas.
Mas os nossos anfitriões não se pejaram em função disso, capitão
Kristian; logo trataram de assar corvos para os convivas na mesinha
do canto.
Mas os lábios do coronel Beerencreutz apenas se torcem em um
ricto cansado por trás do austero bigode, e durante o dia inteiro
Gösta dá a impressão de estar a ponto de matar alguém.
– Então cavalheiros não são dignos o suficiente para
experimentar todos os pratos? – ele pergunta.
Por fim uma bandeja abarrotada de perdizes magníficas chega à
mesinha do canto.
Mas o capitão Kristian está furioso. Não tinha passado a vida
inteira nutrindo ódio contra os corvos, contra aquelas pragas
ruidosas e repugnantes?
Odiava-os com tanta amargura que no outono havia trajado um
vestido longo de mulher e amarrado um xale na cabeça e se tornado
motivo de chacota para chegar a uma distância suficiente para atirar
enquanto os corvos devoravam os grãos nas lavouras.
Procurava-os nos descampados na época de acasalamento
durante a primavera a fim de matá-los. Procurava os ninhos durante
o verão e atirava longe os filhotes ainda sem plumas que gritavam,
ou então quebrava os ovos recém-postos.
Naquele instante o capitão puxou a bandeja com perdizes para
junto de si.
– Achas que eu não os reconheço? – ele ralha com o criado. –
Acaso preciso ouvi-los crocitar para reconhecê-los? Quanto
despeito! Oferecer corvos a Kristian Bergh! Quanto despeito!
A seguir o capitão pega as perdizes e atira-as contra a parede,
uma a uma.
– Quanto despeito! – ele grita de maneira que o salão inteiro
treme. – Oferecer corvos a Kristian Bergh! Quanto despeito!
E, do mesmo modo como tinha por hábito atirar os indefesos
filhotes de corvo de encontro aos escolhos, o capitão faz com que
as perdizes voem uma atrás da outra contra a parede.
Molho e gordura respingam ao redor, e os pássaros
despedaçados caem ao chão.
E a ala dos cavalheiros se rejubila.
Nesse momento, a voz furiosa da senhora chega aos ouvidos
dos cavalheiros.
– Levem-no para fora! – ela grita para os criados.
Mas os criados não se atrevem a tocá-lo. Apesar de tudo, ele é
Kristian Bergh, o possante capitão.
– Levem-no para fora!
O capitão ouve o grito e, terrível em sua fúria, vira-se para a
senhora como um urso que afasta os olhos de um oponente caído e
se vira para encarar um segundo atacante. Aproxima-se da mesa
em ferradura. Os passos daquele homem enorme ribombam contra
o chão. Ele para defronte à senhora, tendo apenas a mesa a
separá-los.
– Levem-no para fora! – a senhora torna a gritar.
Mas o capitão está tomado pela ira, e o semblante franzido e as
mãos fortes e crispadas instilam medo. Ele tem o tamanho de um
gigante, a força de um gigante. Os criados e os convivas
estremecem e não ousam tocá-lo. Quem ousaria tocá-lo naquele
momento, quando a raiva o privava do juízo?
Ele está defronte à senhora e brande o punho contra ela.
– Eu peguei o corvo e o atirei contra a parede. Não achas que fiz
bem?
– Saia daqui, capitão!
– Cala a boca, megera! Oferecer corvos a Kristian Bergh! Eu
faria bem se acabasse contigo além de tomar essas sete malditas…
– Com mil demônios, Kristian Bergh, já chega de praguejar!
Ninguém pragueja aqui a não ser eu.
– Achas que tenho medo de ti, megera feiticeira? Achas que eu
não sei como foi que conseguiste as tuas sete fundições?
– Capitão, calado!
– Quando morreu, Altringer deixou-as para o teu marido porque
tinhas sido amante dele.
– Faça o favor de permanecer calado!
– Porque foste uma esposa muito fiel, Margareta Samzelius. E o
major recebeu as sete fundições e deixou-te governá-las, e fez de
conta que nada tinha acontecido. Foi tudo obra de Satã; mas esse
vai ser o teu fim.
A senhora de Ekeby sentou-se, trêmula e pálida. Em seguida
confirmou, com uma voz fraca e estranha:
– É, esse vai mesmo ser o meu fim, e tudo por obra tua, Kristian
Bergh.
Ao perceber aquele tom, o capitão Kristian estremece, contorce o
rosto e começa a derramar lágrimas de angústia.
– Estou bêbado! – exclama. – Não sei o que estou dizendo; eu
não disse nada. Um cão e um escravo; por quarenta anos, não fui
nada para ela além de um cão e um escravo. Ela é Margareta
Celsing, a quem servi durante toda a minha vida. Não digo nada de
mau a respeito dessa mulher. Imaginar que eu faria comentários
desairosos a respeito da bela Margareta Celsing! Eu sou o cachorro
que lhe vigia a porta, o escravo que lhe transporta os fardos. Ela
pode me chutar, pode bater em mim! E vedes agora que aguento a
tudo calado. Amei-a por quarenta anos. Como eu poderia falar mal
dessa mulher?
E logo surge uma visão curiosa quando o capitão se põe de
joelhos e implora o perdão da senhora. E, como ela se encontrasse
do lado oposto da mesa, ele faz a volta de joelhos até alcançá-la.
Então abaixa a cabeça e beija-lhe a barra do vestido, enquanto o
chão se umedece com suas lágrimas.
Não muito longe da senhora, porém, encontra-se um homem
pequeno e robusto. Tem os cabelos desgrenhados, pequenos olhos
oblíquos e um queixo protuberante. Mais parece um urso. Um
homem lacônico, que prefere trilhar o próprio caminho em silêncio e
deixar que o mundo cuide de si. É o major Samzelius.
Ele se levanta ao ouvir as palavras acusatórias do capitão
Kristian, e levantam-se também a senhora e todos os cinquenta
convivas. As mulheres choram de medo pelo que pode acontecer,
os homens permanecem hesitantes, e prostrado aos pés da senhora
está o capitão Kristian, beijando-lhe a barra do vestido e
umedecendo o chão com lágrimas.
As mãos largas e hirsutas do major crispam-se, e devagar o
braço se ergue.
Mas a mulher fala primeiro. Fala num tom contido, diferente do
habitual.
– Tu me roubaste! – ela esbravejou. – Vieste como um
saqueador e levaste-me. Na casa onde eu morava, fui obrigada por
meio de golpes e pancadas, fome e palavras duras a desposar-te.
Tratei a ti como merecias.
Os punhos largos do major estão crispados. A senhora recua
dois passos. E então torna a falar:
– As enguias vivas se contorcem sob o gume da faca, e esposas
forçadas arranjam amantes. Pretendes bater em mim agora pelo
que aconteceu vinte anos atrás? Por que não me bateste na época?
Não te lembras de quando ele morava em Ekeby e nós em Sjö? Não
te lembras do quanto nos ajudou em nossa penúria? Andávamos
nas carruagens dele, bebíamos o vinho dele. Será que escondemos
alguma coisa de ti? Acaso os criados dele não eram os teus
criados? Acaso o ouro dele não te pesava nos bolsos? Acaso não
aceitaste as sete fundições? Aceitaste-as calado, mas foi naquele
momento que devias ter batido, Bernt Samzelius, foi naquele
momento que devias ter batido.
O homem para de encará-la e olha para todos os presentes. Vê
naqueles rostos que todos dão razão à senhora, que todos
acreditam que aceitara presentes e mercadorias em troca do
silêncio.
– Eu não sabia – ele diz, batendo o pé no chão.
– Pois bem, agora sabes – ela acrescenta, com a voz
altissonante. – Achas que não tive medo de que morresses antes de
saber? Pois bem, agora sabes, e assim posso enfim falar livremente
contigo, meu senhor e meu carcereiro. Trata de saber agora que eu
pertenci a ele, ao homem de quem me roubaste! Saibam disso
agora todos aqueles que me difamaram!
É o antigo amor que se rejubila naquela voz e faz com que seus
olhos cintilem. Diante de si tem o marido, com os punhos erguidos.
Horror e desprezo é o que vê nos cinquenta rostos diante de si. A
senhora percebe ser aquele o seu último momento de força. Mas
não consegue deixar de alegrar-se ao falar livremente sobre as mais
ternas lembranças da vida.
– Ele era um homem, um homem maravilhoso. Quem eras tu,
para te colocares entre nós dois? Nunca vi outro homem como ele.
Ele me deu a felicidade, me deu presentes. Abençoada seja essa
lembrança!
Por fim o major baixou o braço sem desferir o golpe – já sabe
como há de castigá-la.
– Sai – ele berra –, sai da minha casa!
A senhora permanece imóvel.
Mas os cavalheiros permanecem se encarando uns aos outros
com o rosto pálido. De repente parece que tudo há de se realizar
como o tenebroso havia previsto. Naquele momento, todos
perceberam as consequências da quebra do contrato com a
senhora. Mas, se for mesmo verdade, então é também verdade que
por mais de vinte anos mandou cavalheiros para o inferno, e que
também eles próprios estariam destinados a essa viagem. Ah,
aquela bruxa!
– Sai já daqui! – prosseguiu o major. – Vai mendigar pão na beira
da estrada! Não hás de ter mais nenhuma alegria trazida pelo
dinheiro dele, e não hás de morar nas terras dele. Esse é o fim da
senhora de Ekeby. O dia em que tornares a pôr os pés na minha
casa é o dia em que hei de matar-te.
– Estás me expulsando da minha própria casa?
– Tu não tens casa. Ekeby é minha.
Um espírito de hesitação se apossa da senhora. Ela se afasta
em direção à porta, e o major a segue de perto.
– Tu, que foste a desgraça da minha vida – ela se queixa –, hás
mesmo de ter ainda forças para fazer isso comigo?
– Fora, fora!
Ela se apoia contra o marco da porta, aperta as mãos e usa-as
para cobrir o rosto. Pensa na mãe e murmura para si mesma:
– Que sejas rejeitada como eu fui, que a estrada seja a tua casa,
e o feno a tua cama! Então é mesmo esse o destino que me espera.
É mesmo esse o meu destino.
O bom e velho preboste de Bro e o presidente do tribunal de
Munkerud aproximaram-se do major Samzelius e tentaram acalmá-
lo. Disseram-lhe que o melhor seria deixar essas velhas histórias
quietas, pôr tudo aquilo de lado, esquecer e perdoar.
Mas o major afastou as mãos bondosas que haviam pousado em
seus ombros. Era terrível aproximar-se dele, como pouco tempo
atrás tinha sido terrível aproximar-se de Kristian Bergh.
– Não se trata de uma velha história – ele brada. – Eu não sabia
de nada até hoje! Não tive a oportunidade de castigar essa adúltera!
Ao ouvir essa palavra, a senhora ergue a cabeça e recobra a
antiga coragem.
– Tu hás de sair antes de mim. Achas mesmo que vou me dobrar
perante a tua vontade? – ela pergunta. E então volta pela porta.
O major não responde, mas observa cada movimento dela,
pronto a revidar caso não encontre maneira de expulsá-la.
– Ajudem-me, meus bons cavalheiros – a senhora exclama –, a
amarrar esse homem e a levá-lo para fora até que recobre o juízo!
Lembrem-se de quem eu sou e de quem ele é! Pensem nisso, antes
que eu precise me dobrar à vontade dele! Eu me ocupo com tudo
aquilo que acontece em Ekeby enquanto ele passa o dia inteiro
sentado e alimenta os ursos nas tocas. Ajudem-me, meus bons
amigos e vizinhos! Este lugar há de se tornar uma tristeza sem fim
se eu deixar de existir. Os camponeses ganham o sustento ao
derrubar as minhas árvores e ao transportar minha gusa. Os
carvoeiros vivem de arranjar carvão para mim, e os jangadeiros de
transportar os meus troncos. Sou eu que distribuo o trabalho que
traz riqueza. Os ferreiros, artesãos e lenhadores vivem de servir a
mim. Acham mesmo que esse homem pode dar continuidade ao
meu trabalho? Pois digo-lhes agora mesmo que, se me expulsarem
daqui, vocês abrirão a porta para a fome e a necessidade.
Mais uma vez, diversas mãos se erguem para ajudar a senhora,
e mais uma vez diversas mãos convincentes pousam nos ombros
do major.
– Não! – ele diz. – Saiam daqui! Quem defende uma adúltera?
Aviso a todos que, se essa mulher não partir por vontade própria,
então eu mesmo vou levantá-la em meus braços e entregá-la para
os meus ursos.
Com essas palavras todas as mãos erguidas se abaixam.
E assim, na mais absoluta necessidade, a senhora dirige-se aos
cavalheiros.
– Os senhores também vão permitir que eu seja expulsa da
minha própria casa, cavalheiros? Acaso deixei os senhores
congelarem na neve do inverno? Acaso neguei-lhes cerveja amarga
e doce aguardente? Acaso exigi contrapartida ou trabalho dos
senhores em troca da comida e das roupas que eu oferecia? Acaso
os senhores não brincaram a meu lado, tranquilos como meninos ao
lado da mãe? Acaso a dança não atravessou os meus salões?
Acaso a alegria e as brincadeiras não foram o vosso pão de cada
dia? Não permitam que esse homem, que foi a desgraça da minha
vida, afaste-me da minha casa, cavalheiros! Não permitam que eu
me torne uma mendiga à beira da estrada!
Enquanto a senhora proferia essas palavras, Gösta Berling havia
se aproximado de uma bela menina de cabelos escuros que estava
sentada à mesa principal.
– Passaste um bom tempo em Borg cinco anos atrás, Anna – ele
diz. – Sabes se foi mesmo a senhora de Ekeby quem disse a Ebba
Dohna que eu era um pastor destituído?
– Gösta, ajuda a senhora! – é a única resposta que a menina
oferece.
– Saibas que primeiro quero ter claro se ela fez de mim um
assassino.
– Ora, Gösta, que ideia é essa? Ajuda-a, Gösta!
– Vejo que não queres responder. Então é mesmo verdade o que
Sintram me disse.
E Gösta retorna à companhia dos cavalheiros. Não levanta um
dedo para ajudar a senhora.
Ah, quem dera a senhora não houvesse sentado os cavalheiros à
mesa no canto da estufa! Agora os pensamentos noturnos estão
despertos naqueles cérebros, agora os rostos inflamam-se de uma
raiva que no entanto não é menor que a raiva sentida pelo major.
Os cavalheiros mantêm-se diante daquelas súplicas com uma
dureza implacável.
Não era como se tudo o que vissem confirmasse as visões da
noite anterior?
– Nota-se que o contrato da senhora não foi renovado – diz um
dos cavalheiros.
– Vai para o inferno, feiticeira! – grita outro.
– Por bons motivos devíamos ser nós a mandar-te porta afora.
– Cretinos! – o velho e contido tio Eberhard grita para os
cavalheiros. – Não entendem que tudo isso foi obra de Sintram?
– Claro que entendemos, claro que sabemos – responde Julius
–, mas que importa? Não pode ser verdade mesmo assim? Por
acaso Sintram não faz o trabalho do cão? Por acaso os dois não se
entendem entre si?
– Vai, Eberhard, vai ajudá-la! – os cavalheiros zombam. – Afinal,
não acreditas em inferno. Vai!
E Gösta Berling mantém-se imóvel, sem uma palavra, sem um
movimento.
Não, daquela ala sussurrante, ameaçadora e belicosa dos
cavalheiros não chega nenhuma ajuda para a senhora de Ekeby.
Mais uma vez a senhora afasta-se em direção à porta e leva as
mãos fechadas aos olhos.
– Que sejas rejeitada, como eu fui rejeitada! – ela grita para si
mesma, em uma tristeza amarga. – Que a estrada seja a tua casa, e
o feno a tua cama!
Então apoia uma das mãos na maçaneta da porta, enquanto
ergue a outra no ar.
– Prestem atenção vocês, vocês que precipitam a minha queda!
Prestem atenção, porque a hora logo há de chegar! Vocês agora
vão perder tudo, e este lugar vai acabar sendo abandonado. Como
pretendem manter-se, quando eu não estiver mais aqui para
sustentá-los? Tu, Melchior Sinclaire, que tens a mão pesada e fazes
com que a tua esposa sinta-lhe o peso, cuidado! Tu, pastor de
Broby, logo hás de receber teu castigo. Sra. Uggla, esposa do
capitão, cuida bem da tua casa, porque a pobreza bate à porta! E
vocês, mulheres jovens e belas, Elisabet Dohna, Marianne Sinclaire,
Anna Stjärnhök, não achem que sou a única a ter de fugir da própria
casa! Cavalheiros, tomem cuidado! Logo uma tempestade vai se
abater sobre esta terra. Vocês serão varridos da terra; a época de
vocês já passou, de fato já passou. Não me queixo por mim, mas
por vocês, pois a tempestade há de cair sobre as suas cabeças, e
quem vai se manter de pé, quando eu me encontro no chão? Meu
coração se entristece pelas gentes pobres. Quem vai dar-lhes
trabalho quando eu não estiver mais aqui?
Nesse instante a senhora abre a porta, mas logo o capitão
Kristian ergue a cabeça e diz:
– Quanto tempo vou manter-me prostrado aos teus pés,
Margareta Celsing? Não queres perdoar-me, para que assim eu
possa me levantar e defender-te?
A senhora trava uma batalha penosa consigo mesma; mas vê
que, se o perdoar, o capitão há de se erguer e brigar com seu
marido, e aquele homem, que a amou lealmente por quarenta anos,
tornar-se-ia um assassino.
– Acaso devo eu também perdoar? – ela pergunta. – Não és tu o
culpado pela minha desgraça, Kristian Bergh? Junta-te novamente
aos cavalheiros, e alegra-te com a tua proeza!
Então a senhora foi-se embora. Foi-se tranquila, deixando o
medo para trás. Tinha caído, mas não perdeu o orgulho, apesar da
humilhação. Não sucumbiu à tristeza dos fracos, porém ainda na
velhice rejubilou-se com o amor da juventude. Não se entregou às
lamúrias nem ao choro aflito, e, ao deixar tudo para trás, não
estremeceu quando teve de pegar uma trouxa e um cajado e sair
vagando pelas estradas. Lamentava apenas pelos camponeses
pobres e por aqueles homens alegres e despreocupados às
margens do Löven, por aqueles pobres cavalheiros, por todos
aqueles que havia protegido e sustentado.
Fora abandonada por todos, e assim mesmo reunira forças para
rejeitar o último amigo a fim de não o transformar em assassino.
A senhora era uma mulher extraordinária, grande na força e na
vontade de agir. Levaríamos tempo até encontrar mulher igual.
No dia seguinte, o major Samzelius deixou Ekeby e mudou-se
para a casa que tinha em Sjö, localizada próximo à principal
fundição.
O testamento de Altringer, por meio do qual o major havia
recebido as fundições, estabelecia de forma clara que nenhuma
poderia ser dada ou vendida, e que, após a morte do major, seriam
herdadas por sua esposa ou pelos herdeiros dela. Como não
houvesse meio de perder aquela herança odiosa, ele determinou
que os cavalheiros passassem a governar a propriedade, na crença
de que assim causaria a Ekeby e às outras seis propriedades o
maior estrago possível.
Ora, ninguém na região duvidava de que o malvado Sintram
fizesse o trabalho do cão, e, como tudo o que ele tinha prometido
havia se realizado, os cavalheiros estavam totalmente certos de que
o contrato seria cumprido à risca e completamente empenhados em
evitar, durante um ano, qualquer coisa sábia, útil ou menos viril;
ademais, estavam totalmente convencidos de que a senhora de
Ekeby era uma bruxa má que desejara a ruína de todos.
O velho tio Eberhard, o filósofo, havia feito troça daquela crença,
mas quem perguntava a opinião de um homem daqueles, tão
obstinado em sua descrença que, ainda que houvesse acabado em
meio às chamas do abismo e visto os demônios rirem de sua cara,
teria insistido em afirmar que nada daquilo existia, simplesmente
porque não podia existir, uma vez que o tio Eberhard era um grande
filósofo?
Gösta Berling não disse nada do que pensava. O certo é que não
sentia ter nenhuma dívida de gratidão para com a senhora por ela
tê-lo feito cavalheiro em Ekeby; antes ter morrido do que carregar na
consciência o fardo de saber que havia provocado o suicídio de
Ebba Dohna. Não levantou a mão a fim de vingar-se da senhora,
mas tampouco para ajudá-la. Simplesmente não conseguiu. Mas os
cavalheiros tinham obtido grande poder e grande opulência. O Natal
havia chegado, com suas festas e prazeres, o coração dos
cavalheiros estava repleto de júbilo e, qualquer que fosse a tristeza
a pesar sobre Gösta Berling, ele não a revelava no rosto ou nos
lábios.
ERA NATAL, E UM BAILE TERIA LUGAR EM BORG.
Naquela época – e logo hão de ter se passado sessenta anos –,
um jovem conde Dohna morava em Borg; era recém-casado, e a
condessa era jovem e bela. Sem dúvida haveria celebração na
antiga propriedade do conde.
O convite chegara até mesmo a Ekeby, mas ocorreu que, dentre
todos aqueles que haviam passado o Natal por lá, Gösta Berling, a
quem chamavam de “o poeta”, foi o único que se mostrou disposto a
fazer a viagem.
Tanto Borg como Ekeby situam-se às margens do extenso lago
Löven, embora em lados opostos. Borg situa-se na paróquia de
Svartsjö, e Ekeby, na de Bro. Quando as águas do lago não estão
navegáveis, a viagem entre Ekeby e Borg é de cerca de 3 léguas.
O pobre Gösta Berling foi enfeitado para a festa pelos velhos
cavalheiros como se fosse o filho de um rei que precisasse defender
a honra do reino.
O sobretudo de botões reluzentes era novo, o peitilho estava
engomado e os sapatos de verniz brilhavam. Usava uma
elegantíssima pele de castor e uma boina de zibelina sobre os
cabelos louros e crespos. Abriram uma pele de urso com garras de
prata em cima do trenó de corrida e ofereceram-lhe, para conduzi-lo,
o negro Don Juan, orgulho da cavalariça.
Ele assoviou para chamar o branco Tankred e pegou nas rédeas
trançadas. Tomado de júbilo, partiu rodeado pelo brilho da riqueza e
da opulência, ele, que ainda reluzia com a beleza do corpo e com a
gentileza brincalhona do espírito.
Partiu de manhã cedo. Era domingo, e ele ouviu os salmos da
igreja de Bro quando por lá passou. Depois avançou pela solitária
estrada da floresta, que segue rumo a Berga, onde naquela época
morava o capitão Uggla. Gösta Berling pretendia jantar por lá.
Berga não era uma casa rica. A fome conhecia o caminho até a
morada coberta de turfa onde vivia o capitão, mas o visitante foi
recebido com gracejos e alegrado por canções e brincadeiras, como
outros convivas, e partiu tão a contragosto quanto estes.
A velha dona Ulrika Dillner, que fazia pequenas tarefas e cuidava
das tapeçarias em Berga, deu as boas-vindas a Gösta Berling de pé
na escada. Recebeu-o com uma mesura, e os cachos da peruca,
que se estendiam por cima do rosto trigueiro com mil rugas,
dançaram alegremente. Acompanhou-o até a sala e logo se pôs a
contar sobre as pessoas da propriedade e as reviravoltas do
destino.
O desalento estava à porta, disse; era uma época amarga em
Berga. Não teriam sequer raiz-forte para acompanhar a carne
salgada se Ferdinand e as meninas não houvessem atrelado Disa a
um trenó e seguido até Munkerud para tomar um pouco
emprestado.
O capitão estava na floresta mais uma vez e provavelmente
tornaria a casa com uma lebre dura, que exigiria mais manteiga no
preparo do que a própria lebre valia. A isso ele chamava de levar
comida para casa. Apesar de tudo, já seria bom o suficiente caso
não voltasse para casa com uma terrível raposa, o pior animal que
nosso Senhor havia criado, tão imprestável vivo quanto morto.
Quanto à esposa do capitão, ah, ela ainda não havia se
levantado. Estava na cama lendo romances, como fazia todos os
dias. Não fora criada para trabalhar, aquele anjo de Deus.
Não, essas coisas deviam ser feitas por gente velha e grisalha,
como Ulrika Dillner. Era preciso esfalfar-se dia e noite para manter
aquela miséria em ordem. E nem sempre era fácil, pois a verdade
era que durante todo o inverno não houvera na casa nenhuma outra
carne a não ser um presunto de urso. E ela não esperava nenhuma
grande recompensa, não tinha recebido nenhuma, mas decerto não
haviam de abandoná-la na estrada quando já não pudesse fazer
nada para ganhar o próprio sustento. Naquela casa até mesmo uma
criada era tratada como gente, e com certeza haveriam de oferecer
à velha Ulrika um enterro honroso se tivessem meios para comprar
um caixão.
– Pois quem sabe o que pode acontecer? – ela exclamou, para
logo enxugar os olhos, sempre à beira das lágrimas. – Temos uma
dívida com o malvado patrão Sintram, e ele pode tirar tudo de nós.
Claro que agora Ferdinand está noivo da rica Anna Stjärnhök, mas
ela está se cansando, está se cansando dele. E o que há de ser de
nós, com três vacas e nove cavalos, com nossas alegres moças que
vão de baile em baile, com nossos campos secos onde nada cresce
e com nosso querido Ferdinand, que nunca se tornará um homem
de verdade? O que há de ser de toda essa bendita casa, onde tudo
vinga, menos o trabalho?
Mas logo chegou a hora do jantar, e as pessoas da casa se
reuniram. O querido Ferdinand, gentil filho da casa, e as alegres
filhas chegaram com a raiz-forte emprestada. O capitão chegou,
revigorado por um mergulho em um buraco no gelo do charco e por
uma caçada na floresta. Abriu a janela para tomar ar fresco e
apertou a mão de Gösta com a força de um homem. E a esposa do
capitão chegou, trajando seda, com rendas largas a cair por cima
das mãos alvas, que Gösta pôde beijar.
Todos receberam Gösta com alegria, os gracejos chegaram de
repente àquela companhia, e foi com satisfação que lhe
perguntaram:
– Como os senhores passam em Ekeby, como passam naquela
terra prometida?
– Aquela terra mana leite e mel – ele respondeu. – Retiramos o
ferro das montanhas e enchemos a cave de vinhos. Na lavoura,
cultivamos ouro para dourar a miséria da vida, e nossas florestas
são derrubadas para construir pistas de bolão e gazebos.
A esposa do capitão suspirou e riu ao ouvir a resposta, e uma
única palavra escapou-lhe dos lábios:
– Poeta!
– Tenho muitos pecados na minha consciência – respondeu
Gösta –, mas jamais escrevi uma linha de poesia.
– Mesmo assim, és poeta, Gösta; tens de aturar essa alcunha.
Viveste mais poemas do que certos escaldos tiveram chance de
escrever.
Depois a esposa do capitão falou, com uma ternura maternal,
sobre a vida desperdiçada de Gösta Berling.
– Ainda quero viver para ver-te tornar-te um homem – ela disse.
E ele sentiu o aconchego de ser provocado por aquela mulher terna
e amiga fiel, com um coração forte e apaixonado que ardia de
amores por grandes acontecimentos.
Mas, quando todos haviam terminado a agradável refeição e
degustado a carne salgada com raiz-forte e repolho, bolinhos fritos e
cerveja de Natal, e Gösta os havia feito rir e chorar ao narrar a
história do major, da senhora de Ekeby e do pastor de Broby,
sinetas soaram no pátio, e em seguida o malvado Sintram apareceu.
Brilhava de satisfação, desde a calva reluzente até os longos pés
chatos. Caminhava balançando os longos braços e com o rosto
contorcido. Era fácil perceber que trazia más notícias.
– Os senhores ouviram dizer – perguntou o malvado –, ouviram
dizer que hoje foram lidos os proclamas do casamento de Anna
Stjärnhök com o rico Dahlberg, na igreja de Svartsjö? Ela deve ter
esquecido que estava noiva de Ferdinand.
A família não tinha ouvido sequer uma palavra a esse respeito.
Todos se mostraram surpresos e lastimosos.
Logo pensaram que a casa seria destruída a fim de quitar a
dívida com o malvado: os amados cavalos seriam vendidos, bem
como os móveis puídos herdados da casa onde morava a esposa
do capitão. Viram o fim daquela vida alegre de festas e de passeios
de baile em baile. O presunto de urso reassumiria o lugar de antes à
mesa, e os filhos teriam de se afastar de casa e ganhar dinheiro na
casa de estranhos.
A esposa do capitão acariciou o filho e o fez sentir o consolo de
um amor que não falha jamais.
No entanto, lá estava o invencível Gösta Berling sentado entre os
demais, cogitando mil planos na cabeça.
– Escutem-me! – Gösta por fim exclamou. – Ainda não há motivo
para lamentações. Deve ter sido a esposa do pastor a aprontar uma
coisa dessas. Ela ganhou influência sobre Anna, que agora vive na
casa pastoral. Foi ela que a convenceu a abandonar Ferdinand em
favor do velho Dahlberg, mas os dois ainda não estão e tampouco
hão de estar casados. Estou agora mesmo a caminho de Borg para
falar com Anna. Vou conversar com ela e afastá-la do pastor e do
noivo. E vou trazê-la comigo para cá hoje à noite. Depois o velho
Dahlberg não há de receber mais nenhum favor dela.
E assim foi. Gösta percorreu sozinho o trajeto até Borg sem
oferecer carona às alegres moças, porém todos os que
permaneceram em casa desejaram-lhe sucesso na jornada. E
Sintram, que havia se rejubilado com o fato de que o velho Dahlberg
seria enganado, decidiu permanecer em Berga para ver Gösta voltar
com a noiva infiel. Em um acesso de boa vontade, chegou a
envolvê-lo no cinturão verde de viagem que havia ganhado da
própria sra. Ulrika.
Mas a esposa do capitão saiu à escada na frente da casa,
levando na mão três pequenos livros encadernados em vermelho.
– Leva-os – disse a Gösta, que já se encontrava no trenó. –
Leva-os, para o caso de fracassares! É Corinne, Corinne de
Madame de Staël. Não quero que esses livros sejam leiloados.
– Eu não vou fracassar.
– Ah, Gösta, Gösta! – ela disse, levando a mão à cabeça
descoberta do amigo –, o mais forte e o mais fraco dentre os
homens! Por quanto tempo hás de lembrar que a felicidade de uma
gente pobre está nas tuas mãos?
Mais uma vez Gösta avançou pela estrada, puxado pelo negro
Don Juan e seguido pelo branco Tankred, com o júbilo da aventura a
preencher-lhe a alma. Sentia-se como um jovem conquistador: tinha
o espírito consigo.
O caminho levou-o à casa pastoral em Svartsjö. Manobrou o
trenó e perguntou se poderia conduzir Anna Stjärnhök ao baile.
Concederam-lhe o pedido. No trenó, levava consigo uma bela e
obstinada menina. Quem não gostaria de ser levado pelo negro Don
Juan?
Os jovens eram sempre quietos a princípio, mas por fim ela deu
início à conversa, impertinente como a própria soberba.
– Você por acaso sabe o que o pastor leu hoje na igreja?
– Acaso disse que és a menina mais bonita entre o Löven e o
Klarälven?
– Você é estúpido; mas pelo menos isso as pessoas sabem. O
pastor leu os proclamas do meu casamento com Dahlberg.
– Jamais eu te haveria deixado sentar-te comigo neste trenó se
eu soubesse de uma coisa dessas. Eu jamais teria sequer me
disposto a conduzir-te!
E a orgulhosa herdeira respondeu:
– Decerto eu teria chegado mesmo sem Gösta Berling.
– Mesmo assim, é uma pena para ti, Anna – disse Gösta,
ponderando –, que não tenhas um pai e uma mãe na vida. És como
és, e não há ninguém que possa se ocupar de ti.
– E é uma pena ainda maior que não tenha dito essas coisas
antes, pois assim eu teria arranjado outro para me conduzir.
– A esposa do pastor também acha que precisas de uma pessoa
que ocupe o lugar do teu pai, uma vez que de outra forma ela não te
teria arranjado esse casamento com um pobre-diabo tão velho.
– Não foi a esposa do pastor que tomou essa decisão.
– Ah, por favor, poupe-nos! Foste tu mesma que escolheste um
sujeito tão galante?
– Ele não quis casar comigo pelo dinheiro.
– Não; os velhos correm somente atrás de olhos azuis e faces
rosadas, e parecem extremamente simpáticos quando se dedicam a
essa atividade.
– Ah, Gösta, você não tem vergonha?
– Lembra que a partir de agora não podes mais brincar com os
rapazes! Chega de dança e de brincadeira. Teu lugar é no canto do
sofá, ou por acaso pretendes jogar cartas com o velho Dahlberg?
A partir de então os dois seguiram em silêncio, até o momento
em que chegaram às encostas íngremes próximas de Borg.
– Obrigada pelo transporte! Mas vai demorar para que eu volte a
andar com Gösta Berling.
– Obrigado pela promessa! Conheço muitos que se
arrependeram do dia em que te levaram a uma festa.
Não com muita gentileza, a beldade atrevida do lugar entrou no
salão de baile e correu os olhos pelos convivas reunidos.
O primeiro que viu foi o pequeno e calvo Dahlberg, ao lado do
alto, esbelto e louro Gösta Berling. Ela teve vontade de expulsar os
dois do recinto.
O noivo aproximou-se a fim de convidá-la para uma dança, mas
ela o recebeu com um espanto destruidor.
– Você quer dançar? Não é o que costuma fazer!
E as meninas se aproximaram para fazer-lhe votos de felicidade.
– Não se deem ao trabalho, meninas! Não imaginem que alguém
possa se apaixonar pelo velho Dahlberg. Mas ele é rico, e eu sou
rica, então tudo se torna muito conveniente.
As senhoras de mais idade chegaram perto, apertaram-lhe a
mão alva e falaram sobre a maior felicidade nessa vida.
– Parabenizem a esposa do pastor! – ela disse então. – Ela está
mais feliz com tudo isso do que eu.
Mas lá estava Gösta Berling, o alegre cavalheiro, recebido com
júbilo por causa do sorriso fresco e das belas palavras, que
espalhavam pó de ouro sobre a gris fazenda que era a vida. Nunca
o tinham visto como o viram naquela tarde. Não se parecia com um
pária, um proscrito, um trocista sem lar, mas antes com um rei em
meio aos homens, um rei nato.
Ele e os rapazes mais jovens conspiraram contra Anna
Stjärnhök. Ela teria de pensar no mal que causava ao entregar seu
belo rosto e sua enorme riqueza a um velho. E assim a deixaram
sentada por dez danças.
Ela soltava fumaça de raiva.
Na undécima dança aproximou-se um homem, o mais reles
dentre os reles, um pobre-diabo com quem ninguém mais haveria
de dançar, e fez-lhe o convite.
– O pão acabou; tragam agora as migalhas – ela disse.
Logo começou um jogo de prendas. Meninas de cachos louros
juntaram as cabecinhas e exigiram que beijasse aquele de quem
mais gostava. E assim, com lábios sorridentes, esperaram para ver
a orgulhosa beldade beijar o velho Dahlberg.
Mas ela se levantou, majestosa na fúria, e disse:
– Será que não posso em vez disso dar uma bofetada naquele
de quem gosto menos?
No instante seguinte a bochecha de Gösta ardeu sob aquela mão
firme. Ele acabou muito vermelho, mas recompôs-se, pegou a mão
dela, segurou-a por um instante e sussurrou:
– Encontra-me daqui a meia hora na antessala vermelha no
andar de baixo!
Os olhos azuis brilharam para ela e a prenderam com grilhões
mágicos. Ela sentiu que seria preciso obedecer.
No andar de baixo, encontrou-o com orgulho e palavras duras.
– Por que interessa a Gösta Berling saber com quem me caso?
Ele ainda não tinha palavras suaves nos lábios nem julgava
aconselhável falar de imediato a respeito de Ferdinand.
– Não me pareceu ser um castigo duro demais que tenhas
passado dez danças sentada. No entanto, pretendes quebrar honras
e promessas sem receber nenhum castigo em troca. Se um homem
melhor do que eu tivesse se encarregado desse castigo, podia ter
sido bem mais difícil.
– Mas então o que fiz a ti e aos outros para que eu não possa
mais ter paz? É por causa do dinheiro que todos vocês me
perseguem. Vou jogar tudo no Löven, para que assim todo mundo
possa pescar as cédulas.
Anna Stjärnhök cobriu os olhos com as mãos e pôs-se a chorar
de mágoa.
Aquilo tocou o coração do poeta. Ele sentiu vergonha da própria
austeridade. A seguir, falou com um tom de voz manso.
– Ah, menina, menina, desculpa-me! Desculpa este pobre Gösta
Berling! Ninguém se preocupa com o que este coitado diz ou faz, e
disso bem sabes. Ninguém chora pela minha fúria; seria como
chorar pela picada de um mosquito. Sei que foi loucura, mas eu
queria evitar que a nossa mais bela e mais rica menina se casasse
com um velho. Mas agora vejo que não fiz senão entristecer-te.
Ele sentou-se no sofá ao lado dela. Aos poucos levou a mão à
cintura da menina, para assim, com uma ternura delicada, apoiá-la e
pô-la de pé.
Ela não o evitou. Apertou o corpo contra o dele, cingiu-lhe o
pescoço com os braços e pôs-se a chorar, com a linda cabecinha
apoiada em seu ombro.
Ah, poeta, o mais forte e o mais fraco dentre os homens! Não era
no teu pescoço que aqueles braços alvos deviam repousar!
– Se eu soubesse disso – ela sussurrou –, jamais teria aceitado
esse velho. Observei-te agora à tarde, e não há mais ninguém como
tu.
Mas, por entre os lábios pálidos, Gösta murmurou:
– Ferdinand.
A condessa o calou com um beijo.
– Ele não é nada, ninguém é mais do que tu. A ti eu posso ser
fiel.
– Eu sou Gösta Berling – ele disse, em tom lúgubre. – Comigo
não te podes casar.
– Mas é a ti que eu amo, porque és o mais esplêndido dentre os
homens. Não precisas fazer nada, não precisas ser nada. Nasceste
rei.
Então o sangue do poeta ferveu. A menina parecia bela e terna
com aquele amor. Ele a enlaçou nos braços.
– Se hás de ser minha, não podes ficar na casa pastoral. Permite
que eu te leve a Ekeby hoje à noite! Lá tenho como te defender até
a hora do nosso matrimônio.
Houve uma viagem desatinada noite adentro. Obedecendo aos
ditames do amor, os dois permitiram a Don Juan que os conduzisse.
Era como se os rangidos das pranchas fossem as lamentações das
pessoas traídas. Mas por que haveriam de se importar? Anna
Stjärnhök agarrou-se ao pescoço de Gösta, e ele se inclinou para
sussurrar-lhe ao pé do ouvido:
– Pode existir ventura que se compare à delícia de um prazer
roubado?
O que significavam os proclamas? Aqueles dois se amavam. E a
fúria das pessoas? Gösta Berling acreditava no destino, e o destino
os havia guiado: contra o destino ninguém pode.
Ainda que as estrelas fossem as luzes do matrimônio, acesas
para o matrimônio dela, ainda que as sinetas de Don Juan fossem
os sinos da igreja a conclamar toda a gente para testemunhar sua
união com o velho Dahlberg, teria igualmente fugido com Gösta
Berling. Eis a força do destino.
Os dois haviam deixado a casa pastoral e Munkerud para trás.
Ainda tinham meia légua a percorrer até chegar a Berga, e depois
meia légua até Ekeby. A estrada passava ao longo da orla da
floresta. À direita havia montanhas escuras, e à esquerda um longo
vale branco.
De repente Tankred apareceu correndo. Corria com tanto ímpeto
que dava a impressão de estar deitado. Ganindo de terror, saltou
para dentro do trenó e se encolheu aos pés de Anna.
Don Juan sobressaltou-se e correu em disparada.
– Lobos! – exclamou Gösta Berling.
Os dois viram uma longa fileira cinzenta surgir ao longo da cerca
da propriedade. Havia pelo menos uma dúzia.
Anna não sentiu medo. O dia tinha sido abençoado com
aventuras, e a noite prometia ser igual. Aquilo era a vida, deslizar
pela neve rumorejante, desafiando animais selvagens e pessoas.
Gösta praguejou, inclinou o corpo à frente e deu uma bela
vergastada em Don Juan com o chicote.
– Estás com medo? – Anna perguntou.
– Os lobos pretendem nos alcançar mais adiante, onde a estrada
faz a curva.
Don Juan corria lado a lado com os animais selvagens da
floresta enquanto Tankred gania de raiva e de pavor. Eles chegaram
à curva da estrada junto com os lobos, e Gösta afastou os mais
próximos com o chicote.
– Ah, Don Juan, meu rapaz, haverias de escapar muito depressa
a uma dúzia de lobos se não tivesses pessoas a carregar!
Os dois amarraram o cinturão de viagem atrás do trenó. Os lobos
sentiram medo e por um instante mantiveram-se distantes. Mas,
assim que venceram o pavor, um dos lobos saltou resfolegando em
direção ao trenó, com a língua pendurada e a bocarra escancarada.
Nessa hora Gösta pegou o Corinne de Madame de Staël e atirou-o
na goela do lobo.
Mais uma vez tiveram um instante para respirar enquanto os
animais dilaceravam aquela presa, mas logo começaram a sentir
puxões quando os lobos puseram-se a morder o cinturão verde de
viagem, e além disso ouviram a respiração resfolegante dos
animais. Os dois sabiam que não chegariam a nenhuma habitação
humana antes de Berga, mas para Gösta ainda pior do que a morte
seria encarar as pessoas que havia traído. Ele também sabia que o
cavalo acabaria por se cansar, e então o que seria deles?
Logo viram a propriedade de Berga junto à orla da floresta. Luzes
ardiam nas janelas. Gösta bem sabia por causa de quem.
Mas naquele instante os lobos fugiram, com medo da
proximidade humana, e Gösta atravessou Berga. Mesmo assim, não
foi além do ponto em que a estrada novamente adentra a floresta,
onde viu um grupo escuro logo à frente: os lobos o aguardavam.
– Vamos retornar à casa pastoral e dizer que demos um passeio
ao luar! Isso não pode dar certo.
Os dois fizeram a volta, porém no instante seguinte o trenó
encontrava-se rodeado por lobos. Vultos cinzentos apareceram com
dentes brancos que reluziam nas enormes bocarras e olhos que
ardiam. Os lobos uivavam devido à fome e à sede de sangue. Os
dentes luzidios ansiavam por fincar-se em carne humana macia. Os
lobos saltaram para cima de Don Juan e dependuraram-se no tecido
da sela. Anna pensou se haveriam de comê-los por inteiro ou se
restariam pedaços, de forma que na manhã seguinte as pessoas
descobrissem braços e pernas arrancados sobre a neve pisoteada e
sangrenta.
– Temos de lutar pelas nossas vidas – ela disse, enquanto se
abaixava e pegava Tankred pelo cangote.
– Deixa, isso não adianta de nada! Hoje à noite os lobos não
saíram atrás do cachorro.
A seguir Gösta manobrou em direção à propriedade de Berga,
mas os lobos continuaram a persegui-lo até os degraus da entrada.
Foi preciso defender-se com o chicote.
– Anna – ele disse enquanto os dois se encontravam ao pé da
escada –, Deus não quer. Faz uma cara boa; se és a mulher que
imagino seres, faz uma cara boa!
Do lado de dentro as pessoas ouviram o barulho das sinetas e
saíram da casa.
– Gösta a trouxe! – exclamaram. – Gösta a trouxe! Viva Gösta
Berling!
E os recém-chegados passaram de abraço em abraço.
Não houve muitas perguntas. A noite já estava avançada, os
viajantes estavam abalados pela jornada repleta de perigos e
precisavam repousar. Era suficiente que Anna tivesse retornado.
Tudo estava bem. Apenas Corinne e o cinturão verde de viagem,
valiosos presentes da sra. Ulrika, acabaram destruídos.
*
O grande urso mora no magnífico cimo da elevação chamada
monte Gurlita, que se ergue, íngreme e inacessível, na parte norte
do lago Löven.
As raízes de um espruce caído, das quais o musgo ainda pende,
fazem as vezes de paredes e telhado ao redor daquela habitação,
galhos e gravetos protegem-no e a neve o faz estanque. O urso
pode deitar-se lá dentro e dormir um sono bom e tranquilo entre um
verão e outro.
Será nesse caso um poeta, um sonhador indefeso esse hirsuto
rei da floresta, esse salteador de olhar enviesado? Será que deseja
passar dormindo as noites frias e os dias cinzentos do inverno, para
então ser acordado por riachos gorgolejantes e canções de
pássaro? Será que deseja permanecer lá, sonhando com arbustos
de airelas-vermelhas e formigueiros repletos das criaturinhas
marrons e deliciosas que pastam naquelas encostas? Será que ele,
bem-aventurado, deseja evitar o inverno da vida?
No lado de fora, os torvelinhos de neve sibilam em meio aos
espruces, no lado de fora lobos e raposas caminham ao redor,
loucos de fome. Por que somente ao urso é concedido dormir? Que
tenha de acordar e sentir o frio cortante, a dificuldade de andar em
meio à neve alta! Que tenha de acordar!
Mas ele preparou uma excelente cama. Parece a princesa
adormecida da antiga fábula. E, assim como a princesa é
despertada pelo amor, o urso há de ser despertado pelo chegar da
primavera. Por um raio de sol filtrado entre os gravetos que lhe
aquece o focinho, por gotas que pingam da neve que derrete,
umedecendo-lhe a pelagem, o urso há de ser despertado. E ai
daquele que o despertar antes da hora!
Mas, ah, se ao menos alguém perguntasse como o rei da floresta
deseja organizar a própria vida! Como se depressa uma saraivada
de chumbo já não houvesse atravessado os gravetos para encravar-
se em sua pele como uma nuvem de mosquitos em fúria!
De repente ele ouve gritos, barulhos e tiros. Espanta o sono para
longe das articulações e afasta os gravetos para ver do que se trata.
Há trabalho à espera daquele velho brigão. Ainda não é a primavera
que ribomba e estruge no lado de fora da toca, e tampouco o vento
que derruba espruces e levanta os torvelinhos de neve, mas os
cavalheiros, os cavalheiros de Ekeby.
Velhos conhecidos do rei da floresta. Ele ainda se recorda muito
bem da noite em que Fuchs e Beerencreutz estavam de tocaia no
estábulo de um camponês de Nygård, onde era aguardado. Os dois
tinham acabado de cochilar em cima da garrafa de aguardente
quando o urso entrou pelo telhado de turfa, mas acordaram quando
ele estava prestes a tirar a vaca morta da baia e atacaram-no com
faca e espingarda. Tiraram-lhe a vaca, além de um dos olhos, mas o
urso preservou a vida.
Bem, de fato ele e os cavalheiros são velhos conhecidos. O rei
da floresta ainda se recorda muito bem de quando o atacaram em
outra ocasião, quando ele e sua querida esposa tinham acabado de
se deitar para hibernar na velha fortaleza do rei no monte Gurlita
com os filhotes na toca. Recorda-se muito bem de que os atacaram
quando estavam indefesos. Claro que ele se salvou jogando para o
lado tudo o que obstruía a fuga, mas a partir de então passou a
mancar para o resto da vida por causa de um tiro que levou na coxa,
e, quando retornou à noite para a fortaleza real, a neve estava
vermelha com o sangue da esposa, e os filhotes reais tinham sido
levados à planície para lá crescerem como servos e amigos dos
homens.
Claro, agora o chão estremece, agora se balança a neve que
cobre a toca, e agora ele sai, o grande urso, esse velho inimigo dos
cavalheiros. Cuidado, Fuchs, velho matador de ursos, cuidado,
Beerencreutz, coronel e apreciador de carteado, cuidado, Gösta
Berling, herói de mil aventuras!
Ai de todos os poetas, todos os sonhadores, todos os heróis do
amor! Lá está Gösta Berling com o dedo no gatilho, e o urso avança
sem parar em sua direção. Por que não atira? No que estaria
pensando?
Por que não crava uma bala agora mesmo naquele peito largo?
Ele está no lugar perfeito para fazer isso. Os outros não vão ter a
chance de atirar no momento certo. Por acaso ele acha que está lá
desfilando para a majestade da floresta?
Gösta naturalmente está sonhando com a bela Marianne, que
por esses dias anda muito doente em Ekeby, gripada como
consequência da noite em que dormiu sobre o monte de neve.
Ele pensa nela, que, como ele, também foi vitimada pela
maldição do ódio que paira sobre a terra, e estremece ao pensar em
si mesmo, quando compreende que saiu a fim de perseguir e matar.
E o grande urso avança sem parar em sua direção, cego do olho
vazado pela faca de um cavalheiro, manco de uma pata alvejada
pela espingarda de outro cavalheiro, irritadiço e desgrenhado, e
também solitário, uma vez que lhe mataram a esposa e levaram-lhe
embora os filhos. E Gösta o vê da maneira como é: um pobre animal
perseguido, cuja vida não deseja tirar, posto que é tudo o que ainda
tem, uma vez que os homens privaram-no de todo o resto.
“Que o urso me mate”, pensa Gösta, “mas não vou atirar”.
E, enquanto o urso avança, ele se mantém como se estivesse
em um desfile e, quando o rei da floresta para diante dele, bate uma
continência com a espingarda e dá um passo para o lado.
Então o urso continua seu caminho, ciente de que não há tempo
a desperdiçar, avança pela floresta, abre caminho em meio aos
montes de neve da altura de um homem, rola por encostas
íngremes e foge para sempre, enquanto todos os outros, que
esperavam com o cão armado o tiro de Gösta, atiram com as
espingardas.
Mas é em vão. O círculo se desfaz, e o urso some. Fuchs
reclama e Beerencreutz pragueja, mas Gösta simplesmente
gargalha.
Como poderiam exigir que um homem tão feliz quanto ele fizesse
mal a uma criatura de Deus?
Sendo assim, o grande urso do monte de Gurlita escapou com
vida, e a partir de então os camponeses teriam de lidar com o fato
de que havia despertado da hibernação. Nenhum urso era mais
capaz do que aquele de arrancar os telhados dos estábulos baixos,
que mais se assemelhavam a caves; nenhum outro era mais capaz
de escapar de uma cilada elaborada.
Logo as pessoas na parte norte do Löven já não sabiam o que
fazer com o urso. Mensagem após mensagem foram mandadas
para os cavalheiros, pedindo que fossem até lá para matá-lo.
Dia após dia, noite após noite durante todo o mês de fevereiro,
os cavalheiros vão à margem norte do lago Löven para encontrar o
urso, mas ele sempre os evita. Terá aprendido a ser astuto com a
raposa e rápido com o lobo? Se estão de tocaia em uma
propriedade, o urso ataca a propriedade vizinha; se adentram a
floresta, o urso persegue o camponês que atravessa o gelo de
trenó. Tornou-se o mais intrépido salteador: arromba sótãos para
esvaziar os jarros de mel da mãe e mata o cavalo que puxa o trenó
do pai.
Mas aos poucos as pessoas começam a entender que urso é
aquele e por que Gösta não conseguiu atirar. É medonho dizer e
terrível pensar, mas aquele não é um urso comum. Ninguém pode
sequer pensar em abatê-lo enquanto não tiver uma bala de prata.
Uma bala de prata e metal de sino, fundida em uma tarde de quinta-
feira no campanário da igreja, durante a lua nova, sem que o pastor
ou o sineiro ou qualquer outra pessoa soubessem, com certeza
seria capaz de matá-lo, mas talvez não seja muito simples conseguir
uma bala dessas.
*
Em Ekeby vive um homem que deve remoer esse assunto todo
mais do que qualquer outro. Trata-se, como todos hão de entender,
de Anders Fuchs, o matador de ursos. Ele perdeu o apetite e o sono
por conta da indignação por não ter conseguido abater o urso do
monte Gurlita. Por fim também ele compreendeu que o urso
somente podia ser abatido com uma bala de prata.
O amargo major, Anders Fuchs, não era um homem vistoso.
Tinha um corpo pesado e atarracado e um rosto vermelho e largo,
com olheiras profundas e uma volumosa papada. Os bigodes,
rígidos como as cerdas de uma escova, espevitavam-se acima dos
lábios grossos, e os cabelos pretos brotavam-lhe cerrados e
irregulares da cabeça. Ademais, era um homem lacônico e um
grande comilão. Não era um daqueles que as mulheres recebem
com um sorriso ensolarado e de braços abertos, e tampouco
retribuía olhares gentis. Ninguém acreditava que um dia fosse
encontrar uma mulher com quem pudesse ter paciência, e tudo
aquilo que dizia respeito ao amor e à paixão lhe era distante.
Mas então chega uma tarde de quinta-feira em que a lua surge
com apenas dois dedos de largura e demora-se por duas ou três
horas próximo do horizonte depois que o sol havia se posto, e o
major Fuchs deixa Ekeby sem dizer o que pretendia. Leva uma
pederneira e um molde de bala no bolso da jaqueta e a espingarda
nas costas, e sobe em direção à igreja de Bro para descobrir o que
a sorte pode fazer por um homem honrado.
A igreja se localiza na margem leste do estreito que separa as
partes norte e sul do lago Löven, e o major Fuchs precisa atravessar
Sundsbron para chegar lá. Assim segue estrada afora, imerso em
seus pensamentos, sem olhar para as encostas de Broby, onde as
casas desenham-se nitidamente contra o céu claro da tarde, ou para
o monte Gurlita, que ergue o cimo arredondado em meio ao brilho
da tarde; com os olhos fixos no chão, rumina uma forma de obter a
chave da igreja sem que ninguém descubra.
Quando chega à ponte, o major ouve um grito tão desesperado
que se vê obrigado a erguer o rosto.
Naquela época o pequeno alemão Faber era o organista de Bro.
Era um homem franzino, de pouco peso e pouco valor. E o sineiro
era Jan Larsson, um camponês trabalhador, mas também pobre,
uma vez que o pastor de Broby lhe havia tomado a herança do pai
no valor de 500 riksdaler[2].
O sineiro queria se casar com a irmã do organista, a pequena e
bela srta. Faber, mas o organista não permitiu, e por esse motivo os
dois eram inimigos. Pois naquela tarde o sineiro encontra o
organista em Sundsbron e parte para cima dele. Agarra-o pelo peito
e coloca-o, de braços estendidos, para além da balaustrada da
ponte, e promete, por tudo o que há de mais caro e de mais sagrado
que existe, jogá-lo no estreito se não permitir que se case com a
pequena e bela senhorita. Mas o alemãozinho não cede, e então
começa a se debater e a gritar e a repetir que não, embora veja sob
os pés o caminho escuro por onde as águas correm entre as
margens brancas.
– Não, não! – ele grita. – Não, não!
E não há como garantir que o sineiro, tomado pela fúria, não teria
posto o organista para dançar naquelas águas frias e escuras, caso
o major Fuchs naquele instante não estivesse chegando à ponte. O
sineiro é tomado pelo medo, devolve Faber ao chão firme e corre
para longe o mais depressa que pode.
O pequeno Faber agarra-se ao pescoço do major em um gesto
de agradecimento por ter-lhe salvado a vida, porém o major o afasta
e diz que não há o que agradecer. O major não gosta de alemães
desde que passou um tempo no quartel de Putbus, na ilha de
Rügen, durante a guerra da Pomerânia.
Nunca na vida havia estado tão perto de morrer de fome como
naquela época.
O pequeno Faber quer correr até o comissário Scharling para
acusar o sineiro de tentativa de homicídio, mas o major lhe diz que
esse tipo de coisa não vale a pena por aquelas bandas, onde não se
paga nada por matar um alemão.
Então o pequeno Faber se acalma e convida o major para ir à
sua casa comer salsichas de porco e beber mumma[3].
O major segue-o, pois imagina que o organista com certeza deva
ter a chave da igreja em casa, e então os dois sobem o morro onde
fica a igreja de Bro, com a propriedade do preboste, a do sineiro e a
casa do organista ao redor.
– Desculpe-me, desculpe-me! – diz o pequeno Faber, quando ele
e o major entram na casa. – O lugar não está muito arrumado hoje.
Andamos tendo muito trabalho em casa, eu e minha irmã. Matamos
um galo.
– Mas que coisa! – exclama o major.
A pequena e bela srta. Faber chega logo a seguir com mumma
servida em grandes canecos de cerâmica. Todos sabem que o
major não via as mulheres com um olhar gentil, mas assim mesmo
observou a pequena srta. Faber com certo prazer quando a viu
chegar arrumada, com touca e renda. Os cabelos louros estavam
perfeitamente dispostos ao redor da testa, o vestido costurado à
mão era muito arrumado e estava impecavelmente limpo, as
mãozinhas eram ávidas e enérgicas, e o rostinho era tão rosado e
tão arredondado que ele não pôde deixar de pensar que, se tivesse
visto uma mulherzinha como aquela 25 anos atrás, certamente a
teria pedido em casamento.
Mas, por mais arrumada e rosada e hábil que fosse, os olhos
davam sinais de haverem chorado muito. É justamente esse detalhe
que incute no major pensamentos tão delicados em relação àquela
mulher.
Enquanto os homens comem e bebem, ela entra e sai da sala. A
certa altura ela se aproxima do irmão, faz uma mesura e diz:
– Como gostaria que guardássemos as vacas no depósito?
– Ponha doze à esquerda e onze à direita, para que não se deem
chifradas! – diz o pequeno Faber.
– Mas que coisa! O senhor tem mesmo tantas vacas? – exclama
o major.
O que acontecia na verdade era que o organista tinha apenas
duas vacas, às quais dera os nomes de Onze e Doze, para que
soasse grandioso ao falar sobre elas.
E assim o major fica sabendo que o estábulo de Faber estava
sendo reconstruído, de maneira que as vacas passavam o dia no
pasto e a noite no depósito de lenha.
A pequena srta. Faber continua a entrar e a sair do cômodo;
mais uma vez aproxima-se do irmão, faz uma mesura e diz que o
marceneiro perguntara qual devia ser a altura do estábulo.
– Meça pelas vacas – diz o organista Faber –, meça pelas vacas!
O major Fuchs achou que aquela era uma boa resposta.
De repente o major começa a perguntar ao organista por que os
olhos da irmã estão tão vermelhos, e assim descobre que a
senhorita chorava porque Faber não havia permitido que se casasse
com o pobre sineiro, um homem endividado e sem nenhuma
herança a receber.
A partir de então o major Fuchs entrega-se a pensamentos cada
vez mais profundos. Esvazia caneco atrás de caneco e devora
salsicha atrás de salsicha sem nem ao menos dar por si. O pequeno
Faber sente-se zonzo ao notar tamanho apetite e tamanha sede,
porém, quanto mais o major come e bebe, mais claros tornam-se os
seus pensamentos, mais sólida a disposição.
Tanto mais firme torna-se igualmente a vontade de ajudar a
pequena srta. Faber.
Entretanto, o major mantém o olhar fixo na grande chave de
palhetão intricado que está pendurada em um pino ao lado da porta,
e, assim que o pequeno Faber, que precisou fazer companhia ao
major no que dizia respeito aos canecos, põe a cabeça em cima da
mesa e começa a roncar, o major Fuchs pega a chave, veste a
touca na cabeça e vai embora.
Um minuto depois sobe as escadas do campanário, iluminadas
por seu pequeno lampião, e enfim chega ao local exato onde os
sinos abrem as enormes goelas acima de sua cabeça. Lá no alto, a
primeira coisa que o major faz é usar uma lima para raspar um
pouco do metal, e, quando está prestes a tirar o molde da bala e um
pequeno fogareiro da bolsa de caça, apercebe-se de que falta o
mais importante: não tem consigo nenhuma prata. Para que a bala
tenha força, é necessário fundi-la no campanário. Tudo está em
ordem: é uma noite de quinta-feira de lua nova, e ninguém tem a
menor ideia de que está lá, porém mesmo assim não há nada que
ele possa fazer! No silêncio da noite o major solta uma praga com
tanta força que os sinos chegam a cantar.
Logo a seguir ouve um ruído na parte de baixo da igreja e
imagina ouvir passos nas escadas. Sim, é isso mesmo, ouvem-se
passos vagarosos a subir os degraus.
O major Fuchs, que pragueja lá no alto a ponto de fazer os sinos
repicarem, torna-se um pouco mais pensativo ao perceber a
novidade. Não pode fazer nada além de perguntar-se quem estaria
chegando para ajudá-lo a fundir a bala. Os passos chegam cada vez
mais perto. O recém-chegado está subindo até o alto do
campanário.
O major esconde-se em meio às vigas e às traves e apaga o
lampião. Não está propriamente com medo, porém toda aquela
história seria arruinada se o descobrissem ali em cima. Assim que
termina de se esconder, o recém-chegado surge no campanário.
O major o conhece bem: é o avaro pastor de Broby. Ele, um
homem praticamente louco de cobiça, tem por hábito esconder seus
tesouros nos lugares mais improváveis. E naquele instante chega
com um maço de cédulas, que pretende ocultar no alto do
campanário. Não imagina que o observam. Ele ergue uma tábua do
chão, enfia lá o dinheiro e então vai embora.
Mas o major não demora a levantar a mesma tábua. Ah, quanto
dinheiro! São maços e maços de cédulas, e entre uma e outra há
estojos de couro cheios de moedas de prata. O major pega o tanto
de prata necessário para fundir uma bala e deixa de lado o restante.
Quando desce do campanário, tem a bala de prata na
espingarda. Começa a pensar no que a sorte ainda pode lhe
reservar para aquela noite. As noites de quinta-feira são estranhas,
como toda a gente sabe. Primeiro o major vai até a casa do
organista. Imagine agora se aquele urso canalha soubesse que as
vacas de Faber estão presas em um abrigo precário, quase ao
relento!
Bem, e não é que o major vê mesmo um vulto grande e preto
atravessar o gramado em direção ao depósito de lenha? Deve ser o
urso.
Ele encosta a coronha no rosto e está prestes a atirar, mas
subitamente se arrepende.
Os olhos chorosos da srta. Faber revelam-se para ele na
escuridão, ele pensa que deseja oferecer ajuda a ela e ao sineiro,
mas é claro que lhe custa um pouco não abater o grande urso do
monte Gurlita. Ele mesmo diria mais tarde que nada no mundo lhe
havia sido tão custoso, mas, posto que a pequena senhorita era um
exemplar tão belo e tão raro de mulher, teria de fazer alguma coisa
por ela.
O major vai até a casa do sineiro, acorda-o, leva-o ainda meio
vestido e meio despido para fora da casa e diz-lhe que deve atirar
no urso que ronda o depósito de lenha de Faber.
– Se abateres o urso, ele há de conceder-te a irmã – diz –, pois
assim te tornas um homem honrado de uma hora para a outra.
Aquele não é um urso qualquer, e os melhores homens da região
considerariam uma honra abatê-lo.
E ele põe nas mãos do sineiro sua própria espingarda, carregada
com a bala feita de prata e metal do sino, fundida no campanário em
uma noite de quinta-feira de lua nova, e não consegue evitar um
tremor de inveja, pois outro homem havia de matar o rei da floresta,
o grande urso do monte Gurlita.
O sineiro faz a pontaria – que Deus nos ajude! –, faz a pontaria
como se pretendesse abater a própria constelação de Ursa Maior,
também chamada de Grande Carro, que nas alturas celestes gira
em torno da estrela Polar, e não um urso que caminhava sobre o
chão, e um tiro ecoa e é ouvido por todo o monte Gurlita.
Mas, onde quer que tenha feito a pontaria, o urso cai. É assim
que acontece quando se atira com uma bala de prata. O urso é
atingido no coração, mesmo que se tenha feito a pontaria no Grande
Carro.
As pessoas acodem logo a seguir, vindas de todas as
propriedades ao redor e desejosas de saber o que tinha acontecido,
pois nunca um tiro havia soado com maior intensidade e nunca um
eco havia despertado tanta gente, e todos admiraram o sineiro, pois
o urso era um verdadeiro flagelo naquela terra.
O pequeno Faber também sai, mas nesse instante o major Fuchs
sofre um amargo revés. Lá está o sineiro, coberto de glórias, tendo
ademais salvado as vacas de Faber, mas nem assim o pequeno
organista mostra-se comovido ou agradecido. Não abre os braços
nem o cumprimenta como genro e herói.
O major franze o cenho e bate o pé no chão devido à raiva que
sente de tamanha maldade. Quer falar e explicar para aquele
sujeitinho avaro e mesquinho que aquilo é uma grande façanha,
porém logo começa a gaguejar e não consegue dizer sequer uma
palavra. E o major fica cada vez mais furioso ao pensar que havia
renunciado à honra de ter abatido o grande urso por nada.
Ah, é-lhe completamente impossível compreender que o homem
responsável por uma façanha daquelas não faça jus mesmo à noiva
mais orgulhosa!
O sineiro e outros rapazes haviam de esfolar o urso, todos vão à
pedra de amolar para afiar as facas, os outros voltam para casa e se
deitam, e o major Fuchs permanece sozinho junto ao urso morto.
Por fim volta à igreja, encaixa a chave na fechadura novamente,
sobe pela escada estreita e pelos degraus enviesados, acorda as
pombas adormecidas e mais uma vez chega ao campanário.
Mais tarde, enquanto o urso é esfolado sob o comando do major,
os homens encontram um pacote de cédulas com 500 riksdaler na
boca do urso. É impossível dizer como foi parar naquele lugar, mas
aquele era um urso estranho, e, como o sineiro foi o responsável por
abatê-lo, o dinheiro é dele, quanto a isso não há dúvida.
Quando esse fato torna-se conhecido, o pequeno Faber também
compreende a grandeza da façanha do sineiro e afirma que seria
uma honra tê-lo como cunhado.
Na noite de sexta-feira o major Anders Fuchs retorna a Ekeby
depois de participar de uma comemoração de caça na casa do
sineiro e da festa de noivado na casa do organista. Segue pelo
caminho de coração pesado: não sente nenhuma satisfação ao
saber que o inimigo sucumbiu, e não sente nenhuma alegria em
relação à bela pele de urso com que o sineiro o presenteou.
Ora, muitos acreditariam que está triste ao saber também que a
pequena e bela senhorita pertencerá a outro. Mas não, quanto a
isso o major não guarda nenhum arrependimento. O que lhe toca o
coração é saber que o velho e caolho rei da floresta foi vencido sem
que tenha sido ele a disparar a bala de prata.
Então o major retorna à ala dos cavalheiros, onde os homens
estão reunidos ao redor da lareira, e sem dizer uma palavra atira a
pele do urso ao chão, no meio de todos. Mas que ninguém pense
que tenha contado sua história! Não foi senão muito, muito tempo
depois que conseguiram arrancar-lhe a verdade sobre os
acontecimentos daquela noite. Tampouco denunciou o esconderijo
do pastor de Broby, e este talvez jamais tenha descoberto o roubo.
Os cavalheiros examinaram a pele.
– É uma pele e tanto – diz Beerencreutz. – Só posso imaginar
que esse rapaz tenha acordado da hibernação, ou por acaso o
mataste enquanto dormia?
– Ele foi abatido em Bro.
– Bem, não é grande como o urso de Gurlita – diz Gösta –, mas
é um animal impressionante.
– Se fosse caolho – diz Kevenhüller –, eu estaria disposto a
acreditar que tinhas matado o velho urso do monte Gurlita, pois é
tão grande quanto este, mas este não tem nenhum ferimento e
nenhum sinal de purulência no olho, então não pode ser.
Fuchs praguejou contra a própria estupidez, mas logo seu rosto
voltou a se acender a ponto de torná-lo realmente donairoso. Então
o grande urso não tinha sido abatido pelo tiro de outro homem!
– Meu Deus, como és bom! – ele diz, enlaçando as mãos.
COM FREQUÊNCIA NÓS, JOVENS, admiramo-nos com as histórias dos
mais velhos.
– Então havia baile todos os dias, por toda a sua radiante
juventude? – perguntávamos. – A vida era sempre uma longa
aventura?
– Todas as moças eram belas e amáveis naquela época, e todos
os banquetes terminavam com Gösta Berling raptando uma delas?
Nessas horas os mais velhos balançavam as honradas cabeças
e começavam a falar sobre o zumbido da roca e o rumor do tear,
sobre os utensílios de cozinha, sobre as batidas do mangual e o
caminho aberto pelo machado na floresta; mas não se detinham
nesses assuntos por muito tempo, e logo voltavam às histórias de
sempre. Os trenós chegavam à escada da entrada principal, os
cavalos galopavam pela floresta escura com aqueles jovens alegres,
todos rodopiavam na dança e as cordas do violino arrebentavam.
Com agitação e estrépito, a delirante caçada à aventura
desenrolava-se às margens do extenso lago Löven. O alarido era
ouvido de longe. A floresta cedia e as árvores caíam, todas as
forças da destruição estavam à solta: o incêndio chamejava, a
corredeira se despencava, os animais selvagens corriam famintos
nos arredores. Sob os cascos dos cavalos de oito patas, toda a
felicidade era despedaçada. Por onde a caçada passasse, o
coração dos homens ardia em desespero, e as mulheres tomadas
por um terror pálido eram forçadas a fugir de casa.
E nós, jovens, ficávamos arrebatados, em silêncio, perturbados,
mas assim mesmo alegres. “Que gente!”, pensávamos. “Nunca
havemos de ver coisa parecida.”
– As pessoas daquela época nunca pensavam no que faziam? –
perguntávamos.
– Claro que pensavam, crianças – respondiam os mais velhos.
– Mas não como nós pensamos – retrucávamos.
E os mais velhos não entendiam o que pretendíamos dizer.
Mas aquilo em que pensávamos era o estranho espírito da
vigilância de si, que já havia tomado conta de nós. Pensávamos
nesse espírito com olhos de gelo e longos dedos curvos, que se
esconde nos mais escuros recônditos da alma e desmancha nosso
ser, assim como as senhoras desmancham pedaços de seda e de
lã.
Aqueles dedos longos, duros e curvos haviam separado cada
pedacinho, até que nosso eu estivesse todo lá, como uma pilha de
trapos, e assim nossos sentimentos mais nobres, nossos
pensamentos mais originais, tudo aquilo que havíamos dito e feito
era examinado, esquadrinhado, desmanchado, os olhos de gelo
tinham observado tudo, e a boca sem dentes tinha aberto um sorriso
zombeteiro e sussurrado:
– Vê, são apenas trapos, nada além de trapos.
Mas devia haver uma pessoa daquela época que tivesse
oferecido a alma àquele espírito com olhos de gelo. E o espírito
ainda estaria lá, observando junto à fonte da ação, com um sorriso
zombeteiro diante do bem e do mal, compreendendo tudo, não
condenando nada, examinando, procurando, desmanchando,
paralisando os movimentos do coração e a força do pensamento
com um sorriso zombeteiro constante.
A bela Marianne trazia o espírito da vigilância de si no próprio
âmago. Ela sabia que aqueles olhos de gelo e aquele sorriso
zombeteiro acompanhavam-na a cada passo, a cada palavra. A vida
para ela havia se transformado em uma encenação da qual era a
única espectadora. Já não era uma pessoa, já não ria, não se
alegrava, não amava, simplesmente desempenhava o papel da bela
Marianne Sinclaire, e o espírito da autovigilância a acompanhava
com olhos vidrados de gelo e dedos hábeis e a via entrar em cena.
Sentia-se dividida em duas metades. Pálida, antipática e
zombeteira era uma das metades daquele eu, que via a maneira
como a outra metade agia, e aquele estranho espírito, que lhe
desmanchava o ser, jamais lhe oferecia uma palavra de consolo ou
de simpatia.
Mas onde teria estado aquele pálido guardião que observava
junto à fonte da ação na noite em que Marianne aprendeu a sentir a
plenitude da vida? Onde estava quando ela, a astuta Marianne,
beijou Gösta Berling diante de cem olhares, e quando se jogou
furiosa em cima de um monte de neve, disposta a morrer? Nessas
horas os olhos de gelo estavam cegos, nessas horas o sorriso
zombeteiro estava paralisado, pois a paixão havia lhe extravasado a
alma. O rumor da delirante caçada à aventura tinha ressoado em
seus ouvidos. Ela tinha sido uma pessoa completa durante aquela
noite terrível.
Ó deus do menosprezo de si, quando Marianne, com um esforço
infinito, conseguiu erguer os braços petrificados e agarrar-se ao
pescoço de Gösta, deves ter, como o velho Beerencreutz, afastado
o rosto da terra para fitar as estrelas.
Naquela noite não tiveste forças. Estavas morto enquanto ela
compunha hinos de amor, morto enquanto ela se apressava rumo a
Sjö em busca do major, morto quando ela viu as chamas iluminarem
o céu de vermelho acima das copas da floresta.
Vê, eles chegaram, os pássaros da tempestade chegaram, os
grifos da paixão arrasadora! Com asas de fogo e garras de aço,
mergulharam do céu em direção a ti, espírito com olhos de gelo, e
cravaram as garras no teu pescoço para jogar-te rumo ao
desconhecido. Morto estavas, e destruído foste.
Mas logo voaram para mais longe, esses pássaros orgulhosos e
enormes, cujo trajeto desconhece qualquer plano e jamais foi
seguido por nenhum observador; e, das profundezas do
desconhecido, o estranho espírito da vigilância de si ressurgiu e
mais uma vez instalou-se na alma da bela Marianne.
Durante todo o mês de fevereiro Marianne esteve doente em
Ekeby. Quando visitou o major em Sjö, tinha contraído varíola. Essa
terrível doença havia se abatido com toda a força sobre Marianne,
que se encontrava terrivelmente gripada e exausta. A morte havia
chegado perto, mas no fim do mês ela estava recuperada. Ainda se
sentia fraca e estava muito desfigurada. Nunca mais a chamariam
de bela Marianne.
No entanto, apenas Marianne e sua enfermeira tinham
conhecimento disso. Nem mesmo os cavalheiros sabiam. O quarto
de doente onde a varíola estabelecera seu reino não era acessível a
qualquer um.
Mas quando é que a autovigilância ganha mais força, senão
durante as longas horas de convalescença? Nessas horas, o
espírito senta-se e não para de nos fitar com aqueles olhos de gelo,
e não para de nos desmanchar com aqueles dedos nodosos e
duros. E, se olharmos bem, percebemos logo atrás uma criatura
ainda mais pálida, que nos encara, nos paralisa e abre um sorriso
zombeteiro, e depois outra e outra criatura, todas abrindo sorrisos
zombeteiros umas para as outras e para o mundo inteiro.
E, enquanto Marianne estava acamada e olhava-se com esses
insistentes olhos de gelo, todos os sentimentos originais morreram
em seu âmago.
Estava lá deitada, fingindo estar doente, estava lá deitada,
fingindo ser infeliz, fingindo estar apaixonada, fingindo ter sede de
vingança.
Tudo era verdade, e no entanto não passava de uma encenação.
Tudo havia se transformado em encenação e irrealidade na
presença daqueles olhos de gelo, que a observavam enquanto eram
observados por outros olhos mais atrás, que eram observados por
outros olhos mais atrás, em uma perspectiva infinita.
Todas as poderosas forças da vida estavam adormecidas.
Marianne tivera forças suficientes para alimentar um ódio abrasador
e um amor abnegado por uma única noite e nada mais.
Não sabia nem ao menos se amava Gösta Berling. Ansiava por
vê-lo, para descobrir se era capaz de tirá-la de si mesma.
Enquanto a varíola reinou, ela tinha apenas um pensamento
claro: tomar o maior cuidado para que a doença não se tornasse
conhecida. Não queria ver os pais e não queria reconciliar-se com o
pai, mesmo sabendo que ele se arrependeria ao descobrir a
gravidade da doença. E assim ordenou que os pais e todas as
demais pessoas soubessem que a aborrecida doença dos olhos,
que sempre a acometia quando visitava o vilarejo natal, obrigara-a a
permanecer em casa a cortinas fechadas. Proibiu a enfermeira de
falar sobre a gravidade da doença, proibiu os cavalheiros de chamar
o médico de Karlstad. Com certeza tratava-se de varíola, embora
fosse um caso leve; na farmácia de Ekeby havia remédios
suficientes para salvar-lhe a vida.
Marianne jamais pensava na morte; simplesmente se mantinha
deitada à espera do dia em que amanheceria curada e pudesse
enfim procurar o pastor na companhia de Gösta para cuidar dos
proclamas.
Chegou o dia em que a doença e a febre haviam-na deixado.
Enfim Marianne tinha o corpo frio e a cabeça no lugar. Sentia-se
bem, como se fosse a única pessoa com a cabeça no lugar em um
mundo de loucos. Não sentia ódio nem amor. Compreendia o pai;
compreendia-os todos. E quem compreende não odeia.
Tinha descoberto que Melchior Sinclaire pretendia fazer um leilão
em Björne para destruir todas as suas posses, com o propósito de
não lhe deixar herança nenhuma. Corria a notícia de que a intenção
era causar a maior destruição possível: primeiro venderia móveis e
utensílios de cozinha, depois animais e ferramentas e por fim a
propriedade, e depois todo o dinheiro seria enfiado num saco e
jogado nas profundezas do lago Löven. De herança restariam o
desperdício, a desordem e a destruição. Marianne abriu um sorriso
aquiescente ao receber a notícia: esse era o caráter daquele
homem, essa era sua forma de agir.
Parecia-lhe estranho ter composto aquele grande hino de amor.
Ela tinha sonhado com uma cabana, como tantas outras. Mas
naquele momento pareceu-lhe estranho haver sonhado em outras
épocas.
Marianne ansiava por estar em meio à natureza. Estava cansada
daquela encenação incessante. Nunca tinha um sentimento forte.
Mal lamentara a perda de sua beleza; mas estremecia ao pensar na
comiseração de estranhos.
Ah, esquecer-se por um único instante de si! Um gesto, uma
palavra, um ato que não fosse calculado!
Certo dia, já com a varíola expurgada do quarto e deitada em um
sofá, Marianne pediu que chamassem Gösta Berling. Disseram-lhe
que tinha viajado para o leilão em Björne.
*
No dia seguinte o grande patrão da fundição foi ver sua esposa
logo cedo.
– Trate de pôr ordem na casa, Gustava! – ele disse. – Eu vou
sair e trazer Marianne de volta.
– Claro, meu querido Melchior, logo a ordem há de estar de volta
a esse lugar – ela respondeu.
E assim tudo ficou acertado entre os dois.
Uma hora mais tarde o grande patrão da fundição encontrava-se
a caminho de Ekeby.
Não seria possível encontrar senhor mais nobre e mais
benevolente do que o patrão quando se sentou no trenó de capota
trajando o melhor casaco de pele e o melhor cinturão de viagem.
Naquele momento tinha os cabelos bem penteados e o rosto pálido,
e os olhos pareciam ter afundado nas órbitas.
E não parecia haver fim para o esplendor que se derramava
daquele céu claro sobre o dia de fevereiro. A neve cintilava como os
olhos da menina que ouve sua primeira valsa. As bétulas estendiam
o suave emaranhado de galhos finos e escuros em direção ao
firmamento, e em certas árvores era possível ver um remate de
pequenas agulhas de gelo reluzente.
Um brilho e uma aura festiva pairavam sobre o dia. Os cavalos
erguiam as patas dianteiras como que numa dança, e o cocheiro
sentiu-se levado a estalar o chicote por simples alegria.
Após uma breve viagem, o trenó do grande patrão da fundição
encontrava-se defronte à grande escada que levava à entrada de
Ekeby.
O criado saiu.
– Onde estão os responsáveis pela casa? – perguntou o patrão.
– Saíram para caçar o grande urso do monte Gurlita.
– Todos juntos?
– Todos juntos, patrão. Os que não vão pelo urso vão pela
marmita.
O patrão riu com tanta vontade que o riso ecoou pelo jardim
silencioso. Ele deu uma moeda ao criado por causa daquela
resposta.
– Diz para a minha filha que vim buscá-la! Não vai ser necessário
passar mais frio. Eu trouxe um trenó de capota e uma pele de lobo
para cobri-la.
– O senhor não gostaria de entrar?
– Não, obrigado! Estou bem aqui.
O rapaz desapareceu e a espera do patrão começou.
Naquele dia estava com um humor tão bom que nada seria
capaz de aborrecê-lo. Tinha pensado que esperaria um pouco por
Marianne, que talvez nem sequer tivesse se levantado. Até lá,
trataria de distrair-se olhando ao redor.
Junto ao beiral do telhado havia um longo sincelo que dava
grande trabalho aos raios do sol. Começava na parte de cima; os
raios faziam com que uma gota se desprendesse e pretendiam que
caísse à terra após deslizar ao longo do gelo. Mas, antes mesmo de
chegar à metade do caminho, a gota tornava a congelar. E os raios
do sol faziam constantemente novas tentativas e constantemente
fracassavam. Mas enfim houve um raio que se fixou na ponta do
sincelo, um pequeno raio, que brilhava e coruscava de entusiasmo,
e que logrou atingir o objetivo: de repente uma gota tilintante caiu ao
chão.
O patrão viu tudo aquilo e riu:
– Afinal, não és tão bobo – disse para o raio de sol.
O jardim estava silencioso e deserto. Não se ouvia nenhum som
naquela grande casa. Mas o patrão não se impacientou. Sabia que
as mulheres levam muito tempo para se aprontarem.
Permaneceu sentado, olhando para o pombal. As aves tinham
uma tela a fechar a saída. Ficavam presas durante o inverno, para
que as águias não as exterminassem. De vez em quando uma
pomba enfiava a cabeça branca por entre os fios da trama.
– Está à espera da primavera – disse Melchior Sinclaire. – Mas
por enquanto há de ter paciência.
A pomba aparecia a intervalos tão regulares que o patrão sacou
o relógio do bolso e prestou atenção com o relógio na mão.
Precisamente a cada três minutos a pomba enfiava a cabeça para
fora.
– Não, minha amiguinha – ele disse –, achas que a primavera se
apronta em três minutos? Tens de aprender a esperar.
E ele mesmo teve de esperar; mas tinha bastante tempo.
Os cavalos puseram-se a cavoucar impacientemente a neve,
mas logo foram tomados pela sonolência de tanto piscar sob aquele
sol. Juntaram as cabeças e adormeceram.
O cocheiro estava sentado na boleia com as costas
empertigadas e as rédeas na mão e, com o rosto apontado
diretamente para o sol, dormia – dormia a ponto de roncar.
Mas o patrão da fundição não dormiu. Nunca tinha pensado
menos em dormir do que naquele instante. E poucas vezes tivera
momentos tão prazerosos como durante aquela jovial espera.
Marianne tinha estado doente. Não pudera voltar para casa antes,
mas naquele momento já seria possível. Ah, e claro que haveria de
querer! Então tudo estaria bem novamente.
Naquele momento ela poderia compreender que ele não estava
zangado. Afinal, tinha vindo pessoalmente, com dois cavalos e um
trenó de capota.
Na abertura em frente à colmeia, um chapim-real punha em
prática um plano deveras satânico. Estava à procura do jantar, claro,
e de repente acertou o alvado com a ponta do bico. Mas, dentro da
colmeia as abelhas formavam uma grande nuvem escura. Tudo
funciona de acordo com a mais absoluta ordem, as estalajadeiras
distribuem porções de alimento, as auxiliares correm de boca em
boca levando néctar e ambrosia. E as que se encontram mais no
fundo trocam constantemente de lugar com as que ficam mais à
frente, para que o calor e o conforto sejam distribuídos por igual.
E então se ouve a bicada do chapim-real, e toda a colmeia
transforma-se em um zumbido de curiosidade. Será um amigo ou
um inimigo? Será uma ameaça à colônia? A rainha tem a
consciência pesada. Não pode esperar na paz e na tranquilidade.
Seriam os fantasmas do zangão assassinado a assombrar do lado
de fora?
– Saia para ver o que se passa! – ordena a rainha à irmã
sentinela. E a sentinela põe-se a caminho. Com um “Viva a rainha!”,
precipita-se colmeia afora, e, ah!, de repente o chapim-real está em
cima dela. Com o pescoço esticado e asas trêmulas de expectativa,
prende-a com o bico e a devora, e não há ninguém que possa
comunicar à regente o que aconteceu. E logo o chapim-real volta a
bater, e a abelha-rainha continua a mandar sentinelas, e todas
desaparecem. Nenhuma volta para dar notícias a respeito de quem
estaria batendo. Ai, como é terrível no interior da colmeia escura!
Espíritos sedentos de vingança estão em festa no lado de fora.
Sorte de quem não dá ouvidos! Sorte de quem põe de lado a
curiosidade! Sorte de quem sabe esperar quieto!
O grande Melchior Sinclaire riu tanto que seus olhos se
encheram de lágrimas por causa das mulheres estúpidas na colmeia
e do astuto canalha amarelo no lado de fora.
Esperar não é nenhuma arte quando estamos certos do
resultado e quando existem muitas coisas com as quais ocupar os
pensamentos.
Lá vem o grande cão da propriedade. Ele surge devagar, fixa os
olhos no chão e balança de leve o rabo, como se estivesse às voltas
com um afazer de todo indiferente. Mas de repente o cão põe-se a
cavoucar a neve. Com certeza o velho patife escondera bens a que
não fazia jus naquele lugar.
Mas, assim que ergue a cabeça para ver se poderia devorar tudo
aquilo despreocupadamente, surpreende-se ao ver duas pegas-
rabudas à frente.
– Receptador! – dizem as duas, como se fossem a própria voz da
consciência. – Estamos a serviço da polícia. Entregue-nos o objeto
da receptação!
– Ora, fiquem quietas, suas pilantras! Sou eu o capataz desta
propriedade.
– O próprio! – debocham as duas.
O cachorro investe contra as aves, que fogem batendo
pesadamente as asas. O cachorro corre atrás, pulando e latindo.
Mas, enquanto persegue uma, a outra já está de volta. Ela pousa no
interior do buraco e puxa o pedaço de carne, mas não consegue
erguê-lo. O cachorro puxa a carne de volta para si, segurando-a
com as patas e os dentes. As pegas-rabudas param em frente a ele
e começam a proferir impropérios. O cachorro encara-as com um
olhar amargo enquanto come, e, quando a situação torna-se
demasiado abusiva, corre para espantá-las.
O sol começou a baixar sobre as montanhas no ocidente. O
grande patrão da fundição olhou para o relógio. Eram três horas. E a
mãe, que havia preparado o almoço para o meio-dia!
No mesmo instante o criado saiu e avisou que a srta. Marianne
gostaria de falar-lhe.
O patrão jogou a pele de lobo sobre o braço e subiu a escada
com um humor radiante.
Quando ouviu aqueles passos ponderosos nas escadas,
Marianne ainda não sabia se haveria ou não de acompanhá-lo.
Sabia apenas que tinha de pôr um fim àquela longa espera.
Tinha esperança de que os cavalheiros tornassem a casa; mas
não tornaram. Assim ela mesma teria de fazer com que tudo
acabasse. Já não aguentava.
Tinha imaginado que o pai, enfurecido, haveria de ir-se embora
após uma espera de cinco minutos, ou então que derrubaria a porta
ou tentaria atear fogo na casa.
Mas lá estava ele, tranquilo e sorridente, à espera. Marianne não
sentia ódio nem amor por ele. Mas trazia em si uma voz interna que
por assim dizer a aconselhava a não se entregar mais uma vez
àquele poder. E, além do mais, tinha a intenção de manter a
promessa feita a Gösta.
Se o pai houvesse adormecido, se houvesse falado, se houvesse
perdido a paciência, se houvesse dado sinais de dúvida, se
houvesse pedido que o trenó fosse posto à sombra! Mas não: era o
próprio retrato da paciência e da sabedoria.
Seguro, contagiosamente seguro, de que a filha viria, bastando
para tanto que a esperasse.
Marianne sentia a cabeça doer. Tinha os nervos à flor da pele.
Não poderia ter paz enquanto soubesse que o pai estava lá, à
espera. Era como se a vontade dele a arrastasse, toda amarrada,
escada abaixo.
Teria ao menos de falar-lhe.
Antes de ele chegar, Marianne pedira que abrissem as cortinas, e
deitou-se deixando seu rosto ficar inteiramente iluminado pela luz do
sol.
Certamente tinha o intuito de pô-lo à prova, porém Melchior
Sinclaire mostrava-se um homem admirável naquele dia.
Quando a viu, não fez nenhum gesto, não soltou exclamação
nenhuma. Era como se não tivesse percebido nenhuma mudança
na filha. Marianne sabia o quanto o pai celebrava sua beleza. Mas
ele não a deixou perceber nenhuma nota de tristeza. Conteve-se por
inteiro a fim de não entristecer a filha. Aquilo a comoveu. Marianne
começou a compreender por que a mãe o amava.
Ele não dava nenhuma mostra de hesitação. Havia chegado sem
reprimendas e sem desculpas.
– Quero enrolar-te nesta pele de lobo, Marianne. Não está fria.
Veio o tempo inteiro no meu colo.
De qualquer maneira, ele se aproximou da lareira para esquentar
a pele.
Depois ajudou-a a se levantar do sofá, enrolou-a na pele, ajeitou-
lhe um xale na cabeça, puxou-o por baixo dos braços dela,
amarrando-o nas costas da filha.
Marianne permitiu que tudo aquilo acontecesse. Não tinha
vontade nenhuma. Era bom sentir-se protegida, era delicioso não ter
de sentir vontades. Bom em especial para uma pessoa decomposta,
como ela, para uma pessoa que não tinha sequer um pensamento
ou sentimento próprios.
O grande patrão da fundição a ergueu, levou-a até o trenó,
armou a capota, ajustou a pele ao redor da filha e foi embora de
Ekeby.
Marianne fechou os olhos e suspirou, meio pelo conforto, meio
pela saudade. Estava abandonando a vida, a vida de verdade, mas
talvez não fizesse diferença, uma vez que não sabia viver, mas
apenas representar.
*
No dia 18 do mês de março o comissário Scharling comemora o
aniversário, e então muitas pessoas sobem os morros de Broby.
Homens e mulheres do leste e do oeste, conhecidos e
desconhecidos, convidados e não convidados têm por hábito
aparecer na propriedade do comissário. Todos são bem-vindos.
Todos recebem comida e bebida, e no salão de baile há espaço
suficiente para receber os convivas de sete paróquias.
A jovem condessa também comparece, já que sempre vai aos
lugares onde se pode esperar dança e divertimento.
Mas a jovem condessa não está alegre ao chegar. É como se
tivesse o pressentimento de que chegou a sua vez de ser
arrebatada pela delirante caçada à aventura.
Ao longo do caminho ela observara o pôr do sol. O sol baixou em
um céu limpo e não deixou franjas douradas em nuvens leves. A
atmosfera cinzenta do crepúsculo, acossada por rajadas frias de
tempestade, cobriu toda a região.
A jovem condessa testemunhou a luta entre o dia e a noite e a
forma como o medo tomou conta de tudo o que era vivo naquela
batalha grandiosa. Os cavalos apressavam-se com o último fardo
antes de se recolherem ao abrigo de um telhado. Os lenhadores
foram da floresta para casa a passos largos, as criadas voltaram
dos estábulos. Os animais selvagens uivavam na orla da floresta. O
dia, favorito dos homens, foi vencido.
A luz se apagou, as cores se desbotaram. O frio e a feiura eram
tudo o que ela via. Tudo aquilo que desejava, tudo aquilo que
amava, tudo aquilo que fizera parecia igualmente envolto pelas
luzes cinzentas do crepúsculo. Era a hora do cansaço, da derrota,
da fraqueza, tanto para ela como para toda a natureza.
A condessa pensou no próprio coração, que numa felicidade
irrequieta cobria a existência de ouro e púrpura; pensou que esse
mesmo coração um dia talvez perdesse o ímpeto de iluminar o
mundo em que vivia.
– Ah, a fraqueza, a fraqueza do meu próprio coração! – disse
para si mesma. – Deusa sufocante do crepúsculo cinzento, um dia
hás de reinar em minha alma. Então hei de ver a vida feia e em
cores cinzentas, como talvez de fato seja; então meus cabelos hão
de tornar-se brancos, minhas costas curvas, meu intelecto
paralisado.
Nesse mesmo instante o trenó entrou na propriedade do
comissário e, como a jovem condessa olhasse para o alto, o olhar
caiu sobre uma janela gradeada em uma ala da construção e no
rosto grave de uma pessoa logo atrás.
Esse rosto pertencia à senhora de Ekeby, e a jovem condessa
soube então que os prazeres daquela noite estavam todos
arruinados.
Afinal, quando não se vê a tristeza, apenas se ouvem
comentários a seu respeito, como se fosse uma conviva em um país
distante, é possível estar alegre. Mais difícil é manter a alegria no
coração com a mais negra e mais grave necessidade a nos encarar
nos olhos.
A condessa sabe muito bem que o comissário Scharling pôs a
senhora na prisão, e que ela há de responder a uma acusação pelos
atos de violência praticados em Ekeby na mesma noite do grande
baile. Mas não pensou que a senhora estaria detida na propriedade
do comissário, tão perto do salão de baile, a ponto de ser possível
vê-la na própria habitação, tão perto que devia até mesmo ouvir a
música e os alegres barulhos. E pensar na senhora levou toda a
alegria da condessa embora.
Claro que a jovem condessa dança a valsa e a quadrilha.
Participa do minueto e da inglesa, mas entre uma dança e outra
precisa se aproximar da janela e olhar para a outra ala da
construção. Há luz na janela da senhora de Ekeby, e a jovem
condessa a vê indo de um lado para outro no interior do quarto.
Parece não repousar nunca; passa o tempo inteiro andando.
A condessa não tira prazer nenhum daquela dança. Somente
pensa na maneira como a senhora anda de um lado para outro no
interior da cela, como um animal enjaulado. E admira-se de que
todos os outros estejam dançando. Certamente há muitas pessoas
tão ultrajadas quanto ela por saberem que a senhora de Ekeby se
encontra tão perto, no entanto ninguém parece esboçar nenhuma
reação. O povo de Värmland é tolerante.
Mas, a cada vez que olha para fora, os pés lhe parecem mais
pesados na dança, e o riso parece entalar-se-lhe na garganta.
A esposa do comissário percebe-a quando limpa os vidros
embaçados a fim de olhar para fora e se aproxima.
– Quanta miséria! Ah, quanta miséria! – ela sussurra para a
condessa.
– A mim parece quase impossível dançar nesta noite – a
condessa sussurra-lhe de volta.
– Tampouco é minha vontade oferecer um baile com a senhora
trancada lá dentro – responde a sra. Scharling. – Ela passou o
tempo inteiro em Karlstad desde que foi presa. Mas o processo
judicial vai ser instaurado em breve, e por esse motivo trouxeram-na
hoje para cá. Não a podíamos pôr na terrível cadeia do tribunal, e
assim a trouxemos para o quarto do tear, na outra ala. Ela estaria na
minha antessala, condessa, se não fosse toda essa gente aqui hoje.
A condessa mal a conhece, mas a senhora de Ekeby foi como uma
mãe e uma rainha para nós todos. O que há de pensar de nós, que
dançamos aqui enquanto ela passa por tão grande desventura? É
bom que a maioria das pessoas não saiba que está lá.
– Nunca deveriam tê-la prendido – diz a jovem condessa, em tom
peremptório.
– Não, é verdade, condessa; mas não havia mais nada a fazer,
senão desgraças ainda piores talvez acontecessem. Ninguém a
culpou por ter posto fogo nos próprios montes de palha ou por ter
expulsado os cavalheiros, mas o major estava rondando o lugar à
caça dela. Só Deus sabe o que ele seria capaz de lhe fazer se não
estivesse presa. Scharling tem enfrentado muitos aborrecimentos
por haver prendido a senhora de Ekeby, condessa. Até mesmo em
Karlstad as pessoas estavam insatisfeitas com ele por não ter feito
vista grossa, como aconteceu em Ekeby. Mas ele fez o que julgou
ser melhor.
– E agora ela vai ser condenada? – pergunta a condessa.
– Ah, não, condessa, não vai ser condenada. A senhora de
Ekeby vai ser inocentada, mas mesmo assim tudo que tem
enfrentado nesses últimos dias é demais. Ela está perdendo o juízo.
Imagine, uma mulher orgulhosa como ela… como pode admitir que
a tratem como uma criminosa? Melhor seria que a tivessem deixado
solta. Assim talvez ela tivesse escapado por conta própria.
– Então a soltem! – diz a condessa.
– Qualquer um pode fazer isso, menos o comissário ou a esposa
dele – sussurra a sra. Scharling. – Nós dois temos de vigiá-la.
Especialmente hoje, quando tantos amigos dela estão aqui, temos
dois guardas em frente à porta, que está fechada e trancada, para
que ninguém possa se aproximar. Mas, se alguém a tirasse de lá,
condessa, tanto Scharling como eu ficaríamos contentes.
– Será que eu não posso vê-la? – pergunta a jovem condessa.
A sra. Scharling agarra o pulso da condessa e leva-a consigo
para fora do aposento. No vestíbulo, as duas cobrem-se com xales,
e então partem apressadas pelo jardim.
– Não há nenhuma garantia de que ela vá falar conosco – diz a
esposa do comissário. – Mas assim mesmo há de ver que não a
esquecemos.
As duas chegam ao primeiro aposento da outra ala, onde dois
homens estão sentados de guarda em frente à porta trancada, e
avançam sem nenhum tipo de impedimento para encontrar a
senhora de Ekeby. Ela está acomodada em uma sala espaçosa,
mobiliada com teares e outras ferramentas. O cômodo é de fato
usado para tecer, mas tem grades e um ferrolho reforçado para que
possa ser usado como cela em casos de emergência.
Lá dentro a senhora de Ekeby continua a andar de um lado para
outro, aparentemente sem prestar atenção às visitas.
Tem feito andanças constantes durante aqueles dias. Não
consegue pensar em outra coisa, a não ser em percorrer as 30
léguas que a separam da mãe, que a espera em meio às florestas
de Älvdalen. Ela não tem tempo para repousar. Precisa seguir em
frente. E tem uma pressa incansável. A mãe tem mais de 90 anos.
Logo há de estar morta.
Ela mediu o comprimento do assoalho em palmos e pôs-se a
contar as voltas, somando os palmos em côvados e os côvados em
braças e léguas.
O caminho parece longo e árduo, mas nem assim ela ousa
repousar. Passa a vau em meio a montes de neve. Ouve as
florestas eternas farfalharem acima da cabeça. Faz uma pausa na
cabana de toras do finlandês e na cabana de gravetos do carvoeiro.
Às vezes, quando caminhava ao longo de regiões desabitadas por
léguas e mais léguas, via-se obrigada a fazer uma cama de
gravetos quebrados sob a raiz de um espruce caído.
E por fim ela alcança o destino, as 30 léguas acabam, a floresta
se abre e casinhas vermelhas revelam-se em uma propriedade
coberta de neve. O Klarälven surge espumando em uma série de
pequenas corredeiras, e pelo murmúrio familiar ela sabe que chegou
à sua casa.
E a mãe, que a vê chegar mendigando, como havia desejado, vai
ao encontro da filha.
Ao chegar, a senhora de Ekeby mantém a cabeça erguida, olha
ao redor, vê a porta fechada e percebe onde se encontra.
Então se pergunta se não estaria perdendo o juízo e senta-se
para refletir e repousar. Mas logo a seguir encontra-se mais uma vez
a caminho, somando os palmos em côvados e os côvados em
braças e léguas, fazendo breves pausas nas cabanas de toras dos
finlandeses e caminhando sem parar dia e noite, antes de mais uma
vez deixar para trás as 30 léguas.
Durante todo o tempo em que esteve presa ela praticamente não
dormiu.
E as duas mulheres que chegaram para vê-la a encaram cheias
de angústia.
A jovem condessa haveria para sempre de lembrar-se da
senhora de Ekeby naquele lugar, da maneira como andava. Com
frequência ela a vê em sonhos e acorda dessas visões com os olhos
úmidos de lágrimas e um lamento nos lábios.
A velha senhora parece ter sofrido uma lastimável
transformação; os cabelos estão finos e pequenos tufos soltam-se
da trança. O rosto está flácido e descarnado, e as roupas parecem
desalinhadas e rotas. Mas apesar de tudo isso ela ainda conserva a
altivez e o porte de uma rainha, e assim desperta não apenas
comiseração, mas também respeito.
A recordação mais clara da condessa, porém, eram os olhos
fundos, introspectivos, ainda não totalmente privados da luz da
razão, mas prestes a se apagar, com a faísca de um desvario ainda
oculta nas profundezas, o que despertava o temor e o terror de que
no instante seguinte a senhora pudesse saltar com os dentes
prontos para morder e as unhas prontas para dilacerar.
As duas já se encontram há um bom tempo lá quando a senhora
de Ekeby de repente para em frente à jovem e a encara com um
olhar duro. A condessa dá um passo para trás e segura o braço da
sra. Scharling.
Os traços da senhora de Ekeby de repente se enchem de vida e
expressão, os olhos veem o mundo com absoluta clareza.
– Ah não, ah não – ela diz, abrindo um sorriso discreto –, ainda
não está tão ruim assim, minha querida jovem.
A senhora convida-as a se sentarem e senta-se ela mesma.
Adota uma expressão solene à moda antiga, conhecida das festas
em Ekeby e dos bailes reais na residência do governador em
Karlstad. As duas visitantes se esquecem dos andrajos e das
grades e veem apenas a mais orgulhosa e a mais rica mulher de
Värmland.
– Minha cara condessa! – ela diz. – Por que deixar o baile para
visitar uma velha como eu? A senhora deve ser muito bondosa.
A condessa Elisabet não consegue responder. Tem a voz
embargada pela emoção. Quem responde em seu lugar é a sra.
Scharling; diz que a companheira não conseguia dançar porque
ficava pensando na senhora de Ekeby.
– Minha cara sra. Scharling – responde a senhora –, será que fui
longe a ponto de estorvar a alegria das pessoas jovens? Não chore
por mim, minha jovem condessa – ela prossegue. – Eu sou apenas
uma velha triste que merece o destino que teve. As senhoras não
podem achar certo bater na própria mãe...
– Não, mas…
A senhora de Ekeby a interrompe, enquanto afasta os cachos
louros da testa.
– Menina, menina – ela diz –, como pôde casar-se com um idiota
como Henrik Dohna?
– Mas eu o amo!
– Eu entendo, eu entendo – diz a senhora de Ekeby. – Nada
além de uma menina bondosa, que chora com os tristes e ri com os
alegres. Obrigada a dizer “aceito” para o primeiro que apareceu e
disse: “Eu te amo”. Eu sei, eu sei. Mas agora vá dançar, minha cara
condessa! Dance e alegre-se! Não existe mal nenhum dentro de
você.
– Mas eu gostaria de ajudar a senhora.
– Menina – diz a senhora de Ekeby em tom solene –, em Ekeby
morava uma velha que mantinha os ventos do céu cativos. Hoje é
ela quem está cativa, e os ventos estão livres. Será mesmo
estranho que uma tempestade esteja assolando este país?
“Eu, que sou velha, já a vi antes, condessa. Eu a conheço. Sei
que a estrondosa tempestade de Deus paira sobre nós. Ora avança
sobre os grandes reinos, ora sobre as pequenas sociedades
esquecidas. A tempestade de Deus não se esquece de ninguém.
Abate-se tanto sobre os grandes como sobre os pequenos. É
grandioso ver a tempestade de Deus chegar.
“Tempestade de Deus, ó bendita dádiva do Senhor, sopra por
toda a terra! Vozes no ar, vozes na água, sons e temor! Que a
tempestade de Deus seja estrondosa! Que a tempestade de Deus
seja apavorante! Que as rajadas soprem por toda a terra, derrubem
as paredes desaprumadas, quebrem os ferrolhos enferrujados e
destruam as casas decrépitas!
“A angústia há de espalhar-se por toda a terra. Os ninhos dos
passarinhos hão de cair dos galhos. O ninho da águia, no alto do
espruce, há de cair à terra com um grande estrondo, e até mesmo
junto à toca da coruja na fenda da montanha o vento há de bufar
com a língua de um dragão.
“Acreditamos que tudo era bom nesta terra, mas foi um equívoco.
A tempestade de Deus é necessária. Eu entendo, e não reclamo.
Queria apenas estar com minha mãe.”
Naquele instante, a senhora de Ekeby pareceu afundar-se em si
mesma.
– Vá embora, minha jovem! – ela diz. – Já não tenho tempo.
Tenho de ir. Vão embora e tomem cuidado ao tratar com aqueles
que cavalgam as nuvens da tempestade!
Com essas palavras ela retoma sua caminhada. As feições do
rosto afrouxam-se, o olhar torna-se introspectivo. A condessa e a
sra. Scharling têm de deixá-la.
Assim que tornam a encontrar os convivas, a jovem condessa
procura Gösta Berling.
– Eu gostaria de trazer-lhe saudações da senhora de Ekeby – ela
disse. – Ela está aguardando que o sr. Berling tire-a da prisão.
– Neste caso, deixe-a aguardar, condessa.
– Ah, ajude-a, sr. Berling!
Gösta olha com uma expressão sombria para a frente.
– Ora – ele diz –, por que eu haveria de ajudá-la? Qual é a minha
dívida de gratidão? Tudo o que ela fez para mim foi para me
arruinar.
– Mas, sr. Berling…
– Se a senhora de Ekeby não existisse – ele a interrompeu –,
agora eu estaria dormindo sob as florestas eternas. Acaso devo
arriscar minha vida por ela apenas porque fez de mim um cavalheiro
em Ekeby? A condessa acha que esse tipo de ocupação é motivo
de reconhecimento?
A jovem condessa desvia o rosto sem responder-lhe. Está
irritada.
Ela volta para o seu lugar, com pensamentos amargos sobre os
cavalheiros. Tinham chegado com trompas e violinos com a
intenção de fazer os arcos tangerem as cordas até que a crina se
gastasse, sem jamais pensar que essas notas alegres ecoariam no
terrível quartinho da prisioneira. Tinham ido ao baile para dançar até
que as solas dos sapatos se desmanchassem, sem jamais pensar
que a antiga benfeitora podia ver as sombras deslizando por trás
das vidraças embaçadas. Ah, como o mundo era feio e cinzento! Ah,
que sombra terrível a dureza e a necessidade projetavam sobre a
jovem alma da condessa!
Logo a seguir Gösta aparece e convida-a para uma dança.
Ela recusa de imediato.
– A condessa não quer dançar comigo? – ele pergunta, e o rosto
dela se enrubesce.
– Nem com o senhor nem com nenhum outro cavalheiro de
Ekeby – ela diz.
– Então não somos dignos dessa honra?
– Não é honra nenhuma, sr. Berling. Não sinto nenhum prazer
em dançar com homens que ignoram toda e qualquer forma de
gratidão.
Gösta já tinha dado meia-volta.
A cena é vista e ouvida por muita gente. Todos dão razão à
condessa. A ingratidão e a crueldade dos cavalheiros para com a
senhora de Ekeby haviam causado prejuízos a todos.
Mas naqueles dias Gösta Berling era mais perigoso do que um
animal selvagem na floresta. Desde que voltara da caçada e
descobrira a ausência de Marianne, seu coração era uma ferida
aberta. Sentia vontade de cometer uma injustiça sangrenta contra
outras pessoas, e de espalhar a tristeza e o sofrimento tanto quanto
possível.
Se é isso o que ela quer, diz para si mesmo, é isso o que há de
ter. Mas não há de salvar a própria pele. A jovem condessa gosta de
raptos. Pois então teria aquilo de que tanto gosta. Gösta Berling não
tem nada contra aventuras. Por oito dias havia se lamentado por
causa de uma mulher. É tempo demais. Ele chama Beerencreutz, o
coronel, Kristian Bergh, o robusto capitão, e o vagaroso primo
Kristoffer, que jamais hesita perante uma aventura desvairada, e
aconselha-se com esses homens sobre a melhor forma de vingar a
honra ferida da ala dos cavalheiros.
Meus amigos, filhos do homem. Vós que dançais, vós que rides!
Peço-vos de todo o coração, dançai com cautela, ride com discrição,
pois enormes desgraças podem vir a ocorrer se vosso sapato de
seda pisar em corações sensíveis em vez de tábuas firmes, e vosso
riso galhardo com trinos de prata pode instigar uma alma à loucura.
Certo é que pés jovens pisaram demasiado forte em Ulrika
Dillner, e que o riso jovem soou demasiado petulante naqueles
ouvidos, pois de pronto ela foi tomada por um desejo irresistível de
ter os títulos e as honrarias de uma mulher casada. Por fim disse
“aceito” à longa corte do malvado Sintram, acompanhou-o a Fors
como esposa e passou a viver separada dos velhos amigos de
Berga, dos antigos e caros afazeres e da antiga preocupação com o
pão de cada dia.
O casamento foi rápido e alegre. Sintram pediu-lhe a mão na
época do Natal, e em fevereiro o matrimônio foi celebrado. Naquele
ano, Anna Stjärnhök morava na casa do capitão Uggla. Era uma boa
substituta para a velha Ulrika, que assim pôde, sem peso na
consciência, sair para conquistar o título de esposa.
Sem peso na consciência, porém não sem arrependimento. O
lugar para onde se mudou não era bom: os cômodos grandes e
vazios pareciam repletos de um terror apavorante. Assim que o dia
escurecia ela começava a sentir calafrios e medo. Estava morrendo
aos poucos com saudade da velha casa.
As longas tardes de domingo eram as mais difíceis. Não
acabavam nunca, nem elas nem a longa sequência de pensamentos
excruciantes que lhe ocupavam a cabeça.
Por fim houve um dia no mês de março, quando Sintram não
voltou da igreja para o jantar, em que ela adentrou o salão no andar
de cima e sentou-se ao piano. Aquele era seu último consolo. O
piano, que tinha um flautista e uma pastora pintados sobre o tampo
branco, era uma herança da antiga casa dos pais. Ela podia confiar
sua angústia ao instrumento, pois ele a entendia.
Mas não parece uma coisa ao mesmo tempo triste e ridícula?
Sabeis o que ela tocou? Uma polca – justo ela, que tinha o coração
tão contristado!
Não sabia tocar outra coisa. Antes que seus dedos se
enrijecessem em torno do batedor de claras e da faca de cozinha,
ela tinha aprendido a tocar aquela única polca. A música ainda lhe
habita os dedos, mas ela não sabe tocar nenhuma outra peça,
nenhuma marcha fúnebre, nenhuma sonata apaixonada, nem ao
menos uma canção popular lamentosa; somente aquela polca.
Ela toca-a sempre que tem uma confidência a fazer ao velho
piano. Toca-a quando tem vontade de chorar e também quando tem
vontade de rir. Tocou-a quando festejou o casamento, quando
chegou pela primeira vez à nova casa e tocava nesse momento.
As velhas cordas entendem-na bem: está amargurada,
amargurada.
Um viajante que passe e ouça a melodia da polca talvez pense
que o malvado patrão da fundição esteja a oferecer um baile para os
vizinhos e amigos, de tão alegre que soa. É uma melodia
extravagantemente alegre e divertida. E, com aquela polca, em
tempos idos ela chamava o sossego e afastava a fome na
propriedade de Berga. Quando aquela música soava, todos
compareciam ao baile. A polca dissipava a força do reumatismo
sobre as juntas e atraía cavalheiros octogenários para o salão. O
mundo inteiro poderia dançar ao som daquela polca, tão alegre soa
– mas a velha Ulrika chora.
Sintram tem criados zangados e irritadiços e animais bravos. Ela
sente falta de rostos amáveis e bocas sorridentes. Esse é o anseio
desesperado que a alegre polca interpreta.
As pessoas têm dificuldade para chamá-la de sra. Sintram. Todos
a chamam de srta. Dillner. Vede, esse é o sentido, que a melodia da
polca explique o arrependimento que sente em relação à vaidade
que a levou a buscar o título de esposa.
A velha Ulrika toca como se quisesse romper as cordas. São
muitas as vozes sobre as quais precisa triunfar: os lamentos dos
camponeses pobres, os impropérios dos trabalhadores sofridos, o
escárnio dos criados insolentes e acima de tudo a vergonha, a
vergonha de ser a esposa de um homem mau.
Foi ao som dessas notas que Gösta Berling dançou com a jovem
condessa Dohna. Marianne Sinclaire e seus muitos admiradores
dançaram a essa toada, e a senhora de Ekeby mexeu o corpo no
mesmo ritmo enquanto o belo Altringer ainda vivia. Ela os vê a
todos, casal após casal, unidos na juventude e na beleza. Uma onda
de alegria passava dos casais para ela, dela para os casais. Era a
polca que punha aquelas faces a enrubescer, aqueles olhos a
cintilar. Mas neste momento a velha Ulrika está separada de tudo
aquilo. Que soe a polca – são muitas as lembranças, são muitas as
doces lembranças sobre as quais precisa triunfar!
Ela toca para mitigar a angústia. O coração por pouco não
explode de horror quando vê o cachorro preto, quando ouve os
criados falarem aos sussurros sobre os touros pretos. Ela toca a
polca muitas e muitas vezes para mitigar a angústia.
E então percebe que o marido chegou em casa. Escuta quando
entra no cômodo e senta-se na cadeira de balanço. O barulho da
cadeira rangendo contra as tábuas do piso é tão familiar que ela
nem ao menos se vira.
E, durante todo o tempo que toca, o rangido prossegue. De
repente ela para de ouvir as notas, e resta apenas o rangido.
Pobre da velha Ulrika, tão atormentada, tão solitária, tão
indefesa, perdida em um país inimigo sem ter sequer um amigo para
quem se queixar, sequer um consolo a não ser aquele piano
desafinado, que lhe responde com uma polca!
É como um surto de riso durante um enterro, uma canção
báquica em uma igreja.
Ainda enquanto a cadeira de balanço range, ela de repente ouve
o piano rir de seu lamento, e se interrompe no meio de um
compasso. Levanta-se e vai até a cadeira de balanço.
Mas no instante seguinte ela se encontra desacordada no chão.
Não era o marido que estava sentado na cadeira de balanço, mas
outro – aquele cujo nome as crianças pequenas não ousam dizer,
aquele que as mataria de susto caso o encontrassem na solidão do
sótão.
*
Será que aquele que tem a alma saturada de lendas pode um dia
livrar-se dessa influência? O vento noturno uiva lá fora, uma figueira
e uma espirradeira açoitam o pilar da sacada com as folhas rijas, o
céu escuro se estende sobre as montanhas e eu, que me sento para
escrever na solidão da noite, com o lampião aceso e a cortina
aberta, eu, que agora estou velha e devia ser sábia, eu sinto os
mesmos calafrios subirem pelas minhas costas, como na primeira
vez em que ouvi essa história, e o tempo inteiro preciso tirar os
olhos do trabalho para ver se ninguém entrou e se escondeu no
canto mais escondido; preciso olhar da sacada para ver se não há
uma cabeça preta erguendo-se acima da balaustrada. Esse medo
não me deixa jamais, o medo despertado pelas velhas histórias em
que a noite é escura e a solidão profunda, e por fim afigura-se tão
profundo que preciso jogar longe a minha pena, encolher-me na
cama e puxar as cobertas até acima da cabeça.
O grande mistério secreto da minha infância foi Ulrika Dillner ter
sobrevivido àquela tarde. Eu não teria.
Por sorte, logo a seguir Anna Stjärnhök chegou a Fors, onde a
encontrou prostrada no assoalho do salão e tratou de reanimá-la.
Mas comigo não teria dado certo. Eu já estaria morta.
E se possível, meus amigos, eu queria poupar-vos de ver esses
velhos olhos chorarem.
E também que evitásseis o constrangimento de ter uma cabeça
grisalha a buscar abrigo em vosso peito, ou ainda mãos enrugadas
a vos abraçar em uma prece silenciosa. Que sejais poupados de
ver, afundados na tristeza, os velhos a quem não podeis consolar!
Afinal, qual é o lamento dos jovens? Eles têm forças, têm
esperança. Mas que miséria quando os velhos choram, que
desespero quando eles, que foram o alicerce de vossa juventude,
sucumbem a um lamento minguado!
Lá estava Anna Stjärnhök, ouvindo a velha Ulrika e pensando
que para ela não havia saída.
A velha chorava e tremia. Tinha o olhar desvairado. Ela falava e
falava, por vezes confusa, como se já não soubesse mais onde se
encontrava. As mil rugas que lhe sulcavam o rosto tinham o dobro
da profundidade normal; os cachos que lhe pendiam sobre os olhos
eram alisados pelas lágrimas; e toda aquela figura alta e magra
convulsionava-se e fungava.
Por fim Anna precisou dar fim àquela miséria. Havia tomado uma
decisão. Iria levá-la consigo de volta para Berga. Verdade que era a
esposa de Sintram, mas em Fors não poderia mais ficar. O patrão
haveria de enlouquecê-la se a mantivesse por lá. Anna Stjärnhök
decidiu levar a velha Ulrika embora.
Ah, como a pobrezinha alegrou-se e horrorizou-se com essa
decisão! Mas claro que não teria a coragem de abandonar a casa e
o marido. Sintram talvez mandasse aquele cão grande e negro em
seu encalço.
Mas Anna Stjärnhök venceu essa resistência, em parte com bom
humor, em parte com ameaças, e meia hora depois tinha-a a seu
lado no trenó. A própria Anna conduziu, e a velha Disa puxou o
trenó. A viagem foi terrível, pois março já ia avançado, mas para a
velha Ulrika foi bom andar mais uma vez no trenó familiar puxado
por aquela égua familiar, que fora uma fiel criada em Berga no
mínimo pelo mesmo tempo que ela.
Como naquele momento estivesse de bom humor e com a
consciência tranquila, aquela velha criada parou de chorar quando
as duas passaram por Arvidstorp, pôs-se a rir quando chegaram a
Högberg e, quando passaram por Munkeby, já estava contando
histórias da juventude, da época em que trabalhava na casa da
condessa em Svaneholm.
Chegaram às desertas e solitárias terras ao norte de Munkeby
por uma estrada irregular e pedregosa. O caminho passava por
todos os morros imagináveis, subindo até o topo em curvas lentas e
descendo de repente em um declive íngreme, mas fazia o menor
trajeto possível no fundo plano do vale, para logo encontrar uma
nova encosta a subir.
Estavam descendo o morro de Västratorp quando a velha Ulrika
calou-se de repente e agarrou com força o braço de Anna. Tinha os
olhos fixos em um grande cachorro preto à beira da estrada.
– Vê! – ela disse.
O cachorro avançou em direção à floresta. Anna mal o viu.
– Anda – disse Ulrika –, anda o mais rápido que podes! Agora
Sintram vai saber que fui embora.
Anna tentou dissipar aquela preocupação com uma risada, mas a
velha Ulrika insistiu.
– Logo vamos ouvir as sinetas do coche dele, como bem hás de
ver. Vamos ouvi-las antes de chegar ao topo do morro seguinte.
E, quando Disa resfolegou por um instante no topo de
Elofsbacken, o retinir de sinetas fez-se ouvir logo abaixo.
Nesse instante a velha Ulrika enlouqueceu de medo. Pôs-se a
tremer, a fungar e a se lamentar como havia feito pouco tempo
antes no salão de Fors. Anna queria incitar Disa, mas a égua
simplesmente virou a cabeça e a encarou com uma expressão de
surpresa inefável. Por acaso ela achava que Disa tinha esquecido
quando era hora do galope e quando era hora do passo? Será que
pretendia ensiná-la a puxar um trenó, justo a ela, que conhecia cada
pedra, cada ponte, cada portão, cada morro havia mais de vinte
anos?
Enquanto isso o retinir das sinetas ia chegando cada vez mais
perto.
– É ele, é ele! Eu reconheço as sinetas! – lamenta a velha Ulrika.
O som se aproxima. Às vezes revela-se tão intenso que Anna se
vira para ver se o cavalo de Sintram não teria a cabeça ao lado do
trenó, às vezes desaparece. As duas ouvem-no ora à direita, ora à
esquerda, mas não veem nenhum outro viajante. É como se apenas
o retinir das sinetas as acompanhasse.
E é desse modo, como quando se volta à noite de uma festa,
assim é naquele momento. As sinetas fazem soar melodias, cantam,
conversam, respondem. A floresta põe a reverberar o barulho que
fazem.
Anna Stjärnhök quase deseja que os perseguidores por fim
cheguem mais perto, para que assim possa ver Sintram e seu
alazão. Ela sente arrepios com o terrível retinir das sinetas.
– Essas sinetas são um verdadeiro tormento – diz.
E logo a palavra é repetida pelas sinetas. “Tormento”, elas
retinem. “Tormento, tormento, tormento, tormento”, cantam em todas
as melodias imagináveis.
Não fazia muito tempo, Anna tinha viajado por aquela mesma
estrada, perseguida por lobos. No escuro, tinha visto as presas
brancas escancaradas e pensado que teria o corpo despedaçado
pelos animais selvagens da floresta, mas mesmo assim não sentiu
medo. Jamais tinha vivido noite tão maravilhosa. Forte e belo fora o
cavalo que a puxara, forte e belo, o homem com quem
compartilhara o júbilo da aventura.
Ah, mas aquela velha égua, e aquela velha, indefesa e trêmula
companheira de viagem! Anna sente-se tão vulnerável que tem
vontade de chorar. Não encontra forma de fugir àquele terrível e
perturbador retinir das sinetas.
Por fim ela se cala e desce do trenó. Tinha de pôr fim àquilo. Por
que fugir, como se tivesse medo daquele canalha malvado e
desprezível?
Finalmente ela vê a cabeça de um cavalo surgir em meio ao
crepúsculo mais denso a cada instante que passava, um trenó
inteiro, e no trenó se encontra ninguém menos do que o próprio
Sintram.
Ela, no entanto, percebe que o trenó, o cavalo e o patrão da
fundição não parecem ter andado pela estrada, mas antes parecem
ter sido criados perante os olhos dela já naquele lugar, para então
surgir em meio ao crepúsculo tão logo houvessem ganhado um
corpo.
Anna joga as rédeas nas mãos de Ulrika e vai ao encontro de
Sintram.
Ele segura o cavalo.
– Veja só – ele diz –, que sorte! Minha cara srta. Stjärnhök,
permita-me pôr meu companheiro de viagem em seu trenó. Ele tem
de ir a Berga ainda hoje à noite, e tenho pressa em voltar para casa.
– Onde está o seu companheiro de viagem?
Sintram levanta o saco de couro e mostra a Anna um homem
adormecido no chão do trenó.
– Ele está um pouco bêbado – diz –, mas que importa? Está
dormindo, afinal. E além disso é um homem conhecido, srta.
Stjärnhök; é Gösta Berling.
Anna sente um calafrio.
– Bem, é como eu costumo dizer – prosseguiu Sintram. – Quem
abandona a pessoa amada vende-a para o cão. Foi assim que caí
em suas garras. Toda a gente acha que faz bem, claro. Que
abandonar é uma coisa boa, e que amar é uma coisa má.
– O que o patrão está dizendo? Sobre o que o patrão está
falando? – perguntou Anna, profundamente abalada.
– Estou dizendo que não devia ter permitido que Gösta Berling a
deixasse, srta. Anna.
– Foi a vontade de Deus, patrão.
– Claro, claro, é assim mesmo; abandonar é uma coisa boa, e
amar é uma coisa má. O bom Deus não gosta de ver as pessoas
felizes. Manda-lhes lobos no encalço. Mas e se não foi Deus quem
os mandou, srta. Anna? Não poderia ter sido eu a chamar meus
pequenos cordeiros cinzentos de Dovrefjäll para caçar aquele rapaz
e aquela moça? Imagine se fui eu a mandar os lobos, por não
querer sofrer com a perda de um dos meus! Imagine se não foi
Deus quem os mandou!
– O senhor não há de me fazer duvidar do que aconteceu, patrão
– Anna diz, com uma voz débil –, pois nesse caso estou perdida.
– Veja – diz Sintram, aproximando-se de Gösta Berling –, veja o
mindinho dele! Essa ferida não cicatriza nunca. Foi daqui que
tiramos o sangue quando ele assinou o contrato. Ele é meu. O
sangue tem uma força própria. Ele é meu, e somente o amor pode
libertá-lo; mas, se eu o mantiver comigo, há de tornar-se um
companheiro e tanto.
Anna Stjärnhök luta e luta para livrar-se do feitiço que tomou
conta dela. Aquilo é loucura, loucura. Ninguém pode entregar a alma
para o maléfico tentador. Mas ela já não controla os pensamentos, o
crepúsculo pesa acima dela enquanto a floresta permanece escura
e silenciosa. Ela não consegue evitar o terrível pavor daquele
momento.
– Será que a senhorita pretende dizer – continua o patrão da
fundição – que já não existe muito a arruinar em Gösta Berling? Não
pense assim! Acaso maltratou camponeses, traiu amigos pobres,
valeu-se de falsidade? Acaso, srta. Anna, foi o amante de mulheres
casadas?
– Começo a acreditar que o patrão seja o próprio cão!
– Então troquemos, srta. Anna! Leve Gösta Berling, leve-o e
case-se com ele! Fique com ele e dê dinheiro às pessoas de Berga!
Renuncio a ele em seu favor, pois a senhorita sabe que ele me
pertence. Pense que fui eu que mandei os lobos naquela noite, e
assim troquemos!
– O que o patrão deseja em troca?
Sintram abriu um sorriso.
– O que eu desejo? Ah, eu me contento com pouco. Quero
apenas essa velha senhora que se encontra no seu trenó, srta.
Anna.
– Tentador, Satanás – gritou Anna –, vade retro! Acaso hei de
trair uma velha amiga que confia em mim? Acaso hei de entregá-la
para ti, para que possas atormentá-la até que perca o juízo?
– Ora, ora, ora, acalme-se, srta. Anna! Pense no assunto! Ele é
um homem jovem e bonito, ela é uma velha cansada. Um dos dois
tem de ficar comigo. Quem a senhorita me concede?
Anna Stjärnhök pôs-se a rir de desespero.
– O patrão acha que vamos trocar almas como as pessoas
trocam cavalos no mercado de Broby?
– Exatamente. Mas, se a srta. Anna quiser, podemos fazer de
outra forma. Podemos refletir sobre a honra da família Stjärnhök.
E assim Sintram começa a chamar e a gritar pela esposa, que
está sentada na frente do trenó de Anna, e, para o indizível terror da
moça, Ulrika prontamente atende ao chamado, sai do trenó e
aproxima-se, trêmula e assustada.
– Veja, veja, que esposa obediente! – diz Sintram. – A srta. Anna
não pode evitar que ela venha quando o marido a chama. E agora
vou tirar Gösta do meu trenó e deixá-lo aqui. Deixo-o para sempre,
srta. Anna. Quem quiser que o pegue.
Sintram abaixa-se para levantar Gösta, porém no mesmo
instante Anna baixa o rosto, fixa-o bem nos olhos e bufa como um
animal em fúria:
– Em nome de Deus, volta para casa! Sabes quem está sentado
na cadeira de balanço do salão à tua espera? Queres mesmo fazer
com que aquele senhor espere?
Para Anna é quase o ponto alto dos horrores do dia testemunhar
o efeito que essas palavras têm sobre o malvado. Sintram puxa as
rédeas para si, dá meia-volta e retorna para casa, incitando o cavalo
aos gritos e chicotadas. A arriscada viagem segue morro abaixo
enquanto uma linha de faíscas surge por baixo de cascos e
pranchas em meio à fina neve de março.
Anna Stjärnhök e Ulrika Dillner encontram-se sozinhas na
estrada, porém não dizem uma palavra sequer. Ulrika estremece ao
perceber o olhar assustado de Anna, e esta não tem nada a dizer à
pobre velha, em cujo favor sacrificou o amado.
Ela queria chorar, enfurecer-se, rolar na estrada e espalhar neve
e areia sobre a cabeça.
Antes conhecera as delícias do amor; naquele instante conhecia-
lhe a amargura. Mas o que era sacrificar seu amor quando
comparado a sacrificar a própria alma do bem-amado?
As duas seguiram rumo a Berga com aquele mesmo silêncio,
mas, quando chegaram e a porta do salão se abriu, Anna Stjärnhök
desmaiou pela primeira e única vez na vida. Lá dentro, Sintram e
Gösta Berling conversavam tranquilamente. A bandeja de uísque
quente com especiarias estava servida. Os dois estavam lá por no
mínimo uma hora.
Anna Stjärnhök desmaiou, porém a velha Ulrika manteve-se
tranquila. Afinal, tinha notado que parecia haver algo de errado com
o homem que as seguira pela estrada.
Depois o capitão Uggla e a esposa resolveram o assunto com o
patrão da fundição, e foi decidido que a velha Ulrika permaneceria
em Berga. Sintram concordou de bom grado.
– Não queria levá-la à loucura – disse.
Um, dois
três, quatro.
Os caçadores vêm do mato.
*
Na igreja de Broby a pregação havia chegado ao fim, e as preces
costumeiras haviam sido feitas. O pastor estava prestes a descer a
escada do púlpito. Mas hesitou. Por fim prostrou-se de joelhos,
ainda lá em cima, e suplicou que chovesse.
Suplicou como um homem desesperado, com palavras escassas
e desconexas.
– Se é o meu pecado que despertou a tua ira, castiga-me
somente a mim! Se tens piedade, tu, que és o Deus da misericórdia,
faz com que chova! Afasta de mim essa vergonha! Faz com que
chova e atende às minhas preces! Faz com que a chuva caia na
lavoura dessa gente pobre! Dá pão ao teu povo!
O dia estava quente a ponto de causar um desconforto
insuportável. A congregação havia assistido à pregação como que
entorpecida, mas, ao ouvir esses sons entrecortados, esse
desespero rouco, todos despertaram.
– Se ainda existe um caminho para a minha salvação, traz a
chuva…
O pastor calou-se. As portas estavam abertas. De repente uma
rajada de vento soprou. Correu ao longo do chão, ergueu-se ao
chegar à igreja e trouxe consigo uma nuvem de poeira, cheia de
gravetos e palha. O pastor não pôde continuar. Deixou o púlpito com
passos trôpegos.
As pessoas estremeceram. Seria aquilo uma resposta?
A rajada de vento fora apenas o prenúncio da tempestade. As
nuvens chegaram com uma velocidade sem igual. Quando os
salmos foram entoados e o pastor se encontrava no altar, os
relâmpagos faiscaram e o trovão ribombou, abafando o som de suas
palavras. Quando o sineiro tocou o salmo de saída, as primeiras
gotas tamborilaram contra as vidraças esverdeadas, e todas as
pessoas da congregação saíram depressa para ver a chuva. Mas
não se contentaram em vê-la. Houve quem chorasse, houve quem
risse enquanto deixava que as águas da tempestade escorressem-
lhes pelo corpo. Ah, como fora grande a necessidade! Como tinham
sido infelizes! Mas Deus era bom. Deus havia feito com que a chuva
caísse. Quanta alegria, quanta alegria!
O pastor de Broby foi o único que não saiu rumo à chuva.
Manteve-se ajoelhado em frente ao altar e não se levantou. A
alegria foi excessiva. Ele morreu de júbilo.
A CRIANÇA VEIO AO MUNDO EM UMA CABANA DE CAMPONESES, na
margem oeste do Klarälven. A mãe da criança tinha chegado lá e
procurado trabalho no início de junho. Segundo havia contado à
família do senhor, as coisas lhe haviam corrido mal, e a mãe lhe
tratara com tanta dureza que se vira obrigada a fugir de casa.
Chamava-se Elisabet Karlsdotter, mas não quis dizer de onde vinha,
pois nesse caso talvez comunicassem aos avós que estava lá, e
caso a encontrassem ela seria atormentada até a morte – quanto a
isso tinha certeza. Não tinha pedido nenhum ordenado, apenas
comida e um teto sobre a cabeça. Podia trabalhar tecendo ou fiando
ou mesmo cuidando das vacas, conforme desejassem. Se assim
quisessem, também estava disposta a pagar pelo alojamento.
Ela tinha sido astuta o bastante para chegar à propriedade de
pés descalços, com os sapatos debaixo do braço; tinha mãos
calejadas, falava com o sotaque da região e trajava as roupas de
uma camponesa. Todos acreditaram na história.
O senhor da fazenda achou-a franzina, e não imaginou que fosse
capaz de oferecer grande ajuda na lida. Mas a pobrezinha tinha de
viver em algum lugar. E assim deixaram que ficasse.
Havia algo nela que fazia com que todos na propriedade
tratassem-na de maneira amistosa. Ela havia encontrado um bom
lugar. As pessoas eram sérias e lacônicas. A senhora da casa
tomou-se de simpatia por ela tão logo descobriu que sabia tecer. As
duas pegaram um tear emprestado na propriedade do preboste e a
mãe da criança passou o verão inteiro sentada ao tear.
Não ocorreu a ninguém que era necessário poupá-la. Ela
trabalhou o tempo inteiro como uma camponesa. E também gostava
muito do trabalho. Já não se sentia infeliz. A vida em meio aos
camponeses lhe agradava, mesmo que tivesse de renunciar a todos
os confortos habituais. Mas tudo era feito de maneira simples e
tranquila naquele lugar. As ideias de todos giravam em torno do
trabalho, e os dias passavam de maneira tão regular e tão uniforme
que era possível enganar-se em relação ao dia e imaginar que ainda
se estava no meio da semana quando o domingo chegava.
Certo dia no fim de agosto houve pressa na colheita de aveia, e a
mãe da criança saiu com todos os outros para amarrar os feixes.
Esforçou-se mais do que devia, e assim a criança nasceu
prematura. Era esperada para outubro.
Naquele momento a senhora da casa estava de pé na sala com
a criança no colo, para aquecê-la ao pé do fogo, pois a pobrezinha
estava congelando em pleno calor de agosto. A mãe da criança
estava no quarto, ouvindo o que as pessoas diziam acerca do
menino. Imaginava os criados e criadas que acudiam para vê-lo.
– Pobrezinho! – diziam o tempo inteiro, e a seguir ouvia-se
sempre, infalivelmente:
– Pobrezinho de ti, que não tens pai!
Mas não reclamavam do choro do menino. De certa forma
estavam convencidos de que precisava chorar, e, ao fim e ao cabo,
até que era um menino robusto para a pouca idade. Se ao menos
tivesse um pai, tudo estaria bem, era o que pensavam.
A mãe, deitada, ouvia e pensava. De repente o assunto pareceu-
lhe assumir uma grande importância. Como o pobrezinho haveria de
se arranjar na vida?
Antes ela tinha feito planos. Passaria o primeiro ano na fazenda.
Depois alugaria um quarto e passaria a ganhar a vida com o tear.
Pretendia ganhar o suficiente para custear a comida e as roupas da
criança. O marido podia continuar achando que era uma mulher
indigna. Ela tinha pensado que talvez a criança viesse a ser melhor
pessoa caso a educasse sozinha, sem que um pai estúpido e
presunçoso se encarregasse disso.
Mas naquele momento, com o menino já nascido, não era assim
que via a situação. Naquele momento, achou que tinha sido egoísta.
– O menino precisa de um pai – disse para si mesma.
Se o pequeno não fosse um pobrezinho tão digno de pena, se
pudesse comer e dormir como as outras crianças, se a cabecinha
não estivesse sempre caída para o lado do ombro, se não tivesse
chegado tão próximo da morte ao ser acometido pelas convulsões,
essa questão não teria um peso incomensurável.
Não seria fácil tomar uma decisão, mas assim mesmo ela teria
de tomá-la o quanto antes. O menino estava com três dias, e os
camponeses de Värmland raramente demoram mais do que isso
para batizar os filhos.
Mas com que sobrenome o pequeno seria inscrito no registro da
igreja, e o que o pastor desejaria saber a respeito da mãe? Seria
com certeza uma injustiça contra o menino registrá-lo sem o nome
do pai. E se aquele menino se tornasse um homem fraco e doente,
como ela poderia explicar tê-lo privado das vantagens oferecidas
pelo berço e pela riqueza?
A mãe da criança sem dúvida tinha notado que a chegada de um
recém-nascido ao mundo costuma ser acompanhada por grande
alegria e celebração. Mas naquele momento pareceu-lhe que viver
seria difícil para o pequeno, que despertava a comiseração de
todos. Ela queria vê-lo dormir em meio a rendas e seda, como
convém ao filho de um conde. Queria vê-lo rodeado de alegria e
orgulho.
A mãe da criança também começou a achar que estava
cometendo uma injustiça demasiado grande contra o pai. Acaso
tinha o direito de manter o filho apenas para si? Não seria possível.
Uma coisinha tão preciosa como aquela, cujo valor não podia ser
medido pela capacidade humana, haveria mesmo de ficar somente
a seus cuidados? Não seria uma forma muito justa de agir.
Mas ela não queria voltar para o marido. Temia que pudesse
acabar morta. Mas o pequeno corria um risco ainda maior. Podia
morrer a qualquer momento, e não fora batizado.
E aquilo que a levara a fugir de casa, o pecado enorme que
morava em seu coração, havia desaparecido. Ela já não sentia amor
nenhum por quem quer que fosse além do pequeno. Não seria um
dever excessivo fazer o quanto estivesse ao seu alcance para que o
filho ocupasse o lugar que merecia na vida.
A mãe da criança mandou chamar o senhor e a senhora da casa
e explicou-lhes tudo. O homem viajou a Borg para dizer ao conde
Dohna que a condessa estava viva e tivera um filho.
O camponês voltou tarde da noite. Não tinha encontrado o
conde, que estava viajando, mas encontrara o pastor de Svartsjö e
com ele discutira o assunto.
E assim a condessa descobriu que seu casamento fora anulado
e que já não tinha marido.
O pastor lhe escreveu uma carta amistosa, na qual a convidava a
morar em sua casa.
Uma carta escrita por seu pai para o conde Henrik, que deve ter
chegado a Borg dois ou três dias após a fuga de casa, também lhe
foi enviada. Foi justamente essa carta, em que o velho pedia ao
conde que apressasse a legalização do casamento, que sugerira ao
conde a maneira mais simples de livrar-se da esposa.
Pode-se imaginar que a mãe da criança tenha sido tomada por
uma raiva mais intensa do que a tristeza ao ouvir o relato do
camponês.
O sono fugiu-lhe durante toda a noite. “O menino precisa de um
pai”, ela não parava de pensar.
Na manhã seguinte, a seu pedido, o camponês foi a Ekeby
buscar Gösta Berling.
Gösta fez muitas perguntas àquele homem lacônico, mas não
descobriu nada. Sim, a condessa tinha estado naquela casa durante
todo o verão. Estava sadia e trabalhando. E então tinha dado à luz
uma criança. O menino era franzino, porém a mãe logo estaria
novamente bem-disposta.
Gösta perguntou se a condessa sabia que o casamento tinha
sido anulado.
Sim, ela sabia. Tinha descoberto no dia anterior.
E, durante toda a viagem, Gösta alternou entre episódios de
febre e calafrios.
O que a condessa podia querer com ele? Por que havia
mandado chamá-lo?
Gösta pensou na vida de verão que se vivia às margens do
Löven. Os dias haviam passado em meio a gracejos, brincadeiras e
passeios, e durante todo esse tempo a condessa havia trabalhado e
sofrido.
Jamais havia considerado a possibilidade de tornar a vê-la. Ah,
se tivesse ousado sonhar! Nesse caso poderia apresentar-se como
um homem melhor. Pois o que descobria ao olhar para trás, além
das loucuras de sempre?
Às oito da noite Gösta Berling chegou e foi levado diretamente à
mãe da criança. O quarto estava na penumbra. Ele mal conseguia
vê-la. O senhor e a senhora da casa também se apresentaram.
Nesse ponto é preciso dizer que a condessa, cujo rosto alvo luzia
para Gösta em meio ao crepúsculo, era a criatura mais excelsa e
mais pura que existia, a alma mais bela que um dia se revestira de
matéria terrena. Quando ele voltou a receber a bênção daquela
proximidade, quis prostrar-se de joelhos e agradecer-lhe por revelar-
se mais uma vez para ele, porém estava tão repleto de
arrebatamento que não sabia o que dizer nem o que fazer.
– Minha cara condessa Elisabet! – foi tudo o que exclamou.
– Boa noite, Gösta!
A condessa estendeu-lhe a mão, que novamente parecia estar
macia e translúcida. Manteve-se deitada em silêncio enquanto
Gösta lutava contra o arrebatamento.
A mãe da criança não foi tomada por sentimentos tempestuosos
ao vê-lo. Simplesmente se espantou ao ver que parecia centrar toda
a atenção nela, quando naquele instante era preciso compreender
que tudo dizia respeito apenas à criança recém-nascida.
– Gösta – ela disse, em um tom delicado –, precisas me ajudar,
como outrora prometeste. Sabes que o meu marido abandonou-me,
e assim o meu filho acabou sem pai.
– Claro, condessa, mas essa é situação que pode ser mudada.
Agora que existe uma criança, sem dúvida é possível obrigar o
conde a legalizar o casamento. Tenha a certeza de que eu me
disponho a ajudá-la!
A condessa abriu um sorriso discreto.
– Achas mesmo que pretendo forçar o conde Dohna a me aceitar
de volta?
O sangue ferveu na cabeça de Gösta. Nesse caso, o que a
condessa podia querer? O que podia solicitar-lhe?
– Vem cá, Gösta! – ela disse, estendendo-lhe a mão. – Não
fiques bravo comigo pelo que hei de dizer agora, mas pensei que tu,
que és, que és…
– Um pastor destituído, um beberrão, um cavalheiro, o assassino
de Ebba Dohna… eu bem conheço a lista de méritos.
– Já estás zangado, Gösta?
– Eu preferia que a condessa não dissesse mais nada.
A mãe da criança, porém, prosseguiu:
– Muitas quiseram ser tua esposa por amor, Gösta, mas comigo
não é isso o que se passa. Se te amasse, eu não me atreveria a
falar como agora falo. Pelo meu próprio bem, eu não queria ter de
pedir-te uma coisa dessas, Gösta, mas, como vês, pelo bem do meu
filho estou disposta. Sem dúvida compreendes o que pretendo
pedir-te. Sei que é uma grande humilhação para ti, porque sou uma
mulher solteira com uma criança. Pensei que não estarias disposto,
porque és ainda pior do que os outros, mas, ah!, eu também pensei
nisso. Acima de tudo, porém, pensei que poderias estar disposto,
porque és um homem bom, Gösta, porque és um herói e assim
podes sacrificar-te. Mas talvez seja pedir demais. Uma coisa dessas
talvez seja impossível para um homem. Se tens desprezo por mim,
se para ti seria repulsivo ser mencionado como pai do filho de um
outro, então basta que digas! Não hei de zangar-me. Entendo que
seja pedir demais, mas o meu filho é doente, Gösta. E é terrível que
no batizado não seja possível dizer o nome do marido da mãe que o
trouxe ao mundo.
Gösta, que a ouvira durante todo esse tempo, teve o mesmo
sentimento de quando, naquele dia de primavera, teve de pô-la em
terra e abandoná-la à própria sorte. Naquele momento tinha de
ajudá-la a destruir o próprio futuro, todo o próprio futuro. Ele, que a
amava, teria de fazer aquilo.
– Faço tudo o que a condessa pedir de mim – disse.
No dia seguinte Gösta falou com o preboste de Bro, posto que
Bro é a congregação-mãe de Svartsjö, para que fossem feitos os
proclamas.
O bom e velho preboste comoveu-se com a história e prometeu
assumir toda a responsabilidade por aquele casamento.
– Sim – disse o preboste –, tens de ajudá-la, Gösta; tens mesmo.
De outra forma talvez enlouquecesse. Ela imagina ter causado
prejuízos à criança, por tê-la privado da posição que devia ocupar
na vida. Tem uma consciência muito sensível, essa mulher.
– Mas eu sei que vou fazê-la infeliz! – exclamou Gösta.
– Não podes fazer uma coisa dessas, Gösta. Precisas tornar-te
um homem de juízo a partir de agora, com uma esposa e um filho
dos quais precisas cuidar.
Nesse meio-tempo o preboste faria uma viagem a Svartsjö para
falar com o pastor e com o presidente do tribunal. No fim aconteceu
que, no domingo seguinte, dia 1º de setembro, os proclamas do
casamento entre Gösta Berling e Elisabet von Thurn foram feitos em
Svartsjö.
Logo depois, a mãe da criança foi levada com grande cuidado
para Ekeby, onde o menino foi batizado.
O preboste falou com ela e disse-lhe que ainda dispunha de
tempo para voltar atrás na decisão de casar-se com um homem
como Gösta Berling. Devia escrever para o pai antes.
– Eu não vou me arrepender – disse a condessa. – Imagine se o
meu filho morrer antes de ter pai!
Quando chegou o terceiro dia dos proclamas, a mãe da criança
já estava recuperada e de pé havia vários dias. À tarde o preboste
chegou a Ekeby e celebrou a união entre ela e Gösta Berling. Mas
ninguém achou que aquilo era um casamento. Não houve
convidados. Simplesmente se arranjou um pai para a criança, nada
mais.
Mesmo em silêncio, a mãe da criança parecia radiante de
alegria, como se tivesse atingido um objetivo importante na vida. O
noivo estava abatido. Pensava que aquela mulher havia jogado fora
o próprio futuro ao casar-se com ele. Notou horrorizado que na
verdade mal existia para ela. Todos os pensamentos daquela mulher
diziam respeito à criança.
Dois ou três dias mais tarde o pai e a mãe enlutaram-se. A
criança havia morrido durante um acesso de convulsões.
Muitos tiveram a impressão de que a mãe não se lamentara tanto
e de maneira tão profunda quanto as pessoas haviam imaginado. O
brilho do triunfo pairava acima dela. Era como se houvesse um
júbilo em saber que havia jogado fora todo o próprio futuro em nome
daquela criança. Quando o pequeno encontrasse os anjos, no
entanto, haveria de recordar que tivera na terra uma mãe que o
amara.
Uma hora mais tarde a festa corre solta em Ekeby. A maior festa
já vista naquela grande propriedade é celebrada durante aquela
noite de outono, sob a enorme lua cheia.
Pilhas de achas foram acesas, e por todo o pátio as fogueiras
ardem umas ao lado das outras. As pessoas estão sentadas em
grupos, desfrutando do calor e do repouso, enquanto as dádivas da
terra chovem sobre todos.
Os homens mais decididos entraram no estábulo e pegaram tudo
o que pudesse ser necessário. Novilhos e ovelhas foram carneados,
e mesmo um que outro animal maior. Os animais foram
esquartejados e assados em um estalar de dedos. Aquelas
centenas de famintos fartam-se de comida. Os animais são retirados
e carneados um atrás do outro. Parece que todo o estábulo será
esvaziado em uma noite.
E justo por aqueles dias haviam saído as fornadas de outono.
Desde que a condessa Elisabet fora morar por lá houvera uma
retomada nas atividades domésticas. Era como se a bela jovem não
se recordasse ao menos por um instante de que era esposa de
Gösta Berling. Nem ele nem ela davam mostras dessa situação,
mas por outro lado a condessa Elisabet tornou-se dona de casa.
Assim como uma mulher boa e útil deve sempre fazer, procurou com
grande afinco afastar a modorra e leviandade que reinavam em
Ekeby. E foi obedecida. As pessoas redescobriram certo bem-estar
ao ter novamente uma senhora da casa.
Mas de que adiantava naquele momento ter o jirau da cozinha
cheio de pães? De que adiantava ter feito queijo e batido manteiga
durante o mês de setembro em que estivera lá? De que adiantava?
Foi preciso dar tudo o que havia, para que assim não
incendiassem Ekeby e matassem os cavalheiros! Foi preciso dar o
pão, a manteiga, o queijo! Foi preciso dar os barris de bebida e os
canecos de cerveja, os presuntos da despensa, as barricas de
aguardente, as maçãs!
Como pode a riqueza de Ekeby apaziguar a ira das pessoas?
Que fossem embora sem causar nenhum dano grave já seria motivo
de alegria.
No fundo, tudo o que acontece é por causa da jovem que agora é
a senhora da casa em Ekeby. Os cavalheiros são homens corajosos
e hábeis no manejo de armas e teriam se defendido caso
houvessem seguido a consciência. Se não fosse por ela, uma jovem
fraca e delicada que reza em favor dos pobres, teriam preferido
afastar aqueles gritos cobiçosos à base de tiros.
À medida que a noite avança, os grupos tornam-se mais
contidos. O calor e o repouso e a comida e a aguardente apaziguam
a terrível ira que sentiam. As pessoas começam a fazer gracejos e a
rir. Estão na celebração que sucede ao funeral da menina de
Nygård. “Quem se furta a beber e a fazer gracejos ao fim do funeral
devia se envergonhar! É nessas horas que mais precisamos disso.”
As crianças atiram-se em cima das grandes quantias de frutas
que são trazidas. As crianças pobres das pequenas propriedades,
que consideram arandos e airelas verdadeiras guloseimas, jogam-
se em cima das maçãs-astracã, que se desmancham na boca, das
maçãs-do-paraíso, doces e alongadas, das maçãs-limão de casca
amarelo-clara, das peras com bochechas vermelhas e das ameixas
de todos os tipos: amarelas, vermelhas e pretas. Ah, nada é bom o
suficiente para o povo quando a este convém demonstrar força.
Quando a meia-noite se aproxima, a impressão é de que os
grupos preparam-se para ir embora. Os cavalheiros param de trazer
comida e vinho, de abrir as rolhas e de verter cerveja. E soltam um
suspiro de alívio quando sentem que o perigo está prestes a passar.
Justo nesse instante, porém, surge uma luz em uma janela da
grande construção. Todos que a veem iluminada soltam um grito. É
uma jovem que traz uma lamparina nas mãos.
A cena dura apenas um instante. A visão desaparece, mas as
pessoas imaginam ter reconhecido a mulher.
– Ela tinha cabelos pretos e bastos e faces rosadas! – exclamam.
– Ela está aqui. Eles a esconderam aqui.
– Ah, cavalheiros, então os senhores a mantêm por aqui? A
nossa menina, a quem Deus privou do juízo, está sendo mantida em
Ekeby? O que fizeram com ela, seus ímpios? Pois saibam que os
senhores deixaram-nos angustiados durante a semana inteira, e que
nos fizeram procurá-la por três dias inteiros! Chega de vinho e de
comida! Ai de nós, que aceitamos presentes dos senhores! Tratem
de trazê-la para cá! Depois vamos pensar no que fazer com os
senhores.
O animal selvagem rosna e ruge. Com saltos impressionantes,
avança em direção a Ekeby.
As pessoas são rápidas, porém ainda mais rápidos são os
cavalheiros. Eles batem a porta e a fecham com a tranca. Mas o que
poderiam fazer contra o bando de invasores? As portas são abertas
uma a uma. Os cavalheiros são empurrados para o lado, pois não
dispõem de armas. São espremidos pelo grupo a ponto de não mais
poderem mexer-se. As pessoas querem entrar e encontrar a menina
de Nygård.
Encontram-na no aposento mais escondido da casa. Ninguém
dispõe de tempo para ver se os cabelos são claros ou escuros.
Simplesmente a erguem e a levam para fora. Dizem-lhe que não
precisa temer. São os cavalheiros que têm contas a acertar. As
pessoas foram até lá para salvá-la.
Mas as que naquele instante saem da casa encontram outra
procissão.
No lugar mais ermo da floresta já não se encontra o cadáver de
uma mulher que caiu da encosta íngreme e morreu na queda. Uma
criança a encontrou. Os que ainda conduziam buscas pela floresta
carregam-na sobre os ombros. O grupo se aproxima.
Na morte, a menina é ainda mais bela que em vida. Parece bela
com os longos cabelos negros. Faz uma linda figura, e a partir de
então a paz eterna há de pairar sobre aquela beleza.
Erguida sobre os ombros dos homens, a menina é levada por
entre os grupos de pessoas. Todos se calam por onde a menina
passa. Com os rostos voltados para baixo, todos prestam
homenagem à majestade da morte.
– Ela acabou de morrer – sussurram os homens que a
transportam. – Decerto caminhava pela floresta ainda hoje.
Acreditamos que tentou fugir de nós, que a procurávamos, e então
caiu da encosta.
Mas quem é essa menina de Nygård que está sendo retirada de
Ekeby?
A procissão que vem da floresta encontra a procissão que sai da
casa. As fogueiras ardem por todo o pátio ao redor. As pessoas
veem as duas mulheres e as reconhecem. A outra, claro, é a jovem
condessa de Borg.
– Ora, o que significa isso? Acaso trata-se de um novo malfeito
que acabamos por descobrir? Por que a jovem condessa encontra-
se aqui em Ekeby? Por que nos disseram que estava longe, ou até
mesmo que havia morrido? Em nome da justiça divina, temos o
dever de arrojar-nos sobre os cavalheiros e pisoteá-los até virarem
pó sob os nossos saltos de ferro!
Então se ergue uma voz altissonante. Gösta Berling está de pé
sobre a balaustrada e começa a falar.
– Ouçam-me, seus animais, seus demônios! Acaso pensam que
não temos espingardas e pólvora aqui em Ekeby, seus desatinados?
Acaso pensam que não sinto vontade de abatê-los todos, como se
fossem cachorros loucos? Mas aquela mulher intercedeu em favor
de vocês. Ah, se eu soubesse que pretendiam tocá-la, agora vocês
estariam todos mortos.
“Por que bufam hoje à noite, e por que aparecem à nossa porta
como saqueadores e ameaçam-nos com incêndio e assassinato? O
que temos a ver com as suas meninas loucas? O que sei eu quanto
ao local para onde fugiram? A verdade é que fui bom para com ela.
Eu devia ter soltado os cachorros em cima dela; teria sido melhor
para nós dois, mas não foi o que fiz. Tampouco lhe prometi que a
desposaria; eu nunca fiz uma coisa dessas. Não se esqueçam!
“Mas agora eu lhes digo: soltem a mulher que tiraram da casa.
Soltem-na, eu digo; e que as mãos que a tocaram queimem para
sempre no fogo do inferno! Não entendem que ela está tão acima de
vocês quanto o céu está acima da terra, que é tão delicada quanto
vocês são grosseiros, que é tão boa quanto vocês são maus?
“Pois agora eu vou dizer quem é essa mulher. Em primeiro lugar,
é um anjo do céu, e em segundo lugar foi casada com o barão de
Borg. Mas a sogra maltratava-a dia e noite. Ela tinha de se ajoelhar
à beira do rio e lavar roupa como se fosse uma criada ordinária,
apanhou e foi tão atormentada que nem mesmo as suas mulheres
podem ter uma vida pior. Por pouco ela não se atirou nas águas do
Klarälven, porque os tormentos estavam acabando com sua vida. E
eu me pergunto quem dentre vocês, seus canalhas, estava lá para
salvar a vida dela! Nenhum de vocês estava lá; mas nós,
cavalheiros, estávamos. É claro que estávamos.
“E quando mais tarde ela deu à luz um menino na casa de um
camponês e o conde enviou uma mensagem dizendo: ‘Casamo-nos
no estrangeiro, à revelia das leis e do ordenamento jurídico. Não és
minha esposa, e eu não sou teu marido. Teu filho não me diz
respeito’ – bem, quando a situação chegou a esse ponto e ela não
quis que a criança aparecesse sem paternidade no registro da
igreja, com certeza vocês haveriam de tornar-se presunçosos se ela
pedisse: ‘Case-se comigo! O meu filho precisa de um pai’. Mas ela
não escolheu nenhum de vocês. Escolheu Gösta Berling, o pastor
pobre que nunca mais há de pregar a palavra de Deus. Bem, eu
lhes digo, seus rústicos, que nunca fiz coisa mais difícil, porque eu
era tão indigno que mal aguentava olhá-la nos olhos, mas tampouco
me atrevia a dizer não, tamanho era aquele desespero.
“Sendo assim, pensem o mal que quiserem de nós, cavalheiros,
mas quanto a ela fizemos todo o bem que podíamos. E foi por causa
dela que não matamos todos vocês a tiro agora à noite. Então eu
lhes digo: soltem-na e vão embora, pois de outra forma a terra pode
se abrir para engolir vocês! E, quando forem embora daqui, peçam a
Deus que os perdoe por terem entristecido e assustado uma mulher
tão boa e tão pura! Agora saiam daqui! Já aturamos vocês por
tempo suficiente!”
Muito antes que o discurso se encerrasse, os homens que
carregavam a condessa puseram-na em um dos degraus de pedra,
e então um camponês enorme se aproximou cheio de consideração
e estendeu-lhe a mão enorme.
– Obrigado e boa noite! – ele disse. – Não queríamos fazer mal
nenhum, condessa.
Depois veio outro camponês que lhe deu um cauteloso aperto de
mão.
– Obrigado e boa noite! Não fique triste por nossa causa!
Gösta saltou da balaustrada e postou-se ao lado dela. Os
homens apertaram também a mão dele.
Depois as pessoas se aproximaram devagar, uma atrás da outra,
para desejar-lhes boa-noite antes de partir. Estavam novamente
acuadas, eram novamente pessoas, como tinham sido pela manhã
ao sair de casa, antes que a fome e a vingança as houvessem
transformado em animais selvagens.
Olhavam bem nos olhos da condessa, e Gösta percebeu que a
expressão de inocência e piedade fazia as lágrimas brotarem de
muitos olhos. Em todos havia uma reverência silenciosa àquela
nobilíssima visão. Eram pessoas que se alegravam ao saber que
uma delas evidenciava tamanho amor ao bem.
Nem todos puderam apertar a mão da condessa. Afinal, era
muita gente, e a jovem condessa estava cansada e fraca. Mas
assim mesmo todos puderam admirá-la, e então apertar a mão de
Gösta; pois o braço dele sem dúvida aguentaria o esforço.
Gösta sentia-se como que em um sonho. Naquela noite, sentiu
um novo amor correr pelo coração.
“Ah, meu povo”, ele pensou, “ah, meu povo, como o amo!”. Ele
sentiu o quanto amava o grupo que se afastou em meio à escuridão
da noite com a menina morta na frente da procissão, todas aquelas
vestes rústicas e calçados malcheirosos, todos aqueles que viviam
em cabanas cinzentas na orla da floresta, todos aqueles que não
sabiam manusear uma pena e que com frequência tampouco
sabiam ler, todos aqueles que ignoravam a plenitude e a riqueza da
vida, porque conheciam apenas a batalha pelo pão de cada dia.
Gösta Berling amava-os com uma ternura dolorosa e ardente,
que fez as lágrimas brotarem-lhe dos olhos. Ele não sabia o que
fazer por aquelas pessoas, mas assim mesmo as amava, cada uma
delas, com todos os defeitos, problemas e fragilidades. Ah, meu
Deus, se pudesse chegar o dia em que toda aquela gente pudesse
retribuir esse amor!
E então ele acordou do sonho. A esposa pôs a mão em seu
braço. As pessoas tinham ido embora. Os dois estavam sozinhos na
escada.
– Ah, Gösta, Gösta, como pudeste?
Ela levou as mãos ao rosto e pôs-se a chorar.
– O que eu disse é verdade – ele exclamou. – Eu nunca prometi
à menina de Nygård que a desposaria. “Vem na próxima sexta-feira
para ver uma coisa engraçada” foi tudo o que eu disse. Não é minha
culpa se ela gostava de mim.
– Ah, não é isso! Mas como pudeste dizer às pessoas que eu era
boa e pura? Gösta, Gösta, acaso não sabes que eu te amei quando
ainda não podia? Eu senti vergonha diante das pessoas, Gösta.
Quase morri de vergonha.
E então o corpo da condessa estremeceu com o choro.
Gösta olhou para a esposa.
– Ah, minha amiga, minha amada! – ele disse em silêncio. –
Como és bem-aventurada, tu, que és tão boa! Como és bem-
aventurada, tu, que trazes contigo uma alma tão bela!
NA DÉCADA DE 1770 NASCEU NA ALEMANHA aquele que viria a tornar-se
o erudito e eclético Kevenhüller. Era filho de um conde e poderia ter
morado em um castelo e cavalgado ao lado do imperador se assim
desejasse, mas não foi o que aconteceu.
Teria preferido instalar pás de moinho na mais alta torre do
castelo, transformar o salão dos cavaleiros em uma forja e a sala de
visitas em uma oficina de relojoaria. Teria preferido encher o castelo
de rodas corrupiantes e alavancas laborantes. Mas, como não fora
possível, ele deixou de lado toda a pompa e dedicou-se à arte da
relojoaria. Aprendeu tudo o que se podia aprender sobre
engrenagem, molas e pêndulos. Aprendeu a fazer relógios solares e
relógios estelares, pêndulos com canários maviosos e pastores de
trompa em punho, carrilhões que enchiam um campanário inteiro
com o estranho maquinário e mecanismos tão pequenos que
cabiam no interior de um medalhão.
Quando recebeu o diploma de mestre relojoeiro, colocou a
mochila nas costas, pegou um cajado e foi vagando de um lugar ao
outro para estudar tudo aquilo que funcionava com rodas e
engrenagens. Kevenhüller não era um simples relojoeiro; queria ser
um grande inventor e um grande benfeitor do mundo.
Depois de ter vagado por muitos países, tomou o rumo de
Värmland para estudar os moinhos e a arte da mineração. Em uma
bela manhã de verão, aconteceu de estar atravessando o mercado
de Karlstad. Mas também nessa bela manhã a ninfa da floresta
havia decidido estender o passeio rumo à cidade. A sublime dama
também estava atravessando o mercado, porém vindo da direção
oposta, e assim encontrou Kevenhüller.
Foi um encontro digno de um mestre relojoeiro! Ela tinha olhos
verdes e reluzentes, cabelos louros que chegavam quase até o chão
e vinha envolta em trajes de seda verde cambiante. Sendo feiticeira
e pagã como de fato era, era também mais bela do que todas as
mulheres cristãs que Kevenhüller já vira. Ele parou, confuso, e fitou-
a enquanto vinha em sua direção.
A ninfa da floresta fez um caminho em linha reta desde os mais
profundos recônditos da floresta, onde as samambaias têm a altura
de árvores, onde os espruces gigantescos repelem a luz do sol, que
somente pinga como gotas douradas sobre o musgo amarelo, e
onde as lineias crescem em cima de pedras cobertas de líquen.
Claro que já desejei estar no lugar de Kevenhüller para vê-la
chegando envolta em folhas de samambaia, com agulhas de
espruce a prender os bastos cabelos e uma pequenina serpente
negra em volta do pescoço. Imagine-a com o andar lépido de um
animal selvagem, trazendo consigo a fragrância refrescante de
resina e morango, de musgo e lineia!
Como as pessoas devem tê-la encarado ao vê-la atravessar o
mercado de Karlstad! Os cavalos assustaram-se com o brilho dos
longos cabelos, que voavam na brisa do verão. Os meninos de rua
correram em seu encalço. Os homens largaram a balança e o cutelo
para admirá-la, boquiabertos. As mulheres gritaram pelo bispo e
pelo cabido para que expulsassem a criatura da cidade.
Quanto à ninfa da floresta, simplesmente andava tranquila e
majestosa, mal esboçando um sorriso diante de todo aquele
alvoroço, quando Kevenhüller percebeu os dentes afilados de
predador brilharem por trás dos lábios rubros.
Ela tinha uma capa sobre os ombros, para que ninguém
descobrisse quem era, mas o acaso quis que esquecesse de
esconder a cauda. E naquele momento a cauda se arrastava sobre
as pedras do calçamento.
Kevenhüller também viu a cauda e pareceu-lhe doloroso que
uma dama tão bem-nascida se expusesse daquela forma ao ridículo
dos citadinos, de maneira que fez uma mesura para a beldade e
disse cheio de cortesia:
– Vossa senhoria não faria a bondade de levantar a cauda?
A ninfa da floresta se comoveu não apenas com a boa vontade,
mas também com a polidez. Parou defronte a Kevenhüller e o
encarou com tanta intensidade que ele sentiu como se chispas
luminosas tivessem saído daqueles olhos diretamente rumo a seu
coração.
– Kevenhüller, presta bem atenção – disse a ninfa da floresta. –
Doravante hás de poder fazer com tuas mãos quaisquer obras que
desejares, mas apenas uma de cada tipo.
Ela falou assim e cumpriu a palavra empenhada. Pois quem não
sabe que aquela dama trajada de verde, saída dos recônditos da
floresta, tem o poder de conceder engenho e capacidade
extraordinários àqueles que recebem sua graça?
Kevenhüller instalou-se em Karlstad e lá alugou uma oficina.
Martelava e trabalhava dia e noite. Em oito dias havia criado um
portento. Era um carro que andava sozinho. Subia e descia morros,
andava devagar e depressa e podia ser dirigido e guiado, detido e
posto em marcha segundo a vontade do operador. Era um carro
extraordinário.
A partir de então Kevenhüller tornou-se um homem célebre e fez
amigos por toda a cidade. Sentia tanto orgulho do carro que foi até
Estocolmo mostrá-lo para o rei. Não foi preciso esperar por cavalos
alugados nem discutir com o condutor. Não foi preciso sacolejar na
carruagem nem dormir no banco de madeira da estação. Ele fez a
viagem cheio de orgulho no carro que havia construído e chegou em
poucas horas.
Foi diretamente ao castelo, e o rei saiu com homens e mulheres
da corte para vê-lo conduzir. As pessoas não se cansavam de
elogiá-lo.
Então o rei disse:
– Kevenhüller, bem podes dar-me esse carro.
Embora ele tenha negado o pedido, o rei insistiu em querer o
carro para si.
Então Kevenhüller percebeu que na comitiva do rei havia uma
dama de cabelos louros e vestido verde. Claro que a tinha
reconhecido, e no mesmo instante compreendeu que fora ela a
sugerir que o rei pedisse o carro. Entrou em desespero. Não podia
aceitar que outra pessoa fosse proprietária daquele carro, mas
tampouco se atrevia a dizer não ao rei. Por fim guiou o carro em alta
velocidade contra a muralha do castelo, de maneira que o quebrou
em mil pedaços.
Quando retornou a Karlstad, tentou fazer um novo carro. Mas
não foi possível. E então Kevenhüller sentiu pavor do talento que a
ninfa da floresta havia lhe concedido. Ele havia deixado uma vida de
incúria no castelo do pai a fim de tornar-se um benfeitor das
pessoas, não para criar objetos mágicos que somente uma pessoa
conseguiria usar. E de que adiantaria tornar-se um grande mestre,
ou até mesmo o maior dentre todos os mestres, se não pudesse
multiplicar seus portentos de maneira que fossem úteis a milhares
de pessoas?
Aquele homem erudito e eclético tanto desejava um trabalho
calmo e tranquilo que se tornou canteiro e pedreiro. Foi nessa época
que construiu a grande torre de cantaria ao pé de Västra Bron,
tendo por modelo a torre de menagem do castelo de cavaleiros do
pai; a vontade que tinha era de erguer fileiras de construções,
pórticos, jardins, muralhas e guaridas, para que todo um castelo de
cavaleiros surgisse em Klarälvsstranden.
E lá dentro haveria de concretizar seu grande sonho de infância.
Tudo que dissesse respeito à indústria e à manufatura encontraria
um lar nos salões do castelo. Moleiros brancos e ferreiros pretos,
relojoeiros com viseiras de pala verde para os olhos cansados,
tingidores com as mãos escurecidas, tecelões, torneiros, limadores
– todos manteriam uma oficina no castelo.
E tudo correu bem. Com as pedras que havia talhado,
Kevenhüller ergueu uma torre usando as próprias mãos. Colocou
pás na parte mais alta, para que a torre fosse também um moinho, e
a partir de então resolveu dedicar-se à forja.
Um belo dia Kevenhüller parou-se a observar as pás fortes e
leves que se moviam com o vento. E então o velho mal o afligiu.
Foi como se a dama trajada de verde mais uma vez o tivesse
encarado com olhos reluzentes e lhe posto o cérebro a arder.
Trancou-se na oficina sem comer e sem descansar, trabalhando
sem nenhum tipo de intervalo. Ao fim de oito dias tinha um novo
portento.
Certo dia Kevenhüller subiu no telhado da torre e começou a fixar
asas aos ombros.
Dois meninos de rua e um colegial que estavam sentados no
atracadouro e distraíam-se pescando alburnos viram-no lá em cima
e soltaram um grito ouvido por toda a cidade. Os três puseram-se
em movimento, e correndo e resfolegando subiram e desceram a
rua batendo em todas as portas enquanto gritavam:
– Kevenhüller vai voar! Kevenhüller vai voar!
Quanto ao próprio, encontrava-se absolutamente tranquilo no
telhado da torre, prendendo as asas às costas, e nesse meio-tempo
grupos de pessoas saíram aos borbotões das ruas estreitas na
antiga Karlstad.
As criadas abandonaram a panela no fogo e a massa que
fermentava. As senhoras largaram as meias que tricotavam,
puseram os óculos e apressaram-se rua afora. Os juízes e o
burgomestre ergueram-se da mesa do tribunal. O diretor da escola
atirou a gramática para um canto e os meninos saíram correndo das
classes sem pedir permissão. Toda a cidade corria em direção a
Västra Bron.
Logo a ponte estaria tomada de gente. O Salttorget estava
apinhado, e a multidão estendia-se desde a margem do rio até a
casa do bispo. A multidão era maior até mesmo do que aquela que
se reunia durante a festa dos apóstolos Pedro e Paulo, quando se
viam muitos curiosos, e maior até mesmo do que aquela que se
amontoou quando o rei Gustav III percorreu a cidade puxado por
oito cavalos em uma carreira tão desvairada que o carro mantinha-
se apenas em duas rodas nas curvas.
Kevenhüller enfim terminou de prender as asas e levantou voo.
Ruflou as asas por duas vezes, e então viu-se livre em pleno ar.
Deitou-se e nadou pelo oceano de ar que pairava acima da terra.
Tomava fôlegos profundos; o ar era puro e forte. Ele sentiu o
peito expandir-se, e o velho sangue de cavaleiro pôs-se a fervilhar.
Esvoaçou como um pombo e planou como a águia; as asas eram
rápidas como as da andorinha, e ele avançava seguro como o
falcão. E então olhou para a multidão presa à terra que o via deitar-
se e nadar em pleno ar. Quem dera pudesse fazer um par de asas
para cada uma daquelas pessoas! Quem dera pudesse dar a cada
uma daquelas pessoas o poder de ascender rumo ao ar fresco! Que
pessoas maravilhosas não haveriam de tornar-se! A memória da
grande tristeza de sua vida não o abandonou sequer naquele
instante. Ele não poderia desfrutar sozinho de um momento como
aquele. Ah, se ao menos conseguisse falar com a ninfa da floresta!
E naquele momento ele viu, com os olhos quase ofuscados pela
forte luz do sol e pelo ar cintilante, que alguém se aproximava
voando em sua direção. Viu o movimento de grandes asas, como as
suas, e entre as asas divisou uma silhueta humana. Os cabelos
dourados esvoaçavam, a seda verde tremulava, os olhos indômitos
reluziam. Era ela! Era ela!
Kevenhüller não pôde conter-se. Com uma velocidade
impressionante, investiu sobre aquele milagre para beijá-la ou
esbofeteá-la – não saberia dizer qual –, mas, enfim, para obrigá-la a
quebrar a maldição que havia lançado sobre a existência dele.
Nessa investida desesperada, a razão e o juízo traíram-no. Ele não
viu para onde avançava, pois via apenas os cabelos esvoaçantes e
os olhos indômitos. Ele chegou muito perto e estendeu os braços
para agarrá-la. Nesse instante as asas dele prenderam-se às
daquela visão, porém as asas dela eram mais fortes. As asas de
Kevenhüller partiram-se e quebraram-se, e ele rodopiou no ar e
caiu, não sabia onde.
Quando recobrou a razão e o juízo estava no alto da torre, com a
máquina voadora destruída ao lado. Tinha voado de encontro ao
próprio moinho. As pás o haviam segurado e dado voltas enquanto
o mantinham preso, e então o jogaram sobre o telhado da torre.
Esse foi o fim da brincadeira.
Kevenhüller voltou a ser um homem desesperado. O trabalho
honrado despertava-lhe repulsa, e ele não mais se atrevia a dedicar-
se às artes daquelas maravilhas. Se criasse mais um único portento
e acabasse por destruí-lo, talvez o coração não aguentasse a
tristeza. E, se não o destruísse, talvez enlouquecesse pensando que
não poderia mais fazer nenhum uso daquele talento.
Kevenhüller então pegou a mochila e o cajado, deixou o moinho
da maneira como estava e decidiu partir em busca da ninfa da
floresta.
Arranjou um cavalo e um veículo, pois já não era jovem e lépido
ao andar. Muitos dizem que, ao chegar a uma floresta, apeou do
veículo, entrou em meio às árvores e pediu aos gritos que a dama
trajada de verde saísse daqueles recônditos.
– Ninfa da floresta! Ninfa da floresta, sou eu, Kevenhüller! Sou
eu! Venha! Venha!
Mas ela não apareceu.
Foi durante essas viagens que chegou a Ekeby, uns poucos anos
antes que a senhora fosse expulsa. Por lá foi muito bem recebido, e
por lá ficou. E o grupo na ala dos cavalheiros foi aumentado com a
figura alta e forte desse cavaleiro, um senhor rápido, que sabia
como proceder tanto perante um caneco de cerveja como em um
grupo de caça. Suas memórias de infância haviam retornado.
Deixou que o chamassem de barão, e cada vez mais ganhava os
ares de um velho pirata alemão, com o grande nariz aquilino, as
sobrancelhas sisudas e a barba cerrada, pontuda na parte inferior
do queixo e destemidamente torcida para cima sobre os lábios.
E então se tornou um cavalheiro entre os cavalheiros, não sendo
melhor do que nenhum outro homem naquele grupo que as pessoas
imaginavam ter sido oferecido ao coisa-ruim pela senhora de Ekeby.
Os cabelos encaneceram e o cérebro pôs-se a dormir. Estava tão
velho que já nem acreditava nas próprias façanhas da juventude.
Não era mais aquele homem com o poder de criar portentos. Não
fora ele o inventor do carro semovente nem da máquina voadora.
Não, aquilo eram apenas histórias, histórias!
Mas aconteceu que a senhora foi expulsa de Ekeby, e os
cavalheiros tornaram-se os senhores daquela grande propriedade. E
nesse momento começou por lá uma vida que jamais fora pior. Uma
tempestade se abateu sobre a região. Todas as velhas loucuras
ressurgiram com o arrebatamento da juventude, todo o mal pôs-se
em movimento, todo o bem estremeceu, as pessoas lutavam na
terra e os espíritos no firmamento. Os lobos vieram de Dovre
trazendo bruxas no dorso, as forças da natureza tiveram livre curso
e a ninfa da floresta chegou a Ekeby.
Os cavalheiros não a reconheceram. Acharam que era uma
mulher pobre e necessitada que fora escorraçada por uma sogra
cruel. E então lhe deram abrigo, trataram-na como uma rainha e a
amaram como a uma menina.
Somente Kevenhüller percebeu quem era. A princípio ele estava
cego como os demais. Mas um dia ela trajou um vestido de seda
verde cambiante, e, quando a viu daquela maneira, Kevenhüller a
reconheceu.
Lá estava ela, envolta em seda no melhor sofá de Ekeby,
enquanto todos aqueles senhores faziam papel de tolos para servi-
la. Um servia de cozinheiro e o outro de camareiro; um servia de
palestrante, outro de músico da corte, ainda outro de sapateiro.
Todos haviam assumido uma ocupação.
Corria a notícia de que estava doente, aquela feiticeira má,
porém Kevenhüller bem sabia o que estava por trás da doença. Ela
os havia feito passar ridículo, a todos.
Kevenhüller tentou alertar os cavalheiros.
– Vejam aqueles dentes afiados – disse –, e os olhos reluzentes
e indômitos! É a ninfa da floresta; todo o mal pôs-se em movimento
nesta época terrível. Pois eu digo que a ninfa da floresta veio para
nos destruir! Eu já a encontrei antes.
Mas, tão logo viu a ninfa da floresta e a reconheceu, Kevenhüller
foi acometido pela vontade de trabalhar. As ideias puseram-se a
arder e fervilhar, as mãos doíam com a vontade de empunhar o
martelo e a lima; ele não pôde lutar contra si próprio. Com o coração
amargurado, vestiu o jaleco de trabalho e trancou-se em uma antiga
forja, que haveria de tornar-se uma oficina.
E então um grito saiu de Ekeby e espalhou-se por toda a
província de Värmland:
– Kevenhüller está trabalhando!
E as pessoas escutavam com a respiração suspensa, tentando
ouvir os golpes do martelo que soavam na oficina trancada, o roçar
da lima e o resfolegar do fole.
Um novo portento veria a luz do dia. O que haveria de ser? Será
que daquela vez Kevenhüller ensinaria as pessoas a caminhar em
cima da água, ou então a subir até as Plêiades?
Nada é impossível para um homem como aquele. Vimos com
nossos próprios olhos quando cruzou o ar batendo asas. Vimos seu
carro andar pelas ruas. Kevenhüller tem o talento da ninfa da
floresta, e para ele nada é impossível.
Certa noite, no primeiro ou segundo dia de outubro, o portento
ficou pronto. Ele saiu da oficina trazendo-o na mão. Era uma roda
que girava sem parar. E, enquanto rodava, os raios brilhavam como
fogo, emitindo luz e calor. Kevenhüller havia criado um sol. Quando
saiu da oficina trazendo aquilo na mão, a noite ficou tão clara que os
pardais começaram a pipilar e as nuvens tingiram-se com os tons
rubros da aurora.
Era a mais extraordinária dentre todas as invenções. Em toda a
terra, ninguém mais haveria de sofrer com a escuridão ou com o
frio. A simples ideia de uma invenção como aquela lhe causava
vertigem. O sol do dia continuaria a nascer e a se pôr todos os dias,
mas, quando desaparecesse, milhares e milhares daquelas rodas
de fogo haveriam de chamejar província afora, e o ar tremularia de
calor como nos dias mais quentes do verão. As pessoas fariam
colheitas fartas sob o céu estrelado em pleno inverno, morangos e
airelas-vermelhas cobririam o solo da floresta durante o ano inteiro e
o gelo jamais haveria de prender a água.
Estando pronta, a invenção haveria de criar uma nova terra. A
roda de fogo seria o casaco dos pobres e o sol dos mineiros. Seria a
fonte de energia das fábricas, a vida da natureza, uma nova e bem-
aventurada existência para a humanidade. Ao mesmo tempo,
porém, ele sabia que tudo aquilo era um sonho e que a ninfa da
floresta jamais lhe permitiria construir outras rodas. E, tomado pela
ira e pela sede de vingança, Kevenhüller pensou que haveria de
matá-la, e a partir de então mal sabia o que estava fazendo.
Foi até a casa senhorial e colocou a roda de fogo no vestíbulo,
sob a escada. A ideia era que a casa pegasse fogo e aquela
feiticeira queimasse lá dentro.
Depois ele voltou à oficina e permaneceu em silêncio, escutando.
Ouviram-se vozes e gritos na propriedade. Naquele instante foi
possível notar que uma grande façanha estava em curso.
Ah, corram, gritem, façam alarido! Lá dentro arde a ninfa da
floresta, a quem vocês envolveram em seda!
Será que se contorcia em tormento? Será que fugia das chamas
de um aposento ao outro? Ah, aquela seda verde há de queimar, e
as chamas hão de brincar naqueles cabelos bastos! Coragem,
chamas, coragem! Peguem-na, consumam-na! A bruxa está a
queimar! Não temam pelos feitiços recitados, chamas! Deixem-na
queimar! Há os que passaram uma vida inteira queimando por
causa dela.
Sinos retiniram, carros avançaram, mangueiras surgiram, a água
veio do lago e as pessoas acudiram ao local vindas de todos os
vilarejos próximos. Havia gritos, lamentações e ordens, era o teto
que havia cedido, era o terrível crepitar e ribombar de um grande
incêndio. Mas nada disso perturbou Kevenhüller. Estava sentado no
tronco de rachar lenha, esfregando as mãos.
E de repente ouviu um estalo, como se o céu houvesse
desabado, e levantou-se em um arroubo de júbilo.
– Está feito! – exclamou. – Ela não pode ter escapado; deve ter
sido esmagada sob o peso das vigas ou então queimada pelas
chamas. Está feito!
Então Kevenhüller pensou na honra e no poder de Ekeby, que
tiveram de ser oferecidos em sacrifício para tirar aquela criatura do
mundo. Os salões esplendorosos, onde tanto júbilo havia passado,
os cômodos por onde havia ecoado a alegria das lembranças, as
mesas que se envergavam sob a fartura de refeições deliciosas, o
precioso mobiliário antigo, prata e porcelana que já não podiam ser
recuperados…
E então ele se pôs de pé com um grito repentino. A roda de fogo,
o sol que havia construído, aquele modelo do qual tudo dependia –
será que não o havia posto sob a escada para causar o incêndio?
Kevenhüller olhou para si mesmo, petrificado de horror.
– Será que estou louco? – indagou. – Como pude fazer uma
coisa dessas?
No mesmo instante abriu-se a bem fechada porta da oficina e a
dama trajada de verde entrou.
A ninfa da floresta estava no patamar da porta, bela e com um
discreto sorriso nos lábios. O vestido verde não tinha nenhuma
mancha ou defeito, e a fumaça não havia se alojado nos cabelos
bastos. A ninfa estava tal como a havia encontrado no mercado de
Karlstad na época da juventude, com a cauda de animal selvagem
solta entre os pés, e trazia consigo o ar indômito e o cheiro da
floresta.
– Ekeby está queimando! – ela disse, em meio a risadas.
Kevenhüller tinha a marreta erguida e pretendia atirá-la na
cabeça dela, porém logo percebeu que trazia nas mãos a roda de
fogo.
– Mas veja o que eu trouxe para ti! – ela disse.
Kevenhüller prostrou-se de joelhos.
– Quebraste o meu carro, destruíste as minhas asas e arruinaste
a minha vida. Tem compaixão, tem piedade de mim!
A ninfa da floresta sentou-se na bancada de marceneiro, sempre
com o aspecto jovem e travesso, como surgira naquele primeiro
encontro no mercado de Karlstad.
– Creio que sabes quem sou – ela disse.
– Eu te conheço, e sempre te conheci – disse o pobre homem. –
És a encarnação do gênio. Mas agora me liberta! Leva esse teu
dom embora! Leva esse dom de criar portentos! Deixa-me ser um
homem comum! Por que me persegues? Por que me persegues?
– Louco! – disse a ninfa da floresta. – Eu nunca te desejei mal
nenhum. Dei-te uma grande recompensa, mas também posso levá-
la embora, se não te agrada. Mas pensa bem! Hás de te arrepender.
– Não, não – exclamou Kevenhüller –, leva de mim esse dom de
criar portentos!
– Antes tens de destruir isso aqui – ela disse, jogando a roda de
fogo aos pés dele.
Kevenhüller não hesitou. De pronto fez a marreta descer sobre
aquele reluzente sol de fogo, que não passava de um feio objeto
mágico caso não pudesse ser útil a milhares de pessoas. Chispas
voaram pelo recinto, fragmentos e labaredas dançaram ao redor e
por fim o último portento estava reduzido a estilhaços.
– Muito bem. Agora vou levar embora o dom que havia te dado –
disse a ninfa da floresta.
Foi quando ela chegou à porta para ir embora e foi banhada pelo
brilho rubro do incêndio que Kevenhüller a viu pela última vez.
Parecia mais bela do que nunca, embora não maldosa; apenas
austera e orgulhosa.
– Louco! – ela disse. – Acaso te impedi de fazer com que outros
reproduzissem as tuas criações? O que mais eu poderia querer,
senão poupar o homem de gênio do trabalho manual?
E com essas palavras a ninfa da floresta se foi. Kevenhüller
passou uns dias louco. Depois voltou a ser um homem comum.
Mas durante a loucura havia posto fogo em Ekeby. Apesar disso,
ninguém se machucou. Mas foi uma profunda tristeza para os
cavalheiros que aquela casa hospitaleira, onde haviam desfrutado
de tantos bons momentos, sofresse tantos estragos na época em
que a governavam.
A PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DE OUTUBRO É O DIA de abertura do grande
mercado de Broby, que dura oito dias. É o grande evento do outono.
O mercado é precedido por fornadas de quitutes e pelo abate de
animais; as roupas novas de inverno podem ser usadas pela
primeira vez, os pratos de fim de semana, como bolo de queijo e
biscoitos com queijo marrom, passam o dia inteiro em cima da
mesa, as doses de aguardente dobram e o trabalho repousa. Há
uma festa em todas as propriedades. Criados e trabalhadores
recebem o ordenado e entabulam longas discussões sobre tudo o
que pretendem comprar no mercado. As pessoas chegam de longe
em pequenos grupos, com mochilas nas costas e cajados na mão.
Muitos levam os animais para o mercado. Terneiros e cabritos, que
empacam com as pernas dianteiras fincadas no chão, causam
muitas irritações para o dono e muita alegria para os observadores.
Os quartos de hóspedes nas casas senhoriais encontram-se
repletos de visitantes benquistos. As notícias correm e os preços de
bens e animais são negociados. As crianças sonham com presentes
e dinheiro para gastar no mercado.
E que tumulto não se arma pelos morros de Broby e pela grande
área do mercado no primeiro dia! Barracas foram montadas nos
locais onde os comerciantes da cidade expõem suas mercadorias,
enquanto as pessoas de Dalarna e Västergötland empilham os
produtos em intermináveis fileiras de bancas, sobre as quais uma
cobertura de tecido ondula ao vento. Claro que há equilibristas,
realejos, violinistas cegos e bem-humorados, bem como leitores da
sorte, vendedores de caramelos e bancas de aguardente. Para além
das barracas, recipientes de madeira e pedra encontram-se
dispostos em filas. Cebolas e raiz-forte, peras e maçãs são vendidas
pelos jardineiros das grandes propriedades. Em uma considerável
extensão do terreno encontram-se panelas de cobre com
acabamento reluzente.
Mesmo assim, percebe-se no movimento do mercado que a
necessidade impera em Svartsjö e em Bro e também em Lövvik e
em outras paróquias de Lövsjö. As vendas estão fracas nas
barracas e bancas. A maior parte do movimento ocorre no mercado
de animais, pois muita gente precisa vender tanto a vaca como o
terneiro para enfrentar o inverno. E também ocorrem as
imprevisíveis e emocionantes trocas de cavalos.
O mercado de Broby é um local alegre. Se ao menos houvesse
dinheiro para tomar uns dois tragos e manter o moral alto! Mas não
é apenas a aguardente que traz alegria. Quando chegam ao
mercado, veem as massas que se movimentam de um lado para
outro e ouvem a multidão que grita e gargalha, as pessoas que
moram isoladas na floresta sentem uma vertigem de alegria, tornada
ainda mais intensa pelo fervilhar da vida no mercado.
Claro que se faz muito comércio no meio de tanta gente, mas
isso não é o mais importante. O mais importante é levar um grupo
de familiares e amigos até as carroças para oferecer-lhes salame de
ovelha, pão com queijo marrom e aguardente, ou então convencer
as meninas a levarem hinários e lenços de seda ou ainda escolher
presentes para as crianças.
Todas as pessoas que não precisam tomar conta da casa e dos
animais vão ao mercado de Broby. Lá estão os cavalheiros de
Ekeby e camponeses das florestas de Nygård, comerciantes de
cavalo da Noruega, finlandeses das florestas ao norte e vigaristas
da estrada.
Às vezes todo esse mar rumoroso transforma-se em uma
voragem, que rodopia em anéis vertiginosos ao redor de um ponto
central. Ninguém sabe o que há nesse ponto, até que de repente
dois ou três policiais abrem espaço em meio à multidão para acabar
com uma briga ou reerguer uma carroça virada. E no instante
seguinte um novo bando de gente rodeia um vendedor que bate
boca com uma jovem atilada.
Por volta do meio-dia tem início a grande briga. Os camponeses
afirmam que os gotas do oeste[6] estão usando um côvado
demasiado curto; ao redor daquelas bancas começam uma
discussão e um entrevero que logo dão lugar à violência. Todos
sabem que, para muitos dos que naquela época não viam nada
além de miséria e necessidade, era quase uma alegria poder dar
uma bofetada, a despeito de quem fosse atingido. E, tão logo os
mais fortes e dispostos veem que há uma briga em curso, acodem
vindos de todos os lados. Os cavalheiros querem apenas se
aproximar para restaurar a paz a seu modo, e os homens do vale
correm para ajudar os gotas do oeste.
O robusto Måns de Fors é o mais entusiasmado com a
brincadeira. Está bêbado, e também furioso. Acaba de derrubar um
dos gotas do oeste e logo começa a dar-lhe uma surra, mas,
quando o homem solta um grito de ajuda, seus conterrâneos
aparecem e tentam obrigar o robusto Måns a soltar aquele
camarada. Então o robusto Måns derruba os fardos de tecido de
uma das bancas e agarra a própria bancada, feita de grossas
tábuas e medindo 1 côvado de largura e 8 côvados de comprimento,
e a empunha como arma.
É um homem perigoso, o robusto Måns. Foi ele quem derrubou
uma parede a chutes quando estava preso em Filipstad, e além
disso era capaz de tirar sozinho um barco do rio e carregá-lo nas
costas. Assim se entende por que quando, usando a bancada, se
põe a desferir golpes ao redor, todo o grupo foge, inclusive os gotas
do oeste. Mas o robusto Måns corre atrás daqueles homens,
desferindo golpes ao redor com a bancada. Para ele já não é uma
questão de amigos ou inimigos; quer apenas alguém em quem
possa bater, agora que tem uma arma.
As pessoas fogem desesperadas. Homens e mulheres gritam e
correm. Mas como seria possível às mulheres fugir, sendo que
muitas levam crianças nos braços? As barracas e carroças
interrompem o caminho, e bois e vacas, assustados com o barulho,
impedem que se afastem.
Um grupo de mulheres foi encurralado em um canto entre as
barracas, e é para lá que o gigante avança. Será que não tinha
avistado um gota do oeste no meio do grupo? O robusto Måns
ergue a bancada e então a faz descer com toda a força. Com uma
angústia trêmula e pálida, as mulheres estão prestes a receber o
impacto, encolhidas sob o peso daquele golpe mortal.
Mas, quando a bancada desce com um assovio, quebra-se ao
encontrar os braços erguidos de um homem. Esse homem não
havia se encolhido, mas ergueu o corpo em meio à multidão; esse
homem tinha espontaneamente recebido o golpe para salvar muitos
outros. As mulheres e as crianças estão ilesas. Um homem
interrompeu a violência do golpe, mas naquele momento encontra-
se desacordado no chão.
O robusto Måns não torna a erguer a bancada. Encontrou os
olhos do homem no momento em que a bancada atingia-lhe a
cabeça, e aquilo o paralisou. Ele permite que a polícia o algeme e o
leve sem oferecer resistência.
Mas, em uma velocidade impressionante, corre pelo mercado o
boato de que o robusto Måns matou o capitão Lennart. Dizem que
ele, que sempre foi um amigo do povo, morreu para salvar mulheres
e crianças indefesas.
E então o silêncio cai sobre todo o mercado, onde pouco antes a
vida fervilhava em todo o seu esplendor. O comércio para, a briga é
interrompida, as comemorações em volta das marmitas encerram-se
e os equilibristas tentam em vão chamar os espectadores.
O amigo do povo morreu, e o povo está de luto. Uma multidão
silenciosa se aproxima do lugar onde tombou. O capitão Lennart
está caído no chão, ainda inconsciente; não se veem ferimentos,
mas o próprio crânio parece estar afundado.
Homens colocam-no delicadamente em cima da bancada que o
gigante empunhava. Têm a impressão de que o capitão ainda está
vivo.
– Para onde vamos levá-lo? – perguntam-se uns aos outros.
– Para casa! – responde uma voz ríspida no grupo.
Ah, bons homens, levem-no para casa! Ponham-no sobre os
ombros e levem-no para casa! O capitão foi o joguete de Deus,
como uma pluma levada pelo sopro divino. Levem-no agora para
casa!
Essa cabeça ferida já repousou no duro beliche da prisão e na
palha do celeiro. Permitam que agora volte para casa e repouse em
um travesseiro macio! Esse homem sofreu com vergonhas e
tormento desmerecidos; foi escorraçado da própria casa. Vivia como
um fugitivo, vagando pelos caminhos de Deus onde os pudesse
encontrar, mas o país sonhado era o lar cujas portas Deus lhe havia
fechado. Talvez hoje esse lar esteja aberto para um homem que
morreu para salvar mulheres e crianças indefesas.
Assim não se apresenta como um criminoso acompanhado por
beberrões trôpegos. Chega acompanhado por um povo em luto,
cujas humildes moradas visitou enquanto o ajudava a vencer o
sofrimento. Levem-no para casa!
E assim os homens fazem. Seis homens apoiam a bancada em
que o capitão Lennart repousa sobre os ombros e levam-no para
longe do mercado. Por onde passam, as pessoas abrem caminho e
fazem silêncio, os homens tiram os chapéus e as mulheres fazem
mesuras, como na igreja, quando o nome de Deus é pronunciado.
Muitos choram e enxugam os olhos, enquanto outros começam a
falar sobre o grande homem que foi o capitão Lennart: bom, resoluto
e temente a Deus. É curioso notar que, tão logo um dos
carregadores se cansa, outro se aproxima devagar e escora a
bancada sobre o ombro.
E por fim o capitão Lennart passa pelo local onde se encontram
os cavalheiros.
– Acho que vou junto para me assegurar de que ele chegue bem
em casa – diz Beerencreutz, deixando o lugar na beira da estrada
para ir até Helgesäter. O exemplo é seguido por muitos.
O mercado torna-se quase deserto; as pessoas acompanham o
capitão Lennart até Helgesäter. É preciso assegurar-se de que
chegue bem em casa. Todos os itens necessários que seriam
comprados permanecem sem serem comprados; os presentes para
as crianças são esquecidos, a compra do hinário não se concretiza
e o lenço de seda, que havia brilhado nos olhos da menina, é
deixado em cima do balcão. Todos precisam acompanhar o capitão
Lennart e assegurar-se de que chegue bem em casa.
Quando o cortejo chega a Helgesäter, tudo está quieto e deserto.
Novamente os punhos do coronel batem contra a porta fechada.
Todos os criados encontram-se no mercado, e a esposa do capitão
está cuidando sozinha da casa. É ela quem abre a porta.
E então pergunta, como já perguntou outra vez:
– O que os senhores querem?
Ao que o coronel responde, como já respondeu outra vez:
– Temos aqui o seu marido.
A esposa o observa, empertigado e seguro como de costume. E
vê os homens mais atrás, que choram, e então toda a massa de
pessoas ao fundo. Ela está na escada, diante de centenas de olhos
lacrimosos que a encaram com expressões angustiadas. Por último,
vê o homem que se encontra deitado em cima da maca improvisada
e aperta a mão contra o peito.
– Esse é o verdadeiro rosto dele – a mulher balbucia.
Sem perguntar mais nada, ela se abaixa, solta a tranca,
escancara a porta do vestíbulo e então acompanha os outros até o
quarto.
O coronel e a esposa do capitão puxam a cama de casal e
estendem o edredom, e então o capitão Lennart é novamente posto
sobre as plumas macias e o linho branco.
– Ele está vivo? – ela pergunta.
– Está – responde o coronel.
– Há esperança?
– Não. Não há nada a fazer.
O silêncio abate-se sobre o quarto, e de repente a mulher tem
uma ideia.
– Todas essas pessoas estão chorando pelo capitão?
– Estão.
– O que foi que ele fez?
– A última coisa que fez foi permitir ao robusto Måns que o
matasse para salvar a vida de mulheres e crianças.
A esposa do capitão passa um tempo em silêncio, pensando.
– Que expressão ele tinha, coronel, quando voltou para casa dois
meses atrás?
O coronel sobressalta-se. Agora compreende. Somente agora
compreende.
– Gösta tinha acabado de pintá-lo!
– Então foi por causa de um gracejo dos cavalheiros que o
impedi de entrar na própria casa. Quem vai assumir a
responsabilidade pelo que aconteceu, coronel?
Beerencreutz ergue os largos ombros.
– Boa parte da responsabilidade é minha.
– Isso deve ser a pior coisa que o senhor já fez.
– Por isso nunca percorri um caminho mais doloroso do que este
até Helgesäter no dia de hoje. E além disso há outros dois culpados.
– Quem?
– Um é Sintram; o outro é você. Você é uma mulher rígida. Sei
que muitos quiseram falar-lhe a respeito do seu marido.
– É verdade – ela responde.
E então ela pede que o coronel fale sobre a bebedeira em Broby.
Ele conta tudo, da melhor forma possível, enquanto ela o escuta
atentamente. O capitão Lennart permanece desacordado na cama.
O quarto já se encontra cheio de pessoas que choram, e ninguém
pensa em despachar aquele bando entristecido. Todas as portas
estão abertas, todos os cômodos, escadas e vestíbulos estão
ocupados por gente angustiada, que se amontoa até o pátio em
grupos numerosos.
Quando o coronel termina de falar, a esposa do capitão ergue a
voz e diz:
– Se há cavalheiros no interior desta casa, peço que saiam
daqui. Para mim é doloroso vê-los agora, junto ao leito de morte do
meu marido.
Sem mais uma palavra, o coronel se levanta e vai embora. O
mesmo fazem Gösta Berling e outros cavalheiros que
acompanharam o capitão Lennart. As pessoas abrem timidamente o
caminho para o pequeno grupo de homens humilhados.
Quando se afastam, a esposa do capitão diz:
– Alguém que tenha estado com o meu marido poderia me dizer
como ele se comportou e o que fez durante esse tempo?
E então as pessoas lá dentro começam a dar testemunhos sobre
o capitão Lennart para a esposa, que o havia julgado injustamente e
endurecido o coração em relação ao marido. E por mais uma vez a
linguagem dos antigos hinos se fez ouvir. Homens que nunca leram
outro livro além da Bíblia começam a falar. Com metáforas retiradas
do livro de Jó, com giros de frase sacados da época patriarcal, falam
sobre o andarilho de Deus, que vagava de um lado para outro
ajudando as pessoas.
Leva tempo até que todos possam falar. Enquanto o entardecer e
a noite chegam, as pessoas seguem falando, e uma atrás da outra
se aproximam e contam histórias sobre o capitão diante da esposa,
que não quisera ouvir menção ao nome daquele homem.
Há os que relatam que o capitão os encontrou doentes e então
os curou. Há as brigas que ajudou a apartar. Há os desvalidos a
quem fez justiça, há os ébrios a quem impôs a sobriedade. Cada
pessoa exposta a uma necessidade insuportável tinha uma
mensagem sobre o andarilho de Deus, que sempre as tinha
ajudado, nem que fosse oferecendo uma centelha de esperança ou
de fé.
Durante toda a noite a linguagem dos hinários soou no quarto do
doente.
No pátio, grupos numerosos aguardavam o desfecho. Todos
sabem o que acontece no interior da casa. O que se diz em voz alta
junto ao leito de morte é sussurrado de um homem para o outro até
chegar à rua. Os que têm palavras a dizer chegam mais para a
frente.
– Aqui está mais um que pode dar testemunho – uma voz diz,
abrindo espaço. E então as pessoas surgem da escuridão, dão seu
testemunho e voltam a desaparecer na escuridão.
– O que foi que ela disse? – as pessoas no lado de fora
perguntam quando alguém sai. – O que ela disse, a rígida senhora
de Helgesäter?
– Está radiante como uma rainha. Sorri como uma noiva. Ela
puxou a cadeira do capitão para junto da cama e pôs lá em cima as
roupas que fez para ele.
Mas de repente faz-se silêncio entre todos os presentes.
Ninguém diz, mas todos pressentem ao mesmo tempo: “o capitão
está morrendo”.
O capitão Lennart abre as pálpebras e olha ao redor.
Vê a casa, as pessoas, a esposa, as crianças e as roupas, e
sorri. Mas ele despertou apenas para morrer. Solta um último
estertor e por fim se apaga.
Os testemunhos cessam, mas uma voz começa a entoar um hino
fúnebre. Todos a acompanham e, transportada por centenas de
vozes toantes, a canção ergue-se ao céu.
A terra despede-se daquela alma que vai embora.
ESTA HISTÓRIA TEVE INÍCIO MUITOS ANOS ANTES que os cavalheiros
assumissem o controle de Ekeby. O pastorinho e a pastorinha
brincavam juntos na floresta, erguendo pequeninas casas feitas de
pedras chatas, colhendo frutas silvestres e fazendo cornetas de
amieiro. Ambos haviam nascido na floresta. A floresta era a casa
onde encontravam abrigo. Viviam em paz com tudo o que havia por
lá, como as pessoas vivem em paz com criados e animais
domésticos.
Para os pequenos, o lince e a raposa eram os cães domésticos,
a doninha era o gato, a lebre e o esquilo eram os cavalos, a coruja e
o tetraz moravam em gaiolas, os espruces eram os criados e as
bétulas jovens eram os convivas de suas festas. Conheciam a toca
onde a serpente hibernava toda enrodilhada e, ao banhar-se no rio,
viam a cobra-d’água nadar pela água límpida, mas não temiam a
cobra nem as donzelas do lago: essas criaturas faziam parte da
floresta, que era sua casa. Lá, nada era capaz de assustá-los.
E nas profundezas da floresta localizava-se a pequena
propriedade onde o pastorinho morava. Para lá seguia uma estrada
irregular, ladeada por montanhas que encobriam o sol, e nas
proximidades havia um pântano sem fundo de onde uma bruma fria
se erguia durante todo o ano. Essa morada não parecia atraente
para os habitantes da planície.
O pastorinho e a pastorinha um dia haveriam de contrair
matrimônio, habitar a pequena propriedade na floresta e viver do
trabalho que faziam com as próprias mãos. Mas antes do
casamento o flagelo da guerra se abateu sobre o país, e o
pastorinho foi convocado. Voltou para casa sem ferimentos e com
braços e pernas intactos, porém as marcas dessa jornada o
acompanharam por toda a vida. Tinha visto a maldade do mundo e
as terríveis atitudes dos homens contra os homens. Já não tinha
condições de ver o bem.
No início ninguém percebeu nenhum tipo de mudança. Com a
amada de infância, procurou o pastor e solicitou a publicação dos
proclamas. A pequena propriedade logo acima de Ekeby tornou-se a
casa deles, como fora acertado muito tempo antes, mas naquela
casa não havia conforto.
A esposa olhava para o marido como se fosse um estranho.
Desde o retorno da guerra ela não o reconhecia. Dificilmente ele ria,
e pouco falava. Ela temia o marido.
Ele não lhe causava irritação e não lhe fazia maldade nenhuma,
e além disso trabalhava com afinco. Mas assim mesmo era pouco
querido, uma vez que pensava mal de todos. Quanto a si mesmo,
sentia-se como um forasteiro odiado. Os animais da floresta haviam
se transformado em inimigos. A montanha que encobria o sol e o
pântano de onde se erguia a bruma haviam se transformado em
antagonistas. A floresta é uma morada terrível para quem tem maus
pensamentos.
Os que vivem rodeados pela natureza intocada precisam de
memórias luminosas! De outro modo veem apenas opressão e
assassinato em meio a plantas e animais, como antes viram em
meio aos homens. Ele espera maldades de todos aqueles que
encontra.
Nem o próprio Jan Hök, o soldado, conseguira descobrir o que o
havia destruído para que nada lhe parecesse bom. O lar quase não
lhe oferecia paz. Os filhos, crescidos lá, eram fortes, mas também
indômitos. Tornaram-se homens endurecidos e corajosos, mas
também viviam um incessante conflito com as outras pessoas.
A esposa foi levada pela tristeza a desbravar os segredos da
natureza intocada. Em pântanos e recônditos, procurava ervas
medicinais. Pensava sobre as criaturas que viviam sob a terra, e
sabia que sacrifício oferecer para agradar-lhes. Sabia curar doenças
e oferecia conselhos para aliviar as dores do amor. Ganhou fama de
feiticeira e passou a ser evitada, mesmo que prestasse grandes
serviços às demais pessoas.
Certa vez a esposa decidiu conversar com o marido sobre aquilo
que o afligia.
– Desde que voltaste da guerra – ela disse –, pareces estar
destruído. O que aconteceu contigo por lá?
O marido se levantou e esteve prestes a bater nela, e o mesmo
acontecia todas as vezes que ela falava sobre a guerra. O marido
era tomado por uma ira descontrolada. Não tolerava ouvir a palavra
“guerra” de ninguém, e logo passou a ser um fato conhecido que
não suportava falar sobre o assunto. A partir de então as pessoas
começaram a tomar cuidado com esse tema.
Mas nenhum dos camaradas de guerra diria que tinha feito mais
mal do que os outros. Havia lutado como um bom soldado. Aquilo
era simplesmente o resultado dos horrores que tinha visto, e que o
assustaram de tal maneira que desde então não via nada além do
mal. Toda aquela tristeza enorme tinha origem na guerra. Ele sentia
que a natureza o odiava por ter feito parte daquilo. Os mais
esclarecidos podiam consolar-se pensando que haviam lutado em
nome da honra e da pátria. Mas o que sabia ele a respeito disso?
Sabia apenas que tudo o odiava porque havia derramado sangue e
feito o mal.
Quando a senhora foi expulsa de Ekeby, ele morava sozinho na
cabana. A esposa tinha morrido, e os filhos estavam longe. Mas na
época do mercado a pequena propriedade na floresta se enchia de
convidados. Ciganos de cabelos negros e pele escura alojavam-se
por lá. Sentiam-se mais à vontade na casa daquele homem que
todos evitavam. Pequenos cavalos de pelagem longa subiam pela
estrada, puxando carroças cheias de ferramentas para estanhar,
crianças e pilhas de trapos. As mulheres precocemente
envelhecidas, de semblante inchado pelo fumo e pela bebida, e os
homens, com rosto austero e pálido e corpo robusto,
acompanhavam as carroças. Quando os ciganos chegavam à
pequena propriedade na floresta, a atmosfera tornava-se alegre.
Levavam consigo a aguardente, o carteado e as risadas. Contavam
histórias sobre roubos, trocas de cavalos e brigas sangrentas.
Na sexta-feira começou o mercado de Broby, e a essa altura o
capitão Lennart estava morto. O robusto Måns, que desferiu o golpe
mortal, era filho do velho que habitava a pequena propriedade na
floresta. Quando os ciganos sentaram-se juntos por lá na tarde de
domingo, estenderam a garrafa de aguardente para o velho Jan Hök
com uma frequência maior do que o normal e falaram com ele sobre
a vida na prisão, a comida dos prisioneiros e os processos judiciais,
pois muitas vezes haviam se envolvido com essas coisas.
O velho estava sentado em cima do tronco de rachar lenha, no
recanto da lareira, e falava pouco. Aqueles grandes olhos baços
encaravam o grupo desarranjado que preenchia o recinto. O
crepúsculo havia caído, mas a lareira emitia luz. E essa luz revelava
trapos, miséria e necessidade.
Logo a porta foi aberta devagar, e duas mulheres entraram. Era a
jovem condessa Elisabet, acompanhada pela filha do pastor de
Broby. Ela pareceu estranha e radiante ao velho, quando entrou
naquele círculo de luz. Contou para os que estavam lá dentro que
Gösta Berling não fora visto em Ekeby após a morte do capitão
Lennart. Ela e a criada haviam passado a tarde inteira na floresta a
procurá-lo. E naquele instante a jovem condessa viu que naquele
recinto havia homens que tinham vindo de longe e conheciam todos
os caminhos. Acaso não o tinham visto? Ela fizera a visita para
descansar e perguntar se não o tinham visto.
A pergunta foi em vão. Ninguém tinha visto Gösta Berling.
Ofereceram uma cadeira para a condessa. Ela sentou-se e
passou um tempo em silêncio. O barulho na cabana havia se
calado. Todos a encaravam admirados. Por fim a condessa
assustou-se com aquele silêncio, teve um sobressalto e tentou
entabular uma conversa sobre assuntos triviais.
Dirigiu-se ao velho que estava no canto.
– Se bem me recordo, ouvi histórias de que o senhor foi soldado
– ela disse. – Conte uma história da guerra!
O silêncio tornou-se sepulcral. O velho permaneceu sentado,
como se não tivesse ouvido.
– Eu gostaria muito de ouvir histórias de guerra de um homem
que esteve lá – prosseguiu a condessa, mas logo se interrompeu,
pois o pastor de Broby começou a balançar a cabeça enquanto a
encarava. Devia ter dito palavras inadequadas. Todas as pessoas lá
reunidas olharam para ela como se houvesse transgredido a lei
mais elementar da decência. E de repente uma das ciganas ergueu
a voz cortante e perguntou:
– Deve ser a senhora que foi condessa em Borg.
– Sim, sou eu.
– Deve ter sido bem diferente de correr pela floresta atrás de um
pastor louco. Que troca!
A condessa se levantou e despediu-se de todos. Já havia
descansado o bastante. A mulher que havia falado seguiu-a porta
afora.
– Por favor, entenda – disse. – Eu precisava dizer alguma coisa,
porque não há como falar com o velho sobre a guerra. Ele não
aguenta ouvir essa palavra. Eu tive boa intenção.
A condessa Elisabet afastou-se depressa, mas logo deteve o
passo. Olhou para a floresta ameaçadora, a montanha que encobria
a paisagem e o pântano fumarento. Morar naquele lugar devia ser
terrível para os que têm os pensamentos repletos de memórias
dolorosas. Ela teve pena do velho, que permanecia lá dentro tendo
ciganos por companhia.
– Srta. Anna Lisa – disse –, vamos dar meia-volta! As pessoas lá
dentro nos trataram bem; fui eu que me comportei mal. Quero falar
com o velho sobre coisas mais alegres.
E, feliz por ter encontrado alguém para consolar, a condessa
voltou à cabana.
– O que acontece – disse – é que eu acredito que Gösta Berling
está andando pela floresta e contemplando acabar com a própria
vida. Por isso é importante que seja encontrado e impedido o quanto
antes. Eu e a srta. Anna Lisa tivemos a impressão de vê-lo de vez
em quando, mas logo ele tornava a desaparecer. Está no mesmo
ponto da montanha onde a menina de Nygård morreu. Ocorreu-me
que eu não precisaria ir até Ekeby para solicitar ajuda. Aqui há
muitos homens céleres que facilmente poderiam capturá-lo.
– Despachem-se, homens! – exclamou a cigana. – Se a
condessa não acha que está acima de pedir favores ao povo da
floresta, ponham-se agora mesmo a caminho.
Os homens levantaram-se e deram início às buscas.
O velho Jan Hök se manteve sentado, olhando para a frente com
um olhar vazio. Parecia assustadoramente triste e austero. A jovem
condessa não encontrava palavras que pudesse dizer-lhe. Então
percebeu que havia uma criança doente em cima de um fardo de
palha e que uma das mulheres sentia dor na mão. E no mesmo
instante pôs-se a ajudar os doentes. Logo fez amizade com aquelas
mulheres fofoqueiras e foi apresentada às crianças.
Uma hora mais tarde os homens voltaram. Entraram na cabana
trazendo Gösta Berling amarrado. Colocaram-no em frente à lareira.
As roupas estavam sujas e rasgadas, as feições pareciam
emaciadas e o olhar desvairado. A jornada dos últimos dias fora
terrível. Havia se deitado no chão úmido, havia enterrado as mãos e
o rosto no musgo, arrastado o corpo por rochedos, atravessado a
mais densa mata. Não acompanhara os homens de boa vontade,
mas esses por fim o imobilizaram e o amarraram.
Quando o viu daquela maneira, a esposa foi tomada pela fúria.
Não desatou os braços e pernas amarrados, mas deixou-o jogado
no chão. Com desprezo, virou-lhe as costas.
– Então é assim que te apresentas! – ela disse.
– Eu já não pretendia aparecer diante dos teus olhos – ele
respondeu.
– Então não sou tua esposa? Então não é meu direito esperar
que me procures também na tristeza? Estive à tua espera por dois
dias de amarga angústia.
– Fui eu que precipitei a desgraça sobre o capitão Lennart. Como
ousaria apresentar-me diante de ti? Como?
– Poucas vezes demonstraste medo, Gösta.
– O único favor que posso fazer para ti, Elisabet, é livrar-te de
mim.
Um desprezo indescritível relampejou por sob as sobrancelhas
franzidas da condessa.
– Queres fazer de mim a esposa de um suicida!
O semblante de Gösta contorceu-se.
– Elisabet, entremos na floresta silenciosa para falar a sós!
– Por que essas pessoas não podem nos ouvir? – ela exclamou,
falando com uma voz estridente. – Acaso somos melhor do que
elas? Acaso existe alguém por aqui que tenha causado mais tristeza
e mais estragos do que nós? Eles são filhos da floresta e das
estradas, odiados por todos os homens. Pois saibam que a tristeza
e o pecado também perseguem o senhor de Ekeby, o bem-amado
Gösta Berling! Achas que a tua esposa julga-te melhor do que
qualquer uma dessas pessoas, ou acaso pensas tu mesmo dessa
forma?
Gösta ergueu-se com dificuldade sobre o cotovelo e a encarou
com desprezo recém-desperto.
– Não sou tão canalha quanto dizes.
E então Elisabet ouviu a história daqueles últimos dias. No
primeiro dia, Gösta vagara pela floresta, assolado pela consciência
pesada. Não suportava olhar no rosto de outra pessoa. Mas
tampouco pensava em morrer. Pretendia simplesmente afastar-se
rumo a uma terra distante. No domingo, porém, deixou aquelas
alturas para trás e foi à igreja de Bro. Novamente queria ver as
pessoas, os pobres da região de Lövsjö, pessoas famintas a quem
sonhara em servir quando se sentou junto ao monte da vergonha
com o pastor de Broby, e que aprendera a amar quando as viu se
afastarem noite adentro com a menina morta de Nygård.
O culto já havia começado quando Gösta chegou à igreja. Ele se
esgueirou até o mezanino e olhou para as pessoas lá embaixo. E
naquele instante foi assaltado por horríveis tormentos. Quisera falar
com as pessoas, oferecer-lhes consolo na pobreza e na
desesperança. Se ao menos pudesse falar na casa de Deus, teria –
por mais desesperado que estivesse – oferecido palavras de
consolo e libertação para todos.
A seguir deixou a igreja, entrou na sacristia e escreveu a
proclamação que sua esposa já conhecia. Prometera que o trabalho
em Ekeby seria retomado e que grãos haveriam de ser distribuídos
entre os mais pobres. Gösta nutria a esperança de que a esposa e
os cavalheiros pudessem manter a promessa depois que se fosse.
Ao sair, descobriu um caixão em frente à assembleia da
paróquia. Era um caixão rústico, feito às pressas, mas assim mesmo
ornado com tecido preto e coroas de airela-vermelha. Gösta
compreendeu que era o caixão do capitão Lennart. As pessoas
haviam pedido à esposa dele que apressasse o funeral para que a
grande multidão de frequentadores do mercado pudesse
acompanhar o enterro.
Ele olhava para o caixão quando sentiu uma mão pousar em seu
ombro. Sintram havia se aproximado.
– Gösta – disse –, se quiseres pregar uma peça inesquecível a
alguém, trata de morrer! Não existe nada mais astuto do que morrer,
nada mais capaz de enganar um homem honrado que não enxerga
maldade nenhuma. Trata de morrer, eis o que digo!
Aterrorizado, Gösta ouviu as palavras do malvado. Esse
queixava-se do fracasso de planos bem traçados. Queria ver o
vilarejo às margens do Löven abandonado. Por isso havia feito dos
cavalheiros os senhores do lugar; por isso havia deixado que o
pastor de Broby empobrecesse as pessoas; por isso havia chamado
a seca e a fome. A batalha decisiva seria travada no mercado de
Broby. Inflamadas por tantas desgraças, as pessoas haveriam de
entregar-se ao roubo e ao assassinato. Depois os julgamentos
haveriam de empobrecê-las. A fome, o caos e toda sorte de
infortúnio haveriam de reinar. Por fim a região haveria de tornar-se
tão feia e tão odiosa que ninguém mais estaria disposto a morar lá,
tudo por obra de Sintram. Para ele, isso seria motivo de alegria e
orgulho, posto que era mau. Amava as regiões desabitadas e o solo
intocado. Mas aquele homem, disposto a morrer no momento certo,
havia estragado tudo.
Por fim Gösta perguntou-lhe para que tudo haveria servido.
– Teria sido agradável para mim, Gösta, posto que sou mau. Sou
o urso que ataca os rebanhos na montanha, a nevasca que cai
sobre a planície, e gosto de perseguir e matar. Chega, digo eu,
chega de pessoas! Não gosto delas. Posso até deixar que corram
entre as minhas garras e deem saltos, porque isso pode ser
divertido por um tempo; mas agora estou farto de brincadeiras,
Gösta, e agora quero partir para o ataque; agora quero matar e
destruir.
O homem estava louco, completamente louco. Muito tempo antes
começara a brincar com essas artes infernais, e naquele momento o
mal o havia dominado por completo; imaginava ser um espírito do
abismo. Sintram tinha nutrido e cultivado o mal dentro de si, e este
por fim tomara conta de sua alma. E assim a maldade pode
enlouquecer uma pessoa, como fazem o amor e a reflexão.
O malvado patrão da fundição estava furioso, e em sua ira havia
começado a arrancar as coroas e os tecidos que enfeitavam o
caixão, porém nesse momento Gösta Berling gritou:
– Não toque nesse caixão!
– Ora, ora, ora, por quê? Se quiser, eu posso jogar meu amigo
Lennart no chão e pisotear essas coroas! Não vês o que ele me
aprontou? Não vês que cheguei em uma bela caleche cinzenta?
Naquele instante Gösta Berling percebeu que em frente ao muro
do cemitério havia carroças de prisioneiros, com o comissário e
outros servidores públicos da região.
– Ora, ora, ora, acaso não devo mandar um agradecimento à
esposa do capitão em Helgesäter, que ontem se pôs a ler papéis
antigos para descobrir provas contra mim naquele caso da pólvora?
Acaso não devo avisá-la de que seria melhor haver se dedicado a
preparar bebidas e assar pães em vez de mandar o comissário e os
servidores públicos da região em meu encalço? Acaso não devo
receber nada pelas lágrimas que derramei para convencer Scharling
a me deixar vir até aqui e fazer uma prece junto ao caixão do meu
bom amigo?
E então Sintram começou mais uma vez a arrancar o tecido.
Gösta Berling postou-se bem ao lado dele e segurou-lhe os
braços.
– Eu faço qualquer coisa para que o senhor não toque nesse
caixão! – ele disse.
– Faz o que bem entenderes! – retrucou o louco. – Grita, se
quiseres! Eu ainda consigo fazer alguma coisa antes que o
comissário chegue. Briga comigo, se quiseres! Seria uma visão e
tanto aqui no morro da igreja. Briguemos em meio a coroas e
mortalhas!
– Patrão, eu quero comprar a paz para este defunto, por mais
alto que seja o preço. Tire-me a vida, tire-me tudo!
– Fazes uma grande promessa, meu rapaz.
– E pretendo cumpri-la, patrão.
– Então te mata agora!
– Posso muito bem fazer isso, mas antes preciso me assegurar
de que o caixão se encontra em paz sob a terra.
E assim foi. Sintram pediu que Gösta fizesse um juramento,
segundo o qual não mais haveriam de existir doze horas depois que
o capitão Lennart fosse enterrado.
– Assim posso ter certeza de que jamais hás de tornar-te um
sujeito bom – disse Sintram.
Para Gösta Berling, foi uma promessa fácil. Estava feliz de poder
dar a liberdade à esposa. O peso na consciência o havia deixado
morto de cansaço. A única coisa que o horrorizava era saber que
tinha prometido à senhora de Ekeby não morrer enquanto a filha do
pastor de Broby fosse criada na propriedade. Mas Sintram disse que
já não se podia considerá-la uma criada, visto que havia herdado a
fortuna do pai. Gösta respondeu que o pastor de Broby havia
escondido suas posses tão bem que ninguém pudera encontrar
aqueles tesouros. Então Sintram riu e disse que estavam todos
escondidos em meio aos ninhos das pombas no campanário de
Broby. A seguir foi embora, e Gösta retornou à floresta. O melhor
parecia ser que morresse no mesmo local onde a menina de Nygård
havia morrido. E por lá passou a tarde inteira vagando. Tinha visto a
esposa na floresta, e por isso não conseguira tirar a própria vida
naquele momento.
Foi essa a história que contou enquanto permanecia amarrado
no chão da pequena propriedade na floresta.
– Ah! – exclamou a esposa, em tom melancólico. – Como estou
acostumada a tudo isso! Modos heroicos, façanhas heroicas!
Sempre disposto a pôr as mãos no fogo, Gösta! Sempre disposto a
jogar-te fora a ti mesmo! Como essas coisas outrora me pareciam
grandiosas! Mas hoje aprecio a compostura e a tranquilidade. Que
serviço prestaste ao morto com essa promessa? E se Sintram
tivesse mesmo derrubado o caixão e arrancado os tecidos? Teriam
reerguido o caixão e arranjado novos tecidos e novas coroas. Se
tivesses posto a mão no caixão daquele bom homem diante dos
olhos de Sintram e jurado viver para ajudar a gente pobre que ele
queria destruir, então eu teria motivo para apreciar o teu gesto. Se
ao veres as pessoas na igreja tivesses pensado: “Eu quero ajudar
essa gente, quero empregar todas as minhas forças para ajudar
essa gente”, em vez de colocares esse fardo sobre os ombros da
tua esposa e de velhos com forças minguantes, eu teria igualmente
motivo para apreciar o teu gesto.
Gösta Berling manteve-se calado por um tempo.
– Nós, cavalheiros, não somos homens livres – ele disse, por fim.
– Prometemos uns aos outros viver pela alegria e somente pela
alegria. Ai de nós todos se um de nós fracassar!
– Ai de ti – disse a condessa, indignada –, o mais covarde dentre
todos os cavalheiros e também o que mais tarda a se tornar uma
pessoa melhor! Ontem à tarde todos os onze estavam sentados na
ala dos cavalheiros com semblantes tristes. Havias desaparecido, o
capitão Lennart havia desaparecido, o esplendor e a honra de
Ekeby haviam desaparecido. Nenhum tocou a bandeja onde estava
o uísque quente com especiarias, e nenhum se apresentou diante
de mim. Por fim a srta. Anna Lisa, que está aqui, foi procurá-los. Ela
é uma mulher trabalhadora, que por anos vem lutando
implacavelmente contra a indolência e o desleixo.
“‘Hoje estive novamente em casa, procurando o dinheiro do meu
querido pai’, ela disse aos cavalheiros, ‘mas não encontrei nada.
Todas as promissórias estão riscadas, e as gavetas e os armários
estão todos vazios’.
“‘É uma pena, srta. Anna Lisa’, sentenciou Beerencreutz.
“‘Quando foi embora de Ekeby’, continuou a filha do pastor de
Broby, ‘a senhora pediu que eu cuidasse de sua casa. Se agora
encontrasse o dinheiro do meu querido pai, eu trataria de reconstruir
Ekeby. Mas, como não encontrei nada que pudesse trazer para
casa, eu trouxe o monte da vergonha do meu querido pai, uma vez
que uma grande vergonha há de se abater sobre mim quando a
minha patroa retornar e perguntar o que fiz com Ekeby’.
“‘Não se preocupe tanto com uma coisa que não foi sua culpa,
srta. Anna Lisa!’, Beerencreutz retrucou.
“‘Mas eu não trouxe o monte da vergonha só para mim’, disse a
filha do pastor de Broby. ‘Eu também o trouxe para os bons
cavalheiros. Por favor, meus senhores! Meu querido pai não foi o
único a provocar vergonha e estragos neste mundo.’
“E então Anna Lisa aproximou-se dos cavalheiros, um por vez, e
largou gravetos secos aos pés de cada um. Uns praguejaram,
enquanto outros deixaram que continuasse. Por último,
Beerencreutz disse, com a voz de um importante senhor:
“‘Muito bem. Obrigado. Mas agora a senhorita pode se retirar.’
“Quando ela foi embora, Beerencreutz deu um murro tão forte na
mesa que os copos chegaram a saltar.
“‘A partir de agora’, disse, ‘sobriedade absoluta! A aguardente
não há de fazer com que esse tipo de coisa suceda mais uma vez a
mim’. Depois se levantou e saiu.
“Logo todos os homens seguiram-no. Sabes para onde foram,
Gösta? Sim, até o rio, até o promontório, onde antes se erguiam o
moinho e a forja de Ekeby, e então se puseram a trabalhar.
Começaram a arrastar troncos e pedras e a dar um jeito no lugar.
Os velhos tiveram um momento difícil. A tristeza tomou conta de
muitos. Já não podiam suportar a desonra de haver destruído
Ekeby. Bem sei que vós, cavalheiros, evitais o trabalho, porém
agora os outros assumiram essa vergonha. E além disso, Gösta,
pretendem mandar a srta. Anna Lisa até a senhora de Ekeby a fim
de buscá-la. E tu? O que fazes tu?”
Gösta ainda conseguiu encontrar uma resposta.
– O que exiges de mim, um pastor destituído? Sou rejeitado
pelos homens e odioso aos olhos de Deus.
– Eu também estive hoje na igreja de Broby, Gösta. Trago para ti
os cumprimentos de duas mulheres. “Diz a Gösta”, disse Marianne
Sinclaire, “que mulher nenhuma se envergonha do homem que
amou!” “Diz a Gösta”, disse Anna Stjärnhök, “que agora estou bem!
Trato de cuidar das minhas propriedades. As pessoas falam que
logo hei de ser como a senhora de Ekeby. Não penso no amor;
somente em trabalho. E também em Berga as pessoas venceram a
amargura inicial da tristeza. Mas todos estamos de luto por Gösta.
Acreditamos nele e oramos a Deus por ele. Mas quando, quando há
de tornar-se homem?”
“Então és rejeitado pelos homens?”, prosseguiu a condessa.
“Tiveste amor demasiado; essa foi tua desgraça. Mulheres e
homens amaram-te. Bastava que risses e brincasses, bastava que
cantasses e jogasses, e as pessoas dispunham-se a tudo perdoar.
O que te aprazia fazer era ao mesmo tempo o bem de todos. E
agora ousas dizer-te rejeitado! E serás mesmo odioso aos olhos de
Deus? Por que não acompanhaste o cortejo do capitão Lennart?
“Como ele morreu em um dia de mercado, sua fama chegou a
lugares distantes. Depois do culto, milhares de pessoas
compareceram à igreja. O cemitério, o muro e os campos ao redor
estavam repletos de gente. O cortejo fúnebre organizou-se em
frente à assembleia paroquial. Faltava apenas o velho preboste. Ele
estava doente e não fizera a pregação. Mas havia prometido
comparecer ao enterro do capitão Lennart. E por fim chegou,
andando com a cabeça baixa e sonhando acordado, como sói fazer
agora na velhice, e postou-se à frente do cortejo. Não havia nada de
estranho na maneira como se portava. O velho já havia participado
de muitos cortejos fúnebres. Avançou pelo caminho familiar sem
olhar para cima. Fez as orações e jogou terra no tampo do caixão e
não percebeu muita coisa. Mas por fim o sineiro começou a entoar
um cântico. Eu jamais acreditaria que aquela voz rústica, que em
geral costumava entoar os cânticos sozinha, pudesse despertar o
preboste dos sonhos em que se encontrava.
“Mas o sineiro não se pôs a cantar sozinho. Centenas e centenas
de outras vozes juntaram-se à sua. Homens, mulheres e crianças
cantavam. E então o preboste despertou daquelas ruminações.
Passou os dedos por cima dos olhos e subiu no monte de terra para
ver. Jamais havia visto um grupo tão numeroso de luto. Os homens
usavam chapéus de enterro velhos e puídos. As mulheres usavam
aventais brancos com dobras largas. Todos cantavam, todos tinham
lágrimas nos olhos, todos estavam de luto.
“E por fim o velho preboste começou a tremer e a angustiar-se. O
que diria para aquelas pessoas enlutadas? Era preciso que lhes
oferecesse uma palavra de consolo.
“Quando a canção silenciou, o preboste estendeu os braços em
direção às pessoas.
“‘Vejo que o povo está de luto’, disse, ‘e a tristeza é mais pesada
para aqueles que por um bom tempo ainda devem galgar os
caminhos da terra do que para mim, que logo hei de ser levado
daqui’.
“A seguir calou-se, aterrorizado. A voz estava demasiado fraca, e
ele hesitava ao escolher as palavras.
“Logo, porém, recomeçou. A voz havia recobrado o vigor da
juventude, e os olhos reluziam.
“Ele fez um belo sermão para nós, Gösta. Primeiro contou-nos
tudo o que sabia a respeito do andarilho de Deus. Depois lembrou-
nos de que não havia sido o brilho externo ou um talento especial o
responsável por fazer daquele homem uma pessoa tão honrada
como era naquele momento, mas tão somente o fato de que havia
trilhado os caminhos de Deus. E então pediu a nós, em nome de
Deus e de Cristo, que nos portássemos da mesma forma. Todos
deviam amar o próximo e oferecer-lhe ajuda. Todos deviam pensar
bem uns dos outros. Todos deviam agir como o bom capitão
Lennart, pois para tanto não é preciso nenhum dom especial,
apenas uma disposição piedosa. E depois o preboste interpretou
para nós tudo o que tinha acontecido este ano. Disse que era uma
preparação para a época do amor e da felicidade, que sem dúvida
estava prestes a chegar. Ele já tinha visto a bondade humana se
manifestar como raios esparsos. Mas logo haveria de se revelar por
inteiro, como um sol reluzente.
“E para nós todos foi como se tivéssemos ouvido um profeta
falar. Todos queriam amar uns aos outros, todos queriam ser bons.
“O preboste ergueu o rosto e as mãos e fez com que a paz se
derramasse por toda aquela terra. ‘Em nome de Deus’, ele disse,
‘que cesse a intranquilidade! Que a paz habite vossos corações e
toda a natureza! Que as coisas mortas e os animais e as plantas
conheçam a tranquilidade e parem de causar danos!’.
“E foi como se a mais santa paz descesse sobre a região. Foi
como se as alturas tivessem se iluminado, e os vales sorrido, e a
névoa do outono trajasse um manto rosado.
“Depois ele clamou por alguém disposto a ajudar o povo.
‘Alguém há de vir’, disse. ‘Não é a vontade de Deus que
desapareçais agora. Deus há de fazer despertar alguém capaz de
saciar-vos a fome e levar-vos por seus caminhos.’
“E nessa hora todos pensaram em ti, Gösta. Todos sabíamos que
o preboste falava a respeito de ti. As pessoas que haviam escutado
a tua confissão foram para casa falando a respeito de ti. E enquanto
isso andavas pela floresta, disposto a morrer! As pessoas estão à
tua espera, Gösta. Nas casas ao redor, as pessoas estão sentadas,
conversando sobre o dia em que o pastor louco de Ekeby há de
retornar e ajudá-las para que tudo fique bem. Tu és o herói daquela
gente, Gösta. És o herói de toda a gente.
“Ora, Gösta, é certo que o velho falou a respeito de ti, e espero
que agora isso possa convencer-te a viver. E eu, Gösta, que sou tua
esposa, eu digo que deves simplesmente afastar-te daqui e cumprir
com o teu dever. Não imagines ser um emissário de Deus. Todos
podem desempenhar esse papel, como bem entendes. Hás de
trabalhar sem façanhas heroicas, não hás de brilhar e surpreender,
e hás de cuidar para que teu nome não soe com muita frequência
nos lábios das pessoas. Pensa bem antes de retirares a palavra que
empenhaste com Sintram! Recebeste agora como que o direito a
morrer, e a vida não deve oferecer-te muita alegria de agora em
diante. Outrora eu tinha o desejo de voltar para o sul, Gösta. Como
eu me sentia culpada, parecia felicidade demais ser tua esposa e
poder seguir-te vida afora. Mas agora eu vou ficar. Se ousares viver,
hei de permanecer aqui. Mas não esperes nenhuma alegria! Hei de
obrigar-te a galgar um caminho cheio de grandes responsabilidades.
Jamais esperes de mim palavras de alegria e esperança! Toda a
tristeza e toda a desgraça que nós dois causamos vão ser as
sentinelas de nosso lar. Será que um coração que sofreu tanto
quanto o meu pode amar ainda mais? Sem lágrimas e sem alegria
hei de andar ao teu lado. Pensa bem, Gösta, antes de optar por
viver! O caminho que vamos trilhar é o da penitência.”
A condessa não esperou pela resposta. Simplesmente acenou
para a filha do pastor de Broby e foi-se embora. Quando chegou à
floresta, começou a chorar amargamente, e assim seguiu até Ekeby.
Ao chegar, notou que havia esquecido de falar sobre assuntos mais
agradáveis do que a guerra com Jan Hök, o soldado.
Na pequena propriedade na floresta, tudo ficara em paz e
silêncio durante sua ausência.
– Louvado seja o senhor Deus! – exclamou de repente o velho
soldado.
Todos o encararam. Havia se levantado e olhava avidamente ao
redor.
– Maldade, tudo tem sido maldade – disse. – Tudo o que vi
desde que abri os meus olhos foi maldade.
“Homens maus, mulheres más! Ódio e ira nas florestas e nos
campos! Mas ela é boa. Uma pessoa boa esteve na minha casa.
Quando eu estiver aqui sozinho, hei de me lembrar dela. Ela há de
me acompanhar pela estrada da floresta.”
O soldado se debruçou por cima de Gösta, soltou a corda e o
ergueu. Depois tomou-lhe a mão com um gesto solene.
– Odioso aos olhos de Deus – ele disse, fazendo um gesto
afirmativo com a cabeça. – Essa é a questão. Mas agora não mais!
E tampouco eu, posto que essa mulher esteve em minha casa. Ela é
boa.
No dia seguinte, o velho Jan Hök procurou o comissário
Scharling.
– Quero pegar a minha cruz – ele disse. – Fui um homem mau, e
por isso tive filhos maus.
E pediu que fosse mandado para a prisão no lugar do filho, mas
o pedido não pôde ser atendido.
A melhor dentre todas as velhas histórias é aquela sobre a
maneira como Jan Hök acompanhou o filho, andando ao lado da
carroça de prisioneiros e dormindo em frente à prisão, sem jamais
abandoná-lo enquanto cumpria a pena. Um dia essa história
também há de encontrar quem a conte.
NOS DIAS QUE ANTECEDERAM O NATAL A SENHORA fez uma viagem até
a região de Lövsjö, mas chegou a Ekeby somente na própria
véspera. Esteve doente ao longo de toda a viagem. Teve febre alta e
pneumonia, mas apesar disso ninguém jamais a vira tão alegre ou
dela ouvira tantas palavras amistosas.
A filha do pastor de Broby, que havia passado uma temporada
com a senhora na fundição de Älvdalsskogarna desde o mês de
outubro, vinha sentada a seu lado no trenó e de bom grado teria
apressado a viagem, embora não pudesse impedir a senhora de
parar os cavalos e chamar cada andarilho que encontrava para junto
do trenó a fim de perguntar sobre as últimas notícias.
– Como vão as coisas aqui em Lövsjö? – perguntou a senhora.
– Vamos bem – veio a resposta. – Tempos melhores estão por
vir. O pastor louco de Ekeby e a esposa estão nos ajudando a todos.
– Estamos vivendo bons tempos – disse outro. – Sintram foi-se
embora. Os cavalheiros de Ekeby estão trabalhando. O dinheiro do
pastor de Broby foi encontrado no campanário. É tanto dinheiro que
a honra e o poder de Ekeby podem agora ser restaurados. E além
disso também serve para dar pão aos famintos.
– Nosso velho preboste despertou mais uma vez para a vida com
forças renovadas – disse um terceiro. – Todos os domingos ele fala
conosco sobre a chegada do reino de Deus. Quem haveria de
pecar? O reino dos bons se aproxima.
Então a senhora continuou a viagem, devagar, perguntando a
todos os que encontrava:
– Como vão as coisas? Não falta nada por aqui?
E o calor da febre e a dor no peito se acalmavam quando lhe
respondiam:
– Aqui vivem duas mulheres boas e ricas, Marianne Sinclaire e
Anna Stjärnhök. As duas ajudam Gösta Berling a ir de casa em casa
para garantir que ninguém passe fome. E hoje em dia ninguém joga
os grãos no alambique.
Foi como se a senhora de Ekeby houvesse celebrado um longo
culto no trenó. Havia chegado a uma terra santa. Viu rostos velhos e
marcados tornarem-se límpidos ao falar sobre os novos tempos que
haviam chegado. Os doentes esqueciam o sofrimento para elogiar
aquele dia de alegria.
– Todos queremos ser como o bom capitão Lennart – diziam as
pessoas. – Todos queremos ser bons. Todos queremos acreditar no
bem. Não queremos causar mal a ninguém. E assim havemos de
antecipar a chegada do reino de Deus.
A senhora descobriu que todos estavam tomados pelo mesmo
espírito. Nas casas senhoriais, refeições gratuitas eram servidas aos
mais necessitados. Quem tinha trabalho a fazer tratava de fazê-lo, e
em todas as fundições da senhora havia uma intensa atividade.
Jamais havia se sentido mais disposta do que naquele momento,
enquanto estava lá sentada com o vento frio a soprar-lhe no peito
dolorido. Não conseguia passar por nenhuma propriedade sem fazer
uma parada a fim de perguntar.
– Agora tudo está bem – diziam os criados. – Havia por aqui uma
grande penúria, mas os bons senhores de Ekeby estenderam-nos a
mão. A senhora há de se admirar com tudo o que foi feito por aqui.
O moinho está quase pronto, a forja encontra-se em pleno
funcionamento e a casa queimada foi toda reconstruída até a
cumeeira.
Foram a necessidade e os acontecimentos comoventes que os
transformaram a todos. Ah, aquilo não havia de durar muito tempo!
Mas assim mesmo era bom voltar a uma terra onde uns ajudavam
os outros e todos se esforçavam por fazer o bem. A senhora
descobriu-se capaz de perdoar aos cavalheiros, e por isso
agradeceu a Deus.
– Anna Lisa – disse –, eu, que sou velha, estou aqui imaginando
que já me encontro no céu dos bem-aventurados.
Quando por fim chegou a Ekeby e os cavalheiros vieram às
pressas ajudá-la a sair do trenó, mal a reconheceram, pois estava
tão alegre e tão bondosa quanto a jovem condessa. Os mais velhos,
que a tinham visto ainda moça, sussurravam uns para os outros:
– Quem voltou não é a senhora de Ekeby, é Margareta Celsing!
Grande foi a alegria dos cavalheiros ao vê-la tão bondosa e tão
livre de todos os pensamentos de vingança, porém esta deu lugar à
tristeza assim que descobriram o quanto a senhora estava doente.
Foi preciso levá-la às pressas até o quarto de visitas, na ala do
estúdio, e colocá-la na cama. Mas no patamar da porta ela se virou
e dirigiu-se aos cavalheiros.
– Foi a tempestade de Deus – ela disse. – Foi a tempestade de
Deus. Hoje eu sei que tudo aconteceu por um bem maior.
E com essas palavras a porta do quarto para onde levaram a
doente foi cerrada, e os cavalheiros não mais a viram.
Mas há muito a se dizer para os moribundos. As palavras custam
a sair da língua quando sabemos que no cômodo ao lado encontra-
se alguém cujos ouvidos logo hão de fechar-se para sempre. “Ah,
meu amigo, meu amigo”, temos vontade de dizer, “será que podes
me perdoar? Acreditas que eu sempre te amei, apesar de tudo?
Como pude causar-te uma tristeza tão profunda enquanto
caminhávamos juntos por aqui? Ah, meu amigo, obrigado pela
alegria que me concedeste!”.
Eis o que temos vontade de dizer, bem como muitas, muitas
outras coisas.
Mas a senhora tinha uma febre abrasadora, e as vozes dos
cavalheiros não conseguiam alcançá-la. Será que jamais haveria de
saber que tinham trabalhado, assumido a obra da antiga senhora e
por fim salvado a honra e o esplendor de Ekeby? Será que jamais
haveria de saber essas coisas?
Logo depois os cavalheiros foram até a forja. Todo o trabalho por
lá estava parado, mas os homens jogaram carvão novo e gusa nova
na fornalha a fim de preparar uma fundição. Não chamaram os
ferreiros, que passavam o Natal em casa, mas trabalharam
pessoalmente na fornalha. Se pelo menos a senhora vivesse até
que o martinete tornasse a soar, este trataria de dizer-lhe o quanto
era necessário.
A tarde chegou, e logo a noite caiu sobre o trabalho. A muitos
dos homens pareceu estranho que mais uma vez fossem celebrar o
Natal na forja.
O experiente Kevenhüller, que fora o construtor da forja e do
moinho naquela época tão inesperada, e Kristian Bergh, o possante
capitão, mantinham-se perto da fornalha e cuidavam do metal
fundido. Gösta e Julius transportavam o carvão. Quanto aos outros
homens, uns se encontravam sentados na bigorna, sob o martinete
erguido, enquanto os demais haviam se acomodado em carrinhos
de carvão ou em pilhas de gusa. Löwenborg, o velho místico,
conversava com o tio Eberhard, o filósofo, que se encontrava
sentado a seu lado, em cima da bigorna.
– Hoje à noite Sintram morre – disse.
– Por que justo hoje à noite? – perguntou Eberhard.
– Bem sabe o meu camarada que no ano passado fizemos uma
aposta. Não fizemos nada que não fosse adequado à nossa
condição de cavalheiros, e assim ele perdeu.
– Mas, se o camarada acredita mesmo nisso, sabe também que
fizemos muitas coisas indignas de um cavalheiro. Em primeiro lugar,
não ajudamos a senhora; em segundo lugar, começamos a
trabalhar; e, em terceiro lugar, não parece certo que Gösta Berling
não tenha se matado quando fez essa promessa.
– Eu pensei em tudo isso – respondeu Löwenborg –, mas
acredito que o camarada não tenha entendido a questão de maneira
adequada. Fomos proibidos de agir em nome de vantagens próprias
e mesquinhas, mas não de agir movidos pelo amor, pela honra ou
pela eterna bem-aventurança. Acredito que Sintram tenha perdido.
– Pode ser que o camarada tenha razão.
– Eu sei que estou certo. Ouvi sinetas a tarde inteira, porém não
eram sinetas de verdade. Logo ele vai estar aqui.
E aquele pequeno velho manteve-se sentado, observando a
porta da forja, que estava aberta, e o pedaço de céu azul pouco
estrelado que se via mais ao fundo.
Em seguida ele se levantou.
– O camarada agora vê? – ele perguntou, em um sussurro. – Lá
está ele, chegando de fininho. O camarada não o vê na porta?
– Nada vejo – respondeu o tio Eberhard. – O camarada deve
estar demasiado sonolento.
– Eu o vi nitidamente sob o céu claro. Estava usando a longa
pele de lobo e a touca de pele. Mas agora se encontra em meio à
escuridão, e já não o vejo. Lá! Está perto da fornalha! Está ao lado
de Kristian Bergh, mas claro que Kristian não o vê. Inclina-se para a
frente e joga alguma coisa no fogo. Ah, que aspecto terrível! Tomem
cuidado, meus amigos, tomem cuidado!
Assim que Löwenborg terminou de falar, uma labareda ergueu-se
da fornalha e cobriu os ferreiros e ajudantes de chispas e escória.
Mas ninguém se machucou.
– Ele quer vingança – sussurrou Löwenborg.
– O camarada perdeu a razão! – exclamou Eberhard. – Achei
que já havia se fartado disso.
– Podemos imaginar e desejar coisas, mas de pouco ajuda. O
camarada não vê que Sintram está ao lado do poste, rindo de nós?
Não acredito! Está tentando soltar o martinete!
Löwenborg se levantou e puxou Eberhard consigo. No instante
seguinte, o martinete estrugiu contra a bigorna. Fora apenas uma
trava que havia se soltado, mas Eberhard e Löwenborg tinham
escapado por muito pouco da morte.
– Veja, camarada! Ninguém tem poder sobre nós! – disse
Löwenborg, em tom triunfante. – Mas parece que ele deseja
vingança.
E então Löwenborg chamou Gösta Berling.
– Gösta, vai cuidar das mulheres! Pode ser que ele também se
revele para elas. Elas não estão acostumadas a ver esse tipo de
coisa. E podem se assustar. Quanto a ti, Gösta, toma cuidado,
porque ele tem muito rancor de ti, e pode ser que detenha também
certo poder em função daquela promessa. Pode ser.
Mais tarde chegou a notícia de que Löwenborg estava certo, e
Sintram havia morrido na noite de Natal. Uns diziam que havia se
enforcado na prisão. Outros acreditavam que os servidores da
justiça haviam secretamente permitido que o matassem, posto que o
julgamento parecia favorável a ele, e seria inaceitável permitir que
um homem daqueles investisse mais uma vez contra as pessoas de
Lövsjö. E havia outros que acreditavam que um senhor de pele
escura havia chegado em uma carruagem negra, puxada por
cavalos negros, para levá-lo embora da prisão. E Löwenborg não foi
o único a vê-lo durante a noite de Natal. Também foi visto em Fors e
nos sonhos de Ulrika Dillner. Muitos contaram que Sintram havia se
revelado para eles, até que por fim Ulrika Dillner levou o cadáver
para o cemitério de Bro. Ela também fez com que os maus
servidores fossem afastados de Fors e estabeleceu uma gestão
mais justa. Desde então o fantasma desapareceu.
Conta-se que antes que Gösta Berling fosse à propriedade um
forasteiro dirigiu-se à ala do estúdio e lá deixou uma carta para a
senhora. Ninguém conhecia o mensageiro, mas a carta foi levada
para dentro e posta na mesa ao lado da doente. Logo depois a
senhora teve uma melhora repentina; a febre passou, as dores
cessaram e ela mais uma vez teve condições de ler a missiva.
Os velhos quiseram acreditar que aquela melhora era o resultado
da influência de forças das trevas. Sintram e seus amigos poderiam
tirar proveito de que a senhora de Ekeby lesse aquela missiva.
Tratava-se de um documento escrito com sangue em um papel
negro. Os cavalheiros sem dúvida o teriam reconhecido. Fora
assinado na noite de Natal do ano anterior, na forja de Ekeby.
E naquele momento, deitada, a senhora lia e descobria que, por
ter agido como uma bruxa e consignado a alma dos cavalheiros ao
inferno, estava condenada a perder Ekeby. Esse foi o tipo de
desvario que teve a oportunidade de ler naquela ocasião. Ela
examinou a data e a assinatura e descobriu a seguinte anotação ao
lado do nome de Gösta: “Considerando que a senhora de Ekeby
aproveitou-se de minha fraqueza a fim de me afastar do trabalho
honrado e manter-me em Ekeby como um cavalheiro, e
considerando que me transformou no assassino de Ebba Dohna ao
revelar-lhe que eu era um pastor destituído, subscrevo o presente
documento”.
A senhora dobrou cuidadosamente o papel e colocou-o de volta
no envelope. Depois fez silêncio e pensou sobre aquilo que havia
descoberto. Tomada por uma profunda amargura, percebeu que
aquela era a ideia que as pessoas faziam dela. Não passava de
uma bruxa e de uma feiticeira para todos aqueles a quem havia
servido, a quem havia oferecido trabalho e pão. Aquela era a
recompensa que recebia ao final – e aquele havia de ser o legado
que deixava. As pessoas comuns seriam incapazes de pensar de
outra forma a respeito de uma adúltera.
Mas o que esperar daqueles simplórios? Tinham vivido longe
dela. Mas aqueles pobres cavalheiros, que tinham vivido graças à
misericórdia da senhora e conheciam-na bem, mesmo aqueles
pobres cavalheiros acreditaram ou fingiram acreditar na história para
arranjar um pretexto que lhes permitisse tomar Ekeby para si. Os
pensamentos da senhora corriam a uma velocidade extraordinária.
Uma ira e uma profunda sede de vingança abrasaram-lhe o cérebro
febril. Ela pediu à filha do pastor de Broby, que a velava junto com a
condessa Elisabet, que mandasse uma mensagem a Högfors
solicitando a presença do encarregado e do inspetor. Desejava fazer
o testamento.
Mais uma vez a senhora pôs-se a pensar. Tinha as sobrancelhas
franzidas, e o semblante contorcia-se de maneira terrível por causa
do sofrimento.
– A senhora está muito doente – disse a condessa, com a voz
mansa.
– De fato estou mais doente do que jamais estive.
Fez-se novamente silêncio, mas logo a senhora tornou a falar
com uma voz dura e austera:
– É estranho pensar que mesmo a senhora, condessa, mesmo a
senhora, a quem todos amam, há de ser também uma adúltera.
A jovem condessa sobressaltou-se.
– Se não em atos, pelo menos em pensamentos e desejos, e
entre essas coisas não há diferença. Eu, que estou aqui deitada,
bem sei que não há diferença.
– Eu sei.
– E no entanto a senhora é feliz. A senhora pode desfrutar do
amado sem nenhum pecado. Nenhum espectro sombrio há de surgir
entre vocês dois quando se encontrarem. Vocês têm o direito de
pertencer um ao outro perante o mundo, de amar um ao outro à luz
do dia, de andar lado a lado pela vida afora.
– Ah, senhora, senhora!
– Como foi que a senhora atreveu-se a permanecer ao lado
dele? – exclamou a velha, com uma rispidez cada vez maior. –
Arrependa-se, arrependa-se enquanto é tempo! Volte para casa,
para a companhia do seu pai e da sua mãe, antes que venham
amaldiçoá-la! Acaso a senhora ousa considerar Gösta Berling seu
marido? Fuja para longe desse homem! Vou deixar-lhe Ekeby de
herança. Vou deixar-lhe o poder e o esplendor de herança. Acaso a
senhora ousa compartilhar isso tudo com ele? Acaso a senhora
ousa aceitar a felicidade e a honra? Eu ousei. Lembra-se de como
tudo aconteceu para mim? Lembra-se da ceia de Natal em Ekeby?
Lembra-se da prisão na propriedade do comissário?
– Ah, senhora! Nós, pecadoras, andamos lado a lado, sem
jamais conhecer a felicidade. Estou aqui para cuidar de que
felicidade nenhuma se instale aqui em nosso lar. Pensa que não
anseio por voltar para casa, senhora? Ah, pois anseio com
amargura por retornar ao apoio e à proteção do lar, porém nunca
mais vou desfrutá-lo. Hei de morar aqui com temor e tremor,
sabendo que tudo o que eu fizer há de resultar em pecado e
tristeza, sabendo que a cada pessoa a quem ajudar eu vou estar
derrubando outra. Demasiado fraca e insensata para a vida, porém
assim mesmo obrigada a viver, presa a uma penitência eterna.
– É com esses pensamentos que enganamos nossos corações!
– bradou a senhora. – Mas tudo isso é fraqueza. A senhora não
quer se afastar dele; eis o verdadeiro motivo.
Antes que a condessa pudesse responder, Gösta Berling entrou
no recinto.
– Gösta, vem cá! – a senhora disse no mesmo instante, com a
voz ainda mais dura e mais estridente. – Vem, tu que és admirado
por todos em Lövsjö! Vem, tu que vais ter um legado como salvador
do povo! Agora hás de ouvir o que aconteceu à tua velha senhora, a
quem deixaste vagar província afora, entregue ao desprezo e ao
abandono.
“Primeiramente quero dizer-te o que aconteceu na primavera
passada, quando cheguei à casa da minha mãe, pois tens de
conhecer o fim dessa história.
“No mês de maio, cheguei caminhando à fundição em
Älvdalsskogarna, Gösta. Naquele instante eu parecia pouco mais do
que uma velha mendiga. Quando cheguei, disseram-me que a
minha mãe estava na leiteria. Segui para lá e passei um bom tempo
em silêncio junto da porta. Ao meu redor havia longas prateleiras
com panelas de cobre cheias de leite. E a minha mãe, que tinha
mais de 90 anos, pegava as panelas uma a uma para separar a
nata. Apesar da idade, ela ainda era rápida, mas eu bem notei o
quanto lhe custava endireitar as costas para alcançar as panelas.
Eu não sabia se ela tinha me visto, mas logo ela dirigiu-se a mim
com uma voz estranhamente aguda.
“‘Então tudo aconteceu da maneira como eu desejava!’, disse. Eu
queria falar-lhe e pedir que me perdoasse, mas não havia como. Ela
não ouvia uma palavra do que eu dizia. Estava surda como uma
porta. Mas logo tornou a falar: ‘Podes vir me ajudar’, disse.
“Eu me aproximei e comecei a desnatar o leite. Peguei as
panelas, uma após a outra, e guardei-as todas no lugar, tomando
cuidado no manuseio da escumadeira, e ela se mostrou satisfeita.
Minha mãe jamais havia confiado a tarefa de desnatar o leite a uma
criada, mas naturalmente eu sabia como ela gostava que aquilo
fosse feito.
“‘Agora já podes assumir este trabalho’, ela disse. Assim eu
soube que havia me perdoado.
“E já no instante seguinte ela parecia incapaz de trabalhar.
Passava a maior parte dos dias cochilando na cadeira. Ela morreu
poucas semanas antes do Natal. Eu queria muito ter vindo antes,
Gösta, mas não podia abandonar minha velha mãe.”
A senhora calou-se. Começou a sentir dificuldade para respirar,
mas assim mesmo se recompôs e continuou a falar:
– É verdade, Gösta, que gostava de ter-te comigo aqui em
Ekeby. Contigo é assim; todos se alegram de estar em tua
companhia. Se fosses um homem constante, terias recebido de mim
um grande poder. Minha esperança sempre foi que encontrasses
uma boa esposa. Primeiro achei que seria Marianne Sinclaire, pois
eu via que ela te amava já quando vivias na floresta como lenhador.
Depois achei que seria Ebba Dohna, e um dia, quando fui a Borg
fazer uma visita, disse-lhe que eu havia de deixar Ekeby como
herança para ti se a tomasses por esposa. Se procedi mal ao agir
dessa forma, peço-te perdão.
Gösta prostrou-se de joelhos ao lado da senhora e pousou a
testa na beira da cama. Soltou um gemido pesado.
– Diz-me, Gösta, como pretendes viver? Como hás de cuidar da
tua esposa? Diz-me! Bem sabes que eu sempre desejei o teu bem.
E Gösta respondeu-lhe com um sorriso, enquanto sentia o peito
quase rasgar-se de tristeza:
– Antigamente, quando eu quis ser um trabalhador aqui em
Ekeby, a senhora me deu uma pequena propriedade com uma casa
para morar, e essa propriedade ainda hoje é minha. No outono eu
deixei tudo em ordem. Löwenborg ajudou-me, e nós dois caiamos o
telhado, colocamos papel de parede e pintamos a casa. Löwenborg
chama o pequeno cômodo interno de “gabinete da condessa”, e ele
andou por muitas propriedades da região à procura de móveis
arrematados nos leilões da casa senhorial. Ele tratou de comprá-los,
e hoje se encontram lá dentro poltronas estofadas e baús com
ferragens reluzentes. Mas no grande cômodo externo repousam o
tear da senhora da casa e o meu torno, minhas ferramentas e toda
sorte de outras coisas, e eu e Löwenborg passamos muitas tardes
juntos falando sobre a minha vida com a condessa naquela cabana.
Minha esposa, porém, só vai saber disso agora. Nosso plano era
contar tudo a ela quando saíssemos de Ekeby.
– Continua, Gösta!
– Löwenborg sempre falava sobre como seria bom ter uma
criada na casa. “No verão esse promontório de bétulas tem uma
beleza abençoada”, costumava dizer, “mas no inverno o lugar é
demasiado solitário para uma esposa jovem. Podes ter uma criada,
Gösta”.
“E eu concordei com ele, mas não sabia de onde tirar dinheiro
para manter uma criada. Um belo dia ele chegou trazendo partituras
e aquela mesa com as teclas pintadas e colocou tudo no interior da
cabana. ‘Então és tu, Löwenborg, quem há de ser minha criada?’,
eu perguntei. Ele respondeu que se faria necessário. Acaso eu
esperava que a jovem condessa fosse preparar comida e carregar
lenha e água? Não, eu não pretendia que fizesse nada disso, pelo
menos não enquanto eu tivesse dois braços capazes de trabalhar.
Mas Löwenborg pensou que seria ainda melhor se fôssemos dois,
para que assim ela pudesse passar o dia bordando no sofá. Não
havia como saber quantos cuidados uma mulher delicada como
aquela haveria de precisar, ele disse.”
– Continua! – disse a senhora. – Ouvir-te alivia os meus
tormentos. Achaste que a tua jovem condessa queria morar numa
cabana?
Gösta percebeu o tom de zombaria, mas assim mesmo
prosseguiu:
– Ah, senhora, eu não me atrevi a pensar uma coisa dessas, mas
seria tão bom se ela quisesse! Daqui são 8 léguas até o médico
mais próximo. Ela, que tem mãos delicadas e coração sensível,
encontraria trabalho suficiente tratando feridas e acalmando febres.
E eu pensei que todos os desvalidos poderiam encontrar essa bela
mulher na cabana. Em meio aos pobres existe muita tristeza que
pode ser aliviada com palavras bondosas e uma disposição
amigável.
– Mas e quanto a ti, Gösta Berling?
– Eu tenho o trabalho no torno e na mesa de marcenaria,
senhora. De agora em diante pretendo viver minha própria vida. Se
minha esposa não quiser me acompanhar, então paciência. Ainda
que me oferecessem todas as riquezas do mundo, não seria o
bastante. Quero viver a minha própria vida. Pretendo ficar aqui
como um homem pobre em meio aos camponeses, ajudando-os da
maneira possível. Essa gente precisa de uma pessoa que saiba
tocar polca nos casamentos e nos festejos de Natal; que saiba
escrever cartas para os filhos que moram longe; e essa pessoa sou
eu. Mas devo continuar pobre, senhora.
– Seria uma vida dura para vocês, Gösta.
– Não, senhora, nada disso; bastaria que estivéssemos um ao
lado do outro. Além dos pobres, os ricos e alegres também
haveriam de procurar-nos. Encontraríamos alegria suficiente em
nossa cabana. Os convidados não se importariam de ver a comida
ser preparada diante de seus olhos nem reclamariam de comer de
dois em dois no mesmo prato.
– E onde está a serventia disso tudo, Gösta? Que fama haverias
de ganhar?
– Grande seria a minha fama, senhora, caso os pobres se
lembrassem de mim por dois ou três anos após a minha morte. A
serventia está em plantar macieiras nos cantos da casa, em ensinar
aos camponeses músicos as melodias dos antigos mestres e em
saber que os filhos desta terra aprenderam boas canções para
cantar floresta adentro.
“Acredite, senhora, eu sou o mesmo Gösta Berling louco de
outrora. Um camponês músico é o máximo que posso tornar-me,
mas assim mesmo é o bastante. Tenho muitos pecados a expiar.
Para mim, chorar e arrepender-me não serve. Quero fazer os
pobres felizes; essa é a minha penitência.”
– Gösta – disse a senhora –, essa é uma vida demasiado
pequena para um homem com as tuas forças. Quero dar-te Ekeby.
– Ah, senhora! – Gösta exclamou, apavorado. – Não faça de mim
um homem rico! Não me imponha um dever como esse! Não me
separe dos pobres.
– Quero dar Ekeby para ti e para os cavalheiros – repetiu a
senhora. – És um homem de virtude, abençoado pelo povo. Digo-te
o mesmo que me disse a minha mãe: “Tens de assumir esse
trabalho”.
– Não, senhora, não podemos aceitar uma coisa dessas. Justo
nós, que cometemos grandes injustiças e provocamos grandes
tristezas!
– Escuta-me. Eu quero dar Ekeby para ti e para os cavalheiros.
A senhora falava com um tom grave e duro, sem a gentileza
habitual. Estava tomada pela angústia.
– Senhora, não ofereça uma tentação como essa aos velhos!
Assim todos haveriam de tornar-se mais uma vez preguiçosos e
beberrões. Deus do céu! Cavalheiros ricos! O que seria de nós?
– Eu quero dar-te Ekeby, Gösta, mas primeiro tens de me
prometer que vais conceder liberdade à tua esposa. Vê bem… uma
mulher delicada como essa não serve para ti. Ela já sofreu o
suficiente na terra dos ursos. E anseia por voltar ao vilarejo natal.
Tens de deixá-la ir. É por isso que eu quero dar-te Ekeby.
Nesse momento a condessa Elisabet aproximou-se da senhora e
ajoelhou-se ao lado da cama.
– Já não anseio mais, senhora. Meu marido resolveu esse
enigma e descobriu uma vida que posso viver. Já não preciso andar
grave e fria ao lado dele, lembrando-o de anseios e penitências. A
pobreza, a necessidade e o trabalho árduo podem cumprir essa
tarefa. Os caminhos que levam aos pobres e doentes hei de trilhar,
livre de todo pecado. Já não temo a vida aqui no norte. Mas não o
transforme em um homem rico, senhora! Neste caso não me atrevo
a ficar.
A senhora levantou-se na cama.
– Vocês exigem toda a felicidade para vocês! – exclamou,
ameaçando-os com os punhos cerrados. – Toda a felicidade e todas
as bênçãos! Não, que Ekeby pertença aos cavalheiros, para que
assim se arruínem! Que o marido e a mulher se separem, para que
assim se arruínem! Sou uma bruxa, uma feiticeira, e hei de incitá-los
à maldade! Hei de tornar-me aquilo que contam a meu respeito!
A senhora de Ekeby pegou a carta e jogou-a no rosto de Gösta.
O papel negro esvoaçou e caiu ao chão. Gösta prontamente o
reconheceu.
– Pecaste contra mim, Gösta. Suspeitaste da mulher que foi para
ti como uma segunda mãe. E agora te negas a receber meu
castigo? Pois vou deixar-te Ekeby, e assim hás de arruinar-te, pois
és fraco. Hás de mandar tua esposa para casa, para que ninguém
consiga salvar-te. E hás de morrer tendo um nome tão odiado
quanto o meu. O legado de Margareta Celsing é o legado de uma
bruxa. O teu há de ser o legado de um esbanjador e de um algoz
dos camponeses.
Logo a senhora voltou a afundar nos travesseiros, e então tudo
ficou em silêncio. Durante esse silêncio ouviu-se uma pancada
abafada, e logo outra. O martinete começara a entoar sua
ribombante canção.
– Ouça! – disse Gösta Berling. – Esse som é o legado de
Margareta Celsing! Esse não é um cortejo de cavalheiros bêbados.
Esse é o hino da vitória do trabalho, entoado para honrar uma
mulher boa que dedicou a vida ao trabalho. Acaso a senhora ouve a
voz do martinete? “Obrigado”, diz, “obrigado pelo bom trabalho,
obrigado pelo pão que deste aos pobres, obrigado pelos caminhos
que abriste, obrigado pelas terras que desbravaste! Obrigado pela
alegria que deixaste reinar em teus salões!” – “Obrigado”, diz essa
voz, “e descansa em paz! Tua obra há de viver e perdurar. Tua
propriedade para sempre há de ser um lugar onde se trabalha com
alegria”. – “Obrigado”, diz a voz, “e não nos julgues, a nós que nos
desviamos do caminho! Tu, que agora começas a viagem rumo aos
campos de paz, lembra com alegria de nós, que ainda vivemos!”
Gösta calou-se, porém o martinete continuou a falar. Todas as
vozes que haviam falado em tom de amizade e doçura com a
senhora de Ekeby misturaram-se ao som do martinete. E aos
poucos a tensão abandonou-lhe as feições. Logo o semblante
relaxou, e foi como se a sombra da morte o toldasse.
A filha do pastor de Broby entrou e avisou que os senhores de
Högfors haviam chegado. A senhora dispensou-os. Não queria fazer
testamento nenhum.
– Ah, Gösta Berling, homem de muitas façanhas – disse ela –, vê
como venceste mais uma vez! Abaixa-te e permite que eu te
abençoe!
A febre voltou com força redobrada. Começaram os estertores
que precedem a morte. O corpo relaxou em meio a um profundo
sofrimento, porém não tardou para que a alma estivesse alheia a
tudo isso. Começou a divisar o céu que se abre para os moribundos.
Uma hora se passou, e o breve embate contra a morte chegou
ao fim. A senhora jazia tão bela e tão tranquila que os presentes
sentiram-se profundamente tocados.
– Minha querida senhora! – exclamou Gösta. – Já a vi assim
outrora! Este é o momento em que Margareta Celsing torna à vida.
Desta vez para jamais se dobrar perante a senhora de Ekeby.
L172s
Lagerlöf, Selma, 1858-1940
A saga de Gösta Berling [recurso eletrônico] / Selma Lagerlöf ; tradução Guilherme da Silva Braga ; [posfácio
Marguerite Yourcenar]
1. ed.
São Paulo: Carambaia, 2021.
recurso digital; 15 MB
Tradução de: Gösta Berlings saga
Formato: ebook
Requisitos do sistema: autoexecutável Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-86398-21-2 (recurso eletrônico)
1. Romance sueco. 2. Livros eletrônicos. I. Braga, Guilherme da Silva. II. Yourcenar, Marguerite. III. Título.
20-67559 / CDD 839.73 / CDU 82-31(485))
Meri Gleice Rodrigues de Souza Bibliotecária — CRB-7/6439
EDITORIAL
Fabiano Curi (diretor editorial) Graziella Beting (editora-chefe) Kaio Cassio (assistente
editorial) Karina Macedo (assistente de coordenação editorial) Laura Lotufo (editora de
arte) Lilia Góes (produtora gráfica) COMUNICAÇÃO E IMPRENSA Clara Dias
ADMINISTRATIVO
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EDITORA CARAMBAIA
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www.carambaia.com.br
O Golem
Meyrink, Gustav
9786586398182
304 páginas