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Tecnologia/ Paternidade digital Big Mother

Joana Amaral Cardoso

Danielle e uma amiga, as duas de 18 anos, estavam em plena


viagem. Era só uma visita a uma cidade a duas horas de distância das
suas casas, mas com o rádio do carro a debitar decibéis e a sensação
de autonomia por estarem sozinhas em modo adolescente, o dia
estava a ser divertido. Iam a 140 km/h, mas quem é que ia saber? O
telemóvel de Danielle apita. Era uma mensagem da mãe: "Não estou
nada contente com a velocidade a que vão; se o carro voltar a passar
dos cem, vou-te buscar."
Danielle Butler foi apanhada. E nem sabia como. A mãe, Donna, que
tinha ficado em casa, pediu-lhe que a avisasse quando chegassem.
Como já tinha passado da hora prevista, Donna Butler telefonou-lhe.
Danielle não atendeu mas Donna sabia que podia contar com a boa e
velha Internet para a ajudar. Acedeu à página do sistema de Global
Positioning System (GPS) para telemóveis que mandou instalar no
telefone da filha. Em poucos segundos, viu onde o carro estava e a
que velocidade seguia. Para Danielle, foi um rude despertar. A
realidade era que a mãe também podia usar os "gadgets" que
compunham a sua vida desde que se conhecia, mas para a vigiar.
"Big Mother is watching you."
Os pais preocupam-se. Os filhos querem liberdade. São dois factos da
vida que atingem a fase crítica quando chega a adolescência. "Há um
fosso entre pais e filhos que é intransponível: nós queremos que eles
estejam a salvo e eles querem divertir-se", explica Anthony Wolf,
psicólogo infantil.
Nos Estados Unidos, os pais que se sentem ultrapassados num mundo
repleto de aparelhos e funcionalidades que os mais novos dominam
foram dos primeiros a perceber que, se não os podem vencer, têm de
se juntar a eles. No sentido mais invasivo e invisível do termo, vão
usar os seus próprios métodos para os vigiar. Seja quando estão ao
computador a trocar mensagens instantâneas, quando vão sair à
noite ou quando levam o carro para um lado e na verdade vão para
outro. É a paternidade digital, que em 2003 tinha algumas centenas
de adeptos, em 2004 alguns milhares e em 2005 uma miríade de
empresas e mais milhares de pais dispostos a usar o "software", os
"gadgets", o GPS e até pulseiras de vigilância electrónica ou roupa
inteligente para se manterem a par dos passos dos seus
adolescentes.
"Não se trata de espiar, trata-se de segurança", garante Jack Church,
porta-voz de uma das mais citadas e procuradas empresas deste tipo.
A Teen Arrive Alive fornece telemóveis com sistema com GPS que
permitem aos pais ver na Internet onde estão os filhos adolescentes
e, no caso de estarem num carro, a que velocidade viajam. Há um
motivo para que Church seja porta-voz e esteja associado a esta
empresa. O seu filho de 20 anos morreu depois de o seu carro se ter
despistado quando conduzia embriagado. Jack Church conta a história
a todos os jornalistas com quem fala para promover a Teen Arrive
Alive e admite que um aparelho com GPS instalado no carro não teria
salvo a vida do filho. Mas ter-lhe-ia poupado, frisa, dois dias de
sofrimento enquanto a polícia procurava o carro e finalmente
encontrava o corpo do jovem.
O dilema não é novo. Onde começa a liberdade dos filhos e termina a
natural preocupação dos pais? Há dez ou 20 anos, os progenitores
também tentavam contornar o silêncio dos filhos adolescentes com
manobras menos directas. Se não sabiam quem telefonava lá para
casa, podiam escutar as conversas atrás da porta ou noutro telefone
da mesma linha. Se estavam preocupados com as notas ou com o
fastio dos filhos quando chegava a segunda-feira, tentavam descobrir
a resposta nas gavetas do quarto. E em caso de amores mal parados,
havia sempre o diário para obter informações em discurso directo.
Acompanhar os miúdos com novas tecnologias é simplesmente uma
adaptação ao meio.
E, com a nova atmosfera da era das telecomunicações, surgem novas
ferramentas. O GPS pode ser usado e colocado em qualquer aparelho,
desde um relógio a um carro. Por cerca de 150 euros, pode adquirir-se
um telemóvel que tenha sistema de rastreio GPS. Algumas
operadoras móveis americanas, associadas a empresas como a Teen
Arrive Alive, criaram serviços que aliam a localização instantânea
daquele telefone a outras possibilidades, mais adequadas a crianças
e pré-adolescentes (a fatia de mercado emergente dos "tweens"):
aparelhos pré-carregados e que só permitem efectuar chamadas para
certos números, sistema que há muito foi usado em Portugal. Outra
hipótese são os relógios de pulso com GPS da Wherify, para manter
os miúdos debaixo de olho a qualquer altura.

No Reino Unido, onde o mercado de milhões de euros da vigilância


electrónica de filhos também já começou a despontar, a associação
não-governamental de protecção de crianças Kidscape defende
empresas como a ChildLocate, que permitem aos pais saber onde
está o telefone dos filhos e, assim, onde eles estão, através de SMS
com esses dados ou do acesso a uma página na Web. Sobretudo
depois do desaparecimento e homicídio de Jessica Chapman e Holly
Wells, em 2002, as preocupações dos pais britânicos aumentaram e a
procura por serviços deste género também. A Kidscape advoga
serviços como o norte-americano Chaperone ou o Alltrack USA, que
avisam também os pais se os filhos saem das fronteiras electrónicas
que eles estabeleceram à partida e que funcionam como uma
vedação invisível na cidade onde vivem.
Os telemóveis, por serem omnipresentes e considerados
indispensáveis para quem nasceu nos últimos 20 anos, são a
ferramenta mais procurada.
Para os adolescentes, com o telefone comprometido, o carro pode
parecer uma linha de fuga. Não. Um pai norte-americano famoso, o
antigo lutador de "wrestling" Hulk Hogan, colocou um sinal GPS no
carro da filha de 16 anos, sem que ela soubesse, quando autorizou
que ela saísse com um rapaz cinco anos mais velho. Em casa, durante
o encontro de Brooke, o pneumático ex-lutador soube sempre em que
estrada ela estava e confirmava, depois de telefonar para saber quais
os planos do casal, se iam mesmo para onde diziam estar a dirigir-se.
O caso foi mostrado a todo o mundo no "reality-show" que
acompanha a família Hogan e que passa no canal VH1.
Além destes sistemas de rastreio, podem instalar-se caixas negras,
como as dos aviões, para monitorizar a condução juvenil. Há o
CarChip, do tamanho de uma pilha, que se coloca por trás do tablier e
grava a condução. A Road Safety International criou a Teen Black Box,
destinada aos condutores mais jovens e que visa incutir-lhes boas
práticas de condução - prevenir acidentes, condução agressiva,
excesso de velocidade e o álcool ao volante. Quando alguma
infracção é cometida, o carro apita e não pára até o comportamento
em causa cessar. Fica tudo registado na caixa negra e os dados são
enviados para o computador da família por cerca de 250 euros.
A cibervigilância dos pais consegue criar, a custo, outro beco sem
saída numa via que aparentava ser mais livre - a Internet. É difícil
manter os programas de vigilância instalados nos computadores
pessoais fora do radar dos filhos. Os jovens suplantam a maioria dos
pais em conhecimento informático. "Os miúdos encontram uma
maneira de ultrapassar os filtros", conforma-se Bill Bozonyak, de Nova
Iorque.
Por isso, contou à "Newsweek", criou o Sentry. Esta sentinela
informática não só limita o acesso a páginas pornográficas ou para
adultos, mas também é um espelho de duas vias para o computador
das crianças da casa. Permite aos pais ver, em tempo real, as suas
trocas de correio electrónico, as mensagens que trocam no MSN e
envia automaticamente um "e-mail" ou um SMS aos pais quando os
miúdos dão demasiada informação através da Internet.
Tudo isto poderá ser um nada exagerado. Mas segundo um estudo de
2003 do "think tank" britânico Future Foundation, 75 por cento dos
pais ingleses comprariam uma pulseira electrónica para seguir os
filhos, se pudessem. A conclusão da Future Foundation? "O clima está
a mudar - há uma geração de adolescentes a crescer e cujos pais
esperam saber onde eles estão a qualquer altura." Isto sucede apesar
de o mundo não ser mais perigoso para as crianças do que era há um
século, garante Frank Furedi, autor de "The Politics of Fear". "Estas
tecnologias dão a ilusão de controlo", mas nada mais do que isso. E
arriscam-se a não só enfurecer os jovens, como a equipará-los a
animais.
Foi o que acharam os pais de muitos alunos de um liceu em Sutter, na
Califórnia, onde a versão mais eficaz e panóptica desta
instrumentalização da tecnologia estava prestes a ser implantada.
Trata-se da identificação através de rádio-frequência ("radio
frequency identification" - RFID), etiquetas que contêm vários dados
pessoais e são usadas para controlar o acesso a determinados locais.
O RFID foi usado em parques de diversões, para evitar longas buscas
pelo filho que ficou para trás, hipnotizado pelo carrossel, e em
pulseiras para recém-nascidos, para reduzir as trocas e os raptos de
bebés nos hospitais norte-americanos. O Hospital de São Teotónio, em
Viseu, utiliza há mais de dois meses um sistema de rádio-transmissão
a partir de etiquetas que são colocadas nos tornozelos de bebés e
crianças e ficam ligadas a uma central, que faz soar um alarme
sonoro e encerra as portas se uma delas sair das áreas pré-
determinadas.
Mas os pais de Sutter acharam que usar etiquetas RFID para controlar
a assiduidade e a localização dos alunos na escola era demais, apesar
de terem a garantia de que os dados dos filhos só seriam acessíveis a
pessoas autorizadas. O seu argumento foi que não queriam que os
seus filhos fossem seguidos da mesma forma que é vigiado o gado
nas pastagens ou como reclusos com pulseiras electrónicas.

Com tanta ciberbisbilhotice, os adolescentes americanos apanhados


nesta insidiosa rede de espionagem paternal têm uma reacção
comum.
Jessica Fairbanks estava prestes a tirar a carta de condução e os pais
estavam em pânico com a perspectiva. Decidiram esconder uma
"caixa negra" no seu futuro carro. Uma amiga da adolescente ouviu
os pais a falar sobre o aparelho e fez-se luz. Jessica soube o motivo
pelo qual os pais ultimamente pareciam saber tudo o que ela fazia de
errado.
"Fiquei... lívida, nos primeiros meses", descreve.
O mesmo disse Paige White, de 17 anos, que aos 16 ficou
surpreendida quando percebeu que os pais sabiam que tinha ido de
carro a uma festa em vez da casa de uma amiga, que era mesmo ao
lado. "Fiquei zangada porque senti que era uma invasão da minha
privacidade", disse, indignada, ao "San Francisco Chronicle". A culpa
era do CarChip, mas hoje Paige diz gostar do companheiro digital.
"Ajuda-me a ter atenção à velocidade e mantém-me honesta",
confessa.
A privacidade, e mesmo a protecção dos dados destes jovens, é
importante. Mas, para os peritos em desenvolvimento juvenil, o preço
a pagar será ainda mais elevado. "A questão é que a vigilância vai
diminuir alguns dos potenciais comportamentos de risco em que os
miúdos incorrem, mas com custos. Quando vigiamos, estamos a
interferir com o desenvolvimento da responsabilidade pelas suas
próprias vidas", pondera o pedopsicólogo Anthony Wolf.
Em causa está não só a aprendizagem por tentativa-erro que faz
parte da educação de uma criança e de um jovem, mas também
possíveis falhas por parte dos pais. "Seguir os miúdos...", suspira Jane
Bluestein, "eu sei que dá aos pais uma sensação de controlo, mas
penso que aponta para problemas maiores na relação (entre pais e
filhos): desconfiança, necessidade de controlo, necessidade de pensar
pelos seus filhos", enumera a autora de "Pais, Adolescentes e
Fronteiras: como Estabelecer Limites".
Os pais não devem criar um braço remoto para tentar conter as
experiências dos filhos, mas os especialistas admitem que a solução
da vigilância electrónica pode ser positiva quando for aplicada como
uma punição após um erro. Se foi apanhado a beber álcool, use-se um
balão como os da polícia; se falta muito às aulas, coloque-se um GPS-
qualquer coisa para garantir que entra na sala para a lição de
Matemática, diz Robert Butterworth, psicólogo que estuda a vida
familiar moderna. O reverso da medalha, lembrou à revista
"Newsweek", é que é perigoso substituir a confiança e a negociação
familiar pela tecnologia e que se deve evitar uma "cultura de
vigilância" imposta pelos pais.
Dan Kindlon, pedopsicólogo em Harvard, deixa uma última chamada
de atenção. Nunca se esconda aos mais jovens que estão a ser
vigiados e se substitua a atenção familiar pelo registo de uma
máquina. Aí sim, os pais orwellianos violam a confiança dos filhos, por
mais independentes, autónomos, rebeldes e adolescentes que sejam.
"Se deixarem robôs criar os vossos filhos, eles vão odiar-vos por isso."

À MArgem
Números
57 por cento dos jovens americanos com idades entre os 15 e os 17
anos e
18 por cento dos jovens americanos com 12 anos têm telemóvel
Mais de 500 mil jovens entre os 10 e os 14 anos possuem ou usam
telemóvel, o que representa uma taxa de penetração de 88,3 por
cento
A taxa de penetração dos telemóveis entre os jovens portugueses
entre os 15 e os 24 anos é de 97,2 por cento

Fonte: Pew Internet & American Life Project, Abril 2005


Barómetro de Telecomunicações, Marktest, Junho 2006

Links
www.kidscape.org.uk
www.teenarrivealive.com
www.childlocate.co.uk
www.roadsafety.com
http://www.davisnet.com/drive/products/carchip_products.asp

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