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Departamento de psicologia
falcao.jorge@gmail.com
Dados que se mostraram relevantes ao longo dos últimos vinte anos de atividade
do propositor são revistos na discussão de dez mitos: 1. Construções falsas em
ciência podem ser substituídas por proposições verdadeiras. 2. A matemática está
no universo, independentemente da humanidade. 3. Matemática diz respeito a
números e contas. 4. “Matemática não é piolho, que dá na cabeça de todo mundo”.
5. A competência matemática está comprometida em crianças com afecções
neurológicas. 6. Na aprendizagem da matemática, primeiro vem o concreto, depois
o abstrato. 7. A aritmética vem necessariamente antes da álgebra. 8. O gênero é
uma variável sem valor na explicação das diferenças de desempenho em
matemática. 9. A afetividade é uma variável sem valor na explicação das
dificuldades de aprendizagem em matemática. 10. Em matemática, o
conhecimento prático é hierarquicamente inferior ao conceitual. Na abordagem de
cada um dos dez mitos analisados buscou-se estabelecer vínculos com a sala de
aula.
Considerações preliminares
É preciso desde já contextualizar a acepção com que é usado aqui o termo mito;
ao compulsar a definição dicionarizada (cf. Buarque de Hollanda, 1999) proposta
para tal termo, encontramos uma série de possibilidades semânticas das quais
destacamos e reproduzimos apenas uma: “Mito (do gr. mythos, lat. mythu):
“Imagem simplificada de pessoa ou de acontecimento, não raro ilusória, elaborada
ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu
comportamento”. Tal acepção do termo mito se coaduna com a idéia a que nos
referiremos em seguida, ao mencionar a simplificação, esquematização e
organização de crenças, elaboradas por grupos humanos e com papel marcante
em suas perspectivas, atitudes, representações e comportamentos. Muitos
construtos teóricos podem ser vistos a partir dessa perspectiva, notadamente por
seus críticos: simplificações ou interpretações indevidas de fenômenos complexos,
e que devem portanto ser contrapostas a perspectivas alternativas.
A partir desta perspectiva, propõe-se aqui o exame de dez mitos teóricos com os
quais me tenho confrontado nos últimos anos. Ao expô-los e comentá-los, não
tenciono fornecer ao leitor qualquer chave definitiva de acesso à verdade
essencial: esta seria uma postura mitificadora que é justamente discutida e
combatida na abordagem do primeiro dos dez mitos que passamos em seguida a
descrever e comentar.
A. Pedro tinha seis bolinhas de gude, aí perdeu duas no jogo para João; com
quantas bolinhas de gude Pedro ficou? 6 – 2 = 6 – 2 = 4
B. Pedro tinha um tanto de bolinhas de gude antes de começar a jogar com João,
aí ganhou duas no jogo para João e ficou com seis; com quantas bolinhas de gude
Pedro começou o jogo? + 2 = 6 6 – 2 = 4
Cabe examinar com atenção a idéia segundo a qual a educação matemática está
restrita a alguns alunos, pois isso tem conseqüências graves sob vários aspectos.
Proponho, como argumento central, que a cognição humana não pode ser
circunscrita ao pólo da individualidade. O indivíduo singular, com sua história e
corporeidade, tem sem dúvida importância crucial na explicação e gestão de
dificuldades escolares, mas o processo de construção de conhecimento, em sua
globalidade e complexidade, não pode ser entendido no vácuo da interação com
outros indivíduos, artefatos representacionais, situações concretas de
funcionamento. Em outras palavras, a cognição não faz sentido fora do contexto da
cultura e da história humanas (cf. Vigotski, 2001). Enfim, o conhecimento
matemático não pode ser circunscrito à esfera da dotação/equipamento individuais,
porque como mostram os próprios geneticistas, o fenótipo, enquanto atualização
do genótipo, abarca necessariamente contribuições do ambiente exterior ao
material genético. Assim, não é em absoluto pertinente estabelecer quem pode e
quem não pode aprender matemática, assim como qualquer outro conteúdo do
saber humano, na base de atributos individuais pretensamente impeditivos. Isto
nos leva portanto ao contra-enunciado seguinte:
O enunciado deste quinto mito tem relação com o mito anterior: matemática não é
para todos, e sobretudo não é para crianças neurologicamente comprometidas,
como é o caso daquelas apresentando problemas como epilepsia, transtorno do
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), e assim por diante. Na mesma linha do
contra-enunciado proposto para o mito anterior, cabe aqui se perguntar acerca da
pertinência de se estabelecer vinculação direta entre corticalidade (e suas
afecções) e desempenho cognitivo em geral (e em matemática, especificamente).
Izabel Hazin e colegas, ao revisar a literatura acerca dos comprometimentos
cognitivos apresentados por crianças epilépticas, mostrou o quanto esta afecção
extremamente comum leva a comprometimentos de processos cognitivos cruciais
para a atividade matemática: a atenção (capacidade de escolher focos de interesse
dentre estímulos e manter esta escolha por determinado tempo) e a
visuoespacialidade (capacidade de representar e operar mentalmente sobre
objetos bi e tridimensionais) (Hazin, 2006; Hazin, Leitão & Da Rocha Falcão, 2006).
Tais dificuldades relacionadas à visuoespacialidade estão na base de problemas de
crianças epilépticas em termos de processamento aritmético, conforme relatam
sub-tarefas específicas de instrumentos psicométricos de diagnóstico: tas crianças
aparentemente não conseguem lidar com o procedimento aritmético da adição com
reserva, cometendo erros sistemáticos. Dificuldades como essa são responsáveis
pela tradicional assimilação de crianças epilépticas ao grupo de crianças com
graves dificuldades de aprendizagem e comprometimento de desempenho
(incluindo fracasso) em matemática escolar (Hommet & colegas, 2005). Ora, um
exame mais acurado das dificuldades destas crianças, abrangendo a oferta de
auxílios mediacionais simples como a utilização de cores diversas para a
representação de unidades, dezenas e centenas conduz a uma perspectiva mais
clara acerca de tais dificuldades: sujeitos epilépticos que tiveram acesso a esse
simples recurso representacional conseguiram compensar suas dificuldades de
lidar com operações aritméticas. Isso mostrou que as dificuldades apresentadas
por estas crianças eram de natureza fundamentalmente procedural, relacionadas
ao comprometimento da coordenação visuoespacial que lhes dificultava a
ordenação (unidades embaixo de unidades, o mesmo para dezenas e centenas) e
execução do algoritmo da adição com reserva. Uma vez oferecido um suporte de
representação capaz de contornar esta dificuldade (a representação cromática de
unidades, dezenas e centenas), a operação foi executada sem dificuldades. Cabe
inclusive salientar o depoimento de um desses sujeitos, quando perguntado acerca
do que representavam as cores e como as mesmas haviam ajudado a acertar a
conta: “cada cor fica embaixo da mesma cor porque as cores representam coisas
diferentes: unidades, dezenas e centenas”.
Para Jerome Bruner, não há nenhum conceito que não possa ser ensinado a
qualquer aluno, em qualquer etapa do desenvolvimento, de forma
“epistemologicamente honesta” e “pedagogicamente eficaz” (Bruner, 2001). Para
esta perspectiva, o ensino não deve se limitar ao aguardo de patamares de
desenvolvimento ou prontidão cognitiva, mas deve se antecipar a tais patamares,
facilitando-os; este é o princípio teórico crucial subjacente à idéia de zona de
desenvolvimento proximal (ZDP) proposta por Vigotski (Vigotski, 2001).
Considerações finais
O debate naturalmente não cessa aqui, persiste intenso nesse ofício cooperativo
de tessitura de idéias. Tomara que daqui a mais vinte anos persista o ânimo da
interlocução, junto com a sensação que alguns poucos metros dessa montanha da
pesquisa acima foram galgados, mesmo que a própria montanha nesse ínterim
tenha crescido de mais algumas centenas de metros!
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