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CURSO DE SERVIÇO SOCIAL Documento de

Unidade Curricular de Introdução às Ciências Sociais Trabalho nº14


DOCENTE: TELMO H. CARIA DT14
Becker, Howard S. (1963, 1985), “La culture d’un groupe déviant: les musiciens
de dance”, in Howard S. Becker, Outsiders: études de sociologie de la
déviance. Paris: Ed. Métailié, pp.103-125. [traduzido por Micael Bernardino Lopes,
Maio de 2009]

A subcultura de um grupo desviante: os músicos de jazz

Embora os comportamentos desviantes sejam muitas vezes proibidos por lei, e


qualificados como atos criminosos ou delinquentes, nem sempre é assim que acontece.
Os músicos de jazz, cuja cultura vamos analisar neste e no próximo capítulo, são um
bom exemplo. As suas atividades estão dentro da lei, mas a sua cultura e o seu modo de
vida são suficientemente estranhos e não convencionais para que os membros mais
conservadores da sociedade os classifiquem como marginais (outsiders1).

Muitos grupos desviantes, entre os quais os músicos de jazz, permanecem estáveis


durante um longo período de tempo. Tal como todos os grupos estáveis, estes
desenvolvem o seu próprio modo de vida. Note-se que é necessário perceber esse modo
de vida para que se consiga analisar o comportamento de alguém que pertence a um
desses grupos.

Robert Redfield apresentou a seguinte definição de cultura [o seguinte conceito de


cultura], tal como é usada pelos antropólogos:

«Por cultura entendemos o acordo mútuo relativo a [costumes e] ideias


convencionais (tipificações) expressas nas ações e nos objetos que
caracterizam qualquer sociedade. É este acordo que determina os
significados dos atos e dos objetos. Estes significados são convencionais e,
portanto, culturais na medida em que se tornaram típicos dos membros da
sociedade através da intercomunicação que existe entre estes. Assim, uma

1 No Capítulo 1, página 15, do livro Outsiders. Studies in the Sociology of Deviance (The Free Press: New York) Howard S.
Becker refere o seguinte: «Tenho utilizado o termo “outsiders” para me referir a grupos de pessoas que são julgadas por
outros grupos de serem desviantes e de por isso se manterem fora do círculo dos membros “normais” da sociedade. Mas o
termo contém um segundo significado, cuja análise leva a um outro importante conjunto de problemas sociológicos:
“outsiders”, do ponto de vista da pessoa que é considerada como desviante, podem também ser os indivíduos que fazem as
regras que provocam o aparecimento do desviante, isto é, que fazem as regras que permitem identificar um indivíduo como
as tendo infringido.»

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cultura é uma abstração [não é algo imediatamente observável]: é o conjunto
das tipificações [conjunto organizado de comportamentos e ideias
convencionais] que adaptam e conformam as significações dos diferentes
membros da sociedade aos mesmos atos ou objetos. As significações
expressam-se através das ações, e do resultado das ações, a partir das quais
as inferimos. Podemos assim definir “cultura” como os limites dentro dos
quais os comportamentos convencionais dos membros da sociedade podem
variar sem deixarem de ser considerados como iguais por todos os
membros.»2

Hughes indicou que a perspetiva antropológica de cultura parece estar adaptada


sobretudo às sociedades homogéneas, tal como as sociedades primitivas estudadas pelos
antropólogos. Mas a ideia de cultura pode ser igualmente aplicada aos grupos étnicos,
religiosos, regionais ou profissionais que compõem uma sociedade moderna e
complexa. Cada um destes grupos possui um conjunto organizado de significados e
comportamentos específicos e, portanto, uma cultura.

«Uma cultura forma-se sempre que um grupo de pessoas possui uma vida
comum com um mínimo de isolamento em relação aos outros [grupo social
estável], uma posição semelhante na sociedade [semelhanças nas condições
de vida, do ponto de vista sócio-económico e sócio-cultural] e talvez um ou
dois inimigos comuns [partilha a mesma ameaça externa]. Isto acontece com
aqueles que, ao agarrar-se à heroína, partilham um prazer proibido, uma
tragédia e uma luta contra o mundo convencional; com os irmãos ou irmãs
que, ao enfrentar pais poderosos e arbitrários, constroem uma linguagem e
um conjunto de hábitos que lhes são semelhantes e que persistem mesmo
quando se tornam tão grandes e poderosos como eles; ou ainda, com os
estudantes de medicina que têm de enfrentar os mesmos cadáveres, os
mesmos exames, os mesmos doentes complicados, os mesmos professores e
os mesmos decanos»3.

Já foi muitas vezes sugerido que uma cultura aparece sempre que um grupo de
pessoas enfrenta o mesmo problema [partilha os mesmos conflitos e exigências
2 Robert Redfield, The Folk Culture of Yucatan (Chicago: University of Chicago Press, 1941), p. 132.
3 Everett Cherrington Hughes, Students' Culture and Perspectives: Lectures on Medical and General Education (Lawrence
Kansas: University of Kansas Law School, 1961) pp. 28-29.

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externos], na medida em que os membros desse grupo sejam capazes de interagir e de
comunicar uns com os outros4. Normalmente, as pessoas que participam em atividades
consideradas desviantes, deparam-se com o seguinte problema: a sua conceção daquilo
que fazem [a sua descrição do que fazem e do significado que atribuem ao que fazem]
não é partilhada pelos outros membros da sociedade. Os homossexuais pensam que a
sua vida sexual é normal, mas os outros não pensam assim. Os ladrões pensam que o
roubo lhes convém, mas mais ninguém pensa isso. Quando pessoas que participam em
atividades desviantes têm a possibilidade de interagir, são levadas a desenvolver uma
cultura construída em volta de problemas que surgem das diferenças entre a sua
definição daquilo que fazem e a que é aceite pelos outros membros da sociedade. Estas
pessoas desenvolvem uma conceção delas próprias e das suas atividades desviantes,
assim como das suas relações com os outros membros da sociedade. (Alguns actos
desviantes são, naturalmente, praticados na solidão e os seus autores não têm
oportunidade de desenvolver uma cultura. Um exemplo disso são os pirómanos ou os
cleptomaníacos5.) Por estas culturas funcionarem dentro da cultura da sociedade global,
mas distinguirem-se dela, são frequentemente denominadas de subculturas.

Os músicos de jazz6, cuja cultura (ou se se preferir subcultura) vou analisar neste
capítulo, podem ser simplesmente definidos como pessoas que tocam música popular
para ganhar a vida. Estes exercem uma profissão do sector de serviços e as
características da cultura em que participam derivam de problemas comuns dessas
profissões. No geral, as profissões do sector de serviços são diferentes das outras pelo
facto dos seus membros manterem um contacto mais ou menos direto e pessoal com o
consumidor final do produto do seu trabalho, ou seja, com o cliente a quem fornecem

4 Ver Albert K. Cohen, Delinquent Boys: The Culture of the Gang (New York: The Free Press of Glencoe, 1955); Richard A.
Cloward and Lloyd E. Ohlin Delinquency and Opportunity: A Theory of Delinquent Gangs (New York: The Free Press of Glencoe
1960); e Howard S. Becker, Blanche Geer, Everett C. Hughes, and Anselm L. Strauss, Boys in White: Student Culture in Medical
School (Chicago: University of Chicago Press, 1961).
5 Donald R. Cressey, «Role Theory, Differential Association, and Compulsive Crimes,» in Arnold M. Rose (editor) Human
Behavior and Social Processes: An Interactionist Approach (Boston: Houghton Mifflin Co, 1962) pp. 444-467.
6 Os músicos estudados por Becker eram principalmente brancos, como nos quis precisar o autor numa carta: «Na época em
que fiz a minha pesquisa, os meios dos músicos brancos e negros estavam, no essencial, separados. Os intérpretes dos dois
grupos raramente tocavam juntos. À excepção de Nova Iorque, nas grandes cidades existiam dois sindicatos dos músicos, um
reagrupando os brancos, o outro os negros (em Chicago, estes sindicatos uniram-se há cerca de dez anos). Toquei durante
um tempo com uma das raras orquestras mistas de Chicago, e uma parte das minhas observações assentava sobre os negros.
Os dados relativos às concepções do público, etc., não eram diferentes para os dois grupos, e acho que a organização que
fornecia trabalho aos negros era semelhante àquela que descrevi; no entanto eram distintas, já que a maior parte dos
compromissos estavam reservados a um ou ao outro grupo. Agora, isto mudou bastante.» (N.d.t.)

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um serviço. Como consequência, o cliente é capaz de orientar ou tentar orientar o
trabalhador na execução da sua tarefa e de o penalizar de diversas formas, desde uma
pressão informal ao abandono dos seus serviços.

As profissões do sector de serviços estabelecem uma ligação entre, de um lado, uma


pessoa cuja atividade a tempo inteiro está centrada nessa profissão e cuja personalidade
está de alguma forma envolvida nela, e de outro lado, pessoas cujo contacto com essa
profissão é muito mais ocasional. É inevitável que, por vezes, cada um pense de forma
diferente sobre como o serviço deve ser executado. Normalmente, os membros do sector
de serviços consideram que o cliente é incapaz de avaliar de forma autêntica o serviço
que eles executam e ficam extremamente irritados quando os clientes tentam controlar o
seu trabalho. Como resultado dão-se conflitos e hostilidades, os métodos de defesa
contra as interferências do exterior tornam-se uma preocupação para os membros desse
sector e em volta deste conjunto de problemas desenvolve-se uma subcultura.

Os músicos consideram que a única música digna de ser tocada é a que eles chamam
de «jazz», termo que pode ser parcialmente definido como a música que é produzida
sem referência a quaisquer exigências feitas pelos outsiders. No entanto, devem
suportar a permanente interferência na sua atuação por parte dos seus empregadores e
auditórios. Como vamos ver mais à frente, o problema mais angustiante que o músico
medíocre encontra ao longo da sua carreira resulta da necessidade de ter de escolher
entre uma carreira de sucesso e os valores artísticos que defende. Para ter sucesso tem
de «tornar-se comercial», isto é, tocar música de acordo com os gostos dos não músicos
para quem trabalha; mas ao fazer isso, sacrifica o respeito dos outros artistas musicais e
por conseguinte, na maioria dos casos, o seu amor-próprio. Normalmente, quando o
músico se mantém fiel aos valores artísticos que defende, fica condenado ao insucesso
na sociedade global. Os músicos auto-classificam-se de acordo com o nível de
cedências que fazem aos outsiders, isto é, numa escala que vai do músico de «jazz» ao
músico «comercial».

A partir daqui vou analisar os seguintes pontos: 1) A conceção que os músicos têm
deles próprios e dos não músicos para quem trabalham, e os conflitos que eles julgam
inerentes na relação entre ambos; 2) O consenso subjacente às reações dos músicos de
jazz e dos músicos comerciais a estes conflitos; 3) O sentimento de isolamento dos
músicos em relação à sociedade e a forma como se afastam do seu público e da

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comunidade. Os problemas que nascem das diferenças entre a definição que os músicos
atribuem ao seu trabalho e a que o seu público adota, podem ser considerados como um
exemplo característico dos problemas que os desviantes encontram quando contactam
com pessoas que possuem um ponto de vista diferente sobre as suas atividades7.

A pesquisa

Recolhi o material utilizado neste estudo por observação participante, ou seja, ao


partilhar o mesmo trabalho e tempos livres dos músicos. Já era pianista profissional há
alguns anos e pertencia aos meios musicais de Chicago, quando, em 1948 e 1949,
realizei este estudo. Era uma época em que vários músicos beneficiavam do G.I. Bill8, e
o facto de frequentar a universidade não me distinguia dos outros músicos. Ao longo
desta época trabalhei com várias orquestras de diferentes tipos e tirei imensas notas
sobre o que acontecia quando estava com outros músicos. A maioria das pessoas que
observei não sabia que eu estava a fazer um estudo sobre os músicos. Fiz poucas
entrevistas formais, agarrei-me principalmente a ouvir e a anotar as conversas normais
dos músicos. A maioria das minhas observações foi efetuada ao longo do trabalho, e até
no palco enquanto tocávamos. Também recolhi conversas úteis para a minha pesquisa
nos escritórios dos sindicatos locais, onde duas vezes por semana se encontravam
músicos à procura de trabalho e chefes de orquestras à procura de músicos.

O mundo dos músicos de jazz é bastante diferenciado. Alguns músicos trabalham


principalmente em bares e em cafés-concerto situados nos bairros periféricos ou no
centro da cidade. Alguns tocam com grandes orquestras em salões de baile e clubes
nocturnos. Outros não trabalham regularmente num lugar, mas trabalham com
orquestras que tocam em bailes privados e em festas de hotéis ou de clubes de campo.
Há ainda outros que tocam com orquestras de reputação nacional ou trabalham em
estúdios de rádio e de televisão. Em cada situação de trabalho, os músicos apresentam
problemas e atitudes que são, em parte, característicos desta. Trabalhei principalmente
em bares, cafés-concerto e, de longe a longe, com diferentes tipos de orquestras que se

7 Para outros estudos sobre músicos de jazz, ver: Carlo S. Lastrucci, «The Professional Dance Musician», Journal of
Musicology, III (Winter, 1941), pp. 168-172; William Bruce Cameron, «Sociological Notes on the Jam Session», Social Forces
XXXIII (December, 1954), pp. 177-182; e Alan P. Merriam and Raymond W. Mack, «The Jazz Community», Social Forces
XXXVIII (Mars, 1960), pp. 211-222.
8 Trata-se de um conjunto de disposições que oferecia bolsas de estudo para o ensino superior aos militares desmobilizados
depois de 1945. (N.d.T.)

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juntavam apenas para um ou alguns trabalhos. No entanto, tive contacto suficiente com
membros de outros grupos, em trabalhos ocasionais e nos sindicatos locais, para
testemunhar as suas atitudes e atividades.

Enquanto terminava esta pesquisa, trabalhei como músico em mais duas cidades:
numa pequena cidade universitária (Champaign-Urbana, em Illinois), e numa grande
cidade (Kansas City, no Missouri), embora mais pequena que Chicago. A diferença de
tamanho entre estas cidades faz com que apresentem grandes diferenças quanto à sua
organização do mercado da música. Para um músico, é muito mais fácil especializar-se
em Chicago. Tanto pode ser músico de salões de baile como trabalhar apenas em cafés-
concerto ou bares (tal como eu). Nas cidades mais pequenas, este tipo de trabalhos não
existe em quantidade suficiente; além disso, há proporcionalmente menos músicos na
população. Logo, um músico pode ser chamado para tocar em qualquer uma dessas
situações, seja porque não tem grandes opções ou porque o chefe da orquestra não tem
grande escolha entre os músicos disponíveis. Tirei poucas notas quando trabalhava
noutras cidades, mas nenhuma dessas experiências teria fornecido dados capazes de
modificar as conclusões a que cheguei a partir do material que recolhi em Chicago.

Os músicos e os «leigos»9

O conjunto de crenças relativo aos músicos e ao seu público é simbolizado pelo uso
da palavra «leigo», utilizada pelos músicos para designar quem não é músico. Este
termo é utilizado como substantivo e como adjectivo, e também se aplica a um tipo de
pessoa que possui uma qualidade de comportamento. Designa as pessoas que são o
oposto de tudo o que os músicos são, ou deveriam ser; refere-se também ao modo de
pensar, de sentir e de comportamento contrário àqueles que os músicos valorizam.

O músico considera-se como um artista que possui um dom misterioso, que por sua
vez o torna diferente das outras pessoas e que deveria impedir que estas exercessem
qualquer tipo de controlo sobre ele. Este dom não pode ser ensinado, quem não o possui
nunca poderá tornar-se membro do grupo. Segundo um trombonista: «Não consegues
ensinar alguém a ter ritmo. Ou o tem, ou não o tem, não se ensina.»

O músico considera que um outsider não lhe deve dizer, em circunstância alguma, o
que tocar ou como tocar. Na verdade, o elemento central do código de comportamento

9 O termo «leigo» aparece neste texto como tradução do termo «square», que pertence ao calão do jazz americano. (N. d. t.)

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entre colegas é a proibição de criticar ou mesmo de tentar influenciar outro músico
enquanto este toca. Se os músicos não toleram que os seus colegas interfiram na
execução do seu trabalho é impensável que o admitam quando é um outsider a fazê-lo.

Normalmente, os músicos acreditam que são diferentes e melhores do que as outras


pessoas, assim como que não devem ser submetidos ao controlo exercido pelos
outsiders em nenhum aspeto da sua vida e, especialmente, nas suas atividades artísticas.
Este sentimento de que pertencem a uma categoria particular de pessoas com um modo
de vida diferente está verdadeiramente enraizado, tal como indicam as observações
seguintes:

«Digo-te, os músicos são diferentes de toda a gente. Têm uma linguagem


diferente, um comportamento diferente e um aspeto diferente. Apenas são
diferentes dos outros, é tudo… É difícil sair do mundo da música, porque
sentes que és muito diferente das outras pessoas. Os músicos gozam de uma
vida exótica, um pouco como na selva. Quando começam, são apenas gajos
normais, que provêm de pequenas cidades, mas mudam quando entram
neste meio. É como uma selva, exceto que a selva deles é como um carro
sobrelotado. Se viveres neste meio durante muito tempo, tornas-te
completamente diferente. Ser músico é formidável. Nunca me irei
arrepender. Compreendo coisas que os leigos nunca vão compreender.»

Na sua forma extrema, esta conceção defende que só os músicos são suficientemente
sensíveis e não convencionais para satisfazer sexualmente uma mulher.

Ao sentir intensamente as suas diferenças, os músicos acreditam igualmente que não


são obrigados a adotar os comportamentos convencionais dos «leigos». Da ideia de que
ninguém pode dizer a um músico como este deve tocar, resulta a ideia de que ninguém
tem competência para lhe dizer como deve comportar-se na sociedade. Como
consequência, os comportamentos que ridicularizam as regras sociais convencionais são
bastante admirados. Existem histórias que revelam esta admiração por atividades
demasiado individualistas, espontâneas, perigosas; muitos dos mais célebres músicos de
jazz são conhecidos por serem «personagens», e as suas façanhas são contadas com
frequência. Por exemplo, um músico famoso ficou conhecido por ter fugido no cavalo
de um polícia que estava estacionado em frente ao bar onde trabalhava. O músico
medíocre gosta de contar histórias sobre os seus comportamentos não convencionais:

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«Tínhamos acabado de tocar num baile e, depois de terminar o trabalho,
fizemos as malas e entramos no nosso velho carro para voltar a Detroit.
Pouco depois de sairmos da cidade, o carro avariou. Tinha gasolina;
simplesmente não queria andar mais. Os rapazes saíram do carro e
rodearam-no enquanto se queixavam. De repente, alguém disse: “Vamos
incendiá-lo”. Logo a seguir, alguém pegou em gasolina do depósito,
espalhou-a à volta do carro e pegou fogo com um fósforo, e zás, o carro
começa a arder. Que história! O carro a arder, e os rapazes todos a gritar e a
bater palmas. Foi qualquer coisa!»

Este comportamento é mais do que uma idiossincrasia, é um valor essencial dessa


profissão, tal como indica a seguinte observação de um jovem músico:

«Sabes, os maiores personagens é que são os grandes heróis do mundo da


música. O gajo que tiver o comportamento mais maluco é o melhor, e mais
pessoas gostam dele.»

Como os músicos recusam submeter-se às convenções sociais, também não procuram


impô-las aos outros. Por exemplo, um músico declarou que a discriminação étnica é
injusta, já que cada um tem o direito de agir e acreditar como e no que quiser:

«Não gosto destes preconceitos racistas. As pessoas são o que são, mesmo
que sejam transalpinos, judeus, irlandeses, polacos, ou outra coisa qualquer.
Apenas os verdadeiros leigos dão importância à religião dos outros. Eu não
quero saber. Penso que cada um pode acreditar no que lhe apetecer. Claro
que, mesmo eu que nunca vou à igreja, não tenho nada contra quem vai. Se
gostas, não há nada a fazer.»

O mesmo músico criticou os comportamentos sexuais de um dos seus amigos, mas


defendeu que cada um tem o direito de decidir o que está certo e errado:

«O Eddie está sempre a meter-se com gajas, um dia vai destruir-se ou então
ser destruído por uma delas. E no entanto, tem uma mulher simpática, que
não merecia ser tratada assim. Mas pronto, isso é com ele. Se é assim que
quer viver, se é feliz assim, que continue.»

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Os músicos irão tolerar os comportamentos estranhos de um colega sem tentarem
castigá-lo ou impedi-lo. No próximo incidente, o comportamento incontrolado de um
baterista fez com que a orquestra perdesse um trabalho; no entanto, e mesmo furiosos,
os colegas emprestam-lhe dinheiro e evitam castigá-lo. Se o repreendessem, iriam
contra os seus costumes.

«Jerry: Quando lá chegamos, a primeira coisa que aconteceu foi o Jack não
ter bateria. Então, o dono foi de carro procurar uma bateria, mas entretanto
teve um acidente e partiu um guarda-lamas. Vi logo que tínhamos começado
mal. É que o patrão era um velho transalpino e ninguém o conseguia
enganar; dirigia uma casa de jogo e não aceitava que lhe mentissem. Então
ele perguntou ao Jack: “O que tencionas fazer sem bateria?” e o Jack
respondeu: “Tem calma, meu, vai correr tudo bem, acredita em mim.”
Fiquei com medo que o velho perdesse as estribeiras. Que maneira de falar
com o patrão! Quando se voltou, parecia que os olhos dele iam explodir. Já
sabia que depois disto não íamos ficar lá muito tempo. “Este baterista é
maluco?”, perguntou ele, ao que eu respondi: “Não sei, nunca o tinha visto.”
E tínhamos acabado de lhe dizer que estávamos juntos há 6 meses. Isto não
ajudou em nada. Claro que, quando o Jack começou a tocar, foi o fim. Tão
barulhento! E não tinha ritmo nenhum. Apenas utilizava o bombo para dar
intensidade. Não é assim que se toca bateria! Fora isso, era um bom
pequeno grupo… Era um bom trabalho. Podíamos ter ficado lá para
sempre… Bem, mas depois de termos tocado algumas músicas, o patrão
mandou-nos embora.
Becker: O que aconteceu depois de serem despedidos?
Jerry: O patrão deu 20 dólares a cada um e mandou-nos para casa. Como a
viagem de ida e volta custava 17 dólares, ganhámos 3 dólares. Três dólares,
meu Deus! Nem ganhámos isso, já que emprestámos sete ou oito dólares ao
Jack.»

Assim, os músicos consideram-se e consideram os seus colegas como pessoas que


possuem um dom especial, que por sua vez os torna diferentes dos outsiders e impede
que estes exerçam qualquer tipo de controlo, tanto nos seus desempenhos musicais
como no seu comportamento social.

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Por outro lado, o «leigo» não possui este dom particular, e não compreende a música
ou o modo de vida daqueles que o possuem. O «leigo» é considerado um indivíduo
ignorante e intolerante que é preciso temer, já que é este que lança as pressões que
forçam os músicos a tocar música sem valor artístico. As dificuldades do músico
residem no facto do «leigo» estar na posição de conseguir o que quer: se não gostar do
género de música que lhe é oferecido, não irá pagar uma segunda vez para a ouvir.

Ao não compreender a música, o «leigo» julga-a segundo critérios que são estranhos
para os músicos e pelos quais não têm qualquer respeito. Um saxofonista comercial
observou de forma sarcástica:

«Não importa aquilo que tocamos ou como tocamos. É tão simples, que
qualquer um conseguiria fazê-lo ao fim de um mês. O Jack toca o refrão no
piano, ou noutro instrumento qualquer, depois é acompanhado pelos
saxofones, ou outros instrumentos em uníssono. É muito fácil. Mas as
pessoas não querem saber. Desde que ouçam o baterista, ficam felizes.
Quando ouvem a bateria, sabem que devem colocar o pé direito à frente do
esquerdo e o pé esquerdo à frente do direito. E se conseguirem ouvir e
assobiar a melodia ao mesmo tempo, também ficam felizes. O que poderiam
querer mais?»

O próximo diálogo mostra a mesma atitude:

«Joe: Se descesses do palco e caminhasses pelo corredor, alguém dir-te-ia:


“Gosto muito da sua orquestra, jovem.” Só porque tocaste de uma forma
suave e o acompanhamento do tenor foi bom ou algo parecido, os leigos
adoram isso.
Dick: Aconteceu o mesmo comigo quando trabalhava no Clube M. Todos os
jovens com quem andei no liceu apareciam lá e adoravam a orquestra… Era
uma das piores orquestras em que trabalhei, mas todos acreditavam que era
uma excelente orquestra.
Joe: Oh, claro, são apenas um bando de leigos.»

Para os músicos, o comportamento do «leigo» é sempre o mesmo em todos os


aspetos; parece que faz tudo errado; é completamente ridículo. Por seu lado, o músico,
que é exatamente o oposto, é reconhecido pela mais pequena coisa que faça. Os músicos

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divertem-se muito a observar os «leigos». Todos conhecem histórias sobre as
palhaçadas dos «leigos». Houve alguém que chegou mesmo ao ponto de sugerir que os
músicos deveriam trocar de lugar com as pessoas que estão sentadas no bar do café-
concerto onde trabalhava; afirmava que essas pessoas eram mais engraçadas e divertidas
do que o que ele conseguia ser. Todos os detalhes de vestuário, de conversa e de
comportamento que diferem daqueles dos músicos são interpretados como novas provas
da falta de sensibilidade e da ignorância própria do «leigo». Uma vez que os músicos
possuem uma cultura esotérica, há imensos testemunhos deste género que servem
apenas para consolidar a sua convicção de que músicos e «leigos» são duas categorias
de pessoas diferentes.

Mas o músico também teme os «leigos», pois sabe que as pressões que o leva a tocar
de forma comercial são feitas por eles. É a ignorância que os «leigos» apresentam em
relação à música que força o músico a tocar o que este considera ser música fraca, para
ter sucesso.

«Becker: O que achas das pessoas para quem tocas, do teu público?
Dave: São chatos.
Becker: Porque dizes isso?
Dave: Bem, se estiveres a trabalhar numa orquestra comercial, eles gostam e
então tens que tocar mais músicas banais. Se estiveres a trabalhar numa boa
orquestra e eles gostarem, também é chato. Detestas tudo neles, porque
sabes que não percebem nada de música. São apenas uns grandes chatos.»

Esta última apreciação revela que, mesmo aqueles que tentam evitar tornar-se
«leigos» também são considerados como tal, porque lhes falta a compreensão adequada
que apenas um músico pode ter – «não percebem nada de música». Portanto, uma
pessoa que seja fã de jazz não é mais respeitada que os outros «leigos». Gosta de jazz
sem o perceber e age exatamente como os outros «leigos». Pede músicas e tenta
influenciar a atuação dos músicos, exatamente como os outros «leigos».

Assim, o músico considera-se um artista criativo que deveria estar livre de todo o
controlo exercido por alguém que não pertence ao meio musical e que é uma pessoa
diferente e superior a todos esses outsiders que ele chama de «leigos», pois estes não
percebem a sua música nem o seu modo de vida. No entanto, é devido a eles que tem de
tocar de uma maneira que vai contra os seus ideais profissionais.

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Reacções ao conflito com o público

No essencial, os músicos de jazz e os músicos comerciais concordam quanto à


atitude que devem tomar perante o público, mas distinguem-se quanto à forma como
expressam esse consenso básico. A base deste acordo está no conflito entre dois temas:
1) os músicos desejam exprimir-se livremente, em conformidade com as convicções do
seu grupo; 2) reconhecem que as pressões exercidas pelos outsiders podem força-los a
não satisfazer esse desejo. O primeiro tema tende a ser focado pelo músico de jazz e o
segundo pelo músico comercial; mas ambos reconhecem e sentem a força dos dois. Os
dois tipos de músicos mostram, pelas suas atitudes, que têm um grande desprezo e
antipatia pelos «leigos», que são os responsáveis pela necessidade dos músicos tocarem
música comercial para ter sucesso.

O músico comercial, apesar de considerar que o seu público é composto por


«leigos», decide sacrificar o seu amor-próprio e o respeito dos outros músicos (que
constituem a recompensa de um comportamento verdadeiramente artístico) pelas
recompensas mais substanciais de um trabalho regular, de um salário mais elevado e do
prestígio que os músicos que tocam música comercial desfrutam. Um destes músicos
observou:

«Ainda por cima, as pessoas aqui são fixes. Claro que são leigos, não digo o
contrário. É verdade, são o raio de um bando de leigos, mas quem é que
paga os bilhetes? São eles e, por isso, deves tocar o que eles quiserem. O
que quero dizer, merda, é que se não tocares para os leigos não consegues
ganhar a vida. Quantos raios destes gajos não são leigos? Deverias ficar
feliz se em 100 pessoas, 15 não o fossem. Talvez alguns com profissões
liberais (médicos, advogados, pessoas assim) não sejam leigos; mas o gajo
medíocre não é mais que o raio de um leigo. Naturalmente as pessoas do
espetáculo não são assim. Mas fora deste e das profissões liberais, são todos
uns raios de leigos10. Não sabem nada. Olha, há uma coisa que aprendi há
mais ou menos três anos. Se queres ganhar dinheiro tens de agradar os
leigos, são eles que pagam os bilhetes e é para eles que tens de tocar. Um
bom músico não consegue encontrar uma porcaria de trabalho. Tens de
tocar um monte de merdas. Mas é preciso encarar as coisas de frente. Eu

10 A maioria dos músicos não admitiria essas excepções.

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quero viver bem. Quero ganhar dinheiro. Quero ter um carro. Quanto tempo
consegues lutar contra isso?... Ouve bem o que te digo: se puderes ganhar
dinheiro a tocar jazz, perfeito. Mas quantos gajos o conseguem fazer?... É
como te digo, se puderes tocar jazz, perfeito. Mas se tens uma porcaria de
trabalho, não vale a pena lutares contra isso, mais vale tocares música
comercial. São os leigos que te pagam, então o melhor é habituares-te, é a
eles que tens de agradar.»

Note-se que o músico admite que é mais «respeitável» ser independente dos «leigos» e
expressa algum desprezo pelo seu público, que acredita ser o responsável por toda a
situação.

Este género de músicos define o problema principalmente em termos económicos:

«Se tocas para um monte de leigos, então merda, tocas para um monte de
leigos. O que é que podes fazer quanto a isso? Não a consegues enfiar
dentro das suas cabeças. E mesmo se pudesses, depois de tudo, são eles que
te pagam.»

Os músicos de jazz também sentem a necessidade de satisfazer o seu público, mas


mantêm que não se lhe deveria ceder. Apreciam os empregos estáveis e bem pagos tanto
como os outros e sabem que, para os obter, têm de satisfazer o seu público. O próximo
diálogo entre dois jovens músicos mostra isso mesmo:

«Charlie: Não há empregos em que possas tocar jazz; tens de tocar rumbas e
músicas populares ou outra coisa qualquer. Não consegues tocar jazz em
lado nenhum, meu amigo. E eu não quero passar a minha vida lutar contra
isso.
Eddie: Queres divertir-te, não é? Tocar música comercial não é o que te
agrada, sabes bem.
Charlie: Acho que não há forma de um verdadeiro músico de jazz ser feliz.
É verdade que é chato tocar música comercial, mas para um músico de jazz
é ainda mais chato não tocar coisa alguma.
Eddie: Meu Deus, porque é que não se pode ter sucesso a tocar jazz… Quer
dizer, podias ter uma boa pequena orquestra e mesmo assim tocar alguns
arranjos, mas apenas bons arranjos, estás a ver.

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Charlie: Nunca encontrarás trabalho para esse tipo de orquestra.
Eddie: Bem, mas podias arranjar uma miúda sexy que cantasse e abanasse o
rabo à frente dos leigos. Assim conseguias encontrar trabalho. E podias
tocar jazz quando ela não estivesse a cantar.
Charlie: Por acaso a orquestra do X não era assim? Gostavas dela? Gostavas
da forma como a miúda cantava?
Eddie: Não, meu amigo, mas tocávamos jazz, percebes.
Charlie: Gostavas do estilo de jazz que tocavas? Era comercial, não era?
Eddie: Yah, mas poderia ter sido fantástico.
Charlie: Mas se tivesse sido fantástico, não teriam continuado a trabalhar.
Acho que vamos ser sempre infelizes. É mesmo assim. Nunca vamos estar
satisfeitos. Nunca vai haver um trabalho verdadeiramente bom para um
músico.»

Para além da necessidade de agradar ao público, que resulta do desejo que os


músicos têm de aumentar os seus rendimentos, existem pressões mais diretas.
Normalmente, é difícil manter uma atitude independente. Por exemplo:

«Ontem à noite, toquei com o Johnny Ponzi num casamento italiano no


bairro sudoeste. Tocamos os arranjos especiais que eles utilizam, que não
são nada do estilo comercial, durante meia hora. Então, um velho italiano
(sogro do noivo, como viemos a descobrir depois) começa a gritar: “A vossa
música não presta, é má, toquem mas é polcas ou música italiana”. O
Johnny tenta sempre evitar o inevitável nestes casamentos, e não toca
música popular durante o maior tempo possível. “E se tocarmos agora
algumas dessas cenas para acabar, meu amigo?”, disse eu. Ao que o Tom
respondeu: “Se começarmos, tenho medo de termos de passar o resto da
noite nisso.” O Johnny disse: “Ouve Howard, o noivo é muito fixe, disse-
nos para tocarmos o que quiséssemos e para não darmos atenção ao que as
pessoas dizem, por isso não te preocupes.”
O velho continuou a gritar e o noivo acabou por vir ter connosco e disse:
“Ouçam, eu sei que não querem tocar essas merdas e não vos quero obrigar
a isso, mas é o meu sogro, estão a ver? O problema é que não quero que a
minha mulher passe vergonha por causa dele; por isso toquem alguma

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música italiana para que ele se mantenha tranquilo, pode ser?” O Johnny
olhou para nós e fez um gesto de resignação.
E depois disse: “Está bem, vamos tocar a Beer Barrel Polka”, e o Tom
disse: “Oh, que seca, mas vamos lá.” Tocamos essa polca e, logo depois,
uma dança italiana, a tarantela.»

Às vezes o empregador exerce uma pressão tão grande que faz com que um músico
pouco habituado a ceder tenha de desistir, pelo menos durante esse trabalho.

«Toquei a solo durante toda a noite no Y, na rua X. Que seca! Na segunda


música, Sunny Side, toquei o refrão e depois um pouco de jazz. De repente,
o patrão inclinou-se por cima do bar e gritou: “Beijo-te o rabo se alguém
aqui souber que melodia estás a tocar.” E toda a gente da sala o ouviu como
eu. Que leigo! O que é que podia fazer? Nem sequer respondi, limitei-me a
continuar a tocar. Foi mesmo uma grande seca.»

De forma algo inconsequente, o músico quer sentir que está a conseguir chegar ao
seu público e que estes estão a retirar algum prazer do seu trabalho, o que também faz
com que ceda aos seus pedidos. Um músico disse:

«Prefiro tocar quando há alguém a quem me possa dirigir. Quase pensas que
não faz sentido tocar se não estiver alguém a ouvir-te. Acredito que a
música é, antes de tudo, feita para isso, para que pessoas a ouçam e retirem
daí algum prazer. É por isso que não me importo muito de tocar música de
mau gosto; se alguém gostar dela, fico de certa forma exaltado. Se calhar
sou um bocado falso, mas é assim que gosto de fazer as pessoas felizes.»

Esta afirmação é um tanto excessiva. Mas a maioria dos músicos partilha este
sentimento com intensidade suficiente para querer evitar a antipatia activa do seu
público:

«É por isso que gosto de trabalhar com o Tommy. Pelo menos, quando
desces do palco, ninguém te detesta. É chato trabalhar quando toda a
audiência detesta a orquestra.»

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Isolamento e auto-segregação

Os músicos são hostis com o seu público e receiam ter de sacrificar os valores
artísticos que defendem por causa dos «leigos». As tendências de isolamento e de auto-
segregação que os músicos manifestam no seu trabalho e nas suas relações com a
comunidade exterior podem ser interpretadas como uma forma de se ajustarem a essa
situação. A função essencial destes comportamentos é proteger o músico das
interferências do público «leigo» e, por extensão, da sociedade convencional. A sua
principal consequência é o reforçar do estatuto do músico como outsider, através do
efeito de um ciclo de desvio crescente. As dificuldades que surgem nas relações com os
«leigos» levam o músico a aumentar o seu isolamento que por sua vez aumenta a
probabilidade de dificuldades posteriores.

Como regra geral, os músicos estão espacialmente isolados do público. Trabalham


em cima de um palco que constitui uma barreira física, que torna quase impossível que
estes interajam diretamente. Os músicos apreciam este isolamento, pois consideram que
o auditório, composto por «leigos», é potencialmente perigoso. Receiam que um
contacto direto com o público resulte em interferências por parte deste na sua
performance musical. Como consequência, consideram que o mais seguro é ficarem
isolados e não ter qualquer tipo de relação com o auditório. Um músico comentou da
seguinte forma uma situação em que não estavam isolados:

«Há outra coisa sobre casamentos: estás a pisar o mesmo chão, mesmo no
meio das pessoas e não consegues escapar-lhes. É diferente se tocares num
baile ou num bar. Num salão de baile estás em cima de um palco e as
pessoas não conseguem aproximar-se de ti. O mesmo acontece num bar de
luxo, onde estás em cima de um palco por trás do balcão. Mas num
casamento estás mesmo no meio delas, meu amigo.»

Quando os músicos, como é habitual, não dispõem de barreiras físicas que os


separam do seu público, normalmente improvisam e isolam-se de forma eficaz do seu
auditório.

«No domingo à noite toquei num casamento judeu. Quando cheguei, os


rapazes já estavam lá. A cerimónia do casamento foi um pouco tarde e as
pessoas tinham acabado de começar a comer. Depois de ter falado com o

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noivo, decidimos tocar durante o jantar. Instalamo-nos num dos cantos mais
distantes da sala. O Jerry deslocou o piano, para fechar um pequeno espaço
que assim ficava isolado do resto das pessoas. O Tony instalou a sua bateria
nesse espaço, e o Jerry e o Johnny ficaram lá enquanto tocávamos. Queria
deslocar o piano para que os rapazes se pudessem colocar à frente e
aproximar-se do auditório, mas o Jerry disse, meio a brincar: “Não. Preciso
estar protegido dos leigos, meu amigo.” Então deixamos as coisas como
estavam. O Jerry mudou-se para a frente do piano, mas novamente meio a
brincar, colocou duas cadeiras à sua frente, que o separavam do auditório.
Quando um casal pegou nas cadeiras para se sentarem, o Jerry substitui-as
por outras. “E se nos sentássemos nestas cadeiras?” propôs o Johnny. Ao
que o Jerry respondeu: “Não. Deixa-as aqui meu amigo, é a minha barreira
para me proteger dos leigos”.»

Muitos músicos evitam deliberadamente estabelecer um contacto com o seu


auditório. Normalmente, quando se deslocam entre os «leigos» evitam encontrar o seu
olhar, com receio de assim estabelecerem um contacto que depois lhes permitiria
pedirem certas músicas ou tentar influenciar a sua performance musical de outra forma
qualquer. Alguns músicos alargam este modo de comportamento às suas atividades
sociais, fora das situações de trabalho. Em certa medida, isto é inevitável já que as
condições de trabalho (horário tardio, grande mobilidade geográfica, etc) dificultam a
sua participação em atividades sociais fora da sua profissão. Quando se trabalha
enquanto outras pessoas dormem, é difícil manter relações sociais com estas. Um
músico que deixou a sua profissão invocou a seguinte razão, para explicar o seu
abandono: «E também é formidável trabalhar em horários regulares e de poder
encontrar pessoas, em vez de ir trabalhar todas as noites.» Alguns músicos mais novos
queixam-se que com os seus horários é difícil estabelecer contactos com miúdas «boas»,
porque não os deixam ter um encontro a horas convenientes.

Mas uma grande parte da auto-segregação desenvolve-se a partir da hostilidade que


existe para com os «leigos». A forma extrema desta atitude encontra-se no «Grupo da
avenida X», que é constituído por músicos de jazz de vanguarda que rejeitavam
totalmente a cultura americana. A natureza dos seus sentimentos em relação ao mundo
exterior ficou indicada no título pessoal que um dos seus músicos deu em privado ao
seu tema musical «Se não gostam das minhas maneiras esquisitas, vão para o raio que

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vos parta». A composição étnica do grupo confirmava que a adoção de uma atitude
radical sobre o plano artístico e social por parte destes constituía um dos aspetos da sua
rejeição total da sociedade americana. Com raras exceções, os seus membros
descendiam dos grupos de imigrantes mais antigos e completamente assimilados:
irlandeses, escandinavos, alemães e ingleses. Para além disso, pensava-se, que alguns
deles vinham de famílias ricas e pertenciam às classes superiores. Em suma, a sua
reprovação de uma atitude comercial na música e dos «leigos» na vida social, constituía
uma parte da rejeição de toda a cultura americana por homens incapazes de se adaptar
de uma forma satisfatória à posição privilegiada que beneficiavam.

Os interesses deste grupo realçavam o isolamento dos seus membros em relação às


normas e aos interesses da sociedade normal. Estes membros conviviam quase
exclusivamente com outros músicos e mulheres que cantavam ou dançavam em clubes
nocturnos no bairro de North Clark em Chicago; não mantinham qualquer contacto com
a sociedade normal. Os seus sentimentos políticos eram descritos da seguinte forma:
«Detestam totalmente esta forma de governo e acham-na radicalmente má.» Criticavam
incessantemente o mundo dos negócios e o mundo do trabalho; desiludidos em relação
às estruturas económicas, eram cínicos com a política e os partidos políticos
contemporâneos. Rejeitavam completamente a religião e o casamento, como também a
cultura americana popular ou sábia, e a sua leitura limitava-se a autores e filósofos de
vanguarda mais esotéricos. Na arte e na música sinfónica interessavam-se apenas pelos
desenvolvimentos mais herméticos. Em cada caso, eram rápidos a mostrar que os seus
gostos não eram os mesmos dos da sociedade normal e que, por isso, eram diferentes
desta. Pode-se admitir de forma razoável que a função principal dos seus gostos era
sublinhar essa diferença.

Apesar do isolamento e da auto-segregação encontrar a sua forma mais extrema no


meio do «Grupo da avenida X», também poderiam ser encontrados nos músicos menos
desviantes. Normalmente, o sentimento de estar isolado do resto da sociedade era muito
forte. A próxima conversa entre dois jovens músicos de jazz mostra duas reacções a este
sentimento de isolamento:

«Eddie: Detesto as pessoas, sabes. Não aguento estar entre os leigos.


Chateiam-me tanto que não os aguento.

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Charlie: Não sejas assim. Não os deixes chatearem-te. Goza-os. É o que eu
faço. Goza com tudo o que eles fazem, é a única forma de os aturar.»

Um jovem músico judeu, que definitivamente se identificava com a comunidade


judaica, sentia este isolamento profissional com força suficiente para se exprimir desta
forma:

«É algo perigoso ter um pouco mais de conhecimento, sabes. Foi o que


aconteceu comigo quando comecei a tocar. Tinha a impressão que sabia
muito. Tinha a impressão que todos os meus amigos do bairro eram
verdadeiros leigos, estúpidos… É engraçado que quando estás neste palco
sentes-te muito diferente dos outros, sabes… Ao ponto de conseguir
compreender o que os gentios sentem em relação aos judeus. Vês essas
pessoas a aparecer e parecem judeus, porque têm uma pequena pronúncia ou
outra coisa qualquer, e pedem uma rumba ou algo parecido, e eu penso logo:
“Que raio de leigos, estes judeus”, exatamente como se eu próprio não fosse
judeu. É nisto que penso quando digo que se aprendem muitas coisas ao
tornar-se músico. Ou seja, como músico vês imensas coisas e adquires um
ponto de vista tão vasto sobre a vida, que simplesmente escapam ao
indivíduo medíocre.»

Numa outra ocasião, o mesmo músico observou:

«Sabes, desde que deixei de trabalhar, tornei-me capaz de falar com alguns
gajos do bairro.»
[«Queres dizer que antes tinhas problemas em falar com eles?»]
«Sim, ficava ali plantado sem saber o que dizer. Fico sempre sóbrio quando
falo com estes gajos. Tudo o que eles dizem parece-me estúpido e
desinteressante.»

O processo de auto-segregação é evidente em certas expressões simbólicas, em


particular no uso de um calão da profissão, o que permite identificar rapidamente o
utilizador competente como não sendo um «leigo», e de também reconhecer
rapidamente o outsider que o utiliza de forma incorreta ou não o utiliza de todo.
Algumas expressões acabaram por se aplicar às atitudes e aos problemas profissionais
característicos dos músicos, sendo o termo «leigo» um exemplo disso mesmo. Tais

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palavras permitem aos músicos discutir problemas e atividades para os quais a
linguagem normal não fornece terminologia adequada. No entanto, existem muitas
palavras que simplesmente substituem expressões mais comuns, sem acrescentar
qualquer significado suplementar, como por exemplo todos os sinónimos de dinheiro ou
de marijuana.

Um jovem músico que estava prestes a deixar a profissão mostrou qual era a função
destes comportamentos:

«No entanto, estou muito feliz por deixar esta profissão. Estou cansado de
estar com os músicos. Existem tantos rituais e cerimónias estúpidas. É
preciso usar uma linguagem especial, vestir-se de forma diferente, trazer
óculos diferentes. E isto tudo apenas para dizer: “Nós somos diferentes”.»

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