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Regina Fernandes1
Introdução
A Teologia da Libertação
As Teologias da Libertação ainda atuam hoje como voz das minorias sociais. Como tais,
continuam sendo tachadas de radicais devido às lutas e militâncias que empreende no contexto
latino-americano e ao uso instrumental da análise marxista para a compreensão da situação
1
Teóloga Latino-americana. Mestrado em Teologia e Práxis (FAJE), mestrado em missiologia, especialização
em História e Cultura Afro-brasileira e Indígena. Coordenadora editoral da Editora Saber Criativo
(www.editorasabercriativo.com.br) e presidente da FTL – Fraternidade Latino-americana. Autora dos livros
Introdução às Teologias Latino-americanas, Teologia Viva, Teologia da Igreja e outros.
socioeconômica da América Latina. De acordo com Samuel Escobar isto tornou-a, de certo
modo, intransigente, ainda que muitas vezes se deve, conforme ele, “à imersão em um mundo
de necessidade e conflito”.2 Para Batista Libânio, é comum a crítica à TdL em relação à essa
radicalidade e ao emprego que ela decidiu fazer da análise marxista, no entanto, ele esclarece
que ela não é apropriada em seu todo, mas somente aqueles elementos que contribuem para um
entendimento correto da situação social da América Latina. Para Libânio não há “nenhum voto
de fidelidade à ortodoxia marxista”, mas um uso completamente instrumental. E, quanto ao que
ele chama de “projeto revolucionário socialista”, que abriga a utopia marxista, não é de todo
compartilhado pela TdL. Ele ainda esclarece que “A sociedade futura não está já definida, mas
vai sendo construída a partir das aspirações, condições reais, ações concretas já em curso de
nosso povo cristão latino-americano”3. Em concordância com ele, de fato, nenhuma ideologia
é suficientemente completa ou adequada para responder ao contexto latino-americano ou a
qualquer contexto social contemporâneo, o que não impede seu uso instrumental como auxílio
para a compreensão da realidade. Importante, porém, sempre tê-las sob a devida suspeita a fim
de que a teologia não se torne uma mera representação ideológica delas.
A TdL se mantém vigente na atualidade, tanto por meio das diversas teologias
libertadoras caracterizadas pelas militâncias contemporâneas: Teologia Negra, Teologia
Feminista ou de Gênero, Teologia Indígena, etc., como por meio de sua ênfase no pobre e
oprimido, presente em muitas teologias na América Latina, principalmente no meio acadêmico.
O pobre, seu lócus (lugar) teológico prioritário, não deixou de existir no contexto social latino-
americano. Há ainda em nosso continente uma maioria que é privada de recursos mínimos para
uma vida digna e uma minoria que esbanja riquezas. A melhoria das condições de vida não foi
para todos e nem em todos os lugares. Há muita pobreza na América Latina, as culturas dos
nossos povos ainda não se tornaram forma da expressão do nosso culto a Deus, há corrupção
no meio político em todas as suas representações, inclusive no âmbito religioso etc. Enquanto
houver relações de poder abusivas, dominações, empobrecimento das massas e novas formas
de opressão, aquelas teologias que levantam sua voz profética e denunciadora das injustiças em
nossas sociedades sempre serão necessárias e relevantes.
2
ESCOBAR, Samuel. La Fe Evangelica y las Teologias de la Liberación. El Paso: Casa Bautista de
Publicaciones, 1987. P. 91. Tradução própria.
3
LIBÂNIO. João Batista. Teologia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1987. P. 277.
A Teologia da Missão Integral
Na América Latina destes anos o labor teológico tem acumulado uma extensa
bibliografia, especialmente com a aparição de uma teologia da libertação,
muito da qual tem sido traduzido para outros idiomas [...].
Ainda com um impacto menor, um processo similar ao da teologia da
libertação tem se dado ao mesmo tempo no contexto do movimento
evangélico, com a Fraternidade Teológica latino-americana (FTL), sua
produção literária é todavia limitada, porém é indiscutível que a FTL, tem
exercido uma influência que vai muito mais além das fronteiras do continente
latino-americano.5
A intenção original do movimento era ser uma inspiração para um novo entendimento
e projeto de missão, o que não é possível de ser feito sem se repensar a teologia que subsidia a
ideia de missão e fornece seu conteúdo. Certamente, a Missão Integral gerou uma nova
concepção de missão da Igreja, não reduzida à proclamação oral do evangelho, mas que busca
abranger os âmbitos diversos da vida, todavia, para isso, propôs em seu conjunto e de modo
consequente, uma nova maneira de fazer teologia, como um resultado inevitável do processo
histórico que o movimento empreendeu.
4
Há formas de TdL - Teologia da Libertação em outras partes do mundo, como a Teologia Africana, Teologia
Asiática, etc. Ver sobre isso em SANCHES, Regina Fernandes. Teologia da Missão Integral. São Paulo:
Reflexão, 2008.
5
PADILLA, C. René. La explosión teológica en el Tercer Mundo. In.: Iglesia e Mision. Buenos Aires:
Fundación Kairós. http://www.kairos.org.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=1431. Acesso em
29/10/2014. Tradução própria.
evangélico ela reafirmou a evangelização, agora de modo integral. A centralidade das Escrituras
lida a partir do contexto, a salvação em Jesus Cristo que alcança toda vida no mundo, a atuação
reconciliadora e vivificadora do Espírito Santo como, enfim, são todos aspectos de caráter
teológico e caracterizáveis da Missão Integral. Desde então, vários projetos sociais, eclesiais e
evangelizadores em toda a América Latina adotaram a MI como referencial teológico e
orientação missional em construção, ainda que ela não fosse apresentada formalmente como
uma teologia, mas sim como um movimento, uma influência, uma inspiração.
6
Consta no Estatuto da FTL Continental.
Levado ao campo teológico, esta mesma inquietação germina a proposta de
uma “teologia latino-americana” – feita a partir de nossa situação histórica
concreta – que constitui o projeto teológico da FTL7.
O propósito originário era de que fosse uma teologia naturalmente contextualizada, não
somente na realidade cultural e sócio-histórica latino-americana, mas na fé evangélica conforme
vinha se configurando na América Latina. O movimento de Missão Integral tornou-se então o
momento histórico inicial do seu percurso metodológico no que eles chamavam de “labor
teológico”, como aquele que a suscita, alimenta-a e dá a ela forma e diferencial, mantendo-a
com os olhos na realidade concreta em missão. Por outro lado, a teologia da Missão Integral
surge nesse transcurso como sua consciência crítica e de ordenação teórica. Ela assume o olhar
para a realidade na realização da missão buscando compreendê-la no diálogo disciplinar, olha
também para a história de modo avaliador e crítico, empenha-se por discernir o ponto de vista
da missão, realiza a leitura contextual da Bíblia e induz à sua ressignificação e atualização nos
tempos mantendo-a vigente enquanto saber da fé que gera missão. Todavia, como teologia, será
colocada a ela a questão da sua possibilidade epistemológica. Neste caso, é preciso verificar
como ela se faz, como se constrói esse saber teológico, visto que já comprovou sua validade e
vitalidade como saber prático.
Na discussão acerca da teologia, cabe também pensar sobre seu agente, o teólogo e a
teóloga da TMI. No caso da TdL, Leonardo e Clodovis Boff alertaram que o teólogo deve
possuir, de antemão, um vínculo com a prática concreta, afinal, “Ser teólogo não é manipular
métodos, mas estar imbuído do espírito teológico”. Para eles, o comprometimento com o pobre
7
Ibidem.
constitui-se um “momento pré-teológico” que exige do teólogo a conversão de vida e de classe.
8 Antes de ser um pensador ele é militante posicionado junto às frentes de resistência e luta
contra os poderes empobrecedores da realidade latino-americana.
Para o teólogo e a teóloga da Missão Integral as exigências não são diferentes, no sentido
de que necessitam estar contextualizados por meio da ação missional/pastoral para produzirem
uma teologia que seja contextual. Além de estar situados nas demandas e linguagens do
contexto em que missionam devem ser solidários a ele assumindo-o como seu lugar teológico.
Também representam a comunidade teologal e a servem principalmente por meio do conteúdo
que produzem, subsidiando teoricamente sua prática. Falar da Missão Integral, nesta
perspectiva, não torna alguém teólogo do movimento, é preciso fazer Missão Integral para
produzir a teologia do Movimento a partir dele. Alguns pontos, todavia, são necessários de ser
considerados em função disto:
8
BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como Fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 42.
9
MACKAY, John Alexander. Prefácio à Teologia Cristã, México: Casa Unida de Publicaciones; Buenos Aires:
La Aurora, 1957. P.33.
campo de missão. Tais teólogos e teólogas atuam na grande esfera da Igreja como comunidade
missional e teologal, como tal, pensam a missão pela qual ela responde, dando-lhe novos
significados na atualidade. O contexto é a realidade concreta na qual a Igreja vive e atua, tanto
nos lugares onde ela está situada e missiona, como naqueles mais longínquos para onde envia
seus agentes de missão. Todavia, a missão é sempre dela como comunidade enviada por Jesus
Cristo (Mt. 28.19-20) e seu escopo é o mundo todo e toda a realidade que ele abarca.
Teologia em caminho
A TMI é uma teologia do caminho, que se faz entre os povos e em amor solidário para
com eles. Mas se funda também no amor pelo mundo, em sua totalidade, como criação de Deus.
Neste caso, o teólogo e a teóloga são pessoas que se reconhecem criaturas que vivem em um
mundo que requer ser cuidado. Nele, não podem estar posicionados em arquibancadas ou
marquises como alguém que vislumbra de longe, de modo fosco e nublado, os problemas das
multidões. O método científico moderno requereu o distanciamento do pesquisador de seu
objeto de estudos, a fim de que pudesse verificá-lo sem o comprometimento pessoal, com a
devida isenção analítica. A Teologia Latino-americana em geral assume metodologicamente os
riscos do comprometimento, do envolvimento com a realidade concreta, e a TMI o faz por meio
da missão. Esta é uma das razões pelas quais há resistência em reconhecê-la como forma de
saber ordenado, pois mais do que uma proximidade do objeto que analisa, o próprio teólogo e
teóloga se reconhecem como sujeitos da fé, da missão e do contexto. Ele ou ela não somente
caminham com a multidão, outrossim, estão incorporados nela e sofrem com ela as dores e as
alegrias próprias da vida no mundo em um continente marcado por lutas pela sobrevivência.
Isto se deve porque a missão é encarnacional, o que exige o mesmo da teologia que resulta dela.
É no envolvimento que missionam, fazem teologia e empreendem as lutas requeridas desse
acercamento.
A teologia, de modo geral, se ocupa do saber sobre o Deus revelado e sua vontade em
relação ao mundo que criou. Ele é Espírito e fala a nós em nossa realidade terrena e material
como o Deus imanente: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras,
aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho” (Heb. 11.1). Esta
concretização histórica do Deus trinitário, do pai que se revela na vida e obra do Filho e na
força e ação do Espírito Santo no mundo, coloca à nós não somente a necessidade de conhecê-
lo em sua imanência, acolher o seu chamado para participar dessa obra que é colocado para nós
como um envio, mas a exigência de fazê-lo de modo encarnacional na cultura e na trama
histórica. Por outro lado, a obra divina revela a nós as possibilidades da transcendência humana,
não somente em relação à Deus e para a vida que Lutero chamou de Coram Deo (diante de
Deus), recuperando Agostinho; mas também em relação ao mundo e para a relação humana
com ele e em seu cuidado.
Ainda que a teologia racionalista moderna tenha insistido que somente podemos
conhecer a Deus naquilo que está presente no mundo na forma de uma teologia natural,
movimentos teológicos posteriores a ela reivindicaram a transcendência como lugar também
possível e necessário do conhecimento de Deus e da experiência teológica. Ao criar o mundo
e encarnar-se nele por meio de Jesus Cristo, Deus não somente colocou-se em contato com o
humano, mas colocou o humano em contato com ele mesmo. É devido a isso que a missão da
Igreja não se realiza somente no plano material, embora este seja seu campo de serviço
imediato, mas também nas esferas da espiritualidade, pois é uma missão divina, que procede de
Deus e do seu envio. Essa é uma linguagem importante para a missão na América Latina,
formada por povos afeitos à religiosidade e que possui nos pentecostais sua maior população
de evangélicos. O pentecostalismo é um movimento que se fundamenta nas bases da
espiritualidade e possui na linguagem pneumatológica a principal característica de seu modo de
ser cristão. Contextualizar-se e missionar na América Latina significa também pentecostalizar
a linguagem da fé, reconhecer a validade e importância dessa expressão evangélica e contribuir
para o seu desenvolvimento teológico.
A TMI, por natureza de sua proposta teológica, não é uma forma de pensamento
materialista e nem mesmo orientada exclusivamente por algum modo exclusivo de
racionalismo, seja ele científico ou doutrinário. Por outro lado, ela busca conciliar justamente
razão e fé, teoria e prática. Isto faz parte de seu esforço de integralidade: compreender o humano
como ser material e espiritual com tudo o que implica tais condições. A espiritualidade torna-
se, portanto, uma exigência para a teóloga e o teólogo da TMI, bem como para a teologia
produzida por eles. Em vista disso, requer-se deles que sejam sujeitos de fé e comprometidos
com a palavra de Deus, reconhecendo sua condição divina como fala de Deus ao mundo. A fé
é o requisito necessário para assumirmos a primazia da palavra de Deus no fazer teológico e
que possibilitará sua verdadeira leitura contextual, permitindo perceber a presença divina no
plano humano agindo libertadoramente em prol da criação.
Não se faz teologia da Missão Integral sem diálogo com as ciências que estudam o meio
do qual fazemos parte, os grupos e movimentos sociais, as comunidades eclesiais em suas
diversas expressões, as outras teologias etc. Ela é por natureza necessariamente dialogal, a fim
de que possa viabilizar seu projeto de integralidade. Nas origens do MMI – Movimento de
Missão Integral, o diálogo proposto foi muito mais com as Ciências Sociais, principalmente
com os estudos antropológicos, porém, na atualidade há um evidente esforço multidisciplinar
voltado para o entendimento do contexto.