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A Teologia da Missão Integral na Teologia Latino-americana

Regina Fernandes1

Introdução

A Teologia Latino-americana nasceu em meados do século XX, em conjunto com as


teologias do Terceiro Mundo também chamadas de Teologias Contextuais, e se apresenta nas
formas atuais das teologias da Libertação e da Teologia da Missão Integral. Ela é fruto da
correspondência da fé cristã aos amplos esforços de movimentos populares e libertários e outras
frentes de luta pela independência socioeconômica e cultural da América Latina, bem como
para a busca de soluções de seus problemas sociais internos.

As teologias da Libertação definiram o contexto socioeconômico latino-americano


como o lugar teológico a partir e para o qual fariam teologia. Estabeleceram então as bases
sociais como seu espaço prioritário e, nelas, o pobre e o oprimido pelos poderes políticos e
sociais da convulsionada América Latina de meados e segunda metade do século XX como seu
foco principal. Aqueles dos quais ela pretendia ser voz desvelada, pública.

A Teologia da Missão Integral, como representação do evangelicalismo latino-


americano, emergiu de dentro da revisão crítica das missões protestantes modernas e, ao mesmo
tempo, como um projeto de solidarização com o sofrido continente latino-americano, marcado
pelas lutas por libertação da dependência econômica em relação aos países ricos, conflitos
políticos internos e busca pela identidade cultural e eclesial comprometida pelos recorrentes
colonialismos e início da globalização contemporânea.

A Teologia da Libertação

As Teologias da Libertação ainda atuam hoje como voz das minorias sociais. Como tais,
continuam sendo tachadas de radicais devido às lutas e militâncias que empreende no contexto
latino-americano e ao uso instrumental da análise marxista para a compreensão da situação

1
Teóloga Latino-americana. Mestrado em Teologia e Práxis (FAJE), mestrado em missiologia, especialização
em História e Cultura Afro-brasileira e Indígena. Coordenadora editoral da Editora Saber Criativo
(www.editorasabercriativo.com.br) e presidente da FTL – Fraternidade Latino-americana. Autora dos livros
Introdução às Teologias Latino-americanas, Teologia Viva, Teologia da Igreja e outros.
socioeconômica da América Latina. De acordo com Samuel Escobar isto tornou-a, de certo
modo, intransigente, ainda que muitas vezes se deve, conforme ele, “à imersão em um mundo
de necessidade e conflito”.2 Para Batista Libânio, é comum a crítica à TdL em relação à essa
radicalidade e ao emprego que ela decidiu fazer da análise marxista, no entanto, ele esclarece
que ela não é apropriada em seu todo, mas somente aqueles elementos que contribuem para um
entendimento correto da situação social da América Latina. Para Libânio não há “nenhum voto
de fidelidade à ortodoxia marxista”, mas um uso completamente instrumental. E, quanto ao que
ele chama de “projeto revolucionário socialista”, que abriga a utopia marxista, não é de todo
compartilhado pela TdL. Ele ainda esclarece que “A sociedade futura não está já definida, mas
vai sendo construída a partir das aspirações, condições reais, ações concretas já em curso de
nosso povo cristão latino-americano”3. Em concordância com ele, de fato, nenhuma ideologia
é suficientemente completa ou adequada para responder ao contexto latino-americano ou a
qualquer contexto social contemporâneo, o que não impede seu uso instrumental como auxílio
para a compreensão da realidade. Importante, porém, sempre tê-las sob a devida suspeita a fim
de que a teologia não se torne uma mera representação ideológica delas.

A TdL se mantém vigente na atualidade, tanto por meio das diversas teologias
libertadoras caracterizadas pelas militâncias contemporâneas: Teologia Negra, Teologia
Feminista ou de Gênero, Teologia Indígena, etc., como por meio de sua ênfase no pobre e
oprimido, presente em muitas teologias na América Latina, principalmente no meio acadêmico.
O pobre, seu lócus (lugar) teológico prioritário, não deixou de existir no contexto social latino-
americano. Há ainda em nosso continente uma maioria que é privada de recursos mínimos para
uma vida digna e uma minoria que esbanja riquezas. A melhoria das condições de vida não foi
para todos e nem em todos os lugares. Há muita pobreza na América Latina, as culturas dos
nossos povos ainda não se tornaram forma da expressão do nosso culto a Deus, há corrupção
no meio político em todas as suas representações, inclusive no âmbito religioso etc. Enquanto
houver relações de poder abusivas, dominações, empobrecimento das massas e novas formas
de opressão, aquelas teologias que levantam sua voz profética e denunciadora das injustiças em
nossas sociedades sempre serão necessárias e relevantes.

2
ESCOBAR, Samuel. La Fe Evangelica y las Teologias de la Liberación. El Paso: Casa Bautista de
Publicaciones, 1987. P. 91. Tradução própria.
3
LIBÂNIO. João Batista. Teologia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1987. P. 277.
A Teologia da Missão Integral

O Movimento de Missão Integral teve sua origem no seio do evangelicalismo latino-


americano, mais precisamente no contexto da FTL – Fraternidade Teológica Latino-americana
(criada em 1970 na cidade de Cochabamba, Bolívia). Surgiu dos esforços de reflexão sobre as
missões modernas protestantes, na forma como elas se configuraram na América Latina e
regiões mais pobres do mundo. Tem proposto como resultado disso uma nova compreensão e
prática da missão, caracteristicamente contextualizada, libertadora e integral. O movimento de
missão não se articulou inicialmente como uma forma de teologia, embora as produções
teológicas originadas em seu percurso revelam ser esforços de ordenação teórica da nova práxis
missional/pastoral em desenvolvimento. Esta é uma das razões pelas quais a Missão Integral,
como passou a ser conhecida, não obteve a mesma projeção alcançada pela TdL4 e nem pode
produzir a vasta bibliografia que ela produziu, conforme relato de Padilla:

Na América Latina destes anos o labor teológico tem acumulado uma extensa
bibliografia, especialmente com a aparição de uma teologia da libertação,
muito da qual tem sido traduzido para outros idiomas [...].
Ainda com um impacto menor, um processo similar ao da teologia da
libertação tem se dado ao mesmo tempo no contexto do movimento
evangélico, com a Fraternidade Teológica latino-americana (FTL), sua
produção literária é todavia limitada, porém é indiscutível que a FTL, tem
exercido uma influência que vai muito mais além das fronteiras do continente
latino-americano.5
A intenção original do movimento era ser uma inspiração para um novo entendimento
e projeto de missão, o que não é possível de ser feito sem se repensar a teologia que subsidia a
ideia de missão e fornece seu conteúdo. Certamente, a Missão Integral gerou uma nova
concepção de missão da Igreja, não reduzida à proclamação oral do evangelho, mas que busca
abranger os âmbitos diversos da vida, todavia, para isso, propôs em seu conjunto e de modo
consequente, uma nova maneira de fazer teologia, como um resultado inevitável do processo
histórico que o movimento empreendeu.

Podemos afirmar que ela é fruto do esforço da fé evangélica em enxergar e se solidarizar


com os problemas da América Latina e lutar por sua transformação. Como movimento

4
Há formas de TdL - Teologia da Libertação em outras partes do mundo, como a Teologia Africana, Teologia
Asiática, etc. Ver sobre isso em SANCHES, Regina Fernandes. Teologia da Missão Integral. São Paulo:
Reflexão, 2008.
5
PADILLA, C. René. La explosión teológica en el Tercer Mundo. In.: Iglesia e Mision. Buenos Aires:
Fundación Kairós. http://www.kairos.org.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=1431. Acesso em
29/10/2014. Tradução própria.
evangélico ela reafirmou a evangelização, agora de modo integral. A centralidade das Escrituras
lida a partir do contexto, a salvação em Jesus Cristo que alcança toda vida no mundo, a atuação
reconciliadora e vivificadora do Espírito Santo como, enfim, são todos aspectos de caráter
teológico e caracterizáveis da Missão Integral. Desde então, vários projetos sociais, eclesiais e
evangelizadores em toda a América Latina adotaram a MI como referencial teológico e
orientação missional em construção, ainda que ela não fosse apresentada formalmente como
uma teologia, mas sim como um movimento, uma influência, uma inspiração.

Havia, entretanto, entre os articuladores da MI a consciência da necessidade de uma


teologia evangélica latino-americana, que fosse uma nova forma de fazer teológico
caracteristicamente missional/pastoral. Isto foi expresso na reunião de fundação da FTL –
Fraternidade Teológica Latino-americana (12 a 19 de dezembro de 1970):

1) Promover a reflexão em torno do Evangelho e do seu significado para o ser humano


e para a sociedade na América Latina. Com este fim, estimular o desenvolvimento
de um pensamento evangélico atento às perguntas que se planta na vida e no mundo
latino-americano. Para tal reflexão, se aceita o caráter normativo da Bíblia como a
palavra de Deus, ouvindo sob a direção do Espírito Santo a mensagem bíblica em
relação com as relatividades da situação concreta.
2) Construir uma plataforma de diálogo entre pensadores que confessem a Jesus Cristo
como Senhor e Salvador, e que estejam dispostos a refletir à luz da Bíblia a fim de
comunicar o Evangelho em meio às culturas Latino-americanas.
3) Contribuir para a vida e à missão das igrejas evangélicas na América Latina, sem
pretender falar em nome delas e nem assumir a posição de sua voz no continente
latino-americano.6
Tais compromissos fundantes da FTL a revelam como um fórum de discussão
intencionalmente teológico e gerador de teologia. Padilla, ainda no início da década de 80,
reforça isso com uma chamada para a necessidade de uma teologia evangélica latino-americana,
citando o teórico político argentino Juan Bautista Alberdi, como um propositor de uma
“filosofia americana” e inspirador de um mesmo empenho na área da Teologia:

Nossos pensadores reclamam um instrumento conceitual que lhes ajude a


encarar os problemas de sua própria situação. Em palavras de Zea, “o que urge
analisar não são os problemas das abstrações filosóficas, sim os problemas
desta parte do mundo e propor soluções” [...].

6
Consta no Estatuto da FTL Continental.
Levado ao campo teológico, esta mesma inquietação germina a proposta de
uma “teologia latino-americana” – feita a partir de nossa situação histórica
concreta – que constitui o projeto teológico da FTL7.
O propósito originário era de que fosse uma teologia naturalmente contextualizada, não
somente na realidade cultural e sócio-histórica latino-americana, mas na fé evangélica conforme
vinha se configurando na América Latina. O movimento de Missão Integral tornou-se então o
momento histórico inicial do seu percurso metodológico no que eles chamavam de “labor
teológico”, como aquele que a suscita, alimenta-a e dá a ela forma e diferencial, mantendo-a
com os olhos na realidade concreta em missão. Por outro lado, a teologia da Missão Integral
surge nesse transcurso como sua consciência crítica e de ordenação teórica. Ela assume o olhar
para a realidade na realização da missão buscando compreendê-la no diálogo disciplinar, olha
também para a história de modo avaliador e crítico, empenha-se por discernir o ponto de vista
da missão, realiza a leitura contextual da Bíblia e induz à sua ressignificação e atualização nos
tempos mantendo-a vigente enquanto saber da fé que gera missão. Todavia, como teologia, será
colocada a ela a questão da sua possibilidade epistemológica. Neste caso, é preciso verificar
como ela se faz, como se constrói esse saber teológico, visto que já comprovou sua validade e
vitalidade como saber prático.

Isto é devido porque as dinâmicas eclesiais e sociais em geral pedem teologia, e a


teologia pede ordenação teórica. A intenção não é estancar o movimento de missão e nem sua
tarefa inspiradora, já bem estabelecido nos setores do ministério eclesial, mas é preciso ampliar
suas possibilidades dando-lhe representação nos novos espaços sociais da fé, agora como uma
forma de teologia. Trata-se de um esforço por abranger também os lugares de construção do
conhecimento, como parte de sua natureza integradora. Para isso, a TMI terá que sujeitar-se à
linguagem desses espaços e permitir-se a ordenação, com o devido cuidado para não
comprometer seu caráter missional/pastoral, vindo a tornar-se uma teoria estéril de vida.
Conciliar tais demandas tem sido um dos desafios da Missão Integral ao longo de sua história.

O teólogo e a teóloga da TMI

Na discussão acerca da teologia, cabe também pensar sobre seu agente, o teólogo e a
teóloga da TMI. No caso da TdL, Leonardo e Clodovis Boff alertaram que o teólogo deve
possuir, de antemão, um vínculo com a prática concreta, afinal, “Ser teólogo não é manipular
métodos, mas estar imbuído do espírito teológico”. Para eles, o comprometimento com o pobre

7
Ibidem.
constitui-se um “momento pré-teológico” que exige do teólogo a conversão de vida e de classe.
8 Antes de ser um pensador ele é militante posicionado junto às frentes de resistência e luta
contra os poderes empobrecedores da realidade latino-americana.

Para o teólogo e a teóloga da Missão Integral as exigências não são diferentes, no sentido
de que necessitam estar contextualizados por meio da ação missional/pastoral para produzirem
uma teologia que seja contextual. Além de estar situados nas demandas e linguagens do
contexto em que missionam devem ser solidários a ele assumindo-o como seu lugar teológico.
Também representam a comunidade teologal e a servem principalmente por meio do conteúdo
que produzem, subsidiando teoricamente sua prática. Falar da Missão Integral, nesta
perspectiva, não torna alguém teólogo do movimento, é preciso fazer Missão Integral para
produzir a teologia do Movimento a partir dele. Alguns pontos, todavia, são necessários de ser
considerados em função disto:

A práxis missional/pastoral como ato primeiro e último

As teólogas e os teólogos da TMI necessitam ser missionários no sentido amplo do


termo, pessoas comprometidas com a missão integral da Igreja e envolvidas com a prática
concreta. Juan Mackay instrui que, muito mais do que isso, devem ser pessoas que ouvem a
Jesus Cristo e se permitem ser ensinadas por ele:

A teologia, os teólogos e os seminários teológicos devem, portanto, ser


missionários. A igreja não possui hoje diante de si uma tarefa missionária mais
importante que a tarefa teológica. O entendimento dos homens deve ser
iluminado, e seus corações incendiados com fogo. De outra maneira,
enfrentaremos uma paralisia total do esforço cristão. Porém o teólogo que
consiga possuir uma mente iluminada e um coração ardente, é aquele a que
tem ocorrido o mesmo do Caminho de Emaús, ali, à luz do crepúsculo, tem se
encontrado com o Outro. Em tal pessoa, o pensamento e a ação cristã serão
uma só coisa. Atuará como homem do pensamento e pensará como homem da
ação. 9
A “nova maneira de fazer teologia”, caracteristicamente latino-americana, não coloca
somente o contexto como momento primeiro do seu fazer teológico, mas o próprio teólogo e a
teóloga situados nele em práxis missional/pastoral, portanto, imbuídos da fé em Jesus Cristo e
sua obra que salva as pessoas e transforma amplamente sua realidade e que os move para o

8
BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como Fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 42.
9
MACKAY, John Alexander. Prefácio à Teologia Cristã, México: Casa Unida de Publicaciones; Buenos Aires:
La Aurora, 1957. P.33.
campo de missão. Tais teólogos e teólogas atuam na grande esfera da Igreja como comunidade
missional e teologal, como tal, pensam a missão pela qual ela responde, dando-lhe novos
significados na atualidade. O contexto é a realidade concreta na qual a Igreja vive e atua, tanto
nos lugares onde ela está situada e missiona, como naqueles mais longínquos para onde envia
seus agentes de missão. Todavia, a missão é sempre dela como comunidade enviada por Jesus
Cristo (Mt. 28.19-20) e seu escopo é o mundo todo e toda a realidade que ele abarca.

A precedência da missão à teologia é questão metodológica na TMI, a fim de que ela


corresponda a um contexto específico e evitar que ela se faça por meio de postulados com
pretensões universalizantes sem preocupação com as perguntas da realidade sócioeclesial. A
missão como lugar teologal torna-se também lugar de lutas, resistências e militâncias em
conjunto com a evangelização e como forma dela, mediante a consciência da situação do
contexto e na condução do círculo hermenêutico. As lutas e resistências também são reveladoras
do contexto, conforme aprendemos com os profetas do Antigo Testamento e com os apóstolos
no início da Igreja. A missão se torna o momento primeiro e último do fazer teológico. De fato,
uma teologia da Missão Integral se encerra em prática transformadora da realidade, tornando a
própria missão integral seu melhor resultado, sua assumida consequência. Todavia, não último
no sentido de derradeiro ou conclusivo. O processo teológico não se fecha com a Missão
Integral, mas reinicia nela, pois como aquela que se faz no contexto, lança novos olhares,
descobre novas demandas e possibilidades para o fazer teológico. Na caminhada discerne seus
condicionamentos e fica atenta a eles. Volta-se para a palavra de Deus a fim de que ela ilumine
a vida como locus da missão, e se revitaliza nesse processo a partir dos novos significados
desenvolvidos.

Teologia em caminho

A TMI é uma teologia do caminho, que se faz entre os povos e em amor solidário para
com eles. Mas se funda também no amor pelo mundo, em sua totalidade, como criação de Deus.
Neste caso, o teólogo e a teóloga são pessoas que se reconhecem criaturas que vivem em um
mundo que requer ser cuidado. Nele, não podem estar posicionados em arquibancadas ou
marquises como alguém que vislumbra de longe, de modo fosco e nublado, os problemas das
multidões. O método científico moderno requereu o distanciamento do pesquisador de seu
objeto de estudos, a fim de que pudesse verificá-lo sem o comprometimento pessoal, com a
devida isenção analítica. A Teologia Latino-americana em geral assume metodologicamente os
riscos do comprometimento, do envolvimento com a realidade concreta, e a TMI o faz por meio
da missão. Esta é uma das razões pelas quais há resistência em reconhecê-la como forma de
saber ordenado, pois mais do que uma proximidade do objeto que analisa, o próprio teólogo e
teóloga se reconhecem como sujeitos da fé, da missão e do contexto. Ele ou ela não somente
caminham com a multidão, outrossim, estão incorporados nela e sofrem com ela as dores e as
alegrias próprias da vida no mundo em um continente marcado por lutas pela sobrevivência.
Isto se deve porque a missão é encarnacional, o que exige o mesmo da teologia que resulta dela.
É no envolvimento que missionam, fazem teologia e empreendem as lutas requeridas desse
acercamento.

Uma teologia espiritual

A teologia, de modo geral, se ocupa do saber sobre o Deus revelado e sua vontade em
relação ao mundo que criou. Ele é Espírito e fala a nós em nossa realidade terrena e material
como o Deus imanente: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras,
aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho” (Heb. 11.1). Esta
concretização histórica do Deus trinitário, do pai que se revela na vida e obra do Filho e na
força e ação do Espírito Santo no mundo, coloca à nós não somente a necessidade de conhecê-
lo em sua imanência, acolher o seu chamado para participar dessa obra que é colocado para nós
como um envio, mas a exigência de fazê-lo de modo encarnacional na cultura e na trama
histórica. Por outro lado, a obra divina revela a nós as possibilidades da transcendência humana,
não somente em relação à Deus e para a vida que Lutero chamou de Coram Deo (diante de
Deus), recuperando Agostinho; mas também em relação ao mundo e para a relação humana
com ele e em seu cuidado.

Ainda que a teologia racionalista moderna tenha insistido que somente podemos
conhecer a Deus naquilo que está presente no mundo na forma de uma teologia natural,
movimentos teológicos posteriores a ela reivindicaram a transcendência como lugar também
possível e necessário do conhecimento de Deus e da experiência teológica. Ao criar o mundo
e encarnar-se nele por meio de Jesus Cristo, Deus não somente colocou-se em contato com o
humano, mas colocou o humano em contato com ele mesmo. É devido a isso que a missão da
Igreja não se realiza somente no plano material, embora este seja seu campo de serviço
imediato, mas também nas esferas da espiritualidade, pois é uma missão divina, que procede de
Deus e do seu envio. Essa é uma linguagem importante para a missão na América Latina,
formada por povos afeitos à religiosidade e que possui nos pentecostais sua maior população
de evangélicos. O pentecostalismo é um movimento que se fundamenta nas bases da
espiritualidade e possui na linguagem pneumatológica a principal característica de seu modo de
ser cristão. Contextualizar-se e missionar na América Latina significa também pentecostalizar
a linguagem da fé, reconhecer a validade e importância dessa expressão evangélica e contribuir
para o seu desenvolvimento teológico.

A TMI, por natureza de sua proposta teológica, não é uma forma de pensamento
materialista e nem mesmo orientada exclusivamente por algum modo exclusivo de
racionalismo, seja ele científico ou doutrinário. Por outro lado, ela busca conciliar justamente
razão e fé, teoria e prática. Isto faz parte de seu esforço de integralidade: compreender o humano
como ser material e espiritual com tudo o que implica tais condições. A espiritualidade torna-
se, portanto, uma exigência para a teóloga e o teólogo da TMI, bem como para a teologia
produzida por eles. Em vista disso, requer-se deles que sejam sujeitos de fé e comprometidos
com a palavra de Deus, reconhecendo sua condição divina como fala de Deus ao mundo. A fé
é o requisito necessário para assumirmos a primazia da palavra de Deus no fazer teológico e
que possibilitará sua verdadeira leitura contextual, permitindo perceber a presença divina no
plano humano agindo libertadoramente em prol da criação.

Uma teologia dialogal

Não se faz teologia da Missão Integral sem diálogo com as ciências que estudam o meio
do qual fazemos parte, os grupos e movimentos sociais, as comunidades eclesiais em suas
diversas expressões, as outras teologias etc. Ela é por natureza necessariamente dialogal, a fim
de que possa viabilizar seu projeto de integralidade. Nas origens do MMI – Movimento de
Missão Integral, o diálogo proposto foi muito mais com as Ciências Sociais, principalmente
com os estudos antropológicos, porém, na atualidade há um evidente esforço multidisciplinar
voltado para o entendimento do contexto.

Na realidade, nenhuma teologia conseguiu compreender sozinha a realidade que a cerca,


portanto, sempre se viu obrigada a conciliar de alguma maneira com os movimentos culturais
de seu tempo. Este foi o caso do sapiencialismo hebraico, helenismo grego, humanismo
medieval e filosofias modernas. Na América Latina a TLA buscou auxílio nas Ciências Sociais
em ascensão na época. Na atualidade, a TdL também tem se articulado com as ciências da Terra
e outras. O Movimento de Missão Integral dialogou mais intensamente com a Antropologia
Cultural, e, atualmente, tem se servido também de estudos do campo da Linguística, Biologia,
Física, Educação e outras. Isso permitirá que ele possa compreender de fato mais amplamente
a vida em seus ambientes diversos.
Conclusão

No início do século passado o movimento ecumênico iniciou as discussões


interdenominacionais sobre a missão da Igreja e a relação dela com a responsabilidade social.
Na década de 70 o movimento evangelical internacional viu-se forçado a discutir a questão e
posicionar-se documentalmente sobre o assunto através do Pacto de Lausanne (1974). Na
América Latina, África e Ásia, dadas as condições sociais dessas regiões, a preocupação com
os problemas socioeconômicos foi geradora das teologias libertacionistas ou de abordagem
integral, que emergiram em meados do século XX. Tais teologias colocam novas exigências
para as figuras do teólogo e da teóloga de tais contextos, além do desafio da construção de um
saber da fé contextualizado.

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