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Pro-Posigdes - Vol. 9 N° 3 (27} Novembro de 1998 A Dimensdo Etica da Avaliagao Terezinha Azerédo Rios* Resume: O presente artigo procura trazer & diseussio o significado da presenca da éti contexto da avaliagio educacional, Recortendo i contribuigao da filosofia, buses bre 05 valores que se encontram nos gestos de avaliar e sobre as concepedes teérico-ideol6- gicas que os orientam. Aponta a existéncia de uma dimensio moral e politica a0 lado da «dimensio técnica da ago avaliadora, Ressalta a necessidade de se considerar a avaliagio, na escola, na articulagio com os demais clementos da organizagio curricular, portanto com 0 projeto pedagdgico ali construido. Com a mediaclo da ética, indica-se a perspectiva de su- perar uma pritica avaliativa baseada no controle ¢ na dominacio e de ir a0 encontro de um trabalho pedagogico em cujo espago se crie a possibilidade de contribuir para a formagao de uma cidadania demoeritica, fundada nos prineipios da justiga e do bem comurm, Polavras-chave: avaliagio; filosofia; educaga dadania. ea; projeto pedagogico, formagio da ei- Abstract: The present work discusses the meaning of the presence of ethics in the context of educational evaluation. Taking philosophy as a basis, it reflects on the values that relate to the evaluating act and on the theoretical and ideological concepts that guide that action. ‘The work calls attention to the moral and political dimensions besides the technical dimension of the evaluating action, It also points to the need of viewing evaluation in school as being related to all the elements that compound the curricular organization, that is, to the educational project that is elaborated by the school. Taking etbies as a mediation, the work indicates ways of overcoming an e domination and of envisaging a pedagogical work that will contribute to building a citizenship based on principles of justice and common good. Jluative practice based on control and Descriptors: evaluation; philosophy; education; ethics: pedagogical project; citizenship, Qual de nds no tem da escola uma recordagio, no tem na ponta da lingua, no canto dda meméria, o nome ou o jeito de um “professor inesquecivel”? * Mestre em Fesofla da Ea.caréo,Prtesora do Departamento de Tecloga@ Cncias da Rekgoo da PUC. 94 Pro-Posigas - Vol. 9 NP 3 (27) Novembro de 1998, A educadora ¢ escritora Fanny Abramovich organizou um livro que tem exatamente este titulo ~ Mew profescor inecquecivel~e no qual se rednem “ensinamentos ¢ aprendizados contados por alguns dos nassos melhores eseritores”. O livro é da melhor qualidade ~ ( conto de Fanny se chama “Um imenso lipis vermelho”. Se é um conto sobre pro- fessor e tem esse titulo, jé se pode adivinhar qual era a marca de dona Linda, a professora “inesquecida” por Fanny, Conta ela: © instramento de trabalho favorito de dona Linda era um imenso lipis ver~ melho, todo-poderoso, que sublinhava ertos do ditado ou da c6pia, anunci ava desacertos nas respostas dos questionaios, riseava solugdes de proble- mas de aritmética, exigia repeticio infinita de equivocos cometidos até a res- posta nica e certa ser incorporada, (.) Seu lema: punigdo sempre! Na diivi- da, vi ficar de castigo! Repetigio de qualquer informago até sabé-la de cor, sem hesitagdes nem paradas indicativas de alguma incerteza,(..) Um dnico critério e uma nica regra do jogo: AQUI QUEM MANDA SOU EU, nio importa se com cazio ou sem riz%0, por que ou pra que...Vale mais meu berto do que uma discussio, Vale mais meu lapis vermelho do que outro jeito de resolver o problema, mesmo que a resposta final esteja certa, Arre- plantel (Abeamovich, 1997: 88/90) Arrepiante e tio conhecido de tantos de nds, que freqientamos a escola priméria na mesma época, aquela “em que se dizia”, afirma Fanny, “que a escola era risonhae franca”, pior e mais arrepiante ¢ que ainda hoje, nas escolas modernas © “pés-modernas”, 3s ‘vésperas do terceiro milénio, o lipis vermelho ainda seja 0 “instrumento de trabalho favo- rita” de alguns peofessores Fanny conta que saiu daquela escola quando terminou o primatio e voltou anos mais tarde, para concluir o normal. E lembra que reencontrou dona Linda, sem reconhecé-Ia, pois a professora aparecia “destituida do tamanho-do-medo". Deixo aos leitores o prazer de ler 0 conto inteiro. Queto guardar aqui, para iniciar algunas consideragdes sobre a presenca da ética no espaco da avaliagao, o registro que des- taquei 0 tananbe-do-medo provocade pelo tépis vermelbe, simbolo de uma forma de avaliar radicalmente oposta aquela que se tem procurado realizar na perspectiva de uma educagio progressista e libertadora — uma avaliagio sem medo, dialégica, demoeritica, para a qual se busca 2 contribuiedo da ética, O recurso & filosofia © espago em que me situo para trier minha palavea & 0 de minha formagio e de sinha pratica ~ de professors, professor de flosois de Flosofia da educagio. 5 "4 moda da flosofia da edacagio” que tenho procurado desenvolver mes trabalho. Recor, pora- to, A reflexio filosofiea para abondar, ainda que brevemente, aos Lites deste artigo, a ques- {36 da avaliagio ao contexto escola esas mapas dimensBes, Na fllosofa, basco referencia a csforso de um exercicio permanente de cites de um char que procura volta-se paca a reaidade no sentido de vé-la com clareza,profundidade C abrangéncin. ler vam, para evita os elementos gue prejudicam nosso olhar, evita as 95 Pro-Posigées - Vol. 9 N° 3 (27) Novembro de 1998 armadithas que se acham instaladas em és e em torno de nds, nas situagdes que vivenciamos. Vérjande, nio se contentando com a superficialidade, com as aparéncias ~ a atitade critica € uma atitude radial, nio no sentido de ser extremista, mas de i is raizes, buscar 0s fundamentos do que se investiga. Ver larg, na totalidade, o que implica procurat verfiear 0 objeto no contexto no qual se insere, com os elementos que o determinam € 0s diversos ingulos sob os quai se apresenta. Temos o vicio de julgar que nosso dngulo é, senio 0 nico, pelo menos 0 melhor, quando consideramos a realidade. Com humildade, devemos reconhecer que a contradigio é uma earacedstea fundamental do real. Ele se apre= senta multfacetado e exige um esforgo de abrangéncia pata seu conhecimento, A filosofia se caracteriza como una buica amorosa de um saber into, O fésofo orien- ta-se num esforgo de compreenso, isto 6, de desvelamento da significagio, do sentido, do valor dos objetos sobre os quais se volta. A compreensio é “uma atividade interminivel, por meio da qual, em constante mudanga e variagio, aprendemos a lidar eom nossa reali ade, conciliamo-nos com ela, isto &, rentamos nos seatis em casa no mundo” (Arendt, 1993: 39). Enguanto busca amorosa do saber, o gest flos6fico abriga uma articulagio entre uma dimensio spistemoligea ¢ wina dimensio afetva da relagio dos setes bumanos com o mundo © com 0s outros, uma iia de prender-com, de apropriae-se junto, reveladora de um “cora- so compreensivo,¢ nio a mera reflexo ou 6 mero sentimento”, como aponta Arende(1993: 52). Guarda, ainda, como byez, um sentido de movimento, de eaminhat constante, Ese 0 saber pretendido é um saber intro, fazese necessivia uma atitude de admiasdo dinnte do ‘conhecido, ce surpresa diante co habitual, a fim de conheeer mais e melhor. © que se costuma solicitar 4 Filosofia & que iumine o sentido sebrieo e pri tico daquilo que pensamos e fazemos, que nos leve a compreender a origem das idgias e valores que respeitamos ou odiamos, que nos esclaresa quanto A trigem da obediéncia a certas imposigées © quanto a0 desejo de transgeedi- las; enim, que nos diga alguma coisa acerca de nds mesmos, que nos ajude 4 compreender como, por que, para quem, por quem, contra quem ou con- tra 0 que as idéias ¢ 08 valores foram elaborados e o que fazer deles (Chai, 1981). A filosofia é sempre filosofia de, volta (reflewid) sobre os problemas que nos desafiam. Como filosofia de educapio ela busears, a0 lado de otras perspectivas de conhecimento, com- render o fenbmeno educacional em todas as suas dimensdes, procuraci olhar criticamente atarefa dos educadores ea da escola enquanto instincia educativa. Desde jé podlemos veri cear que, num trabalho de avaliagio, sua contribuigao — que se reveste de uma feigio ética — seri no intuito de estabelecer um questionamento continuo de todos os elementos envolvi- dos no processo avaliativo, procusando, revendo e ampliando seu significado, A avaliagde no contexto escolar A instituigdo escolar tem uma tarefa prioritria:servie& sociedade, construindo e sociali- ‘zando a cultura, formando cidadaos criativos, ealizando um trabalho de ampliacio constante 36 Pro-Posigdes - Vol. 9 N°3 (27) Novembro de 1998 de uma boa qualidade. E.comum utilizarmos o conecito de qualidade como se ele jé goardasse uma conotagio positiva ~dizemos que algo “tem qualidade”, querendo afiemae que é bom. (Ora, a qualidade é um atsibuto essencial da realidade, Ha boa e mé qualidade nos seres com {que nos relacionamos, nas siuagBes que vivenciamos. Poranto, hi que estabelecer com clareza ‘0 que se qualfica como bom. Definir parimetror, eferéncias para que se avaliem as prisicas € rlagies. Avaliae € apontar para o valor. E 36 s¢ fala em valor no “departamento do huma- no”, que €o campo do simbélico, da atribuiae de significado, de sentido, Fala em avaliae implica reportar-se a um olhar que distingue, que rompe com a indiferenca, que estabelece pontos de referéncia para apreciagio da realidade. E importante chamar atengio para isto: conferir valor significa manifestar-se em relagio a algo, nio ficar indiferente, Se no ha indiferenea, a manifestacio se di em relaglo no s um valor qualquer, mas a um determi- nado valor. Quando se afiema, por exemplo, que algo é bom, é preciso indagar o que se 4guer dizer com isto ~ bom por que, para quem? Avaliar pressupde definir principins, em funcio de objetivos que sepictendem al- cangar; gslabslecert SOS pata g acto ¢ definis caminhos paca atingic o fims yesb- Tarconstantemente a cominhada, de forma cote cle- menos ai envaluidas. A avaliagio tem, portanto, um cariter processual, dinimico, que faz parte de uma dindmica mais ampla a da pritica educativa ea da convivéncia social. No processo avaliativo, vamos encontrar sempre uma dimensio ‘eréea eumma dic mensio gelitice-morg! Hi sempre a necessidade do dominio de determinados conheci- meatos ¢ babilidades para realizi-lo e requer-se também dos avaliadores um posiciona- mento, que se di em fungio de interesses © compromissos que se reconhecem no con- texto social. Seria ingénuo pensar que @ avaliagio é apenas um processe téenice. Bla €tam- ‘bém uma guertde politica. Wvaliat pode se constituir num exercicio autorité- rio de poder julgar ou, 20 contritio, pode se constituir num processo € um projeto em que avaliador e avalianda buscam e sofrem uma mudan. ga qualitativa (Gadott, 1988). Nio hd, portanto, neutralidade no campo da evaliagao, como no hé neutralidade ‘no comportamento social dos individuos. Quando dizemos que ayslige.tem 4 functo de (airgap valores, estamos atacade wanbear eae Seaiaor anopari: wevCaSaTe Bo reac do processo de avaliagio para admitic que eles slo sempre resultado de ‘ypeeaacanca impregnads de valores, uate eee ale a {ico-pedagégieos, attudinais, cos, politicos, ou outeo (Ristof, 1995: 4). ‘Ao mencionar as dimensées politico-moral e técnica da avaliaglo, nio as devemos confundir com as perspectivas de uma avaliagio qualitativa om quantitativa, No caso des- sas tlkimas, diz-se respeito a uma abordagem metodol6gica. Quer se dé énfase aos a8- pectos qualitativos, quer aos quantitativos, em qualquer processo avaliativo hé uma di- ‘mensio politica e uma dimensio téenica. 0 Pro-Posigdes - Vol. 9 N® 3 (27) Novembro ce 1998 fica, moral @ avaliagéo Fale cm ui dimensde politico-moral presente na agi de avalae. Eanuncieio propési- to de trazeralgomas consideragies sobre a presenga da érca na avaiacio, # necessiio, por canto, dstinguir os conceitos de ética e moral, pata tomnar mais precisa a abordagem que agui se apresenta No cotidiano, os termos ética e moral sZo usados indistintamente, para indiar pre- senga de valores que se relacionam com o bem s 0 mal no comportamento dos individ- os, Embora as palavras que os designam tenham a mesma origem ctimoldgica, os concci- tos incoxporaram, em seu percutso histérico,significagées diferenciadas, No imbito de fc losofi, hoe, faz-se uma distingdo entre eles. ‘Amoral € definida como conjuns 5, Sountincibias Jenceeias que norieiam, see ape aa Noe ah accliscteprorames veeoemea ee portamento dos individuos e o designamos como eerto ou errado, correto ou incorreto. Quando indagamos acerca de como agi como mulher, como jovem ou como estudante, estamos embutindo em nossa pergunta a expressio “corretamente” — como agit correta- mente como...2. Hi sempre uma expectativa da sociedad em relagio a desempenho dos papéis e nossa conduta é aceita ou rejeitada, na medida em que corresponde ou nio a essa cexpectativa, i yr pc ele oa ~agace eer Tors pedepodo ashes contin ee ae aa haar eeTmtmeain pc See ne tiso ict ca nom Saree Co A Lia pain a cmandam tagio a faze iralem do aivlimediv da sivas, enando wn horaonte em coidiee aaao proj ma bac desu dever ee Devan, 1989, Cabe ae problemstinn peasants pele potgué das aes cuizos mori No ter seu dh el eer aon fe ee neon on flan soln or spe iitaintetncsepeens dei onto ‘oioeial: No plite da éiica,ezeamoe iniins perspective de um juli ciftico, propioda Sian i er ene ate beatae nce Agha, Hides kore ved inna ivieiao, que Ti da ss taiwan ih otbes 580 ese OTE! Dian eae ome nan nO ego RTE eT Tcnso pllico-mora, gue se rlconacomo gue ne la qu deve ser fete em vrude de deterninadon interes 1 cpindaiom ac cinges focally en ie uma atitude esitica, que pergunta sobre o fundamento da agio ¢ aponta para a concretizagio dos prineipios do respeito mituo, da solidariedade e da justiga. rica, no sentido de instalar-se Avaliagdo, cidadania, democracia No horizonte da reflexio ética, aponta-se a realizagio do bem comum, a efetivagio da ‘idadania derocrética © bem comum é bem coletivo, bem puiblico. O piblico é “o perteacente ou destina- do a coletividade, o que é de uso de todos, aberto a quaisquer pessoas” (Ferreira, 1975: 98 Pro-Posigdes - Vol. 9 N° 3 (27) Novembro de 1998 1165). B, entio, o campo da democracia, como expago de realizagio de direitos civis— i berdade de ir e vir, de pensamento e fé, de propriedade; direitos socinis — de bem-estar econdmico, de seguranga; e de diteitos politicos — de participagio no exercicio de poder — de todos os homens e mulheres. Ao entender 0 poder como possibilidade de atuagio, de interferéncia ¢ determinagio de rumos na sociedade, verifica-se que, se ha o desejo de cons- ‘rai uma sociedade realmente democritice, € necessério que a formagio dos individuos ‘Eates, Paicipar€ ser parte e fazer parte ~ com sealer, sua iterierEnen Sativa na COMBE Soda sociedade, os individuos configuram seu ser, sua especificidade, sua marca humana. Se a escola anuncia como seu objetivo a formacio de cidadios, ela teré que construir seu projeto e desenvolver seu trabalho ~ af jaguida a avallacio ~ com base nessa concepsio Talver estejam no campo da avaiagio as questdes mais séras enfrentadas pelos pro- fessores em nossas escolas. Primeiro, porque ratado predomiaantemente de sva- a aamndagen is do dae gala reese educating Vlando-separstolorox al Toso envol- vidos ~ 05 profestores, os alunos, a proposta curricular. Segundo, porque na gyaliacSande aprendizagem ni se tem procura Jos os aspertos nel envolvidas— eognitivos, afetivos,atiudinais. Tee, porque a auliagio temas coast tullo omento, 9 samertos diemplsaon, da pits tho alga queelase di oniieamcnes ae Toes

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