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Wanderley Guilherme dos Santos
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- Rio de Janeiro 1993
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preparaçào de originals
LENY CORDEIRO
revisäo
WENDELLSETÚBAL/SANDRA PAssAR0
HENRIQUE TARNAPOLSKY
Para
Fabito
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À t
CIP-Brasil. Catalogaçäo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CDD - 320.981
92-0599 CDU - 32(81)
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SUMARIO
PREFACIO 9
I- AGÊNESEDAORDEM ............................................... 11
A ordern dos modelos ..................................................... 13
o modelo das ordens ...................................................... 27
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k.
PREFACIO
-
regulaçao no Brasil", apresentado no seminário "Regulamentaçao e
desde quando a geografia começou a ser globalmente delineada
Desregulamentação Econômica", Universidade Santa Ursula, Rio de
mediante a implantação de urna economia mundial via descober-
Janeiro, 23 de agosto de 1990; o terceiro capítulo teve sua primeira
versão submetida a discussão durante o IV Fórum Nacional, Instituto
tas marítimas, desenvolvimento dos transportes e cornércio -, ou
seja, desde quando o mundo principiou a transformar-se em univer-
Nacional de Altos Estudos, Rio de Janeiro, BNDES, 25-28 de
so e o conceito de humanidade a adquirir perfis concretos e
novembro de 1991; o quarto, finalmente, sob o título de "First World,
diferenciados. Ironicamente, é também por essa época que o sentido
Third World, and Other Possible Worlds or How to Become a Poorer
histórico da aventura humana se dilui pelo desaparecimento do
Country and Spoil the Planet", foi discutido em sua versão primitiva
referencial transcendente que o estruturava.
no Research Committee for European Unification, durante o XV
Bern antes do desencantamento do mundo de que falará
Congresso Mundial da Associaçáo Internacional de Ciência Política,
Weber, ocorreu por assim dizer a robotização da história, quando
Buenos Aires, 21-25 dejulho de 1991. Diversos colegas comentaram
esta perdeu o telos transcendente da redençäo que, em aparência,
partes deste trabaiho, aos quais sou grato: Hélio Portocarrero, João incutia sentido e direçäo à marcha da humanidade. No preciso
Sabóia, Marcelo de Paiva Abreu, Saul Fuks, Margareth Levi e Adam
instante em que a humanidade, enquanto conceito, se enriquecia de
Przeworski. Agradeço também ao anônimo e arguto leitor da Editora um referencial empírico variado e concreto, esvaziou-se brusca-
Rocco que orientou minha atenção para passagens obscuras de alguns mente da alma que a habitava e que era capaz de antecipar corn
capítulos. Pelo resultado final, cabe-me inteira responsabilidade.
santificado visionarismo os desígnios transcendentes e finalísticos
que Deus, nada menos, estabelecera para os hornens. Daí a busca de
urn "porquê"e de um "para quê", além de um "corno", imanentes à
própria história, e que lhe dessem sentido, direção, unicidade.
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12 RAZÖES DA DESORDEM
A GENESE DA ORDEM 13
-
vísceras da história seu próprio significado, recuperando assim a
Similaridades, diferenças, simbologias, natureza, violência,
identidade e a biografia da humanidade, dissolvidas junto corn a
cooperaÇäO serão talvez dilemas, alternativas, negaçôes recípro-
transcendência. Mas a subseqüente irnportaçäo para as 'ciências do
cas; serão complementos, requisitos de mediaçäo, contrapontos corn-
espIrito" da crítica kantiana à megalomania da razão contribuirá
pensatórios. Ciente da extensáo da cirurgia efetuada, you assumir
para tomar definitivamente precário qualquer fundamento dogmático
dogmaticamente que toda ordern social é simbolicamente instituIda
de qualquer sentido para qualquer história ou qualquer política.
face às resistências de qualquer societário que acaso exista, o quai se
A política, por exemplo. O bern-humorado Hume, posto que
dispöe como a natureza na quai e contra a qual a ordern se instaura.
cético, sustentou "que a política pode ser reduzida à ciência",
Também dogmaticamente assumirei que a relaçäo problemática
deixando absolutamente claro corn que desmesurado programa
entre ética e política se pöe semeihantemente para países capitalistas
intelectual estavam comprometidos filósofos e pensadores desde,
desenvolvidos e subdesenvolvidos quanto às interaçóes relativas à
mantendo a convenção, Maquiavel. Mas, à parte a legislaçao
produçäo material de riqueza e à distribuição dos bens e valores
divina, sobre que fundamento se assentaria a ciência da política ou,
disponíveis. Feitas as opçôes dogmáticas, o resto deste primeiro
mais genericamente, a ciência da sociedade? Urna família de
-
capítulo descreverá os episódios mais relevantes para o entendimento
respostas encontrou na psicologia humana a última raiz para a da instauraçäo da ordern duplicada, da ordern réplica, sImile, nesta
explicaçào da gênese da ordern social vide Maquiavel, Hobbes, parte do mundo, em contraste corn processo semelhante na Inglaterra.
Locke, Hume. Entender-se-ja o surgimento da ordern e das institul- E esta ordern que se vai impondo corn violência sobre o resto do país,
çôes assim que se entendesse a estrutura psicológica determinante tornando-o exposto aos problemas da compatibilização entre poder,
das açôes humanas, e, enquanto Maquiavel explorou os elementos política, ética e civismo.
dessa estrutura no literal teatro da história, Hobbes, Locke e Hume
desenvolveram um embrião de psicologia introspectiva.
Caberia em certo sentido ao século XVIII despsicologizar o ser
humano e historicizá-lo. Está em Rousseau, o da origem da desigual-
dade entre os hornens, e em Helvétius, o Do espIrito, urna espécie de A ordern dos modelos
genealogia das paix6es em contraponto explicativo da genealogia da
ordern. E novamente competiria ao século XIX reptar a cientificidade Após cerca de rneio século de letargia econômica, o continente sul-
da história e das sociedades através do neokantismo de Dilthey, americano voltou a apresentar sintomas de reativação produtiva a
Rickert e Windelband, nos quais Weber reconhece os "lógicos partir da década de quarenta do século XIX. Durante o período de
modernos" que influenciaram decisivamente sua epistemologia e sua retração, as dificuldades econômicas haviam sido exponenciadas
concepção da história. Será tarnbém durante o súculo XIX que se pelas guerras de independência e pela necessidade de estabelecer as
processará a renaturalização do mundo corn a reificaçào da economia bases políticas da integraçâo nacional dos diversos países em forma-
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14 RAZOES DA DESORDEM A GENESE DA ORDEM 15
ção. Na realidade, tratava-se, como se trattrá durante todo o século industrial aumentava de 43% para 54% do total da população
XIX, de delinear as fronteiras de cada país, ao mesmo tempo em que economicamente ativa (PEA), tornando-se maioria portanto. Dou-
se buscava fixar as regras de interação entre os microagregados trinariamente, a Inglaterra encaminhava-se enfim para o abandono
sociais no interior dessas fronteiras. A resposta mais frequente ao dos temores demográficos de economistas corno Malthus e para a
legado colonial de desorganização favoreceu o centralismo político, adoção integral do imperialismo do livre comércio.4
-
corn a simultânea redução das insubmissöes autonomistas periféricas
vide as histórias do Chile, da Argentina e do Brasil na primeira
Política e socialmente, a Inglaterra atravessaria a segunda
metade do século passado, se nao de maneira totalmente suave, pelo
rnetade do século passado.1
E possível que a retomada da atividade econômica tenha
facilitado o sucesso da solução centralista, desescalando os confli-
péias -
menos de forma muito menos instável do que outras naçôes euro-
França e Alemanha, por exemplo -,
isenta sobretudo de
surtos militaristas e de intermitentes conflitos de classe em larga
tos e tomando urgente a necessidade de que se estabilizasse um escala. Para isso teräo contribuIdo os resultados altamente favorá-
centro administrativo capaz de garantir, como pessoa jurídica veis à economia inglesa da implantaçäo mundial da doutrina do
internacional, contratos de comércio, tratados de navegação e livre comércio, associados à própria expansào econômica interna.
sistemas aduaneiros. Em qualquer caso, o desaparecimento gradual Tome-se, a título de indicador, a evoluçao dos salários reais entre
dos conflitos intranacionais disruptivos coincide corn a reintegra- 1850 e 1874. Fazendo-se 1859 igual a 100, o índice real de salários
ção do continente ao fluxo de comércio intemacional, também este ingleses evoluiu de 96, em 1850, para 131 em 1874?
em convalescença após a desagregação do que se poderla denomi- Seria excessivo simplismo atribuir-se apenas ao desempenho
nar, em arremedo, "sistema internacional de cornércio mercantilista".2 da economia inglesa a relativa estabilidade de suas instituiçôes.
o café e depois o açúcar no Brasil, salitre e cobre no Chile, came e Processos similares de rápida acumulaçào econômica produziram
trigo na Argentina, peixe, cobre e guano no Peru, por exemplo, no século anterior ao XIX, e também neste século XX, antes
surgem como recursos latino-americanos de renovado acesso à disrupçao que estabilidade e institucionalização. A brilhante análi-
circulação internacional. O mundo, porém, era distinto do que se empreendida por Tocqueville da queda do veiho regime na
existira durante a expansão comercial, do século XV ao século França demonstra justamente que a erosão da legitimidade do
XVIII. sistema nao ocorreu por empobrecimento insuportável da popula-
Ao se iniciar a década de quarenta do século passado, a ção, ou desfastio das classes possuidoras, mas em seqüência a
Inglaterra terminava o primeiro ciclo de sua revolução industrial e acentuado processo de crescimento econômico!s Se é verdade que
se preparava aceleradamente para transformar quase todo o globo a simples proximidade temporal ex-ante é precária enquanto base
em um verdadeiro universo econômico. Entre 1801 e 1841 a distri- para induçöes generalizadoras, conforme a crítica humeana, o
buição de seu produto nacional bruto entre os setores primário, mesmo se poderá afirmar da indução oposta: a saber, a de que a
secundário e terciário evoluiu como segue (em percentagern): estabilidade política inglesa se deve ao desempenho econômico
primário: -10; secundário: +1 1; tercirio: -1? 0 perfil ocupacional porque se seguiu a este.
da força de trabalho acompanhou tais mudanças de maneira igual- Vale, no caso inglés, o aprendizado da liderança operária corn
mente significativa. O pessoal ocupado na agricultura diminuiu em os sucessivos fracassos do movimento chartista e a decisäo de
12 pontos percentuais, no período, enquanto a força de trabalho continuar a luta econômica por via da apropriaçAo dos recursos
políticos existentes, antes que por sua negaçào e supressäo. Foi a
i
Cf. Claudio Veliz, The Centrali.st Tradition ofLatinAmerica, N. J., Princetön Univ. Press,
1980. 4
ofFree Trade Imperialism Cambridge, Cambridge Univ.
Cf. Bernand Sermmel, The Rise
2
Há dúvidas sobre se o mercantilismo chega a ser um "sistema", seja doutrinário, seja eco- Press, 1970.
nômico-nacional e, por conseqilência, internacional. Ver Eli Heckscher, Mercantilism,
London, Macmillan, 1955. 'Cf. Nelville Kirk, The Growth of Working ClassReformism inMid-VictorianEnglan4,
London, Croom Helm, 1985, p. 101.
3
Simon Kuznets, Modern Economic Growth, New Haven, Yale Univ. Press, 1966, tabela
3.1, p. 88/89 e tabela 3.2, p. 106. 6Cf Alexis de Tocqueville, The OldRegime and the Revolution, NY, Doubleday, 1955.
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16 RAZOES DA DESORDEM A GÊNESE DA ORDEM 17
aceitaçao do sistema político como mediação legítima para o nas, enquanto entre o primeiro ato de reforma eleitoral (1832) e a
progresso econômico, por parte da liderança operária, que permitiu, seqüência participatória moderna passaram-se apenas 35 anos.
de um lado, a institucionalização do sistema político inglés moder- Onze anos após o seguro de acidente de trabaiho, surge o Old
no, em formaçäo desde fins do século XVIII; e, de outro, que após Age Pension Act, em 1908, seguido pelo National Insurance Act de
o imobilismo de 35 anos que se seguiu ao Ato da reforma de 1832 1911, provendo seguro-saúde e seguro-desemprego aqueles que
(justamente o violento período de lutas de classe) sucedam-se a ainda pertenciam ativamente à população trabalhadora. A ideologia
intervalos razoáveis as reformas de 1867, 1872 e 1884, afastando os do welfare state estava vitoriosa e seu arcabouço institucional
obstáculos à participação política. Quando, em 1918, se requer implantado, em momento posterior entretanto à incorporação poll-
apenas residôncia para o direito de voto de homens adultos, direito tica de praticamente toda a população adulta inglesa à exceçäo das
finalmente estendido às mulheres em 1928, a Inglaterrajá estava em mulheres?
vias de construir um moderno Estado de bern-estar, para além dos Por esta ou aquela razào, o percurso histórico seguido pela
limites do liberalismo laissez-fairiano clássico? Inglaterra revela que, em seqilência à revolução industrial, se na-
Visto em retrospecto, corn efeito, o futuro da sociedade cionaliza e integra o mercado interno e se supera o faccionalismo
inglesa parece ter sido anunciado deliberadamente pelos Atos de oligárquico das elites, após o que, em ondas sucessivas, se alargam
1832 e 1834, nesta ordem. O primeiro significando modesta dimi- as fronteiras da participaçäo, corn base na adesão da maioria dos
nuição nas barreiras à entrada no jogo político, mas indicando por segmentos sociais às regras de competição política, e finalmente
quais regras o jogo seria possível. O segundo, o Ato da Poor Law, fincam-se os alicerces de um moderno Estado de bern-estar social.
indicativo de que a doutrina segundo a qual o mercado seria o único
mecanismo determinando a estação da vida de cada indivIduo nao
era para ser entendida nem aplicada corn automático radicalismo.
modernas -
As crises cruciais por que passam ou passaram todas as naçöes
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18 RAZÓES DA DESORDEM A GENESE DA ORDEM 19
28,9% e 3,2% nos períodos 1871-7 e 1912-14, respectivamente. do que o problema da participaçao ampliada. De fato, mencionado
Nos mesmos períodos, a participação do café passa, respectivamen- pela primeira vez na Fala do Trono de 1868 (corn a explosiva
te, de 18,7% a 50,2% e a 6O,4%1 conseqüência de colocar a questao oficialmente na agenda política),
Além dos termos de troca, que favoreceram o Sudeste, comparati- foi ele resolvido vinte anos depois, após as reformas parciais da Lei
vamente ao Nordeste (as taxas anuais de crescimento da renda via termos dos Sexagenarios e da Lei do Ventre Livre. O problema da participa-
detrocaforam, parao açúcar, 2,3% e -7,0% nosperíodos 1822-73 e 1884- ção, entretanto, atravessará todo o Império e ingressará século XX
1913, e, para o café, 6,2% e 3,6%, nos mesmos períodos)2 também os adentro sem adequada solução.
processosdeurbanizaço e crescimentopopuladonal se acentuarammais A ausência de um mercado integrado nacionalmente dificultava
no Sudeste, paralelamente ao deslocamento para esta região do que havia a coalescência de interesses em partidos políticos mais ou menos
de incipiente produço industrial. homogêneos, programaticarnente bem definidos e capazes de articu-
A segmentaçao da economia e da sociedade repunha o proble- lar interesses particulares a projetos globais. As disputas intra-elites
ma da integraçäo. Ao contrário de colaborar para sua solução, políticas, assirn, desenvolvem-se em torno de nada além de projetos
como na Inglaterra, a expansão econômica tornava-se a principal individuais. A alternância no poder nao evidencia, neste caso,
fonte geradora do problema. E o mesmo se reproduzia em toda a reorientaçöes significativas de política econômica (os graus de
América Latina. Na Argentina, por exemplo, os booms de exporta- liberdade restringindo-se a maior ou menor alíquota nas taxaçöes),
ção ativavam os conflitos e a fragmentaçao entre proprietários de ou de política administrativa (a descentralizaçao estava firmemente
frigoríficos, criadores de gado nobre e de gado cornum e plantadores fora de questao e nem mesmo os liberais tentavam implementá-la
de trigo. a sério quando chamados ao poder). Os elevados índices de insta-
Na ausência de urna forte lógica de mercado, capaz de produ- bilidade ministerial contrastam assim corn a lentíssima evoluçao
zir solidariedade social independentemente da ação do governo, a das modificaçöes econômicas.4
reação antidesagregadora deveria necessariamente vir de outra A instauraçao da república redefine as regras da competiçao
esfera, a saber, das esfçras administrativa e militar. Do inIcio dos política intra-elites e até a década de 30 nao terá ainda resolvido nem
anos 40 do século passado até os anos 70, os gastos do governo corn o problema da institucionalizaçäo, nem o problema da participaçào,
administração e militares compöem os principais itens do orçamen-
to do Império. Naturalmente, como urna espécie de compensaçao
perversa, as fontes que produziam os recursos para a expansão
mentejurídico -
sequer em sua dimensão eleitoral. Face a um federalismo estrita-
pois a associaçao das unidades federadas decor-
ria mais de inércia institucional do que de interesses comuns.
administrativa e a manutençao das forças militares eram justamente
a importação e a exportaçäo: a porcentagem média dos impostos
entrelaçados -,
e a urn mercado econômico-político fragmentado,
restou ao governo central o reconhecirnento de satrapias de fato nas
sobre comércio exterior relativa à receita total do governo, no quais mandava quem estava no poder eprecisamenteporque estava
período, foi de 75%, corn um máximo de 81% no período 185 1-55, no poder.
e um mínimo de 73% no período 1866-7O? A predominância ideológica do laissez-faire, que parece
--
Em contexto de elevada escassez e de tendências naturais ao consagrada durante a República Velha, nao tern validade nem na
centrifugismo, toma-se compreensível o estrito controle da participa- economia a partir da intervenção regulatória na economia
çáo política. Ainda assim, a evoluçäo institucional do Império foi por cafeeira nem na arena política, na qual vige urna espécie de
demais lenta. Em certo sentido, seria mesmo possível afirmar-se que pacto de celerados que regula a cornpetição entre aqueles que od-
o problema do trabaiho escravo foi encaminhado corn major rapidez pam focos de poder, mas só enquanto os ocupam, e que mantêm o
sistema político em cativeiro, fechado às pressöes de urna cidada-
Il
N. Left, UnderdevelopmentandDevelopmentin Brazi! vol. 1 1 : Reassessing the Obsta-
cies toEconomic Developmen4 London, Allen & Unwin, 1982, tabela 2.1» p.9.
'21d ib., tabela 2.2, p. 9. 14
Para a estabilidade ministerial no lmpério, ver Cléa Sarmento, "Estabil idade governamen-
'3
Id. ib., tabela 4.6, p. 84. tal e rotatividade das elites políticas no Brasil imperial', Dados, vol. 29, n 2 (1986).
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20 RAZOES DA DESORDEM A GÊNESE DA ORDEM 21
nia urbana emergente. O eleitorado jue compareceu às eleiçôes de Do inIcio da República até a eclosäo da revoluçäo de 30, urn
Prudente de Morais, em 1894, correspondia a 2,2% da população da sistemapolítico urbano vai-se constituindo à vista de todos, sem que
época. Trinta e dois anos depois, o eleitorado que participou da
eleição de Washington Luís correspondia ainda a 2,3% da popula-
çäo. Que essa porcentagem haja maisdo que duplicado quatro anos
que surge -o
operariado fabril -
todavia tenha sido percebido por todos. E urna carnada social nova
ainda sem identidade política
própria e, por conseguinte, sern voz. Sua contraparte no processo
depois, em 1930, havendo atingido a 5,6% da população, sugere produtivo, o empresariado, nasce, por definição, dentro do sistema
apenas o grau de repressão anterior e as expectativas suscitadas pelas oligárquico e envolvido em outro confito distributivo: corn a
eleiçöes daquele ano. oligarquia exportadora, de um lado, e corn a burguesia compradora,
O pacto oligárquico era inerentemente instável pela impossi- de outro. O confito entre esses segmentos se desenrolava em arena
bilidade de se acomodarem, ainda que em rodízio, todos os interes- bem definida, e segundo as regras estabelecidas de pressão política,
ses predatórios em competição. A regra segundo a quai mandava manìpulação de imprensa e tráfico de influência: a arena da política
quem estava no poder, e justamente porque estava no poder, de tarifas. Da política tarifária dependiam um arremedo de reserva
impunha um regime de estado natural hobbesiano aos sistemas de mercado, importação barata de insumos e, certamente corn a
regionais, nos quais ridículos ieviatás estaduais promoviam perse- ajuda de apropriada política fiscal, transferência de recursos do
guiçöes nada hilariantes àqueles eventualmente alijados do poder. setor agrícola-exportadorpara o setor industrial da economia. Nesta
Dada a ausência do poder central como fonte garantidora de lei e arena, e corn tais atores, sabiarn os empresários industriais mover-
ordern, a tentaçao de alargar o escopo do confito pelo apelo a se conforme as regras, muito embora os resultados obtidos até a
recursos extrapacto oligárquico, nomeadamente o recurso às mas- Primeira Guerra Mundial tenham oscilado sobremanejra.17
sas urbanas, era forte. Ao fim e ao cabo é exatamente isso que irá O mundo do trabalho assalariado, entretanto, era um verdadeiro
ocorrer em larga escala, relativamente, quando as oposiçöes nor- novo mundo. Assim como, para os operários, recérn-artesäos,
destinas, gaúchas e mineiras rompem a premissa básica do pacto e prestadores de serviços, ex-trabaihadores agrícolas, o mundo do
capita! também era um mundo inteiramente novo. Novo e sern formas
contestam pelas armas o resultado eleitoral, buscando legitimidade
ou regras estabelecidas por determinIstica antecipaçäo. O
em convocatórias plebiscitárias ao povo.1 mundo
industrial capitalista é visivelmente fabricado, artefeito como resul-
Nem tudo era oligarquia, contudo, na República Velha. Nas
tado da tecnologia, da organizaçao, da simbologia, da disciplina
franjas do sistema, mais especificarnente nas áreas urbanas do Rio e do
confronto total: confronto econômjco, confronto social,
de Janeiro e de São Paulo, instaura-se uma dinâmica competitiva confronto
simbólico e confronto político. Nem por isso, porérn, menos
completamente alheia ao pacto oligárquico, e por este descurada. racional.
Um corijijto só interessa enquanto seus custos
Trata-se do confuto distributivo entre o capital e o trabalho, talvez são inferiores aos
--
benefIcios razoavelmente esperados. Este
a única arena na qual a doutrina laissez-fairiana da livre competição princIpio básico de cálculo
Onenta corn lógica de ferro empresários
nos termos em que tal competiçao era livre no século XIX inglês e operários, assocjando-os
iflapelavelmente em urna dinâmica de cooperação/conflito soberana-
foi corn efeito consagrada no Brasil, até 1930. Se, segundo urna mente presidida pelo ditado, antiproverbial,
fonte, entre 1888 e 1900 criarn-se cerca de sete associaçöes operá- dois bngam.
de que quando um quer,
rias na capital de São Paulo, e observam-se 12 greyes, os números Quer isto dizer que um confito industrial capitalista
para o período 1901-14 seräo, respectivamente, 41 associaçôes e 81 e8quecefl05 só termina,
greyes.16 Pelos interstIcios das estruturas oligárquicas brotava a luta
ifltervençs externas, quando há acordo, e que só há
acordo quando os
social característica do capitalismo.. beneficios razoavelmente esperados são no mIni-
17
Para urna avaliaçäo
economica do período, ver Charles Müeller Das oligarquias agrórias
Opredominjo Urbanojfldustrjal
15
Para a montagem e dinâmica do sistema oligárquico, ver Renato Lessa, A invençäo de pressoes, ver M. RJ, Ipea/Inpes, 1983; para a mobilidade empresarial na
republicana, SP, Ediçóes Vértice/Iuperj, 1987. Contempora Antonieta P. Leopoldi, Industria/Assocjatjons andPolitics in
Brazil, D. Phil. Thesis, Oxford, I 984.
16Dados computados a partir de Aziz Simâo, Sindicato eEstado, SP, Dominus Editora, 1966.
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22 RAZOES DA DESORDEM
A GENESE DA ORDEM
23
mo iguais aos custos incorridos para a1cançá-1os. A cláusula "benefí- tivo do número de operários, quer pela evoluçao organizacional
cios razoavelmente esperados" indica o grau de indeterminação, de destes, ou por ambas as razöes, a evoluçâo da economia urbano-
manipulação simbólica e dojulgamento subjetivo de cada ator quanto industrial imporá ao empresariado a mesma dupla lógica a que está
ao momento apropriado de aceitar um acordo e terminar um confito. sujeito o operariado: a diferenciaçâo organizacional de seus compe-
o ponto de "equilIbrio" de um sistemapolítico-social é aparentado ao tidores, a busca do monopólio da representaçao de interesses setoriais
noumeno kantiano: ele deve estar lá, mas é inapreensível. e o confronto corn o competidor de classe, o quai, pela inexorável
Historicamente, o confito capital-trabaiho foi pouco a pouco lógica do mercado, irá impor-Ihe compuisoriarnente o consumo de
mediado pelas instituiçöes políticas liberaisjá estabelecidas e enrai- um mal público. Este mal só poderá ser evitado pela produção
zadas na sociedade inglesa, após duas ou très décadas de dinâmica alternativa, por parte de um ou de alguns empresários, de um bem
hobbesiana, isto é, selvagem. No Brasil, as três primeiras décadas coletivo a ser consumido por todos os empresários do setor.2°
deste século testemunharâo o desenrolar por assim dizer natura! do Em certo sentido a revoiução de 1930 foi um bem coletivo
confito capital-trabaiho, enquanto as instituiçöes oligárquicas en- produzido via setor público. DeJa seguiu-se o ordenarnento da
travam em concordata, arrastando na falência a fachada liberal que cOmpetição no segmento privado da economia, a partilha da popu-
as revestia. laçâo em categoriasprofissjonajs e, por decorrência, a estratificaçao
A expansão da economia urbano-industrial brasileira nas trés da cidadania, e o atendimento à agenda básica do movimento
primeiras décadas deste século, substrato material do confito
-
operário, ou meihor, dos movimentos operários. Em busca do
político-simbólico-social, nada teve de espetacular. Ao contrário, arrefecimento do Impeto participativo das camadas trabaihadoras
4,6% entre 1911 e
ademais de modestas taxas de crescimento
1919 e 3,9% entre 1920 e 1928, taxas médias anuais -,
apresentou
urbanas, o governo revoiucionárjo pós-1930
de urna política social, prefiguradora de um Estado de bern-estar,
o inIcio
acentuado desequilIbrio setorial. A indústria têxtil, por exemplo, em troca de aquiescência diante da burocracia oficiafista do Minis-
grande absorvedora de mao-de-obra, declina de urna taxa de cres-
--
téi-io do Trabaiho então criado. O escambo proposto pelo governo
-
cimento anual de 3,7% no período 1911-1919, para 1,9% ao ano no política social protecionista em troca da domesticação política
período subseqüente.18 Nao obstante, a populaçâo ocupada na in-
-
nao foi aceito a sério pelos movirnentos operários e isto, creio,
dústria, na década de vinte, era consideravelmente superior à da pela simples razão de que inexistia um conjunto de líderes operários
década de 1900 13,8% do total dapopulação ocupada, em 1920, capazes de falar pelos supostos liderados. O centralismo de. 30
contra 3,4%, em 1900 . Entre outros fatores, a modificaçào deve-se ignorava que liderança nao se cria por decreto. Nao obstante, à
ao assalariamento de antigos empregados domésticos e de ex- produçao de regulamentaçao social prosseguiu, cujos efeitos poll-
artesãos recém-expropriados. Dal a substancial queda na população ticos nao se enquadravam em nenhum plano preconcebido.
mao-de-obra fabril
16,5%, em 1920.19
-
ocupada no setor de serviços, acompanhando o crescimento da
43,2% do total da PEA, em 1900, para
o recurso à política social para resolver a crise de participação
em contexto de escassa institucionaiizaçao política deixou como
saldo duradouro somente um estilo de produzir política, o modelo
Por questionável que seja o valor das estatísticas para aqueles burocrático, subtraído à agenda visível de competição legítima.
períodos, é difícil acreditar que nao tenham apreendido pelo menos
a tendência geral do processo. AI está o levantamento do número de
associaçães de trabalhadores criadas na cidade de São Paulo, já
partir de 1933 -
Nem mesmo a retomada do crescimento econômjco sustentado, a
corn taxas de crescimento da produção industrial
da ordern de 11,3% ao ano _.21 arrefecera o Impeto grevista, a
citadas, nos períodos 1888-1900 e 1915-1929. E, além disso, o belicosidade do legislativo, nem as demandas liberalizantes do
número de greyes, também crescente. Quer pelo aumento significa- empresariado Estas todavia são razOes insuficientes para a compre-
18
-
Cf. Anibal Vilella e Wilson Suzigan, Política de governo e crescimento da economia
brasileira 1889-1945, RJ, Ipea/Inpes, 1973, tabela V. 9, p. 172. :o
A lógica da açäo coletiva é tratada mais pormenorjzadamente no
próximo capítulo.
i'
19
Id. ib., tabela B. 23, p. 288. Cf. Vilella e Suzigan, cit., tabela VI. I, p. 180.
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24 RAZOES DA DESORDEM
AGÊNESEDAORDEM 25
ensäo do surto autoritário explícito que se inicia corn o golpe de O problema da modernizaçäo foi encaminhado, inicialmente,
1937. Por que, entäo, este? pelo envio de oficiais brasileiros à Alemanha, para estudos, ao que
Em primeiro lugar, é sabido que a industrializaÇäO produz o se seguiu a vinda de urna missäo militar francesa, já na década de
operariado, que o operariado produz greve por motivos econômicos 20, quando os tenentes estavam deixando claro que, tal como
político -
e por motivos políticos, e que só depois de resolvido o problema
monopólio prático da representaçáo, criaçäo de fortes
centrais sindicais -éque estes mesmos sindicatos, agora fortes,
acontecera durante as "salvaçôes" do período presidencial de Hermes
da Fonseca, os militares brasileiros nao se identificavam política ou
ideologicamente corn as oligarquias (oligarquias, de resto, que
colaboram para o arrefecimento das greyes.22 Para que tal ocorra, detinham poder armado privado). O problema da exclusividade
entretanto, é necessário que o processo siga seu curso natural, tendo sobre a administração da violência também foi sendo solucionado
sido aqui ditatorialmente interrompido. passo a passo. O alistamento militar obrigatório e o recrutamento
Ao impacto das greyes ininterruptas, sornado ao incômodo de por sorteio, em 1916, contribuíram significativamente para a naci-
um legislativo independente, viu-se o governo provisório diante onalização do exército enquanto organizaçäo, e para a divulgaçao
dos resultados desfavoráveiS das eleiçôes estaduais de 35, nas quais de seus valores em escala nacional. A extinção da Guarda Nacional,
as veihas oposiçôes oligárquicas recuperaram o poder em várias em 1918, afastou o penúltimo obstáculo ao monopólio da força e,
unidades da federaçäo,23 e unidades que pOSSuíam poder militar finalmente, corn a criaçao da figura do Estado-Maior, surge urna
próprio; e aqui introduz-se o problema dos militares, sumariado nova concepçäo de defesa nacional, dependente do progresso
rapidamente a seguir, e resolvido em 1937. material e da modernizaçäo do país. Isto em 1920, quando os
A política da elite imperial em relação aos militares foi a da partidos políticos ainda engatinham e nao conseguem ultrapassar o
erradicaçäo", como acentua Edmundo Campos.24 Por erradicação horizonte de seus respectivos feudos estaduais.
entende-se a redução máxima de qualquer papel político e social Maduro enquanto ator político, apostando no progresso in-
atribuIdo aos militares. Nao apenas os civis desdenhavam os dustrial como. condição para seu próprio engrandecimento, dotado
valores militares. Mais do que isso, negavam-ihes recursos, cria-
yam um poder armado paralelo
estrito da oligarquia -e
-a
Guarda Nacional, sob controle
impunham-ihe urna liderança civil. Dos 63
de baixa taxa de desconto do futuro, ao contrário do empresariado
da época, e face à ameaça oligárquica de retomada do poder
sendo a sustentação política civil do governo altamente precária
-
-, w
cr:
c
ministros da Guerra do Segundo Império, 37 foram civis e 26 nao custou ao Exército perceber que o apoio a urna ditadura liderada
militares.25 por Vargas compatibilizaria o projeto de crescimento organizacional, C1
Ora, nenhum ator político se constitui como tal sem deter
-
solidário do avanço industrial do país, corn a eliminaçäo do último
I
exciusividade sobre algum tipo de recurso, ainda que seja um voto foco alternativo de poder armado as milIcias estaduais. Em 1921
singular. As investigaçôes de Edmundo Campos e de José Murilo de as forças regulares do Exército equivaliam às forças militares
Çarvalho revelam como, a partir da proclamação da República, o estaduais: 29 mii homens. Em 1932já surge urna diferença favorá-
exército buscou adquirir exciusividade sobre competência bélica, vía vel ao Exército (58 mil contra 33 mii estaduais), que se acentua em
-
modemizaçäO dos recursos humanos e materiais, recursos adequados
a urna força armada politicamente relevante mas, sobretudo, exciusi-
vidade quanto a recrutamento, administraÇãO e uso da violência.
1937 (75 mii contra 38 mii). Em qualquer caso, tratava-se ainda de
urn poder militar autônorno, independente do Exército e, como tal,
intolerável7 O golpe de 37 apaziguou sem dúvida os anscios de
exciusividade dos militares, reduziu à impotência a ofensiva
22
Cf. Geoffrey K. Ingham, Strikes and Industrial Conflict, London, Macmillan, 1974; G. oligárquica e disciplinou operários e empresários.
Bain e F. Elsheikh, Union Growth and the Business Cycle, Oxford, Blackwell, 1976.
23
Cf. Roberto Levine, The Vargas Regime, NY, Columbia Univ. Press, 1970. Toda esta passagem está baseada em José Murilo de Carvaiho, "As Forças Armadas na
24
Cf. Edmundo Campos Coelho, Em busca da identidade, RJ, Ed. Forense Universitária, Primeira República: opoderdesestabilizador', emHistóriageralda civilização brasileira,
1976. tomo Ill, 2° volume, SP, Difel, 1977.
5
Id. ib., tabela II, p. 54. 27
Cf. Levine, ob. cit., tabçla II, p. 157.
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L
26 RAZOES DA DESORDEM A GENESE DA ORDEM 27
Disciplinadamente agregados ou desagregados conforme a mento sindical operário, inclusive o sindicalismo rural, inédito,
conveniência do poder ditatorial recém-instalado, são esses grupos além das associaçôes profissionais de classe média, de liberais etc.3°
empresariais que irào participar dos conseihos que se criam durante A existência de uma sociedade plural bastante vigorosa é inegável,
o período varguista e que comporão, junto corn as lideranças porém o modelo que explica sua dinâmica é o tema da segunda parte
sindicais, as burocracias previdenciárias e trabaihistas. Paralela- deste capítulo.
mente, o DASP, criado em 1938 para promover a reforma do Estado
brasileiro, multiplica-se em governos estaduais paralelos, através
dos "daspinhos". Mediante urna política tipicamente burocrática, o modelo das ordens
acomodada por instituiçôes um tanto ou quanto disciplinadoras, é
que se formam portanto as identidades políticas do empresariado e As características da ordern industrial conternporânea, em todo o
do operariado, avessos aos partidos, hábeis na política de corredores mundo, resultam dos caminhos históricos que marcararn sua instau-
burocráticos e nas negociaçoes de cúpula. raçào. Há significativas diferenças entre os diversos países já
Ao se restaurar o processo político competitivo em 46, corn o industrialmente avançados, geradas pela seqüência e pelos modos
inIcio da formação de partidos nacionais, a característica major do
período que vai até 64 será justamente o confronto entre a política
burocrático-tecnocrática, vulnerável à desigualdade na distribuição
sociais -
distintos de formação de seus principais agentes econômicos e
fundamentalmente o empresariado e as classes trabalha-
doras. Essas diferenças, em turno, manifestam-se nas variaçöes
invisível de recursos políticos, e a política parlamentar, de escasso institucionais entre paísesjá avançados e os latino-americanos. São
poder de controle sobre a outra parte do sistema. Detendo todavia essas variaçöes, fragmentariamente apontadas na seção anterior,
recursos constitucionais de instância aprovadora ou iniciadora de que requerern entendimento preliminar a fim de que se avahe mais
políticas em certas áreas, os partidos políticos nao resistiräo ao adequadamente a crise institucional contemporânea. Para efeito de
fascínio da aprovação ou recusa de medidas capazes de produzir ordenação do raciocInio, you utilizar o modelo sugerido por Robert
dividendos eleitorais. Estáo nesse caso a política de salário mínimo, DahI (Polyarchy, Yale University Press, 1971), a ele incorporando
dos vencimentos do funcionalismo, do valor dos aluguéis, das res- ponderaçôes adicionais, que, a meu ver, esciarecem a natureza das
triçôes ou dos incentivos fiscais. Tanto o segundo governo Vargas diferenças entre as formaçöes históricas latino-americana e euro-
quanto Kubitschek e João Goulart experimentararn derrotas diante péia e anglo-saxônica.
do delírio populista, enquanto os parlamentares, por seu turno, se
viam frustrados diante da arrogância e da onipotência de Conselhos
e Superintendências, sobre os quais nao dispunham de nenhum
o modelo dahisiano estipula a existência de dois eixos funda-
mentais para a compreensão da evolução política das sociedades
eixos chamados liberalizaçao eparticipação. O eixo libe raliza ção
-
poder.28 refere-se ao grau de institucionalizaçãojá alcançado pelas regras de
A magnitude da escala de transformação econômica e social competição política e o acatamento de seus resultados, isto é, refe-
que se operou no país durante o período autoritário nao poderia re-se à medida que todos os participantes da disputa política se
deixar de produzir impactos sobre as instituiçöes pré-64. De um reconhecem mutuamente os direitos de criar organizaçöes, de
lado, redefinern-se as identidades empresariais, e daí a especializa- expressão, de voto, de competir por cargos públicos, enfim, de todos
ção e o conseqüente aumento de entidades representativas. Em 78, os direitos característicos de urna ordem liberal. O eixo partic4,a-
pesquisa nao exaustiva revelava a existência de 67 organizaçöes çao refere-se à proporçäo da população a que tais direitos e liber-
industriais extracorporativas.29 De outro, reorganiza-se o m,ovi- dade são garantidos. Como se sabe, esses dois movimentos nao
obedecem ao mesmo ritmo de evolução e seqüência, nos países
28
Todo esse processo está magistralmente descrito em Lourdes Sola, The political and europeus e anglo-saxoes, havendo a institucionalização da compe-
ideological constraints to economic management in Brazil, 1945-1963, D. Phil. Thesis,
Oxford, 1982.
29Cf. Renato Boschi, Elites industriais e democracia, Ri, Graal, 1979, p. 190. 30
Cf. Renato Boschi, A arte da associaçäo no Brasil, SP, Ed. Vértice, 1987.
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A GENESE DA ORDEM
28 RAZOES DA DESORDEM 29
,
certo tipo de engenharia política, e pode pois por esta ser remediada,
oligarquiaS Il antes que de causas por assim dizer naturais, de difícil transmutaçäo.
fechadas inclusivas A segunda consideraçäo é cmcial e aponta para urna peculi-
participaÇäO aridade latino-americana em relação a todas as democracias moder-
nas, inclusive a francesa e a italiana. Trata-se do papel da política
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RAZOES DA DESORDEM A GÊNESE DA ORDEM 31
30
- -a
dahisiano nenhuma razäo analítica que justifique a inferência de
ordem industrial contemporânea burocracia estatal, as forças
que esta seqüência nao pudesse produzir, no médio e longo praos,
armadas e a intelectualidade adquiriram suas identidades cole-
sistemas táo estáveis quanto os europeus. Que a evoluçäo da política
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A GÊNESE DA ORDEM 33
32 RAZOES DA DESORDEM
tivas antes de a ideologia liberal alcançar hegemonia no universo de empresariado e as classes trabalhadoras são incorporados à vida
valores em disputa para efeitos de socialização política. Este nao foi política organizada, via sindicalismo tutelado, em urna dinâmica
o caso, por exemplo, do Peru, onde a burocracia estatal foi sempre paralela e nao de todo coincidente corn a dinâmica da vida político-
ator irrelevante, antes da constituição do empresariado como ator partidária.
político de peso. Nem da Argentina, onde os militares se deliniram, O instrumento de engenharia política utilizado para viabilizar
desde o inIcio, partidariamente. A concentração da vida argentina essa forma de incorporação foi justamente a política social e
em torno de Buenos Aires permitiu o surgimento de partidos trabalhista. Buscou-se corn da domesticar tanto o empresariado
"nacionais" relativamente cedo. quanto as classes trabalhadoras, que passavam por assim dizer a
o caso brasileiro é igualmente extremo quanto à forma de dispensar as estruturas partidária e institucional normais como con-
incorporação. Recordando a seçào anterior, nenhum dos atores duto para suas demandas e reivindicaçöes. A incorporaçâo política
políticos relevantes da ordern contemporânea, al incluIdo o desses dois segmentos pilares da ordem democrática contemporâ-
empresariado urbano, lormou sua identidade coletiva através de nea era filtrada administrativamente pela burocracia trabaihista e ¿
partidos políticos. Ou seja, atores políticos mais ou menos hornogê- previdenciária, chegando portanto semi-adormecida ao sistema po-
neos constituíram-se antes dos partidos nacionais e estes pouco ou lítico formal.
nada contribuíram para produzir tal homogeneizaçào. Este nao foi O preço dessa soluçäo de engenharia para o problema da
o caso argentino, onde pelo menos parte da "inteligência" adquiriu participação, utilizando a política social como mediaçäo e amorte-
identidade coletiva via partidos políticos. E ainda mais acentuada- cedor, foi o divórcio prático entre o processo político-partidário
mente no Peru, onde o proletariado rural adquiriu identidade normal e a dinâmica da competição entre o empresariado e as
coletiva via partido comunista ou movimento aprista (que era um classes trabaihadoras que se desenrolava dentro do apareiho buro-
partido, nao obstante o nome), enquanto a massa periférica das crático do Estado. O processo político formal era congenitamente
cidades estabeleceu-se como ator político pelo odriismo. instável, pois nao estava enraizado nas forças sociais relevantes,
Os partidos políticos nacionais são um fenômeno recente no enquanto a competiçäo entre as classes obtinha soluçöes pela
Brasil de pós-Segunda Guerra Mundial. Já então somente o campe- intermediação administrativa do Estado. Pedagogicamente, essa
sinato permanecia, como permaneceu até recentemente, para além intermediação do Estado lavoreceu a disseminaçao de urna atitude,
dos limites do sistema político institucionalizado. Todos os demais se nao de urna ideologia, conformista perante o Estado, ao mesmo
atores já estavam constituIdos e participando ativamente da políti- tempo em que estimulou uma atitude arrogante por parte da buro-
ca. Nao loram portanto os partidos que mobilizaram os diversos cracia que, ademais de se ter constituído previamente à lormação
segmentos sociais projetando-os na dinâmica política. Foi funda- desses dois atores, via-se agora na posiçâo de árbitro irresponsável
- -
mentalmente o Estado, como assinalei antes, em que três de seus da competição entre empresariado e classes operárias.
principais integrantes a burocracia, as forças armadas e a E assim foi até a década de setenta. A relativa estabilidade nas
"inteligência" desempenhavam papel relevante e eram ideolo- relaçöes competitivas entre empresariado e classes operárias era
gicamente independentes do empresariado. Contemporaneamente, contraditada pela permanente instabilidade das instituiçöes políti-
o PT replica a experiência da social-democracia européia, especial- cas formais. Ou seja, a solução da crise de participação pela via da i
mente a escandinava, sendo um partido criado por sindicatos (no política social redistributiva nao auxiliou na soluçâo do problema
longo prazo, haverá tensào). da integraçäo ou da liberalização. Ao contrário, serviu como ante-
Este padräo seqüencial (atraso da burguesia) e este formato pâro a que o processo político formal se encontrasse e viesse a se
irrelevância dos partidos nacionais) ajudam por certo no entendi- confundir com o processo político substantivo. Daí, igualmente, o
(
mento de por que o Brasil apresenta o caso extremo e tecnicamente fracasso de todas as tentativas de solucionar as crises do processo
lalando mais bern-sucedido da irnplantação de um corporativismo formal utilizando a política social-trabalhista (ao contrário, tais
subdesenvolvido a partir dos anos 30. E durante este período que o tentativas sempre pioraram as crises do sistema formal); e, vice-
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34
RAZÖES DA DESORDEM
A GÊNESE DA ORDEM 35
-
ordenar legalmente a competiçäo
social. políticos de massa formulem e proponham políticas sociais, portan-
Com efeito, o divórcio entre o to redistributivaS, como se nao o fossem esta é a essência subs-
processo político formal e a
competiçäo distributiva entre o
empresariado e os segmentos traba- tantiva da política populista. Para meihor entendimento do meca-
ihadores foi acentuado ainda mais pelo
fato de que, se a arbitragem nismo de transferência mascarada de rendas, impöe-se urna distin-
do confuto distributivo se fazia çäo conceitual entre política distributiva e política redistributiva.
pela mediaçâo burocrática do
Estado, a origem da legislaçao social
e Chama-se de política distributiva toda alocaçäo de recursos
encontrava nas estruturas do sistematrabalhista, a partir de 46, se discretos que, em princIpio, nao exclui a alocação do mesmo tipo de
formal Executivo e
Legislativo. Isto quer dizer que a
competiçäo por prestIgio político recursos um número infindável de vezes. Por exemplo, o caiçamen-
dentro das estruturas formais
independia dûs custos reais das to de urna rua, ou a instalação de depósitos de água potável em
políticas sugeridas. De outro lado, os determinada coletividade nao impede, em pnincípio, que a mesma
custos reais das políticas
trabalhjstas e sociais, custos materiais e coisa seja realizada em todas as ruas de todas as coletividades. Um
- -
políticos, ficavam encap-
sulados pelo segmento burocrático
do Estado ao quai está afeta a político que apresenta um projeto de caiçamento de urna rua em
arbitragem e administraçäo da bairro ou regiäo em que costuma coletar seus votos e o mesmo
competiçäo entre empresariado e nao
classes trabaihadoras. Em vale para a instalaçáo de um posto policial ou posto de saúde
conseqüência, a atividade parlamentar
destinada a regular a soluçäo dos ameaça a nenhum outro político no sentido de que este venha a ser
problemas da participaçäo e da Por
distribuiçâo so produzia dividendos e impedido de propor medida semelhante em seu reduto eleitoral.
Aqui, sem dúvida alguma, encontra-se raramente custos eleitorais. isso, medidas como essas nao encontram obstáculo no Parlamento
urna das raízes que explicam
o florescimento e a
disseminaçao da política de tipo e costumam ser apoiadas por todos, como garantia de que ninguém
característica nao apenas do Brasìl, mas populista, se oporá quando chegar a vez de cada qual apresentar a sua proposta
países latino-americanos. igualmente de todos os
no mesmo sentido.
A peculiaridade de tentar resolver Políticas redistnibutivas, entretanto, sao visíveis e claramente
o problema da participação
em contexto de baixa
institucionalizaçáo liberal pela via da política de soma zero, isto é, sua implementaçäo deixa imediatamente a nu
social (ou seja, pela solução que outras políticas nao poderão ser executadas e, ainda mais, que
simultânea do problema da redistri-
buição), produziu no médio prazo nem mesmo política semeihante poderá ser repetida. Por exemplo,
o subproduto político que é o
populismo irresponsável. A a decisão de instalar um p610 industrial petroquímico em certa
caracterização precisa da política
populista em sua substância real, regiâo implica de maneira evidente que, pnimeiro, várias outras
cas, requer esciarecimento da independente de variaçöes Tetón- decisóes nao poderão ser tomadas, dado o comprometimento dos
natureza da
Toda política social constitui, a política social. recursos corn o pólo industrial; e, segundo, que nao é realista supor
rigor, uma metapoiltica,
fornecendo o princIpio que permite
ordenar escoihas trágicas. O que pólos industriais semelhantes poderào ser instalados em todas
reconhecjmento de que toda política social as regiôes do país.
lhas trágicas, implica o ordena, escalona, esco-
reconhecimento de que, na prática, toda Adistinçâo entrepolíticaS distributivas e políticas redistnibutivas
política social tern custos. Alguém é entretanto meramente didática. Obviamente, nao existe a rigor
sempre paga de urna forma ou de
outra algo para outro alguém nenhuma política que seja em última instância apenas distributiva. O
que, ou nao paga nada, ou paga
proporcionalmente menos do que outros. Em limite real de recursos faz corn que a hipótese de que determinada
política social efetiva configura urna outras palavras, toda
política redistributiva, sendo medida possa ser replicada um número infindável de vezes sej a
insensato, ou irresponsável, supor que
alguma política social possa materialmente falsa. Na meihor das hipóteses, a medida poderá ser
repetida tantas vezes quantas forem propostas, ao custo porém, no
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36 RAZOES DA DESORDEM
A GENESE DA ORDEM 37
-
políticas porque tais custos seriam iguais a zero.
Alternativa mais desastrosa para a efetiva e estável integraçäo dos principais atores políticos se deu antes da estabilização liberal
das grandes massas no processo político consiste em prometer e seguiram-se, como conseqüências históricas, a emergência do
eventualmente propor medidas que são definitivamente e desde populismo e a transformaçäo da política social em obstáculo à esta-
logo políticas redistributivas em sentido forte como se fossem bilização democrática.
políticas redistributivas em sentido fraco, isto é, como se fossem E por aqui se esclarece o sentido e a extensão da crise institu-
políticas apenas "distributivas". Entre estas contam-se, a título de cional latino-americana, e mais agudamente brasileira, e o papel da
exemplo e com graus variados de visibilidade distributiva, políticas política social na evolução potencial da crise. Os deslocamentos
de incentivo fiscal, de isençôes tributárias, legislaçâo profissional sociais das últimas décadas produziram a emergência de realidades
especial (do tipo aposentadorias especiais, adicionais salariais sociais inéditas, e redefiniram o significado político de situaçôes
diferenciados etc.), distribuição de benefícios sem fonte de custeio mais antigas. O resultado agregado mais significativo dessas modi-
previsíveis e contabilmente sólidas etc. ficaçôes consiste no intenso confronto entre o processo político
Em resumo, o significado substantivo da política populista é instaurado por essas novas realidades e o velho processo político
este: a formulação, proposta e implementação de políticas característico do corporativismo subdesenvolvido associado ao
redistributjvas como se fossem políticas meramente distributivas, e populismo irresponsável. O que se observa em alguns países, no
isto só é possível justamente porque nao é o processo formal que Brasil corn certeza, é a caducidade prática da legislação antiquada
administra os custos e, sim, o processo burocrático administrativo. e sua substituiçâo por comportamentos que, a rigor, são ainda
E este comportamento político que proporciona seguros dividendos
eleitorais, deixando à disputa burocraticamente arbitrada pelo Es-
tado a repartiçäo real dos custos sociais, econômicos e políticos pela legislação vigente -, -
ilegais, considerando a vigência daquela legislação. Assim, por
exemplo, multiplicam-se no Brasil greyes por empresa proibidas
mas acatadas pelo novo empresariado.
dessas medidas. Com isso exacerba-se a instabilidade do processo Negociaçoes que se dão à margem dos regulamentos estatais,
político pelo que se poderia denominar de efeito "bumerangue". Na paradas em setores proibidos por lei, surgimento de organizaçôes
competição pelos votos produz-se urna escalada populista pela que nao poderiam, estritamente falando, operar.
apresentação de propostas inteiramente irresponsáveis que, em Em poucas palavras, a essência da crise institucional contem-
primeiro lugar, acirram a disputa entre os segmentos do empresariado porânea define-se pelo fato de que o processo político real deixou
e das classes trabalhadoras nas arenas burocráticas do Estado. Em para trás, e muito longe, as instituiçoes criadas há cinqüenta anos.
segundo lugar, essa competição real das organizaçöes patronais e o corporativismo subdesenvolvido está em crise porque nao conse-
trabalhadoras reverbera sobre o processo político formal estimulan- güe conter mais encapsulado o processo normal de competição
do a escalada dos populistas, por um lado, e dos que Ihes são contra, entre os diversos segmentos sociais. Ao mesmo tempo, ainda nao se
de integração política -
por outro. A política social deixa então de servir como instrumento
solucionando assim o problema da parti-
desenharam corn clareza os marcos institucionais que irão balizar a
evolução histórica futura. Criou-se a oportunidade de que o proces-
so substantivo e o processo político formal venham a encontrar-se
e a coligar-se fortemente. E neste encontro e para esta coligação que
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38 RAZOES DA DESORDEM
-
jogo democrático. Com isso nao se eliminará definitivamente o
risco do populismo irresponsável miséria que é cotidianamente
gerada pelas sociedades industriais de massa -, mas seu campo de
açâo será corn certeza significativamente reduzido. Em qualquer Este capítulo apresenta um modelo para análise de um tipo particu-
caso, o modo pelo quai o problema da açäo coletiva de grupos de
lar de ação coletiva e de provisão de bens públicos: os esforços de
interesse venha a ser resolvido serácrucial para o futuro do país. De operários industriais e capitalistas no sentido de melhorar suas
onde se segue a necessidade de compreender como a ação coletiva respectivas situaçöes econômicas, sociais e políticas. O objetivo é
tern sido mobilizada e organizada no Brasil até agora. o de reconsiderar parte da história interpretada no capítulo anterior
sob a ótica de um tipo especial de confito: aquele que se desenvolve
entre setores capitalistas e setores operários, enquanto iguais e
enquanto adversários.
Delinearei, na primeira seçào, algumas das razöes pelas quais
creio nao existir urna lógica geral da açào coletiva. Na segunda seção,
descreverei o modelo aqui proposto tao economicamente quanto
possível e, na terceira, ilustrarei a potencialidade explicativa desse
modelo recorrendo a episódios da história social brasileira. Na quarta
e última seçäo, serão estabelecidas as relaçôes entre açäo coletiva e
regulação estatal, tendo em vista evidenciar a conexão pré-anunciada
entre ação coletiva e corporativismo subdesenvolvido.
.. .
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40 RAZOES DA DESORDEM
AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 41
-
nao serão providos na ausência de coerção ou de incentivos seleti-
vos, a menos que o grupo seja pequeno. A razâo para isso consiste ticular de sua interação enquantojogadores e pela natureza dos bens
no fato já referido de que, urna vez produzido, ninguém pode ser a serem consumidos agregados, indivisíveis, fungíveis e assirn
impedido de consumir urn bem público. Por que, entäo, haveria por diante Há urn tipo de bem em particular que parece apresentar
alguém de contribuir para sua produção? um estranho sistema de relaçöes entre os custos individuais de sua u
Por trás da inegável elegancia e do poder explicativo da teoria produção, o número requerido de produtores e a quantidade produ- ,,I
de Olson, urna série de enigmas sutis desafia qualquer solução zida. Trata-se dos bens coletivos simbólicos, tais corno "ideologia",
"identidade social regulada" ou "dom", entre outros possíveis
I,.
ficação de coletividades relevantes, tudo tern sido cuidadosamente Tomem-se os conjuntos de normas ou juízos ou regras de
examinado e, corn freqüência, os pesquisadores parecern estar comportamento que definem o que seja "socialista" ou "negro" ou
faJando sobre matérias contraditórias. "mulher", produzidos pelos movimentos políticos e sociais do
Falar de lógica em teoria dos jogos equivale a falar de estra- século passado, e estes revelarão que o estabelecimento de um
tégia. Mas essa convençao lingüística é enganadora. Quando Roerner "estereótipo sQcial" ou de um bem simbólico correspondente à
afirma que o êxito dos sindicatos depende da percepção de que a palavra "socialista" ou "negro" ou "rnulher" foi precedido de
situaçâo dos trabalhadores, tomados individualmente, só rnelhora intensa competiçao entre conceitos alternativos desses bens. Aderir
na medida em que "eles lutam para aprimorar a situaçao da coleti-
vidade", ou quando Moe clama por urna visäo mais abrangente dos
grupos de interesse, com base na solidariedade e na busca de um
tipo -
a um destes envolvia corn freqüência incorrer em puniçöes de todo
tanto por parte dos "nao-socialistas", "nao-negros" e "nao-
muiheres", como por parte de "outros socialistas", "outros negros"
propósito cornum; ou ainda quando Pizzorno sugere que a formação e "outras muiheres". A estabilidade relativa de um bem simbólico
(religiao, ideologia, identidade social) esconde conflitos prirnordi-
-o
de urna identidade social implica urna ação coletiva nao utilitarista
fato é que nenhum destes autores está discutindo "estratégia" ais e mesmo cismas quanto à forma apropriada de produzi-lo,
sendo esta forma, obviamente, a adesao ao conjunto de regras de
em urna concepção tecnicamente definida. Em vez disso, eles estão
estipulando premissas e princIpios alternativos de ação. Natural- conduta que são a própria definição do bem. Quando apenas urna
mente, pode-se objetar que a preocupação deles difere da de Olson, pessoa comporta-se segundo o que ela imagina deva ser a atitude
social do negro, precisamente para afirmar-se como "negro", ela
certamente incorrerá em custos elevadíssimos, puniçöes, repres-
i
Mancur Olson Jr., The Logic ofCollcctive Action, Cambridge, Harvard University Press, soes, e o bem simbólico nao será produzido. O exernplo vale para
1965. O conceito dojogo Dilema do Prisioneiro e outros que seräo mencionados neste ca-
pítulo estão apresentados sucintamente no apêndice sobre jogos. os demais bens simbólicos. A medida que outros aderern ao mesmo
2John E. Roemer, "Neoclassicism, Marxism, and Collective Action", Journal ofEconomic
Issues, vol. XII, n 1, março, 1978, p. 154; Terry Moe, "Toward a Broader View of Interest
Groups", TheJournalofPolitics, vol. 43, 1981 , passim; Alexandro Pizzorno, "Interests and
Parties in Pluralism", in Suzanne Berger, ed., Organizing Interests in Western Europe, 3Russel Hardin, CollectiveAction, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1982.
Londres, Cambridge University Press, 1981, passim. 4
Michael Taylor e Hugh Ward, "Chickens, Whales, and Lumpy Goods: Alternative Models
of Public Goods Provision", Political Studies, vol. XXX, n 3, setembro, 1982.
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42 AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 43
RAZOES DA DESORDEM
-
conjunto de regras e se engajam na"produção" do bem, os custos Produçäo de bens coletivos simbólicos
(número de participantes, quantidade e custos individuais)
individuais de produzi-lo decrescem mesmo durante o período
em que as pessoas são reprimidas. De acordo corn Marx, quanto
major a base social da repressão, menores os seus custos. Entendo
Ci Quantidade
que a diminuição nos custos individuais, neste caso, se explica por
dois processos: a) quanto major o número de produtores do bem
simbólico, menor a probabilidade individual de ser reprimido; b)
quanto major o número de produtores major a solidariedade social
e, conseqüentemente, major o beneficio auferido pelo consumo do
bem. Isto significa que quanto major o número de produtores, major
q conceito
será o resto da expressão B -C (benefIcio menos custos), tanto pelo hegemônico
crescimento de B quanto pela queda de C. custos de do bem
Contudo há um ponto limítrofe, k, além do qual o bem oportunidade simbóllco
mindo-produzindo o bem, nem a quantidade produzida se alteram A despeito de tantas qualificaçôes, obstáculos e dificuldades, é
em função da adesão de novos produtores. Os custos de ser "negro' certo que açôes coletivas nao induzidas pela coerção ou por incen-
de urna certa forma implicam tão-somente a obediência ao catálogo tivos seletivos ainda assim ocorrem. As organizaçôes constituem-
de regras que definern tal tipo de "negro", ou seja, so subsistern se e nao é rara a cooperaçäo entre pessoas racionais no sentido de
agora os custos de oportunidade, estando eliminados os custos de serem estritamente utilitaristas. Será um superjogo do DP a meihor
repressão. Por isso mesmo, a adesão de outras pessoas ao mesmo e, talvez, a única explicação para tais fatos?5 Creio que nao. Desde
conjunto de regras só faz corn que cada urna delas internalize os seus logo é obvio que superjogos nao oferecem soluçôes realistas para
custos de oportunidade, sern alterar os custos das demais. Estando megaconflitos como, por exemplo, revoluçôes. Estas nao são op-
i a estabelecido o processo rotineiro da produçäo do bem simbólico, çöes diariamente experimentadas de tal sorte que o caráter pedagó-
o número de novos adeptos nao altera a quantidade produzida. E gico dos superjogos, via repetição, possa produzir efeitos. A exis-
indispensável compreender que a definiçäo do que seja ser "mu- tência de um superjogo revolucionário é meramente fictIcia e
Iher", por exemplo, nao se altera corn o número de mulheres que pertence aos manuais Consideremos entáo, sucintamente, alguns
aderem a essa definiçäo, assim como nao aumenta a quantidade de aspectos do problema da açao coletiva que ainda necessitam de
certa "negritude" o fato de um número major de negros comporta- esclarecimento convincente.
rem-se conforme as regras hegemônicas. Os bens coletivos simbó- Em importante trabaiho, Warner redirecionou nossa atençäo
licos, ao contrário dos bens "tudo ou nada", podem ser produzidos para a até entäo inesperada possibilidade de que os grupos de inte-
sem a participação unânime dos potenciais consumidores e, urna
vez rotinizados, dispensam o concurso de novos produtores. Neste
universo de bens simbólicos, claramente, o problema do "carona" 5
Ver Michael Taylor, Anarchy and Cooperation, Nova York, John Wiley, 1976. Um
'superjogO" umjogo em que existem várias rodadas, nao apenas um lance, e cujo estado
é inexistente: alguérn so pode consumir o bem se pagar os custos de inicial é O resultado da rodada anterior.
oportunidade (op). E isto que se reproduz no gráfico a seguir. 6Para um exemplo de Ial substituiço da realidade por ficçäo modelada, ver William Shaw,
"Marxism, revolution, and rationality", in Terence Ball and James Farr, After Marx,
Cambridge, Cambridge University Press, 1984, pp. 12-35.
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44
RAZOES DA DESORDEM
AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA
resse possam superar dificuldades pare organizar a açäo coletiva
no ocorreria numa situação real do DP° Segundo tais autores, o Jogo
momento em que encontram doadores (pessoas, instituiçães priva-
das ou governo) fora de sua clientela potencial, desejosos da Galirtha (Chicken Game) e o Jogo da Segurança Mútua
de trazem
financiar o estabelecimento da organizaçäo? Se nos perguntarmos contribuiçôes mais ricas para a análise dos conflitos contemporâ-
por que urna pessoa ou instituiçäo fana isso, e se poderia neos. Igualmente cética, Jean Hampton considera que muitos pro-
fazê-lo
generosamente, isto é, independentemente do tipo de organização, blemas de açao coletiva podem ser convertidos em problemas de
talvez observernos que certos grupos sociais dispöern de urna coordenação.11
Em vez de descartar completamente o DP,
capacidade de levantar recursos consideravelmente major do que a mesmo ern sua
de outros Se esta suposiçâo provar-se verdadeira,
a questäo forma mais simples, penso que vale a pena situá-lo em seu lugar
original de saber como é possível que grupos menos capazes de próprio, isto é, como metáfora de tipos específicos de conflitos
captar recursos venharn a se organizar continua válida. De outra Enquanto tal, a relevância do DP é subsidiária de sua
parte, ainda no caso de aquela suposição provar-se verdadeira, capacidade de discriminar entre conflitos diferentes. Parece-me
sere-
mos obrigados, ao menos por enquanto, a descartar a esperança
de
pertinente, então, buscar no mundo real as estruturas análogas a que
ter urna única lógica de açào coletiva, seguida por o DP serve de metáfora.
qualquer tipo de
grupo em face do mesmo problema de atuar conjuntamente. Snidai9 Consideremos duas situaçôes clássicas: o pântano de Hume
assinalou que vários aspectos do problema da açäo coietiva mudam que, se drenado, beneficiaria todos os vizinhos proprietários dos
de acordo corn o contexto político. Se o problema muda
corn o terrenos que o circundam, e os dois prisioneiros do DP. Segundo a
contexto, nada mais razoável do que imaginar que a açäo apropriada estrutura dojogo (ver apéndice), os vizinhos nao cooperarão, já que
para lidar corn ele também deva mudar no caso de haver a valorização dos terrenos independe da participaçäo individual dos
mais de
urna estratégia disponível. proprietários nos custos da drenagem, e o pântano nao será drenado,
Formular o problema da açâo coletiva como um jogo de dois permanecendo como antes, e, no segundo caso, e pelas mesmas
contendores, um DP de lance único, reduz drasticamente as al terna- razöes utilitárias, os prisioneiros também nao serão cooperativos.
-
tivas de decisão. Há apenas um curso racional de açAo a tomar
jogo abdicar da cooperação. Se, por alguma razào desconhecida,
nesse
cadajogador abandonar sua alternativa racional, o resultado será a
Mas urna diferença substancial distingue os dois casos quando são
reais. No exemplo de Hume, o pântano nao será drenado,permane-
cendo como antes, enquanto que os dois prisioneiros ficarão na
plena cooperação. Nao há gradaçöes de cooperaçäo, nenhuma zona cadeia por tempo major do que ocorreria caso houvessern coopera-
cinzenta. Sem dúvida, osjogos modelados segundo o DP são assim. do um corn o outro. No caso dos prisioneiros, independentemente
Mas serão todos os problemas da ação coletiva redutíveis do resultado, as coisasjamais serão como antes. Em outras palavras,
a esse
modelo? conflitos estruturalmente heterogêneos podem ser teoricamente
Adotando urna postura radical, Taylor e Ward consideram formalizados como jogos semelhantes, sendo o formalismo meta-
jogos desse tipo politicamente irrelevantes, pois ou existe coopera- fórico incapaz de discriminar, em
jogos do tipo DP, o resultado
ção total, ou nenhuma, dispensando-se qualquer negociaçäo. desinteressante "nenhuma.açaonenhumaconseqüência" de solu-
De
fato, nem mesmo o problema do "carona" (free-rider, çOes que interferem na escolha entre futuros possíveis.
aquele que
nao colabora para a produção, mas ainda assim consome o No plano político e social, só muito raramente urna soluçäo à
-
bem)
7
Ver Jack Warner, "The Origins and Maintenance of Interest
Political Science Review, vol. 71, n? 2, junho,
Groups in America", American
DP mantém o status quo inalterado. Ao contrário, manter a
situaçäo digamos, garantir a renovaçäo de urna tarifa especial -
1983. Io
Ver Michael Taylor e Hugh Ward, "Chickens, Whales...", op. cit., pp. 350-4. "Carona" é
8
Esta, de fato, é urna sugestäo encontrada em John M.
Hansen, "The Political Economy of todo membro de urna coletividade que se beneficia, usufrui ou consome um bem produzido
Group Membership",American PoliticalScience, vol. 79, n pela coletividade sem ter cooperado corn coisa alguma para essa produçäo.
1, março, 1985.
'Duncan Snidai, "Public Goods, Property Rights, and Political Ver Jean Hampton, "Free-Rider Problems in the Production at Collective Goods",
Studies Quarterly, vol. 23, n°. 4, dezembro, 1979. Organizations", International
11
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46 RAZOES DA DESORDEM AÇÂO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 47
requer investimentos de todo tipo. Para os beneficiários da tarifa, o mais importante: usualmente as pessoas nao escolhem esse resulta-
status quo deve ser mantido contra a competição dos que são por ela do independentemente do que o oponente faça. Ainda assim, existe
prejudicados (normalmente outros capitalistas). Dado que, para a urna circunstância em que um puro DP consegue simular muito bem
comunidade relevante de capitalistas, a tarifa é um bem indivisível a estrutura de umjogo político real, contanto que ojogador assuma
e não-excludente, delineia-se, aparentemente, um DP olsoniano. A a posiçao de um revolucionário, e nao a de um reformista.
solução para esse jogo, no entanto, nao tena o mesmo destino do Lénin definiu urna crise revolucionária como aquela em que
pântano humeano, para sempre intocado, mas a deterioração do a classe dominante nao é mais capaz de dominar como outrora, ao
status quo, talvez com a extinção da tarifa. Assim, um jogo de DP mesmo tempo em que a classe dominada rebela-se contra a domi-
pode, por razöes políticas e econômicas, transformar-se num Jogo nação institucionalizada. Os partidários de ambas as posiçöes
da Galinha.12 radicais consideram que a situação é exatamente como a percebem I
Certamente, ao nível abstrato da teoria formal, um DP jamais (o que seria negado por qualquer reformista), e, conseqüentemente,
pode transformar-se em outro jogo. Mas o problema consiste em todos preferem morrer a ceder. Neste caso, ambos os lados preferi-
encontrar exemplos reais relevantes de DP, isto é, conflitos cuja râo ser punidos (morrer, desaparecer, ir para prisão, perder suas
estrutura reproduza a estrutura do jogo. A ordern de preferências propriedades etc.) a bancar o bobo. Já para o reformista, qualquer
vigente nesse jogo é particularmente difícil de ser encontrada em solução revolucionária será sempre pior do que urna solução nego-
interaçöes sociais (ver mais adiante). Na maioria dos casos, o que ciada, e nao o contrário (e para ele urna crise revolucionária também
inicialmente parece ser um DP termina como um Jogo da Galinha nao se assemelhará a um clássico DP).
ou de Segurança Mútua. Dal por que chamei o exemplo da tarifa de Ateoria de Lênin sobre crises revolucionárias pode ser melhor
um aparente DP. formalizada. Minha intenção, porém, é tão-somente indicar que
o mais simples DP pode ser realIstico, ainda que nao rnuito metáforas do DP parecem ser relevantes apenas em contextos
interessante, quando o resultado da macao nao altera a situação. radicalizados, cujas conseqüências podem ser revoluçöes ou gol-
Ademais, quando a própria situação é um bern público, um falso DP pes. Quanto ao restante, concordo com Taylor e Ward de que jogos
pode transformar-se, por exemplo, num Jogo da Galinha. Existe, como o da Galinha e o de Segurança Mútua (além de outros, como
ainda, um outro aspecto que desejo examinar, relativo ao caso em o do Líder ou do Herói) são analiticamente mais promissores para
que o status quo é um bem público (para certas pessoas) e, nao se compreender a competiçao política. Mesmo assim, há pelo
obstante, o jogo obstina-se em manter sua aparência de DP. menos um tipo de ação coletiva que pode ser meihor apreendido por
Permito-me recordar a notação convencional para preferên- um enfoque que nao o das metáforas da teoria dos jogos. Antes de
cias num jogo 2x2: R (recompensa); T (tentaçao); S (o bobo, de
sucker); P (jrnnição). As preferências de cada jogador nurn DP
seguem esta ordern T>R>P>S. Duas coisas são bastante singulares
controvérsias em torno da ação coletiva
supostamente, a ação coletiva visa produzir.
-
abordá-lo, porém, quero focalizar rapidamente a última fonte de
os tipos de bens que,
nesta estrutura, no que concerne ao mundo real. Primeiro, as A clássica definição de Samuelson de bem público é usual-
pessoas nao costurnam preferir, num confito político nao trivial, mente considerada ern referência a casos extremos. Bens públicos
serem punidas a bancar o bobo. Em outras palavras, nao é cornum puros, que nunca se ressentem de pressôes da demanda, são difíceis
alguém aferrar-se a um curso de açäo mesmo que essa teirnosia de encontrar. Urna vez, porém, que estejamos preparados para
possa levar a um desastre, só para nãó ser feito de tolo. Segundo, e aceitar conceitos nao tao extremados de bens públicos (coletivos),
é provável que a anterior escassez de exemplos de bens públicos
12
Sobre a importancia do Jogo da Galinha como instrumento analítico, ver Taylor e Ward, puros dê lugar a urna abundância de bens coletivos qualificados,
cit., e Irwin Lipnowski e Shlomo Maital, "Voluntary Provision of a Pure Public Good as
the Gameof'Chicken'',JournalofpublicEconomics, n 20, 1983, pp. 381-6. Sobreo papel todos eles de status significativos, ainda que distintos. Na medida
da competiçäo entre capitalistas, ver John Bowman, "The Logic of Capitalist Collective em que conceituaçôes alternativas dos bens a serem providos
Action", SoclaiScience Information, vol. 21, n°? 4/5, 1982. Mais adiante esclarecerei por
que discordo de que sua lógica seja a única lógica da açâo capitalista. conduzern a diferentes lógicas de provisão, e a diferentes coletivi-
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48 RAZOES DA DESORDEM AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 49
dades engajadas em sua produção, é possível que os analistas relevante, então a ação coletiva tern a ver corn a provisäo, e nao corn
estejam aplicando a mesma terminologia a problemas substancial- o bern em sì, nem mesmo, talvez, corn seu consumo. Russel Hardin
mente diferentes. Volto a referir o modelo de DP embutido nos concorda pelo menos corn a primeira parte dessa afirmaçäo: "a açâo
jogos Humeano, do Prisioneiro e Leninista como exemplos dessa coletiva pode estar voltada à provisào de qualquer bem, nao importa
possibilidade. A seguir, limitar-me-ej a ilustrar, novamente, o ar-
gumento gera! desta seção -a
multiplicidade de lógicas, coletivi-
quão 'privado' ou 'público' seja ele. O importante é como ele é
provido: coletivarnente."15 Em outro extremo encontra-se Michael
dades, açôes e bens envolvidos, frequentemente ao mesmo tempo,
na vida e nos conflitos políticos.
o que torna público (coletivo) um bem? Richard Kimber crê
base nao apenas nas duas propriedades clássicas indivisibilidade
do suprimento e não-excludência -,
mas também na sua
-
Laver, que classifica os bens de acordo com seu caráter público corn
que a propriedade da nào-excludência nao é necessária para classi- opcionalidade (graus de liberdade de consumo) e sua suscetibilidade
ficar um bem como público. Nisto ele coincide com Demsetz, para a pressôes da demanda. Nesse universo conceitual, "o problema da
o quai um bem, para ser público, requer apenas a indivisibilidade do ação coletiva refere-se a bens que são conjuntamente produzidos e
suprimento. Se se requer, adicionalmente, a não-excludência, en- conjuntamente consumidos".16 Claro está que as relaçoes entre as
tao, diz Demsetz, trata-se de um bem coletivo, e nao público. Ambos propriedades formais dos bens e os dois modos possíveis de provê-
os autores supôem, implicitamente, que as duas propriedades são los exigirao muito mais elaboração antes de se chegar a urna
logicamente independentes, opiniäo subscrita por John Head. De tipologia confiável dos bens coletivos. Nesse Interim, porérn,
outra parte, Olson sustenta que sua teoria leva em conta, basicamen- devemos examinar certas distinçöes analíticas.
te, bens não-excludentes, ao passo que Snidal, em claro desacordo Considero a opcionalidade, sugerida por Laver, extremamen-
corn Kimber, Demsetz, Head e com o próprio Olson, argumenta que te importante. Hardin captou a assimetria fundamental entre um
a não-excludência implica indivisibilidade e é condição necessária bem público, de cujo consumo ninguém pode ser praticamente
e suficiente de um bem público; a indivisibilidade é uma condição excluIdo, e um mal público, de cujo consumo ninguém pode fugir.
necessária mas nao suficiente de um bem público.'3 Note-se que o A importância dessa distinçáo para a soluçäo do problema da açào
"implica" de Snidal significa implicaçâo lógica, e nao retórica. coletiva em algumas circunstâncias ainda nao foi suficientemente
Até aqui, mencionei as propriedades dos bens como se fosse enfatizada ou explorada. Hardin minirniza a distinção entre bens
possível esclarecer de uma vez por todas a questao neste nIvel. públicos e males públicos por considerá-la, erroneamente, urna
Alguns autores, contudo, nao concordam corn isso. Head e Shoup,14 questão de avaliaçào subjetiva. De sua parte, Marsh confunde o
por exemplo, asseveram que qualquer critério destinado a discrimi- problema ao dizer que "estes mesmos bens coletivos podem, de
nar radicalmente entre bens públicos e privados é questionável, sern fato, ser um mal coletivo para outros setores atuais e potenciais do
mencionar o fato de que alguns são ambIguos, ou seja, podem ser público do mesmo grupo de interesse" Nao consigo ver através de
providos privada ou coletivamente. O modo de provisão seria, que conjunto de critérios formais e empíricos pode um bem público
então, mais crucial para a determinaçao do status do bem do que ser, ao mesmo tempo, um mal público para a mesma comunidade.
suas propriedades intrínsecas. De fato, a radical distinçäoentre ambos os bens está no centro de um
Se é o modo de provisão que torna um bem politicamente confuto político especial. E pertinente, assim, esboçar corn clareza
alguns atributos de um mal coletivo.
1,
Ver Duncan Snidai, 'Public Goods...', op. cit., p. 539,, (grifo meu). As outras referências,
nests ordern, são: Richard Kimber, "Collective Action and the Fallacy of the Liberal
Fallacy, WorldPolitics, vol. 33, n 2, janeiro, 1981, pp. 179-80; Harold Demsetz, The
Private Production of Public Goods", TheJournalofLawandEconoinics, vol. XIII, n 2,
15
Russel Hardin, CollectiveAction..., op. cit., pp. 5-19.
outubro, 1970, p. 295; John Head, 'Public Goods and Public Policy, in J. Head, Public 16
Michael Laver, "Political Solutions to the Collective Action Problem', Pol itical Studies,
Goods andPublic Welfare, Duke University Press, 1974, p. 172; Mancur Olson, TheLogic vol. 28, n 2, junho, 1980, p. 200.
ofCollective..., op. cit., p. 14. 17
David Marsh, 'On Joining Interest Groups: An Empirical Consideration of the work of
'4John Head e Cari S. Shoup, 'Public Goods, Private Goods, and Ambiguous Goods, The Mancur Olson, Ji.', British Journal ofPolitical Science, vol. 6, n 3, 1976, p. 268 (grifo
Economic Journal, n 79, setembro, 1969. meu).
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50 RAZOES DA DESORDEM AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 51
-
Em primeiro lugar, um mal coletivo nao designa urna infeli- inclusivos -inflaçào, por exemplo. Finalmente, existem males
coletivos que são sensíveis à renda do consumidor a mesma -
cidade que tenha atingido um grande número de pessoas
terremoto, por exernplo. E certo que urn terremoto é urn mal e é
um
inflação é exemplo -,
e outros que
diferentes
são
tipos
insensíveis
males
à renda:
coletivos,
coletivo, porém täo-sornente no sentido dicionarizável da expres- poluição. Nao obstante os de
são. Ao contrário do conceito analítico, a expressäo dicionarizável contudo, é indispensável reter:
nao define a priori quais seräo os "consumidores" compulsórios do a) que ele nao se identifica ao status quo;
mal. Aliás, todos os "consumidores" nao são nem voluntários, nem b) que ele se origina em urna interação social conflitiva;
compulsórios, mas aleatórios. Quanto ao atributo analítico de e) que se caracteriza por ser compulsório quanto ao consumo, 'i
"indivisibilidade", este também nao se aplica ao conceito de mal independente do desejo dos consumidores.
coletivo em sua versão de dicionário. A propagaçao gradativa do Na próxima seção, pretendo desenvolver urna lógica dual de
terremoto diminui a probabilidade de outros "consumidores" serem bens e males. A fim de contextualizar o enfoque, referir-me-ei,
por ele atingidos. basicamente, ao confito de capitalistas e trabaihadores, supondo,
Ainda mais fundamental, é necessário distinguir "mal coleti- para major simplicidade, que ambos os grupos são homogêneos,
vo" de status quo. A nao drenagem do pântano humeano (que que bens e males são indivisíveis e que a escoiha enfrentada pelos
produziria um bem coletivo) nao produz um mal coletivo, apenas membros dos dois grupos é binária: ou participam ou nao da açâo
deixa o status quo inalterado. Nem todo mal coletivo é o avesso coletiva. Em fidelidade às observaçöes anteriores, a análise nao
necessário da ausência de um bem coletivo. Em princIpio, o avesso reivindica validade geral. Admito que a lógica dual da ação coletiva
da ausência de um bem coletivo é a manutençao do status quo e este, é válida se, e somente se, suas premissas o forem.18
que antecedia à frustrada produçào de um bem coletivo, nao pode
ser considerado um mal coletivo sob pena de cairmos presas do
paradoxo da progressao ao infinito. Efetivamente, se o status quo
fosse um mal coletivo, entäo no tempo posterior à produção de
t2
-i
um bem coletivo este já constituiria parte do status quo e estaria, Participar de açäo coletiva tern custos. Portanto, vamos supor que
pois, convertido em mal coletivo, requerendo a produção de outro qualquer tipo de participação custe alguma coisa. Dal nAo se segue,
bem coletivo, que por sua vez se naturalizaria como mal coletivo e simetricamente, que a näo-participação é, da mesma forma, necessa-
assim indefinidamente. riamente custosa. Para quem nao pertence a uma determinada seita
Um mal coletivo, portanto, nao se refere a urna infelicidade de
religiosa, a recusa em observar seus rituais nao tern custo algum.
muitos nem ao status quo (observe-se que o status quo poderla ser
Analogamente, os vizinhos nao-cooperativos do exemplo de Hume
maravilhoso e ainda assim, pelo paradoxo da progressão ao infinito, V
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52 - RAZÔES DA DESORDEM AÇÄO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 53
Essa condição formal ocorre eiì um tipo especial de interação sempre acarretará um mal coletivo para outra "vontade geraU'
social, aquele em que a consecuçäo de objetivos privados depende particular.
da produçäo de bens públicos. Esse tipo de interação social é um 3) De i e 2, deduzem-se agora as condiçóes para a decisào
Urna vez produzido o bem, também será racional que Xi e possível, se essa for a única maneira de evitar o consumo dey. De
procure reduzir o número de ?caronasfl o que pode ser conseguido fato, muitas vezes o ator nao sabe de antemão se ele, sozinho, será
através da coerção ou do uso de incentivos seletivos. A eliminação capaz de produzir o bem; outras vezes, um subgrupo k da comuni-
dos "caronas", entretanto, nao deve ser entendida como condiçäo dade relevante S igualmente ignora as conseqüências de seu esforço
necessária à provisão de bens públicos. Esta provisão é suficiente- coletivo, e, vez por outra, também ocorre que nem mesmo a açào
mente assegurada pela condição formal Cnp > Cp. Em suma: (1) a coletiva de toda a comunidade seja suficiente para produzir o bem
soluçào do problema da açäo coletiva deriva da estrutura do confito desejado. Em todos esses casos, o resultado final dependerá do que
social, onde a consecução de objetivos privados depende da provi- farão aqueles para quem o bem for um mal público. Quão numeroso
são de bens públicos; e (2) os "caronas" podem ser eliminados deve ser k, de um a todos os membros da coletividade, de sorte a
oportunamente através de diversos meios, dentre os quais a coerçäo
e o recurso a incentivos seletivos.
Para maior elaboraçào da fórmula Cnp > Gp, devemos estabe-
-
garantir a provisào do bem, é algo que só pode ser descoberto a
posteriori. Nesta circunstância que considero a condição normal
da competição política -, o cálculo do tamanho do grupo, como
lecer algumas condiçóes: condição para a açao, nao é preponderante.
1) A diferença essencial entre um bem coletivo e um mal A teoria de Olson tern sido considerada insatisfatória para
coletivo consiste em que: (a) ninguém pode ser impedido de consumir explicar o início da produçào de bens públicos. Seu erro básico
um bem coletivo, se assim o quiser; e (b) ninguém poderá abster-se consiste na suposição equivocada de que, em um grupo nao privi-
de consumir um mal coletivo, mesmo contra a sua vontade. legiado (privilegiado é o grupo no qual alguém ou alguns ainda
Ambas as condiçöes aplicam-se a coletividades determina- obtêm vantagens mesmo se arcarem sozinhos corn os custos da
das, e apenas a elas, independentemente de quão grandes ou produção), qualquer bem coletivo só será produzido privadamente
pequenas elas sejam (o princIpio do tamanho nao é relevante aqui). ( nao coletivamente) se o produtor for um altruIsta. Penso, porém,
2) Será assumida a seguinte definição de uma interdependência que é possível manter a premissa maximizante de que a regra básica
social conflitiva: "Urna pessoa estará em interdependência social do comportamento humano consiste em evitar sofrimento (quai-
conflitiva se, e somente se, a não-provisäo voluntária de um bem quer que seja ele), e ainda poder explicar como um egoísta aceitaria
coletivoz implicar necessariamente o consumo compulsório de um os custos de produzir bens públicos. Agora, ampliarei essas noçôes e
mal coletivo y! descreverei as condiçöes mediante as quais pode ter inicio a produção
Esse tipo de interação social expressa o reverso do dilema privada de bens públicos, seja por altruIstas, seja por egoístas.
rousseauniano. Significa que, na vida social, a vontade gera! repre- A produçáo de bens públicos pode ser empreendida privada-
senta a generalizaçäo da vontade de alguns, nao de todos. Mais mente se verificadas as duas seguintes condiçöes.
ainda: implica que, àparte o mais puro bem público samuelsoni ano, 1) Condição da necessidade rousseauniana: para que um bem
qualquer bem coletivo gerado por urna vontade geral particular coletivo seja produzido privadamente, é necessário, embora nao
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54 RAZOES DA DESORDEM
AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 55
suficiente, que o cumprimento da regra da maximizaçao acarrete a seletivos; (c) eliminaçäo pela regulamentaçao (semiprivatizaçao de
produção do bem; em outras palavras, que o benefIcio privado Bp); (d) eliminaçáo por persuasão ideológica; e (e) desconsiderá-
coincida corn o público, ou bp = Bp, onde bp (beneficio ou bem los.
privado) Bp (benefIcio ou bem coletivo); Considerando que a produçáo de Bp está assegurada à medida
2) Condição da suficiência simmeliana (condição da que prevalece a condição Cnbp > Cbp, e considerando também que
interdependência social conflitiva): para que um bern público seja as alternativas a, b, c, d, acima, são custosas, qualquer urna delas só
produzido privadamente, suficiente que o custo de nao cumprir a será adotada até o ponto em que os custos de eliminaçäo dos
regra da maximização (a produçäo de bp) acarrete o consumo "caronas" (Cefr) equivaiha aos custos de produçao de benefícios
compulsório de um mal público; em outras palavras, que o custo de privados, isto é, até Cbp. Isto se dáporque qualquer custo adicional I:
nao produzir bp seja diferente de zero, ou Cnbp O. incorrido na eliminação dos "caronas " elevaria Cbp. (Isto deve
-
As condiçöes formais para se empreender a produção de um ficar claro, pois, urna vez que os "caronas" começam a ser elimina-
bem público podem agora ser plenamente estabelecidas: se bp = Bp, dos, os custos de produzir o bem coletivo terão de levar em conta os
e se nao Cbp Cnbp, entâo Bp será produzido sempre que Cnbp custos de forçar os antigos "caronas" a cooperarem na produçáo do
> Cbp. Em palavras, e a obtenção de benefIcios privados depende bem.) Em outras palavras, a reduçao de Cbp, através da eliminaçäo H 1
da produção de um bem coletivo, e se a recusa a maximizar os dos "caronas", equivale ao "resto" da relação entre C 'bp (parte dos
benefIcios privados implica custos, então os bens coletivos serão custos de produçào de Bp dos quais os produtores iniciais acham- ,
providos sempre que os custos de nao produzi-los forem superiores se agora isentos) e os custos de eliminação dos "caronas" (Cefr). O
aos custos de sua provisao. O que está implícito no modelo é que o novo valor do Cbp, C2bp, em face dos custos de eliminaçao dos
Ademais, a inaçao tem custos -
status quo nunca é estável: ou está meihorando, ou deteriorando.
ela piora o status quo. Assim, a
estratégia a ser adotada por um maximizador, neste universo, é a de
"caronas", é dado, então, pela expressáo C2bp = Clbp - (C'bp -
Cefr), onde C2bp é menor que o original Clbp. Quando C 'bp - Cefr
= O, quer dizer, quando a contribuiçäo dos próximos "caronas" ou
prover o bem coletivo, corn base no cálculo do que está arriscado a L
decréscimo nos custos do bem coletivo for igual aos custos de
perder caso nao o produza. obrigá-los a contribuir, e quando a açao coletiva estiver quase que
Urna vez ernpreendida a produçäo privada de urn bem público completamente organizada (supondo que sej a econômico faz-lo),
(Bp), surge corn força o problema dos "caronas". O problema da a desigualdade C2bp < Clbp alcançará seu valor máximo. Isto é,
açao coletiva consiste precisamente nisto: em impedir o consumo o custo individual de participar na produçäo do bem coletivo terá
gratuito de Bp, e nao em suaprodução compulsória. Se Bp pode ser sido minimizado, o que significa, ao mesmo tempo, que os benefí-
produzido, em princIpio, por um único indivIduo, ou por um cios privados individuais terão sido maximizados.
subgrupo de um grupo maior, e se, dependendo da estrutura do Agora, C'bp - Cefr = O quando Cefr = C2bp - Clbp, isto
confito, este bem tern de ser produzido, e, finalmente, se ele é é, quando os custos de organizaçao da ação coletiva, pela eli-
produzido, a eliminação de seu consumo gratuito, por outro lado, minaçäo dos "caronas", forem iguais aos custos restantes de produ-
nao poderá ser conseguida sem a organização da comunidade çäo de bp. Dado que, agora, C2bp - Clbp atingiu seu valor máximo,
relevante. a expressáo Cefr = C2bp - Clbp estabelece os custos máximos
Organizar a ação coletiva de modo a reduzir ou eliminar o aceitáveis de produçäo de Bp, via açäo coletiva, no contexto da
consumo gratuito de Bp envolve uma estrutura de custos que é desigualdade original Cnbp > Cbp. Qualquer aumento de Cefr (pela
diferente da estrutura de custos envolvida em sua produçäo. O incorporação de novos membros ao esforço coletivo) resultará
produtor individual ou semicoletivo (um subgrupo) de Bp dispoe apenas em aumento de Cbp. Neste caso, a produção de Bp, através
de, pelo menos, cinco estratégias para lidar corn os "caronas", de um incremento da açáo coletiva, tornar-se-á menos eficiente do
quatro visando eliminá-los e uma rejeitando-os como irrelevantes: que sua produção corn tolerância para "caronas". No limite, aumen-
(a) eliminação pela força; (b) eliminaçao através de incentivos tos de Cefr tornaräo (C2bp - Clbp) = Cnbp, e isto deixará OS
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AÇÂO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 57
56 RAZOES DA DESORDEM
indivIduos indiferentes entre agir e nao agir. Porém, urna macao valor de Nna expressão C,, de onde a gradativa diminuição do valor
mais ou menos generalizada tende a deteriorar o status quo. Dada a
condição simmeliana que comanda a produção de Bp, alguns de Ci (os custos individuais para a produçäo de Bp). Aparentemen-
membros tenderão a abandonar a organizaçao para tornar-se "caro- te, urna vez iniciada a produção de Bp por um subgrupo k de (que M
nas", se possível, ou então tentarao produzir Bp privadamente ou é o N no tempo to na expressäo C, ), seria racional para esses k
conjuntamente em um pequeno subgrupo da organização "gigante" Nto t
original (al pode estar o impulso para as cisoes organizacmonais). atores maximizantes desenvolverem urna política de eiiminação
Assim, a existência de "caronas" nao implica, necessariamen- dosFR, buscando fazer coincidirMeN, condição na quai Ci obteria
te, que Bp será coletivamente provido após sua produçao ter sido seu mínimo valor possível. Ainda que contra-intuitiva, a verdade é
individualmente iniciada. Tampouco significa, caso a produção de que tal aparência é falsa.
Bp tome-se coletiva, que a coletivizaçao incluirá todos os membros A eliminação dos FR pode ocorrer conforme três condiçôes
da comunidade relevante. De fato, os "caronas" serão: (1) irrelevantes, diferentes:
quando Cefr > C'hp; (2) eliminados, de acordo corn as estratégias a) a custo zero, em cujo caso o numerador C permaneceria
a, b, c, d, enquanto C 'bp - Cefr > O; e (3) parcialmente incorporados constante, enquanto o denominador N crescesse; i
até a condiçao C'bp - Cefr = O. Estas três condiçoes estabelecem: b) a custos constantes, em cujo caso o aumento deNimpiicaria
(a) o ponto a partir do quai a produção de Bp torna-se coietiva (C'hp acréscimos uniformes em C;
- Cefr > O); (b) os limites da eficiente organização da açao coletiva c) a custos crescentes, em cujo caso aumentos em N induziri-
corn vistas à produção de Bp (Cefr - C'hp > O); (c) a ocasional am elevaçöes sucessivamente superiores em C.
racionalidade da coexistência pacífica entre ação coletiva e "caro- Fazendo a demonstração de que eliminar todos os "caronas"
nas' (C'hp - Cefr = O). (FR) nao é racional, na condiçáo b, fica demonstrado que também
A mesma demonstração, graficamente esclarecedora, será feita nao o será, commaior razão, dada a condiçào c. i
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58 RAZOES DA DESORDEM AÇÄO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRLA 59
\
= O
em termos de custos individuais, em f Ci - Ci
to tn 1OO
, ou seja, 3) km = LCefr > / C'hp; condição em que os remanescentes
I
"caronas" são irrelevantes.
t Ci
to Na próxima seção, apresentarei, muito resumidamente, al-
guns episódios da história das açôes dos capitalistas e dos trabalha-
na porcentagem de "poupança" ou de decréscimo nos custos de cada dores brasileiros visando à produção de Bp sob o império da
indivIduo, m função do aumento de N (número de colaboradores necessidade rousseauniana, ou seja, frente à competição corn mem-
= IV). E isto que se encontra medido no eixo à esquerda do bros de suas próprias classes, e tambérn da suficiência sirnmeliana,
gráfico em suas duas expressôes equivalentes: ou seja, frente à arneaça de consumo compulsório de um mal
%C'bpefCi - Ci imposto pela classe adversária, quando a necessidade rousseauniana
I
to tn nao é atendida. Esta é a lógica dual da ação coletiva. O material
Co empírico foi extraído da literatura disponível e visa ilustrar o
\\ I potencial explicativo do modelo sugerido nesta seção.
o eixo direita indica a % de crescimento do custo total de
à
produção de Bp, em relação ao custo de origem, em função do
crescimento do número de produtores, dado o fato de que essa
redução de "caronas" envolve custos, e de que esses custos devem
ser acrescidos ao novo custo total de produção do bem. Trata-se, A organização da comunidade empresarial no Brasil teve inIcio
portanto, dos antigos custos de eliminaçào dos "caronas" (Cefr) cinco anos após o movimento da independência. Em 1827, a
traduzidos em custos totais (Ct) de produção do bem, dado um certo Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi organizada para
número de cooperadores. As duas expressöes, assim, escrevem-se promover os interesses da agricultura, do comércio e da indústria,
%Cefre C-C
tn
nesta ordern. A ela seguiu-se a Associação Comercial do Rio de
Janeiro (1834), de âmbito geográfico mais restrito, porém mais
( 'ic:°
definida quanto aos interesses representados.
A Sociedade funcionou como órgão consultivo do Estado,
estando oficialmente vinculada ao Ministério do Império, de 1833
a 1850, e ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas
Conforme o estabelecido na condiçäo b anterior, a linha b
exprime o crescimento uniforme do custo total de Bp, em relação à desde 1861. Suas funçães consistiam no assessoramento ao gover-
origem o, à medida que o número N de colaboradores se aproxima no no tocante à concessão de privilegios, à importação de bens de
de M. M, como definido, é o tamanho total da coletividade e M -N capital para a agricultura ou a indústria, e ao licenciamento de novas
delimita o número de "caronas". A linha a exprime a queda gra- firmas.
dativamente menor nos custos individuais, via incorporação de A Lei de Patentes de 1830 foi formulada corn ativa participa-
cao da Sociedade. De acordo corn essa lei, o governo imperial era
novos cooperadores. O ponto k indica justamente o número de
"caronas" eliminados que maximiza os ganhos dos produtores autorizado a conceder privilégios rnonopolistas sobre invençôes,
originais. A partir do ponto k o acréscimo proporcional nos custos licenciar o estabelecimento de novas firmas e atribuir isençöes de
totais de produçào de BP serão superiores aos decréscimos nos tarifas de importação. De 1850 a 1880, cabia exclusivamente à
custos individuais, deixando de ser racional continuar a eliminar os Sociedade julgar requerirnentos de patentes.
remanescentes caronas. Fazendo a equivalência entre o novo Em razáo de conflitos entre interesses agrícolas e industriais,
formalismo e o anterior, obtêm-se: as decisôes da Sociedade tornaram-se objeto de controvérsiaS cada
vez mais agudas e a segunda Lei de Patentes, de 1882, transferiu
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60 RAZOES DA DESORDEM AÇÄO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 61
para o governo a competência exclusiva para concessäo de privilé- ter a política governamental de estabilizaçäo entäo vigente, favorá-
gios. O declínio institucional da Sociedade sobreveio rapidamente, vel aos importadores e fazendeiros; de outro, opor-se à organização
como comprova a organização, em 1881, da Associação Industrial dos trabalhadores e resistir às freqtientes greyes do período. Corn o
do Rio de Janeiro e, em 1894, da Associação Comercial de São agravamento da crise econômica, todos os setores industriais foram
Paulo. Naturalmente, a tendência foi reafirmada pela criação da afetados pelas políticas governamentais e pela mob.ilização sindi-
Sociedade Nacional da Agricultura em 1897. cal. Em face disso, o Centro fundiu-se à antiga Sociedade, em 1904,
A especialização organizacional indicava que os conflitos fazendo surgir o Centro Industrial Brasileiro.
regionais e entre fazendeiros e negociantes intensificavam-se. As- Desde então desenvolveram-se dois sistemas organizacionais
sim, em 1874, os fazendeiros da Bahia reivindicavam major atenção paralelos: um abrangendo o setor industrial como urn todo, do quai
para a agricultura do Nordeste. Quatro anos depois, um Congresso o Centro Industrial é um exemplo; e outro representando ramos
de Fazendeiros, Proprietários e Capitalistas do Nordeste advogava particulares. Se as organizaçóes globais foram importantes na
o livre-cambismo, em oposiçáo aos benefIcios favoráveis à agricul- competiçáo dos industriais corn os importadores e fazendeiros, as
tura meridional. associaçôes especializadas foram cruciais para contrabalançar o
Os interesses industriais também jam formando suas próprias movimento operário.
organizaçôes. Sucedendo à Associação Industrial do Rio de Janei- Essa distinção é altamente relevante porque ajuda a distinguir
ro, um Centro Industrial do Rio de Janeiro, de curta (1890-92) a reaçao dos industriais contra os "caronas" em ramos particulares
porém ativa existência, introduziu as reivindicaçoes industriais na de indústria de sua reaçäo aos "caronas" do setor como um todo.
agenda pública, em confronto corn os interesses da agricultura e do Eis um exemplo:
comércio de importaçäo: proteçào tarifária e créditos subsidiados.
Todos os principais interesses econômicos do período giravam em "numapetiçao enviada ao Presidente da República, em 1918,
torno da política tarifária: o Centro Industrial do Comércio de Couro e Calçados reca-
pitula osproblemas causados ao setorpela Liga dos Sapatei-
"industriais [locais], procurando seproteger das manufatu- ros. Segundo apetição, a Liga, pressionandopelajornada de
ras importadas; importadores, cujo mercado era meihor trabaiho de oito horas e descumprindo acordo previamente
quanto mais baixas fossem as tarifas; industriais estrangei- aceito, empreendeu plano de provocar confrontos em urna
ros, que poderiam lucrar exportando para o mercado brasi- firma de cada vez. Se o proprietário se recusasse a ceder às
leiro na ausência de barreiras tarifárias; cafeicultores, teme- reivindicaçöes dos trabalhadores, afábricapararia indefini-
rosos de retaliaçoes' em seus mercados externos se o Brasil damente, corn os grevistas sendo sustentadospor umfundo de
impusesse tais barreiras; e o próprio Estado, que tinha nos trabaihadores de outras firmas."
direitos de importaçao uma grande fonte de i"19 Obviamente, a estrategia dos trabaihadores só poderia ter
Na medida em que se contrapunharn, era natural que cada sucesso enquanto a reação dos capitalistas permanecesse
conjunto de interesses formasse organizaçOes especializadas para descoordenada. De outra parte, seria do interesse de cada capitalista
promovê-los. negociar separadamente corn seus operários, para que sua fábrica
A integração organizacional do mais importante setor indus- continuasse a funcionar, abocanhando, assim, major fatia do mer-
trial do Rio de Janeiro, a indústria tôxtil, resultou de complexa cado. E, inicialmente, foi isso que aconteceu, segundo o relatório,
motivação. Quando foi fundado, em 1902, o Centro Industrial da
Fiaçäo e Tecelagem tinha um duplo propósito: de um lado, comba- "emfábricas naofiliadas ao Centro Industrial, cujos propri-
etários, sem orientaçäo (sic), negociaram corn os represen-
tantes dos trabalhadores. Da!, entäo, os demais fabricantes
Ver MaTia Antonieta Leopoldi, Industrial Association and Politics in contempora
de calçados pressionaram o Centro Industrial para uma
19
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62 RAZOES DA DESORDEM AÇÂO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 63
rea cao coletiva, única medida capaz de defenderos interesses organizaçôes patronais e sindicatos trabalhistas. Naquele mesmo
dos capitalistas e, ao mesmo tempo, deter a onda de greyes."20 ano, contudo, os industriais do Rio de Janeiro passararn a sabotar o
acordo, sob o pretexto de que as diferenças regionais de custos de
A lógica dual da açäo coletiva transparece claramente no produção tornariam as firmas fluminenses vuineráveis à concorrên-
exemplo. Ela visava, inicialmente, evitar o consumo de um mal cia descontrolada de outros estados. Ao mesmo tempo, o Centro
público (ajornada de oito horas), mediante a produção de um bem Industrial do Comércio de Couro e Calçados, que havia demandado
público (regulamentaçao geral da jornada de trabaiho) e, assim, a regulamentaçao legal da jornada de trabaiho, anunciava o
eliminar os "caronas". A mesma lógica dual, ou seja, o crescimento abandono de sua posição inicial enquanto todas as fábricas do Rio
quantitativo da organizaçäo dos capitalistas de modo a enfrentar o nao aceitassem a medida. Em São Paulo, a firma Pinotti Gamba,
movimento operário (prevenção de males públicos), desenvolvia- inicialmente favorável ao aumento salarial, declarou publicamente
se em São Paulo naquele mesmo período. Em 1919, os operários que nao abriria mao de seu direito de restabelecer os antigos níveis
paulistas mostravam-se mais organizados que os empresários. No salariais, de vez que a disparidade de custos de produção poderla
ano de 1920, cresceu consideravelmente o número de organizaçöes tornar seus produtos näo-competitivos3
capitalistas, geralmente destinadas a promover os interesses econô- Os trabalhadores enfrentaram o problema dos "caronas" desde
micos particulares das indústrias. Os patrôes perceberam, porém,
que os interesses de cada capitalista nao poderiam ser defendidos mente pode ocorrer corn os empresários -
os primórdios de sua organizaçáo. Ao contrário do que ocasional-
contar corn um líder
forte o bastante para obter medidas favoráveis do governo, por
isoladamente em face da organizaçäo dos trabalhadores. Essa
compreensao da estrutura do confito inter, e nao intraclasses, exemplo -,raramente pode um líder trabaihista esperar ter sucesso
constituía a motivaçao fundamental para o estabelecimento de sozinho. Scm dúvida, a força dos números é essencial ao movimen-
numerosas associaçöes patronais.1 to operário, mas fundamentalmente como urna força contra obstá-
Certamente, a eliminação dos "caronas" requer a existência de culos políticos, e nao em função da natureza do bem (agregado,
ação coletiva organizada. Porém, a mera existência de urna organi- fungível etc.).
zação nao garante que os "caronas" serão eliminados. A "vontade No estado do Rio de Janeiro, durante a segunda década deste
geral" organizada deve exibir suficiente poder de sanção, corn o au- século, havia 1 1 desses líderes, discursando em toda parte, organi-
xílio de ameaças convincentes, de sorte a obter a cooperaçao de zando quando possível e, finalmente, fundando a relativamente
membros recalcitrantes. Caso contrário, mesmo que a ação coletiva poderosa Federaçao dos Trabalhadores? Após a criaçào da orga-
sej a formalmente organizada, surgirão Dilemas do Prisioneiro nização, a fim de lidar corn os "caronas", a liderança necessitou
olsonianos. Aqui estão dois exemplos, o primeiro do Rio de Janeiro, obter algum tipo de monopólio da representação. Essa era a deman-
o segundo de São Paulo, ambos datados de 1919. dapolítica fundamental do movimento dos trabalhadores até 1930. 43
Na esteira da Conferência de Paz de Genebra, os industriais do Em acréscimo às pressôes clássicas por melhores salários e condi-
Rio de Janeiro aceitaram o princípio da jornada de oito horas, um çöes de trabalho, insistia-se no reconhecimento das associaçöes
aumento salarial de 50% para homens e mulheres, além do compro- como negociadores exclusivos em nome dos trabalhadores perante
misso de nao empregar crianças menores de 14 anos de idade. O os empregadores e o Estado. Mas isso é algo que ou é conquistado
acordo foi ajustado, primeiramente, entre o Centro de Fiação e Te- ou, então, pouco ou nada vale.
celagem e a Uniäo dos Operários Têxteis, sendo seguido por outras Após a Revolução de 1930, o novo governo sancionou uma
série de leis satisfazendo praticamente todas as reivindicaçoes
'°Trecho de um relatório de 1918, da direçäo do Centro Industrial do Comércio de Couro e 22
Idem, pp. 102-4.
Caiçados. Ver Angela de Castro Gomes, Burguesia e trabalho:política e legislaçäo social
«o Brasi4 1917/1937, Rio de Janeiro, Campus, 1979, p. 130.
23
Idem, p. 104.
21
Ver Marisa Saenz Lerne, A ideologia dos industriais brasileiros, 1919/1945, Rio de
24
Ver Maria Cecilia Velasco e Cruz, Amarelo e negro: matizes do comportamento operário
Janeiro, Vozes, 1978, p. 10. na República Velha, Iuperj, mimeo, 1981, passim.
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64 RAZOES DA DESORDEM AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 65
históricas dos trabaihadores. Isso nao significa que elas foram Após o golpe, e após o restabelecimento dos sindicatos como
plenamente cumpridas a partir dal. De qualquer modo, quando, em figuras de direito público, o número de sindicatos registrados
juiho de 1934, foi baixada a lei de sindicalizaçao garantindo aos cresceu dramaticamente: 695 em 1936; 955 em 1938; 1.111 em
sindicatos o direito de promover os interesses dos trabaihadores, 1939. 0 número de associados, ao contrário, declinava de ano para
como instituiçöes de direito público inseridas no apareiho de ano: 185 mii em 1936; 152 mil em 1938; 172 mii em 1939; 146 mii
Estado, a única novidade entao foi o reconhecimento legal do em 1940; e 127 mil em 1941. Em 1942, um decreto do governo
privilégio do sindicato de representar corn exciusividade cada
-
categoria ocupacional. O objetivo major dos líderes
da representação
monopólio
Ihes foi concedido pelo governo, ao preço da
- vejo em socorro dos sindicatos agonizantes, corn a introduçäo do
"imposto sindical", urna contribuiçäo compulsória dos trabaihado-
res aos "seus" sindicatos. Apenas recentemente, na última década,
autonomia sindical.25 foi que o movimento dos trabaihadores brasileiros começou a
A reação dos trabalhadores foi significativa. O aumento do adquirir certo grau de liberdade, abrindo caminho à lógica dual da
número de sindicatos, que se acelerara desde outubro de 1930, luta de classes.
perdeu Impeto após a lei de sindicalização. De fato, os números As associaçôes empresariais seguiram urna trajetória parcial-
mostram 39 sindicatos registrados em 1931, 259 em 1933, 208 em mente distinta, na esteira de um episódio exemplar. Em 1919, um
1934, caindo para 69 em 1935. Entre 1931 e 1934 houve pluralismo
e competição entre os sindicatos; de juiho de 1934 em diante,
iniciou-se a era do sindicato único, apenas mais urna entre as
Centro Industrial do Brasil
regional e setorial: o Centro
-
grupo de industriais têxteis fluminenses discordou da direçäo do
CIB
Industrial de
-e
criou urna nova entidade
Fiação e Tecelagern de
agências estatais, corn sua política e economia internas supervisio- Algodao. o pretexto foi o apoio dado porJorge Street, presidente do
nadas pelo Ministério do Trabalho. CIB, às reivindicaçöes dos trabaihadores por aumentos salariais,
Enquanto diminuía o número de sindicatos, aumentava o jornada de oito horas etc. O motivo real, entretanto, era o emprés-
número de greyes, ano após ano, a despeito da política social do timo que o goyerno concedia a firmas em situaçäo crítica. Street
governo. O irredentismo dos trabalhadores brasileiros, sem dúvida, opunha-se aos empréstimos, mas, já que eles existiam, sua posiçào
deve ser levado em conta como um dos ingredientes da crise política era de que deveriarn ser equanimemente repartidos entre todas as
que antecedeu o golpe de 1937. Nosso interesse, aqui, nao abrange firmas em crise do país. Era fundamentalmente a essa postura que
toda a história do período, mas apenas suas repercussóes na lógica os industriais fluminenses se opunharn. Sendo mais poderosos, corn
dual da ação coletiva. maior capacidade de articulaçäo e pressão política, sabiam que
o golpe de 1937 disciplinou empresários e trabaihadores de poderiam obter os empréstimos sem ter de colaborar corn as outras
diferentes maneiras. A ditadura restabeleceu a unicidade sindical associaçôes regionais. Foi precisamente o que aconteceu quando,
(rejeitada pela Constituiçäo de 1934), o "sindicato único" como utilizando o ex-ministro da Fazenda, Leopoldo de Bulhóes, corno
agência pública de colaboração corn o governo, em troca do monopó- seu advogado, procurador e lobista, receberam eles todos os crédi-
ho da representação. No entanto, o sindicato único, enquanto conces- tos, generosamente distribuIdos entre os participantes desse lobby
são estatal, nao tinha poder coercitivo sobre sua clientela potencial e fluminense.27
sua vida política e administrativa era controlada pelo Ministério do Segundo a boa lógica da maximização, a apropriação de
Trabalho. Conseqüentemente, todos os membros virtuais do sindica- benefIcios deve ser função da parcela de investimento que cada um
to eram "caronas" em potencial, em razão da impossibilidade de o faz para o esforço de produzir tais benefIcios em primeiro lugar. A
sindicato retaliar contra a não-participação e o comportamento açäo coletiva, ainda segundo a boa lógica da maximizaçäo, nao deve
nao-cooperativo. E foi exatamente isso que aconteceu. ser redundante em relaçao ao que é necessário para a produção do
Ver Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
26
25
Sobre as políticas trabaihista e social do período, ver Wanderley Guilherme dos Santos, 1976, pp. 228-9.
Cidadania ejustiça (2 ed.), Rio de Janeiro, Campus, 1987. 27Ver Mariza Saenz Leme.A ideologia dos industrials..., op. cit., pp. 11-2.
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66 67
RAZÖES DA DESORDEM AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA
bem. Os empresários parecem ter um agdo senso de prevenção do Há, todavia, urna relação inversa entre capacidade organiza-
desperdIcio. No caso relatado, a provisão do bem (empréstimos cional e capacidade disruptiva, em decorrência do nivel de institucio-
governamentais), via CIB, implicava urna ampia partilha de esfor- nalizaçäo política: em sociedades baixamente institucionalizadas,
cos entre um número de "voluntárjos" bem superior ao necessário. quanto mais fraco o poder dos grupos sociais e menor seu controle
Este excedente de participantes seria composto, de fato, por "caro- dos membros potenciais (ou seja, quanto major a dificuldade para
nas", como desejava o presidente Jorge Street. solucionar o problema da açäo coletiva e reduzir o número de
A classe capitalista, no Brasil, nao perdeu a capacidade de "caronas"), mais selvagem é o confuto inter e intragrupos e major
controlar seus "caronas". Ela combateu a proposta governamental, a ameaça de instabilidade política. Já em sociedade altamente
dos anos 30, de criação de urna estrutura de organizaçöes
habitada institucionalizada, a relação é positiva: quanto mais forte é o poder
por "caronas" compuisórios. Surgiu urna soluçào çonciliatória, organizacional dos grupos de interesse, maior é a capacidade de que
e
fora da estrutura totalizante oficial havia rnais associaçôes dispöem para conturbar o processo produtivo. Em ambos os casos,
especializadas capazes de punir eventuais "caronas". Tambérn no o custo social do confito distributivo, na ausência de regula çao
caso dos empresários, apenas nos últimos dez anos, corn
o estatal, ou seja, via puro mercado, é extremamente ameaçador:
renascirnento da lógica dual das classes, é que eles reencontrararn instabilidade política, em um caso, desequilíbrios econômicos de
urn movimento operário insubordinado. Observarnos no Brasil grande porte em outro. O padrão de interferência regulatória é,
de
hoje a proliferação de associaçöes de ambos os lados, o surgirnento contudo, muito diferente nos dois casos, corn conseqüências tam-
de líderes e o acionamento da necessidade rousseauniana de bém significativamente diversas no médio e no longo prazos. Um
ser
soiidário, sob a suficiência da pressao simmeliana de ser adversário. gráfico será conveniente para ilustrar o argumento.
Neocorporativismo
Corporativismo Modelo predatório
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68 RAZÔES DA DESORDEM 69
AÇÄO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA
controle sobre a maioria significati'a dos membros do grupo a fim de que o preço de sua solução nao seja pago por segmentos
considerado), o objetivo da intervenção regulatória do Estado, vi- sociais alheios ao confito.
sando minimizar os riscos de instabilidade política, consiste, em Intervençöes regulatórias tendo em vista minimizar as
primeiro lugar, na redução do confito intraclasse, garantindo a externalidades negativas dos conflitos distributivos setoriais carac-
soluçäo do problema da açäo coletiva. Quer dizer, a reduçäo dos
"caronas", mediante a concessäo do monopólio da representação
o que só é possível, obviamente, se os órgãos representativos de
- terizam o que, contemporaneamente, vem sendo chamado de siste-
ma neocorporativO ou sistema consociacional. Verifica-se que, tal
como no caso do corporativismo clássico, o padrão de interação
grupos de interesse se convertem em instituiçöes de direito público.
Em segundo lugar, intervém o Estado para definir e arbitrar as
regras do confuto distributivo interclasses, ou grupos, sobre a base
ção de instituiçOes políticas de certa natureza
fortes e legítimas-a certo grau de
-
entre governo e sociedade que o caracteriza é o resultado da associa-
desenvolvimento
no caso, muito
organizacional
legítima de que, tratando-se de instituiçóes públicas, compete ao dos grupos sociais, resolvido autonomamente o problema da ação
governo estabelecer as normas que hão de presidir as relaçoes entre coletiva.
elas. AI ternos o corporativismo clássico, explorado por outro E possível observar agora onde se situam as interaçöes de tipo
ângulo no capítulo anterior, resultado da associação de três proces- poliárquico. Trata-se de reduzidaintervençãO regulatória do Estado
sos concomitantes: baixa institucionalizaçäo competitiva, partici- em assuntos que dizemrespeito a grupos de diminuto poder disruptivo
pação política ampliada e subdesenvolvimento organizacional dos e que, conquanto autonomamente formados, só freqüentam a árena
grupos de interesse. Ao contrário, portanto, do que sustenta vulgar- pública de maneira intermitente, com objetivos quase sempre
mente a reflexão tradicional, o denominado "corporativismo de defensivos nao agressivos e nao competitivos. Por isso podem
Estado" nada tem a ver com traços culturais herdados da cultura conviver pacificamente corn extenso número de grupos semeihan-
ibérica, mas explica-se pelas condiçöes históricas e institucionais tes sem que tal circunstância em nada comprometa sua capacidade
em que se desenrola o confito distributivo e a forma de solucionar reivindicatória. Ao contrário, e por contraste corn os grupos de in-
o problema da açao coletiva. teresse em sistemas corporativos e neocorporativoS, nos quais a
o eixo vertical B espeiha a situação em que os grupos solu- multiplicação de organizaçöes para representar os mesmos avuta os
cionaram por si próprios o problema da açäo coletiva, obtendo, em recursos de poder de cada urna delas em interaçôes poliárquicas, a
relação a cada grupo de referência, a devida cooperaçä'o dos
membros, estabilizando e fortalecendo corn o tempo a organização
resultante e dispondo, desde então, do recurso bastante considerá-
- por exemplo, os grupos ecológicos -
multiplicação de organizaçöes representando os mesmos interesses
exponencia a capacidade
protetora de todos. O mesmo vale para os grupos de defesa dos
vel de retaliaçäo econômica. Quando a major parte da sociedade consumidores, dos deficientes físicos, e um sem-número de outros
encontra-se organizacionalmente envolvida, e quando os conflitos segmentos, ou papéis sociais, cui a participaçãO na arena pública nao
distributivos mobilizarn enorme massa de recursos humanos e ou- significa, necessariamente, aliás quase nunca significa, a inaugura-
tros, esperar que a solução de eventuais disputas distributivas çäo de um jogo de soma zero.
resulte estritarnente do desgaste advindo do atrito cotidiano é fazer
a sociedade arricar-se a incorrer em altos custos pelos benefIcios do
eventual vencedor no "mercado". Em sociedades extensa e inten-
Os très padröes de interaçäo até aqui considerados -po-
liárquico, corporativo e neocorporativo ou consociacional
suem similaridades e dissimilaridades com respeito a três
- pos-
estratégi-
!
samente organizadas, o custo social dos conflitos setoriais, se deixa- cas questóeS, a saber: o modo de resolução do problema da ação co-
dos a si mesmos, é muito superior aos benefIcios conquistados pelo letiva, a forma de representaçâo de interesses e o tipo de jogo que
segmento privilegiado, tornando as sociedades Pareto-inferiores. instauram em relaçäo a grupos concorrentes. No que concerne à
Dal a intensa intervençäo regulatória do Estado sem que, contudo, açäo coletiva, sabe-se que, de algum modo, grupos poliárquicos e .(I
tal interferência tenha impacto nos negócios intragrupos. O objeti- neocorporativoS superam o problema sem socorro estatal. Assim h
vo da intervenção é administrar os limites do confito distributivo comojá mencionado, há exemplos de grupos mobilizados mediante
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70 AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 71
RAZOES DA DESORDEM
auxilio e estipêndio de financiadores de fora do grupo latente. E há vale em relaçäo ao Canadá e a vários outros países de estirpe
exemplos ainda mais esdrúxulos de grupos que se organizaram sob predominantemente poliárquica. Os dois modelos desviantes do
a pressäo de seus competidores diretos, pressao esta exercida a
pedido de um subconjunto de membros dos grupos pressionados. -
otimismo poliárquico -o corporativismo e o neocorporativismo
interaçäo entre o Estado e a sociedade tendo
remetem a formas de
Em qualquer caso, os grupos superaram o problema mediante em vista a alocação relativa dos bens gerados no processo produtivo
recursos privados e é plausível imaginar que algum mecanismo de pelos participantes da interaçäo ou, alternativamente e em tempos ii
tipo olsiano (coaçäo e/ou incentivo seletivo) colaborou para isso. Já de recessâo, a distribuição ponderada dos sacrifIcios a serem feitos,
os grupos Corporativos clássicos so Conseguiram equacionar o conforme a capacidade reivindicatória de cada grupo e as compen-
problema mediante a intervençäo do Estado, ao custo inescapável saçöes porventura garantidas pelo poder público. Eventualmente,
de perda de autonomia. face a um confito mais intenso por urna redistribuiçäo dos bens
Quanto à forma de representaçao de interesses, verifica-se que disponíveis, as posiçôes relativas dos diversos grupos serâo altera-
cada um dos padröes de interação o faz segundo diferentes figuri- das e o ordenamento social sofrerá modificaçöes de major ou menor
nos. Enquanto a representaçäo de interesses poliárquicos plural, monta. Quando o confito distributivo assume urna das primeiras
ela ë um monopólio de jure, no corporativismo clássico, e um formas descritas, diz-se que o jogo em curso é de soma variável, e
oligopólio de fato no neocorporativismo. Isso significa que em que é de soma zero quando há redistribuição absoluta de riqueza.
princIpio nao existem barreiras à entrada no jogo poilticò, em Em qualquer caso, e em qualquer dos dois modelos, o confuto e o
interaçôes poliárquicas, os interesses só podem manifestar-se atra- jogo se desenrolam entre agentes integrados no e pelo processo
vés de um número limitado de organizaçöes, em interaçöes produtivo.
neocorporativas, Constituindo-se essas organizaçoes em barreiras à Padrão interativo completamente distinto é aquele denornina-
entrada de novas instituiçöes representativas, e é, no corporativismo, do de "predatório" ou de rent-seeking. Neste caso, o investimento
legalmente impossível a qualquer interesse fazer-se representar dos agentes em busca de apropriar renda nada tern a ver corn o
senào através da organizaçAo depositária da delegaçao estatal. processo produtivo, mas tão-somente em atividades de lobbing, de
Finalmente, todos os très padroes de interação admitem a corrupção ou de aquisiçäo de recursos descartáveis para efeito de,
escoiha de estratégias que definem quer um jogo de soma zero via legislação de algum tipo, e nao de produçäo, obter-se transferên-
Cinteraçöes poliárquicas raramente), quer um jogo de soma variá- cia de renda de algurn grupo para outro. Traduzo rent-seeking por
vel. A relevâncja desta comunaljdade entre trés padrôes razoavel-
mente diferentes quanto a outros aspectos ficará clara quando -
predatório porque tal atividade, quando bern-sucedida, nada mais
faz do que transferir renda de um grupo para outro portanto o que
um grupo ganha é o que o outro perde e por isso é de soma zero -
-o
descrevermos um quarto modelo interativo ainda nao esclarecido
modelo predatório ou de rent-seeking. E indispensável, neste e, quando fracassa, simplesmente dissipa os recursos investidos na
passo, urna observação da maior importância. Os trés modos de obtenção de normas e leis que permitiriam a transferência de renda,
interação governo-sociedade nao implicam nenhum modelo e neste caso instaura um jogo de soma negativa.
subjacente de evolução histórica. E certo que, em diferentes perío- Se comparado aos modelos anteriores, em relação às três
dos, terá talvez havido predominâncja de um em relação aos outros, questöes estruturais, observa-se que, em relaçào ao problema da
no conjunto das múltiplas interaçöes entre o Estado e a sociedade. ação coletiva, o modelo predatório encontra-se em posição bem
O que evolucionariamente se pode considerar, porém, é que todas mais favorável do que todos os dernais pois, ou bem tern como
as sociedades abertas contemporâneas desenvolvem interaçöes ao agente um pequeno grupo que, por definição, nao encontra dificul-
longo de todos os trés padröes descritos, e também conforme o dade para articular a ação coletiva, ou bem algum subgrupo do
quarto, que o será. Nao obstante a exuberância das interaçôes de tipo grupo é privilegiado no sentido de que o investimento necessário
poliárquico nos Estados Unidos, por exemplo, investigaçôes recen- para a obtenção de legislaçao que dê acesso à renda é simultanea-
tes revelam a emergência do padräo neocorporativo. E o mesmo mente irrisório face aos recursos disponíveis do subgrupo e cria urna
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72 RAZOES DA DESORDEM
AÇAO COLETIVA E POLÍTICA REGULATÓRIA 73
o Jogo da Galinha (Chicken game) possui um ponto que Jogo da Segurança Mútua
maximiza o interesse dos doisjogadores (caso cooperem entre si),
Jogador A
mas nao é estável porque, se um dos jogadores trair, obterá vanta-
gens corn isso sem que o outro possa retaliar. A retaliaçäo levaria o C NC
"traído" a urna posiçao ainda pior do que conformar-se à traiçäo. A
tabela abaixo ilustra o caso corn a mesma ordern de preferência já C 3,3 1,4
descrita. -r
JogadorB I- -1
Jogo da Galinha (Chicken game) NC 4,1 1,1
L _[
Jogador A
C NC
C 3,3 -r 1,4
JogadorB
NC 4,1 0,0
L J_
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III - FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
INDICAÇOES SOBRE O HÍBRIDO
-
INSTITUCIONAL BRASILEIRO
I
índice de estabilidade ministerial leva em conta número de ministros, ministérios e du-
raçäo de governo para efeito de obter a média de duraçäo dos ministros. Esta média é toma-
da como proporção do mgximo valor que deveria obter, caso a estabilidade fosse total. Usei
tice-
este índice pela primeira vez em Sessenta e quatro -Anatomia da Crise, SP, Ediçöes Vér-
Iuperj, 1986.
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L
4
alimentava-se de sólido cotidiano, sem necessidade de qualquer segura de ingovernabilidade. Excesso de demandas relativamente à
capacidade governamental de processá-ias e respondê-las, na déca-
'
autoritários aumentou para 84. Hoje, o pêndulo favorece outra vez produzindo-se legislaçäo sem demonstrar que o comportamento
as poliarquias, mas crises de governabilidade em algumas regiôes
do Leste europeu suscitam apreensão quanto ao futuro próximo de
alguns países
demais incerto como garantia de ordern social -
espontâneo dos indivIduos, submetidos a regras nao escritas, é por
de onde se segue
o "confinamento" regulatório da cidadania; em segundo lugar, II
Tecnicamente, a literatura especializada consagrou um signi- mesmo quando a legislação previne algum malefIcio virtual, com
ficado razoavelmente preciso para o conceito de "crise de gover- freqüência ela o faz gerando externalidades que comprometem
nabiiidade" : essencialmente, trata-se da incapacidade de resposta aspectos positivos da situação ex-ante, de tal modo que o resultado
govemamentai face a alguma forma de excesso exercida sobre o final é, no agregado, pior do que a situaçao original. Viola-se,
governo. Anaiisando a crise política do Paquistao, ern 1965, Karl finalmente, o princIpio da credibilidade da lei, que é o que permite
von Vorys identificava limitaçóes na capacidade de coerção do o planejamento individual de cada vida privada e de cada investi-
governo, face a crescente insatisfação e demandas, em momento em mento social de rnédio e longo prazos
que sua capacidade de persuasäo era mínima Na mesma época,
praticamente toda a literatura sobre desenvolvimento político, e em
particular Samuel Huntington em seus estudos sobre governos 4
Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven, Yale Univ. Press,
pretorianos, apontava o excesso de demandas sociais como fonte -
1968; Michel Crozier, Samuel Huntington, Joji Watanuki, The Crises ofDemocracy, NY,
New York Univ. Press, 1975, S. Huntington,American Politics the Promise of Dishar-
mony, Cambridge, Harvard Univ. Press, 1981. Neste último lIVro Huntington argumenta
1
h
t
2
Os dados encontram-se em Robert Dahl,Democracyandits Critics, New Haven, Yale Univ. que instabilidade poderesultar até mesmo de um excesso de consenso.
Press, 1989, p. 240. 'Remeto aqui a Bruno Leoni, Freedom and the Law, Los Angeles, North PublishIie, 1972
3
Karl vonVorys,PoliticalDevelopmentjnpak&an, Princeton, Princeton Univ. Press, 1965. (1961), particularmente pp. 13 e 97.
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so 81
RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
Este formalismo poliárquico, todavia, assenta-se sobre urna socie- ergue uma sociedade complexa, interdependente, segregando gru-
dade que, plural embora quanto à multiplicidade dos gnipos de interesse, pos de interesse que, por si mesmos e através de sistemas partidários
é essencialmente hobbesiana, por isto que suas características poliárquicas efetivos, limitam-se mutuamente, controlam o governo e fabricam
correspondem a puco mais do que miiuiscula mancha na tuibulenta políticas públicas.
superffcie do país. E oerto que os grupos de interesse se multiplicam, mas Nao obstante o quase abusivo esquematismo da exposição,
nao mobilizam senão ínfima parcela dos "interessados". O pertencimento acredito que a estrutura delineada permite imaginar a complexidade
a multiplas associaçöes que, conforme a doutrina, impedida o agravamen- da elaboração que a sustenta. Por outro lado, esse mesmo
to dos conflitos, nao existe ou, se existe, é insuficiente como redutor da esquematismo tornará mais fácil verificar passo a passo em que
hostilidade intergrupos. medida o Brasil vem preenchendo os requisitos para a emergência
Nao obstante, a sociedade brasileira, tal como retratada em seu e eventual consolidação de urna ordern poliárquica, nao obstante a
próprio depoimento, encontrar-se-ja entre as mais pacíficas do herana corporativista. Em prirneiro lugar, a acumulação material.
planeta. Isto porque o indivIduo isolado, não-poliárquico, pobre em E suficientemente conhecido, e merecidamente cornemorado,
laços de congraçamento social, prefere negar o confito a admitir o fato de que o desempenho econômico brasileiro prenunciava o
que seja vítima dele. Por isso a poliarquia brasileira restringe-se a surgirnento de mais um país bern-sucedido industrialmente, a
pequena mancha institucional circunscrita por gigantesca cultura persistirem as taxas de crescimento prevalecentes após a recupera-
da dissimulação, da violência difusa e do enclausuramento indivi- ção de meados dos anos 30. Com efeito, se em 1939 o PIB per capita
dual e familiar. Aqui a avalanche regulatória do Estado nao chega, brasileiro era praticamente igual ao de Honduras (196 e 195 dólares,
ou nao tern vigência, e a institucionalidade é outra, rnuito diversa da respectivamente, a preços de 1970), em 1976 a diferença a favor do
arquitetura elaborada ao longo do prirneiro governo Vargas e Brasil j á alcançava cerca de duas vezes e meia. Longos períodos de
regulada desde entäo. E este híbrido que faz corn que o governo substancial crescimento econômico foram freqüentes durante as
-
governe rnuito, mas no vazio um vazio de controle democrático, últimas cinco décadas. E entre 1965 e 1980, por exemplo, o Brasil
um vazio de expectativas legítimas, um vazio de respeito cívico. experimentou uma taxa média de crescimento anual do PIB da
Nem por isto, todavia, o país é caótico ou ingovernável; apenas, como ordem de 8,8%?
se verá, existem soberanias concorrentes e o governo é múltiplo. Cumpriu-se o requisito de acumulaçäo e, tal como requer a
doutrina, associada a intensa urbanização, sobretudo após 1960,
caracterizando-se ademais aquele desempenho econôrnico por sen-
sível diferenciação produtiva e diversificação social. E isto que está
i
Define-se poliarquia, sucintamente, por elevado grau de institucio- retratado nas tabelas i e 2 a seguir. Os valores para São Paulo são
nalizaçào da competiçäo pelo poder (existência de regras claras, incluIdos com o objetivo de assinalar alguns dos pontos mais
públicas e obedecidas) associado a extensa participaçào política, só longínquos a que chegaram os processos considerados.
limitadaporrazoável requisito de idade. Acoexistência de ambas as
dimensöes supôe, minimamente, a garantia dos direitos clássicos de
associaçao, liberdade de expressao, formaçao de partidos, igualdade
perante a lei e, afinal, controle da agenda pública Historicamente,
estas foram as condiçôes necessárias para a emergência de sólidas
poliarquias: continuado processo de acumulaçäo material, induzin-
do ou associado a elevado grau de urbanização, sobre os quais se
7A série que permite a comparaqio corn Honduras encontra-se em
Cepal, Cadernos Estatis-
Chile, 1978. Para as
ticos, Serie Historias dei Crecimiento deAmérica Latina, SantiagQdo Report 1990,
rfflCia clássica é, claro, Robert Dahi, Polyarchy, New Haven, Yale Univ. Press, 1971.
6A taxas médias de crescimento recente, ver World Bank, World Development
Dahl, Democracy, cit., refraseja mas nio altera substancialmente a teoria. Oxford University Press, 1990, tabela 2, Growth ofProduction, pp.
180-181.
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82 - 83
RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
Tabela i
Evoluçâo da População Urbana
%
- 1940-1980
Tabela 3
Associaçôes civis criadas na cidade de São Paulo, por década
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i
:
84 RAZOES DA DESORDEM 85
FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
:
Tabela 4
associaçóes comunitárias criadas em São Paulo, desde 1920, 97,6% Associaçoes civis criadas na cidade do Rio de Janeiro,
delas foram criadas entre 1970 e 1986. Todas as demais porcenta- por décadas
gens devem ser lidas da mesma maneira.
Profissionajs de saúde - 92,5 (segunda mais jovem)
Moradores - 90,7 (terceira mais jovem) Décadas 46/50 51/60 61/70 71/80 81/87
Advogados - 88,1 (quarta mais jovem)
Deficientes 82,6 (quinta mais jovem) N de associaçöes 188 743 1.093 1.233 2.498
Criadores 8 1,0%
Advogados 76,2%
.
Religiosas 75,5% ?
i:
Indústrias 71,0%
Desta lista decorrem algumas observaçoes importantes. Em Proprietários 70,4%
68,4%
:y
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86 RAZOES DA DESORDEM 87
FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
31,5% são sindicatos de empregadores e 53,0% de empregados. igualava-se à soma dos eleitorados da Bélgica, Dinamarca, Finlân-
Corroborando a tendência para a aceleraçáo mobilizacional con- dia, Noruega e Suíça.
temporânea, 38,2% do total de sindicatos de empregadores urbanos A média do crescimento do eleitorado brasileiro, entre 1945
foram criados entre 1960-88, enquanto a cifra correspondente para e 1982, excluindo-se 1958, foi de 31,2% a cada eleição legislativa
os sindicatos de empregados urbanos corresponde a 41,4%. federal. Para São Paulo essa média foi de 28,7% e a do Rio de
.
Os dados relativos à área rural são ainda mais espetaculares. Janeiro, 31,2%. Em projeção aproximada, isto significa que São
Do total de 1.751 sindicatos de empregadores rurais (39,0% do total Paulo terá em torno de 48 milhôes de eleitores no ano 2002,
de sindicatos rurais), 71,0% foram criados entre 1960-88, enquanto contingente que deverá ser inferior somente aos de Alemanha,
dos 2.732 sindicatos de empregados rurais criados entre 1900 e Japão, Estados Unidos, India e Indonésia.Urn mercado consumidor
1988 nada menos de 96,0% o foram entre 1960-88. Em aparéncia, de propostas políticas sem equivalente na maioria das democracias
a vaga mobilizacional poliárquica conseguiu, finalmente, incorpo- européias é, pois, forte tentação para políticas econômicas e sociais
rar os trabaihadores do campo à arena pública! de curtíssimo prazo, seguidas de retração. O perigo do processo de
Se todos são iguais enquanto demandantes, nem todos o são, stop-and-go encontra nesse ciclo urna de suas raízes, ao lado do
pordm, enquanto capazes de extrair legislação que atenda a suas sistema de grupos de interesse.
demandas. A emergencia de urna sociedade plural nao equivale, Mas o esboço da face poliárquica brasileira requer ainda
obviamente, à instituição de urna sociedade igualitária. Nern é este averiguar se é verdade que:
o suposto da doutrina. Existe urna hierarquia de demandas que, a) a expansão da participação eleitoral refletiu-se efetivamen-
quando o governo é estritamente neutro, tende a se reproduzir no te em dinâmica partidária competitiva;
padräo das políticas públicas adotadas. E isto, em particular, quan- b) a organizaçâo extrapartidária da sociedade (participação
do a lógica da competição eleitoral favorece o estabelecimento de em sindicatos e associaçôes), já apontada, replica as relaçöes entre
urna relação de natureza clientelística entre o representante e o educaçäo, renda e participação, encontradas em outras poliarquias.
representado. A caracterização da "ofertat' de políticas nao deve ser A resposta à primeira indagaçâo encontra-se na tabela a seguir,
feita, entretanto, antes de se observar a dimensão eleitoral da que informa o número de partidos parlamentares efetivos, indepen-
poliarquia brasileira. dente do número, sempre inflacionado, de legendas nominais:9
Ao se introduzir o tema do eleitoradoverificamos que tambérn
aqui o requisito poliárquico foi plenamente satisfeito. Entre 1945 e Tabela 5
1966 o eleitorado brasileiro aurnentou 199,0% para urn crescimento Número de partidos parlamentares efetivos (Cámara Federal)
(índices de Laakso-Teegapera (N) e Molinaro (NP)
populacional de 82,0%. Nos vinte anos subseqilentes (1966-86), a
população cresceu 62,0%, enquanto a explosào participativa (acorn- 1945/47 1950 1954 1958 1962 1966 1970
panhando a complexidade organizacional antes descrita) produzia
N 1 4,1 4,6 4,5 4,5 1,8 1,7
urna expansão do eleitorado da ordern de 209,0%. Em síntese, o NP 1,5 2,8 3 2,97(3) 3,8 1,3 1,2
eleitorado que correspondia a 16,0% da população, em 1945,
passou a 25,0% dela, em 1962, e finalmente a 51,0%, em 1986. 1974 1978 1982 1986 1990
Japáo, Estados Unidos, India e Indonésia, e somente São Paulo, Fontes: Tribunal Superior Eleitoral, Dados estattrticos, Boletim, Cámara dos Deputados,
corn seus 13 milhôes de eleitores, na mesma data, praticamente Centro de Documentaçáo e Informaço.
9
0 índice de número de partidos efetivos (N) foi proposto por Markko Laakso e Rein Teega-
pera em " 'Effective' Number of Parties: A masure with Applications to Western Europe",
Comparative Political Studies, 12, n°. i (abril 1979) e é igual a N =londe F é o índice
Os dados encontram-se em FIBGE, Sindicatos, vol. 1, Indicadores sociais, Departamento
de Estatísticas e Indkadores Sociais, Rio de Janeiro, 1987. 1-F
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88 RAZÖES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 89
Observa-se que, mesmo durante o período de competição Ao que parece, e por todas as evidências, os requisitos de um
constrangida(1966-1978), o eleitorado nao deixou de insinuar suas sistema poliárquico foram atendidos apropriadamente pela socie-
nuances de preferência. De 1950 a 1966 e, depois, a partir de 1974, dade brasileira. O desempenho econômico nos quarenta anos sub-
o sistema partidário brasileiro foi, e é, competitivo. seqüentes à década de 1940 foi espetacular e sem muitos paralelos
Finalmente, como elemento derradeiro. de persuasäo, as duas na história mundial até recentemente. Esta acumulação material nao
tabelas seguintes respondem à questão b e ratificam as relaçöes que foi vegetativa, mas diversificada, o que propiciou a geraçäo de
costumam ser encontradas em poliarquias entre renda e participa- interdependências e de um pluralismo social que se manif estaram,
çäo (quanto major a renda, major a taxa de participaçao) e entre graças à inexistência de inflexíveis barreiras à entrada, na multipli-
educação e participaçäo (quanto major a escolaridade, major a taxa cação dos grupos de interesse e na explosäo participativo-eleitoral.
de participaçao):1° A comprovação da existência de um espectro partidário de fato
Tabela 6 competitivo e de um estilo de comportamento social conforme
Filiados (sindicatos e associaçöes) por renda e educaçäo coroam a estruturaçào de um sistema que, de
classe de rendimento mensal (piso nacional de salário) acordó corn a doutrina, devia manifestar adequada capacidade de
% aprendizado diante de crises, reduzida taxa de desperdIcio e major
até 1/2 5,9
velocidade de recuperaçao após períodos de dificuldades. Por que
+1/2a1 8,7 tal nao acontece corn a poliarquia brasileira?
+1a2 13,1 Aresposta encontra-se, parcialmente, no hobbesianismo soci-
+2a3 18,1 al poliforme que dá, por assim dizer, sustentação à precária estabi-
+3a5
+5a10
25,5
lidade das instituiçôes poliárquicas formalizadas. Estas mesmas
31,5
.
+10 37,6
instituiçóes formalizadas, aliás,já revelarn algumas das perversida-
des operacionais. das democracias mais maduras. Imagino que
Fonte: FIBGE, Departamento de Estatísticas e Indicadores Sociais, Participa çäo Político-
Social - 1988, y. 2, Educação, majos de transporte, cadastro e associativismo, 1990, tabela anteceder a exploraçao do hobbesianismo social de rápida descri-
4.2, p. 8. çao de alguns mecanismos de nossa poliarquia formal talvez cons-
titua pedagógica introduçao ao hobbesianismo mais abrangente.
Tabela 7 Tal é a estrutura da seçao seguinte, que se inicia retomando a
Filiados (sindicatos e associaçoes) por anos de estudo
% questão da oferta" de políticas.
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90 RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 91
para a conquista de um posto, mais caro, em votos, o mandato, in- desembocam em demandas por regulaçao estatal. Na verdade,
dependentemente do sistema de representaçäo. Eis o coeficiente muito da demanda por políticas estrita demanda por regulaçäo,
eleitoral em três estados da Federação, em três eleiçöes diferentes: CujoS determinantes escapam à presente discussäo. Importa assina-
lar que a funçäo privada da política será tanto maior quanto major
Tabela
Coeficiente eleitoral para Cámara Federal
8
- Brasil
for o comprometimento do Estado corn a arbitragern e a regulação
de conflitos e disputas, em vez de permitir que sejam resolvidos
privadamente pelas partes. Ao mesmo tempo, o papel do Estado,
1950 1962 1982 produtor de insumos para o segmento privado, aumenta a cobiça por
% % % pOstos percebidos como lugares privilegiados de administraçäo das
coefi- elei- coefi- eid- coefi- elei- políticas públicas (vale dizer, dos orçamentos a elas associados), e
ciente torado ciente torado ciente torado corn enorme repercussão na vida social.
São Paulo 36.608 (1,8) 53.544 (1,4) 185.773 (1,4)
Por efeito de elevada intervençäo estatal, ternos então: a)
setores privados buscando capturar as burocracias estatais e send o
Rio de ao mesmo tempo delas dependentes; b) burocracias interessadas na
Janeiro 25.312 (4,0) 41.801 (3,7) 112.337 (1,8) manutenção dessa dinâmica; c) políticos funcionando por advoca-
cia entre uns e outros. Em conseqüência, quanto major a dependên-
Piauí 23.268 (10,6) 28.106 (8,9) 82.068 (8,4)
cia da sociedade em relaçäo à política, maior a probabilidade de que
Fonte: Superior Tribunal Eleitoral, Dados estatíslicos, vários volumes. Os políticos se comportern em funçäo tanto do enriquecimento
ilícito mediante todo tipo de pagamento (corrupçao) quanto de
Verifica-se que um mandato custa extraordinariamente caro
-
tentativas de ampliaçäo das chances de "comprar" mandatos cada
em sociedades de massa, urbanizadas e muito diferenciadas quanto
vez mais caros, vi manipulaçäo das políticas públicas das quais
a interesses e, por isso, colocou-se o Piauí ao lado de São Paulo
dependem alguns segmentos específicos (clientelismo), e da contri-
e do Rio de Janeiro. Ora, por que alguém, então, desejaria "comprar"
buição de clientes a que servem (financiamento de campanhas).
esse mandato? A resposta encontra-se na mudança do valor da
E a essa estrutura da oferta que se acopla um conjunto de
política como recurso em sociedades quase-poliárquicas. Ao con-
demandas por políticas públicas, cuja cornposiçäo de custos e
trário da política oligárquica, na quai a riqueza privada (voto
benefIcios sociais pode ser convenientemente tipificada conforme
censitário etc.) era condiçäo para obter acesso ao poder público, a
a seguinte tabela 2 x 2:
competiçäo política em sociedades quase-poliárquicas é caminho
alternativo ao mercado para a acumulaçäo de riqueza privada. Dal
que a participação política visando a posiçães seja também um
investimento econômico, originando crescente procura por cargos Tabela 9
eletivos, e nao só por parte de políticos profissionais. Essa mud ança Repartição de custos e benefIcios por tipos de políticas
na função privada da política intensifica a competiçäo no mercado
de votos, e tanto mais quanto mais extensa for a politização da so-
ciedade. Custos
Concentrados Difusos
A tabela permite perceber, primeiramente, quai o ideal de bem estruturados sindicatos de empregadores e de empregados cujo
neutralidade dos sistemas poliárquicos: produzir políticas públicas custo social é bastante elevado, medido por considerável volume de
que se localizem na diagonal AD, como expressão liberal da extemalidades negativas1
estratificação prevalecente na sociedade. Corn efeito, a cela A O funcionamento de urna ordern poliárquica gera, ele próprio,
compreende urna categoria de políticas orientadas pela considera- dinâmicas que ameaçam osfins em vista dos quais é instaurada, caso
ção de que aqueles que incorrern nos custos de urna política devem nao se reformem os meios tradicionais pelos quais ela opera. Na
ser seus exclusivos beneficiários. ausência de reformas institucionais profundas, e dadas a elevada
Já a cela oposta e simétrica deA, D, inclui as decisöes guiadas penetraçäo estatal, a extensão diferenciada do mercado eleitoral e o
pelo mesmo princIpio anterior, generalizado, isto é, se todos pagam intenso pluralismo organizacional, o cenário mais provável, no
(por exemplo, via impostos indiretos), então devern ser alcançados curto prazo brasileiro, é o de urn sistema tendente a manter, se nao
pelos benefIcios da política considerada. De modo geral, incluem- expandir a corporativizaçao e a rigidez tradicionais, associadas a
se aqui principalmente os bens coletivos clássicos. Em ambos os políticas clientelistas localizadas e a escassa racionalidade econômi-
casos, finalmente, vale o princIpio da reciprocidade, ou seja, quem ca e social. Ou, para ser preciso, o cenário é o da continuidade do
se beneficia, deve pagar. Evidentemente, trata-se de um universo que já vem ocorrendo de maneira crescente na face poliárquica do
sem externalidades, premissa nao explicitada, mas crucial na teoria sistema brasileiro: abundante e contInua legislaçào regulatória
poliárquica. dando lugar a todo tipo de ineficiências por via de subsIdios, pri-
A diagonal oposta, BC, reflete os dois eixos de confito real vilégios, credenciamentos, além da criaçao de barreiras à entrada.
nas sociedades contemporâneas. A cela B indica políticas de subsí- Existe, contudo, um outro país, embutido neste primeiro (nao
dios, regulatórias perversas, de criaçâo de barreiras à competiçäo, se trata de urna dicotomia geográfica, nem social, mas institucional)
de isençôes; enfim, políticas cujo resultado final consiste na e que, nao obstante estar inscrito em nosso cotidiano, raramente as
redistribuição de benefícios em favor de poucos, e que continuam pessoas se advertern para a extensao em que vivem fraturadas entre
ou passam a ser pagos por muitos ou todos. A cela C, outra vez dois sistemas. E este segundo país e sua lógica institucional que se
simétrica e oposta, define políticas redistributivas em razäo das descreveräo a seguir.
quais segmentos específicos da sociedade estipendiam o consumo Seguindo caminho inverso ao da construção poliárquica,
ou o aumento da renda de outros segmentos. Neste universo, inicio a descrição do hobbesianismo social qualificando os dados
claramente povoado por externalidades, o princIpio de reciprocida- relativos à participaçao, em particular a participação'eleitoral. Se é
de nao tern vigência. verdade que a excludência teórica do sistema pós-45 reduzia-se à
Os grupos de interesse que caracterizam as sociedades con- barreira clássica de idade e ao requisito de alfabetização por isso -e
temporâneas corn algum grau de desenvolvimento econômico o crescimento do eleitorado brasileiro se deu a taxas bastante
buscam forçar o governo à opção por políticas de tipo B ou C e, alvissareiras -,isto nada nos diz da disposição da cidadania,
mesmo na medida em que o Estado pretenda ser neutro, dificilmente supostamente poliárquica, em aceitar e efetivamente participar da
suas decisöes serào de tipo liberal-poliárquico, isto é, de tipoA ou disputa eleitoral.
D. As decisóes governamentais tenderäo antes a refletir a lógica de A redução e a prática eliminação das barreiras à participaçao
poder no mercado, quer produzindo decisôes de tipo B (em cujo nao garante automático compromisso, por parte dos detentores
caso será ajudado por um Legislativo distributivista, pelas razöes de desses direitos, de usá-los perdulariamente. Corn efeito, as taxas de
mercado político), quer produzindo políticas de tipo C, nem sempre
por razöes de justiça (e, outra vez, contando corn a colaboraçào do 'i A literatura brasileira sobre a dinâmica de grupos de interesse já é razoável, mas de
Legislativo), seja, enfim, permanecendo imobilizado pela magnitu- qualidade desigual. Dois trabaihos de consulta obrigatória, entretanto, são os de Edward
Amadeu e José Márcio Camargo, Relaçòes entre capital e trabaihonoBrasil: Percepçôes
de do choque entre atores poderosos e organizacionalmente bem e atuaçâo dos atores sociais, Departamento de Economia, PUC/RJ,janeiro de 199 1 ; e, dos
equipados. E o caso, nesta última alternativa, do confronto entre mesmos autores, 'Mercado de trabaiho e dança distributiva', em J.M. Camargo e Fabio
Giambiagi (orgs.), Distribuiçao de renda no Brasil, RJ, Paz e Terra, 1991.
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94 RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 95
alienação eleitoral nas eleiçoes para a Câmara Federal (abstençäo política, e, contrariamente ao esperado em universo poliárquico, o
plus votos brancos e nulos) sempre estiveram acima de 32,O9 entre conjunto total das pessoas interagindo nao corresponde senäo a
1945 e 1986, à exceçäo das eleiçöes de 45 e 58. Se é verdade que os minúscula fração das interaçöes possíveis.
52,8% de desertores, em 1970, podem ser atribuIdos à guerra civil Ahierarquia dos motivos que induzem ao contato parece outra
nao declarada, entäo em curso, como explicar os 44,5% de eleitores vez conformar-se às antecipaçöes poliárquicas e, outra vez, só
que se recusaram a votar, de um modo ou de outro, para a Consti- vigem para reduzidíssimo número de poliárquicos ativos. Assim, a
tuinte de 1986, repetindo a dose em 1990, sendo estas as majores distribuição dos contatos por tipo de motivaçào revela o seguinte:
taxas de alienaçäo eleitoral depois da de 1970? 61 % para fazer pedido, 15% para reivindicação, 13% para reclama-
A considerável magnitude da recusa às instituiçôes políticas, ção e, em último, 11% para oferecer sugestöes. Conforme o espe-
partidárias e associativas, contrariamente à expectativa poliárquica, rado, os sem renda ou com renda mínima nao têm qualquer contato
é repetidamente evidenciada pelos dados disponíveis. Recente corn políticos ou governantes, os que têm alguma renda reiteram a
inqudrito do IBGE, suplementar à PNAD 88, provê os dados de base relação clientelista-paternalista, e os que possuem renda mais
da tabela a seguir, revelando o reduzidíssimo contato entre os elevada preocuparn-se com o interesse geral. Isto, entretanto, ainda
eleitores e os políticos em geral, reconfirmando embora a hipótese se refere à fina película da interface entre a quase-poliarquia
poliárquica sobre a relação entre participaçäo e renda. Antes, institucionalizada e o mundo social circundante. Nesta interface
contudo, esclareça-se que os percentuais da tabela referem-se a um valem os supostos poliárquicos, sejam quais forem as motivaçoes.
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96 RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 97
milhôes de contatos efetivamente feitos. Este resultado é exemplar eleitoral. Os dados sugerem que quanto maior a renda e o nIvel
porque se repete para todo tipo de contato, independente da oti- educacional, menor o envolvimento direto com partidos, nada
vação. permitindo inferir quanto ao envolvimento subjetivo e objetivo no
o reconhecimento da representatividade dos partidos políti- processo eleitoral.
cos ou associaçöes comunitárias nao é particularmente superior ao
que se refere aos políticos e governantes, pessoalmente considera-
dos. Daquele mesmo total de 82,5 milhôes de adultos, 83% nao são
-
A evidência é suficiente para que se postule a existência de
uma cidadania nao poliárquica alienada eleitoralmente e refratá-
-,
ria apolíticos e àparticipação partidária convivendo em interaçöes
filiados nem a partido político, nem a associação comunitária, de mercado e de todo tipo corn a parcela poliárquica da cidadania.
sendo a rejeiçäo crescente conforme a renda e conforme a escolari- Observando, agora, as relaçöes entre representados e organizaçöes
dade. profissionais representativas, parece que alguns resultados confir-
mam o esperado pela doutrina. Viu-se anteriormente (tabelas 6 e 7)
Tabela 12 que a filiação a sindicatos ou associaçôes profissionais é crescente
conforme a renda e anos de estudo. As tabelas seguintes conf irmam
(piso nacional de salário) 1988
%
-
Distribuição dos filiados a partidos por classe de renda
a associação, agora desagregadas por regiöes:
!'
-
la4anos 9,0 11,6 13,0 17,6 11,0
positiva entre nIvel de renda e educação, por um lado, e taxa de 5 a 8 anos 14,0 13,0 16,1 22,3 12,0
participação, por outro. Os resultados que aqui aparecem quanto 9allanos 21,0 21,4 21,2 33,4 25,1
major a renda e a educação, menor a taxa de envolvimento -refe- 12 anos e -I- 36,0 40,4 32,3 47,3 50,0
rem-se especificamente a partidos políticos e nao ao processo Fonte: FIBGE, Participação, vol. 2, cit., várias tabelas.
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FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 99
98 RAZOES DA DESORDEM
o comportamento poliárquico existe, corn certeza, mas imerso poliarquia, cuja expectativa quanto à eficácia elementar do Estado
é próxima de zero, pode muito bem ser um dos elementos cruciais
em enorme boiha de alienaçäo e indiferença, tal como demorrtrado
pelos números a seguir, que permitem relativizar as tabelas anteri- para a compreensão de sucessivos fracassos de políticas e planos
ores: das 51.732.445 pessoas ocupadas, cerca de 82,0%, algo acima govemamentais.
A matéria requer evidências apropriadas. Eis o que informa
de 42,5 milhöes, nao eram filiadas a sindicato ou a qualquer
inquérito específico do IBGE: de urna populaçáo de 18 anos e mais,
associação profissional de empregados. Nem é possível asseverar
correspondendo a 82.514.891 pessoas, somente 8.641.761, equiva-
que maior ou menor grau de desenvolvimento econômico e social
lendo a 10,5% do total, reconheceram haver estado envolvidas em
possa esclarecer essa fuga aos órgäos de representação profissional,
algum confito dentre os seguintes tipos: questào trabalhista, pro-
tendo em vista a uniformidade da distribuição do fenômeno por
blema criminal, separaçáo conjugal, desocupaçäo de imóvel, pen-
região, conforme tabela abaixo:
são alimentIcia, confito de vizinhança, confuto por posse de terra,
cobrança de dívida, herança. E isto no período de cinco anos
Tabela 16 compreendidos entre outubro de 1983 e setembro de 1988.
-%
Filiaçáo a sindicatos ou associaçöes do total de pessoas Se o reconhecimento de envolvimento em confito parece !:
ocupadas, por regâo 1988 penoso, admitir a participaçáo em certos tipos de confito é ainda
mais doloroso. Observe-se a distribuição percentual dos conflitos
Brasil 18,0 reconhecidos, por tipo:
Norte 15,0
.f
H
Nordeste 15,0
Sudeste 17,0
Tabela 17 :tt
Sul 23,0
Centro-Oeste 17.0
-
ordern de freqüência Brasil (outubro 83 setembro 88) -
Pessoas de 18 anos ou mais envolvidas em conflitos por tipo e
%
Fonte: FIBGE, Participaçao, vol. 2, cit., várias tabelas.
Questão trabaihista 18,7
Separaçäo conjugal 18,0
Em suma, credibilidade institucional nao é subproduto auto- Problema criminal 17,2
Herança 10,3
mático de progresso material. E essa enorme massa urbanizada, Confito de vizinhança 10,2
envolvida pela dinâmica da acumulação econômica, sujeita a carên- Cobrança de dívida 9,1
cias de todo tipo, atomizada, usando corn parcimônia o recurso do Desocupaçäo de imóvel 8,5
voto, indiferente aos políticos e governantes e fugindo às malhas Pensäo alimenticia 5,2
organizacionais de partidos, associaçôes comunitárias, sindicatos e Confito pela posse de terra 3,0
associaçôes profissionais, é essa mesma massa, atomizada e vítima Fonte: FIBGE, Participaçaopolltico-social
Janeiro, 1990, tabela 1.1, p. 2.
- 1988, vol. 1, Justiça e vitimizaçöo, Rio de
de múltiplos exemplos de violência pública e privada, que justa-
mente nega a existência de elevada taxa de confuto, ou que nele
esteja envolvida. A óbvia e escandalosa ausência de capacidade
participativa (ou motivação), e à reduzida taxa de demandas, some- As quatro primeiras rubricas referem-se a pendências de
se absoluto descrédito na eficacia do Estado, e o estratagema de processamentojá rotinizado (à exceção da terceira) e correspondem
negar ter estado envolvido em algum tipo de confuto torna-se a mais a 47% do total de conflitos reconhecidos. Em contraste, confuto de
eficiente estratégia de preservação, por sua conta e por seus próprios vizinhança e posse de terra, somados e admitindo-se que se ref iram
meios, de um mínimo de dignidade pessoal. Mas, em razão disso, todos a conflitos rurais, alcançam 13,2%, correspondendo a
urna cultura cívica que se estrutura extralimites institucionais da 1.144.675 do total dos que admitiram confuto. Desagregando-se
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loo RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MINIMO loi
aqueles que reconheceram envolvimento em conflitos, por local de lado, ou a ausência ou quase absoluta ausência de renda, por outro,
residência, verifica-se que 1.545.236 pessoas localizavam-se em estão na origern da organofobia brasileira. Os dois Brasis entrevis-
áreas rurais, e representavam 8,0% do total da população n1 em tos apontam para urna dicotomia institucional, um híbrido, do qual
1988. Pela ordern de freqüência de conflitos reconhecidos na área participam ricos e pobres, profissionais liberals, líderes sindicais e
rural, 7,4% referiam-se a posse de terra, afetando a 0,6% do total da
populaçäo. Na realidade, a crer na admissáo dos entrevistados, há
ernpresários, em todas as regiôes do país
var agora.
-o que passo a compro-
mais confito conjugal nas áreas rurais (17,0%) do que de terra, e Todas as pessoas que admitiram envolvimento pessoal em
quase tanto quanto de vizinhança (25,0%). confito de algurn tipo nos cinco anos mencionados, bem como
Um dos motivos para a sonegaçäo do confito terá a ver, aquelas que se reconhecerarn vítirnas de roubo ou furto e agressão
provavelmente, corn o fato de que a admissäo do estado conflitual física, e que nao buscaram o judiciário, no prirneiro caso (67%), ou
impôe uma decisäo sobre o que fazer, e essa decisão tern custos. Trés a polícia, nos dernais (68 e 61% respectivamente), forarn indagadas
possibilidades surgem de imediato: nao fazer nada e conformar-se sobre por que negligenciararn a utilizaçäo das instituiçöes respon-
ao papel de vítima intermitente do confuto; resolver por si mesmo sáveis pela lei e pela ordern no país. As respostas foram assirn co-
( a própria definiçáo do estado de natureza hobbesiano); procurar as dificadas: resolverarn o problema por conta própria; nao quiseram
instituiçôes estatais competentes, arcando corn as conseqüências. envolver a justiça (jolícia); o incidente nao era importante (roubo,
Ao explorarmos a incidência dos trés tipos de atitudes, entre os que furto, agressâo física, confito criminal ou de terra podem, no Brasil,
admitem a existência do confito ou de algum problema social, ser considerados assuntos de menor importância); por falta de
entenderemos simultanearnente a cultura cívica da dissimulaçáo e provas; recorrerarn a terceiros ou a outras entidades; achararn que
os fundamentos de urna institucionalizaçäo alternativa à poliarquia ajustiça (jolícia) nao irla resolver; cabia à outra parte iniciar a açao; t
da legislaçäo e códigos formais. terniam represálias das outras partes envolvidas; nao sabiarn que
Registre-se aqui, quanto aos conflitos reconhecidos pela soci-
edade, que daquele total de 8.641.761 pessoas que admitirarn envol-
vimento em confito, nos últimos cinco anos, sornente 2.864.105
-
podiam utilizar a justiça (polícia); e, finalmente, outros (vago).
Excluindo-se as respostas por assim dizer poliárquicas falta de
provas, cabia à outra parte a iniciativa, ignorânciada existência dos
-e
(33,0%) confiaram a soluçáo do último confito à justiça.
o mesmo descaso pelas instituiçöes poliárquicas convencio-
nais transparece nas vítimas de roubo e furto e nas vítirnas de
-
recursos institucionais, e a rubrica "sern resposta"
porcentagens nao somam 100% obtérn-se a seguinte distribuiçâo
por isso as
Tabela 19
Tabela 18 Pessoas vítimas de roubo ou furto (out. 87/set. 88),
População presente de 18 anos e mais (1985-1988) envolvida em por alguns tipos de reação -
Brasil e regiöes
confuto por alguns tipos de reação - Brasil e regiôes %
% Brasil N NE SE S CO
Brasil N NE SE S CO 68,0 71,5 77,5 64,0 64,0 64,0
Nao recorreram
Participantes em
confito que nao Resolveram por
conta própria 6,0 5,4 7,0 5,5 5,4 6,0
buscaram justiça 67,0 60,0 65,0 64,0 68,0 67,0
Descrença; indiferença;
nao quiseram
envolvimento 54,1 58,0 60,0 51,2 59,0 51,0
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104 RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 105
A eloqüência dos dados garante a conclusäo de que, ademais dores. O realismo dessas expectativas é de crucial importância para
de existir um conglomerado social de considerável magnitude que os resultados da política. Na realidade, o sucesso de qualquer
sistematicamente dispensa o recurso do voto como mecanismo de política governamental depende tanto de sua qualidade técnica
participação, que se revela indiferente à participação que.vai do quanto da adequação entre suas expectativas sociais implícitas e a
partido político à associaçao profissional e ao sindicato, passando efetiva distribuiçäo de valores e atitudes, e suas respectivas inten-
pelas associaçôes comunitárias, e que ignora os laços contratuais sidades, pela população. Urna política tao trivial quanto urna
entre políticos e seus eleitores, também é assustadoramente elevado carnpanha de vacinaçäo nada significa se nao contar corn a adesão
o número daqueles que ou negam o confito, qualquer tipo de subjetiva de pais e macs à premissa govemamental de que é valioso
confito característico das sociedades contemporâneas e, em parti- e racional absorver custos de tempo e desconforto tendo em vista a
cular, das que são atrasadas, ou o reconhecimento dele nao os faz probabilidade do beneficio futuro esperado.
ativar as instituiçôes estatais apropriadas. Generalizando, a eficácia das políticas governamentais en-
o Estado brasileiro desperdiça grande quantidade de regula- contra-se em estrita dependência do estado da cultura cívica do país,
mentos, normas, comandos e diretivas, dos quais enorme contin- prevalecente em cada conjuntura histórica. As referências recorren-
gente populacional sequer se preocupa em tomar conhecimento, e tes e semifoiclóricas ao "jeitinho brasileiro", tanto quanto as con-
ainda menos usar ou usufruir. Os dados nao permitem afirmar que sideraçöes mais solenemente académicas sobre a "tristeza" ou a
os agregados constituIdos pelos que são, digamos, eleitoralmente
alienados ou absenteístas organizacionais, sejam os mesmos ou que
façam parte dos outros agregados. Mas a experiência individual de
"cordialidade" do poyo, sugerem diagnósticos sobre a cultura
cívica, interpretada esta sob a forma de um conceito algo estático
o conceito de caráter nacional. Na realidade, a cultura cívica de um
-
cada um é testemunha de que transitamos corn freqüência das país, sendo algo estável, nao deixa de supor oscilaçôes e, às vezes,
instituiçöes poliárquicas para as não-poliárquicas, como se estivés- substanciais transformaçôes, obrigando assim a que as premissas
sernos coabitando o mesmo universo institucional. Quando vota- das políticas do governo sejam alteradas.
mos conforme as regras da cidadania poliárquica, mas nao damos Por cultura cívica entende-se aqui, classicamente, o sistema de
queixa à polícia de que nosso filho teve seus tênis roubados, nós crenças, compartilhado pela população, quanto aos poderes públicos,
automaticamente mudamos de sistema institucional. E se em acrés- quanto à própria sociedade em que vive, e quanto ao catálogo de
cimo compramos gás paralisante para que o adolescente possa direitos e deveres que cada qual acredita ser o seu. Evidentemente a
proteger-se em futuro que se sabe próximo, escolhemos a via extensão e a intensidade corn que tal sistema é compartilhado variam
"resolverpor conta própria" em desespero da poilcia e dajustiça. Na razoavelmente, na população, em decorrência de fatores como nivel
verdade, toda a população brasileira transita permanentemente de de renda, educaçáo e ocupaçäo. Mas é pouco provável que, no Brasil,
um a outro conjunto de instituiçôes, corn repercussöes maléficas seja elevado o número de pessoas, em qualquer nivel de educaçäo ou
sobre a cultura cívica do país, em primeiro lugar, e sobre a proba- renda, que manifeste o fatalismo cívico islâmico, ou a intemalizada
bilidade de sucesso das políticas governamentais. Esta será a reverência japonesa diante da estratificaçäo social existente, e que
terceira e última seçáo desta viagem exploratória. parece caracterizar ainda hoje as sociedades orientais.0
Em suma, a cultura cívica indica o conjunto de expectativas
que os indivIduos têm quanto ao governo, quanto aos seus conci-
3
12
Estou adotando de maneira simples a formulaçäo de Gabriel Almond e Sidney Verba, The
Toda política governamental traz embutida urna expectativa Civic Culture, Boston, Little Brown (abridged edition), 1965. Depois de um período de os-
tracismo, o conceito e a problematica da cultura cívica retornam à agenda dos cientistas so-
de comportamento da comunidade. Urna política econômica, por ciais. Um dos poucos trabaihos brasileiros recentes sobre o tema é o de Amaury de Souza
exemplo, supöe certo tipo de reação dos agentes econômicos, e Bolívar Lamounier, "A feitura da nova constituiçäo: um reexame da cultura política brasi-
leira", em Bolívar Lamounier (org.), De Geisela Collor: o balançoda transiçäo, São Paulo,
enquanto produtores, e dos cidadãos em geral, enquanto consumi- Ed. Sumaré, 1990.
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L1
i
107
106 FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
RAZOES DA DESORDEM
onde se leu
dadãos e quanto a si próprios. O que oscila ou se altera historicamen- ou nao, de alguns segmentos sociais relevantes (e
do ramo
te, levando políticas ainda que tecnicamente perfeitas a retumbantes "vizinho da classe de renda de cima" pode ser lido "vizinho
desconto temporal
fracassos, é esta teia de expectativas que se frustram ou reforçam de negócios ao lado"), a distribuiçäo da taxa de
entre os grupos
reciprocamente como em um jogo de espelhos. E, ainda como em tenderá a ser bastante e desigualmente elevada
umjogo de espelhos, quando a primeira expectativa malogra cresce componentes do universo social.
a, probabilidade de que um efeito-descrença venha a se estabelecer.
Também nao podem os diversos agentes aceitar, sern algum
-
toda politica de
E conhecido o fenômeno de que mudanças sociais significativas tipo de incentivo, a premissa contrafactual de
alteram o sistema de valores publicamente compartilhados, e será ajustamentO aquela que sustenta que a situaÇãO seria ainda pior
agentes sabem corn
conveniente esclarecer algumas possíveis conexöes entre mudan ça na ausência da política de ajuste. Tudo o que os
econômico-
e valores. Antes, seria talvez de alguma ajuda aplicar esta perspec- certeza é que a política de ajuste deteriorou a condiçäo
de vigência. O
tiva a um exemplo: o da instabilidade da taxa de desconto temporal. social da maioria dos segmentos após x meses ainda
seria
o sentimento de futilidade dos sacrifIcios individuais argumento de que, nao fora a política, a deterioraÇãO
e, pois,
independe da magnitude agregada da economia ou da pobreza major nos mesmos x meses é totalmente inverificável Em
em curso.
inaceitável como razäo para solidariedade à política
média (major ou menor) do país, mas da experiência real de cada
um, caso tenha existido, de que sacrifIcios em passado recente
foram fúteis. E importante salientar que nem todos os sacrifícios de
qualquer caso, se a alternativa é a volta ao status
implicaria piora ainda major, ou à política vigente
mentalmente está produzindo sacrifIcios -,
-quo
que
ante, que
experi-
entäo toma-se outra
curto prazo constituem sempre um desperdIcio para todo o mundo. confor-
Para alguns, cujo número é todavia insuficiente para a susten- veztacional adotar elevadíssima taxa de desconto temporal,
taçao da política em curso, o sacrifIcio começa a aparecer como me as consideraÇöeS anteriores.
deslocamento
possivelmente compensador, desde que a política seja persistente- O Brasil está submetido a intenso processo de
migratóri-
mente implementada. Para outros, essa perspectiva nao é clara ou social que envolve mobilidade horizontal (movimentOs social).
estratificaçãO
nao Ihes parece convincente e, por isso, desaprovam a política. os) e vertical (tanto ascensäO quanto queda na
recessäo econômica contribuiu para tornar
Finalmente, para terceiros, o sucesso da política nao será, de fato, o período recente de acompanhar as
compensador da extensão dos sacrifícios contemporâneos. Quer mais acentuadas as características que costurnam
saibam disto ou nao, opor-se à política é inteiramente racional para fases de veloz transiçäO social.
permanente, a
os últimos. Embora as sociedades vivam em mudança
Isto faz com qûe
Por trás deste raciocInio encontra-se, é claro, um cálculo velocidade de mudança é, ordinariamente, baixa.
e de modo qua-
diferenciado que estima a contribuiçàoproporcional de sacrifícios as transformaçöes se processem incrementalmente que
aparência de imutabilidade
no presente versus osbenefíciosproporcionais prováveis no futuro. se imperceptive1 no cotidiano. A
a percepÇäo e o
Estimulante poderoso para a elevação da taxa de desconto temporal decorre do ritmo lento da mudanÇa condiciofla no sentido
sentimento de que o mundo social é altamente previsível,
radica-se precisamente no tipo de comparação que cada indivIduo amanhä, aproximadamefl
de que é racional esperar que tudo estej a,
faz. Ele nao se pergunta se, dado um seu sacrifício s, hoje, corres-
pondente a 1/2 de S, que é seu bern-estar total, ele poderá obter um
acréscimo de 1/10 de S ao cabo de n anos. Ele observa também que
te no mesmo lugar em que está hofe.
Em períodos de acelerada transformaçãO social
-, a percepçäO e o
- como é o
sentimento de
seu vizinho de cima, da classe de renda de cima, quero dizer, corn caso do Brasil contempOrâfleo oposta, isto
estabilidade são substituIdos pela sensaçáo justamente
um sacrifIcio s ', hoje, correspondente a 1/3 de S' , que é o bern-estar imediato. Esta sensação é
total desse vizinho, ele provavelmente obterá um acréscimo equiva- é, a de que nada é certo no futuro
corroborada pelas súbitas mutaçôes que de fato ocorrem no mundo:
lente a 2/10 de S' ao cabo dos mesmos n anos (por simplificação o da noite para o dia,
preÇOS que se alteram de modo significativo
tempo de maturaçao dos benefIcios é presumido ser idêntico para de forma aparentemente
todos os segmentos sociais). Enquanto esta for a percepçao, correta decretos e regulamentOS que se sucedem
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108 - 109
RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MINIMO
- -
edade social, igualmente, como, por exemplo, dar uma carona ou
atender a pedidos de ajuda e, de novo, como requerem as normas
arniscam-se a obten como resposta assalto ou qualquer outra
acelerada caracteriza-se pela inexistência de um código de conduta
universalmente aceito e, por isso mesmo, eficaz na reduçâo da taxa
de imprevisibilidade do mundo e na garantia de reciprocidade entre
forma de ofensa.
contribuição individual e retribuição social. Em tal circunstância,
A impotência individual em ajustar-se ao mundo deriva jus-
tamente do reconhecjmento de que a retribuição da sociedade, isto tendem a prevalecer os códigos privados de comportamento, corn-
é, dos outros, independe da contribuição do indivIduo. De onde se partilhados apenas por pequenos segmentos da sociedade major.
seguem a erosão das normas de convivência social, a tendência ao Surgem dal as subculturas do crime, as minissociedades drogadas,
isolacionismo e ao retorno ao estado da natureza, e a anomia. os anéis de corrupção. O universo social espatifa-se em micro-
A ineficiêncja crescente de compontamentos segundo normas agrupamentos que passam a definir para si próprios o que é certo e
provoca a detenioraçao da credibilidade nas próprias normas, isto é, o que é errado, o justo e o injusto. Constituindo-se de maneira
um número cada vez maior de pessoas passa a duvidar de que o estanque, nao há entre as minissociedades urna linguagem, um
comportamento alheio se pautará pelas regras conhecidas. Ao direito comum. Todas têm seu "código de honra", cada urna inteira-
contránio, a expectativa crescente é a de que os demais nao obede- mente,alheia aos códigos das demais.
cerão às normas consagradas, embora se desconheça o padrão de E quando o espaço público, social, se reduz ao puro confito
conduta a ser esperado. A crescente certeza na ineficácia das ou, na melhor das hipóteses, à indiferença, que o papel pedagógico
do poder adquire suprema responsabilidade. Por sua centralidade
e
normas gerais como determinantes da conduta individual, associa- como matriz de valores e
da à ignorância sobre os comportamentos possíveis, instauram a visibilídade, o poder político se afirma
paradigma de conduta. Transiçöes sociais aceleradas serão mais ou
dinâmjca de urna descrença e desconfiança generalizadas, abar-
cando, inclusive, pessoas e instituiçöes cuja destinaçâo é a preser- menos acompanhadas de "desordem" de todo tipo em função da
vação das normas (jolfcja, judiciánio). qualidade do exercício do poder e das normas que pautam esse
exercício. Nas condiçôes do estado da natureza, o poder político
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111
110 FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO
RAZOES DA DESORDEM
de produzi-
tanto pode contribuir para gerar os valors que restabelecem a qualquer rua). Quando, portanto, a agência encarregada
e o consurniSmo predatório, pró-
solidariedade e a confiança sociais, reduzindo o confuto a níveis su- lo nao o faz, a paralisia produtiva
face ao desafio da ação coletiva
portáveis, como, ao contrário, estimular o abuso e toda e qualquer prios do comportamento individual
E ueste caso
tentativa de satisfaçäo pessoal, independentemente do direito. Nes- voluntária, passam a caracterizar as interaÇöeS sociais. Os
transforma-Se em mercadoria.
te caso, nao existe obediência à lei, ineficaz como paradigma de o bern coletivo "ordern social"
seguir são alguns dos promotores
conduta, mas tão-somente o temor ao castigo. dois macroptOCeSSOS descritos a
Se nao é possível desconhecer o tremendo impacto social que de urna cultura cívica predatória.
transformaçöes aceleradas provocam, e suas inevitáveis repercus-
-
tempo ou a justiça
sOes em termos de imprevisibilidade, ansiedade pessoal e descon- i A impunidade como funçäo crescente do
.
a
escabroso, o
veniaiS e capitaiS.
difarnaçáo.
i''
gado de que só sobrevive quern consegue impor-se, por qualquer Sobre isto, porérn, mais adiante falaremOS.
em países de
mejo, aos demais. Ao contrário, todavia, do que costuma ocorrer
no Brasil , tendern a
Assim, reconhecendo toda a complexidade embutida em pro- cultura cívica näohobbeSiana, as denúnciaS,
A intensida-
çQs de transiçàosocial, é necessário reconhecer a procedência da cair no vazio, assim corno os crimes no esquecimeflto. corresponde
de das ameaçaS, quando os crimes são descobertoS,
sabedoria popular: o exemplo também vem de cima. Que evidên- cada "pacote"
cias ilustrativas será possível selecionar a fim de especular sobre a crescente leveza da pena, corn o correr do tempo. A por
Código do Consumidor,
qualidade cívica do país face ao híbrido institucional em que todos ecoflômico, ou "pacote" legal, como o de prisáo
,
charlatafleScos
vivemos? exemplO, segue-se meia dúzia de episódios
ordenameflto, ameaçaS
Vou referir-me ao que me parecem duas grandes macroca- de ínfimos e ridículos violadores do novo
de rigor nunca vistos
titânicas pelosjorflais e televisôes, promeSsas
i
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112
RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MINIMO 113
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114 RAZOES DA DESORDEM FRONTEIRAS DO ESTADO MÍNIMO 115
microssociedade. São os flihos dourados da alta classe média e da los de representação para melhor garantir eficácia governamenta! e
burguesia a revogar a lei do silêncio, mesmo na proximidade de crescente bern-estar da cidadania. Nao sendo urn anarquista
hospitais, corn suas motocas de cano de descarga aberto, enquanto institucional, creio firrnernente que tal discussäo é relevante. Mas
seus pais cercam margens de lagoas ou constroern edifIcios próxi- tambérn acredito que constitui excessiva promessa induzir à crença
mos às encostas de morros, quando nao nas próprias encostas. de que nossas rnazeias dependem crucialmente de urn regime
Urna sociedade descentralizadarnente mafiosa, na quai a pu- eleitoral. Isto nao é verdade. Nao haverá eficácia de governo
questão de tempo - essas são as instituiçöes -
nição é aleatória, a pena errática e a impunidade é somente urna
nao poderia ter
senäo um sistema de crenças públicas adequadas a tal sociedade,
enquanto a cidadania nao corresponder aos valores embutidos nas
políticas públicas, nem enquanto o simples estar dos cidadãos, mais
do que o bern-estar, depender de sua capacidadeprivada de haver-
isto é, que permita aos indivIduos sobreviverem enquanto nao são se corn a máfia descentralizada e corn o fenômeno da punição
vistos. aleatória. Nao se trata de pessimismo, mas, neste momento, nao há
Urna cultura cívica predatória é o que se pode esperar quando cultura cívica no país, apenas natureza. Exuberante, é claro, como
a população é composta por indivIduos que se consideram urn ao convérn a um país tropical.
outro: destruidor, acomodado, esperto, mal-educado, irresponsá-
ve!, preguiçoso, impaciente e desonesto (pesquisa da Soma, Opi-
niao e Mercado, em ¡sto E/Senhor, 27/3/91). Em ta! selva, é natural
que se considere aceitáve: deixar alguém guardando lugar na fila
para ganhar tempo, chegar atrasado a compromissos, colar nas
provas, estacionar em local proibido, parar carro em cima de
calçadas e gramados, subornar para conseguir algum serviço (idem,
ibidem).
poliarquias -
popuiação. Esta, por seu turno, recusa as instituiçöes centrais das
partidos, sindicatos, associaçOes
instituiçôes que justificam a existência do Estado
-e
-aaté mesmo as
justiça e a
polícia como garantidoras da lei. Universalizar o Estado mínimo
constituiria saudável providência para quem deseja, para princIpio
de politica, um Estado eficaz.
E nesta sociedade de predadores que se discutem hoje mode-
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IV - PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS
MUNDOS POSSÍVEIS
OU COMO SE TORNAR UM PAÍS
MAIS POBRE E PREDAR O PLANETA
Introduçäo
É mais fácil para um país pobre tornar-se ainda mais pobre do que
enriquecer. Näo obstante, continuar lutando contra o subdesenvol-
vimento é algo obrigatório para os governos desses países, pois
constitui a mais eficaz estratégia de sobrevivência política no
mundo contemporâneo. Iniciativas para combater a pobreza, e
justamente por causa das circunstâncias que devem ser superadas,
possuem remotas chances de atingir o seu objetivo. Em particular,
será inútil multiplicar os esforços iniciais, ou seja, exaurir os recur-
sos do país, pois esse curso de açäo somente irá sornar-se à "tragé-
dia dos comuns", a predação do planeta. Assirn, o crescente
confuto entre as aspiraçôes dos países pobres, que nao podem ser
desprezadas, e os interesses coletivos em torno da preservação
ambiental aponta para um tipo de superjogo do "Dilema do Prisio-
neiro", ou para o jogo do "Despeito", nos quais as naçöes do pri-
meiro mundo devem aceitar o papel de "tolos" temporários como
condição necessária para a eliminação dos "caronas" (os países po-
bres) a médio e longo prazo Nesta conjuntura, o altruísmo dos
países ricos, agora, é urna forte exigência para que se obtenha a
garantia da participação coletiva futura na produção deste quase que
I
Dados os propósitos substantivos deste texto, nao levarei em eonsideraçao as peculiaridades
da Europa, como subconjunto do Primeiro Mundo, e as peculiaridades da América Latina,
como subconjunto do Terceiro Mundo. Os conceitos de superjogo, Dilema do Prisioneiro
e 'carona' (free-riders)já foram explicados no capítulo anterior. O 'jogo do despeito" pode
sersimplificadamente assim definido: supondo que um ordenamento de zero (o menos dese-
jado) a quatro (o mais desejado) representa, mediante alguma transformaçáo aritmética, dis-
tâncias reais entre utilidades (valores), cada competidor, em "jogos de despeito, prefere
a soluçäo 3,0 à soluçäo 4,2. Isto porque neste tipo dejogo cada quai no procura maximizar
o ganho em si (o que apontaria para a soluçAo 4,2), mas a diferença entre as posiçóes, de onde
a estratégia privilegiada seria a que proporcionasse a soluçâo 3,0.
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118 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 119
puro caso de bem público- a proteção ambiental. O cenário oposto priado, nao o percorre suficientemente por incompetência ou im-
assegura desde o início a preservação do mejo ambiente, mas requer possibilidade. As próximas seçöes esboçam urna fenomenologia
cooperação total entre os países ricos e pobres, ao preço de gerar nao exaustiva destas políticas demoníacas.
urna possível ordern hierárquica estacionária entre os Estados-
nação. Aunificaçäo européia, nesse contexto, tende a aparecer mais
como potencial ameaça do que como endosso aos objetivos estra- 1. Subdesenvolvimento e inação
tégicos dos países pobres.
Embora eu esteja inclinado a acreditar no realismo do argu- Evidentemente, é difícil encontrar uma circunstância política na
mento acirna delineado, a natureza lógico-modal de seu estatuto qual um governo literalmente nada laça. Ainda assim, existem
epistemológico deve ser firmemente enfatizada desde logo. No que várias estratégias políticas, ou simplesmente políticas sem estraté-
se segue, descreverei um "mundo possível" distante um ou dois gia, que equivalem à macao, quando se estima seu resultado líquido
passos do nosso. para a situaçào global do país. Seguem-se três importantes dinâmi-
Por se tratar de um argumento modal, sinto-me desobrigado cas que resultam, no agregado, em estáticas semelhantes.
de coiher evidências deste mundo para substanciar proposiçöes 1) Sempre que o confito se generaliza, os recursos políticos
referentes ao "mundo possível", objeto de investigaçào. Contudo, fragmentam-se entre os atores relevantes, e as clivagens ideológicas
vez por outra tomarei emprestado ao mundo cotidiano números e tomam-se intensas e radicalizadas. Entáo, é provável que os proble-
avaliaçôes respeitáveis como ilustraçöes do que possa vir a ocorrer mas substantivos nao sejam abordados, mas que continuern se
no meu "mundo possível". Por conseguinte e porque é um "mundo deteriorando como que por inclinaçäo natural. A emergência de um
possível" no sentido modal, e nao no sentido probabilístico, segue- grupo político suficientemente forte para impor, isolado ou em
se que, a despeito de toda evidência empírica que algum contra- coalizäo, uma estratégia específica para enfrentar os problemas,
argumento hipotético porventura traga, ele deverá, em qualquer parece longínqua. E comum que se cristalize, em seqüência, urna
caso, ser um contra-argumento modal. Em outras palavras, para se espécie de paralisia decisória, fonte da percepçáo de que, para todo
discutir prosperidade conjunta, esgotamento da natureza, depau- efeito prático, o governo nada estará fazendo para suprimir os males
peração de recursos e problemas afins, será indispensável para
-
sociais.
rejeiçäo. das implicaçôes do men "mundo possível" nao somente Costumo definir tais conjunturas como casos de rnaiorias
assumo imediatamente -
expô-lo como constructo empiricamente deficiente algo que
mas demonstrar que o mundo que ihe é
contrário é o mundo necessário do futuro.
fragmentados -
cíclicas de veto. A medida que os recursos políticos tomam-se
e por isso nenhuma coalizào consegue impor
soluçóes positivas, do mesmo modo que as posiçoes ideológicas,
-
argumentos formais -
De fato, a maneira formal de rejeitarum "mundo possível" corn
-
por exemplo, a proposição "o mundo W é
radicalizadas, inviabilizarn negociaçöes, o resultado do confito
-
tende a ser um impasse político: assim como é extremamente difícil
possível" consiste na demonstração de que seu contrário no
compor urna coalizão vencedora em apoio a urna particular decisão
exemplo aproposiçào: "é necessário que nao W' sejaverdadeiro. política, são formadas inúmeras coalizOes de veto contra qualquer
Conseqüentemente, a menos que se adote alguma espécie de proposta específica. Embora este fenômeno, quando em operação
determinismo sócio-econômico , a alternativa a um "mundo possí- moderada, constitua uma das fontes responsáveis por instabilidade
vel" é outro "mundo social possível". Assim, a partir de agora volto- localizada no desempenho govemamental, seu caráter difuso nos
me para os atributos de um deles. sistemas de governo dos países pobres toma-os suscetíveis a recor-
No mínimo, um país pobre toma-se ainda mais pobre em razão rentes crises de paralisia decisória. Por necessidade, entào, eles
tanto de políticas que equivalem a nada fazer em relação às suas consomem grande parte do tempo tentando gerar condiçóes de
condiçôes presentes, como da implementaçäo de políticas equivo- govemabilidade em vez de governar. Neste ínterim, esses países
cadas, ou finalmente porque, mesmo optando pelo caminho apro- tornam-se mais empobrecidos.
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120 RAZÖES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS...
Para conferir modesto sabor de realismo a este "mundo preparado para auferir retorno do investimento pretérito. Ou, dife-
possível", e para ilustrar o argumento, sugiro que as crises no Brasil rentemente, decide orientar recursos para os departamentos de
e no Chile, que resultaram nos golpes militares de 1964 e 1973 pesquisa e desenvolvimento (R&D) de grandes corporaçöes. Em
respectivamente, podem ser interpretadas como casos extremos de ambos os casos, se a mudança for mantida por alguns anos, os
maiorias cíclicas de veto. Para que nao se entenda que isto é urna primeiros resultados de esforços e recursos alocados serào transfor-
"doença tropical", por assirn dizer, será útil lembrar que a queda da mados em pó. Se nao fosse por outro motivo, o país terá se tornado
Quarta República na França ocorreu na seqüência do mesmo padrão ainda mais pobre, umavez que poderia ter consumido o investimen-
de confito: parlamento fragmentado, radicalização ideológica, to em vez de desperdiçá-lo.
coalizöes cíclicas de veto e crescente instabilidade dos "gabinetes" Qualquer política que nao produza benefIcio líquido é equiva-
( corno mais urna instância do mesmo processo poder-se-ja adicio- lente a urna nao-política. Políticas inconsistentes possuem o atribu-
nar o exemplo do golpe na Turquia em 1960).2 to de cancelar as conseqüências urna das outras, nada deixando
2) Quando sustenta um programa ampio de educação pública, como ponto de apoio a partir do qual um país poderla continuar
dos níveis elementares ao universitário, e, ao mesmo tempo, negli- prosperando. Por exemplo, nao estou informado sobre qualquer
estudo a respeito dos resultados do programa de saneamento
gencia o crescimento industrial e priviiegia os grupos exportadores
desenvolvido no Brasil nos anos 70 -e de novo isto é um toque de
de produtos agrícolas, o governo está preparando o cenário para um
futuro declínio dos salários reais urbanos. Da mesma forma, quando realidade -, mas estou seguro de que, seja lá o que tenha aconte-
sanitárias do país, no começo
urna política pública de assistência à criança se desenvolve parale- cido, o fato bruto é que as condiçôes
lamente a urna nao-política de habitação, o futuro certamente trará da década presente, são pelo menos tao ruins quanto nos anos 70.
o aumento do número de favelas, de doenças e de vioiência. Ambos Nao acho necessário multiplicar os exemplos para sustentar a
os exemplos apontam para mais uma dinâmica de onde se origina proposiçäo de que urna das razöes pelas quais um país se torna mais
urna estática agregada. Este caso pode ser classificado sob o registro pobre consiste no fato de que políticas substantivas, a contrapropósito,
"políticas contraditórias". são a mesma coisa que inação governamental, ao nIvel macro.
Este conjunto de políticas que se cancelam mutuamente, apa- 3) Se é o caso de que o Estado passa a gastar mais corn urna
rentando macao governamental, revela dois tipos de temporalidade. determinada política, sem melhoras proporcionais nos resultados,
Urna delas ocorre quando políticas contraditórias são implementadas então parece razoável inferir que, ao nIvel macro, o país está se
ao mesmo tempo, e os dois exemplos acima pertencem a este tornando mais pobre: ele despende mais recursos para obter a
subconjunto. A outra remete aos casos de políticas que demandam mesma coisa. Supondo que os retornos da política permaneçam
certo período de tempo antes que comecem a dar resultados. Muitas constantes, é sensato também esperar que aos olhos do poyo o
vezes, precisamente quando a política aproxima-se da maturidade, governo apareça como nada fazendo para controlar o problema.
o governo a interrompe ou inicia uma nova que a contradiz. Talvez a segunda parte da inferência soe um pouco excessiva.
Considere-se o caso de um país em desenvolvimento que, Considere-se, todavia, o eventual realismo da seguinte máxima:
depois de vinte anos de investimento em recursos humanos corn o tudo o que é artefato hoje aparecerá como estado de natureza
objetivo de formar massa crítica em ciência e tecnologia, financian-
do, ao mesmo tempo, a difusão de centros de pesquisa estratégia - amanhà. Esta máxima é verdadeira no meu "mundo possível", e
ajuda a explicar um pouco das diferenças de percepção entre
-
para aquisição de graus de liberdade vis-à-vis o mercado internaci-
onal de conhecimento , esse país, subitamente, decide adquirir
tecnologia importada, precisamente nos ramos em que estava quase
geraçöes, classes, pessoas e naçôes.
a um
Receber um carro como presente normal de seus pais parece
adolescente dos dias de hoje inteiramente natural. Para os pais,
entretanto, seus carros só puderam ser adquiridos por mejo do
2
Ver, para o caso brasileiro, W.G. dos Santos, Anatomia da crise, São Paulo, Vértice Editora, trabalho. Do mesmo modo, ter um destacamento policial protegen-
1986; para urna análise do golpe chileno, ver W.G. dos Santos, "Autoritarismo e após con- do o bairro aparecerá aos moradores como urna inovaçào política
vergências e divergências entre Brasil e Chile", Dados, vol. 25, n 2, 1982.
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122 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OTJTROS... 123
( artefato) na primeira semana, mas na segunda ou terceira semana pobres podem se enredar, de tal modo que o resultado líquido da
tornar-se-á estado de natureza. Ademais, se o governo nao demons- ação governamental será prosperidade zero, ou ainda mais pobreza.
tra qualquer sinai da preocupação corn a segurança do bairro, a Voltemos, agora, ao segundo conjunto de possibilidades perversas.
suspeita de que o governo nada fez pela proteçâo da área rapida-
mente se disserninará. Auxiliado pela máxima, poder-se-ja então
dizer que é precisamente porque o governo gasta mais com, diga- 2. Subdesenvolvimento e incompetência
mos, saúde pública que ele é por vezes avahado como omisso em
relaçáo ao problema. Para qualquer economista neoclássico, para nao mencionar os
Existem trés maneiras pelas quais um governo paga mais pelo libertários contemporâneos, quanto mais os governos buscam ad-
mesmo. A primeira, obviamente, implica aumento nos custos ministrar problemas econômicos e sociais, majores as chances de
administrativos. Estes, ainda que justificáveis, dão crédito à crítica
da macao governamental, através da máxima hobbesiana. A segun-
da maneira de explicar a assimetria supöe que (talvez por meio de
cessárias na alocação de recursos -
ocorrerem decisóes erradas, equívocos graves, ineficiências desne-
em suma, falhas do Estado, as
quais, e isto é quase um postulado ontológico, são sempre piores do
um ordenamento organizacional) atividades predatórias (rent- que as pretensas falhas do mercado. Pode-se, corn simplicidade,
seeking) tenham se infiltrado na implementação do programa. A formular a hipótese de que quanto mais os governos interferem na
terceira diz respeito a todo tipo de corrupçäo. vida social e econômica, mais os países empobrecem. No entanto,
Embora existam controvérsias quanto ao melhor modelo de
explicação do comportamento burocrático, ninguém duvida de que
burocracia altruísta é coisa do passado, se em algum momento ela
decisöes erradas e o da extensão da intervenção do Estado
item nao abordado aqui, urna vez que estou preocupado corn os
-
a hipótese faz corn que sejam vinculados dois planos distintos: o das
um
existiu. Em todo o mundo, muitas políticas são "vampirizadas" por fundamentos epistemológicos, e nao ontológicos, da Política Eco-
um pequeno grupo de pessoas (algumas vezes grupos maiores) nômica.
freqUentemente corn base em pretenso monopólio de conhecimento 1) E comum que as pessoas cometam equívocos quando
técnico, que pode ser falso (o conhecimento técnico). Em segundo tomam suas decisôes cotidianas. E possível viver em sociedade e
lugar, governos tornam-se vulneráveis à atividade predatória quan- nao interpretar signos, decodificar mensagens (ou o que parecem
do optam por executar políticas públicas através do mercado. Se ser mensagens) sem assumir alguma forma de conexão entreA e B,
eles nao possuem um born aparato de controle, os grupos predató- na medida em que essa premissa nos permite antecipar associaçôes
nos podern apropriar-se de parte dos fundos alocados no programa, causais. E somente porque podemos supor que se A, então alguma
aumentando a necessidade de expansão dos gastos sem o correspon- coisa, que também podemos levar adiante nossos negócios. De
dente aumento nos serviços. Finalmente, e desafortunadamente, a todos os equívocos que cometemos na vida, aqueles derivados de
corrupção, outra vez, é bastante bem conhecida. associaçôes causais equivocadamente estabelecidas são os mais
Assim, a terceira maneira de urna naçäo tornar-se mais pobre férteis em conseqüências importantes. Se aceitarmos que o estoque
resulta do fenômeno dos gastos crescentes por igual nIvel de
serviços. Ainda segundo a máxima hobbesiana
ontem é o estado de natureza de hoje -,
-o artefato de
o fato será avahado nao
de conhecimento econômico e social é ainda bastante modesto para
gerar urna ruptura significativa entre os cientistas sociais e o
entendimento do leigo, então a administração dos problemas sociais
sornente como desperdIcio governamental (e, portantö, que o país
está se tornando mais pobre), mas tambérn que o governo decidiu
nAo seguir qualquer política específica.
dúvidas que atormentam os cidadãos comuns
associaçôes causais duplas que costurnamos
-
por estes cientistas corre o risco de ser invadida pelo mesmo tipo de
fazer
a saber, se as
são corretas.
Nada fazer, portanto, seja por paralisia decisória, políticas a
contrapropósito, ou finalmente, por desperdícios inexplicáveis,
compreende o primeiro conjunto de alternativas nas quais os países
a associação -
Trata-se de associação dupla
se A, então
jamos alguma coisa, tentamos
porque,
alguma
primeiro,
escapar
coisa;
desta
e
tentamos
depois,
evitandoA.
se
identificar
nao dese-
No mundo
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124 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 125
-
por exemplo, coalizoes predatórias
inflacionárias e fortes lideranças sindicais são suficientemente
ausência de instituiçOes sociais aptas a proteger a maioria da
população dos erros governamentais, e a forçar as autoridades a
reverem, e até mesmo mudarem, políticas correntes, seguem-se
fortes para manter elevada a taxa de inflaçäo a despeito de substan- duas conseqüências distintas e perversas: a) os custos sociais dos
cial redução na quantidade de dinheiro. Ao contrário, desemprego equívocos govemamentais tornam-se majores em países pobres, se
crescente e agitaçäo social, associados a urna inflação persistente, comparados a erros similares em países ricos, em razão da extensão
são conseqüências plausíveis e perversas que se seguern a sólidos abusiva do tempo durante o qual estes frutos da insensatez humana
antecedentes.3
são mantidos contra toda evidência de que nao passam de outra
Precisamente porque a estrutura causal do mundo humano es- coisa senão erros; e b) embora a distribuiçäo do ônus de atravessar
rente ao mundo natural
bênçäo -, -
tá longe de ser uma reproduçäo mimética do tipo de causalidade me-
algo que, bern estimado, equivale a urna
políticas que respondem convencionalmente a veihos
tempos difíceis nao seja igualmente compartilhada pelos diversos
segmentos societais, a capacidade defensiva destes, nos países ricos
e organizados, é intomensuravelmente superior à capacidade de-
problemas acabam por fracassar; Schott lista uma série de fracassos
fensiva dos segmentos sociais dos países pobres. Assim, quanto
experimentados por agentes de governo de vários países em sua luta major a perseverança do governo numa política perversa e maior a
contra a ameaça múltipla de inflaçào, depressão e/ou desemprego
capacidade dos grupos sociais mais bem organizados para financiar
durante os anos 80. Parece que nenhum instrumento de política
suas perdas, via outras políticas que extraem recursos dos segmen-
econômica deixou de ser utilizado sem que houvesse alguma
tos sociais mais fracos, mais os grupos fortes suportarão a primeira
alteração perceptível na escassez de resultados.
e apoiarão a segunda dessas políticas.
Por motivos semeihantes, concordo corn sua proposição (em
Os custos sociais do erro são notoriamente majores nos países
realidade, iria até mais longe) de que o medo de afirmar a necessi-
dade urgente de se rediscutirem os fundamentos epistemológicos pobres do que nos ricos. A falta de fortes instituiçOes protetoras
das ciências sociais só serve aos dogmáticos. Na verdade, Herbert facilita a permanência de programas absurdos para além do que
Simon e Amartya Sen são ainda mais céticos a respeito do estatuto deveriam durar, se se levassem seriamente em consideração seus
positivista destas ciências,5 ao exporem o verdadeiro alcance da resultados. Pelo mesmo motivo fundamental, aqueles que são ca-
pazes de demandar e obter regulação específica, transferindo os cus-
tos de políticas equivocadas para aqueles desprovidos de proteção
3
Aplico, nesta passagem, algumas teses metodológicas de Lieberson. Ver organizacional, aceitarão a existência destas políticas enquanto per-
Making it Count, Berkeley, University of California Press, 1985. Stanley Lieberson,
4
Ver Kerry Schott, Policy Power and Order -The Persistence ofEconomic Problems in
Capitalist States, New Haven, Yale University Press, 1984. 6Ver W.G. dos Santos, "Economia e ignoráncia", apresentado durante o seminário "Demo-
5Ver H. Simon, Reason in HumanAffairs. Oxford, Basil cratizando a economia: discurso e práxis", promovido pelo Instituto de Estudos Avançados,
Blackwell, 1983; A. Sen, "Rational Universidade de São Paulo,São Paulo, 26-28dejulho, 1988. Publicado emNotìa Economia,
Fools: A Critique of the Behavioral Foundations ofEconomic
and Measurement, Cambridge, The MIT Press, 1982. Theory", in Choice, Welfare Belo Horizonte, vol. 1, novembro de 1990.
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126 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 127
manecerem aptos a extrair recursOs dos grupos mais fracos (e esta, escusos modifica apenas marginalmente o padrao de privaçäo
a propósito, é igualmente urna política obtusa). relativa de outras camadas sociais. Em países pobres, todavia, o
Fragilidade epistemológica é algo que aflige as ciências mesmo tipo de política tern por efeito a reduçäo absoluta do padrao
sociais em todo o mundo. No entanto, o nIvel de desenvolvimento de vida de grandes populaçöes. Tome-se, por exemplo, urna polí-
institucional ajuda a esclarecer o fato de que o tempo requerido para tica de modernização técnica do segmento agrícola do setor primá-
consertar erros passados é consideravelmente maior em países po- rio, financiada corn recursos públicos. Obviamente, urna proporção
bres. Em segundo lugar, mudanças marginais nas posiçôes relativas razoável da força de trabalho deste setor encontrar-se-á "livre" para
dos diferentes segmentos da estratificação social são majores nos inchar o processo de urbanizaçäo. Por esta via, deterioram-se de
países pobres. Ambas as conseqüências finalmente interagem e modo absoluto as condiçóes sanitárias, educacionais, de habitaçäo
de urna das várias limitaçóes humanas
precário -, -
assim transformam o que em princIpio seria somente manifestação
neste caso, conhecimento
numa rotina social de exploração de algumas pessoas
e de emprego em torno das e nas grandes cidades.
Observando o mesmo problema por outro ângulo, podemos
dizer que o fenômeno das externalidades, considerado na sua versäo
por outras. mais perversa (na forma extremada de predaçäo e apropriaçao de
2) Urna segunda fonte importante de empobrecimento dos renda), afeta as naçôes de Primeiro Mundo na direçao e, algurnas
países ja pobres reside no fenômeno bastante conhecido das conse- vezes, na taxa de seus processos sociais e históricos sem, contudo,
qüências nao antecipadas de políticas sociais, econômicas e admi- interrompê-lo. Nos países pobres, o mesofenôrnenar1ta num
nistrativas. E certo que, considerando que tais conseqüências nao rearranjo na substância da pobreza e, corn muita freqüência, em sua
são previamente conhecidas, parece ser injusto utilizá-las na avali- mera redistribuição?
açao do governo; porém, o ponto é algo mais complicado. Sumariando esta seçào, observo que no mundo possível sob
De fato, é difícil conceber uma política livre de externalidades avaliaçao os países pobres podem tomar-se ainda mais pobres em
(urna forma possível de conseqüências nao antecipadas). Suponha, conseqüência de seu subdesenvolvimento institucional, o que torna
entretanto, que, num certo mundopossível, verificam-se as seguin- incomparavelmente mais fácil para seus governos persistirem no
tes três condiçöes: a) nao existe política disponível isenta de rumo equivocado por período de tempo mais longo do que seria o
externalidades (isto é, as negativas); b) todas as externalidades caso se existisse proteçáo organizada para os diversos setores da
implicam que ou bem os custos sociais da política sao difusos e sociedade civil. Pela mesma razáo, os custos sociais da obtusidade
maiores do que seus beneficios, sendo estes últimos privadamente govemamental sao desigualmente distribuIdos pela sociedade, em
concentrados; ou os benefícios sociais são agoras difusos e superi- função da capacidade defensiva de cada um dos estratos sociais.
ores aos seus custos, sendo estes últimos concentrados e privadamente Ainda como resultado do mesmo subdesenvolvimento, os governos
absorvidos; e finalmente, c) a vasta maioria das decisôes gover- destes países transformam-se em presas da "Lei de Diretor" ao
namentais, buscando maximizar sua racionalidade técnica, termina apoiarem políticas caracterizadas pela produção de custos sociais
por escoiher a primeira alternativa da condiçäo (b) acima. Toda vez difusos e benefícios privados concentrados, o que nao pode ser
que estas trés condiçóes se apresentam, os governos tendem a um compensado neste mundo possível por qualquer política de bem-
comportamento racional, ao nível micro, mas inconsciente a partir estar (o país, antes de mais nada, é pobre). Neste mundo possível,
de urna perspectiva global, e condenados a merguihar seus países externalidades negativas nao induzem simplesmente a urna
em urna condiçäo mais pobre. reorientação da dinâmica social: impôem brutal aumento e redistri-
o fato de que países ricos reais possam permitir-se, vez por buição da miséria.
outra, flertar e eventualmente optar pela terceira condiçao nao
significa que as conseqüências a esperar sèjam as mesmas nos dois
conjuntos de países. Em países ricos, urna política redistributiva que
favorecer grupos economicamente mais ricos através de meios 7
Ver Mancur Olson Jr., TheRise andDecline ofNations, New Haven Yale University Press,
1982. :
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128 RAZÖES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 129
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RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 131
130
Outros aspectos societais poderiam, evidentemente, carac- mento poderiam nao sornente progredir -o -
que aimai de contas
terizat um Estado-nação como subdesenvolvido, em desenvolvi- havia sido experimentado pela maioria dos países do mundo mas
mento ou desenvolvido. Por exemplo, mortalidade infantil, condi- que deveriam progredir num tal ritmo, e de forma tao persistente,
çöes sanitáriaS, taxas de analfabetismo etc. No entanto, supunha-se que os habilitasse a descontar a distância histórica existente entre
que, enquanto estes problemas poderiam obter resolução natural na eles e os países de Primeiro Mundo. A política de prosperidade, em
esteira do processo de desenvolvimento, o contrário nao seria sua essência, implicava a corrida pela eliminaçäo desta distância,
verdadeiro istoé, um país poderia, após enorme esforço, desemba- ainda que os outros competidores estivessem ao mesmo tempo se
raçar-Se da maioria desses problemas, e ainda permanecer subde- empenhando em aumentá-la.
senvolvido. Antes de apresentar a lógica que conduz a um possível modelo
Teleologicamente, a ideologia otimista dos anos 50/60 consi- de hierarquia internacional estacionária, será instrutivo esclarecer a
derava que, ao final do processo de desenvolvimento, a quantidade lógica do modelo de progresso por desconto. De novo, algumas
e diversidade dos bens disponíveis aumentaria gigantescamente, e simplificaçôes seräo óbvias, sem, no entanto, comprometer essen-
que a face nominal do produto estaria melhor distribuIda. Entrar no cialmente o raciocInio.
mundo desenvolvido, por decorrência, significaria o mesmo que Comecemos pelo estabelecimento de duas equaçöes que seräo
aumentar a renda nacional e distribuí-la de maneira mais eqUitativa úteis agora e futuramente:
do que anteriormente.
Se abandonarmos a cláusula coeterisparibus em relaçäo ao PIB t = PIB t-1 + (I.P/K) (1)
sistema internacional, urna premissa estratégica crucial embebida PIBt =Ct+Ia (2)
naquela ideologia tornar-se-á translúcida. Obviamente, os países do
Primeiro Mundo nao permanecem imóveis enquanto os países em A expressâo (1) afirma que a magnitude do Produto Interno
desenvolvimento implementam políticas pretensamente aptas a Bruto (PIB), no instante t, será a soma algébrica do PIB do ano
levá-los ao estágio de desenvolvimento desejado. Ao contrário, anterior mais o incremento marginal do produto (desconsiderando-
exceto por uma ou outra recessäo, os Estados-nação do Primeiro se as recessôes), gerado pela multiplicaçäo do que foi investido (I)
Mundo continuam a fazer crescer seus respectivos produtos. Em pela taxa média de produtividade (PIK). A equaçäo (2), por sua vez,
conseqüência, a idéia de que os países em desenvolvimento se mostra que o que se investe no período corrente surge como resIduo
transformariam em desenvolvidos, nao obstante o crescimento do daquilo que nao foi consumido do PIB anterior. Impoe-se o registro
Primeiro Mundo, implicava que, para a ideologia dos anos 50, ser de duas simplificaçöes importantes: na equaçâo (1), nao estou
um país em desenvolvimento significava ser um país crescendo a
taxas de desconto. Para que se pudesse entrar no clube do Primeiro
Mundo, qualquer país deveria, por um lado, nao só crescer, mas
o estatuto legal dos agentes que consomem ou investem
famIlias, firmas ou governo. Esta distinção nao é relevante
-
considerando a depreciaçâo de capital; na equaçâo (2), nao indico
para
se
o
fazê-lo em ritmo tao acelerado de forma a diminuir o hiato em argumento. A ausência de capital estrangeiro, na equaçäo (1), por
termos de renda per capita. Paralelamente, ele deveria patrocinar outro lado, é de fato importante para consideraçUes a serem feitas
urna política de redistribuiçäo de renda corn o propósito de dar adiante, mas nao neste ponto do argumento.
Origem à dinâmica responsável pelo desenvolvimento sustentado Pois bem, a lógica do modelo de progresso por desconto assu-
das econornias modernas e amadurecidas (o jogo do "Despeito mia, como premissa major implicita na cláusula coeterisparibus,
retira sua plausibilidade histórica desta premissa oculta, isto é, da que a relação fundamental entre I e PIK permaneceria a mesma no
POSsjbjljdade de maximizar continuamente a diferença de ganhos Primeiro Mundo, ou seja, que a taxa de investimento e a produtivi-
em favor dos subdesenvolvidos). dade de capital continuariam oscilando, no futuro, como oscilavam
A premissa otirnista básica da ideologia desenvolvimentista no passado. Como premissa menor, a lógica presumia que os paises
Coflsistia na expectativa de que alguns dos países em desenvolvi- em desenvolvimento alterariam substancialmente suas taxas de
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132 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 133
investimento e sua relaçäo P/K. A conclusão do modelo, entâo, PIB porque, se seu PIB é de apenas 40, ao final do processo o
predizia que, dentro de um horizonte de tempo de, digamos, n anos, primeiro terá crescido 30 e o segundo 12. Mesmo sem considerar
os países em desenvolvimento alcançariam os países do Primeiro diferenças no crescimento populacional, a primeira economia con-
Mundo. tinuará mantendo urna distância de 2,5 vezes em relação à segunda.
Em retrospecto, ambas as premissas pareciam bastante plau- O tamanho da economia é importante em outro crucial sentido:
síveis e racionais. As taxas de investimento, no Primeiro Mundo, existe urn mundo possível no quai a distância já cristalizada entre
ajustadas segundo tendencias seculares, se haviam mais ou menos naçôes ricas e pobres é de tal magnitude que o hiato entre as duas
estabilizado. Por outro lado, a relação P/K havia apresentado urna nunca será suplantado na estrita base do mau desempenho das
taxa de mudança bastante lenta ao longo dos últimos cern anos primeiras e conquistas importantes das segundas. E a esta lógica que
(1850-1950). darei atençäo agora.
Isto nao equivale a negar o crescimento dramático de produ- Assumo duas premissas do modelo de progresso por desconto
tividade que se deu em decorrência de contInua mudança tecnOlógica. como válidas em meu mundo possível, a saber: a) é realista supor
Estabeleceu-se, assim, uma ruptura aguda, abrupta e generalizada considerávei aumento nas taxas de investimento dos países do Ter-
entre a produtividade prú-iridustrial e o crescimento de output por ceiro Mundo; e b) é possível elevar substancialmente a relaçào PIK.
unidade de input nos tempos modernos. Uma vez ultrapassada a Destas duas assunçöes iniciais, segue-se a questão de saber até onde
barreira, todavia, o crescimento em produtividade, apesar de enor- se pode esperar que um país de Terceiro Mundo avance, submetido
me, processou-se, a partir de entáo, em ritmo estável ao longo dos aos seguintes dois constrangimentos: 1) nao haverá genocIdio no país
cern anos subseqüentes Os pensadores dos anos 50, acostumados hipotético; e 2) nao haverá urna revoluçäo tecnológica generalizada
a essas tendéncias, nao tinham consciência do fato de estarmos nos na economia, tal como a ocorrida durante a primeira Revolução
aproximando dos limites da segunda Revolução Industrial, ou, se se Industrial. A importância destes constrangimentos será evidenciada
quiser, da primeira grande ruptura. Por isso as coisas ainda pareciam em breve.
muito distantes de quaisquer mudanças abruptas? Recordando agora a equaçäo (2) PIB = C + I, e aplicando o
A segunda premissa parecia igualmente sensata. Consideran- primeiro constrangimento (o quai, suspeito, nao funciona só no meu
do os níveis extremamente baixos das taxas de investimento dos mundo possível), conclui-se que deve existirum limite a partir do quai
países em desenvolvimento, assim como o estágio atrasado de seus um país é incapaz de aumentar sua taxa de investimento. Amenos que
sistemas produtivos, era racional imaginar que obter-se-iam ganhos uma elite política esteja preparada e possua poder para levar sua
substanciais nestas duas variáveis se se delineasse e perseguisse popuiação à forne e à morte, nenhum esforço acumulativo transpöe a
urna política econômica apropriada. A lógica do progresso por
.
fronteira das chances presentes de sobrevivência da população, nao
desconto era, pois, contextualmente sólida. importando quão aleatórias e desiguais sejam estas chances.
Entretanto, neste mundo real, tanto quanto em meu mundo Realmente, observando o registro históriconota-se que nenhum
possível, números são tao importantes quanto porcentagens, em país direcionou mais do que 30% de seu PIB para a formação de
- -
particular se se trata de descontar alguma coisa. Pois, neste caso, a capital. E interessante notar que algumas das naçóes que mais se
base a partir da quai se parte conta significativamente. Exemplo: se aproximaram desta marca foram: Noruega (29,9% 1950/59),
urna economia possui um PIB de 100, um P/K de 3, e investe 10%
de seu PIB, nao será suficiente para urna outra economia com P/K
de 1,5 investir 20% (o dobro do investimento da primeira) de seu
Austrália (28,6%
Soviética (32,6% - 1950/60), Japáo (29,4% 1950/59), União
1960). Como se pode ver, nem mesmo urna elite
política tao intensamente comprometida corn a estratégia do desconto
quanto a soviética, e provida de tanto poder, pôde avançar considera-
8Ver, para um melhor tratamento destes problemas, Simon Kuznets, Modern Economic velmente mais do que govemos com menores graus de iiberdade.'°
Growth, New Haven, Yale University Press, 1966, pp. 72-85.
a noço de grande divisor", ver Michel Piore e Charles Sabel, The SecondIndustrial
'° Simon Kuznets, Modern Economic Growth, New Haven, Yale University Press, 1966,
Divide, New York, Basic Books, 1984. tabela 5.3, p. 236.
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134 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 135
A evidência contemporânea mostra, adicionalmente, que o determinado momento. Portanto, e por analogia, o mesmo raciocí-
teto de 30% para investimento permanece um número confiável de nio que revela os limites do crescimento ao lado do investimento
referência. Mesmo os tigres asiáticos, de urna forma geral, nao o pode ser repetido em relaçäo à variável produtividade. Enquanto o
ultrapassaram, corn exceçáo de Singapura, em 1988 (37% do PIB), constrangimento número (2) nAo for violado, haverá um crescimen-
e Hong Kong, em 1965 (36%). Ambos, no entanto, contando corn to máximo possível de produtividade por unidade de investimento
a contribuiçäo de capital estrangeiro.'1
( implicitamente, tern-se que urna fração de I, na expressao I.PIK,
Conseqüenternente, o primeiro constrangirnento do meu mun- contribui para a melhoria da própria relação PIK).
dopossível é razoável (e as cifras para o Brasil, urn país de Terceiro Mais urna vez o registro histórico fornece evidência de que as
Mundo, o confirmam)2 Sua implicação dinâmica esta: mesmo se taxas de produtividade variam dentro de certos limites entre as
se admite urn grande potencial de incremento nas taxas de cresci- naçöes, e cresce ao longo do tempo de forma contInua, ainda que urn
mento, por razäo de urna inércia do passado, e um crescirnento tanto 1entamente3
contInuo do PIB, a taxa de crescimento do investimento tenderá a E realista admitir que, na ausência de transformaçöes espeta-
zero. Em outras palavras, quando se atinge um consumo mínimo, a culares na estrutura tecnológica do sistema produtivo, melhorias em
taxa de investimento torna-se constante (isto é, a primeira derivada sua eficiência nao subverterão o máximo que se pode exigir dele.
da taxa de investimento em relaçáo ao crescimento do PIB será Desta forma, sob o constrangirnento número (2), os países de
zero). Em suma, para qualquer ritmo de desenvolvimento, existe Terceiro Mundo podem ser capazes de aumentar rapidamente suas
urna taxa máxima de investimento possível, a menos que o cons- taxas de produtividade, graças ao estágio pouco sofisticado de seus
trangimento número (1), previamente aceito, seja violado. sistemas produtivos, mas apenas até certo ponto.
Na verdade, quando um país evita a arneaça de forne, o A implicaçäo dinâmica da analogia é urna outra analogia. A
constrangimento número (1) deve perder sua conotaçao biológica, medida que a taxa de investimento aproxima-se do seu máximo,
e ser representado como um constrangimento relativo à estabilid ade para qualquer nível.do PIB (já ajustada à populaçào, e a todos os
política. Em qualquer sociedade existe um limite móvel de restriçäo outros valores relevantes), entäo a taxa de incremento do PIK
ao consumo pelos governos, sem que ao mesmo tempo se compro- tenderá também a zero, e o resultado da expressäo I.PIK atinge seu
meta sua estabilidade política; aparentemente, este limite móvel máximo, desde que (1) continue a apresentar seu valor máximo, tal
corresponde a urna proporçäo razoavelmente estável do produto como definido anteriormente.
interno bruto, que deve ser reservada para consumo em qualquer Paralelamente, deve-se observar que o modelo ganharia em
nível do PIB. naturalidade se se levassem em consideração as variáveis demográ-
Examinando a equaçäo (1), que faz corn que a taxa de cres- ficas e de distribuição de renda. Mas o ponto central do exercício
cimento seja dependente da taxa de investimento e da relaçäoP/K, modal pode dispensar estas complicaçoes sem perder interesse
tecnológica generalizada
gimento número (2) -,
-
¿ instrutivo perceber que, exceção feita para o caso de ruptura
hipótese proibida por nosso constran-
o incremento na produtividade do capital
teórico. Assirn, em vez de examinar o inventário de combinaçôes
possíveis entre tendências demográficas, por urn lado, e o perfil de
distribuiçào de renda, por outro, nas duas séries de países, parece
é também limitado, teoricamente, pelas possibilidades fornecidas mais conveniente assurnir que os países de Terceiro Mundo tende-
pelo estágio tecnológico característico do sistema produtivo num räo a seguir o padrão histórico dos países avançados (jara eles a
meihor opçao), sendo, por outro lado, improvável que estes últimos
11
Ver Banco Mundial, WorldDevelopmentReport 1990, Oxford University Press, tabela 9, sofram qualquer explosáo populacional.
pp. 194-5.
12
Ver IBGE: Contas nacionais do Brasil. Considerando a performance econômica do pas-
E pÏausível, portanto, em meu mundopossível, tornar um país
sado, simulaçäo recente estipulou como projeção razoável de investimento total do país subdesenvolvido corn reduzidos níveis de poupança e investimen-
durante os próximos dez anos em 23% do PIB brasileiro. Ver Winston Fritsch, 'Requisitos
macroeconômicos", em Hélio Jaguaribe et alu, Brasil: reforma ou caos, Rio de Janeiro,
Editora Paz e Terra, 1989. 13
Ver Kuznets, op. cit., lac. cit., notas 6 e 8.
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136 RAZOES DA DESORDEM
PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 137
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138 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 139
dos anos 80. Isto nao significa que a própria produtividade estag- há que se considerar o gráfico a seguir, que descreve as duas curvas
flou. Pelo contrário, o estudo infere que a produtividade continuou estacionárias:
crescendo a urna taxa quase constante6
Aceito de qualquer forma, para efeito de argumentaçäo, a taxa Um modelo estacionárlo de hierarquia internacional
constante mínima possível de crescimento da produtividade, algo
Países desenvolvidos
incomparavelmente menor do que deve ser atualmente o cresci-
mento uniforme das economias avançadas. Este mínimo existe nurn Ai A P/K
cenário livre de catástrofe, pois nenhuma economia pode funcionar A PIB AI
corn um P/K abaixo daquele estabelecido e difundido pelo sistema.
eficiencia -o
E concebível que urna economia comece operando corn mais
que significa que parte do (1) prévio está sendo
direcionada para o aperfeiçoamento de P/K. Todavia, excede os
limites da imaginaçáo pensar numa economia cujos resultados
exibidos são inferiores à capacidade já instalada. Na reflexäo de
Zeckhauser: "Em nossa (RUA) presente estrutura econômica, corn
exceçäo de medidas extremas, como sabotagem sancionada pelo
governo, aparentemente existe pouco a fazer para reduzir o nIvel de
outputpara quaisquer inputs dados." Chamarei isto de taxa mínima a'
constante de produtividade, quando a fração de (I), direcionada para b'
o incremento da relação P/K, tende, por qualquer motivo, a zero7
Nas últimas páginas descrevi de urna maneira extremamente
simplificada a emergência em um mundo possível dos estados
estacionários dos Primeiro e Terceiro Mundos. Corn certeza, tam-
bém podemos especular sobre as diferentes formas de interseção
entre as curvas estacionárias desses dois mundos. Entretanto, no
mundopossível de que se trata aqui, as curvas estacionárias dos dois
mundos nao se interceptam. Este é o motivo fundamental pelo quai
o tema da preservaçäo ambiental, entendido como um problema de Países em desenvolvimento
produção de um bem público, tende a transformar o confito de
interesses entre o Prirneiro e o Terceiro Mundos num superjogo do o gráfico sirnplesrnente configura o que tern sido discutido até
"Dilema do Prisioneiro", ou numjogo do "Despeito". Se o impasse agora. Os dois eixos, 1/PIB e P/K/I, indicam, respectivamente, o
possui uma solução positiva, ojogo há de ser interativo. Mas, antes, diferencial da taxa de crescirnento da taxa de investimento, em
relação ao Produto Interno Bruto, e o diferencial da taxa de
16
Ver F. Bombach, Post-WarEconomic Growth Revisited New York, North-Hoiand, 1985. crescimento da taxa de produtividade, em relação ao investimento.
Estudos mais recentes revelam, entretanlo, que nos setores de microeletrônica, biotecnologia A linha pontilhada (ab) representa a hipótese onde um país de
e novos materiais a taxa de inovaçâo tecnológica e da produtividade aceleraram tremen-
damente. Ver Carl J. Dahiman, 'The third Industrial Revolution: Trends and implications Terceiro Mundo poderla estar, em renda per capita, antes de
for Developing Countries', conferência sobre Nova Ordern Institucional, Instituto Nacio- explorar exaustivarnente seu potencial de investimento, e antes de
nal de Altos Estudos, Rio de Janeiro, 13/14 de abril 1992, p. 2.
aperfeiçoar, tanto quanto possível, o nIvel de produtividade de seu
sistema material. Torne-se a curva (1) das naçöes de Terceiro
17
Ver os artigos de Zeckhauser e Kenneth Arrow in Olson et alu, op. cit., e Lester Thurow,
The Zero-Sum Society, New York, Basic Books, 1980, principalmente o capítulo 4 para as
interaçôes complexas entre ciência, conhecimento, tecnologia e produtividade. Mundo. Ela avança a urna taxa decrescente até tornar-se constante.
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140 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 141
Iniciando-se no ponto (a), a taxa de investimento termina no ponto ria das decisôes dos países de Terceiro Mundo, em matéria econô-
(a'). Repetindo o procedimento para a curva P/K, percebe-se que a mica, implica urna escolha pelo governo entre quem e o que se deve
partir do ponto inicial (b) a curva se estabiliza no ponto (b'). deixar morrer, ou matar diretamente. A Terra ou os terráqueos.
A metade superior do gráfico expôe as mesmas curvas para Obviamente pode-se reduzir o ritmo da acumulação material
países do Primeiro Mundo, corn a diferença importante no entanto, ou, alternativamente, introduzir tecnologia adequada ou, finalmen-
de que essas são descendentes, e nao ascendentes. Mesmo assim, e de te, penalizar aqueles que geram externalidades negativas. A primei-
acordo corn o cenário descrito anteriormente, elas atingem urna linha ra alternativa, no entanto, está fora de cogitaçao pelo simples
de base, paralela à linha teto (a'b') do Terceiro Mundo. Esta linha, motivo de que crescer o mais rapidamente possível é ainda muito
denominada arbitrariamente de (oz), representa, neste mundo possí- pouco, na medida em que os governos enfrentam escolhas trágicas
ve!, o nIvel inferior máximo de evoluçào para um país de Primeiro genuInas. As segunda e terceira alternativas são razoáveis, ainda
Mundo estacionário. E óbvio, por simples inspeção, que o nivel que nao realistas. A segunda aumenta a demanda por aquilo que
superior máximo de evolução para um país de Terceiro Mundo em ainda é o principal recurso escasso: capital. A terceira compromete
desenvolvimento ainda nao seja suficiente para introduzi-lo no mun- qualquer política de estabilizaçáo monetária, pois qualquer forma
do desenvolvido. No mundo possível em discussâo, as naçôes de de puniçäo aos empresários será sempre transferida para os preços.
Terceiro Mundo podem aspirar à modemizaçäo, isto é, a urna enorme Por outro lado, é tarnbém verdade que a preservaçäo ambiental
meihoria das condiçôes gerais de vida de suas populaçoes, sern apagar é um bem público. Apresentando o problema de forma mais apro-
o hiato da privaçäo relativa. Chamemos este processo (no modelo priada: depauperar o planeta ou predar o meio ambiente implica a
estacionário de hierarquia internacional) de modemizaçào periférica. produção de um mal coletivo, isto é, algo cujo consumo nao se pode
Neste mundopossível, os destinos das naçôes de Prirneiro e Terceiro evitar, mesmo scm desejá-lo (ver capítulo II). Em geral, para
Mundos são paralelos: nunca irão se cruzar8 impedir a produção de um mal público é necessário gerar um bem
Para os países de Terceiro Mundo do mundo real é absoluta- coletivo. Contudo, se a produçào de um bern coletivo faz corn que
mente vital possuir alguma intuição quanto à distância verdadeira todos permaneçam na mesma posiçäo relativa em que estavam
entre as duas possíveis linhas (oz) e (a 'b Constitui erro primário,
'). anteriormente, então existe a probabilidade de que este bem público
entretanto, ambicionar competir corn os países ricos pela respon- nao seja produzido. Penso que representar o confito de interesse
sabilidade exclusiva de exploração material daquela porçào do entre os países de Primeiro e Terceiro Mundos sob a forma metafó-
planeta que cabe ao Terceiro Mundo (tal corno implicado no Jogo rica de um superjogo do Dilema do Prisioneiro contribuirá para o
do Despeito). Evidentemente, a privaçào relativa estimula a busca esclarecimento das condiçôes sob as quais, a médio prazo, os países
pelo crescimento material (uso "privaçao relativa" de rnaneira mais de Terceiro Mundo poderào superar o constrangimento da escolha
informal do que a definição do termo feita por W.G. Runcirnan). trágica e, conseqüentemente, tornarem-se aptos à cooperação para
Como qualquer lado desagradável da vida, lutar pelo crescirnento que se evite aquele tipo de mal público°
material constitui urna escoiha trágica genuIna para os países de Considere o quadro a seguir, onde as letras representam a
Terceiro Mundo (e uso o termo "escoiha trágica", neste momento,
precisamente como o fizeram Calabresi e Bobbitt)9 A vasta majo-
colha trágica caracteriza-se pelo atributo dc que, em qualquer caso, haverá vítimas, ainda
que nb possam ser conhecidas a priori. Por exemplo, se se decide produzirx aparelhos de
hemodiálise ey aparelhos de irradiaçho contra o câncer, os númerosx ey condicionarlo o
18
Descobri recentemente que esta conclusao, aqui expressa sob forma modal de juízo de número de mortes por problemas renais e por câncer.
possibilidade, admitida, sob forma de juízo probabilístico, por Carl Dahlman (op. cit.), 200 debate contemporâneo sobre açäo coletiva e bens coletivos teve inIcio corn Mancur Olson
e ainda mais fortemente porFrancisco Sagasti, para quem devemos repensar "radicalmente
Jr., The Logic of Collective Action, Cambridge, Harvard University Press, 1965. As
o que queremos dizer com desenvolvimento e progresso. (...) primeiramente porque a
conexöes íntimas, mas corn propriedades inversas, entre bens públicos e males públicos
visao implícita das naçôes pobres alcançando o Ocidente 'desenvolvido' nao é mais
viável". In: Development,Journal of SID, 1991: 3/4, p. 14. so abordadas em W. G. dos Santos, "The Dual Logic of Collective Action", texto
apresentado durante o seminário "Micro Foundations of Democracy", Center of Ethics,
Ver Guido Calabresi e Philip Bobbitt, Tragic Choices: The ConftictsSociety Confronts in Rationality and Society, The University ofChicago, 29 de abril a 1 de maio, 1988. Elç está
19
theAllocarions ofTragicallyScarceResources, New York, W. W. Norton, 1978. Urna es- aqui incluIdo, revisto e ampliado, no capítulo II.
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142 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 143
notaçào padrão da teoria dos jogos: R (recompensa por coopera- Terceiro Mundo (ver a parte inferior do quadro). Se, no entanto, o
çao), T (tentação de trair e adquirir mais), S ("tolo", por ser Prirneiro Mundo decide cooperar incondicionalmente, segue-se
cooperativo numa relaçäo de exploração) e P (punição derivada de urna de duas conseqüências possíveìs: ou o jogador de Terceiro
confito generalizado). A ordern de preferência do jogo do Dilema Mundo decide aderir à cooperaçâo de curto prazo (primeira cela da
do Prisioneiro é a seguinte: T, R, P, S. A figura divide-se horizon- parte superior do quadro), e se obtém R,R, no início do jogo; ou o
talmente entre resultados de curto, médio e longo prazos, e vertical- jogador de Terceiro Mundo escoihe nao cooperar imediatamente.
mente de acordo corn o comportamento do jogador de Prirneiro Caso se verifique a última alternativa, o jogador de Prirneiro
Mundo: cooperativo na parte superior, nao-cooperativo na parte Mundo, considerando que o seu comportamento cooperativo é
inferior do quadro. incondicional, cumprirá o papel de "tolo" e será explorado pelo jo-
gador de Terceiro Mundo.
Superjogo de prevençüo da morte do planeta o cenário no quai o jogador de Primeiro Mundo cooperativo
e benevolente (corn relação à natureza) se vê desafiado por urn
jogador de Terceiro Mundo mIope e irresponsável parece replicar
rnuito do que hoje é considerado como uma análise científica. Sern
Jogador do Primeiro Mundo embargo, considere as conseqüências de médio e longo prazos do
Comportamento cooperativo cenário preferido pelo jogador do Primeiro Mundo, isto é, coopera-
curto prazo longo prazo
ção total de ambas as partes. O que se revela é que, após urn inIcio
benevolente corn solução R,R a curto prazo, o jogador terminará
corn urna solução S,T, isto é, corn o congelamento da estratificaçào
cooperativo R,R S,T internacional vigente. Olhar para o presente deste mundo facilita a
tarefa de antecipar a hierarquia estacionária de meu mundo possí-
vel.1
näo cooperativo T,S P,P
Entretanto, se o Primeiro Mundo mantém sua estratégia de
cooperação incondicional, o longo prazo reserva alguma novidade.
Terceiro Mundo Em prirneiro lugar, o Terceiro Mundo será capaz de abdicar de sua
Jogador do Primeiro Mundo condição presente de free-rider, incorrendo no esforço coletivo de
Comportamento nao cooperativo evitar a produçäo do mal público. Pela mesma evidência, os países
curto prazo
de Primeiro e Terceiro Mundos teräo seus recursos liberados para
longo prazo
os propósitos que entenderem corno adequados.
E oportuno notar que as naçöes de Primeiro Mundo apresen-
cooperativo
näo cooperativo
L
R,R
T,S
[ S,T
tam as duas características mais importantes para absorver os custos
de liderança no sentido de solucionar os problemas de ação coletiva.
Primeiro, elas compôem, comparativamente, um grupo pequeno -
L L 21
Competitividade internacional consideravelmente mais complexa que comparaçöes entre
taxas de investimento e P/K, embora estas taxas sejam a base de todas as Outras medidas.
Em todo caso, boa revisäo da literatura sobre competitividade internacional encontra-se em
Hamid Alavi, 'International Competitiveness: Determinants and Indicators', Banco Mun-
dial, IndustrialPaper, n 29, março de 1990. Para uma discussäo do caso brasileiro, corn
Depreende-se que, no caso de o Primeiro Mundo nao coope- a aplicaçâo do conceito útil de inovaçäo de sistema (mais abrangente do que
inovaçäo
rar, nao existe chance de se evitar a produção do mal público (P, P), tecnológica), ver Carl J. Dahlman e Claudio R. Frischtak, National systems supporting
Technical Advance in Industry: The Brazilian Experience", Banco Mundial, Industrial
seja a curto ou longo prazo, nao importando a escoiha dojogador de Series Paper, n? 32, junho de 1990.
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144 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 145
-
mundo e, apenas por acaso, igual conseqüência para ambos os
financiarem urna açäo coletiva no sentido da preservaçao ambiental participantes. Por exemplo, se vizinhos se recusam a drenar um
por intermédio da transferência de tecnologia a custos reduzidos, pântano, nada de relevante acontecerá ao mundo, pois o pântano
de Terceiro Mundo, doaçoes etc. etc. -
financiando a internalização de externalidades negativas em países
é incomparavelmente
superior ao que teriam de investir para "comprar" o comportamento
continuará simplesmente a ser um pântano. O resultado final da
näo-ação, neste caso, será o de se conservar o status quo. Se,
contudo, a humanidade abdica de preservar a natureza, a Terra, em
cooperativo das naçôes de Terceiro Mundo. vez de continuar sendo o que é hoje, sofrerá deterioraçâo mortal. Em
No caso de prevalecer o comportamento cooperativo incondi- suma: sugiro, corn estes exernplos, que existe urna assimetria entre
cional do Primeiro Mundo, a soluçâo finalR, R significará que, urna a falência na produção de um bern coletivo e a falência em se evitar
vez assegurado o objetivo da sobrevivência, tanto os países de a produçâo de urn mal coIetivo4 Feitas estas observaçães, é agora
Primeiro Mundo quanto os países de sabe-se lá que posi ção-ordinal possível formular os conulitos que se travarn entre os países de
encontrar-se-ão livres para embarcar numa outra jornada Prirneiro e Terceiro Mundos, enquadrando-os em trés proposiçOes.
desenvolvimentista. Somente o futuro poderá dizer se essa aventura I) Nao se deve isolar a ação coletiva dirigida à preservaçâo do
irá se desenvolver no contexto de urna hierarquia internacional meio ambiente dos interesses nacionais comprometidos corn cresci-
congelada. mento material. Em especial, as naçOes de Prirneiro Mundo nao
Até aqui, sirnulei metaforicamente urn superjogo do Dilema podem fechar os olhos e/ou ensurdecer para o fato de que cresci-
do Prisioneiro corn o intuito de apreender e revelar urna seqüência mento versus preservaçao é urna escolha trágica genuIna para o
de observaçoes totalmente despercebidas pelos teóricos dos jogos Terceiro Mundo, em primeiro lugar, e urn problema serni-oculto de
quando elaboram modelos para fenômenos sociais. Agora, submeto estabilidade e sobrevivência política. Colocando de forma inversa,
as seguintes proposiçôes: na ausência de ajuda econômica considerável dos países de Primei-
a) Ao contrário do que é geralmente assumido, jogos do ro Mundo, a preservaçâo do mejo ambiente pelos países de Terceiro
Dilema do Prisioneiro podem transformar-se em outros jogos,2 o Mundo, a curto e médio prazos, nao se apresenta como urna política
que é diferente de se encontrar urna soluçäo para o jogo. viáveI.
b) Fundamentalmente, osjogos podem se transformar uns nos II) Enquanto o desenvolvirnento econômico implica, a partir
outros, porque só muito raramente eles são de fato simétricos, ou de urn certo patamar de sofisticaçâo tecnológica, a produçao de um
seja, os jogadores nao avaliam da rnesrna maneira a estrutura do
confito na qual estão envolvidos -o
que aparece corno Dilema do
Prisioneiro para alguns pode parecer como urn Jogo da Galinha
subconjunto de bens coletivos lirnpos, o mesmo processo econômi-
co pode taxar a humanidade através da provisäo de males públicos,
enquanto externalidades, na medida em que aqueles mesmos bens
( Chicken Game) para outros. Se esta última hipótese se verifica, coletivos necessários dependern, em países de Terceiro Mundo, de
urna das dimensöes nominais da racionalidade deve ser abandona- funçoes tecnológicas anacrônicas.
da, deve-se, sirnplesmente, deixá-la de lado (a dimensáo que requer
III) Corn o intuito de evitar a produçâo de males públicos, os
sirnetria de percepçáo). países de Prirneiro Mundo tendern a representar a açâo coletiva re-
c) Finalmente, algo de máxima importância: por vezes, o que querida por aquele resultado corno umjogo do Dilema do Prisionei-
ro, enquanto os países de Terceiro Mundo tendern a apreciar o mes-
22
Ver, entre outros, Jean Hampton, "Free-Rider Problems in the Production of
Collective
mo confito de interesses como urn Jogo do Despeito. Colocando de
Goods" Economics Philosophy, n 3, 1 987. Ver o caso da teoria da crise revolucionária no forma simplificada, num Jogo do Despeito a estratégia dos atores,
capítulo Il.
23
Por exemplo, Robert Axerold. The Evolution ofCooperation, New York, Basic
Books, 24
Abordei estes problemas de forma extensa em 'Dual Logic of Collective Action',
1984; ou Charles Taylor,Anarchy and Cooperation, New York, John Wilei, 1976.
extensamente revisto aqui, no cap. 11.
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146 RAZOES DA DESORDEM PRIMEIRO, TERCEIRO E OUTROS... 147
ou pelo menos a de um deles, nao é exatamente a de maximizar quo, mas o desastre, os países de Primeiro Mundo sao induzidos a
utilidades, mas sim a de maximizar diferenças de pagamento. adotar urna política de não-retaliação (o que aproxima este do Jogo
Considere-se o exemplo a seguir assumindo a seguinte notaçao de da Galinha), donde o fato de que a meihor estratégia para o Primeiro
códigos: B (melhor soluçao); S (segunda meihor soluçao); T(tercei- Mundo consiste na cooperaçào incondicional. Para os países de
ra meihor soluçäo ou solução mais próxima da pior); W (pior Terceiro Mundo, ao contrário, uma estratégia de nao cooperação,
soluçao); C e NC, como de costume, indicam comportamentos no sentido de maximizar diferenças, continuará sendo dominante
cooperativos e nao-cooperativos. até que os benefIcios da acumulaçao material se tornem inferiores
à parte que lhes cabe no consumo do mal coletivo que emerge do
desequilIbrio planetário.
Primeiro Mundo Primeiro Mundo
Recapitulo agora, para finalizar, os passos de meu trajeto, para
C NC C NC que o leitor possa apreender o argumento de modo, espero, mais or-
denado.
C B,B T,S C 4,4 1,3 1) Epistemologicamente, este nao foi um exercício de livre
Terceiro Terceiro projeçao, construçäo de cenário, ou elaboraçãode modelo. Pelo
Mundo Mundo contrário, minha intençäo foi a de estabelecer um mundo possível
NC S,T W,W NC 3,1 0,0
para substituir nosso mundo real, submetido a certos constrangi-
rnentos. Ignora-se, contudo, se eles sao operativos neste mundo. A
utilidade deste argumento modal, se alguma, seria a de iluminar
Obviamente, esta poderia ser a matriz que expressa como os aquelas áreas algo obscuras do pensamento sobre desenvolvirnento.
adeptos de "políticas verdes" vêem a estrutura da situação. Nao Para se demonstrar que nao possui relevância em relaçao a este
existe razão para qualquer dos parceiros deixar de seguir uma mundo, basta formular um argumento que, sendo consistente corn
estratégia cooperativa no sentido da preservaçao ambiental, consi- meu mundo possível, resulte numa contradiçäo.
derando o fato de que a cela superior à esquerda revela o pagamento 2) Em meu mundo possível, composto por Estados-nação, a
máximo para ambos os parceiros, em termos de cuidado corn a divisáo crucial entre países ricos e avançados, por um lado, e países
natureza. Nao obstante, como foi sugerido no exercício anterior, tal pobres e atrasados, por outro, é institucional. Enquanto em países
estratégia consolidará, a longo prazo, urna estratificação interna- ricos as instituiçôes públicas são, na maioria das vezes, usadas para
cional suficientemente perversa a ponto de transformar os países de garantir justiça na competiçao política, social e econômica, para
reparar atos ofensivos e para ajudar na recuperaçao de desastres
Terceiro Mundo, preservacionistas e bern-intencionados, em "to- pessoais imprevisíveis, nos países pobres, em contrapartida, as
los" econômicos. instituiçöes públicas são fundamentalmente um circuito alternátivo
Por esta razäo, os países de Terceiro Mundo tendem a adotar às transaçôes de mercado para a acumulação de riqueza privada.
urna estratégia nao-cooperativa, que nada mais é do que urna estra- Legislaçao de classe, privilégios legais, abdicação fiscal e subsIdios
tégia de maximizaçao por diferença (ver cela inferior à esquerda). do governo sao todos parte de um inventário de faihas alocativas
De acordo corn a lógica do desconto, é meihor obter um pouco, se cujo resultado é o de fazer dos governos dos países pobres a
isto é mais do que obtêm os oponentes, do que ganhar um pouco principal fonte de desordem econômica e social.
mais, porém no mesmo montante dos adversários. As conseqüênci- 3) Subdesenvolvimento institucional contribui para iluminar
as de longo prazo nos dois casos diferem em muito.5 tanto as falhas na alocação econômica quanto a deterioração das
Dado o fato de que a pior soluçao nao significa manter o status condiçOes sociais. O macroprocesso que alimenta esta prole perver-
sa encontra-se embutido nos custos sociais do erro, consideravel-
Para o jogo do'Despeito, e sua estratégia de maximizaçlo por diferença, ver Henry
25
Hamburger, Games as Models of Social Phenomena, New York, W.H. Freeman and mente majores em paises pobres. Os dois componentes mais impor-
Company, 1979, principalmente capítulo 4, já citado no capítulo II deste volume. tantes destes custos sociais são:
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148 RAZOES DA DESORDEM
produtividade -, -
5) Pois bem, considerando que esta esperança de desconto
dependia de duas taxas historicamente estratégicas poupança e
demonstrou-se que, neste mundo possível, acu-
mulaçáo material nAo implica necessariamente ascensâo internaci-
onal. Tanto o desenvolvimento econômico e meihoras quanto a
estagnaçao relativa são, entretanto, possíveis. Esta trajetória possí-
vel foi denominada "modernizaçâo periférica", que nao é equiva-
lente a ingresso no Primeiro Mundo, aquele que se originou no
século XVI.
Se o capítulo I buscou inventariar as antigas razôes da desor-
dem, encerro tentando esclarecer as razôes de umapossível desor-
dem futura. Por sorte, o mundo humano 56 está acorrentado a urna
necessidade: a necessidade da escolha livre, da decisão responsá-
vel, da aprendizagem contínua e do exercício de recomeçar. Obvio,
eu poderia ter batizado este livro de Razôes para um recomeço.
Espero que sejam.
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Este livro foi composto pela
MG Editoraçäo Eletrônica
Rua Garcia Redondo n? 2 - Cob.-502 - RJ
e impresso na Editora Vozes Ltda.,
Rua Frei Luís, 100 - Petrópolis - RJ
em majo de 1993
para a Edjtora Rocco Ltda.
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ATA6EDEÇA entre os casos de aborto civili-
zatório. Sua intençAo é, porém,
contribuir para que o futuro
contradiga a possibilidade aqui
-4-NO.- - anunciada, resultado que de-
pende mais de açôes que de
diagnósticos.
o AUTOR
Wanderley Guilherme dos San-
tos nasceu no Rio de Janeiro
em 1935 e graduou-se em filo-
sofia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro em 1958. Em
1979 obteve o Ph.D. em ciência
política pela Stanford Univer-
sity. Entre outras atividades
profissionais, foi professor e di-
retor executivo do Iuperj.
Atualmente é diretor científico
do Conjunto Universitário
Cândido Mendes, onde organi-
ESTE LIVRO DEVE SER DEVOLVIDO
NA ÚLTIMA DATA CARIMBADA zou o Laboratório de Estudos
Experimentais, e professor ad-
junto do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da UFRJ. De
sua vasta bibliografia constam
Sessenta e quatro: anatomia da
crise (1986), Paradoxos do libe-
ralismo: teoria e história (1988),
Discurso sobre o objeto: urna
k .
Ilustraçâo de capa
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35042
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