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FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA

LITERATURA
AULA 1

Prof. Phelipe de Lima Cerdeira


CONVERSA INICIAL

Estimado (a) aluno (a), receba as nossas boas-vindas!


Muito provavelmente, este é um dos primeiros contatos – se não o
primeiro – da área de estudos literários com você. Após uma trajetória de
formação e de estudos no ensino médio, chega o momento de abrir um novo
capítulo em sua história como estudante: a proposta é estreitar relações com
temas que sempre lhe despertaram interesse; estar aberto para entender que
crescemos a partir do diálogo; deixar-se surpreender por discussões antes não
imaginadas ou pouco aprofundadas; e, ainda, (re)pensar a cada momento as
certezas cristalizadas.
A partir deste material, damos início à discussão da nossa disciplina, um
dos conteúdos que dizem respeito à grade obrigatória do nosso curso de
graduação. Será possível perceber que esta disciplina se apresenta como
uma grande possibilidade para rever determinados conceitos e alinhar as
principais questões que terão de fazer parte do seu horizonte crítico. Isso
significa que tudo o que abordaremos em cada um dos encontros terá a
finalidade de lhe deixar mais à vontade, com segurança para cursar as demais
disciplinas que farão parte do módulo relacionado à literatura.
Ainda que falemos aqui em “disciplina obrigatória”, precisamos esclarecer
um ponto fundamental desde o princípio: o nosso grande desafio será, a todo
momento, desconstruir a sensação de exigência e de certo monitoramento
intelectual atrelada ao texto literário ao longo de nossa formação na educação
básica. Ainda que ganhe foco de interesse teórico e crítico por conta do
desenvolvimento de uma área específica, os estudos literários, a literatura
precisa existir sempre como manifestação discursiva. A premissa que, sim,
merece valor inicial quando se alude à literatura é a da fruição, do prazer
advindo da leitura. Ainda que se referindo pontualmente ao livro, ao objeto que
personifica o plano literário, o poeta gaúcho Mario Quintana parece nos ajudar a
lembrar sobre o poder da literatura: “O livro traz a vantagem de a gente poder
estar só e ao mesmo tempo acompanhado” (Quintana, S.d.).
Para que possamos acompanhar toda a discussão com atenção e
tranquilidade, todas as nossas aulas seguirão uma divisão bastante intuitiva e
pedagógica. A proposta é que todo o raciocínio possa ser apresentado de
maneira clara, facilitando a retomada de algum tema específico que precise ser

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revisado ou, ainda, que acabou lhe despertado maior interesse. Nesta aula, por
exemplo, o conteúdo contará com a seguinte a proposta de seções:

1. Contextualizando;
2. Antes de literatura, littera;
3. Literatura para quê?;
4. A literatura está em perigo?;
5. Literatura, um direito;
6. Na prática;
7. Finalizando;
8. Referências.

É sempre importante reforçar que, ao falar de literatura, espera-se que a


leitura seja uma ação presente e necessária. Contamos com a sua participação
aqui e também em nossas conversas a partir de videoaulas, fóruns e atividades
extra-curriculares que possam vir a ser oferecidas. Que possamos estabelecer
um diálogo profícuo até o final deste módulo, (re)descobrindo um mundo
chamado literatura. Bons estudos!

TEMA 1 – CONTEXTUALIZANDO

É muito provável que você tenha ouvido falar em um certo filósofo grego
clássico chamado Sócrates, não é mesmo? O que ele tem a ver conosco, com
as letras e com a literatura? Basicamente, tudo. Em um momento apropriado,
em uma disciplina que verse sobre a literatura clássica, por exemplo, será
possível conhecer as contribuições socráticas para o desenvolvimento dos
estudos literários. Por enquanto, o que nos interessa aqui é retomar o nome de
Sócrates para demonstrar a importância de tomar a literatura não com uma
leitura ou interpretação pronta, decorada, mas sempre com uma boa
desconfiança, com o interesse de querer ler e perceber diferentes detalhes.
Com ajuda de muitas das reflexões socráticas, aprendemos que a única
certeza possível é a dúvida. O que isso quer dizer na prática? Significa que, ao
longo de toda a sua formação, você perceberá o quanto novas leituras podem
ajudar a problematizar o que é apresentado, criando novas perguntas e
possibilidades para se abordar um mesmo tópico. A partir das letras,
(re)escrevemos novos caminhos para o aprender e descobrimos, como diria o
escritor argentino Jorge Luís Borges, que um só jardim pode apresentar

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diferentes caminhos que se bifurcam. O estudo da literatura, assim, apresenta-
nos diferentes aspectos que podem ser estudados e esmiuçados, de acordo com
o nosso recorte de atenção ou objetivo.
Como vimos desde a apresentação desta disciplina, a literatura – seja a
partir de um romance, de um poema, de uma obra dramática, de um conto, de
uma crônica, de ensaio ou de qualquer outro dos seus gêneros e manifestações
possíveis – nos convida a pensar. Não é segredo algum que a melhor maneira
para se começar a falar sobre a literatura é por meio da própria literatura. Por
conta disso, antes de seguir com as nossas proposições, vale a pena nos
dedicarmos à leitura de um fragmento de um verdadeiro clássico da literatura
brasileira. A alusão aqui é para o romance Grande sertão: veredas, de João
Guimarães Rosa:

Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre
coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda
leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei,
anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre,
Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-
de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com
capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do
começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para
cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo saudoso!
Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. (Rosa, 2010, p. 30)

O excerto que você acaba de ler foi retirado de uma das obras brasileiras
mais lidas até hoje e que, sem dúvida alguma, marcou novos caminhos para o
desenvolvimento do gênero romanesco não somente no Brasil. Publicada pela
primeira vez no ano de 1956, a obra Grande sertão: veredas nos apresenta a
realidade sertaneja a partir da perspectiva da personagem Riobaldo, que é
também o narrador de toda a trama. Sem nos preocuparmos em uma leitura mais
crítica e especializada, ou seja, apenas com o compromisso de ter a experiência
de ler o texto, o que será que este trecho nos provoca? Tente responder esta
pergunta voltando para a citação e relendo cada frase como se estivesse
buscando o sabor das palavras. Como você poderia descrever quem está
falando? Seria alguém novo? Viveria em qual parte do Brasil? Conhece outras
realidades? Este narrador está falando com alguém? Se sim, a pessoa com
quem ele fala é diferente? Existe algo que desperte o interesse deste narrador
chamado Riobaldo?
De forma rápida e sem a preocupação de um rigor crítico, fica evidente
como um fragmento de um romance nos permite elencar diversas perguntas,

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aguçando a nossa criatividade, conectando-nos com informações e leituras
anteriores, provocando a nossa imaginação e curiosidade. Assim, fazendo
perguntas para nós mesmos, relacionando conhecimentos, dialogando com
demais leituras, fruindo o texto, ou seja, permitindo realmente ter prazer ao
ler é que nos aproximamos do que deve ser a literatura.
Entendidos tais compromissos iniciais, podemos nos dedicar a uma
pergunta pontual para o nosso primeiro encontro: caso tivéssemos lido aquele
mesmo trecho, mas sem saber que ele faz parte do romance Grande sertão:
veredas ou mesmo desconhecendo a informação de que se tratava de uma obra
de Guimarães Rosa, teríamos as mesmas impressões iniciais?
Embora pareça simples, a provocação feita agora é uma inquietude que
faz parte da vida de teóricos literários dispostos a refletir sobre a natureza da
literatura desde o século passado. Nomes como Terry Eagleton (1983), Tzvetan
Todorov (2009), Antoine Compagnon (2009) e, no Brasil, Antonio Candido (2004)
– este último, aliás, que será repetido nesta disciplina e na grande maioria das
que você vai cursar ao longo do curso – têm pensado na natureza e nas
propriedades que caracterizam a literatura há muitas décadas. Em uma de suas
reflexões, Todorov esclarece como “[a] literatura não nasce no vazio, mas no
centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas
características; não é por acaso que, ao longo da história, suas fronteiras
foram inconstantes” (Todorov, 2009, p. 22, grifo nosso).
A ideia que temos a respeito da literatura, portanto, corresponde a um
determinado tempo, contexto e realidade discursiva. Para o crítico brasileiro
Antonio Candido, por exemplo, a literatura está ligada diretamente a um acordo
social:

Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e


dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus
sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a
presença e atuação deles. Por isso é que nas nossas sociedades a
literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação,
entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento
intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que
considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da
ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega,
propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de
vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto
a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes
sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de
coisas predominante. (Candido, 2004, p. 175)

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Diante do que foi evidenciado por Candido, fica mais fácil perceber como
a literatura passou a ser vislumbrada a partir de diversas facetas, valorizando o
quanto ela não se resume apenas a imitar ou transformar em ficção uma dada
realidade, já que ela é, também, uma das responsáveis por garantir tal
existência. À vista disso, literatura não é nunca um fim, uma resposta, mas,
essencialmente, um meio.
Se uma definição taxativa da literatura é inviável, por que grande parte de
nós insiste em simplificar a literatura em uma espécie de produção textual
específica? Em uma busca no dicionário eletrônico Michaelis, será possível
encontrar dez entradas diferentes. Vejamos as definições:

1. Arte de compor escritos, em prosa ou em verso, de acordo com


determinados princípios teóricos ou práticos: “Os tênues murmúrios
suspirosos desdobravam-se em orquestra de baile, onde se
distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já
animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam política,
artes, literatura e ciência”.
2. Atividade ou profissão de um homem de letras; o trabalho, a arte do
escritor: A literatura é a mais sedutora e enganosa das artes. Minha
filha pretende fazer carreira na literatura.
3. O conjunto das obras literárias de um país, um gênero, uma época
etc. que, pela qualidade de seu estilo ou forma e pela expressão de
ideias de interesse universal ou permanente, têm reconhecido seu alto
valor estético: É um excelente professor de literatura norte-americana.
4. O conjunto das obras literárias de um agregado social, ou em dada
linguagem, ou referidas a determinado assunto: As livrarias hoje têm
muitos livros bons na área da literatura infantil.
5. A história das obras literárias do espírito humano.
6. O conjunto dos homens de letras em atuação em determinada
sociedade: A literatura brasileira vem marcando presença nos
colóquios internacionais.
7. O conjunto de conhecimentos relativos às obras literárias e a seus
autores: A minha faculdade tem um excelente curso de literatura.
8. Disciplina escolar voltada para o estudo da produção literária e dos
escritores: Sempre teve boas notas em literatura.
9. Qualquer dos usos estéticos da linguagem, mesmo quando não
escrita.
10. Palavreado artificial, desvinculado do que se entende por realidade:
No fundo, todo esse discurso científico não passa de literatura.

Ao voltarmos às definições do Dicionário Michaelis, não é difícil notar que,


em sua grande maioria, as explicações versam a respeito da natureza da
literatura com o plano escrito, da sua função de categorização e legitimação ou,
ainda, da relação entre a literatura e uma dada identidade nacional. A entrada 3,
pontualmente, evidencia a literatura como uma espécie de estabelecimento de
norma, um parâmetro de classificação responsável por definir o que é bom ou
ruim, sendo reconhecida, portanto, pelo seu “alto valor estético”. Não há dúvidas
de que essa proposição é válida e nos interessará em breve, em aula futura,

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quando falarmos da conexão entre a literatura e a língua e da instituição do que
chamamos como cânone literário. Por ora, é prudente apenas entender que esse
“alto valor estético” é um crivo estabelecido por um determinado grupo, mediante
interesses e expectativas de diversas instâncias.
Ainda no que diz respeito às entradas presentes no dicionário, vale
pontuar como a definição 10 nos ajuda a tomar a outra faceta relacionada à
literatura, a ideia equivocada de que à literatura competem os assuntos menos
importantes, já que não se trata de uma ciência. A acepção pejorativa fará parte
de discussões teóricas que vamos travar ao longo do curso, por isso vale sempre
a atenção e a leitura crítica sobre tal ponto.

TEMA 2 – ANTES DE LITERATURA, LITTERA

Como vimos no final da seção de contextualização, a conduta mais


imediata quando se fala de literatura está atrelada ao plano do texto. O
movimento não é, em todo caso, incoerente, afinal a palavra literatura advém do
latim erudito littera, transformado depois para letera. Está contido nesses dois
radicais algo relativo à arte de escrever ou mesmo à erudição. Tal como relembra
a pesquisadora portuguesa Paula Cristina Lopes,

Nas línguas europeias, a palavra “literatura” designou em regra, até ao


século XVIII, o saber, o conhecimento, as artes e as ciências em geral.
Até à segunda metade desse século, para designar especificamente a
arte verbal, o corpus textual, eram utilizadas palavras como “poesia”,
“verso” e “prosa” (que hoje reconhecemos enquanto classificação de
géneros literários). (Lopes, S.d., p. 1)

Passa a ser inteligível, portanto, como a origem etimológica do termo


literatura acabou explicando, mesmo que na contemporaneidade, como muitos
passaram a simplificar a literatura. É bem verdade que, na continuidade da
história, sobretudo por conta das contribuições de Voltaire, o vocábulo literatura
ganhou novas acepções, passando a ficar relacionado a padrões estéticos. O
resultado, como é possível imaginar, parece vigorar para alguns até hoje em dia.
Cabe-nos, no entanto, questionar resoluções fáceis, relembrando que, para
pensar em literatura, é fundamental não apenas considerar certa conduta
ao trabalhar com a linguagem, mas, sim, contemplar o contexto no qual ela
é produzida e para quem ela está destinada.

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TEMA 3 – LITERATURA PARA QUÊ?

Dentre os críticos dispostos a pensar no rumo do ensino da literatura e na


maneira como ela passava a fazer parte da nossa rotina como estudantes e
leitores, merece destaque o nome do francês Antoine de Compagnon. O que
motivava as preocupações desse pensador? Compagnon percebia que, cada
vez mais, a literatura era tratada de forma secundária, transformando-se em
refém de uma perspectiva que a transformava em ferramenta para identificação
de estruturas ou simplesmente uma replicação de uma leitura engessada. Ora,
como vimos desde o início, tal postura é exatamente o contrário do que se espera
para um discurso como o literário, que almeja o diálogo constante e o
envolvimento dos leitores. Em uma sociedade cada vez mais utilitária, a
perspectiva humanista e a concepção de que o estímulo à reflexão é a chave
para o desenvolvimento passavam a ser ameaçadas pelo afã tecnicista e pela
desculpa da não praticidade. Ao perceber todo o cenário francês de aprendizado
– mas que, decididamente, poderia ser replicado para a grande maioria dos
países ocidentais – Compagnon dedica uma aula inaugural no Collège de
France. Dos seus apontamentos, surge o ensaio Literatura para quê?, traduzido
e publicado no Brasil em 2009.
A ideia de resgatar esse trabalho é demonstrar como o crítico francês
parte da provocação daqueles que minimizam a relevância da literatura para a
formação humana. Ao longo dos seus argumentos, Compagnon atesta:

Não é que achemos na literatura verdades universais, nem regras


gerais, nem somente exemplos límpidos. [...] Ora, a literatura age
diferentemente dos mandamentos, mas também das parábolas. [...] A
literatura, exprimindo a exceção, oferece um conhecimento diferente
do conhecimento erudito, porém mais capaz de esclarecer os
comportamentos e as motivações humanas. Ela pensa, mas não como
a ciência ou a filosofia. Seu pensamento é heurístico (ela jamais cessa
de procurar), não algorítmico: ela procede tateando, sem cálculo, pela
intuição, com faro. (Compagnon, 2009, p. 51)

Muito mais do buscar números ou resultados, cabe à literatura o exercício


de seguir oferecendo possibilidades, de não se contentar. É exatamente por
conta disso que “A literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos
não têm limites, ela jamais conclui, mas fica aberta como um ensaio de
Montaigne, depois de nos ter feito ver, respirar ou tocar as certezas e as
indecisões, as complicações e os paradoxos que se escondem atrás das ações
[...]” (Compagnon, 2009, p. 51-52).

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Se insistirmos na mesma pergunta, na razão pela qual estudamos
literatura, será bastante oportuno considerar uma ponderação mais recente,
advinda da Argentina, a partir da escritora e crítica María Teresa Andruetto:

[…] la literatura es todavía esa metáfora de la vida que sigue reuniendo


a quien dice y quien escucha en un espacio común, para participar de
un misterio, para hacer que nazca una historia que al menos por un
momento nos cure de palabra, recoja nuestros pedazos, acople
nuestras partes dispersas, traspase nuestras zonas más inhóspitas,
para decirnos que en lo oscuro también está la luz, para mostrarnos
que todo en el mundo, hasta lo más miserable, tiene su destello1.
(Andruetto, 2013, p. 25)

TEMA 4 – A LITERATURA ESTÁ EM PERIGO?

Da mesma forma que Antoine Compagnon, o teórico Tzvetan Todorov


dedicou espaço para pensar sobre o assunto, utilizando as suas impressões de
como a literatura passou a ser tratada nas salas de aulas francesas a partir da
década de 1960. De forma mais incisiva, Todorov parece denunciar como a
literatura passou a ser pensada não por conta das leituras das obras e do diálogo
entre os leitores, mas simplesmente pela impressão daquilo que pensavam os
críticos. O perigo passado pela literatura começava a ser, portanto, que a sua
existência estivesse limitada ao conhecimento do que outro escreveu, não
necessariamente do prazer e da oportunidade de conhecer uma obra (seja ela
um romance, um livro de poesia, de contos, ou uma peça de teatro).
Se fôssemos pensar em nosso contexto, talvez seria exatamente o perigo
que poderíamos passar ao limitar a nossa experiência apenas na leitura de um
artigo sobre uma obra ou, muito pior, basear as nossas impressões
simplesmente a partir de um resumo ou resenha. Isso soa familiar para você? É
exatamente isso o que queremos combater a partir desta disciplina, reforçando
o quanto o caminho pode – e deve – ser muito mais prazeroso quando
apostamos na literatura como uma experiência discursiva.
Em nossa realidade de estudantes e pesquisadores de letras, é preciso
lembrar que o único e grande perigo que a literatura corre é quando o direito ao
prazer de ler é negado.

1 “[...] a literatura é ainda essa metáfora da vida que segue reunindo a quem disse e a quem
escuta em um espaço comum, para participar de um mistério, para fazer que nasça uma história
que, ao menos por um momento, nos cure da palavra, recolha os nossos pedaços, junte as
nossas partes dispersas, transpasse as nossas zonas mais inóspitas, para nos dizer que, no
escuro também há luz, para nos mostrar que tudo no mundo, até o mais miserável, tem o seu
brilho” (Tradução-livre).
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TEMA 5 – LITERATURA: UM DIREITO

Por falar no direito ligado à literatura, seria impossível não reservar a


última seção da nossa aula para abordar o nome do crítico literário brasileiro
mais profícuo e presente em nossos estudos: Antonio Candido. Em sua obra
Vários escritos (2004), é possível encontrar um ensaio chamado O direito à
literatura, um exame minucioso a respeito de como a literatura deve ser encarada
como um verdadeiro bem de primeira necessidade.
Para alicerçar os seus argumentos, Candido retoma a teoria do
sociólogo Louis-Joseph Lebret, baseada na diferença entre os bens
compressíveis e os bens incompressíveis. Esses seriam todos e quaisquer
bens que jamais deveriam ser negados a alguém, tais como alimento, casa,
roupa e a própria literatura! Para justificar a sua afirmação, Candido endossa
exatamente tudo o que discutimos até aqui, demonstrando a necessidade de
se entender como a ideia de literatura acabou se transformando ao longo do
tempo. Para aclarar, então, a sua perspectiva, o crítico brasileiro define:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as


criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de
uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos
folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da
produção escrita das grandes civilizações.
Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação
universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e
não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a
possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de
fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é
capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns
momentos de entrega ao universo fabulado. (Candido, 2004, 174,
grifo nosso)

A relação indissociável entre a nossa vida e a literatura fica evidente na


justificativa crítica de Candido, mas seria mesmo a literatura um bem
incompreensível? Exagero do professor Candido? Em nossa perspectiva, muito
pelo contrário, trata-se de um acerto, sobretudo por entender a literatura como
um discurso que viabiliza (re)significar e fazer pensar sobre a realidade. Ao
destacar projetos ficcionais, como a poesia de Castro Alves, Antonio Candido
demonstra como a literatura é capaz de demarcar um quadro do tempo e seguir
sendo atual para a discussão não apenas do plano estético. Sendo assim, “[u]ma
sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte
e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito
inalienável” (Candido, 2004, p. 191).

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NA PRÁTICA

A partir de toda a nossa discussão nesta aula, passa a ser possível


entender como a ideia a respeito da literatura foi se transformando ao longo do
tempo. Com base nessa discussão, reflita a respeito das duas questões a seguir:

1. A que se deve o fato de que, muitas vezes, as pessoas acabam


simplificando a ideia de literatura para um sinônimo de texto escrito?
2. Como é possível relacionar as perspectivas de teóricos como Todorov,
Compagnon e Candido para pensar a literatura? Quais são os principais
pontos de contato entre os três teóricos no que diz respeito à
compreensão da literatura?

FINALIZANDO

Como beletristas, estudantes de letras, precisamos estar atentos para não


minimizarmos a literatura apenas como um amontado de conceitos ou
classificações. Ao longo de toda esta aula, foi possível ponderar como a ideia de
literatura é flexível e mais ampla do que simplesmente um texto que utiliza a
linguagem sob uma proposta não usual. Por meio de reflexões como as de
Antoine de Compagnon, Tzvetan Todorov e Antonio Candido, começamos a
perceber como a compreensão a respeito da literatura passa a se adaptar
conforme o tempo e o contexto de enunciação, demonstrando, ainda, a
relevância do plano ficcional para tensionar a realidade e fazer com que ela seja
questionada a todo instante.
Tal como lembrado pelo crítico literário Antonio Candido, vale a pena
pensar na literatura também como um direito de todos nós, humanos. Que ao
final desta disciplina introdutória, esse sentimento faça parte do seu horizonte de
expectativas e que lhe estimule enquanto leitor (a) e, claro, futuro (a) professor
(a)! Nunca é demasiado lembrar que uma sociedade leitora se faz,
verdadeiramente, quando a literatura passa a fazer parte do nosso dia a dia,
de nossas conversas, não se restringindo a um conteúdo a ser medido por
imposições estruturalistas ou expectativas que apenas reduzem o
potencial de um texto.
Para falar de literatura, temos, portanto, que vivê-la intensamente! Ou, dito
de outra forma, “[a]ssim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o

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sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (Candido,
2004, p. 175).

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REFERÊNCIAS

ANDRUETTO, M. T. Hacia una literatura sin adjetivos. Córdoba: Comunic-


Arte, 2013.

CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 2004.

BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

COMPAGNON, A. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009.

EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins


Fontes, 1983.

LOPES, P. C. Literatura e linguagem literária. BOCC – Biblioteca On-line de


Ciências da Comunicação. Disponível em: <http://bocc.ubi.pt/pag/bocc-lopes-
literatura.pdf>. Acesso em 12 mar. 2019.

MICHAELIS DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA.


Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/>. Acesso em: 12 mar. 2019.

ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.

TODOROV, T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

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