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Figurações da mãe

na Literatura Portuguesa

A mãe como confidente (na Lírica Trovadoresca)

Mia madre velida,


vou-m’a la bailia
do amor.

Mia madre loada,


vou-m’a la bailada
do amor.

Vou-m’a la bailia
que fazem em vila
do amor.

[Vou-m’a la bailada
que fazem em casa
do amor.]

Que fazem em vila


do que eu bem queria
do amor.

Que fazem em casa


do que eu muit’amava
do amor.

Do que eu bem queria;


chamar-m’-am garrida
do amor.

Do que eu muit’amava;
chamar-m’-am perjurada
do amor.

D. Dinis

Figurações da mãe na Literatura Portuguesa


A mãe personagem-tipo (na Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente)

Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:

INÊS MÃE
Renego deste lavrar Logo eu adivinhei
E do primeiro que o usou; Lá na missa onde eu estava,
Ó diabo que o eu dou, Como a minha Inês lavrava
Que tão mau é d’aturar. A tarefa que lhe eu dei…
Oh Jesu! Que enfadamento, Acaba esse travesseiro!
E que raiva, e que tormento, Hui! Nasceu-te algum unheiro?
Que cegueira, e que canseira! Ou cuidas que é dia santo?
Eu hei-de buscar maneira INÊS
D’algum outro aviamento. Praza a Deos que algum quebranto?
Me tire do cativeiro.
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa MÃE
Como panela sem asa, Toda tu estás aquela!
Que sempre está num lugar? Choram-te os filhos por pão?
E assi hão-de ser logrados INÊS
Dous dias amargurados, Prouvesse a Deus! Que já é razão
Que eu possa durar viva? De eu não estar tão singela.
E assim hei-de estar cativa MÃE
Em poder de desfiados? Olhade ali o mau pesar…
Como queres tu casar
Antes o darei ao Diabo Com fama de preguiçosa?
Que lavrar mais nem pontada. INÊS
Já tenho a vida cansada Mas eu, mãe, sam aguçosa
De fazer sempre dum cabo. E vós dais-vos de vagar.
Todas folgam, e eu não,
Todas vêm e todas vão MÃE
Onde querem, senão eu. Ora espera assi, vejamos.
Hui! E que pecado é o meu, INÊS
Ou que dor de coração? Quem já visse esse prazer!
MÃE
Esta vida he mais que morta. Cal’-te, que poderá ser
Sam eu coruja ou corujo, Que «ante a Páscoa vêm os Ramos».
Ou sam algum caramujo Não te apresses tu, Inês.
Que não sai senão à porta? «Maior é o ano que o mês»:
E quando me dão algum dia Quando te não precatares,
Licença, como a bugia, Virão maridos a pares,
Que possa estar à janela, E filhos de três em três.
É já mais que a Madanela
Quando achou a aleluía. (…)

Figurações da mãe na Literatura Portuguesa


A mãe-mulher (Inês de Castro n’Os Lusíadas, de Luís de Camões)

"Passada esta tão próspera vitória, "Tirar Inês ao mundo determina,


Tornando Afonso à Lusitana terra, Por lhe tirar o filho que tem preso,
A se lograr da paz com tanta glória Crendo co'o sangue só da morte indina
Quanta soube ganhar na dura guerra, Matar do firme amor o fogo aceso.
O caso triste, e dino da memória, Que furor consentiu que a espada fina,
Que do sepulcro os homens desenterra, Que pôde sustentar o grande peso
Aconteceu da mísera e mesquinha Do furor Mauro, fosse alevantada
Que depois de ser morta foi Rainha. Contra uma fraca dama delicada?

"Tu só, tu, puro Amor, com força crua, "Traziam-na os horríficos algozes
Que os corações humanos tanto obriga, Ante o Rei, já movido a piedade:
Deste causa à molesta morte sua, Mas o povo, com falsas e ferozes
Como se fora pérfida inimiga. Razões, à morte crua o persuade.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua Ela com tristes o piedosas vozes,
Nem com lágrimas tristes se mitiga, Saídas só da mágoa, e saudade
]É porque queres, áspero e tirano, Do seu Príncipe, e filhos que deixava,
Tuas aras banhar em sangue humano. Que mais que a própria morte a magoava,

"Estavas, linda Inês, posta em sossego, "Para o Céu cristalino alevantando


De teus anos colhendo doce fruto, Com lágrimas os olhos piedosos,
Naquele engano da alma, ledo e cego, Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Que a fortuna não deixa durar muito, Um dos duros ministros rigorosos;
Nos saudosos campos do Mondego, E depois nos meninos atentando,
De teus fermosos olhos nunca enxuto, Que tão queridos tinha, e tão mimosos,
Aos montes ensinando e às ervinhas Cuja orfandade como mãe temia,
O nome que no peito escrito tinhas. Para o avô cruel assim dizia:

"Do teu Príncipe ali te respondiam — "Se já nas brutas feras, cuja mente
As lembranças que na alma lhe moravam, Natura fez cruel de nascimento,
Que sempre ante seus olhos te traziam, E nas aves agrestes, que somente
Quando dos teus fermosos se apartavam: Nas rapinas aéreas têm o intento,
De noite em doces sonhos, que mentiam, Com pequenas crianças viu a gente
De dia em pensamentos, que voavam. Terem tão piedoso sentimento,
E quanto enfim cuidava, e quanto via, Como coa mãe de Nino já mostraram,
Eram tudo memórias de alegria. E colos irmãos que Roma edificaram;

"De outras belas senhoras e Princesas —"Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
Os desejados tálamos enjeita, (Se de humano é matar uma donzela
Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza, Fraca e sem força, só por ter sujeito
Quando um gesto suave te sujeita. O coração a quem soube vencê-la)
Vendo estas namoradas estranhezas A estas criancinhas tem respeito,
O velho pai sesudo, que respeita Pois o não tens à morte escura dela;
O murmurar do povo, e a fantasia Mova-te a piedade sua e minha,
Do filho, que casar-se não queria, Pois te não move a culpa que não tinha.

Figurações da mãe na Literatura Portuguesa


— "E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro, "Bem puderas, ó Sol, da vista destes
Sabe também dar vicia com clemência Teus raios apartar aquele dia,
A quem para perdê-la não fez erro. Como da seva mesa de Tiestes,
Mas se to assim merece esta inocência, Quando os filhos por mão de Atreu comia.
Põe-me em perpétuo e mísero desterro, Vós, ó côncavos vales, que pudestes
Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente, A voz extrema ouvir da boca fria,
Onde em lágrimas viva eternamente. O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetisses!

"Põe-me onde se use toda a feridade,


Entre leões e tigres, e verei "Assim como a bonina, que cortada
Se neles achar posso a piedade Antes do tempo foi, cândida e bela,
Que entre peitos humanos não achei: Sendo das mãos lascivas maltratada
Ali com o amor intrínseco e vontade Da menina que a trouxe na capela,
Naquele por quem morro, criarei O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Estas relíquias suas que aqui viste, Tal está morta a pálida donzela,
Que refrigério sejam da mãe triste." — Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor, coa doce vida.

"Queria perdoar-lhe o Rei benino,


Movido das palavras que o magoam; "As filhas do Mondego a morte escura
Mas o pertinaz povo, e seu destino Longo tempo chorando memoraram,
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. E, por memória eterna, em fonte pura
Arrancam das espadas de aço fino As lágrimas choradas transformaram;
Os que por bom tal feito ali apregoam. O nome lhe puseram, que inda dura,
Contra uma dama, ó peitos carniceiros, Dos amores de Inês que ali passaram.
Feros vos amostrais, e cavaleiros? Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores.

"Qual contra a linda moça Policena,


Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co'o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:

"Tais contra Inês os brutos matadores


No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez Rainha;
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

Figurações da mãe na Literatura Portuguesa


A mãe-saudade (na poesia contemporânea)

POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,


eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou


o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras


que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo


são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas


que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,


talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;


esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —


às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração


rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:


Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…

Mas — tu sabes — a noite é enorme,


e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.


Guardo a tua voz dentro de mim.
– Eugénio de Andrade, em “Primeiros
E deixo-te as rosas. poemas – As mãos e os frutos – Os amantes
sem dinheiro”. eBook. Lisboa: Assírio &
Boa noite. Eu vou com as aves. Alvim, 2014.

Figurações da mãe na Literatura Portuguesa


A mãe-filha (na obra de Valter Hugo Mãe)

A minha mãe é a minha filha. Preciso dizer-lhe que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de
andar às pressas. Vai engordar, vai ficar elétrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.
Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços
bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca
a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do
adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos.
A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de vê-la de amarelo-torrado, um
azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem
uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim de semana fora, servem
para que me lembre de trazer-lhe um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os
melhores presentes à minha mãe.
Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que
sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E
rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio que é
normal gostarmos todos de nós mesmos.
Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente, mas com medo. Um amigo dizia que
entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo
carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que desfuncionasse e fizesse o
seu filho apagar.
Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta
fatura não amam ainda. Passeiam nos afetos. É outra coisa.
Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas
irmãs dizerem: “Não casaste, agora tomas conta da mãe e mais destas coisas.”
Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns
homens esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era
preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos
uma central de atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que
perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse agentes.
Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha
passado, pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma sopa,
no mês passado, até fomos de carro ao Porto, jantamos em modo fino e tudo.
Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao
contrário de quem é pai de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as
cores adequadas para a idade. Somos centrais telefônicas aflitas.
Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aquecem os dias, para descermos à
marginal a ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães
pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas,
corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma
mosca. Deitam-nos as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos
da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos estranhos com os cães na
marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol.
A minha mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao
pescoço, ela fica lindíssima! E isso compensa. Recompensa. Comemos ao sol. Somos, sem grande segredo, seres
que comem ao sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.
Figurações da mãe na Literatura Portuguesa

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