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DOI: 10.4025/actascihumansoc.v32i2.

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Impressões de 1968: contracultura e identidades

Cauê Krüger
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901, Curitiba, Paraná, Brasil.
E-mail: caue_kruger@yahoo.com.br

RESUMO. O presente artigo realiza uma avaliação sintética das implicações dos
acontecimentos de 1968, principalmente no que se refere ao movimento da contracultura e
ao processo de formação de novas identidades. Procura apresentar como fatores históricos,
políticos e culturais acabaram por suscitar, no contexto, uma recusa dos projetos em voga,
uma descrença nas instituições, ampla oposição à indústria cultural e à sociedade do
espetáculo, favorecendo a perspectiva de uma revolução comportamental e a politização da
subjetividade.
Palavras-chave: contracultura, identidade, sociologia da cultura.

ABSTRACT. Impressions of 1968: counterculture and identities. This article


presents a short appraisal of the implications of events related to 1968, particularly regarding
the counterculture movement and the process of emergence of new identities. It addresses
ways in which historical, political and cultural factors ultimately triggered a refusal of
projects of that time, a disbelief in institutions, great opposition to the cultural industry and
the society of spectacle, fostering the perspective of a behavioral revolution and rendering
subjectivity political.
Key words: counterculture, identity, sociology of culture.

Introdução capítulo completo e decisivo da concepção crociana da


história como história da liberdade humana; ou
Para parafrasear Zuenir Ventura, 1968 foi “o ano entendido como um processo mais classicamente
que não terminou”. Historiadores, filósofos, sociólogos hegeliano da conquista da autoconsciência de si pelos
e intelectuais continuam desenvolvendo análises para povos oprimidos; ou explicado com base em uma
traçar as “causas” e “efeitos” dos acontecimentos desse concepção da esquerda pós-luckacsiana, ou mais
ano que se constituiu, verdadeiramente, como um marcusiana da emergência de novos “sujeitos da
marco na história mundial. história” que não são uma classe (negros, povos do
Falar dos acontecimentos de 1968 implica, sem Terceiro Mundo); ou finalmente esclarecido por
alguma noção pós-estruturalista, de inspiração
exagero, recuperar um panorama de história
foucaultiana [...] da conquista do direito de falar com
mundial, pois eles “aconteceram” em Paris, Praga, uma nova voz coletiva, nunca antes ouvida nos palcos
nos Estados Unidos, Brasil, México, envolveram a do mundo, e da concomitante supressão dos
União Soviética, Cuba, China, Vietnã, e intermediários [liberais, intelectuais do Primeiro
estenderam-se por diversos países, sendo que seu Mundo] que até aquele momento se davam o direito de
alcance dificilmente será precisado. falar em seu nome; isto tudo sem esquecer a retórica
Enfrentamentos com a polícia, “guerrilhas” urbanas propriamente política da autodeterminação ou da
e rurais, revoluções comportamentais, surgimento da independência, ou ainda aquela outra, mais psicológica
contracultura, revoluções nas artes, expansão da e cultural, das novas “identidades” coletivas.
indústria cultural, eclosão dos movimentos sociais: Desta “nebulosa teórica” cujos “efeitos históricos”
estudantis, feministas, ambientais; uso de drogas, necessariamente se relacionam, iremos destacar um dos
popularização da psicanálise, uso de anticoncepcionais pontos de vista, que nos parece particularmente mais
e a revolução sexual marcaram a história de incontáveis influente e determinante: a emergência de novas
países. Seu significado histórico, filosófico e sociológico
identidades coletivas, ou de novos sujeitos da História.
dificilmente será unívoco, como explicita Jameson
(1991, p. 86):
A emergência da contracultura e a explosão das
O processo pode ser e tem sido descrito de várias identidades
maneiras, cada qual implicando uma determinada
“visão da história” e uma leitura temática própria e Segundo Jameson (1991, p. 86) é essencial “[...]
exclusiva dos anos 60. Pode ser encarado como um relacionar o surgimento dessas novas categorias sociais
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e políticas [o colonizado, a raça, a marginalidade, o apresentava-se de forma polarizada, dicotômica,


gênero e similares] a algo como uma crise daquela ordenado pela Guerra Fria.
categoria mais uniforme que mais então parecia Deste embate surgiram as forças fundamentais
subsumir todas as variedades de resistência social, qual para o que se concebeu como “maio de 1968”. Eric
seja, a concepção clássica da classe social”. Mas o autor Hobsbawm relaciona suas experiências e visão de
destaca que esta relação deveria ser entendida em mundo com aquela dos jovens rebeldes,
identificando suas principais divergências que faziam
sentido institucional e não intelectual, ou seja, ao invés
com que apesar de “usar o mesmo vocabulário, [...]
de supor uma crise da idéia abstrata de classe social ou
não parecíamos falar a mesma língua. Mais do que
da concepção marxista de luta de classes como isso, ainda que participássemos dos mesmos
responsável pela emergência destas novas forças sociais, acontecimentos [...] não sentíamos o mesmo que
“o que se pode notar é uma crise das instituições eles” (HOBSBAWM, 2002, p. 277). A principal
através das quais uma real política de classe conseguira, divergência passou a ser percebida na ausência, por
embora imperfeitamente, se expressar” (JAMESON, parte dos jovens insurgentes, de um projeto político
1991, p. 86). central e mobilizador, voltado a mudanças ou
Esta questão parece ser o pano de fundo do texto substituição do regime político:
autobiográfico que Eric Hobsbawm destina aos anos 60 No entanto, seja o que for que levou aqueles jovens
em seu livro Tempos Interessantes: particularmente às ruas, não era esse seu objetivo [...] não seria
quando menciona sua visão pessoal dos fatos: “Para os realmente possível ver utopia na antinomia geral de
esquerdistas de meia-idade como eu, maio de 1968, e slogans como “É proibido proibir”, que
na verdade, toda a década de 1960 foram tempos provavelmente se aproximava do que sentiam os
jovens rebeldes – tanto em relação ao governo, como
extraordinariamente bem-vindos e extraordinariamente
em relação aos professores, aos pais ou ao universo.
desconcertantes” (HOBSBAWM, 2002, p. 277). Na verdade, não pareciam estar muito interessados
Naturalmente, nós todos fomos apanhados por essas num ideal social, comunista ou de outro tipo, distinto
grandes lutas globais. Na década de 60 o Terceiro do ideal individualista de livrar-se de tudo o que se
Mundo trouxera de volta ao Primeiro a esperança da arrogasse o direito e o poder de impedir-nos de fazer
revolução. As duas grandes inspirações o que nosso ego ou id desejasse fazer
internacionais eram Cuba e o Vietnã, triunfos não (HOBSBAWM, 2002, p. 277-278).
apenas da revolução, mas de Davis contra Golias, do Neste contexto, portanto, é que a fórmula “o
fraco contra o todo-poderoso. “Guerrilha”, palavra
emblemática da época, tornou-se a chave
pessoal é político” se estabeleceu com toda sua
quintessencial da mudança do mundo. Os representatividade, conforme salienta Heloisa
revolucionários de Fidel Castro, reconhecíveis como Buarque de Hollanda, ao analisar o contexto
herdeiros de 1848 por sua juventude, seus cabelos nacional, mas apresentando, de forma sintética, um
longos, barbas e retórica – pensemos na famosa contexto comum: “A contracultura, o desbunde, o
imagem de Che Guevara –, quase poderiam ter sido rock, o underground, as drogas e mesmo a psicanálise
projetados para ser símbolos mundiais de uma nova
passam a incentivar uma recusa acentuada pelo
era de romantismo político [...] Mais do que
qualquer outra coisa, na década de 1960 a grandeza, projeto do período anterior” (HOLLANDA, 1980,
o heroísmo e a tragédia da luta vietnamita p. 65). Em pouco tempo, ser marxista,
emocionaram e mobilizaram a esquerda de língua [...] passa a ser visto como um estigma,
inglesa e reuniram suas duas gerações e quase todas principalmente se vem acompanhado de alguma
as suas seitas, que viviam em disputas preocupação de participação política mais efetiva,
(HOBSBAWM, 2002, p. 282-283). constituindo-se em demonstração insofismável de
Porém, se a Revolução Cubana de 1959 e a “caretice”. É nessa linha que aparece uma noção
fundamental – não existe a possibilidade de uma
resistência vietcong frente à investida imperialista
revolução ou transformação sociais sem que haja
americana foram ícones representativos para a uma revolução ou transformação individuais [...] a
construção de um novo mundo, a divulgação dos valorização da marginalidade urbana, a liberação
crimes de Stalin (desde 1956), bem como erótica, a experiência das drogas, a festa, casam-se de
manifestações de autoritarismo, totalitarismo e maneira pouco pacífica, com uma constante atenção
personalismo nas experiências chinesas, cubanas e em relação a certos referenciais do sistema e da
cultura [...] a marginalidade é tomada não como
soviéticas e indícios de crise econômica do bloco
saída alternativa, mas no sentido de ameaça ao
comunista desencadearam uma crítica, no mundo sistema; ela é valorizada exatamente como opção de
todo, das instituições comunistas. As teorias, as violência, em suas possibilidades de agressão e
pessoas, os comportamentos, enfim, o mundo transgressão. A contestação é assumida
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conscientemente. O uso de tóxicos, a bissexualidade, sociais: o feminismo, as lutas negras, os movimentos


o comportamento descolonizado são vividos e de libertação nacional, os movimentos antinucleares
sentidos como gestos perigosos, ilegais e, portanto, e ecológicos” (HALL, 2003, p. 21).
assumidos como contestação de caráter político Assim, uma vez que a identidade passa a ser
(HOLLANDA, 1980, p. 65-68). relacional e móvel, não mais é percebida como
Desta forma, os slogans e o comportamento dos “automática” e “imutável”, podendo ser perdida,
jovens de 1968 não deveriam ser vistos conquistada ou atribuída1. Este processo tornou as
simplesmente como “a expressão de uma identidades politizadas, permitindo a eclosão das
contracultura de alheamento, apesar de um evidente “políticas das diferenças”.
interesse em chocar a burguesia [...]. Queriam Hall promove então uma síntese que, embora
derrubar a sociedade e não simplesmente escapar esquemática, aponta relevantes pontos em comum
dela” (HOBSBAWM, 2002, p. 277). Como entre diversos movimentos sociais, étnicos,
menciona Hobsbawm (2002, p. 282): estudantis, contraculturais, antibelicistas, feministas:
Minha faixa etária não entendeu que as gerações
sua oposição tanto à política liberal capitalista do
ocidentais de estudantes na década de 1960 Ocidente quanto à política “estalinista” do Oriente; a
acreditavam, como antes havíamos acreditado, afirmação tanto das dimensões “subjetivas” quanto
embora de maneira muito mais fácil de especificar das dimensões “objetivas” da política; a crítica a
como “política”, que viviam em uma era em que todas as formas burocráticas de organização e
tudo iria mudar por meio da revolução, porque à sua favorecimento da espontaneidade e dos atos de
volta tudo já estava mudando.
vontade política; a forte ênfase na forma cultural
Embora não dedique especial atenção para o (HALL, 2003).
contexto, Stuart Hall, em “A Identidade Cultural na Esses movimentos “refletiam o enfraquecimento
Pós-Modernidade”, permite uma interpretação ou o fim da classe política e das organizações
diacrônica sobre os efeitos decorrentes da década de políticas de massa com elas associadas, bem como
60 acerca da emergência de novos sujeitos. Para o sua fragmentação em vários e separados movimentos
autor, a partir de sucessivas rupturas, “o sujeito, sociais” e apelavam para “a identidade social de seus
previamente vivido como tendo uma identidade sustentadores” (HALL, 2003, p. 44): o feminismo às
unificada e estável, está se tornando fragmentado” mulheres; a política sexual aos gays e lésbicas; as
(HALL, 2003, p. 12). Se anteriormente a identidade lutas raciais aos negros; o movimento antibelicista
preencheria o espaço entre o “interior” e o aos pacifistas. Para o autor, “isso constitui o
“exterior”, entre o mundo pessoal e o mundo nascimento histórico do que veio a ser conhecido
público, atualmente (e diríamos que especialmente como a política de identidade – uma identidade para
após a década de 60) tal processo se modifica: o cada movimento” (HALL, 2003, p. 45).
sujeito (pós-moderno) é então visto como Um dos principais responsáveis pelo que se
“composto não de uma única, mas de várias conceituou como “descentramento conceitual do
identidades, algumas vezes contraditórias ou não- sujeito cartesiano”2, promovendo uma verdadeira
resolvidas” (idem. ibid.). Àquela identidade fixa, revolução na “idéia do eu” para Hall foi o movimento
essencial ou permanente, opõe-se certa “celebração feminista. Questionando a clássica distinção entre o
móvel”: “privado” e o “público” e politizando diversos âmbitos
da intimidade, o feminismo abriu caminhos para a
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes contestação política em âmbitos inteiramente novos na
momentos, identidades que não são unificadas ao redor vida social:
de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de A família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão
tal modo que nossas identificações estão sendo doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, etc.
continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma [...] enfatizou, como questão política e social, o tema da
identidade unificada desde o nascimento até a morte é forma como somos formados e produzidos como
porque construímos uma cômoda estória sobre nós sujeitos generificados. Isto é, ele politizou a
mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja subjetividade, a identidade e o processo de identificação
Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, [como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas] [...]
completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, expandiu-se para incluir a formação das identidades
2003, p. 13). sexuais e de gênero (HALL, 2003, p. 45-46).

Tal processo seria decorrente, segundo Hall, da 1


Este processo de “atribuição de identidades” se constituiu como um dos
erosão da identidade de classe e da conseqüente principais dispositivos de estigmatização e reificação de preconceitos frente a
emergência de novas identidades, “pertencentes à indivíduos ou determinados grupos sociais.
2
Esta idéia teria vigorado até a metade do século XX e concebia o sujeito como
nova base política definida pelos novos movimentos uma totalidade estável, única e fixa.

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De forma semelhante, os movimentos negros Os autores da Escola de Frankfurt alertam para a


(sejam os mais pacifistas cujo ícone é, sem dúvida, degradação da cultura em uma indústria de diversão
Martin Luther King, os de orientações nacionalistas, que age sobre o prazer e a sensibilidade do público,
ou mesmo os mais combativos como os Panteras criando o fetiche do consumo de obras banalizadas,
Negras) apontam as diversas estruturas de que nada mais são do que o simulacro, “fórmulas
dominação, segregação e preconceito vigentes não esvaziadas” de produções autênticas (variam na
apenas nos Estados Unidos, mas no mundo todo. aparência, mas não em sua lógica ou conteúdo). “O
Os movimentos ambientais emergentes, que de arte estará aí não será mais do que sua casca:
denunciando as experiências traumáticas da segunda o estilo, quer dizer, a coerência puramente estética
guerra e em especial a bomba atômica, ganham que se esgota na imitação. E essa será a ‘forma’ da
progressiva legitimidade ao questionar a depredação arte produzida na indústria cultural: identificação
e exploração da natureza, vista pelo sistema com a fórmula, repetição da fórmula” (MARTÍN-
capitalista antes como fonte de recursos energéticos BARBERO, 2001, p. 80).
do que como condição para a vida e perpetuação da Em seu livro de referência Dos meios às mediações,
humanidade. Jesus Martín-Barbero recorda que Edgar Morin, em
Não se pode deixar de mencionar, no contexto O espírito do tempo II, analisa a crise sociopolítica de
da década de sessenta, a expansão da indústria 1968 a partir da “redescoberta do acontecimento”,
cultural (ou como querem alguns autores: sociedade valorizando a dimensão histórica da ação dos sujeitos
de consumo, sociedade pós-industrial, sociedade da em detrimento da cultura reduzida a código e da
mídia ou do espetáculo), que Jameson sintetiza da história à estrutura. Como menciona Martín-
seguinte forma: Barbero, o acontecimento significa a “irrupção do
singular concreto no tecido da vida social”
[...] o capitalismo tardio em geral [e os anos 60 em
particular] constitui um processo em que as últimas (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 95) e neste sentido,
zonas remanescentes [internas e externas] de pré- a crise parece permitir a visualização dos conflitos
capitalismo – os últimos vestígios de espaço latentes que definem o social. Por isso,
tradicional ou não transformado em mercadoria
A crise de finais dos 1960 revelava “a irrupção da
dentro e fora do mundo avançado – são agora
enzima marginal” – os negros, as mulheres, os
finalmente penetradas e colonizadas por sua vez
loucos, os homossexuais, o Terceiro Mundo –
(JAMESON, 1991, p. 124-125).
trazendo à tona sua conflitividade, pondo em crise
O conceito de indústria cultural provém do texto uma concepção de cultura incapaz de dar conta do
homônimo dos autores Theodor Adorno e Max movimento, das transformações do sentido do social
[...] E a crítica indicará a “sociedade do espetáculo”
Horkheimer, da Escola de Frankfurt, movidos tanto
que, ao levar a relação mercantil até a cotidianidade,
pelos horrores da experiência nazista alemã como pela até o sexo e a intimidade, acaba politizando-os, isto é,
democracia de massa dos Estados Unidos e convertendo-os em espaço de luta contra o poder
influenciados pelos escritos de Sigmund Freud (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 95-96).
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Centrando seu
Estes acontecimentos, bem como o dos
argumento na idéia de racionalidade, os autores
revolucionários franceses de 1968 chamados de
desembocaram “na irracionalidade que articula situacionistas (cujo mais proeminente é sem dúvida o
totalitarismo político e massificação cultural como as autor de A Sociedade do Espetáculo) (DEBORD, 2002)
duas faces de uma mesma dinâmica” (MARTÍN- serão pensados por Morin a partir da influência de
BARBERO, 2001, p. 77). Michel Foucault em seus estudos que relacionam
À medida que a lógica da indústria passa a operar cultura, saber e política. Sobre esta nova visão de poder,
na produção cultural, postulam os autores, a linha sintetiza Martín-Barbero (2001, p. 96-97):
divisória entre a arte e cultura é modificada. A
[...] embora o Estado permaneça no centro, o poder
cultura passa a ser vista como “mercadoria” e flui, porque não é uma propriedade, mas algo que se
inserida no modelo de produção industrial, que exerce, e de uma forma especialíssima, a partir disso
homogeneíza suas peculiaridades para atingir um que o Ocidente tem chamado de cultura. Nunca se
público massivo ao mesmo tempo em que viabiliza a tinha revelado tão problemática concepção da cultura
produção das “necessidades de consumo”. A partir enquanto superestrutura como à luz dessa concepção
do poder como produção de verdade, de
de então a indústria do entretenimento irá colonizar
inteligibilidade, de legitimidade. O que nos remete
também a esfera do lazer, do imaginário e produzir ao coração de nosso debate: à negação de sentido e
desejos inesgotáveis de consumo cultural por meio legitimidade de todas as práticas e modos de
de propaganda e demais mecanismos de produção cultural que não vem do centro, nacional
comunicação de massa. ou internacional [...].
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Posicionamentos como os aqui expostos Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou
permitem perceber como a contracultura, a artística do ideário esquerdista, que embora em área
construção das identidades e eclosão dos restrita floresceu extraordinariamente” (SCHWARZ,
movimentos sociais configuram uma nova visão do 2008, p. 72). Mas uma importante modificação iria
poder, bem como uma noção diferenciada de ocorrer no modo como o regime militar encaminhava
oposição e crítica, apartada do modelo “clássico” a repressão:
centrado na primazia das classes sociais.
Com altos e baixos esta solução de habilidade durou
Contracultura e identidades no Brasil até 68, quando nova massa havia surgido, capaz de
dar força material à ideologia: os estudantes,
Como nos diz Marcelo Ridenti, “as organizados em semi-clandestinidade [...]. A
manifestações brasileiras em 1968 estavam em importância social e a disposição de luta desta faixa
sintonia com o que ocorria no mundo todo no radical da população revelam-se agora, entre outras
período, mas tiveram a particularidade de inserir-se formas, na prática dos grupos que deram início à
propaganda armada da revolução. O regime
na luta contra a ditadura militar e civil que
respondeu, em dezembro de 68, com o
interrompera o processo democrático em 1964” endurecimento. Se em 64 fora possível a direita
(RIDENTI, 2009, p. 3). Apesar de toda “preservar” a produção cultural, pois bastara liquidar
complexidade do período, o autor destaca três o seu contato com a massa operária e camponesa, em
frentes de contestação social e política proeminentes: 68, quando o estudante e o público dos melhores
“o movimento estudantil, o movimento operário e a filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos
agitação cultural promovida por intelectuais e melhores livros já constitui massa politicamente
artistas” (RIDENTI, 2009, p. 3). perigosa, será necessário trocar ou censurar os
Nas palavras de Zuenir Ventura, um dos professores, os encenadores, os escritores, os
músicos, os livros, os editores – noutras palavras,
escritores brasileiros que se notabilizaram por narrar
será necessário liquidar a própria cultura viva do
o período: momento (SCHWARZ, 2008, p. 72-73).
Quando os militares deram o golpe em abril de 64,
Diversos foram os marcos de luta contra o
abortaram uma geração cheia de promessas e
esperanças. A esquerda, como acreditava Luis Carlos
regime militar: os protestos com a morte do
Prestes então, não estava no governo, mas já estava primeiro estudante, Edson Luis, no confronto com a
no poder. As reformas de base de João Goulart iriam polícia, e a movimentação para seu velório e missa
expulsar o subdesenvolvimento e a cultura popular de sétimo dia; os enfrentamentos entre estudantes na
iria conscientizar o povo [...] onipotente, generosa, rua Maria Antônia; as greves em Osasco e
megalômana, a cultura pré-64 alimentou a ilusão de principalmente, a célebre Passeata dos Cem Mil.
que tudo dependia mais ou menos de sua ação: ela Com a intensificação da repressão, o número de
não só conscientizaria o povo como transformaria a protestos deliberados também passou a se restringir.
sociedade, ajudando a acabar com as injustiças
Em agosto de 1968, o principal líder estudantil
sociais. Essa ilusão acabou em 64; a inocência em 68
(VENTURA, 1988, p. 44).
carioca, Vladimir Palmeira foi preso e a
Universidade de Brasília foi invadida pela polícia.
Roberto Schwarz em seu clássico ensaio “Cultura e Em outubro, o Congresso da União Nacional dos
Política, 1964-1969” destaca que a instalação do regime Estudantes (UNE) no interior de São Paulo foi
militar no país, de início não afetou a produção desmantelado e cerca de 700 participantes foram
intelectual de orientação socialista. Para o autor, no presos. O movimento estudantil brasileiro sofreu
período existia certa “hegemonia cultural da esquerda”, enorme derrota e vários de seus integrantes
presente nas livrarias das grandes cidades, no teatro, nos passariam a concentrar suas atividades na militância
festivais de música popular, concentrada nos grupos política clandestina contra a ditadura, em
diretamente ligados à produção ideológica (estudantes, organizações de esquerda. Em dezembro de 1968,
artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas), com o Ato Institucional número 5 (AI-5), a violência
mas cujas produções engajadas destinavam-se antes do regime militar chegou ao extremo:
para si mesmos do que para o grande público. No Oficializou-se o terrorismo de Estado, que
período pós 1964, a intelectualidade socialista, prevaleceria até meados dos anos 70. O Congresso
temerosa, foi poupada, “Torturados e longamente Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais
foram colocados temporariamente em recesso e o
presos foram somente aqueles que haviam organizado
governo passou a ter plenos poderes para suspender
o contato com operários, camponeses, marinheiros e direitos políticos dos cidadãos, legislar por decreto,
soldados” (SCHWARZ, 2008, p. 72). Apesar de frear os julgar crimes políticos em tribunais militares, cassar
canais de comunicação com o povo, “o governo mandatos eletivos, demitir ou aposentar juízes e
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outros funcionários públicos etc. Simultaneamente, [...] o Tropicalismo se beneficiou das próprias clivagens
generalizavam-se as prisões de oposicionistas, o uso da indústria cultural que ele ajudou a problematizar
da tortura e do assassinato, em nome da manutenção [...]. Ao problematizar o consumo da canção [e a canção
da segurança nacional, considerada indispensável enquanto consumo], o Tropicalismo abriu um leque de
para o desenvolvimento da economia, do que se novas possibilidades de escuta, que a diretriz ideológica
denominaria mais tarde “milagre brasileiro” do nacional-popular, já em crise como gênero
(RIDENTI, 2009, p. 7). reconhecível pelo público, não mais comportava.
Enquanto legado para a música popular, o Tropicalismo
Calados os intelectuais e os canais de informação, ajudou a incorporar tanto o consumo do material
o engajamento na América Latina passa a ter como musical recalcado, pelo gosto da classe média
principal canal de manifestação as artes, intelectualizada, como o do ruído, do exagero e
expressando-se no teatro, cinema, música popular, arcaísmos colocados lado a lado, em valor, aos sussurros
literatura e artes plásticas, como destaca Marcos e às sutilezas expressivas desenvolvidas pelas tendências
Napolitano (2001). Marcelo Ridenti corrobora: socialmente mais valorizadas da música popular
“Nos anos 60, particularmente em 1968, (NAPOLITANO; VILLAÇA, 1998, s/p.)
manifestações culturais diferenciadas cantavam em Esta significação libertária pode ser vista como
verso e prosa a esperada ‘revolução brasileira’, que contribuição central da contracultura no país, e sua
deveria basear-se na ação das massas populares, em expressão estética nacional, o tropicalismo,
cujas lutas a intelectualidade de esquerda estaria constituiria um marco na história nacional. Como
organicamente engajada” (RIDENTI, 2009, p. 6). destaca Heloísa Buarque de Hollanda,
Além da canalização dos protestos para a
Essa rejeição do sistema e a descrença com a esquerda
expressão artística, os autores estão de acordo
ocorrem num momento de desilusões com a política,
também no que se refere a um fracionamento quando os movimentos de massa são novamente
artístico, de relevância fundamental para a análise da derrotados pelo regime militar que decreta o AI-5,
atividade cultural de 1968 no país: a polarização concretizando o que se chamou de “segundo golpe”.
entre os nacionalistas que procuravam uma Além da intensificação da repressão policial no país, o
linguagem autenticamente brasileira e empenhavam- quadro internacional sugere novas desilusões; a invasão
se na luta que julgavam socialista, da afirmação de da Tcheco-eslováquia não deixa mais dúvidas quanto ao
totalitarismo soviético, a atuação do PCD em maio de
uma identidade nacional-popular e os
68 mostra-se totalmente reacionária em sua política de
“vanguardistas” (cujo movimento tropicalista de alianças com o Estado, Fidel Castro intensifica a
Caetano Veloso e Gilberto Gil era o ápice) que repressão e a censura às artes em Cuba, etc. A fé no
criticavam os primeiros, vistos como uma “esquerda marxismo como ideologia redentora é abalada pelo
festiva”, e procuravam sintonizar-se às vanguardas, e sentimento que a única realidade seria o poder
em suma, à contracultura. (HOLLANDA, 1980, p. 69).
Para Ridenti em seu livro Em Busca do Povo É então na dimensão da crítica comportamental, na
Brasileiro, as lutas políticas e sociais que ocorreram denúncia dos mecanismos de poder presentes no
nas artes poderiam ser chamadas de “romântico- cotidiano e na intimidade, que a contracultura se coloca
revolucionárias”, por buscarem, no passado, nas como expressão fundamental de crítica à autoridade em
raízes culturais nacionais, elementos para a seu sentido amplo: ao paradigma masculino, branco,
construção da utopia do futuro. Para o autor, os ocidental, heterossexual. Esta forma distinta de
artistas idealizavam o homem do povo (o camponês reivindicação, que marcaria os anos 1960 e
bem como o migrante favelado que trabalhava nas particularmente 1968, produziu também no Brasil a
mesma explosão “de forças não-teorizadas” a que se
grandes cidades), buscando “[...] no passado
refere Jameson (1991, p. 125) ao tratar das minorias, do
elementos que permitiam uma alternativa de
movimento estudantil, feminista, negro, das forças
modernização da sociedade que não implicasse a étnicas, regionalismos. Tais reivindicações não se
desumanização, o consumismo, o império do enquadravam ao modelo marxista, nem ao rótulo de
fetichismo da mercadoria e do dinheiro” “luta de classes”, mas permitiram uma nova visão da
(RIDENTI, 2000, p. 25). liberdade, das possibilidades humanas e abriram frente
Napolitano e Villaça (1998) demonstra que o para novos processos identitários.
Tropicalismo adotava procedimento distinto, ao Inúmeros são os exemplos desta “explosão”,
incorporar, com intenções de crítica cultural, os mas sem dúvida, um dos mais representativos foi
impasses e dilemas gerados pela modernização da o movimento feminista, que teve sua maior
sociedade brasileira, no universo do consumo. expressão no país na década de 70 (muitas vezes
Valendo-se dos canais abertos pela consolidação dos apoiado por partes progressistas da Igreja e mais
meios de comunicação, remotamente pelo Partido Comunista). Além de
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 32, n. 2, p. 139-145, 2010
Impressões de 1968 145

sua recusa aos padrões sexuais, familiares e ao Referências


modelo de sexualidade e feminilidade patriarcal, o ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do
feminismo no Brasil encontrava-se também esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
vinculado a outros movimentos populares, seja na CORRÊA, M. Do feminismo aos estudos de gênero
oposição à ditadura militar, seja na luta por no Brasil: um exemplo pessoal. Campinas: Unicamp,
melhores condições de vida, na reivindicação da 2001. (Cadernos Pagu, n. 16).
criação de creches em fábricas e universidades, DEBORD, G. La sociedad del espetáculo. Valencia:
entre outras formas de ativismo político e cultural. Pré-textos, 2002.
Marcos importantes para o desdobramento do ECO, H. Apocalípticos e integrados. São Paulo:
movimento, que se espalhou e consolidou no país Perspectiva, 1970.
na década de 80, foram grupos políticos feministas HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade.
como o Brasil Mulher, Nós Mulheres, o Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
Movimento Feminino pela Anistia, em São Paulo, HOBSBAWM, E. Tempos interessantes. São Paulo:
além do Centro Brasileiro da Mulher e o Coletivo Cia das Letras, 2002.
Feminista, do Rio de Janeiro (CORRÊA, 2001; HOLLANDA, H. B. Impressões de viagem: CPC,
vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense,
RAGO, 2003).
1980.
Quanto ao movimento LGBT (lésbicas, gays,
JAMESON, F. Periodizando os anos 60. In:
bissexuais e transexuais) marcos fundamentais
HOLLANDA, H. B. (Ed.). Pós-modernismo e política.
foram o Grupo Somos de Afirmação Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 81-120.
Homossexual em São Paulo e a criação do Jornal MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio
Lampião da Esquina, bem como a formação dos de Janeiro: UFRJ, 2001.
Grupos Triângulo Rosa e Atobá no Rio de Janeiro NAPOLITANO, M. A arte engajada e seus públicos
no final da década de oitenta. (1965/1968). Estudos Históricos, n. 28, p. 103-124,
No caso do combate ao preconceito racial, 2001.
Petrônio (2007) menciona o Centro de Cultura e NAPOLITANO, M.; VILLAÇA, M. M. Tropicalismo: As
Arte Negra fundado em 1972, a criação dos jornais Relíquias do Brasil em Debate. Revista Brasileira de
“Árvore das Palavras” e “O Quadro” em 1974 na História, v. 18, n. 35, s/p., 1998.
cidade de São Paulo, o Grupo Palmares, formado PETRÔNIO, D. Movimento negro brasileiro: alguns
em 1971 em Porto Alegre, a explosão do apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, s/p.,
movimento soul, depois batizado de Black Rio, e a 2007.
formação do Instituto de Pesquisa das Culturas RAGO, M. Os feminismos no Brasil: dos ‘anos de
Negras no Rio de Janeiro, bem como a formação, chumbo’ à era global. Labrys: Estudos Feministas, n. 3,
em 1978 do Movimento Negro Unificado. 2003. Disponível em: <http://e-groups.unb.br/ih/his/
gefem/labrys3/web/bras/marga1.htm>. Acesso em: 19 dez.
2009.
Considerações finais
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro. Rio de
Foram apresentados aqui alguns argumentos, Janeiro: Record, 2000.
selecionados entre tantos outros, sobre o porquê de RIDENTI, M. 1968 - de novo! Disponível em:
1968 ter entrado para a história como marco, como <http://boell-latinoamerica.org/download_pt/1968_port_
referencial, para o qual, passados 40 anos, ainda não se abrev.pdf>. Acesso em: 7 maio 2009.
esgotaram as hipóteses e possibilidades de SCHWARZ, R. O pai de família e outros estudos. São
interpretação. Por isso, ainda continua atualíssima a Paulo: Cia das Letras, 2008.
análise Umberto Eco, que afirmou, sobre esse ano: VENTURA, Z. 1968: O ano que não terminou. Rio de
“Pode-se processá-lo, analisá-lo, condená-lo, mas não Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
cancelá-lo como um fenômeno de loucura”
(VENTURA, 1988, p. 14). Por outro lado, a antítese Received on August 12, 2009.
também tem propósito, ou nas palavras de Zuenir Accepted on May 10, 2010.
Ventura: “pode-se exaltá-lo, romantizá-lo, contanto
que não se tente sacralizá-lo como um momento de
inspiração divina da História” (VENTURA, License information: This is an open-access article distributed under the terms of the
Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use, distribution,
1988, p. 14). and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.

Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 32, n. 2, p. 139-145, 2010

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