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Organização

Andrea Cachel Apoio


Cláudia Cristina Ferreira Universidade Estadual de
Londrina – UEL
Revisão
Andrea Cachel (Eixos 01, 03 e 05) Reitoria
Cláudia Cristina Ferreira (Eixos Marta Regina Gimenez Favaro
02 e 04)
Vice-Reitoria
Projeto Gráfico Airton José Petris
Lunielle de Brito Santos Bueno
Matheus Becari Dias Direção do Centro de Letras e
Ciências Humanas
Diagramação e Normatização Viviane Bagio Furtoso
Lunielle de Brito Santos Bueno
Vice Direção do Centro de Letras
Capa e Ciências Humanas
Matheus Becari Dias Ana Heloisa Molina

Arte Coordenação do XIII SEPECH


Matheus Becari Dias, a partir da Cláudia Cristina Ferreira
obra Crystal Gradation, de Paul
Klee
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Conexões humanas v.1: [livro eletrônico] reflexões do XIII SEPECH


C747 UEL \ Andrea Cachel, Cláudia Cristina Ferreira organizadoras.
-- Londrina: UEL, 2022.
1 livro digital : il.

ISBN 978-65-00-53243-2
Vários autores.
Trabalhos apresentados no XIII Seminário de Ensino,
Pesquisa e Extensão em Ciências Humanas (SEPECH),
realizado na Universidade Estadual de Londrina, nos dias 27 a
30 de setembro de 2022.
Disponível em:
https://sites.google.com/uel.br/xiii-sepech/e-book?authuser=0
Inclui bibliografia.

1. Ciências Humanas - Seminários. 2. Pesquisa -


Seminários. I. Cachel, Andrea. II. Ferreira, Cláudia Cristina.
III. Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão em Ciências
Humanas (SEPECH). IV. Título.

CDU 3
Elaborada pela Bibliotecária Eliane M. S. Jovanovich – CRB 9/1250
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 09

Eixo 01 - Ensino e Aprendizagem e Educação


Científica em Ciências Humanas e Letras

POLÍTICAS DE CAPACITAÇÃO LINGUÍSTICA NA UNESPAR ............. 13


Alessandra Augusta Pereira da Silva
Matheus Gabriel Ibba Camargo e Silva

ENSINO DE LEITURA NA EJA: PROPOSTA DE ORDENAÇÃO E


SEQUENCIAÇÃO DE PERGUNTAS DE LEITURA VOLTADA AO
GÊNERO POEMA ......................................................................................... 28
Aliny Perrota
Poliana Rosa Riedlinger Soares

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ENSINO DE HISTÓRIA TRAUMÁTICA:


A EXPERIÊNCIA DO HOLOCAUSTO ....................................................... 39
Giovana Maria Carvalho Martins
Taiane Vanessa da Silva Micali

EXPERIÊNCIA, PENSAMENTO REFLEXIVO E EDUCAÇÃO EM JOHN


DEWEY ........................................................................................................... 49
Jarson da Silva

A NECESSIDADE DE UMA REFORMA DA FILOSOFIA, SEGUNDO


FEUERBACH ................................................................................................. 58
Lucas Felipe Cabral de Assis
Heloísa Pereira de Espindola
Arlei de Espíndola

DA EPISTEMOLOGIA GENÉTICA AO MÉTODO PEDAGÓGICO DE


JEAN PIAGET ................................................................................................ 66
Matheus Becari Dias
Eixo 02 - Estudos Culturais em Ciências Humanas e
Letras

O VAZIO E A FALTA:O OLHAR SENSÍVEL DE BARTHES E MICHAUX


SOBRE O JAPÃO ............................................................................................ 77
Alexandre Yoshiaki Sawaguchi

UNIVERSOS ESTÉTICOS: A LITERATURA LATINO-AMERICANA


ATUAL NO “CAMPO EXPANDIDO DAS ARTES” .................................... 86
Amanda Pérez Montanez

ASPECTOS CULTURAIS NA AULA DE LÍNGUA ESPANHOLA:


RELATOS DE EXPERIÊNCIAS EM CONTEXTO REMOTO ................. 98
Larissa Cristina Rocha
Vanessa Cruz Mantoani

DIMENSÕES DO INSÓLITO NAS NARRATIVAS CONTÍSTICAS


E ? À LUZ DE ASPECTOS
CULTURAIS .................................................................................................. 109
Lucas Matheus da Silva de Carvalho
Gabriel Amancio de Oliveira
Cláudia Cristina Ferreira

ROTEIRO CINEMATOGRÁFICO: UMA PROPOSTA DIDÁTICA ......... 123


Stefany Cauany Santos Bernardo

CINEMA NA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: CULTURA E EVOLUÇÃO


DOS PERSONAGENS NO FILME CUBANO MORANGO E
CHOCOLATE ................................................................................................ 130
Valeria Verónica Quiroga
Viviane Cristina Garcia de Stefani
Eixo 03 - Estudos sobre a Imagem e expressões
artísticas

O EO
(OU O DIABO NO HEAVY METAL): A GRANDE
COMUNHÃO DA MÚSICA INTERNACIONAL – A DE MAIOR
SUCESSO POPULAR E COMERCIAL – E, ABRASANTEMENTE,
LONGEVA E DE “PESO” ............................................................................ 140
Adriano Alves Fiore

AS IMAGENS DE CONTROLE NO CONTEXTO BRASILEIRO: OS


LIMITES E AS POTENCIALIDADES DO CONCEITO DE PATRICIA
HILL COLLINS ............................................................................................. 156
Beatriz Molari
Lorena Ingred Moreira Pio

O SOM AO REDOR, FILM AS PHILOSOPHY .......................................... 167


Igor Gonçalves de Jesus

FOTOGRAFIAS DE EVANDRO TEIXEIRA E SEU OLHAR ENGAJADO


NO FOTOLIVRO “VOU VIVER” ................................................................ 179
Luís Gustavo Cavalheiro Silva

AS REPRESENTAÇÕES DA VELHICE E DA MORTE NO CINEMA DE


INGMAR BERGMAN ................................................................................... 191
Maria Paula da Silva Lima

ANÁLISES DE FILMES BRASILEIROS EM REDE SOCIAL: CULTURA


PARA ALÉM DO IMAGINÁRIO.................................................................. 206
Valeria Verónica Quiroga

Eixo 04 - Ciência, Tecnologia e Sociedade

DO MATERIAL PARA O VIRTUAL:


COMO OS PAPÉIS DE GÊNERO SE MANIFESTAM NO UNIVERSO
ONLINE DE LEAGUE OF LEGENDS? ..................................................... 215
Alice Silva Poltronieri
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: UMA ANÁLISE
PSICOSSOCIAL ............................................................................................. 230
Luís Paulo Nallin de Oliveira
Sonia Regina Vargas Mansano

LAZER E CONTRADIÇÃO: O JORNALISMO BOÊMIO DE LONDRINA


NA DÉCADA DE 1950 ................................................................................... 241
Nícolas de Souza Pires

Eixo 05 - Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

O ISOLAMENTO POLÍTICO DO HOMEM, O ABANDONO DO


MUNDO E A APARIÇÃO DE MOVIMENTOS TOTALITÁRIOS ........... 253
Alessandro Marinelli de Oliveira
Maria Cristina Müller

OS DIFERENTES TIPOS DE COSMOPOLITISMO EM KANT.............. 263


Angélica Godinho da Costa

FEUERBACH – EM VISTAS DO HOMEM INTEGRAL .......................... 272


Arlei de Espíndola

A RECEPÇÃO DE RECOMENDAÇÕES QUANTO AO TRABALHO


DECENTE NAS DECISÕES JUDICIAIS REFERENTES AO TRABALHO
ESCRAVO NO BRASIL DE 2016 E 2017: UMA HIPÓTESE NEGADA. ... 283
Baruana Calado dos Santos

IDEOLOGIAS POLÍTICAS NO GOVERNO BOLSONARO:


ASSOCIAÇÕES E RUPTURAS INTERNAS ............................................... 297
Beatriz Olivieri Marcos

ÉTICA, LIBERDADE EMPRESARIAL E PROTEÇÃO DE DADOS


PESSOAIS....................................................................................................... 318
Bianca Michels Silveira
Guilherme de Assis Furtado
Sávio Araújo de Lemos Silva

TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS DE PROFESSORAS DE CIÊNCIAS


SOCIAIS DA USP (1934-1969) ........................................................................ 330
Claudinei Carlos Spirandelli
PRESSUPOSTOS MORAIS E JURÍDICOS DA PAZ PERPÉTUA
KANTIANA .................................................................................................... 345
Cleiton Marcolino Isidoro dos Santos

A IDEIA DE LIBERDADE INATA KANTIANA ENQUANTO


POSSIBILIDADE DE FUNDAMENTO DOS DIREITOS HUMANOS ... 357
Gabriel Alves Galdino

COVID-19: A ÉTICA NARCÍSICA DA EMPATIA EM FRANGALHOS ... 365


Fabrícia Garla Pismel
Gustavo Felipe Berça Ogata

OS SOLDADOS DO MATE: A ECONOMIA MATEIRA DO PARANÁ E A


GUERRA DO PARAGUAI (1864-1870).......................................................... 375
Matheus Pelaquim Silva

HANNAH ARENDT E O ESQUEMA DA ASCENSÃO E QUEDA DO


ESTADOS-NAÇÕES EUROPEUS COM RELAÇÃO AO POVO JUDEU . 385
Robson José Valentino Cruz

A RELEVÂNCIA DO CONCEITO WITTGENSTEINIANO DE


“IMAGEM” PARA A COMPREENSÃO DA FORMAÇÃO DO
PENSAMENTO FASCISTA.......................................................................... 393
Thiago Salvador Novi
Conexões Humanas:
Reflexões do XIII SEPECH UEL

Volume I
Apresentação
O XIII Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão em Ciências Humanas
(SEPECH) foi realizado na Universidade Estadual de Londrina, nos dias 27 a 30 de
setembro de 2021, tendo suas atividades sido desenvolvidas integralmente de modo
remoto, em virtude da Pandemia de COVID-19, que ainda assolava o país e o mundo.
Mostrou o empenho de todas as áreas envolvidas na manutenção das reflexões sobre
ensino, pesquisa e extensão, mesmo em um cenário que exigiu adaptações, criatividade
e resiliência. E consolidou nossa ênfase na esperança e nossa aposta na vida,
materializadas no movimento de transmissão, entre sujeitos e gerações, do
conhecimento e das práticas educacionais promovidos no espaço da UEL.
Durante o Evento, 15 Eixos Temáticos recepcionaram uma miríade de novas
ideias, de investigações em fase de consolidação, de pensamentos dispostos a encontrar
interlocutores. Tais Eixos reuniram os trabalhos acerca dos temas relacionados à
História, Filosofia, às Ciências Sociais e Letras, potencializando também as suas
interfaces e sua vocação interdisciplinar. Congregaram apresentações de estudantes de
graduação e pós-graduação, professores e professoras da educação básica, do ensino
superior e de escolas de idiomas, além de egressos da UEL. E ofereceram as bases para
os textos que compõem este livro, como forma de enfatizar a necessidade de que a
sociedade se aproprie do conhecimento produzido nas Universidades Públicas e de
que ele envolva sempre um processo democrático de compartilhamento de saberes.
Neste Primeiro Volume, em especial, estão concentradas as contribuições
decorrentes das exposições, discussões e revisões temáticas oriundas dos Eixos 1 a 5.
Vale observar que o primeiro desses Eixos, “Ensino e Aprendizagem e Educação
Científica em Ciências Humanas e Letras”, coordenado pela professora Ângela
Maria de Sousa Lima (SOC - UEL) e pelo professor Carlos Alberto Albertuni (FIL -
UEL), recepcionou trabalhos resultantes de projetos, pesquisas e reflexões, com
resultados parciais ou finais, que trataram de temas relacionados à interlocução entre
Educação e Ciências Humanas, com destaque para questões que se referem aos
processos de formação inicial e continuada de professores. Além disso, o Eixo 01
consistiu em um espaço para pesquisas que debatem diversas relações entre ensino e a
aprendizagem; ensino e pesquisa; educação para a ciência; formação de professores
pesquisadores; processos metodológicos e didáticos no interior das diversas disciplinas
da Educação Básica. Oferece-nos alguns dos textos presentes neste Livro, como forma
de tornar públicos esses debates de extrema relevância, sobretudo no cenário
contemporâneo.

Decorrentes do Eixo 2 temos também textos que materializam a relevância dos


debates acerca de elementos culturais no âmbito das Humanidades. O Eixo 02,
“Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras”, teve por escopo possibilitar
espaço para reflexões e diálogos acerca desses elementos, quer na seara teórica, no que

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tange a problemáticas de práticas sociais, questões literárias, formação docente, quer
na prática pedagógica. Tendo sido coordenado pelas professoras e pesquisadoras
Cláudia Cristina Ferreira (LEM - UEL), Carolina Favaretto Santos (MEPLEM - UEL)
e Marley Budny dos Santos Souza (PPGL - UEL), partiu da concepção segundo a qual
língua e cultura são indissociáveis, evidenciando uma relação em espelho, onde estão
entrelaçadas de tal forma que uma reflete a outra. Além disso, enfatizou a ideia segundo
a qual matizes culturais influenciam-nos e revelam identidades, uma vez que somos
seres perpassados por múltiplas vozes e questões ideológicas, aspectos linguístico-
culturais, comportamentais, tradições, pensamentos e ações que trazem em seu bojo
traços de uma herança socio-histórica e cultural que podem ser evidenciados no
discurso oral e escrito ou em produções artísticas (pintura, música, escultura, dança,
literatura).
Já o Eixo “Estudos sobre a Imagem e Expressões Artísticas” –
coordenado pelas professoras Ana Heloisa Molina (HIS - UEL), Andrea Cachel
(FIL - UEL), Daniela Vieira dos Santos (SOC - UEL) e pelo professor Rogério Ivano
(HIS - UEL) – acolheu pesquisas que se dedicaram aos múltiplos sentidos das imagens
na realidade social, bem como à maneira pela qual variadas expressões e manifestações
artísticas reelaboram os significados e os sentidos da vida coletiva e individual. A partir
de uma perspectiva que envolveu todas as áreas das Ciências Humanas e Letras, o Eixo
03 procurou fomentar discussões sobre os sentidos da imagem – na interface entre a
reprodução, a representação e o simulacro – e a sua articulação com a memória, com
a construção das identidades, assim como as suas possibilidades de crítica e subversão
sociais. Recepcionou reflexões sobre as expressões e manifestações artísticas, suas
formas, suportes, técnicas, e o impacto nas subjetividades, na formação de ideologias
e contextos, a fim de colocar em debate em que medida a complexa criação de
conteúdos expressos em forma de arte estabelece horizontes para o bem viver. Dele
decorrem artigos presentes neste Livro com foco nas múltiplas linguagens artísticas e
no reconhecimento da centralidade das expressões culturais, e em especial da
visualidade, na subjetividade humana.
Parte importante também das reflexões apresentadas neste Livro são
provenientes da discussão acerca da interface entre “Ciência, Tecnologia e
Sociedade”, promovidas pelo Eixo 04, que reuniu pesquisas que abordaram o
desenvolvimento científico e tecnológico e sua relação com as transformações sociais.
Constituiu-se em um espaço para trabalhos que transitaram pelas áreas e temas da
História da Ciência, comunicação e política, políticas públicas, dimensões culturais da
tecnologia, implicações da tecnologia sobre o mundo do trabalho e os reflexos da
tecnologia sobre as relações sociais contemporâneas. Coordenado pelos professores e
pesquisadores André Lopes Ferreira (HIS - UEL), Fernando Kulaitis (SOC - UEL) e
Marco Paccola (SOC - UEL), o Eixo 04, ademais, foi marcado por debates que
enfatizaram que tecnologia e ciência são elementos imprescindíveis para refletir e
entender as sociedades de massa que emergiram no séc. XX e que destacam que, num
mundo cada vez mais integrado, as esferas política, cultural, social e econômica estão

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intimamente ligadas ao desenvolvimento técnico-científico em suas mais variadas
formas.
Também vale observar que o Eixo 05, coordenado pelas professoras Maria
Cristina Müller (FIL - UEL) e Raquel Kritsch (SOC - UEL) e pelo professor Fábio
Scherer (FIL - UEL), contempla-nos com textos fundamentais acerca das questões
vinculadas à justificação da unidade política e da fundamentação da ideia de cidadania
em face do reconhecimento do pluralismo de visões de mundo, da emancipação ética
e social e das condições de subalternidade e/ou vulnerabilidade. O eixo “Estudos
Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos” refletiu sobre problemáticas como a opressão,
a dominação, o sofrimento social e a condição de vulnerabilidade, que comprometem
severamente o exercício pleno da cidadania e dos direitos humanos. Propôs-se também
a construir uma reflexão crítica acerca da responsabilidade do ser humano para com o
mundo público que possa se contrapor ao reducionismo a que o ser humano foi
submetido nas sociedades de consumo, bem como lançar luzes sobre as razões da
invisibilidade das mulheres na produção do conhecimento científico em geral, e, em
particular, na filosofia. Buscou tratar, ainda, da fundamentação de princípios e normas
éticas, jurídicas e políticas, bem como indicar o alcance de suas reivindicações de
validade.
Esse trabalho dedicado das coordenadoras e coordenadores dos Eixos, além
do empenho de toda a sua equipe de monitoria e dos aprimoramentos provenientes
da interação entre pesquisadoras e pesquisadores e do diálogo com os ouvintes do
Evento, consolidado neste Livro, nos mostra a força do SEPECH-UEL. Nosso desejo
é que ele continue sendo sede de inspirações constantes para análises acerca da
indissociabilidade entre a pesquisa/ensino/extensão. Que ele possa sempre propiciar
o desenvolvimento dos alunos e alunas, nas diversas searas que compõem a área de
Ciências Humanas e Letras, permitindo que os assuntos debatidos no âmbito da UEL
exerçam impacto na sociedade. Esperamos que os seus frutos – dentre os quais este
Volume do Conexões Humanas: Reflexões do XIII SEPECH UEL – perpetuem-
se através das inspirações e aprimoramentos que possam ser gerados naqueles que se
abrirem para as análises propostas aqui.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

POLÍTICAS DE CAPACITAÇÃO LINGUÍSTICA NA UNESPAR

Alessandra Augusta Pereira da Silva1


Matheus Gabriel Ibba Camargo e Silva2

Resumo: A pesquisa apresentada neste artigo teve como objetivo investigar políticas
de capacitação linguística da Unespar na perspectiva da Teoria da Atividade e do
Interacionismo Sociodiscursivo. Essas políticas resultaram em atividades como a
criação de programas e projetos de capacitação linguística, identificadas, nesta
pesquisa, por meio da análise do Projeto de Desenvolvimento Institucional da
universidade (PDI, 2018-2022) e das abas dos programas constantes no website da
universidade. Além disso, as matrizes curriculares dos cursos de graduação foram
analisadas a fim de identificar disciplinas que envolviam capacitação linguística,
disciplinas estas filtradas por meio de palavras-chave delimitadas na pesquisa. Os
resultados nos trouxeram algumas conclusões, dentre elas, i. que a capacitação
linguística, identificada nos cursos de graduação, está vinculada majoritariamente aos
cursos de licenciatura que requerem diretamente essa capacitação no campo de
trabalho do formando; ii. que a maioria dos programas e projetos de capacitação
linguística dependem de fomento externo e influenciam, portanto, nas políticas de
capacitação linguística da instituição e, iii. que a internacionalização é compreendida de
modo embrionário na universidade ainda que contemplada no PDI institucional.

Palavras-chave: Políticas de capacitação linguística; Internacionalização; Unespar;


Decolonialismo.

Introdução

As políticas de internacionalização do Ensino Superior no Brasil estão em


constante alterações, com algumas universidades, consideradas, altamente
internacionalizadas e outras em processo inicial, apesar de haver primeiros traços delas
desde a origem das universidades brasileiras, já na década de 20, com a presença de
professores estrangeiros visitantes, além de acordos de cooperação acadêmica
internacional. As políticas para esta área foram se tornando obrigatórias dentro das
instituições de ensino superior (IEs) e uma das ações para tal são as políticas de

1 Professora Adjunta, lotada no colegiado de Letras da Universidade Estadual do Paraná –


UNESPAR/Campus Campo Mourão. Coordenadora Institucional do Programa Paraná Fala
Inglês (Unespar/UGF) e do Programa Línguas Estrangeiras da Unespar,
aleunespar@gmail.com
2 Estudante do 2˚ ano de Letras Português/Inglês, da Universidade Estadual do Paraná –

UNESPAR/Campus Campo Mourão. Bolsista de Iniciação Científica da Fundação Araucária


do Paraná, matheusibba@hotmail.com

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

capacitação linguística (PCL), uma vez que são consideradas requisitos para a interação
entre os participantes da internacionalização, seja “em casa” ou entre instituições
internacionais, segundo as políticas institucionalizadas pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Capes.
Nesse contexto, entre tantas divergências e polêmicas, a Universidade Estadual
do Paraná, Unespar, buscou implementar políticas de internacionalização ao lado de
suas políticas de capacitação linguística, o que é percebido em seu Plano de
Desenvolvimento Institucional mais recente: PDI 2018-2022 (UNESPAR, 2018). A
universidade foi credenciada pelo Decreto Estadual n. 9538, de 2013, e recredenciada
em 2018. Assim, a Unespar, como as demais IEs, está sujeita a órgãos da esfera estadual
e federal e avaliadores externos, como a Capes, os quais classificam a
internacionalização como critério de avaliação, corroborando as investigações
realizadas por Lima e Contel (2009).
Ao pensar nesse contexto, originou-se esta pesquisa3, tendo como objetivo
geral investigar as políticas de capacitação linguística da Unespar e suas implicações
para o processo de internacionalização da Instituição de Ensino Superior (IES). A
partir do objetivo geral, delimitamos os específicos, a saber: i. estudar o embasamento
teórico na perspectiva do Decolonialismo, da Teoria da Atividade e a elaboração de
conceitos sobre a internacionalização e capacitação linguística com base no
Interacionismo Sociodiscursivo; ii. identificar programas, projetos e disciplinas de
cursos de graduação que fazem parte das políticas de capacitação linguística no âmbito
da Unespar; e iii. apontar possíveis articulações entre as políticas de capacitação
linguística propostas pela IES e suas implicações no seu processo de
internacionalização.
Para tal, a perspectiva teórica da Decolonialidade, a Teoria da Atividade e o
Interacionismo Sociodiscursivo, doravante ISD, foram os referenciais teóricos
adotados. Para nós, há convergências entre elas e, serão apresentadas na parte da
Discussão da Análise e Apresentação de Resultados da Pesquisa. É interessante
destacar que as teorias adotadas se originaram a partir da necessidade de
desprendimento de uma epistemologia eurocêntrica produzindo, dessa forma,
(re)conhecimento da realidade brasileira como um país da América Latina, um país
com raiz colonialista. Assim, foi possível refletir sobre a internacionalização, as
políticas de internacionalização e de capacitação linguística da instituição, segundo o
ponto de vista dos países, considerados dependentes, latino-americanos.
O artigo está dividido em quatro partes, iniciando-se pela introdução, outrora
apresentada, sequenciada pela metodologia e pela discussão da análise dos dados e
resultados da pesquisa e, por fim, pelas considerações finais.

3 Este artigo é resultado de uma pesquisa vinculada ao Programa de Iniciação Científica da


Unespar, com concessão de bolsa da Fundação Araucária, em articulação com uma pesquisa
registrada na Divisão de Pesquisa da instituição.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

2. Metodologia

Esta pesquisa é de natureza quantitativa e qualitativa baseada em análise


documental. Os primeiros dados coletados foram as matrizes dos cursos de graduação
da universidade investigada via website institucional, em 2020 (UNESPAR, S/D), para
verificar quais estavam vinculadas com capacitação linguística. Dos 71 cursos
disponíveis, foi realizada uma busca por meio de palavras-chave (língua portuguesa,
espanhol, comunicação, inglês instrumental, e outras da mesma espécie) relacionadas
ao ensino de línguas e, posteriormente, sistematizadas em gráficos. Dos cursos
analisados, dois deles, Direito e Museologia, do campus de União da Vitória, não
tinham suas grades curriculares disponíveis no site da IEs. Sendo assim, foram
contatados um docente de cada curso para obtenção de acesso às matrizes e suas
disciplinas. O segundo conjunto de dados delimitado na pesquisa foi constituído do
PDI 2018-2022, dados retirados do site dos Programas PFI e Prolen e as resoluções
nº 015/2020 Reitoria/Unespar (2020a) e nº 020/2020 Reitoria/Unespar (2020b).
Como aporte teórico, a pesquisa é embasada na Decolonialidade (QUIJANO,
1997, 2014), na Teoria da Atividade (LEONTIEV, 1978) e no ISD (BRONCKART
1999/2003/2007/2009; MACHADO; BRONCKART, 2009; CRISTOVÃO, 2008).
Para análise dos dados, adotamos os procedimentos metodológicos do ISD,
centrados nas análises contextual e textual, que possuem três níveis de análise: 1.
organizacional, 2. enunciativo e 3. semântico. Neste trabalho foram usados
parcialmente os procedimentos do primeiro nível, organizacional, portanto
constituídos da análise de segmentos de orientação temática (SOT) e segmentos de
tratamento temático (STT). Os SOTs são termos que introduzem o tema de uma
pesquisa, enquanto os STTs são aproximações e desdobramentos de um SOT (SILVA;
SILVA, 2021), ou seja, do tema. Ainda em relação aos procedimentos de análise, o
contexto sócio-histórico de produção textual e de seus autores (CRISTOVÃO;
MOTT-FERNANDEZ, 2014), que influenciam os sentidos produzidos pelo texto,
foram considerados.
Iniciamos, na sequência, a apresentação da análise e resultados da pesquisa a
partir dos objetivos específicos, elencados na introdução deste artigo.

3. Discussão da Análise de Dados e Resultados da Pesquisa

Apresentamos, nesta seção, o embasamento teórico na perspectiva do


Decolonialismo e a Teoria da Atividade e a elaboração de conceitos sobre a
internacionalização e capacitação linguística; a identificação dos programas, projetos e
disciplinas de cursos de graduação que fazem parte das políticas de capacitação
linguística no âmbito da Unespar; e possíveis articulações entre as políticas de
capacitação linguística propostas pela IES e o Decolonialismo.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

3.1 Estudo sobre a Decolonialidade e a Teoria da Atividade

O primeiro objetivo específico desta investigação está voltado para o estudo


do referencial teórico do Decolonialismo e da Teoria da Atividade. Esse estudo nos
serviu de base para desenvolver alguns conceitos delimitados nesta pesquisa, como os
conceitos de internacionalização e capacitação linguística. Embora esses dois aportes
teóricos sejam centrais para a análise dos dados, o ISD também convergiu com a
mesma base teórica e nos deu ferramentas de análise dentro do campo da linguística
para que pudéssemos realizar uma análise qualitativa, além de auxiliar na formulação
de conceitos centrais desta pesquisa. Dessa forma, trataremos dos três referenciais
teóricos, neste artigo.
A Decolonialidade (QUIJANO, 1997; 2014) apresenta uma proposta de uma
leitura da América Latina para a sua própria história, buscando romper com ideais e
bases eurocêntricas, o que permite a criação de uma corrente de pensamento latino-
americana. O ISD (BRONCKART 1999/2003/2007/2009; MACHADO;
BRONCKART, 2009; CRISTOVÃO, 2008), em poucas palavras, é uma vertente
teórico-metodológica fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético e
compreende o ser humano como ser social o qual se constrói por meio de suas relações
históricas, usando artefatos para a produção das relações sociais por meio da
linguagem. A Teoria da Atividade (LEONTIEV, 1978; VIGOTSKI, 2001) também
tem por base o materialismo marxista e descreve as atividades significativas da/na vida
humana.
O Decolonialismo tem um olhar para o Brasil, como um país latino-americano
tido como periférico no sistema capitalista. A Teoria da Atividade nos auxiliou a definir
a capacitação linguística como uma atividade e, portanto, constituída de elementos,
como necessidade, objeto e motivo (LEONTIEV, 1978) e que também dependem do
contexto que estão inseridos. Em um contexto latino-americano, a atividade das PCL
na Unespar está atrelada a obrigações de órgãos de esferas superiores e formação
docente. As necessidades geradas para a implantação de PCL impulsionam o motivo
que faz com que esta atividade ocorra. Nessa atividade, a linguagem, tida como
artefato simbólico dentro do ISD, nos faz refletir sobre a capacitação linguística, pois,
nessa acepção, a linguagem tem o potencial de desenvolvimento humano. Assim, a
capacitação linguística como uma atividade é parte de uma política dentro de um país
tido como periférico, no sistema capitalista, e compreender esse contexto nos leva a
compreender as políticas desenvolvidas no interior de uma determinada IEs.
Posto isso, iniciamos a discussão dos conceitos centrais desta pesquisa:
internacionalização e capacitação linguística. Como estamos a investigar as políticas de
capacitação linguística, devemos entender o que é internacionalização e a relação entre
o fenômeno com as políticas de capacitação linguística. Para isso, estudamos Knight
(2012) e seus apontamentos sobre a internacionalização.
Conceituar o fenômeno internacional requer, em primeiro plano, a distinção
de dois termos que estão diretamente conectados a ponto de influenciarem um ao

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

outro: globalização e internacionalização. Segundo Knight (2012, apud PICCIN;


FINARDI, 2019), a globalização é o fluxo global de ideias, serviços e pessoas,
enquanto a internacionalização está relacionada às relações entre países, povos e
instituições. Assim, pelo fato da discussão sobre internacionalização estar presente em
diversos contextos pelo mundo, ocorrem divergências em sua definição (KNIGHT,
2004, apud PICCIN; FINARDI, 2019), portanto faz-se importante a elaboração de
um conceito que reflita sistematicamente esses variados contextos.
Knight (2012) afirma que existem cinco verdades sobre a internacionalização.
A primeira alude ao fato de que o contexto internacional não deve ficar acima do
contexto local dos países, pois, caso ocorra, a internacionalização será de caráter
homogeneizante. Para o autor, a importação de modelos conceituais do Norte Global,
como a própria definição de internacionalização, faz com que as realidades dos países
do Sul sejam ignoradas pelos seus habitantes, o que permite uma dominação completa
por parte do Norte. O segundo apontamento remete à ideia de que a
internacionalização da educação é um processo que inclui as dimensões internacionais
(atividades que introduzem aspectos internacionais no ensino-aprendizagem e pesquisa
do ensino superior), interculturais e globais aos objetivos do ensino superior, o que
aponta para a sua adaptabilidade a cada instituição. A terceira observação do autor
aponta para os benefícios, riscos e consequências que podem acontecer por causa da
internacionalização. Já o quarto apontamento defende o aspecto de a
internacionalização não ser um fim em si mesma, sendo um processo, o que aponta
para o praticar e o desenvolver de conhecimentos interculturais entre os estudantes em
um mundo mais interconectado (PICCIN e FINARDI, 2019). Por fim, a última
reflexão aponta para as diferenças entre globalização e internacionalização, além de
suas aproximações positivas e negativas. Por exemplo, Knight (2012) observa que a
internacionalização consolidou a mercantilização da educação por meio dos efeitos
negativos da globalização.
Tendo Knight (2012) como referência, delimitamos, nesta pesquisa, este
modelo conceitual de internacionalização: “a internacionalização seria o processo de
integração das dimensões internacional, intercultural ou global, seja nos objetivos,
funções ou na oferta do ensino superior” (KNIGHT, 2003).
A capacitação linguística, por sua vez, é uma das formas de se alcançar a
internacionalização. Compreendemos que abordar capacitação linguística em
disciplinas e programas universitários é de extrema importância para que qualquer IEs
desenvolva políticas de internacionalização, pois através dos elementos língua e
linguagem, as ações de internacionalização (por exemplo, parcerias institucionais) são
estabelecidas, permitindo, assim, que acadêmicos se mobilizem e aprofundem seus
conhecimentos interculturais e linguísticos. E, antes de conceituá-la, vamos relacioná-
la com a Teoria da Atividade, porque entendemos a capacitação linguística como uma
atividade, com características abordadas por Dolz, Pasquier e Bronckart (2017) e Souza
e Stutz (2019): as capacidades de linguagem.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

A Psicologia Histórico-Cultural, fundada por autores como Vigotski (2001) e


Leontiev (1978), estuda a atividade humana, a consciência e o que lhes é intrínseco,
tendo por base o materialismo histórico-dialético de Marx. Segundo Asbahr (2005),
Vigotski, considerado precursor da Psicologia geral, em seus primeiros estudos,
explicou que a consciência humana é formada através das relações sociais, de atividades
socialmente significativas, enquanto Leontiev fundou a teoria psicológica geral da
atividade e a descreveu, defendendo que a atividade humana é o que movimenta a vida
de um sujeito. Dito isso, destacam-se três conceitos bastante pertinentes desta teoria
para nossa pesquisa: necessidade, objeto e motivo.
A necessidade é, simplesmente, o que rege a atividade do sujeito (seria o
“começo” de uma atividade) e que provém de qualquer desejo que haja, seja fome ou
aprendizado, porém, não é capaz de provocar nenhuma atividade de modo definido.
O objeto é o fruto das necessidades humanas, porque, somente por intermédio de um
objeto, elas são satisfeitas, e, também, a atividade é norteada e moldada. Além disso,
vale ressaltar que as atividades são diferentes umas das outras devido ao objeto de cada
uma, pois, “o objeto da atividade é seu motivo real” (LEONTIEV, 1983, p. 83, apud
ASBAHR, 2005, p. 110); isto é, o objeto de uma atividade se soma à sua necessidade,
enlaçando, dessa forma, o motivo. E o motivo, por sua vez, é o que impulsiona a
atividade, servindo de ponte entre a necessidade e o objeto de uma atividade, pois é
exatamente isso que o motivo é: “Uma necessidade só pode ser satisfeita quando
encontra um objeto; a isso chamamos de motivo. O motivo é o que impulsiona uma
atividade, pois articula uma necessidade a um objeto” (ASBAHR, 2005, p. 110).
Ao pensar nas PCL como uma atividade e, que por isso, é permeada por
necessidades, motivos e finalidade para chegar ao objeto, precisamos pensar qual seria
a mola propulsora desta atividade. Se formos coerentes com a perspectiva vigostkiana
de desenvolvimento humano, ela precisa estar atrelada à necessidade de desenvolver
capacidades de linguagem, como apontam estudos do ISD.
As capacidades de linguagem são compreendidas como capacidades para
interpretar e produzir textos em diversas situações sociocomunicativas por Dolz,
Pasquier e Bronckart (2017), subdivididas em cinco: capacidades de ação, capacidades
discursivas, capacidades linguístico-discursivas, capacidades de significação e
capacidades multissemióticas.
As capacidades de ação, conforme pontuado por Dolz, Pasquier e Bronckart
(2017) envolvem a adaptação da linguagem levando em conta o contexto de produção
do texto (emissor, receptor, meio de publicação e outros), enquanto as capacidades
discursivas são “aptidões para mobilizar os modelos discursivos pertinentes a uma ação
determinada” (DOLZ, PASQUIER, BRONCKART, 2017, p. 164), isto é, o sujeito
consegue identificar traços específicos de gêneros textuais em meio à arquitetura
textual. Já as capacidades linguístico-discursivas tangem o uso da produção de
linguagem, com “operações de planificação, de estruturação temporal, de coesão, de
conexão e de modalização” (DOLZ, PASQUIER, BRONCKART, 2017, p. 166). As
capacidades de significação estão conectadas com os sentidos elaborados pelo sujeito

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

ao texto, por meio de suas reflexões e conhecimentos sociais (ideologia e contexto


sócio-histórico-cultural, por exemplo) embutidos em suas atividades (SOUZA e
STUTZ, 2019). Por fim, as capacidades multissemióticas, ainda em fase de formulação
no ISD, envolvem compreensão e produção de diferentes semioses textuais.
Capacitação linguística, portanto, nesta pesquisa, é a integração das capacidades
de linguagem, pois ela pressupõe o desenvolvimento da língua em todas as suas
dimensões, reconhecendo diversas estruturas encaixadas “dentro e fora” de cada texto,
isto é, elementos textuais e contextuais. Em outras palavras, entendemos a capacitação
linguística como uma atividade prática que inclui o desenvolvimento das capacidades
de linguagem, ao pensar na compreensão e apropriação da língua em seus todos os
seus aspectos, e que incluem todas as capacidades de linguagem elencadas
anteriormente.
Tendo delimitado o conceito de internacionalização para esta pesquisa e
compreendido o que é capacitação linguística, podemos avançar ao próximo objetivo,
uma vez que para identificar e filtrar disciplinas, programas e projetos das PCL da IEs
e discuti-los, a definição de cada conceito foi necessária.

3.2 Identificação de disciplinas, programas e projetos que fazem parte das


PCL no âmbito da Unespar

O segundo objetivo deste projeto buscou identificar disciplinas de cursos de


graduação, programas e projetos que fazem parte das PCL da Unespar, por meio de
buscas realizadas no website institucional. Posto isto, sobre a capacitação linguística nos
cursos da universidade, sistematizamos as 4049 disciplinas da IEs, incluindo TCCs,
atividades complementares, atividades de extensão e estágios, no gráfico abaixo.
Reiteramos que, por meio de SOTs relacionados ao ensino de língua, filtramos as
disciplinas por palavras-chave e as classificamos em “Disciplinas Gerais” e
“Disciplinas relacionadas à Capacitação Linguística”.

Disciplinas nos Campi da Unespar


Disciplinas Gerais Disciplinas relacionadas à Capacitação Linguística

9%

91%

Figura 1: Disciplinas nos campi da Unespar


Fonte: os autores

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Das 4049 disciplinas, identificamos 349 relacionadas à capacitação linguística.


Essa informação nos mostra que a universidade estudada apresenta um percentual de
9% de disciplinas que, de alguma forma, trabalham capacitação linguística, o que
dificulta o processo de internacionalização nos campi da IEs. Para que a
internacionalização se desenvolva, a capacitação linguística é um fator essencial.
Além do gráfico acima, elaboramos outro com o total de disciplinas ofertadas
em cada campus e quantas destas são relacionadas à capacitação linguística.

1000 884
800 564 549 554
527 479 492
600
400
200 104 35 19 69 29 81
12
0

Total de Disciplinas

Disciplinas vinculadas à Capacitação


Linguística

Figura 2: Total de disciplinas em cada campus da Unespar


Fonte: os autores

A partir dos dados acima, podemos notar que os campi com mais e menos
disciplinas com capacitação linguística são, respectivamente, o campus de Apucarana
(104) e o campus de Curitiba I (12). Esse resultado é compreensível, se consideramos
que os dois campi localizados em Curitiba não ofertam nenhum curso de Letras ou
cursos que demandam capacitação linguística para a formação de seus profissionais,
enquanto os polos situados em Apucarana e União da Vitória, os que mais possuem
disciplinas relacionadas à capacitação linguística, ofertam tais cursos. No que concerne
aos cursos de Letras dos dois últimos campi mencionados, Apucarana oferta três, e
União da Vitória, dois – todos de licenciaturas. Ressalta-se que os outros campi não
mencionados (Campo Mourão, Paranaguá e Paranavaí) apresentam ao menos um
curso de Letras na sua grade. O curso de Letras, pela sua natureza, oferta um número
significativo de disciplinas relacionadas à capacitação de linguística, além da formação
docente, portanto é um resultado esperado tendo em vista as disciplinas ofertadas para
os cursos de Letras.
Observando o baixo percentual de disciplinas que estão relacionadas à
capacitação linguística na universidade, os programas e projetos voltados a essa
finalidade se tornam essenciais. Essas atividades são implementadas a partir de políticas
institucionais e, no caso da IEs, o PDI, é um dos documentos que auxilia na
compreensão de como elas são geradas, dentro da instituição. Como a análise do PDI

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

2018-2022 não é o foco central desta investigação, trazemos apenas um resultado


apresentado por Silva, Silva e Quadros-Zamboni (S/D)4, que nos serve para tratarmos
dos programas implementados na IEs. Para os autores, a partir da identificação do
termo “internacionalização”, evidenciou-se que o fenômeno estava frequentemente
vinculado à tríade ensino-pesquisa-extensão, além de relatarem poucas ocorrências em
que o termo está relacionado com capacitação linguística. Segundo eles,

A partir da análise do PDI em busca de ações de capacitação linguística, pudemos


identificar que, embora essas ações estejam, na sua maioria, vinculadas à
internacionalização, aparece um número pequeno de ações de capacitação linguística
em relação ao número de recorrências do termo internacionalização no documento (8
de 78 recorrências). Também identificamos que na maioria das recorrências do termo
internacionalização não há um desdobramento temático, ou seja, avaliações da
Universidade sobre internacionalização. (SILVA, SILVA E QUADROS-ZAMBONI,
S/D).

É importante, pois, evidenciar que a capacitação linguística está prevista no


PDI da universidade, mas ainda como um componente inicial, já que há poucas
menções à capacitação linguística. A partir dessa reflexão, passamos à discussão da
identificação dos programas de capacitação linguística na IEs, iniciando pelos
programas mais recentes ou em fase de implantação até os mais antigos.
A resolução Nº 015/2020 Reitoria/Unespar (2020a), que cria o Programa
Unespar Fala Espanhol (UFE), estabeleceu a oferta de cursos de língua espanhola para
todos os campi da Unespar. O SOT “internacionalização” aparece três vezes no
documento, e todas as menções estão relacionadas com a resolução de
internacionalização do PDI discutida anteriormente. Ressalta-se, ainda, que uma das
aparições relaciona o fenômeno com a meta 32 do PDI universitário, a qual prioriza o
processo de internacionalização junto de países da América Latina e Caribe. O termo
“capacitação linguística” não aparece, todavia, encontram-se as expressões
“aprimoramento linguístico” e “capacitar em língua espanhola” no documento.
A resolução Nº 020/2020 Reitoria/Unespar (2020b), que trata da Criação do
Centro de Línguas, Celin, evidencia uma estrutura ampla a ser implantada na
universidade, constituído de coordenação geral e locais para atender cada campus da
universidade. No documento, são feitas 27 menções ao termo “internacionalização”,
sendo que 10 destas se relacionam com o processo de internacionalização da
universidade e o estudo acerca do fenômeno. Em relação ao termo “capacitação
linguística”, há 26 menções, sendo que 7 destas eram a expressão “políticas de
capacitação linguísticas” e envolviam o seu planejamento por intermédio dos

4 Este faz parte de um relatório de pesquisa não publicado, mas enviado a Pró-Reitoria de
Ensino de Graduação – PROGRAD para comprovar as atividades realizadas no Programa de
Iniciação Científica e Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação PIC-PIBITI
2019-2020.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

integrantes do Celin, por exemplo, a Coordenação Pedagógica do Celin (CPC),


enquanto outras 7 menções estavam relacionadas a sua pesquisa e ofertas de ações do
Celin. Deve-se notar também que todas as outras menções de ambos os termos estão
associadas à compreensão do documento sobre o PDI 2018-2022 e o estado
embrionário da internacionalização na IEs, além do entendimento da importância
acerca de capacitação linguística junto aos institutos latino-americanos. Pode-se
confirmar isso a partir deste trecho:

Destaca-se, ainda, a importante relação entre a capacitação linguística e o processo de


internacionalização da universidade, uma relevante demanda para o cumprimento da
agenda das IES. A política linguística na Unespar ainda dá seus primeiros passos,
considerando o Plano de Desenvolvimento Institucional 2018-2022 (PDI), que apesar
de prever ações de capacitação linguística, seu entendimento como base essencial para
o processo de internacionalização ainda é embrionário. Ainda assim, o documento
enfatiza o desenvolvimento da internacionalização priorizando ações com países da
América-latina e Caribe, buscando fortalecer a independência socioeconômica e
cultural dos países Sul Americanos [...] (UNESPAR, 2020b, p. 8).

Também, é possível identificar no documento a contextualização espacial da


Unespar: um complexo de sete universidades (multicampi) distribuídas por sete cidades
do estado do Paraná (multirregional), com contextos locais diferentes, o que dialoga
diretamente com os pressupostos trazidos por Knight (2012) em seu primeiro
apontamento. Ao afirmar o diverso cenário institucional, o documento valoriza a
situação institucional, não permitindo que o contexto internacional seja maior que o
seu: “Considerando as distintas realidades que compõem a Unespar, a tarefa de
internacionalização requer um esforço conjunto para que, em primeiro lugar, se possa
garantir as condições concretas para a sua realização” (UNESPAR, 2020b, p. 7).
Destaca-se também que há uma seção, no documento, a qual explica as nomenclaturas
usadas na escrita da resolução, e, dentre os termos, encontra-se internacionalização,
definida segundo o modelo de Knight (2003):

Internacionalização: “o processo de integrar uma dimensão internacional, intercultural


e global nas propostas, funções e oferta da educação secundária”. (KNIGHT, 2003,
p. 2). Ela é definida, segundo Carvalho e Araújo (2020), por trocas internacionais
relacionadas ao ensino, pesquisa e extensão como um valor universal. (UNESPAR,
2020b, p.28).

Além dessas duas PCLs em fase de implantação, há outras que já foram


implantadas na IEs: Paraná Fala Idiomas (PFI) e Programa de Línguas Estrangeiras
(Prolen). Descritos por Silva, Silva e Quadros-Zamboni (S/D), o PFI foi criado em
2014, atrelado ao governo do estado, e, atualmente, oferta as línguas inglesa e francesa
para todos os campi, enquanto o Prolen foi oficializado em 2017 como Programa de

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Extensão, ofertando cursos de inglês, francês, português e espanhol para as


comunidades interna e externa em três campi.
Essas são as principais políticas de capacitação linguística da IEs. Em suma,
9% de disciplinas voltadas a ela e, no total, três programas de capacitação linguística
(Paraná Fala Idiomas, Programa de Línguas Estrangeiras da Unespar e Unespar Fala
Espanhol) e a criação de um Centro de Línguas que, seria o maior órgão de criação de
PCL na IEs, além do Escritório de Relações Internacionais, já existente. Para uma
universidade com aproximadamente 12000 estudantes de gradução e mais de 10 cursos
de pós-graduação stricto-sensu, o que esses resultados implicam? Esse é o foco da
nossa próxima seção.

3.3 Articulação entre as políticas de capacitação linguística e suas implicações


no seu processo de internacionalização

Tendo em vista as discussões levantadas acima, buscamos desenvolver o


terceiro objetivo deste artigo: articulações entre as políticas de capacitação linguística
e suas possíveis implicações no processo de internacionalização da Unespar.
Em primeiro plano, destacamos a ainda relação de colonização na qual se
encontram o Brasil e outros países latino-americanos dominados pelo Norte Global
que envolve tanto o aspecto econômico quanto os fatores socioculturais. De acordo
com Silva, Silva e Quadros-Zamboni (S/D), “o lado cultural atua como base simbólica
e o econômico como base estrutural”, ou seja, a economia é o pilar sustentador da
internacionalização. Sendo assim, as PCLs da Unespar, mesmo que não visem o fator
econômico, estão atreladas a ele enquanto capacitam as comunidades internas e
externas à universidade. Todavia, deve-se apontar para a meta 32 do PDI (aplicar
políticas de internacionalização, com preferência aos institutos latino-americanos), a
qual é contemplada pelas PCLs UFE e Celin. Se os documentos trouxessem como
central os aspectos econômicos de países capitalistas centrais, o seu processo de
internacionalização e suas PCLs seriam voltadas somente para Europa, Estados
Unidos e Canadá, com a valorização exclusiva da língua inglesa. Dentro da Resolução
Cria-Celin, por exemplo, há uma seção que compreende a importância da língua
espanhola, considerando o contexto mundial e nacional do idioma, o que demonstra
reconhecimento do contexto latino-americano pela instituição no qual ela também está
situada.
Em relação à atividade de capacitação linguística, conforme a divisão proposta
por Silva, Silva e Quadros-Zamboni (S/D), se classifica em duas: capacitação
linguística na graduação, destinada à formação profissional de universitários e
concentrada nos cursos de Letras; e capacitação linguística para internacionalização,
formada por projetos e programas (PFI, Prolen, UFE e Celin) ofertados às
comunidades interna e externa.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

No entanto, embora esses documentos evidenciem políticas linguísticas


voltadas para línguas diversas, a IEs ainda traz em seu interior a formação
majoritariamente na língua inglesa, tendo, aqui, uma implicação no processo de
internacionalização ser voltado para os países falantes dessa língua, ainda deixando
periféricos, as demais. Em outras palavras, as possíveis implicações das PCL da IEs
voltadas 1. principalmente para a língua inglesa e 2. com pouquíssimos programas de
capacitação linguística são i. a continuidade do uso da língua inglesa em detrimento de
outras e ii. a baixa capacitação linguística ainda ofertada pela universidade implicando
na continuidade da sua autonomia relativa da em relação ao processo de produção e
divulgação de conhecimento produzido pela IEs às instâncias externas a ela.

Considerações finais

Tendo em vista as discussões acima, percebemos que a internacionalização é


um processo essencial para a universidade, pois permite aprofundamentos em
conhecimentos culturais e linguísticos a todos que frequentam o espaço universitário
e participam dele, porém, devido, sobretudo, a fatores econômicos, o processo pode
sofrer influências do mercado capitalista, e, consequentemente, as PCLs universitárias
também.
Pelos resultados alcançados, compreendemos 1. que a capacitação linguística
está presente, de modo mínimo, nos cursos da universidade e, também, está presente,
de modo embrionário, no processo de internacionalização da universidade a ponto de
ser compreendida em novos programas universitários (UFE e Celin), além do Prolen,
2. que apesar de a internacionalização não ser discutida no PDI, há uma compreensão
embrionária acerca dela, 3. e que houve valorização do contexto latino-americano em
PCLs recentes (UFE e Celin).
No entanto, esse resultado evidencia ainda o quanto o Brasil é dependente de
políticas internacionais que o trazem como um país periférico na produção e
divulgação de conhecimento e o quanto ainda se mantém esse status quo dentro da
universidade. Apesar disso, percebemos que a Unespar busca desenvolver seu
processo de internacionalização a fim de valorizar seus contextos locais e regionais, de
cada campus, e internacional, como país latino-americano ao lado de outros países com
a mesma realidade global. Assim, a instituição tem o potencial de investigar o
fenômeno internacional e propor um modelo conceitual próprio o qual reconheça seu
panorama frente aos modelos conceituais prepostos por países dominantes do
mercado global, além de desenvolver novas PCLs que valorizem a formação cultural e
humana.

- 24 -
Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

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em: <https://prograd.unespar.edu.br/sobre/cursos>. Acesso em: 04 de dez. de
2020.

- 26 -
Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

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Cria o Programa Unespar Fala Espanhol (UFE) e dá outras providências. Paranavaí,
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______. Reitoria/Unespar. Resolução nº 020/2020, de 18 de dezembro de 2020.


Aprova criação do Centro de Línguas da UNESPAR, como Programa Institucional,
vinculado ao Gabinete da Reitoria e dá outras providências. Paranavaí, 2020b.
Disponível em: <https://www.unespar.edu.br/a_reitoria/atos-
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em: 23 fev. 2021.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo,


Martins Fontes, 2001.

- 27 -
Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

ENSINO DE LEITURA NA EJA: PROPOSTA DE


ORDENAÇÃO E SEQUENCIAÇÃO DE PERGUNTAS DE
LEITURA VOLTADA AO GÊNERO POEMA1

Aliny Perrota 2
Poliana Rosa Riedlinger Soares3

Resumo: Ao considerarmos a especificidade e as inúmeras dificuldades


historicamente enfrentadas pela Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como a
falta ou inadequações de propostas didáticas voltadas para a modalidade, é que
propomos um trabalho de ordenação e sequenciação de perguntas de leitura (FUZA;
MENEGASSI, 2018) a partir do poema Eu, etiqueta de Carlos Drummond de Andrade
(1984). A escolha do gênero exerce relevância no trabalho metodológico, uma vez que
a falsa ideia de que na EJA as propostas didáticas devem ser pautadas apenas ou com
maior ênfase nos gêneros de instruções e prescrições, acaba por deixar outros tão
relevantes em segundo plano, como o poema. Para tanto, a proposta segue cinco
etapas, até alcançar um parâmetro de produção escrita do educando, na perspectiva de
que possa identificar as principais ideias ligadas ao tema e exercer um posicionamento
diante da temática, expressando a sua contrapalavra (BAKHTIN, 1986). Ademais, a
pesquisa justifica-se como uma possibilidade para professores que atuam nas etapas
finais da modalidade, sendo possível sua aplicação e adaptação, conforme o contexto
de sala de aula.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos (EJA); Ensino de leitura; Ordenação


e sequenciação de perguntas.

Introdução

A nossa vida cotidiana é cercada de informações. Vivemos no meio de imagens,


notícias, documentos, sinais de trânsito, rótulos, revistas, livros, entre tantos outros.
Somos leitores em tempo integral, no entanto, não lemos do mesmo jeito os diversos
tipos de texto. A sociedade contemporânea exige letramento, mas nem todos têm o
acesso necessário para utilizar a leitura na sua vida social. É papel da escola, formar
leitores competentes, que através da leitura, consigam selecionar, analisar, relacionar,

1 Proposta apresentada como conclusão da disciplina Leitura e Ensino — Estudo avançado do


Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL), ministrado pela Professora
Drª Marilucia dos Santos Domingues Striquer.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL).

alinyp.silveira@uel.br
3 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL).

poliana.soares@uel.br

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

organizar informações complexas e exercer a cidadania. No entanto, é bem comum


nos depararmos com alunos no dia a dia escolar que não gostem de ler ou que dizem
não compreender o que leram.
É preciso cada vez mais se preocupar com a formação de leitores. Formar
leitores competentes, críticos, reflexivos e que utilizem a leitura para o estudo e para
adquirir conhecimentos. Conforme ressalta Solé (1998), a leitura é um processo de
interação entre o leitor e o texto. A concepção de leitura com foco na interação, parte
do pressuposto que o texto é suscetível de múltiplas interpretações e está pautada no
diálogo entre autor-texto-leitor, possibilitando a construção da compreensão e da
resposta ativa diante do texto lido, o leitor busca extrair e atribuir sentido, construindo
significados, sendo ele coprodutor do texto.
O estudo e o uso de estratégias de leitura em sala de aula é um meio de
desenvolver habilidades de compreensão e interpretação através de narrativas
significativas que permitam uma interação entre o leitor e o texto.
De acordo com Isabel Solé (1998), as estratégias de leitura são ferramentas
fundamentais para desenvolver uma leitura proficiente. Sua utilização permite não só
compreender e interpretar os textos lidos de forma autônoma como também, pretende
dar subsídios para que o professor desenvolva efetivamente um trabalho de formação
de um leitor reflexivo e crítico.
Ao considerar as perguntas de leitura como importantes ferramentas de ensino,
Menegassi (2010) afirma que, além de permitir que o professor oriente o aluno no
processo de leitura, serve também para “ensinar o leitor, para orientá-lo na sua
aprendizagem, para auxiliá-lo na sua formação e desenvolvimento. As perguntas de
leitura são divididas em três níveis:
1) Perguntas de resposta textual: são centradas no texto, exigindo do leitor a
busca das respostas no próprio texto, contudo não são meramente questões de
localização da resposta e cópia, pois exige do leitor compreensão e organização frasal
completa.
2) Perguntas de resposta inferencial: são perguntas cujas respostas podem ser
deduzidas a partir do texto, onde o leitor relaciona elementos do texto com seu
conhecimento próprio, estabelecendo algum tipo de inferência. Portanto não existe
resposta no texto, mas ela se constrói a partir da relação “pensar sobre o texto e buscar
resposta fora dele” (MENEGASSI, 2010, p. 180).
3) Perguntas de resposta interpretativas: são perguntas cujas respostas tomam
o texto como referência, mas exige a opinião do leitor na elaboração de uma resposta
pessoal.
A forma como as perguntas são sequenciadas, permite fazer uma exploração
aprofundada do texto, pois inicialmente, o leitor aprende a trabalhar como texto, na
sequência, possibilita o aluno fazer relações da leitura com os seus conhecimentos
prévios e por fim, a produção de sentidos diante do texto lido. O trabalho com as
perguntas de leitura permite o desenvolvimento do aluno tanto na leitura, como na
escrita de textos.

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

1. A educação de jovens e o gênero poema

Ao considerarmos a especificidade e inúmeras dificuldades historicamente


enfrentadas pela EJA (ARROYO, 2006), bem como a falta de pesquisas e/ou
inadequações de propostas metodológicas (VÓVIO; KLEIMAN, 2013), é que
optamos em direcionar o presente trabalho para a modalidade.
Ao realizarem uma síntese da produção acadêmica da primeira década desse
século, em três bancos de dados, Vóvio e Kleiman (2013) constataram apenas 124
produções científicas que trataram do letramento em sua relação com o campo da EJA,
majoritariamente de universidades públicas, sendo o menor número das instituições
localizadas nas regiões Sul (12 produções) e Centro-Oeste (11 produções). Ainda
segundo as autoras:

Em primeiro lugar, chama a atenção o reduzido número de pesquisas e publicações


numa área de tanta relevância social. Pode-se concluir que, dentro do quadro de
pesquisas básicas e educacionais no Brasil, a EJA continua sendo um segmento
negligenciado, e seus sujeitos, esquecidos. Também é problemática certa ausência de
r OGATA, científico, tanto em relação aos aspectos teóricos quanto metodológicos,
na apresentação das pesquisas (VÓVIO, KLEIMAN, 2013, p. 192).

Nesse sentido, a proposta de ordenação e sequenciação de perguntas se ampara


nos tipos de perguntas e no modelo de ordenação e sequenciação proposto por Fuza
e Menegassi (2018a).
Segundo Menegassi (2010, p. 167), para o trabalho com as perguntas de leitura
é preciso considerar alguns elementos, como: “a) o conceito de leitura escolhido; b) a
metodologia de trabalho com a leitura em função do conceito definido; c) o objetivo
da leitura; d) o gênero textual escolhido; e) a ordenação e a sequenciação das perguntas
oferecidas sobre o texto [...]”.
Assim, os objetivos de leitura da presente proposta são: a) conhecer um poema;
b) aprender a ler um poema; c) desenvolver o raciocínio e o olhar crítico a partir da
leitura do poema acerca do consumismo e refletir como as propagandas podem
influenciar no comportamento do indivíduo.
Na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), o texto assume
centralidade como unidade de trabalho, considerando seu contexto de produção e uso
significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção; elemento
principal na definição dos conteúdos, habilidades e objetivos, considerado a partir do
pertencimento a um gênero do discurso, com circulação nos distintos campos sociais
de atividade da linguagem.
Neste trabalho, o texto em centralidade é o poema Eu, etiqueta de Carlos
Drummond de Andrade (1984), o que vem ao encontro da BNCC (BRASIL, 2018, p.
138), ao propor a continuidade da formação do leitor literário, com destaque para a

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

fruição, evidenciando a condição estética desse tipo de leitura e de escrita, “para que a
função utilitária da literatura – da arte em geral – possa dar lugar à sua dimensão
humanizadora, transformadora e mobilizadora [...]”.
Ao considerarmos a modalidade para qual esta proposta é direcionada, o
gênero escolhido exerce grande relevância, uma vez que a falsa ideia de que na EJA as
propostas didáticas devem ser pautadas apenas ou com maior ênfase nos gêneros de
instruções e prescrições, como: receitas, bulas de remédios, instruções de uso, acaba
por deixar outros tão relevantes em um segundo plano, como no caso do poema, o
que não está desvinculado do próprio percurso educacional da modalidade. Conforme
Arroyo (2006, p. 221), “os lugares sociais a eles reservados — marginais, oprimidos,
excluídos, empregáveis, miseráveis... — têm condicionado o lugar reservado a sua
educação no conjunto das políticas oficiais”.
Essa questão pode ser problematizada ao lançarmos o olhar para a própria
BNCC (BRASIL, 2018), que não contempla a modalidade, sendo ausente orientações
específicas para EJA, o que acaba por refletir em várias práticas que envolvem a
modalidade, inclusive na ausência de propostas didáticas estruturadas que possam
favorecer o processo de ensino e aprendizagem.
Com a finalidade de elaborarmos a proposta teórica-metodológica,
apresentamos o poema escolhido com destaques em negrito para os elementos
temáticos levantados na sua materialidade textual. Essa seleção pauta-se na perspectiva
que Solé (1998) denomina de regras de seleção que permitem a identificação explícita
no texto; regras de omissão que tratam da eliminação de informação trivial do texto.
Como a temática se volta para o consumismo — a coisificação do homem, o ter diante
do ser, buscamos evidenciar as principais expressões vinculadas a elas:

Em minha calça está grudado um nome


que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

meu isso, meu aquilo,


desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno
algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

sou gravado de forma universal,


saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente (ANDRADE, 1984, p. 85-86).

A temática é apresentada ao longo do poema por meio de muitas informações


relacionadas ao consumismo, o ter em sobreposição ao ser, a coisificação do homem, conforme
exposto na sequência:

Desde a cabeça ao bico dos sapatos: são mensagens, letras falantes, gritos
visuais, ordens de uso, abuso, reincidência.
Homem-anúncio itinerante: estou na moda, ainda que a moda seja negar minha
identidade.
Demito-me de ser, antes era e me sabia: ser pensante, sentinte e solidário.
Agora sou anúncio, para anunciar, para vender: objeto pulsante.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, não me convém o título
de homem: meu nome novo é coisa.

2. Perguntas de pré-leitura: reconhecimento do texto

Nessa etapa, a análise é centrada nos conhecimentos prévios dos alunos em


relação ao texto, bem como nas condições de produção do gênero poema. Seguem as
perguntas de pré-leitura:
a) Com base no título, que assunto você acha que o texto abordará?
b) Quais informações trazem uma etiqueta e qual seria a sua função em um
produto?
c) O que você entende por consumo e consumismo?
d) O que você já ouviu falar sobre poema?
e) Você sabe diferenciar um poema de outros textos?
As perguntas feitas pelo professor possibilitam aos alunos a mobilização dos
conhecimentos necessários para que interajam com o texto e construam sentidos. Essa
mobilização dos conhecimentos prévios é muito importante para a leitura. O leitor
utiliza o conhecimento adquirido ao longo de sua vida para compreender o que está
lendo.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

2.1 Perguntas de leitura: as de resposta textual

As perguntas de resposta textual estão centradas no texto, mas não são


perguntas de cópia. O leitor precisa interagir com texto para buscar as respostas. Exige-
se dele compreensão e organização completa da resposta (FUZA, MENEGASSI,
2018).
Por que o título do texto é Eu, etiqueta?
Por que o eu lírico se diz um “homem-anúncio”?
De acordo com o texto, o que significa “estar na moda”?
Os advérbios antes e agora são utilizados para marcar dois tempos diferentes,
como o eu lírico se define em cada um deles?
Retificar significa corrigir, rever algo. No texto, o autor pede que retifiquem o
quê? Por que é preciso que o retifiquem?

2.2 Perguntas de resposta inferencial

Conforme Fuza e Menegassi (2018), são perguntas cujas respostas não estão
no texto, mas podem ser deduzidas a partir do texto, estabelecendo algum tipo de
inferência realizadas pelo leitor na sua relação como texto.
O que significa ser “escravo da matéria anunciada”?

2.3 Perguntas de resposta interpretativa

Nessa etapa, o texto é tomado como referência, mas exige-se a intervenção do


conhecimento prévio da opinião do leitor que produz uma resposta pessoal. (FUZA;
MENEGASSI, 2018).
De acordo com a leitura do texto, é possível afirmar que o autor faz uma crítica à
sociedade atual? Explique sua resposta.
No cotidiano você tem contato com anúncios? Onde eles são veiculados e
anunciam o quê?
Você se considera consumista? Explique.
que podemos fazer para nos tornar consumidores mais conscientes?

2.4 Pergunta pós-leitura

Momento em que o aluno produz um texto a partir de suas reflexões. As


perguntas e respostas servem como um roteiro significativo para essa produção
(FUZA, MENEGASSI; 2018).

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

a) Do que se trata o texto? A partir das respostas das perguntas anteriores,


construa um texto expressando a sua interpretação.

3. Produção de texto: justaposição das respostas sugeridas às perguntas


de leitura

Textual: O título do texto é Eu, Etiqueta, porque ele vai dizendo sobre todas
as propagandas que estão grudadas nas calças, blusões, camisetas, meias, tênis que
usamos todos os dias. O eu lírico se diz um “homem-anúncio” porque carrega em suas
roupas e nos objetos do seu dia a dia, marcas e anúncios de produtos. Segundo o texto,
estar na moda significa andar com produtos de marcas e logotipos conhecidos, mesmo
que isso negue a nossa própria identidade. O eu lírico se define “antes” como um ser
único, pensante e capaz de expressar sentimentos para com o outros. O “agora”, o eu
lírico passou por um movimento de padronização e deixou de ter espírito crítico, sem
sentimentos, ficou igual a todo mundo, sem “gosto ou capacidade de escolher”. No
texto o autor pede que retifiquem o seu título de homem, pois ele perdeu a sua
identidade, a sua individualidade. Ele se tornou uma “coisa”, um humano que se
transformou em um produto, um simples objeto de mercado.
Inferencial: Ser um “escravo da matéria anunciada”, significa ser só mais um
consumidor e um produto usado pelo mercado.
Interpretativas: De acordo com a leitura do texto, é possível afirmar que o autor
faz uma crítica à sociedade consumista, pois diante do consumo e da publicidade, o
homem perde sua identidade, deixa de ser único e especial e se torna um outdoor
ambulante, sendo uma vitrine de marcas e produtos de uma sociedade consumista. No
meu cotidiano eu estou cercada de uma variedade muito grande de anúncios. Eles estão
veiculados aos meios de comunicação como televisão, rádio, jornais e também nas
redes sociais. Eles anunciam produtos a serem consumidos, como alimentação,
vestuário, eletrônicos, produtos de beleza entre tantos outros. Eu me considero
consumista. Na sociedade em que vivemos hoje, somos bombardeados por anúncios
e propagandas de produtos que nos “prometem” muitas coisas. A promessa de um
shampoo que dará mais brilho no cabelo, uma calça jeans que modela o corpo, um
tênis que melhora o desempenho do exercício etc. É quase impossível não se deixar
levar por esses apelos. Acredito que para nos tornar consumidores mais conscientes é
preciso ter um olhar mais crítico e não se deixar influenciar pelos apelos dos anúncios
e propagandas.

3.1 Segunda versão do texto: parâmetro de produção dos alunos

Conforme Fuza e Menegassi (2018, p. 42), é “na justaposição que se pode


construir e reconstruir a primeira versão do texto, de modo gradativo, por meio de

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

orientações realizadas pelo professor no processo de ensino na aula de leitura”. Dessa


forma, é possível os acréscimos, as substituições e redundâncias, como se vê:
O texto trata das propagandas e anúncios que carregamos nas roupas que
usamos e nos objetos do nosso dia a dia. Como um “homem-anúncio”, carregado de
marcas de produtos e “escravo da matéria anunciada”, somos apenas mais um
consumidor, um produto usado pelo mercado.
A necessidade de estar na moda, usando marcas e logotipos conhecidos,
mesmo que isso negue a nossa própria identidade, nos descaracteriza. O que nos
definia “antes”, como ser único, pensante e capaz de expressar sentimentos para como
o outro, “agora” passa por um movimento de padronização, deixando de lado o espírito
crítico, os sentimentos, o “gosto ou a capacidade de escolher”.
Aos poucos o “ser” vai se sobrepondo ao “ter” e vamos ficando iguais a todo
mundo. Por isso, no texto, pede-se que retifiquem o título de homem, pois este perdeu
a sua identidade, a sua individualidade, tornando-se uma “coisa”, um produto, um
simples objeto de mercado.
É possível afirmar que o texto faz uma crítica à sociedade consumista, pois
diante do consumo exacerbado e da publicidade que envolve esse consumo, o homem
perdeu sua identidade, deixando de ser único e especial e se tornando um outdoor
ambulante, sendo apenas uma vitrine de marcas e produtos de uma sociedade
consumista.
Estamos cercados por uma variedade muito grande de anúncios veiculados aos
meios de comunicação como televisão, rádio, jornais e redes sociais. Eles anunciam
produtos a serem consumidos, como alimentação, vestuário, eletrônicos, produtos de
beleza entre tantos outros. Na sociedade em que vivemos hoje, somos diariamente
bombardeados com anúncios e propagandas de produtos que nos “prometem” muitas
coisas. A promessa de um shampoo que dará mais brilho no cabelo, uma calça jeans
que modela o corpo, um tênis que melhora o desempenho do exercício. É quase
impossível não se deixar levar por esses apelos. Diante dessas reflexões, devemos nos
tornar consumidores mais conscientes, com um olhar mais crítico e não se deixar
influenciar pelos apelos dos anúncios e propagandas.

Considerações Finais

Para a realização deste trabalho, tomamos referência a proposta de ordenação


e sequenciação de perguntas de Fuza e Menegassi (2018), seguindo as etapas expostas:
(a) confecção de perguntas de leitura a partir da ideia elaborada; (b) ordenação e
sequenciação das perguntas textuais, inferenciais e interpretativas na perspectiva de
leitura como interação; (c) produção de uma respostas argumentativa por parte do
aluno; (d) elaboração de um texto em justaposição com as perguntas e respostas
sugeridas às perguntas de leitura; (e) segunda versão do texto, parâmetro de produção
dos alunos.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Assim, concordamos com a perspectiva de que proposta teórica-metodológica


possibilita que o aluno identifique as principais ideias ligadas ao tema, um
posicionamento diante da temática e a produção do texto, expressando a sua
contrapalavra (BAKHTIN, 1986).
Ao considerarmos que os educandos da EJA assumem um comportamento de
autodesvalia (FREIRE, 1980), característica dos oprimidos e resultado da introjeção
de como os opressores os enxergam, na contramão de uma proposta de leitura
enquanto interação, é que destacamos a relevância de que este aluno possa se
posicionar diante do texto, no entendimento de que “Compreender é opor à palavra
do locutor uma contrapalavra [...]” (BAKHTIN, 1986, p. 132).
Portanto, acreditamos que o trabalho exposto se apresenta como uma
relevante proposta para o ensino de leitura na EJA, sendo possível sua aplicação e
adaptação, conforme cada contexto de sala de aula.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.

ARROYO, Miguel. A Educação de Jovens e Adultos em tempos de exclusão. In:


Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. Brasília:
UNESCO, MEC, RAAAB, 2006. p. 221-230.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel
Lahud e Yara Frateschi Vieira. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 10 nov. 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FUZA, Ângela Francine; MENEGASSI, Renilson José. Ordenação e sequenciação


de perguntas de leitura no gênero poema. In: BARROS, Eliana Merlin Deganutti de;
STRIQUER, Marilucia dos Santos Domingos; STORTO, Letícia (Orgs.) Propostas
didáticas para o ensino de língua portuguesa. Campinas, São Paulo: Pontes,
2018a, p. 17- 42.

FUZA, Ângela Francine; MENEGASSI, Renilson José. Perguntas de leitura e o


princípio temático em crônica: proposta de ordenação e sequenciação.
Calidoscópio. v. 16, n. 1, p. 33-47, jan./abr. 2018b.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

MENEGASSI, Renilson José. Perguntas de leitura. In: MENEGASSI, Renilson José


(org.). Leitura e ensino. 2.ed. Maringá: Eduem, 2010, p. 167-189.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. tradução de Cláudia Schilling. 6. ed. Porto


Alegre: Artmed, 1998.

VÓVIO, Claudia Lemos; KLEIMAN, Angela. Letramento e Alfabetização de


Pessoas Jovens e Adultas: Um balanço da Produção Científica. Caderno Cedes,
Campinas, v. 33, n. 90, p. 177-196, maio/ago. 2013.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ENSINO DE HISTÓRIA


TRAUMÁTICA:
A EXPERIÊNCIA DO HOLOCAUSTO

Giovana Maria Carvalho Martins1


Taiane Vanessa da Silva Micali2

Resumo: Este texto é resultado da intersecção entre duas pesquisas que se debruçam
sobre o ensino de História, e cujo aprofundamento está sendo realizado no âmbito do
Doutorado em Educação na Universidade Estadual de Londrina. Desta maneira, nos
propomos a discutir de que maneira o ensino da história traumática (burdening history)
do Holocausto pode ser entendido através da educação patrimonial - mais
especificamente, através de museus voltados à tematica do Holocausto. Para isto, nos
pautamos nos escritos de von Borries (2011) sobre a história traumática, de Beiersdorf
(2015), que discute sobre o Museu do Holocausto de Curitiba, e de Ramos (2004)
acerca da importância de atividades preparatórias para visitar museus, tendo em vista
a construção do conhecimento histórico. A proposta consiste em abordar o acervo de
museus como mediadores de experiências. Portanto, buscamos indicar possibilidades
de análises de fontes em sala de aula com ênfase na temática do Holocausto, no ensino
de História e na educação patrimonial.

Palavras-chave: Educação patrimonial. História difícil. Holocausto. Ensino de


História.

Introdução

Este texto é resultado da intersecção entre duas pesquisas no campo da


História e do ensino de História, iniciadas no curso de graduação em História na
Universidade Estadual de Londrina, continuadas no mestrado em História e Educação
e agora desenvolvidas no Doutorado em Educação na mesma universidade. Nosso
intuito é discutir de que maneira o ensino da história traumática (burdening history) do
Holocausto pode ser pensado através da educação patrimonial, refletindo sobre os
museus voltados à temática do Holocausto, seu acervo e como a visita pode ser
desenvolvida para que os objetivos das aulas de História sejam atendidos.
A escolha da temática e do objeto se encaixa dentro das reformulações
historiográficas e museológicas que ocorreram a partir da segunda metade do século

1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:


giovana.mcmartins@gmail.com
2 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:

taaivanessa@gmail.com

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

XX, com ênfase na valorização de histórias e memórias múltiplas. Portanto, entre os


séculos XIX e XXI, os campos da História, do ensino de História e da museologia
passaram por transformações relacionadas principalmente às abordagens e aos
métodos.
Inicialmente, no Brasil, a História estudada nas escolas se pautou nos “grandes”
acontecimentos da Europa Ocidental. Durante a consolidação do período republicano,
desenvolveu-se o esforço para com a constituição da nacionalidade, com ênfase na
biografia de brasileiros “célebres” (NADAI, 1993). Nas últimas décadas, a
problemática do ensino de História se concentra no uso de fontes de diversas
tipologias, a fim de alcançar discursos múltiplos relacionados a temas específicos, de
forma que a História de grande circulação dialogue com a memória social e os diversos
sujeitos históricos (NADAI, 1993).
A museologia percorreu um caminho semelhante. Segundo Julião (2006), no
final do século XIX, os objetivos pedagógicos dos museus brasileiros colaboraram para
com a construção da nação com ênfase nos aspectos positivos da fauna e da flora,
constituindo uma narrativa romântica. No século XX, em 1922, a criação do Museu
Histórico Nacional (MHN), consagrou a história da pátria a partir da cultura material
da elite, incentivando o culto à tradição do império brasileiro. Entretanto, a partir da
segunda metade do século XX, os estudos museológicos formularam um novo
caminho, com base na reflexão crítica e na abordagem das memórias e identidades de
diferentes grupos sociais (DESVALLÉES et al., 2013).
Sob as perspectivas das reformulações apresentadas, o presente texto consiste
em apresentar caminhos que contribuam à abordagem da história traumática do
Holocausto em sala de aula e em museus. Por meio desse objetivo, procuramos a
mediação da reflexão crítica do passado e do presente em espaços formais e não
formais de ensino e aprendizagem.

Contribuições do ensino de História e da educação patrimonial para a


construção do conhecimento histórico

Pensamos o ensino de História através do que afirma Peter Lee (2011), que
“não se escapa do passado”, pois “ele é construído a partir de conceitos que nós
empregamos para lidar com o dia a dia do mundo físico e social” (LEE, 2011, p. 20),
de modo que é imprescindível refletir sobre o ensino e a aprendizagem de História na
escola, já que não somos seres dissociados do tempo e do espaço em que estamos
inseridos. Circe Bittencourt (2008) também discorre sobre o tema, afirmando que

O ensino de História se destaca por mudanças marcantes em sua trajetória escolar que
a caracterizavam, até recentemente, como um estudo mnemônico sobre um passado
criado para sedimentar uma origem branca e cristã, apresentada por uma sucessão
cronológica de realizações de “grandes homens” para uma “nova” disciplina

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

constituída sob paradigmas metodológicos que buscam incorporar a multiplicidade de


sujeitos construtores da nação brasileira e da história mundial. (BITTENCOURT,
2018, p. 127).

Desta maneira, ensinar História hoje vai muito além da leitura acrítica do livro
didático e da exposição incansável do professor, da mesma forma que os museus
devem ser tomados como parte deste ensino de História crítica, e é necessário que o
professor reflita em sala de aula sobre estas questões.
Além disso, em diálogo com a abordagem do ensino de História pelo viés
crítico, tendo em vista narrativas museais sobre a memória traumática do Holocausto,
a educação patrimonial contribui para com a alfabetização cultural dos indivíduos, pois
possibilita que estes façam leituras do mundo que os rodeia por meio de um processo
ativo de conhecimento, valorização e apropriação de heranças culturais (HORTA,
1999), como objetos, documentos escritos e orais, monumentos e fotografias.
Assim, por meio da educação patrimonial, os bens culturais podem ser
reconhecidos como mediadores do “universo sociocultural e da trajetória histórica-
temporal em que está inserido” (HORTA, 1999, p. 6). Nesse sentido, percebe-se a
necessidade de exercitar o ato de ler objetos, na mesma medida em que aprendemos a
ler palavras, pois há história na cultura material (RAMOS, 2004) e também em outros
testemunhos do passado, como depoimentos e imagens.
De outro modo, “estudar a história não significa aprender sobre o que
aconteceu e sim ampliar o conhecimento sobre nossa própria historicidade” (RAMOS,
2004, p. 24). Portanto os acervos de museus são indícios de traços culturais que nos
ajudam a compreender a relação entre o passado e o presente. Porém, os acervos
museais precisam ser interpretados com a ajuda de programas educativos como, por
exemplo, as visitas mediadas e iniciativas que aproximam os museus e as salas de aulas
(RAMOS, 2004), para que não sejam vistos como simples ilustrações do passado.
Nesse sentido, para assumir seu caráter educativo, os museus precisam ser
vistos como espaços onde o acervo é organizado a fim de compor argumentos críticos:

Atualmente, os debates sobre o papel educativo do museu afirmam que o objetivo


não é mais a celebração de personagens ou a classificação enciclopédica da natureza,
e sim a reflexão crítica. Se antes os objetos eram contemplados, ou analisados, dentro
da suposta "neutralidade científica", agora devem ser interpretados. Mudam, portanto,
os "argumentos museais", e entra em voga a discussão sobre as tensões entre o
"museu-templo" e o "museu-fórum", termos que ficaram no vocabulário museológico
a partir das considerações de Duncan Cameron […] no início dos anos setenta.
(RAMOS, 2004, p. 20)

Deste modo, trata-se de uma tendência educativa integral, comprometida com


uma percepção crítica sobre o mundo em que estamos inseridos e no qual devemos
atuar de forma mais reflexiva (RAMOS, 2004). Essa tendência educativa dos museus
também tem como base atividades preparatórias, ou seja, atividades que antecedem a

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

visita propriamente dita e que contribuem para um exercício de leitura de objetos e


documentos presentes em acervos museais. Tais ações, podem acontecer na sala de
aula, visto que as visitas escolares compõem grande parte do público que visita museus.
Ramos (2004) sugere atividades preparatórias que utilizem materiais do
cotidiano como mediadores de práticas construídas a partir das relações sociais, pois

o envolvimento entre o que é dado à visão e quem vê necessita de atividades


preparatórias, com o intuito de sensibilizar aquele que vai ver. Do contrário, não se
vê, ou pouco se vê. E por isso que a visita ao museu deve começar na sala de aula,
com atividades lúdicas que utilizem materiais do cotidiano, como indícios de práticas
que se fazem nas relações sociais. (RAMOS, 2004, p. 21)

Utilizamos diversos objetos e narrativas em nosso dia a dia, mas pouco


refletimos sobre eles. Portanto, interpretar o passado por meio de acervos museais e
de forma crítica, significa viver o presente como mudança (RAMOS, 2004). Além
disso, evidenciar as relações históricas presentes em objetos e outros testemunhos do
passado indicam o vínculo entre o que se passou, o presente e o que se pode passar no
futuro (RAMOS, 2004).

O ensino da história difícil e suas relações com os museus que abordam o


Holocausto

Com base na sugestão de Ramos (2004), apresentada no tópico anterior, os


artefatos e testemunhos do cotidiano podem desencadear processos de sensibilização
em relação à historicidade dos objetos e das narrativas com os quais lidamos no dia a
dia. Por exemplo, as roupas podem estimular reflexões sobre a história da moda, as
identidades, as relações de poder e a desigualdade social de diferentes períodos. No
que diz respeito à história traumática do Holocausto, uma atividade preparatória que
propõe a análise dos significados por trás dos pijamas que os judeus eram obrigados a
usar em campos de concentração nazistas, podem desencadear processos de
sensibilização acerca das relações de poder presentes nos códigos de vestimenta.
Essa reflexão pode incorporar repercussões atuais, por exemplo, por meio um
acontecimento de 2014, quando uma rede de lojas de varejo espanhola desenvolveu
um pijama infantil que possuía semelhanças com aqueles utilizados em campos de
concentração.

A repercussão nas redes sociais sobre uma peça de roupa do catálogo da marca
espanhola Zara obrigou a empresa a retirar o produto de suas lojas: um pijama infantil
listrado, com uma estrela de Davi amarela na altura do peito, no lado esquerdo. Para
muita gente, o pijama poderia ser associado ao uniforme que judeus eram obrigados a
usar em campos de concentração, antes de serem mortos, durante a Segunda Guerra

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Mundial. Postagens no Twitter declararam indignação e falta de bom senso na escolha


do design. (UOL, 2014)

Por conta da repercussão negativa em redes sociais e mídias digitais, a rede de


lojas em questão elaborou uma justificativa, onde explicou que os detalhes do pijama
faziam referência à estrela utilizada em uniformes de xerifes. Porém, a loja excluiu a
peça de suas vendas e elaborou pedidos de desculpa que foram publicados em
diferentes idiomas (UOL, 2014).
Assim, percebe-se que por meio da cultura material e de relatos de diferentes
sujeitos é possível levantar questões e reflexões críticas em sala de aula acerca de
relações de poder do passado e do presente, e das influências de cada contexto. Desse
modo, os estudantes podem perceber que o acontecimento de 2014 em relação ao
pijama da loja espanhola alcançou repercussões diversas por conta das mídias digitais
e redes sociais, fato que dialoga com a importância desses meios de comunicação para
a expressão de opiniões, críticas e reflexões do presente.
Esse tipo de atividade preparatória pode estimular o ato de ler o mundo e os
objetos e, consequentemente, o ato de ler exposições e acervos museais. Tais fatores
são fundamentais para a educação patrimonial, visto que a educação para o patrimônio
e as ações educativas de museus são os meios de “mediação que propiciam aos diversos
públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções dos museus, do ambiente
natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos sentidos” (GRINSPUM, 2000,
p. 30).
Além disso, ao abordar a história e as fontes traumáticas do Holocausto, os
museus e as escolas têm a oportunidade de mostrar que as memórias e identidades se
elaboram no presente, visando responder às demandas do mesmo, uma vez que são
mutáveis e, ao mesmo tempo, são instrumentos de seleções e esquecimentos. Essas
instituições são importantes mediadoras de discussões que colocam em foco as
memórias de diferentes grupos sociais. Deste modo, as instituições museológicas e
escolares podem incluir em seus objetivos o tratamento crítico de memórias e
identidades, ao invés de reforçar modelos unívocos (MENESES, 2000), como
acontecia antes das reformulações historiográficas e museológicas.
O ensino da história difícil - ou “burdening history” - pode ser pensada sob as
perspectivas apresentadas, pois, de acordo com Bodo von Borries (2011), “a História
só é aprendida efetivamente sobre três condições: se novos insights podem ser ligados
a antigos, se ela está conectada a emoções – negativas ou positivas – e se ela é relevante
para vida” (BORRIES, 2011, p. 165, tradução nossa). Aprender os casos afirmativos
que contenham heroísmo ou glória e orgulho parece ser mais fácil, e experiências que
Borries chama de “burdening”, ou opressoras, difíceis, são mais complexas. Este
aprendizado não é somente a investigação científica, mas também o conflito mental e
a mudança, pois lidar com a história dita difícil é um problema de trabalho mental, uma
atividade intelectual (BORRIES, 2011, p. 165, tradução nossa).

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Neste sentido, o Holocausto se configura como uma experiência traumática do


século XX. Entendemos “Holocausto” como o termo utilizado “[...] para descrever a
perseguição e assassinato sistemático de Judeus pela Alemanha Nazi e seus
colaboradores, entre 1933 e 1945” (IHRA, 2019, p. 25). Borries (2017) complementa:
“o genocídio alemão anti-judeu, chamado de “Holocausto” [...], datado mais
frequentemente de 1941 a 1945, mas começando de fato na Polônia em 1939 [...]
acabou há mais de 70 anos, mas não pode ser esquecido” (BORRIES, 2017, p. 425).
Para pensar o ensino do Holocausto, consultamos o documento denominado
“Educação sobre o Holocausto e para a prevenção do genocídio”, um guia de políticas
da UNESCO. A própria UNESCO foi criada no contexto do pós-Holocausto, em
1945 “em resposta aos horrores da Segunda Guerra Mundial e particularmente aos
crimes perpetrados pela Alemanha nazi e pelos seus colaboradores (UNESCO, 2019,
p. 05)”. O guia afirma:

A educação - principalmente a história e a educação cívica - pode desempenhar um


papel fundamental ao fornecer um fórum para abordar o passado, promovendo
simultaneamente os conhecimentos, capacidades, valores e atitudes que ajudam a
prevenir a ocorrência ou recorrência de violência dirigida a um grupo. A educação
sobre o Holocausto é um empreendimento desse tipo. (UNESCO, 2019, p. 13)

Este documento ainda afirma que “existem múltiplas oportunidades para


ensinar sobre o Holocausto. [...], e o ensino e aprendizagem sobre o tema podem
desempenhar um papel em [...] três contextos específicos: na prevenção do genocídio,
na promoção dos direitos humanos e a lidar com passados traumáticos.” (UNESCO,
2019, p. 21). É neste sentido que pensamos o ensino de História do Holocausto através
de museus que se debruçam sobre a temática, em conjunto com o trabalho
desenvolvido pelo professor em sala de aula.
Além disto, o Holocausto é conteúdo que compõe o currículo de História dos
anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio nas escolas brasileiras, e,
sobretudo, ainda não é totalmente compreendido e discutido, de maneira que levanta
discussões e questões ligadas ao Humanismo, embora a ocorrência do Holocausto
tenha sido algo inimaginável, até então, nos moldes humanistas.
Trata-se, portanto, de um tema que evoca questões atuais seríssimas. É
considerado o maior genocídio do século, e diversos autores repensaram a discussão
sobre o Humanismo - o que é ser humano e o que isto implica - a partir do Holocausto.
Jörn Rüsen (2012) sintetiza esta questão, afirmando que

Depois dos crimes contra a humanidade, culminando no Holocausto, que deu o século
XX sua assinatura histórica, tal otimismo tornou-se impossível. Só um humanismo
que pode enfrentar o desafio desses crimes e olhar em face do Holocausto é viável
para uma orientação voltada para o futuro de vida humana (RÜSEN, 2012, p. 41,
tradução nossa)

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

A autora Danielle Beiersdorf (2015) fala sobre os museus que se dedicam a


preservar a memória do Holocausto, afirmando que

No caso do Holocausto, a obsessão pela rememoração impulsionou a criação dos


diversos lugares de memória no mundo, constituídos em diferentes países a partir de
diferentes perspectivas e em meio a relações de poder. Os museus e memoriais neste
caso, são mais do que lugares de memória, são espaços destinados a exposição de
projetos, campos de disputas de projetos distintos, espaço de lutas e geradores de
memórias (BEIERSDORF, 2015, p. 08)

Há muitos arquivos, memoriais e museus que se dedicam à temática do


Holocausto pelo mundo. Beiersdorf (2015) identifica semelhanças entre eles:

Os museus voltados à rememoração/representação do Holocausto têm alguns pontos


em comum. Todos trabalham com um projeto pedagógico, envolvendo
principalmente as novas gerações e dão ênfase à questão do genocídio judaico. Mesmo
que representem outras vítimas, os judeus em geral têm uma representação maior.
Eles trabalham com as novas mídias, internet, redes sociais, e endereços eletrônicos
como meio de aumentar seu alcance. (BEIERSFORD, 2015, p. 20)

O Brasil também abriga arquivos dedicados à preservação da memória das


vítimas do Holocausto e seus descendentes. O primeiro Museu do Holocausto do país
está localizado em Curitiba, capital do estado do Paraná. Trata-se de uma “[...]
associação cultural e educacional, com desempenho no campo da história aplicada à
pesquisa, preservação e comunicação da memória e história do Holocausto”
(SANTOS, 2021, p. 66). Possui uma linha de atividades que está baseada “[...] em
quatro pilares: Memória, Documentação, Investigação e Educação” (SANTOS, 2021,
p. 66).
De acordo com o site do Museu, ele abriga

Histórias que não podem ser esquecidas e que devem ser transmitidas às próximas
gerações. Foi com esse objetivo que nasceu o Museu do Holocausto de Curitiba.
Inaugurado oficialmente em novembro de 2011, recebe semanalmente cerca de 700
pessoas, entre adultos e alunos de escolas públicas e particulares, num espaço de 400
m². (MUSEU DO HOLOCAUSTO DE CURITIBA, 2014).

Beiersdorf (2015) fala sobre como ocorre a visitação de grupos de alunos no


Museu do Holocausto em Curitiba, colocando que o museu dispõe de 32 cartões de
identificação que contém informações sobre vítimas e sobreviventes do Holocausto.
Estes cartões “[...] foram elaborados a partir de testemunhos gravados pela Fundação
Shoah, na década de 1990, que resultaram em pequenas biografias, feitas pela
coordenação pedagógica do museu” (BEIERSDORF, 2015, p. 11) Logo na entrada,
os visitantes recebem um cartão e acompanham a exposição através da leitura da
biografia ao longo do trajeto percorrido dentro do museu. Esta metodologia “foi

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baseada em experiência utilizada pelo United States Holocaust Memorial Museum,


referência mundial para o ensino do Holocausto” (BEIERSDORF, 2015, p. 11).
Ludmila Santos (2021) também desenvolveu uma pesquisa sobre este Museu, e
colocou que

O espaço de Comunicação está disposto no entendimento de que o Holocausto faz


parte da identidade, história e da memória coletiva não só do povo judeu, mas também
da humanidade. Vindo desse contexto mais geral, o Museu do Holocausto de Curitiba
proporciona ações culturais e educativas dirigidas a diversos públicos, focando o
respeito à diversidade humana a partir da memória e história do Holocausto,
procurando atentar seu público dos perigos da intolerância e da indiferença, e motivá-
lo para a concepção de uma cultura de paz. (SANTOS, 2021, p. 69).

Com isto, o Museu do Holocausto de Curitiba se coloca enquanto espaço de


pesquisa e também de Educação. Da mesma maneira, através de estratégias
desenvolvidas pelo professor em sala de aula, outros Museus dedicados à temática do
Holocausto (ou a outras temáticas) podem ser explorados como objetos de ensino e
aprendizagem de História de maneira significativa e reflexiva.

Considerações finais

As reformulações do campo da História e da museologia, ocorridas


principalmente a partir da segunda metade do século XX, contribuíram para com a
inserção de memórias e fontes múltiplas dentro do ensino de História e de exposições
museológicas. Antes desse período, a História e os museus se concentravam em
narrativas e testemunhos do passado relacionados a sujeitos históricos “célebres”, com
ênfase na cultura material e imaterial da elite. Após as reformulações, as reflexões
críticas sobre a contribuição dos diversos grupos sociais para a construção da História
aproximaram os conteúdos históricos e as exposições museológicas das demandas
sociais.
Nesse sentido, percebemos que a temática do Holocausto possibilita a
abordagem de histórias traumáticas e reflexões críticas sobre a historicidade do passado
e do presente. Portanto, por meio da “burdening history” é possível problematizar
experiências opressoras e complexas dentro de sala de aula e em museus, por meio de
fontes diversas e acervos museais. Deste modo, percebemos que o ensino de História
e a educação patrimonial estimulam o processo ativo de conhecimento e a apropriação
de heranças culturais, as quais possibilitam que os sujeitos compreendam a trajetória
histórica-temporal a qual pertencem (HORTA, 1999).
Porém, é necessário que as escolas e os museus que abordam essa temática
desenvolvam ações educativas e atividades preparatórias que possam potencializar a
leitura dos acervos museais e a visita a museus de histórias traumáticas. Essas ações
podem partir da análise de objetos e relatos do cotidiano em comparação aos artefatos

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e testemunhos do passado, de forma que os alunos possam enxergar que a história e


as memórias contribuem para com a ampliação do conhecimento sobre a nossa
historicidade e, assim, consigam atuar e analisar de forma crítica a sociedade na qual
estão inseridos.

Referências

BEIERSDORF, Danielle. O Museu do Holocausto de Curitiba: globalização da


memória e ensino de história. Dissertação (Mestrado em História. Programa de Pós
Graduação em História. Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Marechal
Cândido Rondon, 166 p, 2015.

BITTENCOURT, Circe. Reflexões sobre o ensino de História. Estudos Avançados,


v. 32, n. 93, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, São Paulo,
p.127-149, 2018.

BORRIES, Bodo von. Coping with burdening history. In. BJERG, H./ LENZ,
C./THORSTENSEN, E. (eds.). Historicizing the uses of the past. Scandinavian
Perspectives on History Culture. Historical Consciousness and Didactics of History
Related to World War II. Bielefeld: Transcript - Verlag für Kommunikation, Kultur
und soziale Praxis, 2011.

BORRIES, Bodo von. Learning and teaching about the Shoah: retrospect and
prospect. Holocaust Studies, v. 23, n. 3, p. 425-440, 2017.

DESVALLÉES, André. et al. Conceitos-chave de Museologia. São Paulo: Comitê


Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2013.

GRINSPUM, Denise. Educação para o Patrimônio: Museu de arte e escola –


Responsabilidade compartilhada na formação de públicos. 2000. Tese (Doutorado).
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Guia Básico de Educação Patrimonial.


Brasília: IPHAN, 1999.

IHRA. Recomendações para o ensino e a aprendizagem sobre o Holocausto.


2019.

JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do Museu. In: NASCIMENTO,


Silvania Sousa do. (Coord.). Caderno de Diretrizes Museológicas I. Belo Horizonte:
Secretaria de Estado da Cultura/Superintendência de Museus, 2006. p. 17-30.

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

LEE, Peter. Por que aprender História?. Educar em Revista, Curitiba, n. 42, p. 19-
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MENESES, Ulpiano Bezerra de. Educação e museus: sedução, riscos e ilusões.


Ciência & Letras, Porto Alegre, n. 27, p. 91-101, 2000.

MUSEU DO HOLOCAUSTO DE CURITIBA. O Museu, 2014. Disponível em:


<https://www.museudoholocausto.org.br/o-museu/>. Acesso: 28 set. 2021.

NADAI, Elza. O ensino de história no Brasil: trajetória e perspectivas. Revista


Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25/26, p. 143-162, 1993.

RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de


História. Chapecó: Argos, 2004.

RÜSEN, Jörn. Temporalizing humanity: towards a universal history of humanism. In:


ANTOHI, Sorin; HUANG, Chun-Chieh; RÜSEN, Jörn (eds.). Reflections on
(in)humanity. Volume 3. V&R unipress, Goettingen, p. 29-44, 2012.

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Museu do Holocausto em Curitiba. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Museologia). Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, 2021.

UNESCO. Educação sobre o Holocausto e para a prevenção do genocídio.


Portugal: UNESCO, 2019.

UOL NOTÍCIAS. Zara recolhe pijama infantil que lembra uniforme de campos
de concentração, 2014; Disponível em: <
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2014/08/27/zara-retira-
pijamas-infantis-de-catalogo-apos-criticas-sobre-alusao-a-holocausto.htm>. Acesso
em: 31 out. 2021.

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EXPERIÊNCIA, PENSAMENTO REFLEXIVO E EDUCAÇÃO


EM JOHN DEWEY

Jarson da Silva 1

Resumo: Tendo por referência as obras Experiência e educação, Democracia e educação e


Como Pensamos, de John Dewey, objetivou-se apresentar as concepções deweyanas de
experiência e pensamento. Diante dos questionamentos da possibilidade de ensinar,
podemos ver nas obras de Dewey respostas contundentes sobre como ensinar tendo
em vista sua definição de experiencia e de pensamento e suas relações para a educação.
A partir dessa definição, analisa-se o pensamento reflexivo como uma metodologia
que é resposta para a questão de como educar. Por conseguinte, quando Dewey aponta
a relação entre os conceitos de pensamento e de experiência nas supracitadas obras,
temos as respostas conclusivas das perguntas e também do questionamento sobre o
que ensinar; Ademais, explicitar os vínculos desses dois conceitos com sua
compreensão de educação sustenta a hipótese diretiva deste artigo que consiste em
defender que o pensamento reflexivo, vinculado a uma adequada compreensão da
experiência, além de possibilitar a construção e o desenvolvimento de habilidades para
a conquista de espaços cognitivos mais amplos e significativos, resultado de uma
didática deweyana, é um requisito fundamental para a constituição de uma sociedade
democrática. Confrontados com um vasto acervo de concepções pedagógicas no
processo de ensino e aprendizagem, os professores não dão conta de escolher quais
propostas teóricas são mais adequadas para um ensino qualitativo, quantitativo,
produtivo e democrático.

Palavras-chave: Experiência; Pensamento reflexivo; Educação; John Dewey.

Introdução

Com o manifesto da educação de 1932, do qual Dewey era uns dos precursores,
defendia pressupostos de que todo educador pode bem ser um filósofo e deve ter sua
filosofia de educação. Entretanto, considerando uma metodologia cientifica nesse
terreno, o educador deve estar tão interessado na determinação dos fins de educação
quanto também dos meios de realizá-los.
Devido às grandes transformações com resultados ainda não específicos,
surgem os questionamentos que discorre nesta pesquisa sobre a questão de ensinar.
Portanto, parece inevitável, a quem se dedica à educação institucionalizada, seja
pelo estudo, seja pela prática, perguntar-se sobre a legitimidade desse envolvimento.

1 Docente da rede básica de ensino (SEED); e-mail: jarson.silva@escola.pr.gov.br.

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Afinal, é possível educar, de fato? Não estaria já configurado por uma estrutura
invariável, cujas modificações se dariam apenas na superfície, sendo que o fundamental
permaneceria inalterado, continuando a ser o que sempre foi? Esse dilema parece
constituir um primeiro núcleo do problema da educação e apenas uma resposta
positiva a ele pode restituir coerência para o nosso envolvimento com ela.
Porém, responder positivamente à pergunta sobre a possibilidade de educar,
ainda não resolve outro problema, talvez tão radical quanto aquele, que consiste agora
em responder a um outro questionamento, qual seja: como educar? E, por fim, uma
última questão: quando educamos, o que é visado no ato educativo (ou seja, o que
educar)? Estas três perguntas2: É possível educar? Como educar? O que educar? –
constituem o pano de fundo teórico (e existencial) da aproximação deste projeto ao
pensamento filosófico e educacional de John Dewey. Em suas obras Como pensamos,
Experiência e educação e Democracia e educação3 existem respostas contundentes aos
problemas contidos nessas perguntas.

Uma nova compreensão da relação entre experiência e educação

Publicado em 1938, Experiência e educação é um livro que, segundo Day e Mabie


(2010, p. 10), continua atual, pois é “(...) uma análise tanto das práticas da escola
tradicional quanto da escola progressista de sua época”, além de ter apresentado “(...)
a proposta de uma escola como um laboratório no qual alunos e professores aprendem
juntos através da experiência e da exploração do mundo que os cerca” (Idem, p. 11).
Neste texto, “(...) uma apresentação sucinta e profunda de sua filosofia educacional”
(idem, p.10), Dewey torna célebre a oposição entre a educação tradicional e a educação
progressiva, apresentada por ele da seguinte maneira:

O cultivo e a expressão da individualidade se opõem à imposição de cima para baixo;


a atividade livre se opõe à disciplina externa; aprender por experiência em oposição à
aprendizagem através de textos e professores; a aquisição de habilidades e técnicas
como meio para atingir fins que correspondem às necessidades diretas e vitais do
aluno em oposição à sua aquisição através de exercício e treino; aproveitar ao máximo
as oportunidades do presente se opõe à preparação para um futuro mais ou menos
remoto; o contato com um mundo em constante processo de mudança oposição a
objetivos e materiais estáticos (DEWEY, 2010, p. 22).

2 Embora nem sempre claramente formuladas, estas perguntas estiveram presentes desde o
início da minha atividade profissional como professor das séries fundamentais.
3 Apesar de ser autor de uma obra vastíssima e tratar do problema da educação em outros

escritos, selecionamos apenas estas obras, primeiro com o propósito de delimitar as


referências, segundo, por acreditar que nelas há reflexões mais do que suficientes para servir
de base para a elaboração de um artigo científico.

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A proposta de Dewey não surge meramente como o elemento indutor da


educação progressiva, como se esta resultasse da sua criação, sendo antes a elaboração
reflexiva e o aprofundamento de tendências da educação do início do século XX, pois
ele próprio afirma buscar “(...) formular a Filosofia da Educação implícita nas práticas
da nova educação” (DEWEY, 2010, p. 21). Nesta nova filosofia da educação, cujos
desvios ou insuficiências ele não deixou de criticar, afinada com as práticas da nova
educação, a recusa da educação tradicional resulta do seu excessivo apego ao caráter
quase sacro do passado4, e a defesa da educação progressiva, do respeito ao presente e
do reconhecimento do poder vivificador da abertura ao futuro. Destaque-se do amplo
conjunto de temas e problemas apontados pelo autor no livro, a importância do
problema da experiência.
No início do século XX era habitual pensar a escola como um mundo a parte,
constituído como um espaço marcado por um corte abrupto com a existência não
escolar. Tal compreensão estruturava uma prática que deslegitimava os interesses e
problemas próprios aos alunos, considerados extraformativos, portanto, sem interesse
para a educação. A proposta de Dewey é diametralmente oposta a essa, na medida em
que, para ele, “(...) há uma conexão orgânica entre educação e experiência pessoal”
(DEWEY, 2010, p. 26), além de o primeiro princípio, apresentado por ele no capítulo
da Organização progressiva das matérias e conteúdos curriculares, ser o de que: “(...) o conteúdo
das matérias deve derivar das experiências comuns da vida” (Idem, p. 75).
Embora educação e experiência não sejam equivalentes (Idem, p. 27), a
experiência é uma noção fundamental para a educação progressiva, tanto no plano dos
princípios quanto da prática da organização escolar. Por qual razão?
No capítulo 11 de Democracia e educação, intitulado Experiência e pensamento,
Dewey descortina dois sentidos de experiência:

(1) A experiência é, em primeiro lugar, um assunto ativo-passivo; não é cognitivo, em


primeira instância. Mas, (2) a medida do valor de uma experiência reside na percepção
de relações ou continuidades a que conduz. O que inclui cognição na medida em que
é cumulativa em relação a alguma coisa ou tem um sentido. Nas escolas, os que estão
a ser instruídos são de forma demasiado frequente considerados como estando a
adquirir conhecimento enquanto espectadores teóricos, mentes que se apropriam de
conhecimento por energia direta da inteligência. (DEWEY, 1979b, p. 153).

Perceber relações ou continuidades, ser cumulativa em relação a algo que a


precede e possuir sentido: tais são os componentes da experiência que interessa a
Dewey destacar. Não sendo um bloco pontual e absoluto fechado em si mesmo, a
experiência atual sempre já é em relação às experiências passadas, às quais ela se liga,

4 Algo claro, por exemplo, na recusa por parte de Dewey a uma tendência da educação em
1938, referida no Prefácio do livro, de reavivar e reviver “(...) princípios da Grécia antiga e da
idade média” (DEWEY, 2010, p. 14). No capítulo VII de Experiência educação, há um item
intitulado “A educação tradicional está enraizada no passado” (DEWEY, 2010, p. 79).

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bem como com as outras que poderão segui-la. Isso evidencia uma compreensão
relacional das experiências, tanto físicas (idem, p. 154), quanto às relacionadas com as
lições ou estudos (Idem, p. 155), mas também e principalmente para o que nos
interessa, quanto à compreensão da conexão e inseparabilidade entre o pensamento e
as coisas, o pensamento e a experiência (p. 156).
Como fica claro no item 2 do capítulo 11 de Democracia e educação, intitulado
Reflexão e experiência, Dewey foca seu interesse em destacar, para além da dimensão ativa
e passiva da experiência (sentido 1), que não é cognitiva, a dimensão da continuidade
da experiência (sentido 2). O que garante a continuidade à experiência a ponto de
torná-la significativa, é o nível de engajamento do pensamento nela. Se, como ele
destaca, “Nenhuma experiência com sentido é possível sem alguns elementos de
pensamento” (DEWEY, 1979b, p. 158), interessa-lhe dar atenção a um segundo tipo
de relação entre experiência e pensamento em que, da ação do pensamento, resulta a

descoberta das conexões detalhadas das nossas atividades e do que acontece como
consequência delas. A sua quantidade aumenta de tal modo que o seu valor
proporcional se torna muito diferente. Assim, a qualidade da experiência muda. A
mudança é tão significativa que podemos classificar este tipo de experiência como
experiência reflexiva - isto é, reflexiva por excelência. O cultivo deliberado desta fase
do pensamento constitui o pensamento como uma experiência distinta. [...]
O pensamento é por isso equivalente a um captar explícito do elemento inteligente na
nossa experiência. Ele torna possível o agir com um fim em vista (Idem, Ibid.).

Nos termos apresentados em Experiência e educação, “Tudo depende da


qualidade das experiências” (DEWEY, 2010, p. 28)5, ou seja, tudo depende de que uma
experiência atual se ligue significativamente a uma experiência posterior,
influenciando-a. Assim, a continuidade da experiência depende do nível do
pensamento elaborado na experiência, isso que Dewey chamou de pensamento
reflexivo6.

Uma nova compreensão do pensamento e da relação entre pensamento e


educação: o pensamento reflexivo

5 Na mesma passagem o autor afirma que, por consequência, “(...) o problema central de uma
educação baseada na experiência é selecionar o tipo de experiências presentes que continuem
a viver frutífera e criativamente nas experiências subsequentes” (DEWEY, 2010, p. 29).
6 Todo o capítulo VII de Experiência e Educação, intitulado A organização progressiva das matérias e

conteúdo curriculares, é uma perspicaz análise sobre as peculiaridades da experiência para quem
vive no século XX, razão pela qual Dewey (2010, p. 92) aborda o método científico, pois ele
“(...) é o único meio autêntico sob nosso comando para alcançar a importância das nossas
experiências diárias no mundo em que vivemos”.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Publicado em 1910, o livro Como pensamos, traz, inscrito no próprio título, um


deslocamento, uma ruptura. Não se pergunta o autor “o que é o pensamento”, e sim,
“como pensamos”. Ou seja, tendo em vista nossa constituição relacional
eminentemente social, mas também a constituição relacional da própria experiência e
do próprio pensamento, a pergunta pelo “como” do pensamento evidencia uma opção
teórica do autor que o distancia do idealismo ou racionalismo e o aproxima de uma
filosofia empirista e experimental7.
O que constitui a peculiaridade do pensar reflexivo que o distingue de outras
operações intelectivas chamadas pensamento? Diz Dewey (1979a, p. 22): “(1) um
estado de dúvida, hesitação, perplexidade, dificuldade mental, o qual origina o ato de
pensar; e (2) um ato de pesquisa, procura, inquirição, para encontrar material que
resolva a dúvida, assente e esclareça a perplexidade”8.
No capítulo sexto, o autor arremata essa observação com uma frase marcante,
ao dizer que “Nós não pensamos em geral, nem as ideias nascem do nada. [...] a
natureza da situação, tal como é realmente experimentada, desperta a investigação e
faz nascer a reflexão” (Idem, p. 104).
O segundo capítulo de Como Pensamos, é intitulado sugestivamente Por que o ato
de pensar reflexivo deve constituir um fim educacional. Por que a educação deve se preocupar
com a educação do pensamento? Em primeiro lugar, pela natureza prática do
pensamento: o ato de pensar possibilita, primeiramente, a ação de finalidade
consciente (ou seja, possibilita um antecipar-se consciente ligado ao fato de que
apreendemos o seu funcionamento e, antecipando consequências resultantes das
possibilidades inerentes à sua constituição, podemos controlar e nos movimentar), mas
também, o ato de pensar possibilita a criação de condições para a invenção
sistemática (possibilita modificar intencionalmente as coisas naturais substituindo-as
por aparelhos artificiais, cujo funcionamento se sobrepõe, em eficácia, ao mero
funcionamento natural). Em ambas as possibilidades, tanto os motivos para a
instauração do pensamento, quanto os resultados da sua vigência são práticos,
possibilitam aumento de controle (Idem, p. 30); em segundo lugar, diz respeito a “(...)
um enriquecimento do significado” (Idem, p. 30).
Por que, então, a educação deveria dar atenção à educação do pensamento, ao
desenvolvimento do pensamento reflexivo? De acordo com Dewey (1979a, p. 26), o
pensar “(...) é o poder que distingue os homens dos animais inferiores”. Ou seja, a
promoção do pensamento reflexivo é um modo eficaz de contribuir para que o
humano chegue à própria humanidade. E chegar à humanidade significa, não chegar a
um conceito formal de homem, e sim, em reencontrar um espaço relacional, de estar
com os outros, em suma de viver com. E a configuração social que possibilita alcançar

7 A esse respeito, o autor afirma: “(...) a nova filosofia da educação está comprometida com
algum tipo de filosofia empírica e experimental” (DEWEY, 2010, p. 26).
8 Ou seja, o pensamento surge de “(...) uma situação diretamente experimentada que despertou

o ato de pensar” (DEWEY, 1979a, p. 104), indeterminada em seu início, e passa à uma situação
determinada.

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

de um modo mais pleno a realização desta dimensão relacional é, de acordo com


Dewey, a sociedade democrática, não autoritária. Se o pensamento reflexivo contribui
para chegarmos à realização da nossa humanidade, também contribui para evitar a
queda na barbárie da submissão e da mera obediência, contraparte exigida por uma
forma de vida autoritária. Este último aspecto, meramente anunciado aqui em função
da limitação do espaço, constituirá um momento importante da dissertação.

Experiência e pensamento reflexivo na educação resulta em Relações


Democráticas

Assistimos diariamente à intensificação da agressividade e da violência, seja


factual ou verbal, virtual e imagética, da qual resulta um perigo ao indivíduo, pois cada
um pode ser submetido a elas, mas também, um perigo à sociedade, na medida em que
tal intensificação, se prolongada ao plano das instituições, pode colocar em risco a
própria manutenção de uma sociedade democrática.
Para além das causas sociais – intensificação da pobreza e da miséria, que
dificilmente alguém negaria – parece ser o caso de destacar a “fraqueza de
pensamento” inerente à intensificação da agressividade e da violência. O não pensar,
ou o pensar mal, o pensar pela metade, o pensamento que não age a partir da
finalidade consciente (da antecipação consciente), que não opera a invenção
sistemática (que não modifica intencionalmente as coisas naturais) e que não opera
um enriquecimento do significado, alija o humano da própria humanidade.
Agressividade e violência são expressões da permanência do indivíduo ou da
sociedade no âmbito da pura instintividade e animalidade, um plano de quem ainda
não chegou a uma configuração plenamente humana, pois, de acordo com Dewey
(1979a, p. 26), o pensar “(...) é o poder que distingue os homens dos animais
inferiores”. Parece-nos, então, que educar para o pensamento reflexivo é, não apenas
uma forma de evitar a barbárie – o que já seria muito –, mas antes, o modo adequado
de contribuir para que o humano chegue à própria humanidade.
Complementarmente, em seu artigo Democracia como forma de vida: relações entre as
ideias de John Dewey e Paulo Freire, Muraro (2012, p. 04) afirma que “O pensar reflexivo
é condição de possibilidade da vida democrática”. A vida numa sociedade democrática
é uma conquista relativamente recente, sempre em risco, que só pode ser mantida se
os cidadãos forem educados para a cidadania, do contrário, opções autoritárias
parecerão legítimas, razoáveis, portanto, opções elegíveis. Talvez um dos resultados
mais radicais de um pensamento reflexivo e de uma educação progressiva consista
justamente em recusar toda e qualquer forma de pensamento autoritário.
A vida em sociedade democrática é bela e cheia de aprendizagens no seu
contexto de diversidades e sincretismos, principalmente no que concerne a uma vida
de aprendizagens fundamentada num processo reflexivo de cada nova experiência,
cada nova aprendizagem com novos pensamentos que enriquece o velho que é o novo

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

enriquecido pelo refletir da ação motora x espírito/intelecto x natureza, que se renova


a cada investimento reflexivo.
Não tem como prender o espírito numa caixinha filosófica do século platônico
ou aristotélico-tomista e escolástico. Espírito e corpo se movimentam no mundo em
constantes experiências buscando a maturidade de um adulto livre para escolher
democraticamente e desenvolver mutuamente suas responsabilidades e
potencialidades para produzir uma sociedade em constante desconstrução e
reconstrução democrática constituída pela base da filosofia educacional de Dewey: o
de pensar reflexivo, oriundo das experiências conectadas com organismos, como diz
Anízio Teixeira:

...constituindo-se em outros e novos números de ação e reação com o meio em que


vivem e porque vivem. Os organismos, com efeito, não vivem em um meio – mas por
meio de seus respectivos meios. Graças a uma tão sinérgica participação de uns nos
outros, ambos se modificam, organismos e meios, fazendo-se e se refazendo, neste e
por este intercâmbio. E tal atividade em comum, partilhada ou conjugada, já contém,
de logo seja dito, os elementos que, na vida superior, vão produzir o que chamamos
de pensamento, de lógica, de razão e de inteligência, no plano humano e social.
(TEIXEIRA, 1955)

No capítulo sete de Democracia e Educação Dewey evidencia de forma


explicita, com várias representações e exemplos, que é pela educação que se constitui
uma democracia com sujeitos educados para agir mútua e voluntariamente. “O amor
da democracia pela educação é um fato cediço. [...] Uma democracia é mais do que
uma forma de governo; é, principalmente, uma forma de vida associada, de
experiência conjunta e mutuamente comunicada (DEWEY, 1979b, p. 93).
Dewey, citado por TEIXEIRA, 2010 em “A pedagogia de Dewey”, afirmava
que, para a escola fomentar o espírito social das crianças e desenvolver seu espírito
democrático, precisava organizar-se como comunidade cooperativa. A educação para
a democracia requer que a escola se converta em “uma instituição que seja,
provisoriamente, um lugar de vida para a criança, em que ela seja um membro da
sociedade, tenha consciência de seu pertencimento e para a qual contribua” (DEWEY,
Apud TEIXEIRA, 2010, p. ??)
Para Dewey uma sociedade é democrática na proporção em que prepara
todos para com equidade serem beneficiados e em que assegura um flexível
reajustamento de suas instituições por meio da interação das suas diversidades.
Essa sociedade deve adotar um tipo de educação que proporcione aos indivíduos
um interesse pessoal nas relações e direção sociais, e hábitos de espírito que permitam
mudanças sociais sem o ocasionamento de desordens. Uma educação que não
contemple apenas uma parte da sociedade como tem ocorrido com a educação elitista
e bancária.
Para tanto é necessário desconstruir o que a educação bancária/escolástica
produziu durante séculos: uma sociedade desumanizada, a qual, para Dewey é a

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

constituição de humanos que não pensam, não foram gerados para o hábito de pensar
reflexivamente.
Anizio Teixeira faz um breve comentário da situação do ser humano
desumanizado e como poderia humanizá-lo novamente:

Não irei, mais uma vez, caracterizar a nossa civilização, a civilização dos nossos dias.
Basta lembrar que a chamam de "material", "científica" e "técnica", em indicações
explícita ou subentendida a "espiritual", "moral" e "humana". Acentuamos que o
homem está progredindo materialmente e se deteriorando espiritualmente, contribuindo
muito que isto se vem dando pelo abandono alarmante dos valores morais e humanos.
Tais valores "espirituais" são os desenvolvidos pela literatura, enquanto os valores
"materiais" à ciência se filiariam. Daí a revolta contra a ciência e a exaltação dos
estudos linguísticos e literários, como os verdadeiros estudos humanísticos. A ciência
"materializou" a vida humana. Salvar-nos-emos voltando aos estudos exclusivamente
literários que marcaram como culturas pré-científicas ... (TEIXEIRA, 1955, p. 1)

O pensamento para Dewey é um método por excelência e denomina de “frio


e estático” a educação bancária sendo ela ostil ao desenvolvimento educativo. A
educação tradicional pode matar a capacidade de pensar que já é diminuta. Sendo um
opositor dessa metodologia educativa, fica claro que o problema não são conteúdos, e
sim, o método aplicado.
Dewey chama o processo de pesquisa de lógica. A lógica para ele é o processo
do conhecimento reflexivo. É no processar de materiais já conhecido que usamos para
operar a investigação ou pesquisa. Para Dewey, não é pela lógica formal aristotélica
que tem um formato de pensar organizado com categorias de silogismos que produz
um homem reflexivo. Para Dewey é a lógica da teoria de investigação que produz o
pensamento reflexivo e sequencialmente uma sociedade democrática e humanizante.
Ninguém ensina se não aprende e ninguém que aprende continua o mesmo!
Mas, transforma a si mesmo e todo o contexto que se socializa.

Referências

DEWEY, John. Como pensamos. Como se relaciona o pensamento reflexivo com


o processo educativo: uma reexposição. Trad. Haydée Camargo Campos. São Paulo:
Editora Nacional, 1979a.

____. Democracia e educação. São Paulo: Editora Nacional, 1979b.

____. Experiência e educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, RJ: Editora


Vozes, 2010.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

HENNING, Leoni Maria Padilha. “A experiência no mundo existencial, segundo


Dewey”. In: Educação & Realidade, v. 44, n. 3, 2019. pp. 01-21.

MURARO, Darcísio Natal. A importância do conceito no pensamento


deweyano: relação entre pragmatismo e educação. São Paulo, 2008. (Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São
Paulo).

____. “Democracia como forma de vida: relações entre as ideias de John Dewey e
Paulo Freire”. In: Anais do IX ANPED Sul 2012. 2012.
(http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewF
ile/2984/938 / Consultado em: 17/08/2019).

____. “Filosofia da experiência e formação humana para John Dewey”. In:


Perspectiva, v. 35, n. 2, abr./jun. 2017. pp. 520-545.

SANTOS, Marcela Calixto dos. A experiência na relação professor-aluno. Uma


análise reflexiva a partir das contribuições teóricas de Paulo Freire e John Dewey.
Londrina, 2014. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estadual de Londrina).

TEIXEIRA, Anísio. “A pedagogia de Dewey”. In: ROMÃO, José Eustáquio;


RODRIGUES, Verone Lane (Orgs.). John Dewey – Robert B. Wetsbrooke; Anísio
Teixeira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. pp. 33-68.

____. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos


Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.23, n.57, jan./mar. 1955. p.3-27.

____. Ciência e humanismo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de


Janeiro, v.24, n.60, 1955. p.30-44.

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Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

A NECESSIDADE DE UMA REFORMA DA FILOSOFIA,


SEGUNDO FEUERBACH

Lucas Felipe Cabral de Assis1


Heloísa Pereira de Espindola2
Arlei de Espíndola3

Resumo: Temos o intuito de apresentar o tema ‘reforma da filosofia’ no aspecto


proposto por Feuerbach, considerando sua crítica à performance da filosofia,
informada pela teologia no seu tempo, mas que também perpetua até os dias de hoje
na maneira como ela é aprendida. Nesse aspecto relacionamos a influência destas na
vida humana através da atenção dada à antropologia, ligando-as ao ganho de afirmar o
homem, valorizar seu agir, e sua influência. Falaremos sobre a necessidade de
considerar a essência deste marcada pela “razão, vontade e coração” que é o que,
segundo Feuerbach, o guia, enquanto humano, pois define sua essência. Surge a crítica,
porém, sobre como este se modificou ao longo do tempo e consigo alterou a forma
de lidar com determinadas questões, como o problema da filosofia e da religião,
tirando-lhes o caráter de algo vivo, dinâmico, pontos tão relevantes já que as grandes
mudanças na história sempre se ligaram a isto, mas que, depois de determinado tempo,
foi perdendo sua força que buscava o conhecimento, valendo-se do aprender e do
ensinar, quer dizer, desta própria abertura.

Palavras-chave: Reforma; Religião; Filosofia; ser humano; Liberdade.

Considerações Iniciais

Ludwig Andreas Feuerbach (Landshut, 28 de julho de 1804 — Rechenberg,


Nuremberg, 13 de setembro de 1872) foi um autor que se destacou no estudo crítico
da teologia e religião e como tais áreas se relacionam através do conhecimento
especulativo.
Um dos principais temas ao qual ele se dedicou e colocaremos em questão é a
“reforma da filosofia”. Quando se fala reforma da filosofia muitas questões são
levantadas, uma delas é sobre a palavra reforma em si, que vem para aprimorar algo já
existente ou meramente substituir em busca de melhores resultados, ou seja, a filosofia

1 Graduando em Administração na Universidade Estadual de Londrina – UEL, e-mail:


lucas.felipe.cabral@uel.br.
2 Graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Estadual de Londrina – UEL, e-

mail: heloisa.pereira@uel.br.
3 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina – UEL, e-

mail: earlei@sercomtel.com.br.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

naquele momento para Feuerbach não está sendo suficiente para resolver as questões
da filosofia e o que são relacionadas a ela.

1. Feuerbach e sua reforma

Para ser necessário uma reforma, essa mudança tem que ser condizente com
aquele período presente, porém sabemos que quando é falado sobre mudanças se tem
dois pontos totalmente contrários, um deles o do conservadorismo que acredita que
sempre é necessário manter o existente, o atual, e quem do outro lado, acredita que
mudanças sempre devem ocorrer, já que a vida em sociedade vem mudando ao longo
do tempo e para isso é necessário deixar de ter, de possuir características que existiam
até aquele presente momento.
Sabemos que o ser humano age por assimilação do que é aprendido ou
induzido ao longo de sua vida, e é natural que mudanças tragam resistências e devem
ser questionadas sobre sua necessidade e importância.
Segundo Feuerbach, as mudanças de maior impacto que ocorreram ao longo
da história são as religiosas, por marcarem diferentes momentos da humanidade; para
o autor, o coração, que representa o imediato, o intuitivo no homem, é justamente a
essência da religião, e é necessária uma revolução, ou seja, uma mudança de concepção
tanto quando ele debateu sobre, tanto nos dias de hoje, já que perceberemos a grande
relação da religião daquele período com este que estamos vivendo atualmente. Segundo
ele:

uma religião só se mantém se ela se preservar no seu sentido inicial, originário. Na


origem, a religião é fogo, energia, verdade; toda a religião começa por ser estrita e
incondicionalmente religiosa, mas, com o tempo, se esgota, torna-se laxa, infiel a si
mesma, indiferente, submete-se à lei do acto. (FEUERBACH, 2008, p. 3).

Temos, independente do período histórico, que o coração do homem nega a


religião, o cristianismo é negado tanto na prática quanto na teoria, já não satisfaz o
espírito, obtemos outros interesses distintos do plano celestial e eterno, já que possuiu
a dúvida sobre a veracidade. Então, busca-se apegar no verdadeiro, no racional, no que
se pode ver e tocar, sendo que antes esse movimento era algo inconsciente, em que
nem era compartilhado entre indivíduos ou grupos. Já hoje é consciente, é discutido
sobre essa consciência, trazendo a necessidade de uma filosofia nova, já que não se
tem mais o fundamento único e básico do cristianismo, mas sim, fundamentalmente
que se tornou antropológico.
A questão é porque o cristianismo é negado, o que ocorreu para ocasionar isso,
seria mesmo uma reforma da filosofia necessária? E se existe relação entre esses temas,
para fazer isso, é necessário falar sobre o Eu enquanto ser humano, para si mesmo e
para com o outro.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Para Feuerbach, ao trabalharmos esses temas inicialmente estabelecidos temos


que levantar algumas considerações, pois ele trabalha com a ideia de que é necessária
uma negação de Deus para libertar o ser humano, já que Deus está ligado à religião, e
a religião despreza o momento presente com o conceito de que haverá algo melhor e
sobrenatural no futuro ao final da vida, vida essa que acaba quando nosso corpo físico
morre. Para ele a filosofia é a realidade sensível, em que a razão, vontade e o coração
compõem o homem em sua totalidade.
Para Feuerbach, o “objeto religioso, a consciência coincide imediatamente com
a consciência de si mesmo” (FEUERBACH, 2007, p. 44). Isso quer dizer que, para
ele, a religião é algo da essência do ser humano, ou seja, é consciente, é o que nos
diferencia dos animais, ou quer dizer, do Eu para si mesmo, é algo além do convívio
em sociedade ou tempo de vida.
Ao mesmo tempo, outro autor, Rudolf Otto, defende que a religião surge do
medo, medo este em relação à morte, medo sobre o que se tem após a morte, já que é
uma esfera desconhecida do humano:

Não é do temor natural nem de um suposto e generalizado “medo do mundo”


(Weltangst) que a religião nasceu. Isso porque o assombro (das Grauen) não é medo
comum, natural, mas já é a primeira excitação e pressentimento do misterioso, ainda
que inicialmente na forma bruta do “inquietante misterioso” (Unheimliches), uma
primeira valoração segundo uma categoria fora dos âmbitos naturais costumeiros e
que não desemboca no natural. (OTTO, 2007, p. 47).

Isto é, da mesma forma que o medo da morte, e o que se tem após ela, é algo
da consciência humana, a religião também é, tendo-se que o desconhecido assombra
o humano, e a busca pelo mesmo também, sendo assim ambas as questões estão ligadas
através da consciência.
Feuerbach também caracteriza o chamado instinto de dependência, que é algo
do próprio ser humano, o qual coloca qualidades que ele não consegue ter em sua
plenitude a outro, portanto, que não ele, isto é, um “Eu de si para o outro” e disto
surge (Deus), um ser divino com devidas características inalcançáveis ao humano, mas
que nada mais é, segundo Feuerbach, a própria essência humana expressa de maneira
perfeita para um ser que tem a total razão, vontade e coração:

Apesar de Deus ser a própria essência humana, vista como um ser exterior e superior,
os religiosos mostram-se incapazes de perceber tal fato. Devido a isso, a religião se
torna o meio indireto para o ser humano conhecer a si mesmo, ainda de maneira
infantil, já que não reconhece aquilo que ele próprio possui (FEUERBACH, 2007, p.
45).

No cristianismo se tem a dependência do homem em relação ao seu ‘criador’,


o homem está preocupado em retornar para Deus, indo para o paraíso, após a sua
morte aqui na terra, “[uma vida feliz está em procurar a Deus, pois] quando Vos

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Eixo 1
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procuro, meu Deus, busco a vida feliz. Procurar-Vos-ei, para que a minha alma viva.
O meu corpo vive da minha alma e está vive de Vós” (AGOSTINHO, 1997, p. 185).
O cristianismo busca, portanto, alcançar a todos, independentemente de
questões econômicas, sempre defendendo a igualdade no paraíso, já que lá não há
distinção entre pobres e ricos, entre cor de pele, entre nacionalidade e origem. Para os
cristãos, somente Deus é capaz de propor a igualdade. Quando se fala do cristianismo
e dependência, de maneira resumida, é a busca constante da perfeição, superação de
limitação, e desenvolvimento das capacidades humanas, capacidades estas pensadas
para o indivíduo. Através dessa busca, consideramos que somos seres limitados e
finitos acreditando e buscando um ser ilimitado e infinito, Deus.
A nossa dependência em relação a objetos, animais ou seres transcendentes, é
uma forma de egoísmo, já que só adoramos e somos dependentes do que
consideramos ser útil para nós mesmos. Diante disto, surge a pergunta relacionada a
Deus, qual seria então sua importância se ele não for útil para nós.
Na psicologia temos um termo sobre o qual Freud discorre e chama de
projeção. Esse termo tem muita relação com o que Feuerbach argumenta sobre o
surgimento da religião e sua importância ao homem. Apesar de Deus ser a própria
essência humana, vista como um ser exterior e superior, os religiosos mostram-se
incapazes de perceber tal fato. Segundo Freud:

A projeção seria o mecanismo com o qual o paranoico lida com as censuras


inconscientes incompatíveis com o seu ego, colocando-as não mais como internas,
mas como externas a si como forma de defesa (FREUD, 2006, Vol. 1 p. 256).

Em certa medida, com esse argumento de Freud, podemos entender por que a
tamanha dificuldade ao humano pensar e debater a respeito da religião, crenças e
desejos de si mesmo; segundo Freud, temos uma certa defesa para fazer esse
movimento, defesa essa criada por nós mesmos de certa forma inconsciente. Ele
também vê o homem como um ser egoísta, cheio de amor-próprio em busca de sua
felicidade, felicidade esta sempre individual, por mais que tenha outra pessoa
envolvida.
Feuerbach, de sua parte, apresenta que para o homem se libertar, deve haver
uma negação a Deus, e fazer isso pode significar deixar de possuir uma essência, ou
seja, negar a própria realidade e tudo que foi criado ao longo da vida de determinada
pessoa.
Feuerbach através de suas Preleções (1851), atestando a ideia da reforma, afirma
que:

Tornar os homens de teólogos, antropólogos, de teófilos, filantropos, de candidatos


do além, estudantes do aquém, de servos religiosos e políticos da monarquia e da
aristocracia terrestre e celeste, cidadãos da terra, livres e conscientes. Minha meta não
é então negativa, mas positiva, nego para afirmar; nego apenas a aparência fantástica

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Eixo 1
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da teologia e da religião, para afirmar a essência real do homem. (FEUERBACH, 2009,


p. 36).

Para Feuerbach negar o ser religioso acaba sendo uma condição necessária,
para se fazer ciência na contemporaneidade, ao mesmo tempo ele considera a
importância da religião para o ser humano, para a vida em sociedade, e como uma
forma de evitar o individualismo e o egocentrismo, pontos ressaltados e comentados
em mais detalhes ao longo de sua principal obra, A Essência do cristianismo (1841).
Temos então a situação na qual ele vê como necessária uma reforma da
filosofia, filosofia esta que está ligada à teologia e à antropologia. Feuerbach vê que
existem extremos quando se discute e discorre sobre o tema religião, em certos
momentos da história há muitas pessoas que acreditam e seguem determinada religião
e crença, e em outros a negação absoluta disto, mas que não significa negar a existência
da religião, mas sim considerar outra.
Nesse cenário, pessoas chegaram a perder sua vida diante da discordância,
vinda de outra pessoa ou grupo de uma opinião divergente, questão essa que pode ser
sempre estendida, já que se trata de um tema do passado, presente e futuro, já que em
todo momento histórico gerações passaram e irão passar, a humanidade sempre se
deparou com esse tema e sempre irá se deparar uma vez que consiste na essência
humana, e, para haver uma reforma da filosofia, deve haver antes de tudo a busca pelo
debate por todos, seja no meio acadêmico, seja no ambiente social, para existir uma
melhor compreensão do que é a essência humana.

2. Perspectivas exegéticas

Como temos que Ludwig Feuerbach ainda é pouco divulgado e estudado


seriamente no Brasil, trazemos algumas ideias complementares, colhidas em textos
acessados, de forma a agregar um pouco mais em tal discussão sobre os pontos de
vista, sobre os pontos colocados com relação ao debate que Feuerbach levanta.
Sendo Vanessa Martins com o estudo: “Ludwig Feuerbach - Do Homem para
Deus ao Homem-Deus. A Fé e o Milagre”.
Neste trabalho é colocada a discussão que o homem está em constante conflito
com ele mesmo e que, com a crença em Deus não é diferente, nela é colocada a situação
de que acreditar em Deus nos tira responsabilidade de agir por conta própria. Por outro
lado, o ato de desacreditar em Deus nos traz a autodependência, uma vez que
acreditando em Deus não a temos.
Ao mesmo tempo é indagado sobre a fé, já que se tem fé quando se confia.
Porém, para confiar é necessário compreender, e esse processo de compreensão
envolve a razão. Outro ponto ressaltado é o aspecto da crença ao qual não pode ser
uma evidência para a comprovação da fé, e tais questões são embates que circulam
entre a interioridade, o íntimo dos seres humanos. Para Feuerbach, Deus é o que é

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

pelo que é projetado nele, ou seja, perante a um milagre o que se espera é uma mudança
no mundo sensível vindo através de uma ação divina/dele.
Temos o ponto do Milagre, que são acontecimentos vindos do divino e que,
portanto, desafiam as leis da física e da racionalidade. Logo se tem a impossibilidade
ou, sempre, a dificuldade de provar aceitar que um milagre é um milagre, pois como
prová-lo diante das impossibilidades, afinal qual seria a necessidade de operar milagres
em alguns e em outros não.
Por outro lado, a partir do momento que se tem a fé perante a possibilidade de
milagres, essa pessoa acredita que tudo pode e é possível para Deus e isso contempla
que Deus pode proporcionar tudo que o homem deseja ou necessita, e para Feuerbach
é justamente isso, a fé preenchendo nossos desejos, não passa de produto da
imaginação como forma de conforto. Surge daí o que seria o desejo para o humano,
se são relevantes e importantes, se aquilo agregaria na vida pessoal, como ser humano;
ou somente induziria o mesmo a querer mais e mais, sempre como um sinônimo de
acumulação, o que já entra em outro ponto, se devemos viver o melhor dessa vida
supondo que a forma que vivemos direciona uma outra vida melhor, tal vida com
Deus, mas esse caminho necessita determinados passos a seguir, ou essa vida é única
e ao fim dela se acaba a essência daquele indivíduo e portanto devemos seguir nosso
próprio movimento sem influência de um caminho correto por tal fé/religião.
Outro ponto ressaltado na obra é o de que uma vez o indivíduo negando a
Deus e voltando para si mesmo, cria-se o egocentrismo e o individualismo, o que
também é uma forma de desequilíbrio, já que o ser humano evolui da relação de quem
convive em sociedade, ou seja, tem-se em jogo as relações sociais.
Ao fim neste trabalho a autora traz a ideia de que deve haver um equilíbrio
entre Deus e Homem, de forma que o homem tenha paz em traçar seus próprios
caminhos, já que foi criado à semelhança de Deus, logo existe perfeição no homem e
não a necessidade de esperar um milagre e absorvendo de Deus o que ele tem para
ensinar, como o respeito e amor pelo próximo.
Tem-se agora o artigo: A concepção de religião para Feuerbach segundo
Robson Stigar.
Neste texto, o autor traz um resumo sobre os principais temas abordados por
Feuerbach ao longo de sua vida, principalmente sobre sua obra principal, A Essência do
cristianismo, na qual prega sobre a realidade dos seres humanos, colocando-os na
situação em que tal realidade é produto das circunstâncias e da educação.
Além disto, é comentado sobre Marx, que tem a visão de que a religião é fruto
das relações no mundo capitalista. Segundo ele, enquanto houver distinção entre
proprietários de meio de produção e não proprietários, a religião existirá fazendo-se
algo negativo, assim como a luta de classes informa a história, diferentemente do que
pensa realmente Feuerbach.
Feuerbach usa do pressuposto comentado anteriormente, como a necessidade
de negar a Deus para a libertação do ser humano, já que a religião joga a
responsabilidade para o futuro em um outro mundo, o céu, deixando de lutar contra

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

as injustiças atuais. Além disto o comentário de que o ser humano deve viver através
da realidade sensível (essência humana), a qual é movida pela razão, vontade e coração.
Já que a religião é um produto puramente humano em busca de satisfazer necessidades
até o momento não alcançadas, e ela aliena a partir do momento que o humano coloca
a Deus como realizador de desejos quando o próprio humano pode buscar e deve
buscar satisfazê-los, de forma a conseguir por conta própria através de sua
individualidade e vivência social.
E finalmente temos o escrito “Um Manifesto Antropológico” de Alice Aleixo.
Neste trabalho é discutida a problemática do ser humano referente à
consciência de si, em outras palavras, seria o autoconhecimento. Nele se tem uma
redução da religião em antropologia (ciência do homem no sentido stricto, que engloba
origens, evolução, desenvolvimentos físico, material e cultural, fisiologia, psicologia,
características raciais, costumes sociais, crenças etc.). É a racionalização colocada em
prática a fim de descrever a forma que o ser humano se comporta e como vê o mundo,
seja no mundo sensível, no âmbito dos sentidos, e a projeção que o mesmo faz além
desse mundo, ou seja, em outra realidade, ao longo deste trabalho; é possível se deparar
com a problemática que surge do tema, já que é intimamente ligado à antropologia,
sobre como é o ser, o eu, e como somos e agimos, seja pela racionalidade, seja pelo
coração, guiados pelo desejo e com o conflito interno em busca de satisfação própria
em relação ao outro e a si próprio.

Considerações Finais

Tanto no início deste trabalho como nos comentários a respeito, muitas


informações importantes que são levantadas; acima de tudo, Feuerbach traz o tema
autoconhecimento unido à razão como algo a ser buscado, em que o processo deve ser
definido no âmbito individual e coletivo, já que o conhecimento surge na relação
consigo mesmo e com o outro em sociedade, e da experiência através dos sentidos
com a natureza a qual sempre acompanha o ser humano.
O processo de reflexão deve de fato existir, assim como o debate entre
diferentes opiniões e crenças, tal assunto não pode ser considerado um tabu, ao qual
somente “grandes líderes” e estudiosos debatem, a reforma nesse aspecto no sentido
de partir do dado simples deve começar o quanto antes em todos os âmbitos e áreas
que ainda se têm “tabus” estabelecidos e intelectualismos.
O conhecimento filosófico, teológico, antropológico, não deve ser debatido
somente entre pessoas da área, o conhecimento deve chegar a pessoas sem
determinado título para poder falar e ouvir a respeito, se não qual o sentido de fazer
“elaborar” determinado conhecimento se não pode chegar na sociedade como algo
positivo e que pode provocar mudanças na maneira de ser, ver o mundo, se comportar
e agir.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Em outras palavras, o que se tem é a necessidade de entender que os conceitos


são decorrentes desta experiencia sensível deste interagir com o mundo, o que não
significa uma recusa da filosofia, mas sim um outra forma de fazê-la.

Referências

AGOSTINHO, Confissões; De Magistro. Tradução de J. O. Santos; A. Pina & A.


Ricci. São Paulo: Nova Cultural. 1997. (Coleção Os pensadores)

ALEIXO, Alice. Ludwig Feuerbach. Um Manifesto Antropológico. Artigos


LUSOSOFIA. Covilhã, 2009.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Petrópolis: Editora Vozes,


2007.

FEUERBACH, L. Necessidade de uma reforma de filosofia (1842). Trad. Artur


Morão. Textos Clássicos de Filosofia. Covilhã, 2008.

FEUERBACH. L. Preleções sobre a essência da religião. Petrópolis: Editora


Vozes, 2009.

FREUD, Sigmund. Rascunho H. Rio de Janeiro. Imago Esb 2006 Vol I.

MARTINS, Vanessa. Ludwig Feuerbach: Do Homem para Deus ao Homem-Deus.


A Fé e o Milagre. Covilhã: Artigos LUSOSOFIA. 2009.

OTTO, Rudolf. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com
o racional. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal, EST; Petrópolis:
Editora Vozes, 2007.

STIGAR, Robson. A concepção de religião para Feuerbach. Ciberteologia –


Revista de Teologia & Cultura – Ano X, n.45.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

DA EPISTEMOLOGIA GENÉTICA AO MÉTODO


PEDAGÓGICO DE JEAN PIAGET

Matheus Becari Dias1

Resumo: O presente texto tem por intenção demonstrar de maneira geral como o
psicólogo e epistemólogo Jean Piaget concebe a formação do conhecimento durante
o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, tendo por base seu texto Epistemologia
Genética. Nesta obra, o autor apresenta a ideia de que o indivíduo, em seu processo
de desenvolvimento, atravessa uma sequência de etapas de aprendizagem diretamente
relacionadas a seu desenvolvimento biológico. O conhecimento é construído
progressivamente de modo que sua complexidade acompanha o desenvolvimento das
estruturas cognitivas e dos conhecimentos previamente adquiridos com o tempo. Em
seguida, apresentar-se-á uma breve ligação entre a epistemologia concebida por Piaget
e sua proposta pedagógica, tendo por ênfase a ideia da participação ativa do aluno no
processo de aprendizado. Tendo isso em vista, a concepção pedagógica defendida pelo
autor acompanha os estágios de aprendizado do indivíduo, adaptando seus conteúdos
e métodos didáticos às demandas de cada etapa da educação. Ao caracterizar o
pensamento piagetiano sobre a educação, faz-se uma aproximação de suas
considerações com a tendência liberal renovada progressivista de educação, bem como
as críticas realizadas à tendência liberal tradicional predominante nas escolas.

Palavras-chave: Piaget; Conhecimento; Pedagogia; Educação.

Introdução

O psicólogo e epistemólogo suíço Jean Piaget, apesar de não ter exercido a


profissão de educador e de não se considerar um pedagogo, influenciou com sua
psicogênese do cognitivo, também chamada psicoepistemologia, um vasto número de
estudos ao redor do mundo acerca da educação. O enfoque inicial de seus estudos
acadêmicos foi a respeito das ciências biológicas, com pesquisas sobre moluscos.
Contudo, Piaget também possuía interesse desde cedo por filosofia, sociologia e
teologia. O método científico logo o despertou para a investigação acerca da formação
do conhecimento, passando então a estudar o campo da psicologia.
Sobre a psicologia, Piaget afirma: “Isso me fez adotar a decisão de consagrar
minha vida à explicação biológica do conhecimento” (PIAGET Apud MUNARI,
2010, p.13). Em seu projeto de explicar a elaboração do conhecimento a partir de bases

1 Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:


mabecari@outlook.com

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

biológicas e de organizações lógicas, Piaget adere à psicologia experimental, rumo que


o leva a buscar uma aproximação entre a psicologia e a filosofia. Interesse que o leva a
formar-se no curso de filosofia e tornar-se professor universitário na área, também
lecionando sobre psicologia e sociologia (MACEDO, 1983, p.11).
Como consequência de seus estudos sobre a formação do conhecimento,
Piaget se aprofunda na pesquisa acerca do pensamento infantil, levando-o a
desenvolver, com todo seu repertório das ciências naturais, da lógica dedutiva e da
história humana, o método crítico ou método clínico de interrogação da criança. De
acordo com Munari:

A originalidade do estudo do pensamento infantil que Piaget realizou tem como base
o princípio metodológico segundo o qual a flexibilidade e a precisão da entrevista “em
profundidade”, que caracterizam o método clínico, devem modular-se mediante a
busca sistemática dos processos lógico-matemáticos subjacentes aos raciocínios
expressados; além disso, para realizar esse tipo de entrevista, é preciso referir-se às
diversas etapas de elaboração pelas quais passou o conceito que se examina no curso
de sua evolução histórica (MUNARI, 2010, p.14)

Em consequência de seus estudos acerca do pensamento infantil, em alguns de


seus escritos Piaget desenvolve análises acerca do melhoramento da metodologia
pedagógica. Sua proposta de educação mais geral, segundo aponta Munari, consiste em
“[...] uma escola sem coerção, na qual o aluno é convidado a experimentar ativamente,
para reconstruir por si mesmo, aquilo que tem de aprender” (2010, p.18). A defesa de
Piaget do papel ativo do aluno na construção dos conteúdos pode ser compreendida
como uma implicação de sua forma de conceber o modo pelo qual o conhecimento é
construído e os processos pelos quais ele se desenvolve cognitivamente no indivíduo.
O presente texto tem por intenção demonstrar de maneira sucinta como Piaget
concebe o desenvolvimento do conhecimento, tendo por base sua Epistemologia
Genética. Em seguida, faz-se uma breve ligação entre a epistemologia tratada por
Piaget e sua proposta de educação, com ênfase na ideia da participação ativa do aluno
no processo de aprendizado. Com isso, podemos caracterizar certa aproximação entra
a concepção pedagógica de Piaget e a Tendência liberal renovada progressivista.

1. A Epistemologia Genética de Piaget

Como o próprio Piaget expõe em seu escrito, a Epistemologia Genética se


propõe a “[...] pôr a descoberto as raízes das diversas variedades de conhecimento,
desde suas formas mais elementares, e seguir sua evolução até os níveis seguintes, até,
inclusive, o pensamento científico” (1986, p.3). Uma das bases da gênese do
conhecimento de Piaget é a consideração de que não há conhecimentos absolutos e
que, portanto, não há uma fase absolutamente inicial da formação do conhecimento,

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

mas sim um número indefinido de etapas que compõe a construção desse


conhecimento.
Deve-se destacar também que na Epistemologia Genética o conhecimento não
é “[...] algo predeterminado nas estruturas internas do indivíduo, pois estas resultam
de uma construção efetiva e contínua[...]” (PIAGET, 1983, p.3). Esse posicionamento
difere essencialmente a epistemologia genética da concepção empirista tradicional e
apriorística do conhecimento. A epistemologia empirista subordina “[...] o
conhecimento a formas situadas de antemão no indivíduo ou no objeto” (PIAGET,
1983, p.3). Já a epistemologia apriorística, reconhece

[...] o desenvolvimento da inteligência como devido, não a uma faculdade que já está
completada, mas à manifestação de uma série de estruturas que se impõem de dentro
à percepção e à inteligência, à medida das necessidades que o contato com o meio
provoca (PIAGET apud MUNARI, 2010, p.37).

Piaget faz questão de frisar o aspecto interdisciplinar da Epistemologia


Genética. Por se tratar de uma gênese do conhecimento, todas as ciências são
englobadas por esse processo evolutivo, desde que não seja considerada como um
estado final deste.
Dadas essas considerações, Piaget caracteriza a Epistemologia Genética como:

[..] uma epistemologia naturalista sem ser positivista, que põe em evidência a atividade
do sujeito sem ser idealista, que se apoia também no objeto sem deixar de considerá-
lo como um limite (existente, portanto, independentemente de nós, mas jamais
completamente atingido) e que, sobretudo, vê no conhecimento uma elaboração
contínua (PIAGET, 1983, p.5).

A partir dessa base teórica, a Epistemologia Genética vai além das tradicionais
posições empiristas e apriorísticas-inatistas acerca do problema do conhecimento. A
também chamada psicogenética de Piaget considera o conhecimento como resultado
da interação simultânea entre um sujeito consciente e um objeto constituído, uma “[...]
dupla construção progressiva que depende a elaboração solidária do sujeito e dos
objetos” (PIAGET, 1983, p.6). Portanto, para a psicogenética não há um sujeito
distinto do objeto ou um objeto independente de um sujeito na origem ou no início
do processo de formação do conhecimento.
Desconsiderando como ponto de origem do conhecimento tanto o objeto,
enquanto fenômeno, quanto o sujeito a priori, a Epistemologia Genética identifica “a
própria ação em sua plasticidade” como sendo o “instrumento de troca inicial” entre
o interior e o exterior, anterior a percepção, que depende da “ação em seu conjunto”
(PIAGET, 1983, p.7). Com a indistinção inicial entre sujeito e objeto, Piaget aponta
para o “corpo próprio” como sendo o ponto de centração inconsciente das “ações
primitivas”. Esse momento do desenvolvimento do conhecimento é denominado
como nível sensório-motor do indivíduo.

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

Segundo Piaget, anteriormente ao nível sensório-motor, antes do primeiro ano


de idade é presente no indivíduo a “falta de coordenação das ações, a indiferenciação
do sujeito e dos objetos e a centração sobre o corpo próprio” (1983, p.8). Já no nível
sensório-motor, intervalo do primeiro ao segundo ano de idade, Piaget verifica uma
fase de “revolução copernicana”, no qual as ações são descentralizadas do corpo
próprio, que passa a ser considerado também como um objeto em meio a outros, e o
controle das ações sobre os objetos passa a ser reconhecido no sujeito, que começa a
identificar-se como “fonte” e “senhor de seus movimentos” (PIAGET, 1983, p.8). De
acordo com o epistemólogo, essa fase marca o início da inteligência representativa.
O período sensório-motor é sucedido pelo estágio pré-operatório. Esse
estágio, é dividido, por sua vez, em primeiro e segundo nível pré-operatório. O
primeiro nível diz respeito ao momento em que o sujeito inicia, de modo gradual, a
passagem da ação efetiva não-conceitualizada do estágio sensório-motor ao
pensamento, à interiorização e conceitualização das ações. Ocorre, nesse momento,
uma mudança dos antigos esquemas internos das ações em noções propriamente ditas,
em pré-conceitos. Com o início da formação dos conceitos, o sujeito da ação, o objeto
da ação e a própria ação começam a ser representados de modo espaço-temporal no
pensamento.
Sobre o período pré-operatório do conhecimento representativo, Piaget
ressalta que nele se apresenta progressos nas coordenações internas do sujeito e
externas entre os objetos, o que implica o desenvolvimento da noção de causalidade,
tanto espacial quanto lógica. Essas mudanças da função semiótica não dependem da
aquisição da linguagem, mas do “processo de imitação”, que é uma “conduta sensório-
motora mais próxima da representação, mas em atos” (PIAGET, 1983, p.12). Para
destacar a independência do desenvolvimento da inteligência em relação aos atributos
advindos da vida social, Piaget aponta:

Em outros termos, a passagem das condutas sensório-motoras às ações


conceptualizadas não se deve apenas à vida social, mas também ao processo de
inteligência pré-verbal em seu conjunto e à interiorização da imitação em
representações. Sem esses fatores prévios em parte endógenos, nem a aquisição da
linguagem nem as transmissões e interações sociais seriam, possíveis, pois que
constituem delas uma das condições necessárias (1983, p.12-13)

Contudo, a passagem dos esquemas sensório-motores à conceitualização se


realiza de modo lento e gradual, tendo relação direta com os processos de assimilação
dos conteúdos, isto é, a construção do conhecimento a partir algumas informações
extraídas do objeto, pois “[...] são essas informações, e não todas, e nem outras que
são retidas porque existe uma organização mental a partir de estruturas já existentes”
(PÁDUA, 2009, p.24). O processo de assimilação, assim como outros que constituem
o desenvolvimento cognitivo, realiza-se “[...] por esquemas essencialmente objetivos,

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

que vão se estruturando extemporaneamente conforme o desenvolvimento natural-


cognitivo do próprio sujeito do conhecimento” (ABREU, 2010, p.365).
Sucessivamente a esse momento, o primeiro nível do estágio pré-operatório,
que vai do segundo ao quarto ano de idade, é caracterizado pela mediação de pré-
conceitos na relação sujeito-objeto, pois, a noção de causalidade ainda é psicomórfica,
ou seja, não há ainda uma distinção completa entre as ações do sujeito e os objetos. Já
no segundo nível pré-operatório, de cinco a seis anos de idade, acontece a
descentralização da “simples assimilação dos objetos”, presente no primeiro nível pré-
operatório, em “conceitos ou ações conceitualizadas”.
A partir dos sete aos oito anos, os instrumentos de conhecimentos alteram-se,
dando início ao primeiro subestágio das operações concretas. Nesse momento, “as
ações interiorizadas ou conceptualizadas com as quais o sujeito tinha até aqui de se
contentar adquirem o lugar de operações enquanto transformações reversíveis quem
modificam certas variáveis e conservam outras a título de invariantes” (PIAGET, 1983,
p.18). Esse movimento de formação se deve ao “progresso das coordenações”,
tornando as operações em “sistemas de conjunto” ou “estruturas” cognitivas. Apesar
do estágio operatório concreto apresentar uma “mudança de natureza” em relação ao
estágio que o precede, o estágio pré-operatório, Piaget afirma que não há, de modo
algum, “[...] um começo absoluto no curso do desenvolvimento [...]”, pois, todo novo
elemento que surge “[...] procede ou de diferenciações progressivas, ou de
coordenações graduais, ou ambas ao mesmo tempo [...]” (PIAGET, 1983, p.18).
O segundo subestágio das operações concretas, dos nove aos dez anos de
idade, marca-se pela “equilibração geral das operações concretas”. O processo de
equilibração é um conceito destaque da Epistemologia Genética, que, segundo Pádua,
ocorre quando o sujeito realiza a assimilação de um objeto novo que, “[...] às vezes,
oferece certas resistências ao conhecimento e para conhecer esse objeto o sujeito
precisa modificar suas estruturas mentais e acomodá-las” (2009, p.25). Contudo, o
segundo estágio das operações concretas não apresenta somente uma equilibração das
operações, seu desenvolvimento em relação ao seu precedente primeiro estágio leva a
problemas os quais o sujeito ainda não tem capacidade de resolver, decorrendo em
uma desequilibração que conduzirá a complementação de

[...] estruturas operatórias já construídas e pela primeira vez estáveis, construindo


sobre sua base ‘concreta’ essas ‘operações sobre operações’ ou operações elevadas a
segunda potência que constituirão as operações proposicionais ou formais (PIAGET,
1983, p.27).

O estágio das operações formais caracteriza a “terceira grande fase”, sendo a


primeira fase o nível sensório-motor e a segunda o nível das operações concretas. O
que caracteriza a terceira fase, presente durante os onze e doze anos de idade, é o
processo de passagem das operações concretas para o plano do formal, isto é, da
capacidade de “poder recair sobre hipóteses e não mais apenas sobre os objetos”

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

(PIAGET, 1983, p. 27). Essa passagem implica também na verificação das


proposições, não mais nos objetos concretos, mas sim em outras proposições, nas
“operações sobre operações”. Nesse nível, o conhecimento pode passar para além do
real, abrindo-se para as hipóteses de possibilidade indefinida, como é no caso de
operações lógico-matemáticas.
Piaget conclui a apresentação do desenvolvimento construtivista da
psicogênese, ou formação dos conhecimentos, da seguinte maneira:

Não há dúvidas de que a ciência nos colocou há muito diante dessas convergências
surpreendentes entre a dedução matemática e a experiência, mas é impressionante
constatar que em níveis bem inferiores do das técnicas formalizantes e experimentais
uma inteligência ainda muito qualitativa e mal aberta ao cálculo chegue a
correspondências análogas entre essas tentativas de abstração e seus esforços de
observação embora pouco metódicos. E sobretudo instrutivo constatar que este
acordo é fruto de longas séries correlativas de construções novas e não
predeterminadas, partindo de um estado de confusão indiferenciada de onde aos
poucos se destacam as operações do sujeito e a causalidade do objeto. (PIAGET,
1983, p.30)

2. Piaget e a tendência pedagógica liberal renovada progressivista

Considerando a psicogênese como postulado de sua teoria do conhecimento,


a proposta pedagógica que Piaget se põe em favor segue o mesmo princípio: “Toda
teoria, todo conceito, todo objeto criado pelo homem foi anteriormente uma
estratégia, uma ação, um gesto” (MUNARI, 2010, p.23). Tendo em vista esse
programa, Piaget se coloca como adepto da educação ativa, que promove ao aluno a
capacidade de reconstrução tanto do conhecimento quanto do próprio aprendizado.
Em seu texto Para onde vai a educação?, ao tratar da educação intelectual, Piaget
abre crítica a tendência liberal tradicional. Segundo ele, a escola tradicional ocupa-se
de passar ao aluno vários conhecimentos para serem aplicados aos problemas e
exercícios propostos, mas desconsideram o esquecimento posterior deste conteúdo,
pois, visam o acúmulo do conhecimento e não a construção do mesmo. Frente a esse
problema, a escola ativa defende que o aluno deve adquirir um método de
aprendizagem que lhe seja útil para toda a vida e não somente a memorização de um
dado conteúdo. Para isso, faz-se necessário o fomento da pesquisa livre por meio da
curiosidade despertada no aluno.
A escolha de Piaget pelo método ativo como proposta pedagógica, baseia-se
diretamente em sua Epistemologia Genética, isso fica claro na seguinte afirmação:

As pesquisas psicológicas acerca do desenvolvimento das operações racionais e da


aquisição ou construção das noções fundamentais fornecem, com efeito, dados que
se revelam decisivos em favor dos métodos ativos e estão a carecer, mesmo, de uma

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

reforma do ensino intelectual muito mais radical que possam imaginar muitos dos
partidários da escola ativa. (PIAGET, 1975, p 62)

A partir dessa constatação, torna-se claro o motivo pelo qual Piaget afirma que
a educação deve fornecer ao aluno a “ação sobre os objetos e a experimentação”, pois,
as operações cognitivas passam por processos de assimilação do objeto e a elaboração
lógico-formal só se torna possível a partir da interiorização de experiências concretas.
Para exemplificar, Piaget cita o ensino de matemática no primeiro e segundo grau. De
acordo com ele, comumente o aprendizado de matemática se torna difícil ao aluno por
conta do método de ensino a que ele é submetido. O ensino tradicional de matemática
muitas das vezes aborda problemas abstratos, desvinculados da vida concreta, fazendo
com que o aluno não consiga resolvê-los, não por falta de inteligência pessoal, mas por
falta de relação com sua experiência e com seu interesse. O epistemólogo conclui que

[...] todo aluno normal é capaz de um bom raciocínio matemático desde que se apele
para a sua atividade e se consiga assim remover as inibições afetivas que lhe conferem
com bastante frequência um sentimento de inferioridade nas aulas que versam sobre
essa matéria. (PIAGET, 1975, p.65)

De modo paralelo ao desenvolvimento cognitivo apresentado pela


Epistemologia Genética, a pedagogia deve atentar-se mais aos processos de
aprendizado do aluno do que simplesmente aos conhecimentos específicos de cada
disciplina. O reconhecimento da passagem cognitiva do nível operatório, das
experiências concretas, ao nível formal, das estruturas lógico-abstratas, fornece
métodos ao ensino intelectual que respeitam os processos do aprendizado. Quanto a
isso, Piaget declara: “A verdadeira causa dos fracassos da educação formal decorre pois
essencialmente do fato de se principiar pela linguagem [...] ao invés de o fazer pela ação
real e material” (PIAGET, 1975, p.67).
A proposta pedagógica de Piaget busca a renovação do enfoque característico
da tendência pedagógica tradicional, que possui como conteúdo de ensino “os
conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações adultas e repassados ao
aluno como verdades” (LIBANEO, 1992, p.3). Piaget crítica essa concepção e afirma
que

O objetivo da educação não é saber repetir ou conservar verdades acabadas, pois uma
verdade que é reproduzida não passa de uma semi-verdade: é aprender por si próprio
a conquista do verdadeiro, correndo o risco de despender tempo nisso e de passar por
todos os rodeios que uma atividade real pressupõe (PIAGET, 1975, p.69)

Outro aspecto essencial da atividade escolar para Piaget é o desenvolvimento


da personalidade do aluno em meio as relações afetivas com os professores, alunos e
demais integrantes desse convívio social. A autonomia do aluno é inseparável do
processo escolar e, por conta disso, a formação que submete o aluno à autoridade de

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

um adulto, detentor da imposição intelectual, impede a liberdade moral e intelectual


desse indivíduo. Esse problema é identificado na pedagogia tradicional, na qual
“predomina a autoridade do professor que exige atitude receptiva dos alunos e
“impede qualquer comunicação entre eles no decorrer da aula” (LIBANEO, 1992,
p.4). A solução de Piaget para esse desafio é o estímulo da cooperação entre alunos,
não somente entre aluno e professor, e o exercício do espírito crítico, único meio de
se chegar a objetividade e a necessidade de demonstração. A escola ativa incentiva o
trabalho individual e em grupo como maneira de favorecer o desenvolvimento da
personalidade do aluno.
A escola tradicional, na visão de Piaget, possui um sistema de encorajamento e
de punição que ao invés de formar consciências livres acaba reforçando uma moral de
obediência. A vida social em paralelo com o ensino formal influencia o aluno ao
caminho da autonomia e do respeito mútuo, de maneira muito mais eficiente que a
proposta tradicional. Em relação ao contexto de sua época, Piaget afirma que a
educação em geral, que visa o “pleno desenvolvimento da personalidade humana” e o
“respeito pelos direitos dos homens”, não poderia atingir tal objetivo por meio de
nenhum “dos métodos em vigor”, no caso, a escola tradicional, pois

Nem a autonomia da pessoa, que pressupõe esse pleno desenvolvimento, nem a


reciprocidade, que evoca esse respeito pelos direitos e pelas liberdades de outrem, se
poderão desenvolver em uma atmosfera de autoridade e de opressão intelectuais e
morais; ambas reclamam imperiosamente, pelo contrário, para sua própria formação,
a experiência vivida e a liberdade da pesquisa, fora das quais a aquisição dos valores
humanos permanece apenas uma ilusão. (PIAGET, 1975, p.79)

Considerações Finais

A ausência de conhecimentos ou verdades absolutas percorre toda a obra de


Piaget, servindo de base tanto para sua epistemologia quanto para sua proposta
pedagógica, ambas de viés naturalista e construtivista. Na compreensão naturalista de
Piaget, as estruturas do conhecimento se desenvolvem de maneira orgânica, ou seja,
de modo gradual e em consonância tanto com as especificidades cognitivas do
indivíduo quanto em relação a influência externa exercida sobre ele. Na pedagogia isso
não é diferente, o plano de ensino deve respeitar os limites de cada faixa etária, suas
capacidades cognitivas e afetivas, pois as relações sociais também exercem influência
sobre o aprendizado do aluno.
O modelo construtivista de Piaget, reconhece que o conhecimento se desenrola
por diversas fases, desde o estágio sensório-motor, onde o indivíduo sequer faz
distinção entre suas ações internas e os objetos externos, até o estágio científico, no
qual realiza-se abstrações lógicas acerca de hipóteses sobre a realidade. No ensino isso
se reflete na exposição ao aluno do percurso pelo qual o conhecimento se formou,

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

incitando a curiosidade e a capacidade de reconstrução de sistemas, com visão crítica


e autônoma dos conteúdos.
A visão de Piaget encontra na escola ativa da tendência renovada progressivista
seu meio de reflexo na prática escolar. Em radical oposição ao sistema educacional
vigente da época, o modelo liberal tradicional, a proposta pedagógica de Piaget
demonstra-se como um giro no eixo da educação. A escola ativa altera a posição de
autoridade do professor em relação ao aluno, nela o aluno passa a ser protagonista do
direcionamento dos conteúdos e das relações sociais no âmbito escolar. A finalidade
mesma da educação também é alterada, já não se busca mais o acúmulo e reprodução
dos conhecimentos em um sistema hierárquico de relação professor-aluno, mas sim o
incentivo e adaptação do ensino aos interesses particulares do aluno, tendo em vista a
autonomia tanto intelectual quanto moral do aluno.
A obra de Piaget foi publicada no século passado, porém o cenário da educação
atual não difere muito do modelo criticado pelo psicólogo. As práticas escolares ainda
são realizadas em relação vertical, com o professor expondo conteúdos e os alunos as
decorando para a realização de avaliações. Apesar dos vários estudos acerca do
pensamento piagetiano, a realidade concreta da escola não segue o tempo da abstração
teórica da pedagogia, restando aos educadores e à comunidade em geral o empenho
aplicação de mudanças, mesmo que lentas e graduais, visando à melhoria do processo
educacional como um todo.

Referências

ABREU LCA et al. A epistemologia genética de Piaget e o construtivismo. Rev.


Bras. Cresc. e Desenv. Hum. 2010; 20(2): p.361-366.

LIBÂNEO, José Carlos. Tendências pedagógicas na prática escolar. In:


Democratização da Escola Pública – a pedagogia crítico-social dos
conteúdos. São Paulo: Loyola, 1992. cap 1.

MACEDO, Maria Rosa S. Vida e Obra. In: PIAGET, Jean. A epistemologia


genética/ Sabedoria e ilusões da filosofia/ Problemas de psicologia genética.
Tradução de Nathanael C. Caixeiro, Zilda Abujamra e Celia E. A. Di Piero. 2. Ed.
São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MUNARI, Alberto. Jean Piaget. Tradução e organização: Daniele Saheb. Recife:


Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

PÁDUA, G. L. D. A epistemologia genética de Jean Piaget. Revista FACEVV.


2009, 2, p.22-35

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Eixo 1
Ensino e Aprendizagem e Educação Científica em Ciências Humanas e Letras

PIAGET, Jean. A epistemologia genética. Tradução de Nathanael C. Caixeiro,


Zilda Abujamra e Celia E. A. Di Piero. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

_____. Para onde vai a educação? Tradução de Ivette Braga. 2.Ed. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympo Editora/ UNESCO: 1975.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

O VAZIO E A FALTA:
O OLHAR SENSÍVEL DE BARTHES E MICHAUX SOBRE O
JAPÃO

Alexandre Yoshiaki Sawaguchi1

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo explorar a relação dos escritores franceses
Roland Barthes e Henri Michaux com o Japão. Para tanto, verificou-se na noção barthesiana
de vazio iluminado pelo próprio escritor em O Império dos signos (1970), e na ideia de falta
percebida em Michaux no texto “Um bárbaro no Japão”, pertencente a obra Um Bárbaro na
Ásia (1933), traços dessa experiência oriental. Com isso, ao visitar esse país asiático, eles
tiveram a oportunidade de extrair desse encontro elementos que alimentaram suas
perspectivas a respeito de um lugar ainda não conhecido, construindo, consequentemente,
um Japão pessoal.

Palavras-chave: Vazio; Falta; Japão; Barthes; Michaux.

Dois Viajantes em Um Japão

O Império dos signos foi publicado em 1970, e foi fruto de três viagens feitas por Roland
Barthes ao Japão na década de 1960. O escritor francês experimentou o arquipélago asiático
pela primeira vez em 1966, e depois por mais duas vezes, especificamente, de acordo com
Laura T. Brandini em “A escritura barthesiana na página em branco japonesa” (2017), “[...]
de 5 de março a 5 de abril de 1967 e de 18 de dezembro de 1967 a 10 de janeiro de 1968
[...].” (BRANDINI, 2017, p. 165). Trata-se de uma obra que reúne reflexões sensíveis acerca
dos inúmeros fragmentos do cotidiano japonês colhidos pelo olhar barthesiano, além disso,
verifica-se em suas páginas a presença do que Barthes trata como o “vazio dos signos” nos
detalhes do dia-a-dia da capital japonesa, Tóquio. Lugar esse, onde, sem ao menos conhecer
a língua nativa, o escritor consegue estabelecer relação com essa cultura tão distante da sua
sem que sua escrita acabasse caindo em um oceano de estereótipos. Em relação a isso, o
escritor apresenta a seguinte afirmação: “Não olho amorosamente para uma essência oriental,
o Oriente me é indiferente.” (BARTHES, 2016, p. 8). Em outras palavras, ele não buscou
nas vozes da doxa um sentido para os signos que lhe chamaram a atenção, Barthes
simplesmente os ressignificou, dando-os sentidos oriundos de suas reflexões. Sendo assim,
o Japão de Barthes é um universo onde os signos são percebidos como vazios, vazios de
definição única e, por essa razão, abertos à variadas interpretações, principalmente, pelo

1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina


(UEL). E-mail: alexandresawaguchi@gmail.com

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

desconhecimento da língua local que acabou lhe proporcionando a criação de “pontes” que
o levassem à variadas significações.
E como respaldo para traçar um diálogo com a experiência barthesiana de vazio no
Japão, traz-se à luz a obra Um bárbaro na Ásia (1933) do também escritor francês Henri
Michaux, onde se identifica no capítulo denominado “Um bárbaro no Japão”, não a noção
de vazio, mas sim, uma consciência onde a falta se fez presente ao se referir a seus dias no
país asiático. Michaux teve a chance de caminhar por vários cantos do mundo. Já na época
de 1930, em uma sequência de viagens, de acordo com Marisa Martins Furquim Werneck,
no texto “Henri Michaux: Estrangeiro absoluto”, disponível no livro L’Étranger tel qu'il (s')écrit
(2014), o escritor percorre a Turquia, a Itália, o norte da África, a Alemanha, a Bulgária, a
Áustria, a cidade de Londres, de Madri, de Sevilha, do Marrocos e depois segue para Marselha
com o intuito de embarcar rumo ao extremo Oriente. Sobre tal decisão Werneck indica que:

No outono de 1931, não se sabe exatamente quando, nem como, Michaux embarca para a
Ásia. Durante oito meses, viaja pela Índia, China e Japão. Dessa viagem resultarão três
relatos. Em cada um deles, Michaux atribui, a si mesmo, o nome mais vil que um estrangeiro
pode receber: um bárbaro. (WERNECK, 2014, p. 70).

Dessa forma, como resultado das viagens aos Oriente, ele escreve o livro Um bárbaro
na Ásia, onde o Ceilão, atual Sri Lanka, a Malásia, a China e o Himalaia também foram
atingidos por seus relatos de viagem, obra essa que está construída de maneira cronológica,
diferentemente de O Império de Barthes, cuja escrita não denota a preocupação em apresentar
qualquer acontecimento de modo contínuo.
Com isso, o intuito desta análise foi verificar a forma com a qual Barthes e Michaux
se relacionaram com o Japão, observando, justamente, no vazio de Barthes e na falta de
Michaux, vestígio de duas vivências particulares que surgiram desse contato com o
estrangeiro. Por esse motivo, observou-se na obra O Império dos signos e do texto “Um bárbaro
no Japão”, sinais que apontassem a presença do vazio na fala de Barthes e a falta na de
Michaux, relacionando-os através dos estudos da Literatura Comparada, especificamente por
meio de uma de suas ramificações: imagologia. Este que tem o papel de verificar como a
cultura estrangeira é retratada dentro da literatura. De acordo com Álvaro Manuel Machado
e Daniel-Henri Pageaux no texto “Da Imagem ao Imaginário” publicado no livro Da
Literatura Comparada à Teoria da Literatura (1988) a imagologia trata dos estudos “[...] das
imagens do estrangeiro num determinado texto, numa literatura ou mesmo numa cultura,
[...] é um dos métodos de investigação mais antigos em Literatura Comparada [...]”.
(MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 55).
Então, ao tecer um texto com fios que se originam das vozes de Barthes e Michaux,
construiu-se uma perspectiva outra sobre um país cuja localidade e nuances culturais se
encontram tão longe das dos ocidentais, experimentando, dessa forma, um jeito diferente de
se pensar o Japão.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

O Japão e Suas Nuances

Em O Império dos signos Barthes não se limita na representação de um Japão real, ao


invés disso, ele expõe um país desejado, construído por meio da coleta de fragmentos
pertencentes ao cotidiano nipônico, e que foram capazes de instigar as suas reflexões mais
íntimas sobre a paisagem observada. De acordo com Barthes, lê-se: “Não olho
amorosamente para uma essência oriental, o Oriente me é indiferente.” (BARTHES, 2016,
p. 8). O que ele faz é se alimentar das inúmeras iluminações reflexivas que os signos japoneses
lhe proporcionavam para dar vida ao seu próprio Japão. Para tanto, ele não busca uma
essência, um núcleo oriental para preencher as lacunas ocasionadas pelo desconhecimento
da língua japonesa – Barthes esvazia os signos de significados nutridos pela doxa e
ressignifica-os sob uma perspectiva diferente. E isso se deu, justamente, pelo espaço que se
abriu entre os significantes e seus significados, fruto desse “silenciamento” da língua nativa.
Barthes explica esse fato da seguinte forma:

A língua desconhecida, da qual capto no entanto a respiração, a aeração emotiva, numa


palavra, a significância pura, forma à minha volta, à medida que me desloco, uma leve
vertigem, arrasta-me em seu vazio artificial, que só se realiza para mim: vivo no interstício,
livre de todo sentido pleno. (BARTHES, 2016, p. 17)

Então, a abertura entre os significantes e os significados de alguns elementos da


cultura nipônica, como os notados por Barthes no teatro, na culinária, na arquitetura, nas
ruas, nas papelarias, entre outros destinos, ofereceu-lhe espaço para que ele se colocasse
como um leitor e tivesse liberdade suficiente para que se distanciasse, consideravelmente, de
um Japão real, e inserisse nessas brechas suas interpretações. Além disso, essa vertigem capaz
de arrastar o escritor ao vazio pode ser considerada como aquilo que Barthes indica como
múltiplos clarões responsáveis por colocá-lo em estado de escritura (BARTHES, 2016). Esse
estado barthesiano de escritura se caracteriza como uma disposição a escrita sem que ela
tenha uma obrigatoriedade com qualquer regra – trata-se de uma prática onde os
pensamentos podem ser desenhados sobre o papel de maneira livre e prazerosa, expressando,
desse modo, a linguagem particular de cada escritor naquele exato momento. Através de
Barthes entende-se essa noção assim como se lê:

Essa situação é exatamente aquela em que se opera [...] uma revirada das antigas leituras, uma
sacudida do sentido [...] sem que o objeto cesse jamais de ser significante, desejável. A
escritura é, em suma e à sua maneira, um satori: o satori (o acontecimento Zen) é um abalo
sísmico mais ou menos forte (nada solene) que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele
opera um vazio de fala. (BARTHES, 2016, p. 10).

A palavra “vazio”, de acordo com o dicionário da língua portuguesa, significa: “que


não contêm nada ou só contém ar; despejado; desocupado; despovoado. O mesmo que
vácuo.” (BUENO, 2000, p. 790). Já na noção barthesiana o vazio não pode ser entendido
exatamente como tais significações apontam, pois para Barthes o vazio é uma possibilidade

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

para se pensar o signo de um modo outro. No Japão, essa noção se verifica no fato dele não
ter buscado uma voz japonesa para respaldar os signos que lhe chamavam a sua atenção,
observando-os como flexíveis e abertos a várias outras significações. Em outras palavras, foi
o modo como Barthes encontrou para se relacionar com essa cultura, sem registrá-la em sua
crueza e ao mesmo tempo sem comprometer nenhuma realidade existente por meio de suas
interpretações. Conforme explica Rodrigo Fontanari em “A concepção de vazio em Roland
Barthes” (2018):

Ora, o termo vazio, tal qual o pensa Barthes, esse esvaziamento da linguagem não tangencia
nenhuma problemática metafísica. Não é o nada, como ele mesmo confessa ao mundo, numa
entrevista feita por Guy Scarpetta à revista Promesse, em 1971: “[...] o vazio não deve ser
concebido (figurado) sob a forma de uma ausência (de corpos, de coisas, de sentimentos, de
palavra, etc.: o nada) – aqui somos vítimas da física antiga [...]. O vazio é antes o novo, o
retorno do novo (que é o contrário da repetição)” (BARTHES, OC, III, 2002, p. 995 apud
FONTANARI, 2018, p. 44).

Isto é, representa uma maneira do indivíduo de se desvencilhar de conhecimentos


naturalizados pelo discurso social e elaborar, por meio de suas reflexões, um corpo de
linguagem particular e coerente ao seu modo de pensar, sem fazer uso de antigos e
massificados saberes. Com isso, a noção de vazio para o escritor francês diz respeito à
oportunidade para se experimentar o novo, ou aquilo que ainda não se foi pensado sobre
dado objeto, configurando, dessa maneira, uma forma pessoal de interpretar e viver o
diferente.
Assim sendo, em um determinado ponto do livro, Barthes apresenta um signo que o
intriga e que pode ser assumido como a representação de sua noção de vazio, um signo que
se faz na polidez excessiva verificada nos gestos japoneses. Tal situação consiste no hábito
que os habitantes daquele país têm em curvar-se para reverenciar o outro sem qualquer
comunicação oral, e sem que esse ato queira definir qualquer sentido de humilhação,
inferioridade, contentamento ou vaidade. Assim, essa comunicação silenciosa e sem contato
físico e oral é entendida por Barthes como um grafismo corporal vazio e passível de
ressignificação dependendo de seu contexto. Ele explica seu ponto de vista da seguinte
forma:

[...] a saudação, inclina-a até a curvatura, o achatamento, faz triunfar nela não o sentido, mas
o grafismo, e dá, a uma postura que lemos como excessiva, a própria discrição de um gesto
do qual todo significado está inconcebivelmente ausente. A Forma é Vazia, diz – e rediz a
frase budista. (BARTHES, 2016, p. 88)

De outro modo, ele indica que essa saudação é um signo que, nele mesmo, não se
encontra significados definidos, senão aqueles que o próprio sujeito insere em determinados
momentos. Pois esse gesto tanto pode representar um pedido de desculpas como um sinal
de cumprimento, para além disso, dependendo da intensidade da curvatura pode sinalizar
inúmeras outras significações. Sendo assim, quando Barthes escreve que a “Forma é Vazia”

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referindo-se ao Budismo, ele quer expor que, é o indivíduo quem define o sentido de cada
estrutura, uma vez que a forma por si só não significa nada. Na tradição do Zen budista, há
uma explicação que se aproxima a esse vazio barthesiano, e que se caracteriza como a
vacuidade da forma. Conforme a explicação do monge Geshe Kelsang Gyatso em seu livro
Budismo Moderno, O caminho de compaixão e sabedoria (2010),

Vacuidade é o modo como as coisas realmente são. É o modo como as coisas existem, que
é oposto ao modo como elas aparecem. Acreditamos, naturalmente, que as coisas que vemos
ao nosso redor – como mesas, cadeiras e casas – são verdadeiramente existentes porque
acreditamos que elas existem exatamente do modo como aparecem. No entanto, o modo
como as coisas aparecem aos nossos sentidos é enganoso e completamente contraditório ao
modo como elas realmente existem [...]. Embora as coisas apareçam diretamente aos nossos
sentidos como sendo verdadeiramente existentes, ou inerentemente existentes, na realidade
todos os fenômenos carecem, ou são vazios, de existência verdadeira. (GYATSO, 2016, p.
102)

No caso da saudação japonesa, enxerga-se que a forma da ação, o grafismo corporal,


por si só é vazia de definições, seus sentidos nascem com a relação com outros signos
apresentados no instante em que se experimenta tal manifestação. Por esse motivo, Barthes,
ao desconhecer aquele ritual, observa naquele movimento um vazio propício à geração de
significados plurais, com isso, para ele o vazio é o não direcionamento dos sentidos para uma
única direção, concebendo-o como múltiplo em significações. Logo, o vazio se apresenta
como uma chance para que o leitor insira nos signos seus próprios significados com base em
seus próprios conhecimentos, pois nota-se que um signo, além de não poder ser lido de
maneira isolada de outros signos, possui uma infinidade de significações.
Henri Michaux, por sua vez, experimentou um Japão que lhe causou a
impossibilidade de verificá-lo de um modo mais flexível, como Barthes o fez, pois, para todos
os lugares que ele olhava, algo lhe parecia insuficiente, artificial, falso, fechado.
Diferentemente de Barthes, que viu no vazio um caminho para se construir novos meios de
significação, Michaux via na falta a representação de um estado de limitação, de fim. No
início de sua obra, “Um bárbaro no Japão”, ele apresenta essa ideia ao expor que: “Em
matéria de paz, eles têm apenas um vulcão, majestosa montanha, sem dúvida, mas ainda
assim um vulcão, que regularmente os inunda de lama, lava e infelicidade. [...] não só falta o
grande rio, mas também as grandes árvores, os grandes espaços.” (MICHAUX, 1994, p. 151).
Neste trecho, o escritor inicia seu relato apresentando a falta, ele não descreve o que vê, mas
sim, os elementos que não consegue enxergar ali. Como se a imagem desse país desconhecido
já tivesse sido criada em sua mente antes mesmo do primeiro encontro, por essa razão, ele
conta aquilo que gostaria de ter encontrado, e não o que tem a oportunidade de experimentar,
como foi no caso de Barthes.
A palavra falta, de acordo com o dicionário da língua portuguesa, aponta para a
“ausência; defeito; culpa; carência.” (BUENO, 2000, p. 346). E para Michaux, em relação ao
país nipônico, denota justamente isso, uma percepção enrijecida que veio a ser criada
anteriormente a sua visita ao Japão. Pode-se afirmar que o escritor recorre mais a “ausência”

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

do que à “presença” para traçar suas considerações sobre os lugares que teve a oportunidade
de percorrer, alimentando-se, dessa maneira, de uma visão com base em comparações para
a construção de suas perspectivas. No trecho a seguir ele expressa esse fato ao declarar que:
“os bambus japoneses: tristes, esgotados, cinzentos e sem clorofila, ao Ceilão não
interessariam nem como caniços.” (MICHAUX, 1994, p. 151). Ou seja, os bambus japoneses
não se igualam ao que ele viu no Ceilão de tão insignificantes que são.
Ao trazer Michaux para mais próximo das experiências de Barthes, pode-se pensar
no que Barthes levanta sobre os gestos japoneses, como a saudação. Uma ação que busca ser
significante para inúmeros outros significados, não se definindo nela mesma de modo
isolado. No caso de Michaux o contentamento dos japoneses, por exemplo, é retratado da
seguinte maneira: “Um riso louco e superficial em que o olho desaparece, [...] o sorriso
japonês, que só mostra os dentes, a simpatia não passa. [...] [é] uma coragem particularmente
decorativa”. (MICHAUX, 1994, p. 152-153). Nessa visão, o escritor, diferentemente de
Barthes, não se permitiu mergulhar nos signos desses gestos e perceber que os japoneses,
nessa situação, pretendem significar um sorriso, e não, necessariamente, envolver essa ação
com toda a emoção esperada – o sorriso, como um signo, é demonstrado por meio de seus
traços, porém o seu sentido é dado por cada indivíduo que vive o instante no qual o ele é
desenhado. Consequentemente, o sorriso não é uma verdade ou uma mentira, é apenas um
signo como a prática de curvar o corpo para a efetivação de um cumprimento entre duas
pessoas, ou seja, não há o intuito de se parecer simpático, mas sim de significar um gesto de
simpatia. Aliás, a experiência de um sorriso regado de emoção Michaux vive no Nepal,
quando relata ter encontrado uma mocinha nepalesa que lhe oferece chocolates, segundo o
escritor: “aquele sorriso, nada desajeitado, tão claro, impressionou-me profundamente, e eu
a olhava tão encantado que ela mesma se emocionou.” (MICHAUX, 1994, p. 160). E segue
ao completar: “Oh, primeiro sorriso da raça amarela”. (MICHAUX, 1994, p. 160).
Em outro momento do livro, Michaux apresenta aspectos não muito amigáveis sobre
as pessoas do arquipélago visitado ao salientar que: “Os homens não têm brilho, dolorosos,
devastados e secos, servidores de X, Z cú da pátria-papai [...]. As mulheres, ares de servas
(servir, sempre), as jovens, belas criadinhas de quarto, [...] atarracadas, baixas, fortes”
(MICHAUX, 1994, p. 152). Por conseguinte, ele expressa, dessa forma, seu desânimo
completo não apenas com a natureza, mas, também com os japoneses, algo que,
curiosamente, não aconteceu na China, onde ao lembrar do seu encontro com os chineses
indica ter visto homens habilidosos, com dedos ágeis como os de violinistas, pessoas
modestas, com virtudes e muita sabedoria. Já as mulheres percebidas por ele na China, são
belas como a lua, pois são iluminadas como tal, e ao mesmo tempo de uma claridade discreta
sem agredir nenhum olhar – elas servem sem servilismo, mas com afeto, cuidado e graça.
(MICHAUX, 1994). E continua ao indicar que o

corpo admirável, o das mulheres chinesas, como o desenho de uma planta, jamais a pose
rasteira que a europeia adota com tanta facilidade, e as velhas e os velhos, caras muito
agradáveis, não extenuadas, mas atentas e despertas, um corpo que sempre cumpre seu
trabalho, e com as crianças uma ternura que encanta. (MICHAUX, 1994, p. 116)

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

O que se nota em Michaux é a falta que lhe fez essas imagens coletadas em outros
cantos da Ásia e não descobertas por ele em solo nipônico, não apenas em relação a natureza
que ele considera miserável, mas também em relação às pessoas, em tudo há o esboça da
falta. No caso de Barthes, ele percebe a individualidade presente nos japoneses, não
colocando esses corpos em comparação, ou inferiorizando-os. Ele se desligar do arquétipo
distorcido construído por estereótipos enraizados por discursos ocidentais a respeito dos
indivíduos daquele país que os definiam da seguinte forma: “[...] um ser miúdo, com óculos,
sem idade, vestido de modo correto e apagado, modesto empregado de um país gregário.”
(BARTHES, 2016, p. 126). Com isso, o escritor não enxerga os japoneses como “cú da
pátria” como indicou Michaux, nem sem brilho, beleza ou vida própria. Pois, conforme
Barthes:

os corpos: todos japoneses (e não: asiáticos), formando um corpo geral (mas não global,
como se acredita de longe), e no entanto uma vasta tribo de corpos diferentes, dos quais cada
um remete a uma classe, que foge, sem desordem, em direção a uma ordem interminável; em
uma palavra: abertos, no último momento, como um sistema lógico. O resultado – ou a
implicação – dessa dialética é o seguinte: o corpo japonês vai até o extremo de sua
individualidade [...]. (BARTHES, 2016, p. 131)

Assim, a individualidade no Japão, sob o ponto de vista barthesiano, não deve ser
entendida aos moldes ocidentais, pois é preciso adentrar nos poros desse corpo nipônico
para se perceber as maravilhas existentes em cada sujeito. De outro modo, a individualidade
está na discrição, na suavidade dos movimentos e não nos exageros físicos que separa uma
pessoa de outro. Nas palavras do escritor francês verifica-se que a individualidade

[...] não pode ser compreendida no sentido ocidental: ela é pura de toda histeria, não visa
fazer do indivíduo um corpo original, distinto dos outros corpos, tomado por aquela febre
promocional que atinge todo o Ocidente. A individualidade não é aqui fechamento, teatro,
superação, vitória; é simplesmente diferença, refratada, sem privilégios, de corpo a corpo. É
por isso que a beleza não é aí definida, à maneira ocidental, por uma singularidade inacessível
[...]. (BARTHES, 2016, p. 134)

E essa percepção nutrida por Barthes só se fez possível graças ao vazio dos signos,
um vazio criado como meio para se alcançar uma pluralidade de significações acerca do
desconhecido. Desse modo, ele pode analisar os traços da cultura experimentada por ele,
enxergando na porosidade dessas formas, significações distantes dos estereótipos já
disseminados e que prejudicam uma relação verdadeiramente pessoal em relação a qualquer
destino ou sujeito ainda não conhecido. São os detalhes que fazem de cada indivíduo um
mundo original, porém com fragmentos de uma multiplicidade de outros corpos reunidos
em um só, dando assim, sentidos plurais para cada mosaico de signos.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Considerações finais

Consequentemente, nota-se que o vazio para Barthes é um estado de abertura, um


ponto de partida interessante para outras visões, uma condição fundamental para se adentrar
na noção barthesiana de escritura. Um estado no qual o escritor/leitor se permite mergulhar
sem agressões nos signos, ressignificando-os, dando-os outra vida, outra linguagem. Já para
Henri Michaux, o Japão foi um palco onde suas expectativas não condiziam com a realidade
experimentada, por isso, em todos os detalhes ele procurava algo, a falta seria a ausência
daquilo que ele imaginou encontrar, e não do que realmente se encontrava naquele Japão.
Pois, o que ele faz é traçar comparações entre o Japão e outros países asiáticos conhecidos
em suas viagens, assim sendo, ele não sentiu nos japoneses a alegria e as cores que ele havia
percebido nos chineses, sentiu falta da natureza exótica e majestosa vista por ele no Ceilão,
atual Sri Lanka, a ausência do grande rio visto por ele na Índia, e dessa forma ele tece seu
Japão com elementos que ele imaginou visualizar ali, desconsiderando a individualidade
cultural de cada lugar que visitou. Então, o vazio para Barthes é visto como algo positivo,
uma maneira de se pensar sobre algo sem criar comparações com qualquer outro lugar, já
para Michaux é algo negativo, pois ele busca insistentemente em outros lugares parâmetros
para pensar o seu país nipônico.
No desconhecimento da língua japonesa Barthes vê uma chance para deslizar pelos
signos e experimentá-los como deseja, vendo riqueza nos espaços vazios que acolhem o
transitar de inúmeros sentidos. Já para Michaux, trata-se de “Uma língua que soa fraca e
insignificante” (MICHAUX, 1994, p. 152), desconsiderando não apenas ela, mas a
oportunidade em ressignificar toda a sua vivência de Japão. No desconhecimento da língua
japonesa, Barthes se percebe no interstício, em um lugar “entre”, com isso, ele se aproveita
dessa possibilidade para inserir nas brechas dos signos japoneses a sua própria palavra. Pois
nesse país do leste asiático, como afirma Tiphaine Samoyault no texto “As Línguas
Estrangeiras de Roland Barthes”, “o trabalho sobre a significação se desenrola com mais
liberdade, e Barthes enfim encontra aí essa língua de margem, do interstício, essa língua
inabitável na qual todos os jogos são possíveis.” (SAMOYAULT, 2017, p. 104)

Referências

BARTHES, Roland. O Império dos Signos. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São


Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.

BRANDINI, Laura Taddei. “A escritura barthesiana na página em branco japonesa”. In:


CONTANI, Miguel Luiz; GUERRA, Maria José. (Org.). Barthes 100: ideias e reflexões.
Londrina: Eduel, 2017. p. 159-172.

BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

FONTANARI, Rodrigo. “A concepção de vazio em Roland Barthes”. Rev. ALEA: Rio de


Janeiro. ed. 20 nº 3, p. 37-53, set-dez. 2018. Disponível em:
https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/22595 Acesso em: 11 out. 2021.

GYATSO, Geshe Kelsang. Budismo Moderno, O caminho de compaixão e sabedoria.


São Paulo: Tharpa Brasil, 2016.

MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da Literatura Comparada à


Teoria da Literatura. Lisboa: Edição 70, 1988.

MICHAUX, Henri. “Um Bárbaro no Japão”. In: ______. Um Bárbaro na Ásia. Tradução
de Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Nova Alexandria, 1994, p. 147- 162.

SAMOYAULT, Tiphaine. “As Línguas Estrangeiras de Roland Barthes”. In: CONTANI,


Miguel Luiz; GUERRA, Maria José. (Org.). Barthes 100: ideias e reflexões. Londrina:
Eduel, 2017. p. 103-120.

WERNECK, Marisa Martins Furquim. “Henri Michaux: Estrangeiro absoluto”. In: Ana
Clara Santos José Domingues de Almeida. (Orgs.). L’Étranger tel qu'il (s')écrit.
Faculdade de Letras Universidade do Porto. Porto: U. Porto, 2014. p. 67-82. Disponível
em: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/12323.pdf. Acesso em: 16 out. 2021.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

UNIVERSOS ESTÉTICOS: A LITERATURA LATINO-


AMERICANA ATUAL NO “CAMPO EXPANDIDO DAS
ARTES”

Amanda Pérez Montanez1

Resumo: A narrativa das últimas décadas na América Latina coincide com o fim do
pós-modernismo e o início de um período estético peculiar, que se caracteriza, numa
de suas derivas, pela profusão de temas, novas linguagens e formas expressivas
inspiradas na relação com outras artes e suportes, prática denominada pelos críticos
como “literatura ampliada” ou “campo expandido das artes”. Nesse contexto, o
presente trabalho objetiva apresentar um breve panorama da narrativa latino-
americana atual, ao explorar algumas de suas tendências mais destacadas em textos
literários cujos procedimentos criativos centram-se na noção de "literatura ampliada",
conceito-chave para analisar esse tipo de narrativa. As reflexões de: Garramuño (2016),
Giordano (2019), Laddaga (2007), Ludmer (2010; 2019), Miranda (2019), Ranciere
(2009), entre outros autores, nutrem o estudo.

Palavras-chave: Narrativa Latino-americana Contemporânea; Literatura Ampliada;


Derivas Estéticas.

“La posibilidad es contenido, la potencia es energía y el poder es forma”


(Franco Berardi)

A narrativa das últimas décadas na América Latina coincide com o fim do pós-
modernismo e o início de um período estético peculiar, que se caracteriza, numa de
suas derivas, pela profusão de temas, novas linguagens e formas expressivas inspiradas
na relação com outras artes e suportes, prática denominada pelos críticos como
“literatura ampliada” ou “campo ampliado das artes”2, em referência ao termo que
Rosalind Krauss usa no ensaio “Sculpture in the Expanded Field” (1979), para analisar a
escultura contemporânea a partir das experiências do minimalismo americano dos anos
sessenta, momentos de ruptura em relação à tradição moderna, quando a escultura
cumpria uma função estética ligada aos valores de “autonomia” e “auto-
referencialidade”. A escultura em seu sentido ampliado neutralizaria as diferenças entre
arte, paisagem e arquitetura, produzindo híbridos inespecíficos. No universo literário,
o centro da questão estética que rodeia a produção atual se inscreve nos debates sobre
a pós-autonomia da arte contemporânea. No encalço dessa problemática, este estudo
objetiva apresentar um breve panorama da narrativa latino-americana ao explorar

1 Universidade Estadual de Londrina (UEL). e-mail: amandapm3404662@gmail.com

2 Na América Latina, nos estudos de: Aria (2016); Garramuño (2014; 2015); Laddaga (2006;
2007); Ludmer (2007; 2010); Miranda (2019); Olmos (2011), entre outros autores.

- 86 -
Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

algumas de suas tendências mais destacadas em textos literários cujos procedimentos


criativos centram-se na noção de "literatura ampliada"3, conceito-chave para analisar
esse tipo de narrativa.
Ao retomar a perspectiva de Krauss, um setor da crítica (pós-autonomista)
considera a literatura do presente além dos limites de sua constituição moderna, por
ter ultrapassado sua condição autonômica, estabelecendo conexões inéditas com
outras expressões artísticas, semelhantes às vivenciadas pela arte contemporânea. É
interessante explorar o alcance do conceito "campo ampliado das artes" ou "literatura
ampliada" em pesquisas recentes e a utilização desse conceito para evidenciar a suposta
novidade pós-autonômica das criações literárias latino-americanas nas últimas décadas,
especialmente quando é usado para sinalizar o trasbordamento de limites
(GIORDANO, 2019).
Segundo Reinaldo Laddaga, “toda a literatura [do presente] aspira à condição
da arte contemporânea”4 (2007, p. 14). Tal afirmação levaria a pensar, por isso mesmo,
que a literatura do presente em suas manifestações mais experimentais, aspiraria à
condição da “improvisação”, a “performance”, o “inespecífico”, o “mutante”, “o
híbrido”, o dissimile, configurando a existência de novas experiências e práticas de
escritura que já não se identificariam necessariamente com os valores tradicionais da
Literatura (GIORDANO, 2019). Dessa forma, conceitos como “literaturas pós-
autônomas" de Josefina Ludmer (2010; 2019), “texto-instalação” de Florencia
Garramuño (2015), “literatura experimental” de Wander Melo Miranda (2019), ou
mesmo, “espetáculos de realidade” de Laddaga (2007), “exaltam a novidade radical de
certos experimentos verbais para afirmar o fim ou a caducidade do regime estético que
teria condicionado o aparecimento e o desenvolvimento do literário como categoria
moderna”5 (GIORDANO, 2019, p. 2). Na reflexão de Laddaga (2006, p. 261), via
Rancière (2009), o novo paradigma literário (“regime prático”) operaria a partir das
últimas décadas do século XX, momento no qual já não identificaria um universo
centrado na noção de obra, como fazia o “regime estético” anterior que dominou na
modernidade, senão outro, de signo construtivista, onde se despregariam práticas
artísticas interessadas, menos no cumprimento de uma experiência singular, que em
pesquisar as condições da vida social no presente.
De acordo com Giordano (2019), a manipulação a que algumas obras literárias
contemporâneas são submetidas para transformá-las em documentos de uma
atualidade improvável, derivam em parte da compreensão simplificadora do que
Rancière (2009) chamou de “regime estético”. Fundado nas ruínas de regimes

3 Neste estudo, o conceito "campo ampliado das artes" é utilizado numa dupla visão: indicar
o acontecimento pelo qual a literatura insiste em sair além de si mesma, também, descrever o
deslocamento de certas práticas de escrita para fora da instituição literária.
4 “[…] toda la literatura [del presente] aspira a la condición del arte contemporáneo”.
5 “[…] exaltan la novedad radical de ciertos experimentos verbales para afirmar el fin o la

caducidad del régimen estético que habría condicionado la aparición y el desarrollo de lo


literario como categoría moderna”.

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

anteriores , nos quais a eficácia artística foi identificada com a representação de valores
transcendentais ou a intervenção imediata nos assuntos da comunidade, “o regime
estético seria caracterizado por sua composição heterogênea, até contraditória, por sua
lógica inclusiva em quanto aos conteúdos (a ideia de que todo pode se tornar matéria
artística) e os desequilíbrios inerentes à indeterminação formal” 6 (GIORDANO, 2019,
p.3). Ao apostar pelo fim do regime estético moderno, um setor da crítica literária
latino-americana atual, neutralizaria os efeitos de sua composição contraditória quando
esquece que, do ponto de vista desse regime, a literatura é autônoma e heterônoma
desde o início. “Desconhece, também, a heterogeneidade e a heterotemporalidade
desse suposto passado, precisa ignorá-las para se autorizar como porta-voz do
presente” (Ibid, p.4). A partir dessas considerações, vale perguntar se as
“transformações estéticas” da literatura latino-americana das últimas décadas do século
XX e inícios do XXI podem ser consideradas manifestações de um novo paradigma
estético? Ou são rupturas da tradição anterior? Ou são continuidades do paradigma
moderno ainda vigente? Ou formam parte do que Octavio Paz (1985) denominou
como “uma tradição feita de interrupções em que cada ruptura é um começo?
Em recente ensaio, Wander Melo Miranda (2019), em consonância com as
reflexões da chamada crítica “pós-autonomista”, considera às atuais práticas criativas
literárias como produto de um intrincado cruzamento de tendências e estilos no
diálogo da literatura com outras artes e linguagens, (“ficção experimental”), do qual
deriva um sentido político que alteraria a relação do leitor com a obra, responsável pela
emergência de relatos cruzados, textos híbridos em sua configuração e heterogêneos
quanto a seu lugar na ordem dos discursos:

[...] a separação dos corpos (textuais) é uma forma de resistência à sujeição da


totalidade, pensada esta última como fusão da identidade do sujeito (escritor) consigo
mesmo. Nessa separação, é como se a ‘função-autor’, nos termos de Michel Foucault,
revelasse em toda extensão seu lugar vazio, enquanto primeiro passo para a
dessubjetivação do sujeito, livrando-o assim do jugo a que o biopoder lhe impõe.
Trata-se de restaurar uma forma de impessoalidade que restitui o lugar do leitor como
alteridade incontornável, fazendo revelar o ‘scriptor’ não como quem antecede o
texto, mas como quem nasce com ele (MIRANDA, 2019, p. 7).

Desde essa perspectiva, uma das formas de pensar a autonomia literária


enquanto deriva política é em termos éticos, atendendo às potências estéticas e não
necessariamente ao estatuto cultural. A literatura é política pela transformação que a
experimentação formal exerce nos discursos ao descompor e transmutar as
identificações ideológicas neles contidos. O caráter político da arte depende, segundo
Alan Pauls (apud GIORDANO, 2019, p. 5),

6elrégimen estético se caracterizaría por su composición heterogénea, incluso contradictoria,


por su lógica inclusiva en cuanto a los contenidos (la idea de que todo puede convertirse en
materia artística) y los desequilibrios inherentes a la indeterminación formal”.

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[...] de uma ‘ética do procedimento e da forma’ [...] de um exercício da distância que


funciona como um ‘antídoto contra a aderência’ e uma ‘crítica contra a adesão. O
poder da literatura se apreciaria no efeito indireto de um desejo de subtração que
interrompe os processos culturais de totalização e homogeneização.7

A autonomia estética (a imanência das políticas da literatura) seria a condição


da eficácia heterônoma da obra: a experimentação na escrita de novas formas de vida
que implicaria o devir de uma obra, ou seja, a vida aqui entendida “como processo
afetivo, como o devir de um corpo ou uma sensibilidade segundo seu poder de afetar
e ser afetado”8 (PAULS, 2012, p. 15), como se ilustra no ensaio “En el cuarto de las
herramientas”, onde Alan Pauls (2018) analisa a obra de César Aira pelo viés do princípio
de autonomia em relação à heteronomia estética para destacar o nervo ético de uma
experiência literária de demarcação radical. Giordano (2019), ao se referir ao ensaio de
Pauls, observa não se tratar de restituir a vida do autor à função de uma chave para
explicar o que acontece em seus livros, mas de mostrar o contínuo de transmutações
entre formas de escrita e modos de vida que implica o devir de uma obra. “A invenção
de um procedimento literário, de uma micropolítica de subtração ou desapego, sempre
responderia, dessa perspectiva, às necessidades que uma vida tem – o processo
impessoal que chamamos de ‘vida’ – de transformar-se, de afirmar-se como poder de
variação”9 (GIORDANO, 2019, p. 5), ou como afirma Pauls (2012, p. 15): “Em
qualquer arte, uma descoberta técnica seria apenas uma das formas que a vida assume
para insistir, para mudar de forma”10. Ao entrelaçar arte e vida, Pauls ressalta o valor
ético e a potência estética do anacronismo na obra de Aira, o que em última instância
lhe permite estabelecer a diferença radical entre atuar como contemporâneo e se
identificar com o atual. E é precisamente por não se adequar a seu tempo que o autor
pode melhor compreendê-lo, tal como define Giorgio Agamben, em seu célebre ensaio
sobre o que é o contemporâneo11
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele
que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é
portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse

7 [...] de una ética del procedimiento y de la forma [...] de un ejercicio de la distancia que opera
como un ‘antídoto contra la adherencia’ y una ‘crítica contra la adhesión’. El poder de la
literatura se apreciaría en el efecto indirecto de un deseo de sustracción que interrumpe los
procesos culturales de totalización y homogeneización.
8 “como un proceso afectivo, como el devenir de un cuerpo o de una sensibilidad según su

poder de afectar y ser afectado”.


9 “La invención de un procedimiento literario, de una micropolítica de sustracción o

desprendimiento, siempre respondería, desde esta perspectiva, a las necesidades que tiene una
vida –el proceso impersonal que llamamos ‘vida’– de transformarse, de afirmarse como
potencia de variación”.
10 “En cualquier arte, un hallazgo técnico sería solo una de las formas que adopta la vida para

seguir adelante, para insistir, para cambiar de forma”.


11 Ensaio escrito a partir da lição inaugural para o curso de Filosofia Teorética, ministrado por

Giorgio Agamben entre 2006 e 2007.

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deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e


apreender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p.59)12.

Mas, como pode o que está fora do tempo próprio ser uma característica do
contemporâneo? Numa compreensão mais ampla da contemporaneidade, Agamben
(2009) a define não necessariamente como uma forma de ser, mas, uma tarefa que
compromete a tomada de decisões com respeito ao presente. Para se tornar
contemporâneo é preciso renunciar à banalidade dos significados atuais, simples ou
sofisticados, e se aventurar através de sombras, seguindo os sinais emitidos pelo
obscurecimento do presente, como se fossem mensagens cifradas. Contemporâneo é
aquele que rubrica o afundamento do convencional no ambíguo, testemunha a força
com que o indeterminado rompe os emblemas da época.
A partir das anteriores reflexões se podem traçar diversas linhas de exploração
(MONTAÑES, 2018), que levam a se perguntar, entre outras indagações, sobre como
operam as práticas artísticas do passado nos textos literários do presente? Que modelos
temporais podem se propor para o estudo da literatura atual? Perguntas centrais na
análise da relação da literatura da América Latina e a estética contemporânea, desde
um de seus vieses, o anacronismo.
Ao estabelecer conexões da literatura com outras práticas estéticas, Florencia
Garramuño vê algumas das práticas artísticas do presente em diálogo ativo com o
passado pela via do anacronismo, da reciclagem e da reorganização de materiais de
arquivo que permitem ativar “um poder de sobrevivência de intenso poder evocativo
e, simultaneamente, perturbador” (GARRAMUÑO, 2016, p. 59)13. São práticas
estéticas que ao incorporar objetos ou restos provenientes de tempos diversos exibem
propositalmente a sua obsolescência e/ou sobrevivência dando origem à
“sobrevivência do obsoleto”: “Se trata de objetos, imagens e discursos obsoletos
recuperados, recontextualizados, e utilizados para intervir com eles em novos
contextos estéticos nos quais essa marca obsoleta vem a ativar uma sobrevivência”
(GARRAMUÑO, 2016, p. 60)14. O procedimento da obsolescência permitiria
interrogar o presente desde a porosidade temporal, pois, de acordo com Didi-
Huberman (2005)15, não há história de um tempo que não seja, por sua vez, reescrita

12Pertenece realmente a su tiempo, es verdaderamente contemporáneo, aquel que no coincide


perfectamente con éste ni se adecua a sus pretensiones y es, por ende, en ese sentido, inactual;
pero, justamente por eso, a partir de ese alejamiento y ese anacronismo, es más capaz que los
otros de percibir y aprehender su tiempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58-59).

13“un poder de sobrevivencia de intenso poder evocativo y, simultáneamente, perturbador”.


14 “Se trata de objetos, imágenes y discursos obsoletos recuperados, recontextualizados, y
utilizados para intervenir con ellos en nuevos contextos estéticos en los que esa marca obsoleta
viene a activar una sobrevivencia”.

15 Em La imagen superviviente (2009), Didi-Huberman retoma o conceito de sobrevivência,


através de Walter Benjamin e Aby Warburg, para pensar em novos modelos temporais que

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

de outras épocas com as quais se dedica a dialogar. Por isso mesmo, a obsolescência,
enquanto sobrevivência, pode ativar valores próprios do régime moderno das artes, ao
manter, via anacronismo, um intenso diálogo com a tradição.
Apesar da experiência anômala da sobrevivência, a coexistência de fatores
dissimiles expande os limites do literário pela incorporação de corpos impróprios,
estabelecendo uma conexão extratemporal e extraterritorial entre eles, onde o que é
ressignificado (o obsoleto) tem a potência de ser ou não ser, já que “a recordação
restitui possibilidade ao passado, tornando irrealizado o acontecido e realizado o que
não foi. A recordação não é nem o acontecido nem o não acontecido, mas o seu
potenciamento, o seu tornar-se de novo possível” (AGAMBEN, 2015, p. 46). Assim,
o estranhamento do presente como condição para a contemporaneidade supõe, como
já visto, a afirmação do anacrônico ou do “futuro do passado em outro tempo”
(BENJAMIN, 1985), temporalidade peculiar, condensada na atemporalidade do agora
que é sobrevivência e recordação de aquilo que não foi.
No universo da literatura da América Latina, o procedimento da sobrevivência
do obsoleto pode ser identificado nas obras de autores cujas práticas criativas operam
a partir da reorganização de materiais de arquivo provenientes de diferentes contextos,
que deliberadamente mostram sua obsolescência ao trabalhar com restos ou resíduos
de outras épocas para causar estranheza ou iluminar o presente. Cadernos, catálogos,
desenhos, relatos, reportagens, discursos, periódicos, fotografias antigas, entre outros,
intercalam a narração atual com sedimentos do passado, tal como ocorre em “Poema en
un bolsillo”, primeiro relato de “Traiciones de la memória” (2009) de Héctor Abad
Faciolince, onde um conjunto de cartas pessoais, ilustrações, citações, fotografias, e a
memória –símile do arquivo –, são recursos usados pelo autor para a reconstrução
detalhada e precisa acerca da origem de “Epitafio”, soneto encontrado no bolso do pai
quando foi assinado em 25 de agosto de 1987, fato narrado no final de um romance
anterior: El olvido que seremos (2006), cujo título corresponde ao primeiro verso do
referido poema. A investigação empreendida por Abad para descobrir a autoria desta
obra, se é um poema apócrifo ou se realmente pertence a Borges – já que foi acusado
de plágio _, o leva a criar uma “caderno de campo” com detalhadas anotações de
possíveis percursos, pistas, fontes bibliográficas e registros das viagens por várias
cidades de 11 países, além dos inúmeros documentos pessoais utilizados na pesquisa.
Desse modo, Héctor Abad exercita neste romance uma escrita plural – híbrido de
conto, ensaio, autobiografia – que inter-relaciona elementos literários com o rigor da
pesquisa acadêmica, apagando assim as fronteiras entre a realidade e a ficção, tal como
expressa no prólogo da obra: “Quando se sofre daquela forma tão peculiar da
brutalidade que é a má memória, o passado tem uma consistência quase tão irreal como

permitam cruzar a unidade compacta do tempo histórico e penetrar no redemoinho da


História.

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

o futuro [...] Nunca tenho certeza absoluta se estou lembrando ou inventando” 16


(ABAD, 2009, p.10-11). O procedimento da sobrevivência usado por Abad nos
permite explorar desde o estético um fato histórico, mas o romance não se dedica
apenas a dar conta de seus antecedentes. Acima de tudo, questiona sobre a relevância
e competência da obra de arte como mecanismo de construção e devir da memória,
pois, como disse Borges (2009, p. 22), “[...] o passado não tem realidade senão como
uma memória presente”17.
Outro exemplo do procedimento de sobrevivência pode ser visto em Mano de
obra (2002) de Diamela Eltit, cujo relato da exploração e alienação de funcionários de
um supermercado no Chile neoliberal nos anos 2000 está registrado nos oito capítulos
da primeira parte com títulos alusivos aos jornais socialistas da classe trabalhadora
chilena das primeiras décadas do século XX:

Os títulos dos oito capítulos da primeira parte da obra, aludem alguns jornais
socialistas das primeiras décadas do século XX: Verba roja, Luz y vida, Autonomía y
solidaridad, El proletario, Nueva Era, Acción directa, El obrero gráfico, La voz del
mar. [...] são restos messiânicos de revoluções perdidas e desejos não realizados,
quando os trabalhadores proletários com consciência de classe ainda acreditavam na
revolução e se organizavam para lutar por seus direitos [...] A classe trabalhadora é
uma caracterização anacrônica, uma minoria fragmentada e minguante. A referência a
‘El despertar de los trabajadores (Iquique, 1911)’ - o título da primeira parte do
romance, que evoca o despertar coletivo dos trabalhadores chilenos do início do
século XX -, alude agora, ironicamente, ao regime de trabalho insone que para Marx
era inerente à estrutura vampírica do capital e que Jonathan Crary teorizou em 24/7,
um mundo imaginado como um shopping center 24 horas, previsível e
regulamentado, onde se realiza a ambição capitalista de absorver trabalho vivo sem
perguntar sobre o limite da força de trabalho” (RODRIGUEZ, 2019, p. 122)18.

A primeira parte da obra, com a narração na primeira pessoa do singular,


transcende o grupo e o clamor histórico, e segue para a segunda parte (Puro Chile -

16 “Cuando uno sufre de esa forma tan peculiar de la brutalidad que es la mala memoria, el
pasado tiene una consistencia casi tan irreal como el futuro […] nunca estoy completamente
seguro de si estoy rememorando o inventando”.
17 “[…] el pasado no tiene realidad sino como recuerdo presente”.
18 “Verba roja, Luz y vida, Autonomía y solidaridad, El proletario, Nueva Era, Acción directa,

El obrero gráfico, La voz del mar. […] son restos mesiánicos de revoluciones perdidas y deseos
sin cumplir, cuando los trabajadores proletarizados, con conciencia de clase, todavía creían en
la revolución y se organizaban para luchar por sus derechos [...] La clase obrera es una
caracterización anacrónica, una minoría fragmentada y menguante. La referencia a ‘El
despertar de los trabajadores (Iquique, 1911)’—el título de la primera parte de la novela, que
evoca el despertar colectivo de los obreros chilenos de principios de siglo XX—, alude ahora,
irónicamente, al régimen de trabajo insomne que para Marx era inherente a la estructura
vampírica del capital y que Jonathan Crary teorizó en 24/7, un mundo imaginado como un
centro comercial abierto las 24 horas, previsible y regulado, donde se realiza la ambición
capitalista de absorber trabajo vivo sin preguntar por el límite de la fuerza de trabajo”.

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Santiago, 1970), no plural, para abordar o dispositivo de luta e sobrevivência criado


por funcionários dos supermercados, dada a precariedade de seu trabalho. A potência
do procedimento utilizado na primeira parte, os títulos dos já extintos jornais
proletários, atua como eco de lutas proletárias distantes, sua mera menção ativa o
passado, não o reconstrói nem recupera, o potencializa, “não tanto para resgatar o que
era ou fazer com que volte a ser, mas para devolvê-lo à possibilidade de ficar suspenso
entre o que acontece e o que não acontece, entre a potência de ser e a potência de não
ser ”(AGAMBEN, 2015, p. 46). A estratégia de Eltit consiste, como afirma Nelly
Richard ([200-?], n.p.),

[...] em abalar a passividade das rotinas do trabalho escravo, das ofertas serializadas de
consumo, com o eco de protestos, rebeliões, insubordinações e revoluções que, ainda
que virtualmente, nunca cessam de interromper o monólogo do poder ou do dinheiro
com as fugas utópicas de imaginários agitados ou desintegrados19.

Em Mano de obra o diálogo com o passado através da reformulação simbólica


do material arquivístico permite que o presente seja interrogado a partir da porosidade
temporal, estabelecendo conexões extratemporais e extraterritoriais que reconfiguram
aspectos históricos, mnemônicos e identitários. Dessa forma, busca tornar visíveis as
relações de opressão e desigualdade vivenciadas pelos funcionários do supermercado,
ao desestabilizar a representação histórica com uma releitura crítica da literatura, sob a
consideração da prática arquivística como suporte narrativo.
Outra forma de reativar o passado e sua capacidade de sobrevivência é pelo
dispositivo da coleção, um desdobramento do arquivo, tal como acontece no projeto
artístico do escritor Mario Bellatin, apresentado na Bienal de Documenta Kassel (2012),
da qual participou como “curador convidado”. Além do projeto artístico, inacabado,
Bellatin também publicou o livro The Hundred Thousand Books (BELLATIN, 2012),
editado pela Bienal, onde descreve o seu projeto: dispor em prateleiras de madeira cem
livros do próprio Bellatin, cada um deles numerado e com a impressão digital do autor,
dos quais se imprimiriam mil cópias de cada um. Os cem mil livros produzidos em
série, apresentariam a mesma capa, tamanho e tipografia. A repetição do formato e
cor, opera como uma forma de continuidade entre os livros, uma espécie de
sobrevivência da escritura de Bellatin em sua obra e que não termina de se constituir
plenamente, já que pode surgir um novo livro. Segundo Florencia Garramuño (2016,
p. 60-61), neste caso:

A coleção nunca é completa e sempre está em movimento, onde o projeto transcende


- em vez de tomar forma - sua própria realização. Além disso, no livro publicado em
Kassel, são registradas as centenas de matérias sobre as quais esses livros tratariam,

19“[...] en sacudir la pasividad de las rutinas de trabajo esclavo, de las ofertas serializadas de
consumo, con el eco de protestas, rebeliones, insubordinaciones y revoluciones que, aunque
sea virtualmente, nunca dejan de interrumpir el monólogo del poder o del dinero con las fugas
utópicas de imaginarios agitados o desintegrados”.

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dentre as quais aparecem - como, por outro lado, em muitos outros livros de Bellatin
- alguns dos quais já foram narrados pelo mesmo autor em outros livros já
publicados20.

Da obra de Bellatin em Kassel, só se concretizou o “livro-arquivo”, parte de


um projeto inacabado e em constante transformação, criado com a finalidade de
construir um tipo de escritura que oferece ao leitor uma “coleção de dados” de sua
obra passada e futura, numa arquitetura fluida, ambivalente, “gelatinosa”, da qual se
vale para expor uma forma inovadora de criar arte e escritura. O autor adota a noção
de arquivo/coleção enquanto repositório de seus próprios livros, regido pelos mesmos
critérios de ordenamento e propriedade, tal como aclara no texto: “Os livros estarão à
venda somente se alguém estiver interessado em possuí-los; esses livros são
disponibilizados, não comercializados; eles estão dentro uma espécie de estado de troca
gelatinoso. Este estado de troca gelatinoso pode ser alterado por Mario Bellatin, por
um leitor ou por circunstâncias” (BELLATIN, 2012, p. 2)21.
É importante destacar que, segundo Garramuño (2016), a obra de Bellatin
agrega novos significados e valor artístico ao ativar o dispositivo arquivo com o
objetivo de desestabilizá-lo e radicalizá-lo por meio de um projeto destinado ao seu
desaparecimento, desmaterializando assim o seu princípio fundamental: a preservação.
Por outro lado, a "instalação-texto" ou o "texto-instalação" também oferece ao leitor-
visitante novas possibilidades de constituir o seu papel e definir as regras a que deve
se submeter, abrindo espaço para o que está fora do texto, ao criar conexões
inesperadas. Portanto, a ficção atual, segundo Miranda (2019), pode assumir a forma
de uma indagação sobre o que é escrever por meio de imagens que podem ser
consideradas como operadores de sobrevivência temporária, daí o sentido político
desse procedimento que amplia o horizonte de expectativas dos literatura atual.

Referências

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Melville, Bartleby, o escrevente. Uma história de Wall Street. Tradução de
Vinícius Honesko e Tomaz Tadeu. São Paulo: Editora Autêntica, 2015.

20 “Como una suerte de archivo de su obra pasada y por venir, el proyecto consiste en una
colección nunca completa y siempre en movimiento donde el proyecto trasciende —más que
concretarse en— su propia realización. En el libro publicado en Kassel, además, se consignan
los cien temas sobre los cuales tratarían estos libros, entre los que aparecen —como, por otro
lado, en muchos otros libros de Bellatin— algunos de los que ya fueron narrados por el mismo
autor en otros libros ya publicados”.
21 “The books will go on sale only if someone is interested in owning them; these books are

made available, not marketed; they are in a sort of gelatinous state of exchange. This gelatinous
state of exchange can be altered by Mario Bellatin, by a reader, or by circumstance”.

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Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporáneo? E outros ensaios. Tradução de


Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC.: Editora da Unochapecó, 2009.

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Aires: Random House, 2016.

BELLATIN, Mario. The Hundred Thousand Books of Bellatin: 100 Notes, 100
Thoughts: Documenta Series 018 (100 Notes - 100 Thoughts/100 Notizen - 100
Gedanken). UK: Gestalten, 2012.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução


Sergio Paulo Rouanet. 4ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

BERARDI, Franco “Bifo”. Futurabilidad (La era de la impotencia y el horizonte de


la posibilidad). Traducción Hugo Salas. Caja Negra Editora, 2019 (Col. Futuros
Próximos).

DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen superviviente (Historia del arte y


tiempo de los fantasmas según Aby Warburg). Madrid: Abada, 2009.

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2002 (Col. Biblioteca Breve).

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Cepe Editora, 2019.

OLMOS, Ana Cecilia. Transgredir o gênero: políticas da escritura na literatura


hispano-americana atual. Revista Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea. n. 38, Brasília: julho/dezembro, 2011. p. 11-21.

PAZ, Octavio. Los hijos del limo. Vuelta. Colombia: Editorial Oveja Negra, 1985
(Col. Historia de la Literatura Latinoamericana).

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

PAULS, Alan. Temas lentos (Selección y edición de Leila Guerriero). Santiago de


Chile: Universidad Diego Portales, 2012.

PAULS, Alan. “En el cuarto de las herramientas”. In: PAULS, Alan. Trance. Un
glosario. Buenos Aires: Ampersand. 2018.

RANCIÈRE, Jaques. El reparto de lo sensible. Estética y política. Traducción de


Cristóbal Durán y otros. Santiago de Chile: Lom, 2009.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

ASPECTOS CULTURAIS NA AULA DE LÍNGUA


ESPANHOLA: RELATOS DE EXPERIÊNCIAS EM
CONTEXTO REMOTO

Larissa Cristina Rocha1


Vanessa Cruz Mantoani2

Resumo: Durante a pandemia da Covid-19 em que o ensino passou a ser remoto, a


adaptação de professores e alunos para este contexto precisou ocorrer de forma rápida
e a necessidade de tornar a aula mais dinâmica para que os estudantes pudessem
praticar a Língua Espanhola foi um desafio para muitos. Atrelados à uma língua estão
os aspectos culturais que caracterizam e identificam as sociedades que a utilizam, sendo
fundamental sua abordagem no ensino e aprendizagem do idioma Espanhol. Com o
objetivo de refletir sobre o componente cultural no contexto remoto de ensino, este
estudo apresenta duas atividades realizadas na ferramenta Jamboard com grupos de
estudantes do Laboratório de Línguas e da graduação em Letras Espanhol da UEL. A
partir da ilustração de atividades, este trabalho também visa possibilitar um olhar ao
mundo com base na cultura “estrangeira” (CASAL, 2003), além de promover a
reflexão sobre o pertencimento ao ambiente cultural em que vivemos (PARAQUETT,
2011). Diante disso, as propostas apresentadas possibilitaram a criatividade dos alunos,
o contato com uma ferramenta digital, bem como a prática da Língua Espanhola.

Palavras-chave: Cultura. Língua Espanhola. Prática docente. Ensino remoto.

Introdução

O contexto remoto nas aulas durante a pandemia levou muitos professores a


mudarem sua maneira de ensinar, pois o que muitas vezes era abordado na lousa ou
com o auxílio de materiais impressos passou a ser digital, bem como algumas atividades
como, por exemplo, exercícios e trabalhos em grupos, precisaram ser adaptados às
novas formas de interação. Contudo, podemos afirmar que esse contexto de ensino
possibilitou o contato com ferramentas digitais desconhecidas por muitos docentes e,
além de exigir inovação, também despertou a criatividade.
Uma das plataformas utilizadas na Universidade Estadual de Londrina e disponível
pelo sistema de e-mail Google é a Jamboard também conhecido como uma lousa digital,

1 Graduanda em Letras Espanhol - Modalidade: Licenciatura - Habilitação: Língua Espanhola


e Literatura Hispânica da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: larissa.cristina0@uel.br.
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL-UEL) e

professora colaboradora do departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade


Estadual de Londrina. E-mail: vanessamantoani@uel.br.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

na qual diversas pessoas podem acessar as mesmas lâminas ao mesmo tempo e interagir
juntas.
Neste trabalho, apresentamos duas propostas de atividades com o uso desta
plataforma em diferentes níveis de ensino e aprendizagem de Língua Espanhola.
Primeiramente, convidamos o leitor a recordar a importância dos estudos culturais do
idioma e a conhecer um pouco sobre a ferramenta utilizada, para, então, verificar as
propostas e as contribuições deste recurso didático.

A cultura na aula de Língua Espanhola

No estudo de uma língua estrangeira (LE) estão envolvidos os diversos


aspectos que compõem um idioma, como os aspectos linguísticos e os socioculturais
caracterizadores de dada sociedade. Entretanto, é preciso compreender que nossa
língua materna pode influenciar positiva ou negativamente em nosso processo de
aprendizagem de uma LE, visto que ela representa a maneira que captamos e
interpretamos o mundo, já que ela também é formada por diversas características
culturais.
Desse modo, torna-se fundamental que no ensino de uma LE sejam
considerados e compartilhados os valores da cultura da língua de estudo e sejam
construídas atitudes de respeito, pois, assim como Ferreira (2020, p. 19),

Acreditamos que além de nos capacitar linguisticamente, ao estudarmos matizes


culturais atreladas ao processo de ensino e aprendizagem, contribuímos para
minimizar ou erradicar visões fragmentadas, generalizações, estereótipos e
preconceitos no que tange à diversidade em geral (diversidade linguística, religiosa,
cultural).

Referentemente ao ensino e aprendizagem em Língua Espanhola, entendemos


que as aulas têm a função de abordar a cultura da língua de estudo, devido ao fato de
ser o “ambiente” favorável que possibilitará ao estudante o contato com a diversidade
cultural existente nos mais diversos países hispânicos. Ainda que seja difícil abordar
uma grande variedade de aspectos culturais nas aulas do idioma, sabemos, também,
que sua abordagem apresenta ao estudante um leque de possibilidades para perceber
aquilo que é diferente de sua cultura e adquirir conhecimentos, como um pontapé
inicial para ampliar sua formação como pessoa, como cidadão e, inclusive, rever
conceitos e atitudes em relação às culturas. É neste exercício de diálogo com a outra
cultura que a nossa própria cultura pode ser compreendida, num processo de contínua
formação cultural identitária, por meio da reflexão, pois, como destaca Paraquett
(2011, p.10),

Priorizar a perspectiva intercultural é reconhecer uma série de princípios como


solidariedade, reconhecimento mútuo, direitos humanos e dignidade para todas as

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

culturas. Mas, acima de tudo, é permitir compreender quem somos e promover o


diálogo entre os povos.3

Portanto, a seguir, apresentamos propostas de atividades didáticas


desenvolvidas com dois grupos de estudantes de Língua Espanhola, com base em
nossa prática docente em que optamos por uma abordagem intercultural na qual os
alunos tiveram contato com aspectos culturais de países que possuem o Espanhol
como idioma oficial e puderam contrastá-los com sua própria realidade.

Atividades desenvolvidas

Como mencionado anteriormente, as propostas de atividades que


apresentamos neste trabalho foram realizadas com o uso da ferramenta digital Jamboard
que funciona como uma lousa virtual, podendo ser editada de forma colaborativa e
possui formato semelhante ao de um cartaz, facilitando a visualização. Essa ferramenta
pode ser usada como slide, como lousa digital e/ou interativa para a criação e
desenvolvimento de atividades, como podemos observar na Figura 1, a seguir.

Figura 1: Ferramenta Jamboard


Fonte: as autoras.

Para a criação livre dos usuários deste recurso didático, estão à disposição a
caneta, o apagador, a opção de seleção com o mouse, a inclusão de notas auto adesivas
(em formato quadrado e cores variadas), a caixa de texto (para escritos em tamanhos
diversos), algumas sugestões de fundo para serem usadas em cada lâmina e a opção de

3 No original: “Priorizar la perspectiva intercultural es reconocer una serie de principios como


la solidaridad, el reconocimiento mutuo, los derechos humanos y la dignidad para todas las
culturas. Pero, sobre todo, es posibilitar la comprensión de quiénes somos, y promover el
diálogo entre los pueblos” (PARAQUETT, 2011, p.10).

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

adicionar imagens do Google ou disponíveis nos arquivos do computador. Por ser uma
ferramenta que possibilita a criatividade, acreditamos que

Essas estratégias são essenciais para extrair a melhor interação dos alunos, ajudando-
os a adquirir e a compreender o conteúdo que foi discutido, em sala de aula
virtual, e assim socializar o grupo, propiciando uma interação e uma
construção colaborativa de conhecimentos da TIC em que se fundamenta no
desenvolvimento da e-atividade no ambiente virtual de aprendizagem interativo,
colaborativo e investigativo no processo do desenvolvimento do pensamento
crítico (MELO; SANTOS; FLORÊNCIO, 2021).

escolha dessa plataforma para a realização da atividade se deu pela facilidade


em criar uma lâmina como a de um slide e proporcionar a integração dos alunos, visto
que auxilia aqueles que têm mais dificuldade em criação, e permite que, além de praticar
a língua estudada, tenham contato com outro recurso tecnológico. Na próxima seção,
exemplificamos duas atividades aplicadas em contexto diferentes de ensino de Língua
Espanhola.

Proposta 1:

O Laboratório de Línguas da Universidade Estadual de Londrina tem o


objetivo de ser um laboratório, ou seja, de abrir espaço para estudantes das graduações
de LE exercerem sua futura profissão, por meio de estágio na área e funciona como
uma complementação do ensino regular de uma LE, mediante a oferta do ensino de
diversos idiomas para as comunidades interna e externa da universidade.
O grupo para o qual foi proposta esta atividade é de Espanhol Nível 1,
composto por uma maioria de graduandos da universidade e alguns alunos da
comunidade externa, que possuem entre 19 e 36 anos de idade. Esta atividade foi
realizada no primeiro semestre de 2021 e, portanto, a professora estava cursando o
terceiro ano da graduação de Letras Espanhol, realizava o estágio curricular não
obrigatório e utilizava o material didático Nuevo Prisma Fusión A1 + A2 da Editora
Edinumen.
A ideia da atividade surgiu a partir do conteúdo de nacionalidades com o intuito
de aproximar os alunos à cultura de cada país. Em uma tarefa, a professora pediu aos
alunos que buscassem um costume de algum país que possui a Língua Espanhola como
oficial e disponibilizou algumas opções de sites no idioma para que eles pudessem
realizar sua pesquisa e ter contato com a escrita em Espanhol. Os estudantes poderiam
fazer algo simples, mas precisavam explicar o aspecto cultural investigado
relacionando-o a uma imagem que o representasse. Posteriormente, com o objetivo de
praticar a pronúncia das palavras em Espanhol, a professora projetou os trabalhos dos
alunos e lhes pediu que explicassem o que haviam pesquisado.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

O resultado foi surpreendente: os alunos entregaram trabalhos impecáveis com


imagens e muita organização na produção da atividade e foi possível observar que,
conforme cada aluno realizava a atividade, os demais poderiam ver e ter mais ideias de
como fazer sua própria atividade, além de saber se determinado aspecto cultural já
tinha sido pesquisado por algum companheiro de sala. Neste trabalho, apresentamos
alguns exemplos das atividades desenvolvidas pelos estudantes, com sua devida
autorização para publicação. Contudo, por questões de ética, será mantido seu
anonimato.
Um dos aspectos culturais pesquisados foi o Flamenco, dança típica da
Espanha, como pode ser observado na Figura 2, a seguir.

Figura 2: Exemplo de atividade desenvolvida por alunos: Flamenco


Fonte: Atividade elaborada por estudante de Espanhol Nível 1, do Laboratório de Línguas -
UEL.

A aluna fez sua pesquisa baseada em um costume da Espanha, precisamente


de Andaluzia, sobre uma dança tradicional que se estendeu por todo o país. O
flamenco é um dos aspectos culturais mais lembrados quando se fala da Espanha e,
em sua apresentação, a aluna trouxe a história dessa dança considerada uma expressão
artística e uma expressão cultural pela UNESCO. Na Figura 3, podemos observar o
trabalho desenvolvido por outra aluna sobre a “siesta”.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Figura 3: Exemplo de atividade desenvolvida por alunos: La siesta


Fonte: Atividade elaborada por estudante de Espanhol Nível 1, do Laboratório de Línguas -
UEL.

A atividade de “La siesta” foi uma das mais impactantes, porque é um costume
espanhol em que as pessoas descansam após o almoço. Em algumas cidades, a sesta
pode acontecer das 14:00 às 17:00 e, por esse motivo, o comércio local fecha, voltando
a funcionar após esse horário. Entretanto, por mais que para alguns esse costume cause
estranhamento, de forma bastante interessante a aluna centrou sua pesquisa nos
benefícios causados por esse descanso diário como, por exemplo, melhorar o ânimo e
evitar o período de sol mais forte do dia.
De acordo com os exemplos de atividades apresentados, verificamos que essa
proposta possibilitou um olhar ao mundo com base na cultura “estrangeira” (CASAL,
2003), pois aproximou os alunos da língua e cultura estudadas e promoveu o contraste
de tais aspectos com sua própria cultura. Ressaltamos, ainda, que a atividade os
motivou a pesquisar sobre o assunto, tendo em vista que muitos estudantes
disponibilizaram vídeos como materiais extras para aqueles que quisessem maiores
informações a respeito do tema, contribuindo para uma interação entre todos, tanto
nas apresentações, como na sala de aula virtual (Google Classroom) em que esses materiais
foram compartilhados.

Proposta 2:

O segundo exemplo de atividade que apresentamos foi realizado com


estudantes do ensino superior e desenvolvido na disciplina 1LEM008 - Língua
Espanhola II, no segundo semestre do curso de Letras Espanhol - Licenciatura em

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Língua Espanhola e Literatura Hispânica da Universidade Estadual de Londrina. A


atividade aconteceu em dois momentos: aula síncrona por meio de interação via Google
Meet e aula assíncrona, em que os estudantes realizaram a atividade na plataforma
Jamboard.
Devido ao fato de ser uma disciplina de língua, os alunos têm contato com
diversos temas relacionados ao idioma Espanhol e aos aspectos socioculturais
presentes nos mais de vinte países que o utilizam como idioma oficial. A partir da
temática “Por la ciudad”, os discentes estudaram conteúdos como, por exemplo,
descrever uma cidade, estabelecimentos de uma cidade, pedir e dar informações,
perguntar pelo caminho e usar meios de transportes.
Assim sendo, a atividade desenvolvida está baseada em um exercício de um dos livros
adotados na bibliografia básica da disciplina: ¡Nos vemos! Curso de español para jóvenes y
adultos (2011). De acordo com a proposta apresentada pelos autores, os estudantes
deveriam ler um texto sobre “El tesoro de Bogotá”, organizando seus parágrafos,
conforme vemos na Figura 4.

Figura 4: Atividade “El tesoro de Bogotá”


Fonte: Lloret Ivorra, et.al. (2011, p. 69).

Em aula assíncrona, após realizar as atividades do livro, os alunos deveriam


acessar o arquivo do Jamboard criado pela professora e disponibilizado na sala de aula
virtual da disciplina. Cada aluno tinha uma lâmina ou slide com seu nome para que
pudessem usar todo o espaço disponível sem interferir nos de seus colegas. Desse

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

modo, eles foram convidados a refletir sobre “qual é o tesouro da sua cidade?” para
que pudessem pesquisar sobre ele e criar um cartaz com imagem e informações que
lhes parecessem importantes.
Com o intuito de dar continuidade ao estudo dos aspectos culturais abordados
no texto sobre o Museu do Ouro na cidade de Bogotá, Colômbia, em aula síncrona, as
atividades solicitadas foram corrigidas e também foram discutidos alguns aspectos
referentes ao país como, por exemplo, a cultura do café e algumas lendas.
Em seguida, a fim de refletir sobre o tesouro de sua própria cidade, de compartilhar
conhecimento e de promover a socialização dos trabalhos elaborados pelos estudantes,
a professora projetou as atividades de cada aluno, enquanto eles explicavam em Língua
Espanhola o que haviam colocado como “tesouro” e o motivo de suas escolhas.
Portanto, a atividade se desenvolveu em tais momentos:

Leitura e realização de atividades sobre “El tesoro de Bogotá”;


Reflexão sobre o tesouro da cidade onde vivem;
Pesquisa e apresentação no Jamboard de uma informação sobre algo que
representasse “el tesoro” de sua cidade;
Correção e comentários da atividade sobre aspectos culturais da Colômbia;
Socialização dos trabalhos criados na ferramenta digital.

No primeiro exemplo desta atividade, uma das alunas destacou o Jardim Botânico da
cidade de Londrina como um tesouro, por ser um lugar dedicado “à preservação de
espécies importantes para a restauração de ecossistemas” e comentou alguns costumes
locais dos londrinenses: um lugar em que as pessoas frequentam para fazer
caminhadas, estar com a família em piqueniques, além de fazer ensaios fotográficos.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Figura 5: Exemplo de atividade desenvolvida por alunos: Jardín Botánico de Londrina


Fonte: Atividade elaborada por estudante de Letras Espanhol – UEL, na disciplina
1LEM008.

No segundo exemplo desta atividade, a aluna destacou a Igreja Cristo Rei do


Gonzaga, em Promissão, São Paulo, como o tesouro de sua cidade e o local mais
visitado por turistas. De acordo com sua pesquisa e experiência, nesta igreja estão
representadas as culturas japonesa e brasileira que caracterizam a região.

Figura 6: Exemplo de atividade desenvolvida por alunos: Iglesia Cristo Rey de Gonzaga
Fonte: Atividade elaborada por estudante de Letras Espanhol – UEL, na disciplina
1LEM008.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Considerando o contexto remoto de ensino em que muitos estudantes não


estavam em Londrina, pois retornaram às cidades onde seus familiares vivem, essa
atividade permitiu que os colegas de turma conhecessem estabelecimentos e costumes
de outras cidades brasileiras, além de promover a reflexão sobre o pertencimento ao
ambiente cultural em que vivem (PARAQUETT, 2011). Desse modo, ao refletirem
sobre a cultura como um tesouro de uma cidade hispânica, puderam refletir, também,
sobre a cultura da cidade em que vivem com um olhar para a valorização, como um
tesouro, conferindo-lhe maior importância.

Considerações finais

As propostas de atividades apresentadas tiveram como eixo central a cultura, a


fim de estabelecer um contraste entre as culturas materna e estrangeira, possibilitando
ao estudante ampliar seu conhecimento a respeito dos aspectos linguísticos e culturais
da língua de estudo e refletir sobre a(s) cultura(s) que faz(em) parte de sua identidade.
Tendo em vista os exemplos de atividades comentadas, constatamos que o uso da
Jamboard como uma ferramenta educacional pode contribuir para o desenvolvimento
e a autonomia do aluno na realização das atividades, além de auxiliar na socialização
com os demais alunos, mesmo em contexto remoto de ensino, dado que não é uma
ferramenta digital complexa, podendo ser utilizada por estudantes de idades variadas
para fins diversos, como a prática da Língua Espanhola. Entretanto, outras propostas
podem ser desenvolvidas com a Jamboard como, por exemplo, a criação de um cartaz
colaborativo entre todos os alunos, ou ainda para relacionar imagens com palavras ou
frases correspondentes, entre outras.
Desse modo, as propostas didáticas apresentadas possibilitaram a criatividade
dos alunos, o contato com uma ferramenta digital, a prática da Língua Espanhola e o
(re)conhecimento da diversidade cultural, valorizando os aspectos que formam nossas
próprias identidades.

Referências

CASAL, Isabel Iglesias. Construyendo la competencia intercultural: sobre creencias,


conocimientos y destrezas. Carabela. 2003, n. 54. p. 5-28. Disponível em:
<https://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/carabela/pdf/54/54_005.pdf>
Acesso: 10 jun. 2021.

EQUIPE NUEVO PRISMA. Nuevo Prisma Fusión: curso de español para


extranjeros (A1 + A2). Madrid: Edinumen, 2018.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

FERREIRA, Cláudia Cristina. Abre alas que eu quero passar. Não só a festividades
se resume trabalhar (inter/trans)culturalidade: reflexões teóricas e propostas
pedagógicas. In: FERREIRA, Cláudia Cristina; MIRANDA, Caio Vitor Marques
(orgs.). (Re)Visões sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas
estrangeiras/adicionais: conjugação entre teoria e prática. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2020. p. 13-55.

LLORET IVORRA, Eva María, et.al. ¡Nos vemos! Curso de español para jóvenes y
adultos. Madri: Difusión, 2011. Reimp. 2017.

MELO, André Luis Canuto Duarte; SANTOS, Givaldo Oliveira dos; FLORÊNCIO,
Patrícia Cavalcante de Sá. Perspectivas de ensino nos cursos técnicos: experiências de
professores nas aulas remotas mediadas por Jamboard. Revista Devir Educação,
Lavras-MG. Edição Especial, p.206-226, Set./2021. Disponível em:
<http://devireducacao.ded.ufla.br/index.php/DEVIR/article/view/412/226>.
Acesso em: 28 de outubro de 2021.

PARAQUETT, Marcia. La interculturalidad en el aprendizaje de español em Brasil.


Jornadas pedagógicas. UFBA. n. 17, p. 1-14, 2011. Disponível em:
<https://www.mecd.gob.es/dam/jcr:bb8df5ad-c95c-43aa-af51--
174b89823e1f/2012-esp-13-28paraquett-pdf.pdf>. Acesso: 14 jun. 2021.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

DIMENSÕES DO INSÓLITO NAS NARRATIVAS


CONTÍSTICAS
E ? À LUZ DE
ASPECTOS CULTURAIS

Lucas Matheus da Silva de Carvalho1


Gabriel Amancio de Oliveira2
Cláudia Cristina Ferreira3

Resumo: Este trabalho surgiu por meio das discussões levantadas no projeto de
pesquisa Iluminuras do insólito na literatura latino-americana dos séculos XIX e XX, da
Universidade Estadual de Londrina, que visa dialogar sobre o insólito à luz de
narrativas contísticas da literatura latino-americana dos séculos XIX e XX, bem como
as relações entre si, a partir do ponto de vista da literatura comparada e seus conceitos
operatórios. Diante do exposto, como se constata, Júlio Cortázar foi um dos escritores
latino-americanos que fez parte do boom latino-americano, movimento que deu destaque
a diversos escritores entre 1960 e 1970, e Roberto Beltrão representa a contística
contemporânea brasileira e regional (Recife), soma-se a presença de elementos
fantásticos em suas narrativas; logo, elencamos para este estudo os contos Carta a una
señorita en París (1951), e Tens fogo? (2010), respectivamente. Portanto, esta pesquisa tem
por objetivo analisar e refletir sobre os contos à luz do insólito ficcional e disseminar
narrativas insólitas de autores latino-americanos, a fim de ampliar o repertório literário
e cultural (DURÃO, 2002; FERREIRA, 2018, 2020a, 2020b, 2021). Para tanto,
apresentamos o arcabouço teórico que versa sobre o insólito ficcional (GARCIA,
2011; ROAS, 2014; TODOROV, 1975), já que ambos os contos são permeados por
características dessa vertente literária, bem como evidenciam matizes culturais e seus
desdobramentos que entrelaçam aspectos linguísticos, culturais e literários.

Palavras-chave: Autores latinos; insólito; literatura e ensino; narrativas contísticas.

Introdução

A literatura é um dos ramos de estudo que sempre está em contato com o


mundo externo e interno do leitor. Ela nos leva a uma reflexão sobre nossos
comportamentos e possíveis identificações com personagens e/ou enredos. Neste

1 Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual


de Londrina (UEL). E-mail: lucas.matheus.carvalho@uel.br.
2 Graduado no curso de Letras Espanhol da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-

mail: gabrieloliveira@uel.br
3 Professora Associada do Departamento LEM (UEL). E-mail: claucrisfer@sercomtel.com.br

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

aspecto, enquadra-se uma de suas vertentes que vem sendo estudada com maior
frequência ao longo dos anos, a literatura fantástica.
De acordo com Cortázar, o fantástico “é uma coisa muito simples, que pode
acontecer em plena realidade cotidiana [...]” (CORTÁZAR apud BERMEJO, 2002, p.
37). Portanto, entendemos e apoiamos a definição de Roas (2011, p. 117), sobre a
literatura fantástica. O autor a vê como “uma categoria que nos apresenta fenômenos,
situações, que supõem uma transgressão da nossa concepção do real, visto que se trata
de fenômenos impossíveis, inexplicáveis de acordo com essa concepção.”. Nas
palavras de Garcia (2011)

como gênero literário, o fantástico estaria restrito àquela ficção cuja explicação
buscada para o insólito fosse impossível, mantendo-se narrador, narratário,
personagens e leitor real em dúvida permanente, hesitantes diante das opções que se
lhe apresentam, sem o poder decidir até o final da narrativa.

Diante disto, e a partir das discussões levantadas no projeto de pesquisa


denominado como: Iluminuras do insólito na literatura latino-americana dos séculos XIX e XX,
desenvolvido desde 2021, na Universidade Estadual de Londrina, sob a coordenação
da professora Dra. Cláudia Cristina Ferreira, decidimos investigar as manifestações
insólitas e os aspectos culturais presentes nas narrativas contísticas de dois grandes
escritores da América Latina, quais sejam: Carta a una señorita en París (1951), de Julio
Cortázar, e Tens fogo? (2010), de Roberto Beltrão.
Entendemos ser necessário disseminar autores que fazem parte da realidade
dos alunos, bem como apresentar-lhes autores que nunca leram antes, ainda mais
considerando o contexto político cultural de nosso país e dos países circunvizinhos
que compartilham de algumas mazelas socio-políticas e econômicas. Somos o único
país de fala portuguesa em meio a tantos países que se comunicam em língua
espanhola. Junto a isso, consideramos que a literatura também é um componente para
as culturas e se manifesta de diversas formas de acordo com a visão de mundo do
escritor. À vista disso, ressaltamos a pertinência de aproximar os alunos de uma
realidade cultural distinta a sua, proporcionando maior pluralidade no que tange aos
conteúdos literários e linguístico-culturais em sala de aula.
Para tanto, o objetivo deste artigo é refletir sobre os dois contos selecionados
à luz do insólito ficcional e disseminar narrativas insólitas de autores latino-americanos,
a fim de ampliar o repertório literário e cultural do aluno, proporcionando aos seus
leitores interação com escritores renomados da América Latina, a fim de promover
uma contribuição na formação de qualidade e crítica dos alunos/leitores.
Isso posto, o presente artigo está organizado da seguinte forma: uma breve
apresentação do autores latino-americanos elencados; análise dos contos Carta a una
señorita en París e Tens fogo?, evidenciando as presenças do insólito e de matizes culturais;
considerações finais.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

1. Autores latino-americanos: dimensões insólitas

Como assinala Gama-Khalil (2013, p. 19), “A construção da narrativa fantástica


pode assumir variadas formas, agregar diversificados elementos e, dependendo da
maneira como é tecida a sua trama, os estudiosos delegam a ela variáveis
denominações.”. É nesse sentido, que temos as diversas terminologias para remeter ao
insólito ficcional e suas vertentes, são elas: fantástico puro ou tradicional, estranho,
realismo mágico, realismo maravilhoso, duplo, neofantástico, horror, terror, gótico e
outros.
Tal qual a diversidade de terminologias, vários são os autores de narrativas
insólitas na América Latina. Temos grandes nomes como: Julio Cortázar, Gabriel
García Márquez, Mariana Enriquez, Júlia Lopes de Almeida, Murilo Rubião, Roberto
Beltrão, Augusta Faro, Braulio Tavares, Dolores Reyes, Úrsula Antunes, dentre outros.
Tanto Julio Cortázar quanto Roberto Beltrão são escritores latino-americanos e têm
em comum a predileção pela vertente literária insólita, e na maioria das vezes acabam
circunscritos a narrativas fantásticas, ainda que tenham um olhar literário voltado para
a realidade e para práticas cotidianas. Nesse sentido, os autores colocam em seus
escritos não uma oposição entre irreal e realidade, mas uma multiplicidade de
realidades possíveis.

1.1 Julio Cortázar

Las palabras nunca alcanzan cuando lo que hay que decir


desborda el alma.

Nascido em Bruxelas, Bélgica, em 26 de agosto de 1914, Julio Cortázar foi um


escritor do Surrealismo de origem argentina. É reconhecido por suas obras de nível
extraordinário, intelectual e que foge da história convencional. Uma de suas principais
obras é a novela Rayuela (1963), porém tem outras grandes obras como: Bestiario (1951);
Modelo 62 para montar (1968) e outros. O escritor foi um fiel seguidor de outro autor de
muitas obras insólitas consagradas, Jorge Luis Borges.
Tendo uma vida bem movimentada, Cortázar manifesta em suas obras
reivindicações políticas e acaba sendo exilado de seu país, Argentina. Fazendo uso do
insólito, sua literatura é marcada por promover reflexões sociopolíticas, gerando uma
leitura crítica em relação ao contexto de sua publicação. Morre em 12 de fevereiro de
1984, em Paris, na França.
Cortáz apresenta narrativas com fortes traços da vertente insólita: realismo
mágico, como podemos ver no conto a ser contrastado.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

1.2 Roberto Beltrão

Mas Cumade não é sempre malvada. Pode ser amiga das pessoas,
se receber um agrado.

De nacionalidade brasileira, Roberto Beltrão é nascido na capital


pernambucana, Recife. Formado em Jornalismo, é um escritor de literatura fantástica
e apreciador das obras de Jorge Luis Borges. Escreveu obras como Histórias Sombrias
dos Recife Assombrado (2002), Malassombramentos (2010) e Sete Assombrações em Retratos
Falados (2015), dentre outras.
Sempre muito envolvido com o gênero, Beltrão é um leitor voraz do também
escritor Luís da Câmara Cascudo. Ainda quando criança passa os fins de semana na
companhia de seus avós no município de Cortês. Ali, ouviu muitas histórias de
assombração, despertando então, sua paixão pelo tema. É um autor que retrata a
história do seu estado e convida o leitor a participar delas de maneira intrigante e
curiosa.
Beltrão apresenta narrativas com traços das vertentes de horror e realismo
mágico, como visto em Na Escuridão das Brenhas (2013), e outros de seus livros de
contos em que sua intencionalidade é explorar o horror baseado em mitos e lendas
brasileiras. Na narrativa contísticas selecionada (Tens fogo?), constatamos o resgate do
folclore regional, resgatando as raízes culturais e identitárias, bem como os medos
tradicionais.

2. Narrativas contísticas: manifestações insólitas

O conto Carta a una señorita en París foi publicada no livro Bestiario (1951). Assim
como sugere o título, esta história é narrada como se fosse feita a leitura de uma carta,
assim, narrada em primeira pessoa, tal carta, é dirigida a uma senhorita que está
passando um tempo na cidade de Paris, na França. A personagem deixa seu
apartamento em Buenos Aires sob os cuidados de alguém, um amigo ou amiga. Desde
então, o narrador passa a expor os acontecimentos por meio da carta que escreve a sua
amiga que está viajando. Diversas situações que não poderiam ser explicadas de
maneira racional sucedem, porém, são naturalizadas.
A carta é escrita em Buenos Aires, na rua Suipacha em um apartamento que,
aparentemente, tem uma visão colonial e não muito agradável aos olhos do narrador,
introduzindo o insólito ao citar uma foto do amigo morto. Nota-se, ainda, que
identificamos um contexto marcado topograficamente, o que traz à luz especificidades

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da nação do autor Cortázar, relevando suas raízes e traços que marcam sua comunidade
linguístico-cultural, uma vez que essa rua é uma das mais conhecidas em Buenos Aires.
Andrée, yo no quería venirme a vivir a su departamento de la calle Suipacha.
[...]
Almohadones verdes; en este preciso sitio de la mesita el cenicero de cristal que parece
el corte de una pompa de jabón, y siempre un perfume, un sonido, un crecer de
plantas, una fotografía del amigo muerto, ritual de bandejas con té y tenacillas de
azúcar. (CORTÁZAR, 1951, p. 12. Grifos nossos.)

A respeito dos aspectos culturais, podemos constatar, também, a menção a


Buenos Aires e a elementos histórico-culturais de origem hispânica, não somente
portenha, como saetas (cântico religioso espanhol, copla cantada em Andaluzia),
pasodobles (marcha militar espanhola de ritmo binário acelerado, cuja velocidade
possibilitava 120 passos por minuto, daí a denominação, visto que consistia no dobro
de passos), Miguel de Unamuno (que foi um ensaísta, dramaturgo, romancista e poeta
espanhol – Salamanca) e Bernardino de la Trinidad González Rivadavia y Rivadavia (primeiro
presidente argentino – 1780-1845).

[...] hasta que septiembre la traiga de nuevo a Buenos Aires


(CORTÁZAR, 1951, p. 12. Grifos nossos.)

[...] como Sara es también amiga de saetas y pasodobles


(CORTÁZAR, 1951, p. 14. Grifos nossos.)

[...] yo que quería leerme todos sus Giraudoux, Andrée, y la historia argentina de
López que tiene usted en el anaquel más bajo
(CORTÁZAR, 1951, p. 15. Grifos nossos.)

[...] detrás del retrato de Miguel de Unamuno


(CORTÁZAR, 1951, p. 15. Grifos nossos.)

[...] y la presidencia de Rivadavia que yo quería leer en la historia de López.


(CORTÁZAR, 1951, p. 15. Grifos nossos.)

No introito da narrativa, podemos observar o desgosto do narrador ter que


viver no apartamento da sua amiga Andrée, não pelos coelhinhos, mas pelo fato de ter
que estar em um conjunto fechado. Ou seja, em um condomínio onde talvez ele não
sinta a liberdade que sentiria em um apartamento que tem um ar antigo e pós-colonial
ao mesmo tempo.

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Mais adiante, o narrador retoma relata o dia em que iniciou a escrita da carta.
Ele descreve o dia como chuvoso, nublado e de ar melancólico, e justifica que começou
escrever a ela, por este motivo, mas principalmente pelos coelhinhos: “Le escribo por
eso, esta carta se la envío a causa de los conejitos, me parece justo enterarla; y porque
me gusta escribir cartas, y tal vez porque llueve” (CORTÁZAR, 1951, p. 13).
Para ele é nítido que a dona do apartamento deve saber o que está acontecendo
e como ele se sente diante de uma situação que pode não ser muito bem interpretada
por terceiros, então decidiu escrevê-la em um dia chuvoso, inquietante, que condizia
com a situação. Em seguida, o narrador explica como se deu os preparativos para a sua
mudança para o apartamento, e é então, que começa a desenrolar uma história
intrigante, o narrador sente vontade de vomitar coelhinhos: “Justo entre el primero y
segundo piso sentí que iba a vomitar un conejito. Nunca se lo había explicado antes,
no crea que por deslealtad, pero naturalmente uno no va a ponerse a explicarle a la
gente que de cuando en cuando vomita un conejito” (COTÁZAR, 1951, p. 13).
Enquanto explica sobre a situação em que se encontrava no elevador, o próprio
narrador reconhece que não é natural explicar que às vezes ele vomita coelhinhos.
Contudo, ocorre uma normalização, por parte dele, no que tange a essa ação visto que
ela acontece quando ele se encontra só. Comunica a Andrée que não está sendo desleal,
apenas ocultando algo, assim como muitas pequenas coisas que guarda quando
acontece em uma intimidade total.

No me lo reproche, Andrée, no me lo reproche. De cuando en cuando me ocurre


vomitar un conejito. No es razón para no vivir en cualquier casa, no es razón para
que uno tenga que avergonzarse y estar aislado y andar callándose.
[...]
Cuando siento que voy a vomitar un conejito, me pongo dos dedos en la boca como
una pinza abierta, y espero a sentir en la garganta la pelusa tibia que sube como una
efervescencia de sal de frutas. [...] Saco los dedos de la boca, y en ellos traigo sujeto
por las orejas a un conejito blanco. El conejito parece contento, es un conejito
normal y perfecto, sólo que muy pequeño, pequeño como un conejito de chocolate
pero blanco y enteramente un conejito. (CORTÁZAR, 1951, p. 14. Grifos nossos.)

Ainda que a questão seja inquietante para o leitor, aos olhos do narrador, retirar
coelhos de sua garganta é algo comum, naturalizado, possível. Apenas introduzindo os
dedos na boca, agarrando os coelhos pelas orelhas, é que ele os expelia. Eram coelhos
como qualquer outro, portanto continuava a sua vida assim como tantos que compram
coelhos em lojas. O que deixa o leitor reflexivo é que era sempre entre o primeiro e
segundo andar, como se houvesse algo específico ali, porém não revelado, paira-se um
mistério: “Entre el primero y el segundo piso, Andrée, como un anuncio de lo que
sería mi vida en su casa, supe que iba a vomitar un conejito.” (CORTÁZAR, 1951, p.
14).
Assim seria a vida no apartamento enquanto estivesse cuidando do recinto,
essa sensação de medo ou de que outros interpretassem a situação como estranha,

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anormal. Mas o que também sabemos é que vomitar coelhos era um costume, um
hábito, aí está o insólito, a naturalização de tamanha situação. Após um mês ele dava
o coelho de presente, e assim o ciclo repetia depois de o animal ficar no trevo plantado
em sua varanda por um tempo. Mesmo na presença de animais tão normais, fofinhos,
peludos e que não faziam mal a ninguém, é perceptível na carta uma mudança de
atitude no que se refere aos bichos

Me decidí, con todo, a matar el conejito apenas naciera. Yo viviría cuatro


meses en su casa: cuatro -quizá, con suerte, tres- cucharadas de alcohol en el
hocico. (¿Sabe usted que la misericordia permite matar instantáneamente a
un conejito dándole a beber una cucharada de alcohol? Su carne sabe luego
mejor, dicen, aunque yo... Tres o cuatro cucharadas de alcohol, luego el cuarto
de baño o un paquete sumándose a los desechos.). (CORTÁZAR, 1951, p. 15.
Grifos nossos.)

O personagem viveria por quatro meses na casa e continuar escondendo, em


seu quarto, tantos coelhos seria impossível. Além disso, havia Sara, a empregada. Como
iria explicar o fato de ter coelhos que destroem cada parte do quarto? Ele então se vê
na posição de matá-los como uma alternativa e como eles estavam surgindo em tempos
mais curtos o medo lhe tomou conta. Ele, então , imagina como é matar um coelho e
como a sua carne vem a ter um melhor sabor após ingerir álcool, como se não bastasse
matá-lo, pensa em comer sua carne. Ainda que possa ser visto como algo cultural, é
incomum ver um ser humano comendo carne de coelho, pelo menos no ocidente. No
entanto, o sentimento de morte pelo coelho era algo passageiro e lhe faltava coragem
para tal façanha, como podemos ver em: “Comprendí que no podía matarlo” (CORTÁZAR,
1951, p. 17).
Faltava-lhe proeza e se nota um sentimento pelos coelhos que ao mesmo
tempo causavam problemas, mas que também o deixavam alegre. Após esse episódio,
notamos que o protagonista expõe que passou a vomitar coelhinhos de outras cores,
o que em nossa leitura é uma transição do estado emocional do protagonista. Ao sentir
coisas boas, vomita coelhinhos brancos, e ao sentir coisas ruins, vomita coelhinhos
pretos, como visto em: “Pero esa misma noche vomité un conejito negro. Y dos días
después uno blanco. Y a la cuarta noche un conejito gris.” (CORTÁZAR, 1951, p. 17).
O narrador apresentava medos, um deles era que Sara descobrisse sua situação
naquele quarto. Assim, mantinha o quarto sempre trancado, o que deixava a empregada
cada vez mais curiosa, mas não o bastante para perguntar o porquê, o que lhe motivava.
Neste sentido, o narrador escreve a carta para comunicar a Andrée sobre os
acontecimentos, mas para ter uma reposta em que conseguisse ao menos deter a
situação, consertando os objetos danificados pelos doces animais.
A situação se tornou incontrolável e o documento era como uma explicação
com um pedido de desculpas pela amiga encontrar a casa em ruínas e com artefatos
quase irrecuperáveis

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Basta ya, he escrito esto porque me importa probarle que no fui tan culpable en
el destrozo insalvable de su casa
Anoche di vuelta los libros del segundo estante; alcanzaban ya a ellos, parándose o
saltando, royeron los lomos para afiliarse los dientes- no por hambre, tienen todo el
trébol que les compro y almaceno en los cajones del escritorio. Rompieron las cortinas,
las telas de los sillones, el borde del autorretrato de Augusto Torres, llenaron de pelos
la alfombra y también gritaron, estuvieron en círculo bajo la luz de la lámpara, en
círculo y como adorándome, y de pronto gritaban, gritaban como yo no creo que
griten los conejos. (CORTÁZAR, 1951, p. 21. Grifos nossos.)

Porém, pelo sentimento que tem pela amiga, o narrador não lhe enviará a carta
e sim esperará que ela chegue de Paris, porque mesmo com problemas em Buenos
Aires, ele não queria atrapalhar a sua amiga que estava na França. Assim, a carta só será
entregue quando a amiga retornar de sua viagem: “Dejaré esta carta esperándola, sería
sórdido que el correo se la entregara alguna clara mañana de París” (CORTÁZAR,
1951, p. 22).
Como vimos, neste conto, a verossimilhança está no desencadeamento de
situações dadas a partir da mudança temporária do narrador-personagem, para casa de
sua amiga. Por meio de vômitos em que os produtos são coelhinhos, há a instauração
do insólito que é naturalizado pelo modo de narrar.
A descrição do cotidiano, feita pelo narrador em primeira pessoa, aparenta ser
banal, mas há aí uma ilusão da realidade, uma vez que seres humanos não vomitam
coelhinhos, de fato. É neste sentido que entendemos que o conto pode ser lido pelo
viés do insólito, segundo o que apregoa Roas (2014), uma vez que abarca o
sobrenatural como parte do cotidiano. Nas palavras de Roas, outra estratégia do
insólito é: “desnaturalizar o real e naturalizar o insólito, isto é, integrar o ordinário e o
extraordinário em uma única representação do mundo” (ROAS, 2014, p. 36).
Por sua vez, o conto “Tens fogo?”, foi publicado no livro Malassombramentos
(2010) junto a outros contos que possuem o Recife como cenário. O título da obra
que reúne as narrativas contísticas (Malassombramentos) antecipa o resgate de
personagens presentes, outrora, no imaginário coletivo, os quais assombravam a
comunidade de Recife e que Beltrão (2010) resgata, avivando ou relembrando o
folclore regional e, consequentemente, preservando/restaurando personagens
peculiares que tanto inspiram narrativas e povoam nosso imaginário, constituindo-se
parte da história e identidade de um povo. O relato em primeira pessoa do singular
(narrador personagem) é uma estratégia de narrativas insólitas para gerar maior efeito
de realidade, envolvendo o leitor e, assim, contar com sua credibilidade, além de tê-lo
como seu cúmplice nos acontecimentos.
Apresentando aspectos que fazem parte do universo insólito, o conto relata
uma situação macabra no bairro Recife, no início da ponte Maurício Nassau. O
personagem que deve atravessar o rio para chegar até a parada de ônibus se depara
com algumas situações estranhas e inexplicáveis que lhe causam arrepios. A narrativa

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apresenta parte do estado pernambucano e envolve o leitor a vislumbrar-se na capital


nordestina.
Na história de Roberto Beltrão, já podemos imaginar um ambiente noturno,
escuro e deserto. As noites são interpretadas por muitos como propícias para
atividades fúnebres, e assim sucede, pois ali é menos provável deixar um rastro,
resquícios que algo aconteceu. Por conseguinte, é comum encontrar este tipo de
ambiente nas histórias desse autor brasileiro.
Logo no início, apresenta-se como se desenrolaram os acontecimentos: “Eu
corria, corria, querendo me proteger, querendo fugir daquele sujeito medonho. E
não tinha jeito, rapaz. Só tinha eu e ele naquelas ruas escuras e desertas O que o cara
queria comigo? Por que estava me perseguindo? Assalto não era. Só podia querer me
arrastar para o Inferno.” (BELTRÃO, 2010. p. 11. Grifos nossos.).
Cabe mencionar que a situação ocorre em uma noite de sábado, dia da semana
em que casualmente as pessoas saem de sua rotina para realizar atividades de ócio e
muitas vezes se deslocam a outras partes da cidade. Deste modo, o personagem vai até
o bairro Recife acompanhado de amigos para assistir a um show. Após o evento, ele
decide ir para casa, porém de ônibus o que levaria um pouco mais de tempo, para tal
ação deveria andar desde o bairro Recife até o Boa Vista para então conseguir
condução. Durante o caminho, ele faz a descrição do que podemos imaginar uma
cidade colonial e quente, assim como Pernambuco: “E têm aqueles prédios antigos,
alguns são ruínas, com aqueles janelões de madeira quebrados, cadeados enferrujados
trancando as portas, pintura toda descascada. É impressionante como a gente só nota
esses detalhes quando anda sozinho por lá.” (BELTRÃO, 2010. p. 11. Grifos
nossos.)
A passagem do texto faz com que reflitamos sobre os nossos medos ao passar
por determinados lugares quando estamos sozinhos, ainda mais à noite. No caso do
bairro Recife, ele faz medo à noite, ainda mais com pinturas descascadas, caminhos
desertos. Muitas vezes, com a correria do dia a dia, não reparamos nos aspectos físicos
dos locais por onde passamos, mas sozinhos e com medo, observamos com atenção
até uma mosca passando lentamente.
Para colaborar com o ar de mistério e causando certo arrepio e medo no leitor,
logo que o protagonista inicia sua travessia, vem um sujeito em sua direção, de quem
o narrador personagem faz uma breve descrição e tenta desviar o caminho. Neste
excerto, nota-se o resgate do tradicional personagem boêmio que permeia o imaginário
coletivo, sobretudo o clássico do carioca de outrora, remetendo a aspectos culturais e
identitários, embora engessados e estereotipados

Nisso veio em minha direção um sujeito esquisito. Fiquei logo desconfiado. Mesmo
assim, achei melhor não mudar de calçada para não dar bandeira. O cara estranho
mesmo, fazia um estilo boêmio antigo, usava paletó branco e um chapéu tipo
Panamá caído sobre os olhos, como que cobrindo o rosto. (BELTRÃO, 2010. p. 11.
Grifos nossos.).

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Atravessar uma ponte pela noite, em um local não muito agradável, talvez um
horário em que os “fantasmas” saiam para brincar, não seja o melhor sentimento.
Imagina então deparar-se com alguém do qual o rosto lhe provoca repulsa. O indivíduo
tido como malandro que lhe pede fogo, tinha a face em decomposição, desfigurada,
causando repugnância, aflição, pavor e incômodo.

Mas não dava. Olhei o cidadão para dizer que estava sem fogo mesmo e fiquei mudo
ao reparar o rosto dele. Dava nojo, entende? A cor da pele era estranha, meio
arroxeada, parecia até aqueles cadáveres usados nas aulas de anatomia – na época,
já estava estudando medicina. Deu uma agonia horrível. (BELTRÃO, 2010. p. 11.
Grifos nossos.).

Ele se depara com um rosto em estado de decomposição, uma pele já de cor


estranha. Logo ele, estudante de medicina, se encontra com um rosto igual ao que
usava em seu curso universitário, lhe dava nojo, não sabia como explicar, mesmo com
medo ele ainda tenta se conter e seguir adiante. “Pela voz, imaginei que a garganta dele
estava cheia de cacos de vidro. Fiquei arrepiado e senti meu estômago revirar. As
pernas tremiam. (BELTRÃO, 2010. p. 12. Grifos nossos).
A construção gramatical também revela língua e cultura imbricadas, ou seja,
usamos uma afirmativa seguida de negativa para combater o pensamento, neste caso,
do cadáver, em vez de negar diretamente. Este é um exemplo que explicita uma
estrutura do português do Brasil, de uso coloquial, como se constata: “_ Tô
assombrado não, amigo. Tô sem fósforo, sem isqueiro... Desculpa ai e dá licença!”
(BELTRÃO, 2010. p. 12. Grifos nossos).
Outros aspectos que emergem a fraseologia como forma de explicitar língua e
cultura em relação de espelho ou como duas faces da mesma moeda (DURÃO, 2002;
FERREIRA, 2018, 2020a, 2020b, 2021) e evidencia matizes culturais peculiares a uma
comunidade linguístico-cultural X e não Y, refere-se à linguagem coloquial sob a
perspectiva das gírias, expressões idiomáticas, léxico tabu e interjeições, como se
constata nos fragmentos a seguir:

Resolvi ir para casa, tava cansando, sem saco, com sono, sei lá. Catei uns trocados
no bolso e vi que estava quase liso. A grana não era suficiente (BELTRÃO, 2010, p.
11. Grifos nossos)

Vai te danar! (BELTRÃO, 2010, p. 12. Grifos nossos)

_ Ei, boy! Vai pra tua casa, que teu pai deve tá preocupado, visse? (BELTRÃO, 2010,
p. 12. Grifos nossos)

Após responder ao moço que levava em sua garganta cacos de vidro, ele tenta
sair o mais rápido possível, porém, recebe um pedido um tanto intrigante: fazer

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companhia ao tal moço do chapéu Panamá. Prontamente começa a correr e ao virar


para olhar o malandro, já não estava, havia sumido. Contudo, ao se virar se choca com
a podridão: “Mas, quando me virei, estava ele lá, na minha frente de novo. Pense no
susto que eu levei. Nessa hora, senti um cheiro de carne podre e percebi que vinha
daquela criatura. O hálito dele dava vontade de vomitar” (BELTRÃO, 2010. p. 12.
Grifos nossos).
São vários os aspectos mencionados ao longo da história que caracterizam o
sujeito como algo impossível, isto é, sobrenatural, fora do normal, uma situação
singular, se compararmos às explicações racionais, segundo as leis naturais que regem
o nosso mundo. Garganta com vidros, hálito de uma boca já em decomposição. cheiro
de carne podre, adjetivos depreciativos no que tange as características para nomeá-lo.
O indivíduo em estado de putrefação então menciona em tom sarcástico: “- Pra que
essa ligeireza, sujeito? Não vá embora agora não, que a noite tá só começando.”.
(BELTRÃO, 2010. p. 12. Grifos nossos).
O “morto vivo”, enquanto ri da situação, passa a seguir o protagonista pelos
mais diversos pontos da cidade. Até que ele consegue chegar a um local mais
movimentado e pegar um ônibus. Quando o protagonista pensa ter acabado, um
momento inesquecível ainda estava por acontecer. Mesmo recorrendo a atividades
religiosas e rezando para que aquilo acabasse, ao descer do ônibus ele se encontra
novamente com o monstro:“- Ia me deixar sozinho, amigo? [...] Antes de desmaiar,
só lembro a risada debochada e o brilho dourado daquela boca sebosa.”. (BELTRÃO,
2010. p. 13. Grifos nossos).
A noite que deveria ser a mais divertida, prazerosa acabou se tornando um
motivo de pesadelo e resistência, pois apenas o fantasma se divertiu e acabou fazendo
mais uma vítima, até que o dia viesse a aparecer novamente. Com isso, o medo é criado
e ele já não quer mais ver shows no Bairro do Recife.
Pudemos perceber que neste conto, o insólito instaura-se a partir da aparição
moço do chapéu Panamá. Tal aparição, é uma lenda no nordeste brasileiro, e refere-se
ao personagem Boca-de-ouro4, o boêmio das noites. Ele, assim como no conto,
aborda homens caminhando pelas ruas, a fim de emprestar um isqueiro. Tendo ou não
o fogo para oferecer, a vítima toma um grande susto quando percebe que boêmio
misterioso tem a cara carcomida de um cadáver apodrecido e exala um forte cheiro de
enxofre.
Diferentemente do conto anterior, este apresenta tons de horror. Faz com que
seu leitor tenha uma emoção específica: medo e suas variações. Há ainda uma
inquietação, sobre o fato sobrenatural que ninguém consegue explicar racionalmente,

4“O Boca-de-Ouro é um ser misterioso que, sob as vestes de boêmio, esconde um misto de
zumbi e demônio. Gilberto Freyre cita, no livro “Assombrações do Recife Velho”, que essa
visagem não era exclusiva do Recife, tendo também sido registrada em outras cidades do Brasil.
É uma assombração cujas primeiras aparições datam do início do século XX.” (BELTRÃO,
2010, p. 14)

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nem mesmo a protagonista que ficou de cara com moço do chapéu Panamá, mas que
ao raiar o dia é tido como doido, ou tentam explicar racionalmente tal aparição de
homem. Portanto, neste conto, há nuances de horror, em que se descreve o medo do
protagonista. Cenas em que há o gozo no mal, dados pelas risadas do corpo putrificado
provocam esse efeito, mas também, matizes do fantástico, uma vez que não
conseguimos explicar tal acontecimento, desafiando assim, a razão.

Considerações Finais

Em nossa leitura do conto de Cortázar (Carta a una señorita en París), verificamos


que a vertente realismo mágico fez-se presente, uma vez que houve no conto a
desnaturalização do real e naturalização do insólito. Os vômitos de coelhinhos foram
facilmente naturalizados por conta das estratégias e recursos literários utilizados pelo
autor. Já no conto Tens fogo, de Roberto Beltrão, pudemos ampliar nosso repertório
cultural ao conhecer um pouco mais sobre a lenda do Moço de chapéu Panamá (ou Boca-
de-ouro), vigente em algumas cidades brasileiras, da região do nordeste. Pudemos ainda,
verificar o conto apresentou tons de horror e nuances do fantástico. O medo causado
na protagonista bem como a aparição e sumiço repentino do Moço de chapéu Panamá,
não podem ser explicados de acordo com as leis naturais, ou seja, racionalmente.
Do ponto de vista cultural, podemos notar que o conto de Cortázar apresenta
a realidade hispânica (mais no âmbito global), sobretudo, argentina, com personagens
e cenários permeados por matizes que remetem à história, às ruas, à dança e à música
onde o espanhol impera. Por outro lado, a narrativa de Beltrão traduz o regionalismo
e o folclore tipicamente de Recife (local), demonstrando o linguajar, a seara toponímica
e hábitos, como a menção ao carnaval, mais restritas a uma região/estado/cidade.
Por termos países hispânicos como vizinhos, que partilham de muitos aspectos
culturais, há um leque de possibilidades para trabalhar com o resgate de contos
folclóricos, mitos, lendas e histórias que permeiam nosso imaginário, didatizando essas
narrativas em prol do ensino e transformando a sala de aula em um ambiente de resgate
e valorização linguístico-cultural, retratando aspectos regionais que refletem nossa
história, nosso povo, nosso cenário e, consequentemente, nossa identidade.
Quanto à perspectiva do insólito presente em ambas as narrativas, podemos
verificar que as vertentes não convergem, visto que no conto de Cortázar podemos
enquadrá-lo como realismo mágico, enquanto que no conto de Beltrão, classificamo-
lo como fantástico por haver nuances de mistério, medo, angústia, horror.
Em suma, pontuamos que o insólito possibilita abarcar personagens, temas e
contextos que representam uma minoria esquecida, silenciada ou
desvalorizada/menosprezada por muitos. Dessa forma, situações históricas e de
conflitos sociais, apresentando um pouco mais do nosso universo latino-americano
podem ser contemplados e visibilizados, a partir do insólito como pano de fundo para

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denúncias e conscientizações. Por isso, a implementação de narrativas insólitas em sala


de aula é necessária, porque além de nos fazer pensar sobre tais questões, auxiliará os
leitores no desenvolvimento do prazer pela leitura de textos literários de escritores de
nosso continente e que evidenciam realidades (ou imaginários) das quais
compartilhamos. Para além de despertar ou fomentar a leitura, o insólito pode ser
instrumento de sensibilização, acolhimento, reflexão, criticidade, transgressão,
reivindicação, luta não apenas individual, mas que pode representar toda uma classe.

Referências

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literraria. XI SIHL - Seminário Internacional de História da Literatura. ACTAS [...]
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<https://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/sihl/#/publicacao>. Acesso em: 22 sep. 2021.

ROAS, David. Em torno a uma teoria sobre o medo e o fantástico. Trad. de Lara
D’Onofrio Longo. In: VOLOBUEF, Karin; WIMMER, Norma; ALVAREZ,
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SILVA, Gisele Antônia.(2011) O espaço do insólito na literatura brasileira: um


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José J. Veiga. Disponível em:
<https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/508/o/Gisele_Antonia_da_Silva.pdf>. Acesso
em: 21 sep. 2021.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

ROTEIRO CINEMATOGRÁFICO: UMA PROPOSTA


DIDÁTICA

Stefany Cauany Santos Bernardo1

Resumo: Ao longo dos anos, a relação entre cinema e educação passou a ser tema de
alguns estudiosos, voltando suas pesquisas para a sétima arte, tendo em vista a
utilização educacional de filmes. O presente artigo tem por objetivo apresentar uma
proposta didática do momento inicial da criação cinematográfica: o roteiro, visando a
utilização desse texto efêmero para o ensino de Língua Portuguesa. O fundamento
teórico deste artigo está pautado na revisão dos seguintes autores: Duarte (2002);
Deleuze e Guattari (1995); Field (2001); Freire (1996), Verzola (2021), entre outros.
Abordaremos ainda o tema em prática, exemplificando seu uso voltado para o ensino
da Língua Portuguesa, destarte, apresentaremos a importância do aluno conhecer e
compreender um roteiro cinematográfico, peça importante para qualquer produção
audiovisual.

Palavras-chave: Cinema; Língua Portuguesa; Roteiro.

Introdução

Sem dúvida a produção audiovisual é algo presente no cotidiano, seja na mais


simples forma de comunicação - vídeo para aplicativos - à mais elaborada obra -
grandes produções cinematográficas. Com mais de cem anos de história, o cinema
originou-se, após a utilização de um cinetoscópio, em 1894, essa produção pode ser
considerada insatisfatória por conta da duração, mas, em 1895 os irmãos Lumière
foram responsáveis pela realização de tal feito: um filme curta. Destarte, é certo que
grande parte da população já assistiu algum filme, seja em cinema, televisão ou celular.
Levando em conta o processo de criação de uma produção cinematográfica, é
necessário, fora o elenco de cena, profissionais de diversas áreas do audiovisual, sendo
que, a contratação desses profissionais variam de acordo com o orçamento concedido
para a criação cinematográfica. Desses profissionais, vale ressaltar, os essenciais para a
elaboração do projeto, são estes: o Produtor, o Diretor, o Roteirista, o Assistente de
Produção e o Diretor de Arte, que juntos são responsáveis por transformar o roteiro
em uma produção audiovisual.
Atentando-se ao processo de criação audiovisual, especificamente a produção
cinematográfica, nos deparamos com a utilização do roteiro, esta forma literária
momentânea de pré-produção possui características específicas e necessárias para a

1 Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: stefany.bernardo@uel.br.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

compreensão de todos os envolvidos na criação da obra cinematográfica. É de referir


que o roteiro é visto como um guia de criação e não um documento, sendo assim, sua
importância se dá apenas na preparação do filme, assim que a obra é concluída o roteiro
perde sua importância no mercado.
Tendo em vista essas informações, o presente artigo tem o intuito de
apresentar uma proposta para a utilização do roteiro cinematográfico em sala de aula,
dando a importância do uso no ensino da disciplina de Língua Portuguesa. O trabalho
também sugere alguns dos conteúdos desta matéria que podem ser trabalhados
utilizando do roteiro cinematográfico, apresentaremos também exemplos de atividades
para se aplicar em uma aula, buscando uma maior interatividade entre aluno e
professor, visando a multidisciplinariedade que o uso de um roteiro cinematográfico
pode apresentar.

2 Produção Cinematográfica em Sala de Aula

Na década de 1910, no Brasil, iniciaram o uso de produções cinematográficas em sala


de aula, sendo em 1916 na cidade de Rio de Janeiro, inspetores escolares da Rede
Municipal organizaram-se para a criação de um projeto: O Cinema Escolar, que tinha
por objetivo a utilização de produções cinematográficas no ambiente escolar, sendo
assim, os fundadores do projeto financiaram a produção de filmes educacionais, esses
foram intitulados “fitas pedagógicas”, entretanto, atualmente temos apenas o acesso
às informações registradas da época.
Desta maneira a produção cinematográfica em sala de aula, atualmente,
restringe-se a utilização de filmes voltados para a educação, deste modo o professor
Marcos Napolitano, sugere em seu livro Como Usar Cinema em Sala de Aula (2003) a
utilização do cinema comercial em sala de aula, ou seja, o autor propõe o uso de filmes
que não são feitos com o propósito educacional para a elaboração das atividades, como
apresentado:

Tendo o professor como mediador deve propor leituras mais ambiciosas além do puro
lazer, fazendo a ponte entre a emoção e razão de forma mais exigente e crítico,
propondo relações de conteúdo/linguagem do filme com o conteúdo escolar. Este é
o desafio. (NAPOLITANO, 2003 p. 9)

Em vista disso, trabalhar com o auxílio das produções cinematográficas e sua


versatilidade de conteúdo, contribui para o desenvolvimento cognitivo, promovendo
reflexões e debates sobre o tema tratado na obra, assim, podem auxiliar para a
compreensão de determinados conteúdos tais como: político-social, cultural, histórico,
dentre outros. Além disso, salienta que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (1996) no item 8º define a produção de filmes produzidos no Brasil, no
mínimo de duas horas mensais de acordo com o projeto pedagógico.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Os avanços tecnológicos da contemporaneidade influenciaram nas produções


cinematográficas, consequentemente a melhora nas técnicas de filmagens e edições
concederam uma maior imersão ao mundo ficcional, seja ele fantástico ou a
representação do real. Essas mudanças influenciam no modo dos telespectadores se
identificarem com as personagens, criando empatia ou até repulsa de determinadas
ações. Considerando essas informações, trabalhar filmes em sala de aula vai além da
visualização de um tema, mas na interpretação da obra como um todo.

3 Roteiro Cinematográfico

Antes de qualquer produção audiovisual é necessário a criação de um roteiro,


que servirá como um norteador para a criação do material audiovisual. O roteiro é uma
criação efêmera, ou seja, só existe durante o tempo que leva para ser convertido em
um produto audiovisual, conforme apresentado na obra O Manual do Roteiro, do
escritor Syd Field (1995 p.11-12) “O roteiro é uma história contada em imagens,
diálogos e descrições, localizada no contexto da estrutura dramática.”
Consequentemente, o roteiro é uma orientação escrita para a produção audiovisual.
Este documento utilizado antes e durante a gravação das produções
audiovisuais não possuem um modelo padrão, sendo o principal tópico em comum a
utilização de três atos, de acordo com Field (1995) um roteiro audiovisual é subdividido
em: I ato (inicio), Plot Ponto I (ponto de virada), II ato (meio), Plot Point II (ponto de
virada/clímax) e III ato (fim), contudo existem algumas características que distinguem
o roteiro, por conseguinte os principais tipos de roteiro são: roteiro cinematográfico,
roteiro teatral, roteiro televisivo, roteiro de série (bíblia), entre outros.
Dando a importância às principais características para o planejamento de um
roteiro, apresentaremos noções básicas de um roteiro cinematográfico, sendo elas: a
Story Line, Sinopse, Argumento, Escaleta e o roteiro em si. Para a produção de um
roteiro comercial (quando é enviado para análise, com finalidade de um produto
audiovisual), é necessário um softwares específico, que adequa e edita o roteiro com
todas as características exigidas, na fonte correta (Courier New, 12), espaçamento e
margens. Existem diversos softwares gratuitos disponíveis na internet, sendo o mais
conhecido o Celtx.
Com finalidade de trabalhar roteiro cinematográfico em sala de aula é
necessário conhecer a estrutura do mesmo, posto isso pontua-se três essenciais pontos:
o cabeçalho - que indica o local, o horário onde a cena será, sempre aparece em cada
início de cena; a ação - é o momento onde inicia a descrição das cenas, personagens e
locais; por fim os diálogos - aparecem sempre na linha abaixo do nome do personagem,
os diálogos são todos escritos no discurso direto. A estrutura de um roteiro vai além
desses tópicos citados, entretanto, sem cabeçalho, ação e diálogo não se faz um roteiro.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

4 Porquê Trabalhar Roteiro Cinematográfico?

Dentre todas as técnicas e materiais utilizados na produção audiovisual,


trabalhar o roteiro cinematográfico é o que têm menor destaque, entretanto as questões
linguísticas e estruturais que ele possui podem ser utilizadas em sala de aula,
principalmente na disciplina de Língua Portuguesa. Deste modo, explorar as técnicas
aplicadas na construção do texto para ministrar conteúdos das áreas dessa matéria
como: gramática, interpretação textual e literatura tem o potencial de criar um ambiente
mais interativo e dinâmico.
É importante perceber que o produto audiovisual, assim como é apresentado
na obra de Elí Henn Fabris (2008) que “o cinema é formado por um complexo sistema
de linguagens que nos desafia permanentemente no processo de compreendê-lo” (p.
121), deste modo, entender as linguagens básicas dessa produção cinematográfica,
principalmente as noções de roteiro, destacada anteriormente, pode ser uma assessoria
para a elaboração das aulas, realização das atividades em sala e para a preparação de
uma tarefa escolar.
Vale frisar os estudos de Paulo Freire, especificamente, em seu livro, Pedagogia
da Autonomia (1996), onde apresenta que a prática educativa precisa ser exercida com
alegria, com curiosidade, pois, procurar e pesquisar meios para transmitir o
conhecimento, inovando em sala de aula sem abandonar o conteúdo base do ensino,
transforma o ambiente escolar mais afetivo, interativo, gerando uma esperança em
todos os envolvidos, facilitando o processo de construção do conhecimento, alicerça
esse pensamento no trecho:

Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A


esperança de professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos,
produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria. (FREIRE, 1996,
p. 43)

É fato que o professor possui diversas ferramentas e recursos metodológicos


para elaboração da sua aula, como proposta a utilização do roteiro cinematográfico em
sua aula, além de exibir algo novo aos discentes, possibilita o aluno a aprender o
conteúdo proposto na grade curricular, desenvolvendo-os e aprimorando-os em
questões como: organização, interpretação textual, estruturação de textos, escrita
criativa, enriquecimento do vocabulário, trabalho em equipe, interação aluno-aluno e
com o professor.

5 Proposta Didática

Tendo claro os motivos para o emprego do roteiro cinematográfico nas


elaborações de aula, exemplificaremos algumas propostas didáticas do seu uso na

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

disciplina de Língua Portuguesa e também apresentaremos uma proposta


multidisciplinar envolvendo essa disciplina com a de Arte. As atividades propostas
possuem um caráter mais lúdico e interativo transformando o ambiente, conforme dito
por Freire “O bom clima pedagógico-democrático é o em que o educando vai
aprendendo à custa de sua prática...” (1996, p. 85)
Enfatiza-se ainda que as atividades sugeridas foram pensadas após a leitura do
livro Aula Nota 10: 49 técnicas para ser um professor campeão de audiência, de Doug
Lemov (2011), que além das técnicas propõem aulas mais dinâmicas, respeitando
limites dos alunos e do ambiente escolar. Dentre os assuntos tratados na obra,
evidenciamos a técnica de número 4: Boa Expressão, um método que desenvolve a
comunicação dos alunos, extraindo deles toda expressividade e o conhecimento de
linguagem para estabelecer uma conversa.
Sendo assim, a primeira proposta multidisciplinar é a produção de roteiro com
base nas obras literárias, inicialmente, na disciplina de Língua Portuguesa, a pesquisa e
leitura de um clássico da literatura em grupo e em seguida a escrita de um roteiro de
uma produção de curta metragem. Posteriormente, na disciplina de Artes, a orientação
para a produção audiovisual desse roteiro. O processo de avaliação seria a correção do
roteiro, verificando se realizaram a leitura da obra, questões gramaticais (coesão e
coerência) e no vídeo a postura, dicção, entonação, entre outras questões
comunicativas.
A próxima sugestão de atividade é o uso de roteiros brasileiros para trabalhar
a variação linguística, nesse momento pode ter o auxílio dos filmes para representar os
fatores históricos e culturais que influenciam as variações da língua portuguesa. Para
finalizar, a última orientação é a exploração dos diálogos diretos que existem nos
roteiros cinematográficos, assim pode apresentar o discurso direto e trabalhar com a
transformação para o discurso indireto, desse modo os alunos podem entender as
características dos tipos de discurso. As principais áreas a se trabalhar com roteiro são:

Considerações Finais

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Mediante do que foi apresentado a proposta para empregar o roteiro


cinematográfico em sala de aula atentando para o ensino da disciplina de Língua
Portuguesa, os exemplos de conteúdos que podem ser trabalhados: tipos de discurso,
variação linguística, interpretação textual, clássicos da literatura, entre outros no intuito
de uma melhora no convívio, na interação entre os alunos e professor, as questões
organizacionais, de interpretação de texto, da estrutura de texto, redação criativa,
enriquecimento de vocabulário, trabalho em equipe.
O roteiro é o elemento básico norteador de todas as produções audiovisuais, é
responsável por contar uma história, mostrando através da descrição de imagens e sons
o que será visto na tela, com suas divisões de cenas e características, tais como:
cabeçalho, ação e diálogo que variam de acordo com a finalidade deste roteiro, ou seja,
se for um produto para a internet, televisão, cinema ou teatro os aspectos dessa escrita
modifica adequando-se para o produto audiovisual, não ignorando o que é exigido no
mercado audiovisual.
Ainda é pouca a utilização das produções audiovisuais em sala de aula,
entretanto os filmes educacionais, ou fitas pedagógicas como foi considerado em 1916
no Rio de Janeiro, ganham destaque, o produto finalizado acaba sendo mais simples,
por conta de ser mais acessível, todavia a utilização dessas ferramentas teóricas, seja as
inúmeras audiovisuais ou as mídias sociais, possibilitam além da utilização de questões
que fazem parte do dia-a-dia dos alunos, um aprimoramento no conhecimento de
mundo sem deixar o conteúdo programático de lado.
Com isso, trabalhar com roteiro cinematográfico em sala de aula é uma
proposta nova e que exige conhecimento, dedicação, mas expõe uma parte pouco
falada quando se trata de produção audiovisual, ademais desenvolve o aluno,
apresentando uma possível carreira profissional. Além de poder incorporar práticas de
discussões das produções audiovisuais com um grupo de alunos variados, esse meio
de ensino é uma maneira eficaz de continuar inventando novos métodos pedagógicos
para auxiliar a ministração dos conteúdos.

Referências

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LEI Nº 9.394, 20 de


dezembro de 1996. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em 30 de setembro
2021

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,


2018.

COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

FABRIS. Elí Henn. Cinema e Educação: um caminho metodológico.


Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFRGS. v. 33, n. 1 2008. Disponível
em https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6690 Acesso em 12 de
outubro de 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 1996 (coleção leitura)

FIELD, Syd. Manual de Roteiro. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995.

DUARTE, Rosália. Cinema & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Editora 34, 1995. v.
1.

LEMOV, Doug. Aula Nota 10: 49 técnicas para ser um professor campeão de
audiência. 2. ed. São Paulo: Da Boa Prosa, 2011

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo:


Contexto, 2003

SABADIN, Celso. A História do Cinema para Quem Tem Pressa. 1. ed. Rio de
Janeiro: Valentina, 2018

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

CINEMA NA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: CULTURA E


EVOLUÇÃO DOS PERSONAGENS NO FILME CUBANO
MORANGO E CHOCOLATE

Valeria Verónica Quiroga1


Viviane Cristina Garcia de Stefani2

Resumo: Partindo de debates realizados no âmbito de um curso de Extensão


Universitária denominado Cinema ibero-americano: diálogos e reflexões em tempos
de pandemia, a proposta desta análise é tratar de aspectos culturais, linguísticos e
narrativos referentes aos protagonistas do filme cubano Morango e Chocolate (1997)
de Gutiérrez Alea e Tabío. Vale salientar que as autoras deste texto analisaram o filme
em vários aspectos, porém neste trabalho deter-se-ão, sobretudo, à evolução de ambos
os personagens e suas implicações no que se refere à vida política e cultural de Cuba à
época da produção, bem como à repercussão do filme nacional e internacionalmente.
A análise está baseada em estudos de Thibaudeau (2012), Ramblado Minero (2006) e
Paz (1997), os quais tratam de temáticas como homofobia, racismo, preconceito, além
de questões relativas à cultura, à identidade, à religião e às artes, como literatura e
música.

Palavras-chave: Extensão universitária, cultura, Cinema, Morango e Chocolate

Introdução

Neste texto apresentamos a dinâmica de um Curso de Extensão realizado no


primeiro semestre/ 2021 em que se divulgaram e comentaram 06 (seis) filmes ibero-
americanos. Houve análises por meio de apresentações de convidados que, juntamente
com a coordenadora do Curso, puderam responder às perguntas dos participantes, via
chat. Como este texto trata-se de uma das análises, iremos nos deter na apresentação
da prof.ª Viviane Cristina Garcia de Stefani, que se dedicou à apresentação de aspectos
culturais contidos no filme “Fresa y chocolate” ou “Morango e chocolate”, nome dado
ao filme no Brasil. Como trataremos de um curso de Extensão, houve intensa
participação de alunos que se empenharam em fazer a divulgação e análises dos filmes
no YouTube, criar o canal “Culturas e interculturas”, assim como o link com acesso
ao material produzido no curso de extensão, disponível em
https://linktr.ee/cinema.iberoamericano.

1 UFPR/ SEPT – valeria.quiroga@ufpr.br


2 IFSP/UFSCar – vivigarcia@ifsp.edu.br

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

O Curso de Extensão “Cinema ibero-americano: diálogos e reflexões em


tempos de pandemia”, está vinculado ao Projeto de Extensão “Audiovisuais:
culturas, interculturas e outras artes” coordenado por uma das autoras deste texto e
destaca-se por apresentar um dos pontos considerados na Extensão: a
interdisciplinaridade. Além dessa característica, na Extensão consideram-se outros 5
(cinco) ‘is’ a saber: (1) impacto e transformação social; (2) interação dialógica; (3)
interdisciplinaridade e interprofessionalidade; (4) Indissociabilidade entre Ensino,
Pesquisa e Extensão e (5) Impacto na formação discente. O curso, assim, no que se
refere ao aspecto de Impacto e Transformação Social, incentiva o acesso a materiais
audiovisuais, muitas vezes desconhecidos do público, o que pode brindar um impacto
aos participantes, que são estimulados a associar as questões relacionadas nas
produções, àquilo que se vive no Brasil. Em relação à Interação Dialógica, os
participantes enviaram perguntas e comentários ao chat do YouTube em que foi
apresentada cada uma das análises fílmicas. Além disso, deu-se flexibilização de acesso
ao evento, por meio da plataforma, o que, seguramente, atingiu um público mais
expressivo que um evento idealizado e realizado para um público local. Essa é a maior
adaptação à atual realidade, ou seja, ao momento de isolamento social para prevenção
de contágios por Covid-19.
Quanto à Interdisciplinaridade/ Interprofissionalidade – no Curso contamos
com convidados de áreas distintas quais sejam: filosofia, direito, história, cinema,
literatura brasileira e estrangeira entre outras artes, que enriqueceram os debates,
abordando aspectos relacionados às suas áreas.
Quanto à Indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão: o evento surge de
práticas já realizadas nas aulas de língua espanhola do SEPT – Setor de Educação
Profissional e Tecnológica, ministradas pela coordenadora do Curso de Extensão e
uma das autoras deste texto. A pesquisa, por sua vez, entra como coadjuvante, dado
que para organizar o evento foi realizada vasta investigação – tanto por parte da
mediadora, quanto dos comentaristas/palestrantes.

Metodologia

No concernente à parte metodológica do Curso de Extensão, foram


pesquisadas plataformas de acesso gratuito aos filmes. Assim, optou-se pelo uso do
YouTube. No entanto, em nossa pesquisa identificamos outras que podem ser úteis para
eventos com a mesma metodologia, considerando que objetivamos oportunizar acesso
gratuito e de qualidade à maior parte doe público interessado, sem a necessidade de
pagamentos por determinadas plataformas. Nesse sentido, certos sites podem ser
utilizados com a mesma finalidade, quais sejam: https://play.cine.ar/play.cine.ar,
http://www.retinalatina.org e https://libreflix.org/, pois apresentam obras de acesso
livre, o que é uma das premissas deste tipo de trabalho.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

No concernente à seleção de filmes para a discussão, inicialmente pensamos


em uma periodicidade não exaustiva para os participantes – que se deu a cada quinze
dias. Outro ponto importante a ser evidenciado, é que foram convidados professores
como debatedores – alguns de instituições como o IFSP, UTFPR, UEL, o que ressalta
outra premissa da Extensão Universitária: a interdisciplinaridade, bem como a
parceria/ cooperação entre Instituições. A listagem de filmes apresenta produções
oriundas dos seguintes países: Brasil, Cuba, Argentina, Espanha, Venezuela e México.
A premissa do Curso considera que esses filmes fossem assistidos antes dos debates.
Os comentários/ reflexões foram realizados via plataforma StreamYard – na qual
entraram para “a sala” a mediadora – e coordenadora do Evento –, e um/a
convidado/a. Simultaneamente, a conversa foi transmitida para o YouTube, onde os
participantes enviaram perguntas, dúvidas e comentários. Cada debate foi
disponibilizado para visualizações após o horário da apresentação, e materiais extras
foram disponibilizados aos participantes, por meio do Google Drive.
No que se refere ao Impacto na formação discente, acreditamos que direcionar
o acesso aos estudantes, bem como a profissionais de outras áreas, como já foi
apontado, pode influenciar significativamente sua formação, uma vez que os
estudantes terão acesso a filmes pouco divulgados, bem como a comentários acerca da
cultura e de outros aspectos interdisciplinares, como já mencionado anteriormente.
Ademais, trazer ao conhecimento dos participantes uma bagagem de filmes do circuito
alternativo ibero-americano, desconhecido pela maioria do público, e ainda explorando
as alternativas existentes no conceito de pandemia (internet, mídias sociais, plataformas
de streaming, plataformas de videoconferência) é algo bastante inovador.
Uma questão importante a ser levantada é que os debates ficam gravados e
podem ser assistidos assincronamente e, a partir de respostas a um questionário, os
participantes podem obter certificação – desde que vistos até o final do Evento.

O filme – Análises e Considerações

A análise do filme Morango e Chocolate, descrita neste artigo não se dispõe a dar
conta de todos os aspectos passíveis de serem analisados, mas limita-se a uma análise
parcial, em que se priorizam elementos culturais elucidados pelo filme. Incluímos
também na análise, alguns aspectos políticos de Cuba, bem como elementos narrativos
e linguísticos da trama.
É praticamente unânime entre os principais críticos de cinema que escreveram
sobre o filme Morango e Chocolate considerá-lo um dos principais filmes cubanos de
todos os tempos, e depois de quase 30 anos desde sua produção, ele continua sendo
bastante atual, daí o motivo de sua escolha para integrar os filmes do projeto “Cinema
ibero-americano: diálogos e reflexões em tempos de pandemia”, coordenado por uma
das autoras deste artigo.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Para ampliar o repertório para a discussão e análise do filme durante o debate,


nos baseamos em artigos científicos3 publicados sobre o longa-metragem; artigos de
Carlos Paz, linguista cubano, de Pascale Thibaudeau, professora na Universidade de
Paris, de Maria de la Cinta Ramblado Minero, da Universidade de Irlanda e, também,
em algumas críticas publicadas em sites específicos de críticas de cinema.
Morango e Chocolate, de Tomaz Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, é
considerado um dos filmes cubanos mais importantes de todos os tempos não
somente por ter sido indicado ao Óscar de melhor filme estrangeiro, ou pelos 23
prêmios que recebeu em diversos países, mas principalmente pelas temáticas que traz.
O filme trata de temáticas muito humanas, que nos faz perceber a evolução do
pensamento e do comportamento, a partir do contato com a arte e, principalmente, a
partir do desenvolvimento de uma amizade fundamentada no respeito às diferenças.
Entre as temáticas que permeiam o longa-metragem, destacam-se a identidade
e a cultura cubanas, o exílio, a religião, a política, a música, a literatura e arte de maneira
geral.
O crítico de cinema Sérgio Vaz (2009) apresenta 3 razões para ver Morango e
Chocolate:

1) Es una película bellísima porque es inteligente, sensible, extremadamente bien


hecha (en todos los niveles) y habla de cosas que realmente importan en la vida: el
amor, la amistad, la aceptación de lo que es diferente, lo contrario…; 2) Es una obra
de arte hecha con pasión por el ser humano, por Cuba. Es una declaración de amor a
Cuba, a la Habana, a los cubanos; 3) Es un film osado, valiente, porque cuestiona la
Revolución cubana, el gobierno de Fidel Castro, expone las heridas, la falta de libertad,
la falta de cosas básicas, el mercado negro, la vigilancia de los vecinos; y también
porque trata del homosexualismo, un tema que el gobierno rechazó (VAZ, 20094).

Morango e Chocolate é, ainda, um filme repleto de paradoxos e contradições.


Começa com uma cena de sexo, mas não trata de sedução de corpos, e sim de sedução
de mentes. E esse é apenas um dos paradoxos do filme.

3Alguns dos textos nos quais nos baseamos para análise estão disponíveis no Drive enviado
para os participantes do curso, que pode ser acesso no link:
https://drive.google.com/drive/folders/1WCsQJLV-
57DH3W329CFHVJ246GTya7MK?usp=sharing

4 Disponível em: https://50anosdefilmes.com.br/2009/morango-e-chocolate-fresa-y-


chocolate/#more-6137 . Acesso em outubro de 2021.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Alguns temas do filme e a relação com o processo de transformação de David

Morango e Chocolate5 é uma comédia dramática de 1994, com 1h51min de


duração, dirigida por Juan Carlos Tabío e Tomas Gutierres Alea, com roteiro de Senel
Paz. Conta a história de David, um estudante cubano, politicamente envolvido com o
regime de Fidel Castro, que entra em depressão quando sua namorada o deixa. Sua
vida muda quando conhece Diego, um jovem artista homossexual que vai de encontro
a seus ideais. Primeiro surge o preconceito, junto com a rejeição e suspeita, mas logo
a fascinação o domina. É um filme sobre uma grande amizade que supera a
incompreensão, intolerância e a homofobia6.
Ao longo do filme é possível observar claramente o processo de
transformação, de evolução do personagem David, e esse personagem evolui à medida
que o filme manifesta a crítica à intolerância. A princípio David tem um pensamento
dogmático, monolítico, preconceituoso, mas no desenvolvimento de sua amizade com
Diego – que aparentemente é oposto a ele em vários aspectos (da sexualidade ao gosto
artístico) – passa a ser mais tolerante, com uma forma de pensar mais matizada. Para
Balutet (2013):

(…) la crítica a la intolerancia que sería pues el objetivo de Fresa y chocolate pasa por
la confrontación de dos personajes que parecen, de buenas a primeras, totalmente
antagónicos (BALUTET, 2013, p.4).

O tema da homofobia no filme é tratado de certo modo relacionado à


revolução. O homossexual era considerado um traidor da pátria, um
antirrevolucionário, o que é possível observar nos diálogos entre David e seu amigo
Miguel, interpretado pelo ator Francisco Gattorno. Em um desses diálogos, David é
incentivado por Miguel a observar as ações de Diego para então denunciá-lo. A
homossexualidade também era tratada como doença no contexto do filme, algo que,
infelizmente, ainda reverbera na atualidade.
A autora Ramblado Minero (2006) aborda a temática da homossexualidade no
filme, relacionando-a à revolução cubana:

En Fresa y chocolate, la homofobia del partido se contextualiza a través de la relación


entre Diego y David. En este punto es necesario volver a la caracterización que se
hace de Diego como “la loca,” homosexual amanerado, frívolo a primera vista, al que
David rechaza en su primer encuentro debido a su orientación. David representa la
postura de la Revolución con respecto a la homosexualidad (…) para la cual la
homosexualidad es una enfermedad que debe y puede curarse (RAMPLADO
MINERO, 2006, p. 90)

5Título original: Fresa y Chocolate


6Sinopse adaptada do site: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-79843/. Acesso em
outubro de 2021.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Segundo Thibaudeau (2012), a homossexualidade, no filme, também está


relacionada ao exílio, mas, nesse caso, a um exílio interior. Para a autora, Diego é um
exilado por sua homossexualidade, por sua cultura e por seu olhar crítico sobre a
revolução, como podemos observar nos trechos que seguem:

En el primer Congreso de Educación y Cultura (1971), la homosexualidad es


presentada como una «patología social» a la que hay que combatir a toda costa. Se trata
de destrozar a los individuos en nombre de la Revolución, como bien muestra la
película: «Oye esto es una misión», insiste Miguel para convencer a David de que
entable relaciones con Diego con el objetivo de denunciarlo. «Le vamos a partir las
patas», exclamó David poco antes. La denuncia de la represión hacia los homosexuales
va pues más allá de una óptica liberal de alcance universal puesto que asocia,
principalmente a través del personaje de Miguel, la homofobia con la ortodoxia
revolucionaria (THIBAUDEAU, 2012, p. 3)

A autora, ao tratar do tema, traz para seu texto um diálogo entre Diego e David
sobre homossexualidade e revolução:

El film deja incluso entender implícitamente que es la exclusión de los homosexuales


por su diferencia sexual la que pudo motivar su disidencia. Diego afirma: «Yo
también tuve ilusiones. A los 14 años me fui a alfabetizar porque yo quise». Pero la
Revolución no es compatible con la homosexualidad. Cuando David le pregunta por
qué, en fin de cuentas, Diego no podría ser revolucionario, Miguel responde
brutalmente: «¡Porque la Revolución no entra por el culo!». Excluido de facto del
proceso revolucionario ¿cómo podría adherir? Esta pregunta recorre implícitamente
el film. Por eso, a medida que David descubre y reconoce la exclusión que padece
Diego, éste evoluciona a su vez desde el exilio interno hasta la expatriación forzada
(THIBAUDEAU, 2012 p. 3)

A análise feita por Thibaudeau (2012), além de relacionar homossexualidade e


revolução, enfatiza também a temática do exílio, manifestada no personagem de Diego.
Em muitos momentos do filme é possível observar a crítica à exclusão social, seja
devido à opção sexual, política ou religiosa.

A religião

O tema da religiosidade aparece em diversos momentos no filme, por exemplo,


quando menciona a santeria7. Para a autora Ramblado Minero (2006, p. 88) as origens
da santeria vem da época colonial e é uma prática estendida da todo o Caribe e outras
zonas do continente americano, e é associada à classe trabalhadora devido às suas
origens na época da escravatura. Sobre esse tema a autora escreve:

7 crença religiosa decorrente de um sincretismo de elementos europeus e africanos.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

En Fresa y chocolate, Diego y Nancy son practicantes asiduos de la santería. Ambos


personajes tienen altares dedicados a una deidad cristiana (y simultáneamente Yoruba),
la Virgen de la Caridad del Cobre –Ochún/ Oshún– en el caso de Diego, y Santa
Bárbara (Shangó o Changó) en el caso de Nancy. Además, Diego hace referencias a
los orishas y conversa a menudo con Ochún/ Oshún, pidiéndole que le garantice una
buena relación con David. En este caso, es también claro que la santería ocupa un
lugar central en la vida de Diego y Nancy. Lo que es interesante en este sentido es que
la santería no aparece como una práctica antirrevolucionaria en ninguna de las dos
obras. De hecho, aparece como expresión de la identidad cubana y no parece recibir
atención política. Esto puede ser debido a sus orígenes en la esclavitud y en la clase
obrera, concibiéndose como “la religión de los oprimidos” (RAMBLADO MINERO,
p. 89)

Interessante observar que a santeria não aparece como uma prática


antirrevolucionária, mas como expressão da identidade cubana.
Ramblado Minero (2012) explica que a identidade cubana também pode ser percebida
ao final do filme, em que se manifesta o desejo por um futuro melhor que dê
continuidade ao sonho cubano.

A música

A evolução do personagem David é marcada também – e sutilmente – por


meio da música. Isso pode ser observado em uma cena em que ele está escutando a
rádio universitária e então muda de sintonia para “ouvir outra voz”, preferindo a
música lírica em vez da voz da propaganda da rádio; ou ainda na cena na casa de Diego,
ao ouvir a cantora Maria Callas e dizer: “por que essa ilha não tem uma voz assim?”
“Que falta nos faz outra voz”. “Outra voz” pode significar também, nesse contexto,
outra forma de pensar, de agir e de ver o outro.
Thibaudeau (2012) explica que David é iniciado também na música por Diego.
Para a autora, é Diego quem traz harmonia musical para a vida de David, e a harmonia
musical o leva a estar alinhado consigo mesmo.

Dicha iniciación musical consiste también en un aprendizaje de la variedad musical,


en una apertura hacia múltiples formas posibles que permite al mismo tiempo una
reafirmación de la calidad del patrimonio artístico cubano. Pero, esta puesta de relieve
de la cubanidad musical no es exclusiva, se inscribe en un reconocimiento del arte
internacional y no en una cerrazón hosca sobre valores estrictamente nacionales unida
a una total desconfianza hacia lo extranjero (desconfianza afirmada por Miguel y
también por David a lo largo del film). No obstante, el que finalmente no tiene otro
remedio que exiliarse resulta ser uno de los mejores conocedores y defensores de la
cultura cubana. (THIBAUDEAU, 2012, p. 7).

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Interessante observar que embora apresente a arte advinda de outros países a


David, Diego continua sendo defensor da cultura cubana, em um movimento de
apreciação do que é diferente, sem negar suas origens.

A literatura

A temática da literatura permeia todo o filme, desde as primeiras cenas, em que


na sorveteria Copelia Diego tenta seduzir a David com uma obra literária do escritor
peruano Mário Vargas Llosa, até a comparação com o conto “El Lobo, el Boque y el
Hombre Nuevo, escrito pelo mesmo roteirista de Morango e Chocolate: Senel Paz. O conto
é, ainda, análogo ao conto infantil Chapeuzinho Vermelho, segundo a autora Thibaudeau
(2012). Ao fazer a analogia do conto de Senel Paz ao filme, a autora explica que o
homem novo é representado por David, que simboliza uma geração da revolução,
formada e educada por ela. O conto traz a figura do homem novo que é modificado,
que descobre a cultura cubana em toda sua diversidade, a arte universal e a tolerância
a qualquer forma de alteridade, sexual ou ideológica.

Considerações finais

Ao final do filme David se apresenta como um homem novo, assumindo seus


atos, emoções e a amizade verdadeira com Diego. E a iniciação de David em diversos
âmbitos ficou a cargo de Diego, um excluído da sociedade, mas é dentro dessa
sociedade revolucionária que David cresce, enfrenta novos horizontes e afirma sua
própria identidade (THIBAUDEAU, 2012).
A forma como os diretores do filme conduzem o exílio de Diego, ao final, leva
o espectador a entender seu ponto de vista e a não julgar os exilados como traidores
da pátria.
Assistir a Morango e Chocolate é uma oportunidade ímpar de conhecer mais sobre
a cultura cubana e as belezas de Cuba; é ainda, um exercício de alteridade, de colocar-
se no lugar do outro, de aceitar pontos de vista divergentes, de observar a evolução do
pensamento a partir da amizade e do contato com a arte. O filme nos provoca no
sentido de refletir sobre a inútil necessidade de rotular coisas e pessoas. Ora, todo
rótulo é inútil se consideramos que somos mutáveis a todo instante.
Concluindo, o Curso de Extensão Cinema Ibero-americano: diálogos e
reflexões em tempos de pandemia, gera pesquisas, estudos e artigos como este, que
nos incentivam a seguir adiante com a ação, que durante a escrita deste texto já possui
uma nova edição prevista para novembro e dezembro de 2021 e que contará com
análises de quatro filmes e um documentário desse cinema tão rico em variedades
culturais, linguísticas e estéticas.

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Eixo 2
Estudos Culturais em Ciências Humanas e Letras

Referências

BALUTET, Nicolás. Las paradojas de fresa y chocolate. Revista de la Asociación


Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual. Argentina, 2013

BIZARRO, Rosa; BRAGA, Fátima. Da (s) cultura (s) de ensino ao ensino da (s)
cultura (s) na aula de Língua Estrangeira. 2014.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. TupyKurumin, 2006.

KRAMSCH, C. Context and culture in language teaching. Oxford University


Press, 1993.

PAZ. Carlos. Fresa y chocolate: el lenguage. Revista Literatura e linguística, vol. 10,
1997.

PAZ, Senel. El lobo, el bosque y el hombre nuevo. Ediciones Era, 1991.

RAMBLADO MINERO, Maria de La Cinta. La isla revolucionaria: el dilema de la


identidad cubana en Fresa y chocolate y La nada cotidiana. Revista Letras Hispânicas,
volume 3, 2006. Disponível em https://ulir.ul.ie/handle/10344/4237 acesso em
maio de 2021.

THIBAUDEAU, P. Del chocolate a la fresa, del exilio interior a la expatriación:


las etapas de un doble recorrido iniciático en Fresa y chocolate de Tomas Gutiérrez
Alea y Juan Carlos Tabío” , Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers
ALHIM [Online], 23 | 2012, online desde 10 de setembro de 2012 , conexão em 27
de setembro de 2021 .URL : http://journals.openedition.org/alhim/4246; DOI :
https://doi.org/10.4000/alhim.4246 VAZ, Sergio. + de 50 anos de filmes.
Disponível em https://50anosdefilmes.com.br/2009/morango-e-chocolate-fresa-
ychocolate/#more-6137. Acesso em maio de 2021.

VAZ, Sérgio. Morango e Chocolate/Fresa y Chocolate. De Tomaz Gutierrez


Alea e Juan Carlos Tabío, Cuba-México-Espanha, 1994. + de 50 anos de Filmes,
2009. Disponível em: https://50anosdefilmes.com.br/2009/morango-e-chocolate-
fresa-y-chocolate/#more-6137. Acesso em junho de 2020.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

O EO
(OU O DIABO NO HEAVY METAL): A
GRANDE COMUNHÃO DA MÚSICA
INTERNACIONAL – A DE MAIOR SUCESSO POPULAR E
COMERCIAL – E, ABRASANTEMENTE, LONGEVA E DE
“PESO

Adriano Alves Fiore 1

Resumo: Mito, Realidade e Ficção são partes de um todo, interagem-se e criam tudo
o que o ser humano é capaz de fazer. O chamado Mal é onipresente. Dispersa-se por
recantos e confins do mundo humano. Presente nas mais diferentes culturas e
civilizações. Diabo, este nome é tão temido que enciclopédias evitam mencioná-lo 2. A
despeito da “indiferença” a sua referência, a sua representação torna-se a “mascote”
querida e adotada pelo Heavy Metal, há, no mínimo, cinquenta anos. O que, sem dúvida,
tem contribuído para a força e popularidade desse gênero musical. Uma imagem pode
exercer influência muito além do que os olhos conseguem ver e a mente imaginar3.

Palavras-Chave. Filosofia da Imagem; A Representação do Diabo; O Gênero Heavy


Metal de Música Rock.

Introdução

“Os gregos davam aos sábios o nome de demônios, por causa de


uma antiga palavra que significa ‘sei, aprendo’ e da qual pensam os
gramáticos se derive o nome de demônio” (ERASMO, 1972, p. 58)

O Diabo, também chamado de O Demônio. O que dizer de esse “ente”, “ser”


e/ou “criatura” preternatural ou sobrenatural que, há milhares e milhares de anos –
desde o limiar do aparecimento do Homo sapiens sapiens na Terra –, vem bagunçando
tudo e incomodando quase todo o mundo?!...

1 Pós-doutorando em História Social (UERJ, Campus São Gonçalo-RJ), doutor em Semiótica


(PUC-SP), graduando em Filosofia (UEL, Londrina-PR). Email: adrianoalvesfiore@gmail.com
2 Sempre existe o cuidado e a precaução com o uso da palavra “diabo”; em enciclopédias,

quando se menciona o termo “diabetes”, em seguida, pula-se para uma outra palavra qualquer,
depois de “diabo”!!!
3 “O essencial é inaudível aos ouvidos tanto quanto invisível aos olhos” – Antoine de Saint-

Exupéry, piloto e escritor francês, autor de O Pequeno Príncipe.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Para tornar o trabalho mais completo, e também interessante, faz-se mister


tentar localizá-lo no tempo e espaço humanos. E já, a partir daí, a barafunda se
constitui e se alastra por todos os recantos e confins do nosso estimado Planeta.
A começar pelo nome “demônio”, o grande mitólogo brasileiro Junito de
Souza Brandão proporciona-nos um precioso esclarecimento, discorria ele quando
falava de e sobre Eros: “[...] Para Platão, no Banquete, pelos lábios da sacerdotisa
Diotima, Eros é um demônio, quer dizer, um intermediário entre os Deuses e os
homens” (BRANDÃO, v. 1, 1997, p. 187).
Não satisfeita com os demônios, a humanidade insiste em buscar algo ou
alguma coisa que possa ser capaz de carregar consigo toda a responsabilidade de sua
crueldade e práticas pecaminosas, como, por exemplo, o que se aplica ao bode dos
desertos do Oriente Médio, no que se denomina o rito de expiação, executado uma
vez por ano pelos antigos israelitas. O desditoso caprino é transformado em “bode
expiatório”, ou seja, sobre aquele ao qual cai “a sorte de Azazel” (arcaico e poderoso
demônio que habita o deserto, lugar onde mesmo Deus costuma evitar). Durante o
ritual, um sacerdote, após sacrificar, imolando outro bode (este destinado a Iahweh, o
Deus “bom”), posta ambas as mãos devidamente ensanguentadas na cabeça do
“animal escolhido e ainda vivo”, confessando todas as faltas e transgressões do povo.
Em sequência, o saturado e infeliz bode é enviado e solto nas áridas e impiedosas
paragens para arrastar consigo, e para bem longe, a bagagem pecaminosa que não lhe
pertence, mas, que serve para expiar as impurezas de “outros (as) ” (Bíblia de Jerusalém,
2004, p. 184).
Até nos dias hodiernos, 2021, o pobre bode vê associadas algumas de suas
características físicas ao principal “agente do Mal” no Mundo – à figura do Diabo –:
chifres retorcidos; o formato do rosto de queixo alongado; o corpo coberto com pelos
hirsutos; orelhas pontudas; os cascos fendidos ou divididos em dois.
O HeavyMetaltheutis infernalis trata-se da designação que eu atribuo ao “ser-
coisa” ou ao “demônio” que se instala em nosso interior ou que já nos é idiossincrático
e próprio – não sei ainda – ao ouvirmos e/ou escutarmos Hard Rock e/ou Heavy Metal.
E que suscita uma sensação de força/poder ao mesmo tempo em que alivia tensões e
estados de raiva funcionando como uma autêntica catarse.
Em relação ao “Diabolus in Metallum Musica”, pretendo fazer menção tanto
à representação do Diabo – na iconografia e na simbologia dos gêneros Hard Rock e,
sobretudo, Heavy Metal – como à utilização do chamado recurso musical trítono ou
“Diabolus in Musica” no último estilo citado.

Da História das Representações do Diabo e de Demônios

“Como você sabe se a Terra não é o Inferno de outro planeta? ” –


Aldous Huxley (1894-1963)

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

“– (Fausto). No mundo que tu habitas, senhor, a natureza. Dos


seres se conhece em nomes, com certeza. Está tudo bem claro e
por mim tanto faz te chames Belzebu, Demônio ou Satanás. Qual
o teu nome, então?
– (Mefistófeles). Sou parcela do além. Força que cria o mal e
também faz o bem” (GOETHE, Fausto, 1983, p. 68)

O estigmatizado bode vem emprestando seus apanágios físicos para a antiga,


medieval e contemporânea imagens de “demônios” assim como para o supremo
Senhor do Mal. A despeito de que a representação do Diabo é variada e multiforme,
de alguns séculos antes de Cristo até os dias hodiernos. Os chamados “Pais ou Padres
da Igreja” vão construir esses símbolos a partir de mitologias e religiões ainda mais
antigas do que a judaico-cristã.
As civilizações da Mesopotâmia e Síria ajudaram a formar o conceito ocidental
do Diabo mais diretamente do que a civilização egípcia. A civilização suméria serviu
de base à da Babilônia e Assíria, que influenciou diretamente tanto os hebreus como
os cananeus. Canaã, por sua vez, influenciou Israel e a civilização minoica de Creta,
que antecedeu a cultura micênica e helênica. (RUSSELL apud FIORE, 2011, p. 112).
As tradições religiosas (hebraica e cristã) e filosóficas (greco-romanas)
ocidentais adquirem dos arcaicos demônios mesopotâmicos (estes que normalmente
apresentam aspectos assaz agressivos, características físicas e comportamentais) o que,
ao longo da História, vai se construindo na principal ideia e imagem dos gênios
malignos e do Diabo. Na influência advinda do Zoroastrismo: “[...] Angra Mainyu ou
Ahriman, deus das trevas, pode ser considerado o ‘primeiro Diabo claramente
definido’ [...] Os zoroastristas ensinam que faz necessária a existência de Ahriman, pois
só é possível compreender o Bem quando o Mal também estiver presente. ” O Deus
do Bem ou “Princípio da Luz” é Ahura Mazda ou Ohrmazd (FIORE, 2011, p. 113).
Tudo indica que o Maniqueísmo persa – que se instala depois do Zoroastrismo
– é introduzido na Judeia (Israel) por meio de Alexandre O Grande e do seu Pan-
Helenismo. Do mesmo modo, as divindades gregas antigas chegam ao conhecimento
dos intelectuais e sacerdotes judeus. E a figura do Deus Hades ou Plutão se destaca
pelo temor que exerce sobre os seres humanos vivos.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figuras 01 e 02: Ahriman e Ohrmazd


Fontes: <https://en.wikipedia.org/wiki/Ahriman> e
<https://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%BAra-Masda>

Bem próxima à representação demoníaca animalesca, que vigora ainda nos dias
atuais do século XXI, a divindade antiga que mais lhe confere características marcantes
e transviadas é a de Pã: “[...] Cabeludo e com chifres, cheio de pelos, pernas de bode e
patas fendidas, rosto saturnino (referente ao chumbo) com barbicha e orelhas
animalescas, silvícola, barulhento e libertino, sempre a correr atrás das formosas ninfas,
Pã é a própria selvageria e loucura sexual”. Séculos a fio, a sua imagem encontra-se
associada à personificação do Mal até alcançar a forma predileta e oficial do Diabo,
“difundida no Mundo inteiro, principalmente, por obras de artistas e escritores
britânicos da época vitoriana, de 1837 ao ano de 1910” (FIORE, 2011, p. 113).

Figuras 03: O sátiro Filoctetes,


personagem do desenho Hércules
(EUA: Walt Disney, 1997)
Fonte: http://mundosecretob.
blogspot. com/2013/08/walt-
disney-hercules.html. Figuras
04 e 05: O novo logotipo da
banda americana de Hard
Rock/Heavy Metal: Ugly Kid Joe,
em atividade no ano de 2015
Fonte: https://en.wikipedia.org
/wiki/Ugly_Kid_Joe#/media /
File:Ugly_Kid_Joe.jpg. Figura
06: A capa de A Little ain’t
Enough (Canadá: Little Mountain
Sound, 1991) do cantor
estadunidense também do
gênero Hard Rock/Heavy Metal:
David Lee Roth. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/A_Little_Ain%27t_Enough.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Antes de prosseguir com a trajetória representativa do Diabo, convém dar uma


pausa demoníaca para que se possa elucidar um pouco mais a respeito do termo grego
“daimónion”, novamente, por meio da erudição e sapiência de Junito de Souza
Brandão.
Demônio, em grego daimónion, significa deus, divindade, deus de categoria
inferior, destino, como por vezes aparece em Homero; gênio tutelar, intermediário
entre os deuses e os mortais, como as almas dos homens da Idade de Ouro; voz interior
que fala ao homem, guia-o, aconselha-o, como o demônio que inspirava Sócrates. Em
princípio, portanto, demônio não tem conotação alguma pejorativa, como o “diabo”.
Com o sentido de Satanás, demônio não é documentado no Antigo Testamento. Ao que
parece, com a acepção que hodiernamente se lhe atribui, o “demônio” surgiu a partir
dos Septuaginta (séc. II e II a.C.), generalizando-se depois no Novo Testamento
(BRANDÃO, v. 1, 1997, p. 187).
Símbolos são criados, forjados e mantidos em processos de diferentes durações
de tempo, recebendo acréscimos e/ou encolhimentos e retiradas na manipulação de
atributos já existentes em outras representações. Tudo pode ser transformado
simbolicamente, e tal engenharia – que oculta as verdadeiras intenções e interesses de
seus autores – possui tanto a capacidade de direcionar para bons como para maus
resultados interpretativos.
Aproveitando a onda simbólica, creio ser oportuno repassar algumas
informações e ideias do filósofo e semioticista Vilém Flusser. “Imagens são superfícies
que pretendem representar algo [...]. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar
imagens. ” Ao tratar das “duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor” que se
tornam os “decifradores” de um significado, continua Flusser: “Imagens, oferecem aos
seus receptores um espaço interpretativo: símbolos ‘conotativos’”. Seguindo: “ O
caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens”.
Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem, ao invés de se
servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não
mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo
vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é
idolatria (FLUSSER, 2002, p. 9).
De volta ao universo imagético-diabólico, durante a História da humanidade,
ao menos, nos limites do Mundo Ocidental, desfilam-se situações artístico-culturais,
religiosas e políticas – enfim, sociais –, totalmente, relacionadas com a própria essência
agressiva e cruel de nossa espécie. E, em se tratando de conversa “abrutalhada”, nada
melhor que introduzir um pouco da agressividade humana.
Copérnico reduzira a terra a grão de poeira entre nuvens; Darwin reduziu o
homem a um animal em luta para transiente dominação do globo. Deixou o homem
de ser filho de Deus; passou a ser filho da luta, com suas guerras crudelíssimas a
espantarem os mais ferozes animais. A espécie humana não era mais a criação favorita
duma deidade benevolente, e sim, uma espécie simiesca, que os azares da mutação e

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

da seleção ergueram a precária dignidade, e que a seu turno está destinada a ser
superada e desaparecer. (William James DURANT apud OLIVEIRA, 2009, p. 09).
Homem (eu acrescento, Coelhinhos da Páscoa “essencialmente” humanos,
figuras 07 até a 15, e outras criações nossas) e Diabo confundem-se em um único ser,
separado e indiviso ao mesmo tempo. Um ser que tem a faculdade de pensar, de julgar
e de agir, mas que sempre se decide pela agressividade, violência e crueldade. Pela
crueldade que “coincide com a natureza humana”, em que “o sofrimento é o meio
para alcançar o prazer, único fim em um mundo iluminado pela luz violenta de uma
razão sem limites que povoa o mundo com seus pesadelos” (ECO, 2012, p. 269).
Oportunamente, creio ser útil agora acrescentar a última parte do superclássico literário
brasileiro Grande Sertão: veredas (1956):

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice
vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que, de
tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme [...] Amável o
senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor
é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O Diabo não há! É o
que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (ROSA, 2006, pp. 607-608).

“Nas primeiras versões do Antigo Testamento, Javé ou Iahweh é o Senhor do


Universo, quem provoca o Bem e o Mal. A partir do século VI a.C., a figura de Satã –
que quer dizer ‘o adversário’, em hebraico – separa-se de Deus e se torna a causa do
pecado. ” (SALLMANN, 2002, p. 18). A partir de tal relato, a imagem diabólica vem
sofrendo mudanças consideráveis em seus aspectos e/ou poderes tanto físicos quanto
espirituais e/ou preternaturais 4 (FORTEA, 2010, p. 51). Ela (a figura satânica) vem
“evoluindo”, ao decorrer dos nossos séculos civilizadores.

4Preternaturais no sentido de querer dizer “mais além da natureza, servindo para anjos e
demônios” enquanto que o termo “sobrenatural” é somente utilizado para se referir a Deus,
consoante o doutor e jesuíta especialista em Demonologia e Exorcismo José Antonio Fortea.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figuras 07 até a 15: O “Coelhinho da Páscoa” agindo nas ruas de Orlando (Flórida, EUA),
em 2019, espancando, com gosto, um homeless e, em seguida, vangloriando-se perante câmeras
de celular. Fontes: <https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=9Q37SuTMRIQ>
<https://tenor.com/view/coelho-bravo-angry-mad-beat-up-bunny-costume-gif-16839227>,
<https://www.orlandoweekly.com/Blogs/archives/2019/04/22/the-easter-bunny-literally-
beat-someone-up-in-downtown-orlando-last-night>

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

O Diabo: Lúcifer, Satanás, Mefistófeles e/ou Nosferatu 5... De belíssimo – e,


notem que que a tradição cristã tenha tentado encobrir isto, afinal, era tido como o
preferido de Deus em pessoa 6 –, rebelde e de intensa resplandecência, é transformado
em um ser feioso, grotesco e até tolo, sempre, a rondar, a atuar e a agir sub-
repticiamente sobre as pessoas e, mesmo assim, ainda não se torna uma criatura
horrorosa e apavorante.
Porém, até o século XII o mundo era demasiado encantado para permitir a
Lúcifer ocupar todo o espaço do medo, do temor ou da angústia. O pobre diabo tinha
concorrentes demais para reinar absoluto, ainda mais porque o teatro do século XII
fazia dele uma imagem de paródia ou francamente cômica, retomando o veio popular
referente ao Mau ludibriado. (MUCHEMBLED, 2002, p. 31).
No Brasil, graças à herança europeia portuguesa, encontramos o grande tema
corrente do “Diabo enganado” na literatura de cordel nordestina. De volta ao Velho
Continente, do século XIII para frente, “a figura do Diabo adquiriu importância
crescente [...] Lúcifer cresce no momento em que a Europa procura maior coerência
religiosa e inventa novos sistemas políticos, preludiando o movimento que vai projetá-
la para fora de si, na conquista do mundo, no século XV” (MUCHEMBLED, 2002, p.
31). E o período da chamada Arte e principalmente Arquitetura Gótica, compreendido
entre os séculos XII o limiar do XVI, vem a produzir a imagem do Mal em um lugar
de destaque, nada mais nada menos do que dentro e ao redor das catedrais católicas
góticas, bem no coração do imaginário simbólico e coletivo da sociedade.
O universo das gárgulas e das representações demoníacas e diabólicas das
catedrais góticas – sobretudo, na França, Inglaterra e Norte da Itália – com todo aquele
exagero e “acentuação de traços negativos (e grotescos) e maléficos” objetiva
consolidar a “soberania política centralizada”, uma vez que o mundo das “relações
feudais e vassálicas” está a ruir. É uma nova questão social de “poder”... Do poder
absoluto do Estado e das pessoas que o controlam realmente. E os primeiros sinais de
seu surgimento – do chamado Absolutismo, que é uma teoria política, assim como da
doutrina Do Direito Divino dos Reis – parecem ser encontrados na ascensão de Isabel
I de Castela com Fernando de Aragão na Espanha Unificada, em 1469, e, depois, com
Henrique VIII, na Inglaterra, em 1509.
Ainda no período medieval, no XIV, portanto, às vésperas dessa “consolidação
da soberania política centralizada” de nações em Estados fortes e totalmente

5 De acordo com John Gordon Melton, Nosferatu advém do eslavo antigo “nosfur-atu”,
“palavra derivada do grego e ligada ao conceito de um portador de pragas”. É o título do filme
mais antigo de (1922) sobre o personagem meio Diabo e meio vampiro: Drácula, do escritor
irlandês Bram Stocker. O nome Drácula é substituído por Nosferatu porque não há um acordo
legal para a utilização do termo original entre a empresa alemã cinematográfica Prana-Film e a
família de Stocker (MELTON, 2008, p. 350).
6 “A tradição cristã tentou não recordar que Satanás, se havia sido um anjo, era então muito

provavelmente belíssimo” (ECO, 2007, p. 179).

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

“senhores” de seus governados, é necessário “meter medo” na população cristã


europeia para mais fácil controlá-la.
O inferno e o diabo, a partir de então, nada têm de metafórico. A Arte produz
um discurso bastante preciso, muito figurativo, sobre este reino demoníaco, colocando
detalhadamente, a título de exemplo, a noção de pecado, a fim de melhor induzir o
cristão à confissão:

Meter medo nele produz um choque emotivo que leva a fazer agir e a fazer confessar”.
Em outros termos, a encenação satânica e a pastoral que a ela se reporta
desenvolvem a obediência religiosa, mas igualmente, o reconhecimento do
poder da Igreja e do Estado, cimentando a ordem social com o recurso a uma
moral rigorosa. (Grifos do autor. J. BASCHET apud MUCHEMBLED, 2002, pp.
34-35).

Satanás e/ou Lúcifer, pois, na tradição cristã, passa de Anjo belo e rebelde
(mesmo assim sendo o “inimigo” ou o autêntico “advogado do Diabo” desde o caso
de Jó, no Velho Testamento), na Idade Antiga, para uma criatura feiíssima e grotesca com
os traços lascivos e caprinos de Pã (engendrada e divulgada, especialmente, pelos
Padres da Igreja), que se estende por toda a Idade Média, amedrontando o estado de
espírito de todas as populações europeias, e ainda perpassando, inteiramente, os
séculos XVI, XVII e XVIII, quando se adentra na Era Mefistofélica, a que atinge o
ápice da sublimidade “moral” e respeitável do Diabo!!! É o tempo de John Milton e
seu Paraíso Perdido (1667), de Johann Wolfgang von Goethe e seu Fausto (1773-1774)
assim como do pintor fantástico William Blake (1757-1827), cujas obras: Christ Tempted
by Satan to Turn the Stones into Bread ou Cristo é tentado por Satanás a transformar pedras em
pão (1816-1818) “retrata o Diabo como um velho sábio em um estado deliberado de
ambiguidade moral: Cristo e Satã aparecem quase como dublês entrelaçados em uma
dança” e Marriage of Heaven and Hell “dá a Satanás o título de ‘símbolo da criatividade’”
(RUSSELL, 1986, pp. 180 e 181).
Na Literatura dos séculos XIX e XX, encontramos grandes escritores que
conferem ao Senhor Supremo do Mal posição de destaque (“protagonismo”) em suas
obras, como: Fiódor M. Dostoiévski com seu Os Irmãos Karamazov (1879-1880),
Giovanni Papini com seus contos O Trágico Cotidiano (1906), Mikhail A. Bulgákov com
seu O Mestre e Margarida, e Thomas Mann com seu Doutor Fausto (1947). É o que
Umberto Eco costuma denominar de “a terceira metamorfose do Diabo”, isto é, do
Diabo do Mundo Moderno; uma espécie de evolução imagética e simbólica do
Demônio-Mor: “ [...] Mefistófeles7 prenuncia uma terceira metamorfose do Diabo [...]

7Apesar da Era Mefistofélica alcançar o seu auge nos séculos XIX e XX, a origem do nome
Mefistófeles “foi inventado, no século XVI, em razão da figura diabólica do lendário Doutor
Fausto” alemão (RUSSELL, 1986, p. 11). Ao que tudo indica “a primeira história da vida de
Fausto foi publicada em Frankfurt, no ano de 1587, por Spiess” (FILHO, 1987, p. 196).

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

No século XX, ele se tornará absolutamente ‘laico’, mesquinho e pequeno-burguês, ele


agora é mais perigoso e preocupante” (ECO, 2007, pp. 182 e183).
Jeffrey B. Russell, a despeito de estar convicto de que a imagem do Diabo na
imaginação literária do século XIX é preponderante, assevera que ela vai minguando
desde então, inclusive, no interesse artístico. Sua representação perde muito de seu
horror e mesmo de sua comédia. “O desenvolvimento do realismo e do naturalismo,
com suas tendências metafísicas, e com o gradual e robustecimento do positivismo
reconduz o foco literário no mal que constitui a personalidade humana” (RUSSELL,
1986, p. 213, tradução do autor).
O Grande Senhor do Mal é tema corrente nos universos da Música Clássica e
da Ópera. Está em, por exemplo: a ópera Fausto (1819) do alemão Louis Spohr; a ópera
O Vampiro8 (1828) de H. A. Marschner; a ópera Lamia, ou Heksen ou The Witch (1892)
de August Enna; A Sinfonia Fantástica (1830) e A Danação de Fausto (1845) de Hector
Berlioz; A Sinfonia Fausto em três movimentos (1854) e Mephisto Waltz (1861) de Franz
Lizst; a grande valsa-ópera Fausto (1859) de Charles-François Gounod; a ópera
Mefistofele ou Mefistófeles do compositor e famoso libretista Arrigo Boito; a ópera Fausto
(1887) de Heinrich Zollner; a ópera Doktor Faust de Dante Ferruccio Busoni; a opereta-
paródia Le Petit Fausto de Florimond Hervé; As Músicas e Danças da Morte (meados de
1870) de Modest P. Mussorgsky; A Dança Macabra (1874) de Charles-Camille Saint-
Saëns; além de além de pertencer, via o lendário personagem Fausto, à música
sinfônica e incidental para peças de Richard Wagner, Lizst, do regente Weingarther e
de inúmeros outros (FILHO, 1987, p. 197).

8Der Vampyr torna-se o maior sucesso musical de Marschner e influencia Richard Wagner em
“O Navio Fantasma ou O Holandês Voador (1840-1841).

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 16: Lúcifer, o mais resplandecente dos Anjos divinos


Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:F%C3%BCssli_-
_Satan_bursts_from_chaos,_1794%E2%80%9396.jpg>
Figura 17: Titivillus, um Diabo medieval; Recorte da obra Nossa Senhora das Mercês (c. 1485)
Figura 18 – Mefistófeles cinematográfico; Gérard Philippe em La Beautê du Diable
(França/Itália: Enic/Universalia/Franco-London-Films, 1950)
Fonte: <https://www.cinema-
francais.fr/les_films/films_c/films_clair_rene/la_beaute_du_diable.htm>
Figura 19: A obra mais executada de Sain-Saëns: A Dança Macabra
Fonte: <https://classicosdosclassicos.mus.br/obras/saint-saens-danca-macabra/>

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 20: Bruxas e Lobos, desenho em aquarela de Alphonse Marie Neuville (1835-1885),
ilustração para A Danação de Fausto do compositor Hector Berlioz
Fonte: <https://www.meisterdrucke.pt/impressoes-artisticas-sofisticadas/Alphonse-Marie-
de-Neuville/639225/Bruxas-e-lobos,-ilustra%C3%A7%C3%A3o-para-a-
dana%C3%A7%C3%A3o-de-Fausto-por-Berlioz-(wc-no-papel).html>
Figura 21 : A capa de partitura de Le Petit Faust de Hervé
Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/Le_petit_Faust>

No Cinema, o Expressionismo Alemão traz os filmes de “Terror” (Nosferatu,


O Golem etc.) com características horripilantes e, posteriormente, Hollywood ameniza
a imagem diabólica com traços mefistofélicos. No “desenvolvimento” da
representação do Ser Supremo do Mal ao longo da História Cristã assiste-se ao mesmo
processo; no início, dão-lhe contornos grotescos e assustadores para, em seguida, em
alguns séculos “finais” da Idade Média, consagrar-lhe um aspecto cômico e até de
alguém facilmente ludibriado, e, a partir do século XIX, confiam-lhe a elegância e o
charme (irresistível para o sexo feminino) de um carismático homem de meia-idade,
senhor de sua experiência e inteligência superiores. E, voltando à Sétima Arte dos
séculos XX e o atual, sejam por pessoas ou espíritos, sejam por figuras do próprio
Diabo ou de seus dublês, as telas de televisões e teatros de Cinema no mundo inteiro
são, simplesmente, inundadas por representações do Mal.

imagens demoníacas na Iconografia e na Simbologia do e do


eoO eo
e as Considerações Finais

A presença do Mal e os seres ou pessoas extremamente violentas e cruéis,


sempre, causam uma espécie de fascínio e “respeito” na humanidade. É algo intrínseco
e idiossincrático da natureza humana. A agressividade é-nos muito própria e natural.
Em O Visconde partido ao meio, o escritor Ítalo Calvino dá-nos um cômico exemplo disso.
No século XVII, o seu protagonista, o visconde Medardo di Terralba, vai à guerra
contra os turcos e retorna aos seus domínios mutilado pela metade. Uma parte é:
“divertidamente má e a outra insuportavelmente boa e ambas acabam atazanando a
vida de todo mundo”. As pessoas já não sabem mais se é preferível ser mau e conviver
com o Mal ou ser bom e conviver com o Bem. O lado agradável do Visconde se propõe
a ajudar os leprosos, andando a pregar moral entre eles e metendo o nariz onde não é
chamado, “[...] escandalizando-se e fazendo sermões [...] os leprosos não o
suportavam” (CALVINO, 1996, pp. 11 e 89)
.
As mulheres leprosas, sem o desafogo das farras, viram-se de repente sozinhas diante
da doença, e passavam as noites chorando e se desesperando [...]. ‘Das duas metades
a boa é pior que a mesquinha’, começavam a comentar em Prado do Cogumelo [...].
Mas não era somente entre os leprosos que a admiração pelo Bom começava a se

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

diluir. ‘Ainda bem que a bala de canhão só o dividiu em dois’, diziam todos, ‘se o
cortasse em três quem sabe o que nos tocaria ver pela frente. (CALVINO, 1996, p.
89).

O megagênero Heavy Metal e o seu parente mais velho e mais próximo Hard
Rock vêm adotando imagens diabólicas em sua iconografia há, no mínimo, cinquenta
anos 9. As representações do supervilão universal Diabo – juntamente com a da Caveira
– têm se firmado como as suas grandes mascotes simbólicas. Em consequência, a
atração natural pelo misterioso, temerário e terrificante muito vem favorecendo a
propaganda e divulgação dos grupos da Música Pesada. O Heavy Metal torna-se, de
modo inconteste, o mais popular e o mais bem-sucedido, comercialmente, estilo de
Rock, alcançado altos índices de aceitação tanto em países considerados “pobres e de
Terceiro Mundo” quanto naqueles de melhor nível de educação e vida.

Figuras 22 e 23: Don’t Break the Oath (Holanda: Roadrunner, 1984) e Overkill (Reino Unido: Bronze,
1979) do grupo dinamarquês Mercyful Fate e do britânico Motörhead
Fonte: HM LPs (Japão: Omnibus Press, 1986, pp. 43 e 15)
Figura 24: Capa de The Tokyo Showdown – live in Japan 2000 (Alemanha: Nuclear Blast, 2001) do grupo
sueco de Melodic/Alternative/Death Metal: In Flames
Fonte: <https://www.metal-archives.com/albums/In_Flames/The_Tokyo_Showdown_-
_Live_in_Japan_2000/316>

O HeavyMetalteuthis infernalis10 – esse demônio interior cunhado por mim – e


que nos suscita tanto apego, paixão e bem-estar ao ouvirmos e/ou escutarmos música
é algo, ainda, inexplicável, ou melhor, pouquíssimo compreensível em medidas e
termos científicos. Contudo, com o intuito de buscar uma explicação para esse
fenômeno psicossomático que envolve música e afeta intensamente a vida particular e
social de boa porção da humanidade, montamos uma equipe, composta por

9 Há, com certeza, aqui, uma herança histórica e “genética” que vem de longe, desde os
decênios de 1940 e 1950, quando o Blues e o Rock in Roll já sofrem com a discriminação da
mídia, que influencia a opinião públicas. Tais estilos de música são considerados inferiores e
são também demonizados.
10 Tem seu nome ou designação inspirada no título da obra filosófica fictícia: Vampyroteuthis

infernalis de Vilém Flusser.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

acadêmicos (as) e cientistas de diversas áreas, para participar de um projeto de Pós-


Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (UERJ, Campus São
Gonçalo) – Área de Concentração: História Social do Território; Linha: Território,
Relações de Poder e Movimentos Sociais, no começo do presente ano.
O papel da chamada “Nota do Diabo” no Heavy Metal refere-se ao Diabulos in
Musica. Esta “nota”, denominada de trítono, consiste em um intervalo entre duas notas
musicais que possuam e completem três tons inteiros. Produz um som de tensão, o
que provoca uma dissonância. É um recurso utilizado desde a Antiguidade, sendo
também bastante aproveitado por compositores clássicos como, por exemplo: Niccolò
Paganini (virtuoso violinista que, devido a sua extravagância aliada ao seu aspecto físico
grotesco, atribuíam-lhe pactuar com o Diabo; isto muito tempo antes do surgimento
do Blues e suas histórias de tratados demoníacos em encruzilhadas etc.) e Ludwig van
Beethoven, que a aplica na abertura de sua famosa Quinta Sinfonia, no Primeiro
Movimento. Contudo, no Heavy Metal, a sua prática é comum, mas é o uso dos power
chords, isto é, de acordes e/ou intervalos constituídos de notas fundamentais (tônicas)
e suas respectivas quintas e oitavas – reforçadas com distorções e efeitos de
amplificação elétrica – é que caracterizam o poderoso (potente) som “metálico”.
Portanto, a utilização de imagens fortes ou diabólicas no mundo do gênero do
Rock Pesado, sobretudo do Heavy Metal, torna-se compreensível em razão de seu
passado “marginal”, rebelde e inconformista. E a sua aceitação como estilo predileto
por boa parcela da população mundial ocorre naturalmente e de modo esperado,
plausível.

Referências

BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na idade média e no renascimento – o


contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 4. ed. São Paulo/Brasília:
Edunb/HUCITEC, 1999.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. (com aprovação eclesiástica, CNBB SG –


nº 0051/03). São Paulo: Paulus, 2004.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 5. ed. Petrópolis: Vozes, v. 3,


1993.

______. Mitologia Grega. 11. ed. Petrópolis: Vozes, v. 1, 1997.

______. Mitologia Grega. 9. ed. Petrópolis: Vozes, v. 2, 1998.

CALVINO, Ítalo. O Visconde partido ao meio. São Paulo: Companha das Letras,
1996.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

ECO, Umberto. História da beleza. Trad. Eliana Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2012.

______. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. 1ª impressão. Rio de Janeiro:


Record, Brasil, 2007.

ERASMO, Desidério. Elogio da Loucura ou Encomium, id est, Stultitiae Laus.


Coleção Os Pensadores, v. X, São Paulo: Abril Cultural, 1972.

FILHO, Zito Baptista. A ópera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

FIORE, Adriano Alves. Carnavalização Bakhtiniana do Grotesco em Imagens do


Hard Rock e Heavy Metal. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social e Semiótica – Universidade Estadual de
Londrina ou UEL – como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Comunicação Social/Jornalismo e Semiótica. Londrina – PR, 2011.

_______. Iconografia, Simbolismo e a Cultura Contemporânea do Heavy Metal.


Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ou PUC-SP – como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Comunicação e
Semiótica. São Paulo – SP, 2015.

FLUSSER, Vilém. A História do Diabo. São Paulo: Annablume Editora e


Comunicação, 2006.

______. Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

______. Da Religiosidade. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.

______. Vampyroteuthis infernalis. São Paulo: Annablume, 2011.

FORTEA, José Antonio. Suma Daemoniaca – Tratado de demonologia e manual de


exorcistas. São Paulo: Palavra & Prece, 2010.

HM LPs – 434 Album Covers! Japan: Omnibus Press, 1986.

MELTON, John Gordon. Enciclopédia dos Vampiros. São Paulo: M. Books do


Brasil, 2008.

MUCHEMBLED, Robert. Uma História do Diabo: séculos XII-XX. Rio de Janeiro:


Bom Texto, 2002.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

OLIVEIRA, Gilson Marciano de. A Agressão Humana – uma investigação filosófica


mediante o pensamento de Steven Pinker. Curitiba Edição do Autor, 2009.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.

RUSSELL, Jeffrey Burton. O Diabo: As Percepções do Mal da Antiguidade ao


Cristianismo Primitivo. Rio de Janeiro (RJ): Editora Campus Ltda, 1991.

______. the Devil in the Modern World. Ithaca: Cornell University


Press, 1986.
SALLMANN, Jean-Michel. As Bruxas – noivas de Satã. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002.

TRÓPICO: enciclopédia ilustrada em cores. São Paulo: Martins, Volumes I-X, 1970.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

AS IMAGENS DE CONTROLE NO CONTEXTO


BRASILEIRO
OS LIMITES E AS POTENCIALIDADES DO CONCEITO DE
PATRICIA HILL COLLINS

Beatriz Molari1
Lorena Ingred Moreira Pio2

Resumo: Por meio do conceito de imagens de controle, a teórica afro-americana


Patricia Hill Collins aborda como as imagens criadas por ideologias opressivas, como
a racista e a sexista, visam justificar as situações de injustiça social vivenciadas pelas
mulheres negras no contexto norte-americano. Originárias da era da escravização, as
imagens de controle constituem qualidades atribuídas às mulheres negras que são
difundidas pela cultura popular contemporânea. Considerando o período da
escravização registrado na história do Brasil e que as ideologias opressivas estão
presentes na sociedade brasileira, torna-se pertinente analisar a aplicabilidade do
conceito de imagens de controle em estudos sobre as imagens, tendo em vista a
realidade brasileira na contemporaneidade. Assim sendo, este estudo se propõe a
responder a seguinte questão: quais os limites e as potencialidades do conceito de
imagens de controle para estudos que se propõem a investigar as imagens de mulheres
negras no contexto brasileiro? Para isso, por meio de uma abordagem teórica, será
apresentado o conceito formulado tendo em vista o contexto norte-americano e,
posteriormente, serão discutidos os limites e as potencialidades da sua aplicação em
estudos de imagens considerando as especificidades da sociedade brasileira.

Palavras-chave: imagens de controle; pensamento feminista negro;


interseccionalidade; estudos de imagens.

Introdução

O conceito de imagens de controle faz parte de uma vasta contribuição teórica


de Patricia Hill Collins para o pensamento feminista negro. Collins (2016, 2019),
quando descreve sobre as imagens de controle que são construídas negativamente
sobre as mulheres negras, se repousa sobre experiências de mulheres negras que têm
suas trajetórias permeadas por opressões multidimensionais, como as de gênero, de
raça e de classe, que se interseccionam e se transformam em imagens, que são

1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual de


Londrina. Universidade Estadual de Londrina. E-mail: beatriz.molari@gmail.com.
2 Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual de

Londrina. Universidade Estadual de Londrina. E-mail: lorenamoreira1403@gmail.com.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

produzidas e reproduzidas para justificar e naturalizar as opressões que são vivenciadas


por mulheres negras.
Assim sendo, o objetivo desse artigo é discutir os limites e as potencialidades
do conceito de imagens de controle tendo em vista o contexto brasileiro. Para isso, o
presente estudo foi dividido em duas seções, além da introdução e das considerações
finais. Na primeira delas descrevemos o conceito de imagens de controle e
apresentamos quais são os seus objetivos para o enfrentamento das opressões
interseccionais que perpassam a vida das mulheres negras. Ainda nesta seção são
apresentadas as contribuições de Collins (2019) sobre a importância da autodefinição
e da autoavaliação das mulheres negras para o enfrentamento das imagens de controle
que as objetificam e as oprimem.
Na seção seguinte, por sua vez, descrevemos os limites e as potencialidades do
conceito de imagens de controle produzido considerando a sua aplicabilidade no
contexto brasileiro. Para tanto, apresentamos seus limites baseados em particularidades
culturais, uma vez que o conceito de imagens de controle foi construído a partir de
experiências vivenciadas por mulheres afro-americanas, e, em seguida, para
compreender os aspectos históricos das imagens de controle sobre as mulheres negras
brasileiras, foram utilizadas as contribuições de Lélia Gonzalez (1982) e Winnie Bueno
(2019). Assim sendo, salientamos que este estudo almeja, por meio de uma abordagem
teórica, contribuir para o debate acerca da utilização do conceito de imagens de
controle em estudos de imagens de mulheres negras produzidos no contexto brasileiro.

As imagens de controle: o contexto de elaboração do conceito

A existência das opressões interseccionais de raça, de gênero e de classe,


conforme ressalta Collins (2019), só é possível até nos dias de hoje devido à existência
de justificativas ideológicas poderosas que as reafirmam. Essas justificativas são
transformadas em imagens de controle sobre o oprimido, para que, de alguma forma,
essas opressões sejam apresentadas e reproduzidas pela sociedade sem que sejam
problematizadas.
Segundo Collins (2019), desafiar as imagens de controle é um dos principais
objetivos do pensamento feminista negro, uma vez que as mulheres negras são
atacadas diariamente através de uma diversidade de imagens negativas, estereotipadas
e manipuladas pelos grupos de elite, que, através dos seus privilégios
institucionalizados, manipulam as situações e a vivência das mulheres negras,
explorando e reproduzindo imagens de controle já existentes e/ou produzindo várias
outras. As mulheres negras, nesse sentido, são subjugadas através do status de outsider
(COLLINS, 2019), ou seja, o estranho, o Outro na sociedade, que traz consigo ameaças
à ordem moral e social.
Através da objetificação das mulheres negras como o Outro, são manipuladas,
exploradas e controladas as imagens sobre elas, como uma ameaça moral e social

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

(COLLINS, 2019). A objetificação, então, seria a base fundamental para um


pensamento binário, que, conforme aponta Maria Lugones (2008), invisibiliza a relação
de intersecção existente entre elas e apaga experiências vivenciadas por mulheres
negras e homens negros. A autora ressalta que, quando é feito o cruzamento entre as
categorias mulher e negro, ainda é possível encontrar no imaginário social e nas
ciências sociais uma generalização de realidades, na qual toda mulher é branca e todo
negro é homem, de modo que a mulher negra passa a não ser identificada nem na
categoria mulher, nem na categoria negra (LUGONES, 2008).
Assim, ocorre uma tentativa de dominação, que, de acordo com Collins:

[...] sempre envolve tentativas de objetificar o grupo subordinado. Como sujeito, toda
pessoa tem o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer sua própria
identidade, dar nome, a sua própria história. Como objeto, a realidade da pessoa é
definida por outras, sua identidade é criada por outros, sua história é nomeada apenas
de maneira que definem sua relação com pessoas consideradas sujeitos (COLLINS,
2019, p. 138).

Portanto, a objetificação permite que o Outro desapareça da história, como é


o caso de estudos colonizados, nos quais não aparece a vivência de pessoas negras.
Segundo Carla Akotirene (2019), estudos que se baseiam apenas em metodologias que
detêm uma epistemologia europeia ocidental e estadunidense universalizam e
invisibilizam o modo como as opressões acontecem.
As mulheres negras, nesse sentido, estariam no meio de um cruzamento de
opressões, sendo elas a base da pirâmide das opressões/desigualdades, portanto, não
há outro grupo a quem se oprimir depois delas. As trajetórias das mulheres negras
estariam baseadas em um jogo de sobrevivência, nesse sentido, segundo Collins (2019,
p. 203), “criar autodefinições independentes é essencial”. Para Alexis Deveaux, citada
por Collins (2019), há estudos que se interessam por identificar o “eu”, no entanto,
este “eu” é relacionado com um outro íntimo, ou seja, um eu permeado por influências
sociais e de comunidades, não o “eu” íntimo como próprio “eu”. Ainda para a autora,
compreender o “eu”, se autodefinir, é primordial para a compressão de outras relações.
Afirmação do “eu”, do quem sou “eu” para além de outras relações e/ou intuições
sociais pode, muitas vezes, ser a solução para determinados problemas ou/e situações.
Não se pretende definir um “eu” em oposição dos outros, mas sim um “eu”
que detenha conexões entre as trajetórias dos indivíduos, que permita uma
autodefinição entre as mulheres negras mais profunda, uma vez que a vida das
mulheres negras foi moldada por opressões que se cruzam (COLLINS, 2019). O poder
de autodefinição, segundo Collins (2019), colocaria em xeque as imagens de controle
produzidas e reproduzidas sobre as mulheres negras, pois quando as mulheres negras
se autodefinem, consequentemente e simultaneamente, elas estão rejeitando aquelas
posições que lhes foram impostas. Independente do conteúdo de autodefinição de
cada mulher negra, isso irá significar o poder dessas mulheres como sujeitos.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Os limites e as potencialidades do conceito de imagens de controle para os


estudos de imagens no Brasil

Em seu livro Olhares negros: raça e representação, bell hooks (2019) relata a reação
de seus colegas artistas e professores ao se depararem com uma fileira de chocolates
em formatos de seios em uma confeitaria de uma pequena cidade do meio-oeste dos
Estados Unidos. Para ela, as risadas demonstravam como os seus colegas não
enxergavam conexão entre as imagens racializadas expressas nos doces e o racismo,
que, assim como no passado, objetifica os corpos das mulheres negras na atualidade
(hooks, 2019). Por meio do relato, a teórica feminista chama a atenção para as imagens
sobre as mulheres negras construídas com base em ideias originárias de um aparato
racista que ainda circulam nas sociedades contemporâneas e que, muitas vezes, não são
problematizadas e combatidas.
Como vimos, além de hooks, Collins também se voltou para as imagens
restritivas sobre as mulheres negras. O conceito de imagens de controle elaborado pela
socióloga e teórica feminista problematiza as imagens sobre as mulheres negras
estadunidenses surgidas no período da escravização e que constituem uma dimensão
ideológica da opressão sobre elas (COLLINS, 2016, 2019). Com base na abordagem
do conceito realizada na seção anterior e considerando que a escravização integra a
história do Brasil, de modo que as consequências desse período ainda estão presentes
na sociedade brasileira, propomos discutir nesta seção os limites e as potencialidades
do conceito de imagens de controle para usos em estudos de imagens no Brasil.
Salientamos que se trata de uma abordagem teórica, que visa iniciar uma discussão
acerca de uma possibilidade de análise para estudos que se voltem para as imagens de
mulheres negras no contexto brasileiro.
Para Collins (2019), as imagens de controle integram uma dimensão ideológica
de opressão aplicada às estadunidenses negras na medida em que as ideologias racista
e sexista estão presentes na estrutura social da cultura estadunidense de forma
hegemônica, de modo que as ideias que as constituem são vistas como naturais. Tal
naturalização promove a associação de qualidades às mulheres negras estadunidenses
como forma de justificar a opressão (COLLINS, 2019). Winnie de Campos Bueno
(2019) salienta essa denotação do conceito, afirmando que as imagens de controle
constituem uma dimensão ideológica do racismo e do sexismo que, atuando de forma
interseccionada, colaboram na manutenção de padrões de violência históricos
perpetuados pelas relações de poder. Sabendo que o termo “opressão” se refere a “[...]
qualquer situação injusta em que, sistematicamente e por um longo período, um grupo
nega a outro grupo o acesso aos recursos da sociedade” (COLLINS, 2019, p. 33),
compreendemos que as imagens de controle são ferramentas empregadas por um
grupo que visa manter a subordinação das mulheres negras por meio da naturalização
de situações de injustiça social que, de alguma maneira, privilegiam o grupo que almeja
a perpetuação de tal cenário.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

É importante salientar que, como mencionado, o conceito foi originalmente


pensado a partir das imagens sobre as afro-americanas. Esse limite deve ser
considerado em uma possível transposição do conceito para estudos de imagens de
mulheres negras no contexto brasileiro. A cultura brasileira apresenta particularidades
que devem ser ponderadas, e, mais além, podem ser visualizadas como elementos
constituintes das ideias que originam imagens restritivas quanto às situações de vidas
das mulheres negras no Brasil. Assim sendo, compreendemos que o uso do conceito
de imagens de controle deve estar alinhado a análises do contexto socioeconômico-
cultural da sociedade brasileira, pois, somente assim, poderá fazer jus às
potencialidades abordadas a seguir. Isso significa dizer que algumas imagens de
controle abordadas por Collins (2019) podem não ser localizadas no Brasil, bem como
outras podem emergir e, portanto, devem ser problematizadas.
O emprego das imagens de controle como justificativas para as situações de
injustiça social, tais como o racismo, o sexismo, a pobreza, o etarismo etc., está no fato
de que essas imagens conferem valores sociais às mulheres negras. Ao exercer tal
prática, os grupos de elite exercem poder ao manipularem ideias que constituem
valores sociais sobre as situações de vida das mulheres negras (COLLINS, 2019;
BUENO, 2019). Assim, as opressões interseccionais que atingem as mulheres negras
são naturalizadas e não combatidas. Diante desse cenário, Collins (2019) propõe
analisar as imagens de controle que são aplicadas às afro-americanas, pois, segundo ela,
isso possibilita conhecer aspectos relativos à objetificação das mulheres negras e como
o gênero, a raça, a classe e a sexualidade se interseccionam na composição de
opressões. Compreendemos, portanto, que a socióloga posiciona a problematização
das imagens sobre as afro-americanas como algo importante para a compreensão e,
consequentemente, desnaturalização das situações de opressões interseccionais.
As imagens de controle têm origem no período da escravização. Nesse
período, a ideologia dominante criou imagens sobre as situações de vida das mulheres
negras com o objetivo de manter a subordinação delas (COLLINS, 2019). Para isso,
duas ideias foram fortalecidas, sendo: 1) o pensamento binário, que categoriza as
pessoas segundo as diferenças existentes entre elas, o que forma pares, como
branco/negro, masculino/feminino etc.; e 2) a objetificação das mulheres negras, pois,
diferentemente de um sujeito, que possui o direito de definir a sua própria história e
identidade; como objeto, as identidades delas são definidas por terceiros, bem como
as suas histórias são nomeadas por outros, sempre em relação às outras pessoas
consideradas como sujeitos (COLLINS, 2019).
Bueno (2019) ressalta que as mulheres negras são objetificadas de acordo com
o seu gênero e sua raça, ou seja, enquanto mulheres e pessoas racializadas. A autora
reitera que a objetificação de um grupo pode resultar no ocultamento da existência
daquele que é objetificado (BUENO, 2019), o que expressa a gênese de tal relação de
poder. Assim, o pensamento binário reforçou a ideia de que as mulheres negras
constituem o Outro, o objeto que deve ser controlado para que não interfira nos

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

interesses daqueles considerados sujeitos, ou seja, dos grupos que se beneficiam de um


cenário de opressões de gênero, de raça, de classe e de sexualidade.
Bueno (2019) evidencia que as imagens de controle continuam a ser
reformuladas na sociedade contemporânea com o objetivo de justificar as violências
sofridas pelas mulheres negras. Um exemplo disso é encontrado nas representações de
corpo de mulheres negras na cultura popular contemporânea, pois, segundo hooks
(2019), tais imagens raramente criticam ou subvertem ideias originárias do aparato
cultural racista e sexista do século XIX sobre a sexualidade das mulheres negras. Como
visualizado por hooks (2019), destacamos a intersecção dos eixos de opressão na
constituição de imagens sobre as mulheres veiculadas na contemporaneidade. Nesse
sentido, concebemos que o conceito de imagens de controle elaborado por Collins
(2019) apresenta grande contribuição para os estudos de imagens, pois promove uma
compreensão ampla de como os sistemas de dominação de gênero, de raça, de classe
e de sexualidade constituem uma dimensão ideológica que molda situações de injustiça
social. Sobre esse ponto, concordamos com Bueno (2019), que afirma que:

As imagens de controle são centrais para que os sistemas interconectados de


dominação de raça, gênero, sexualidade e classe perpetuem um simbólico estrutural
que controla o comportamento de mulheres negras e sustenta as falácias da
superioridade racial a partir da opressão de gênero. Além disso, a classe desempenha
um papel significativo, interpelando a raça, a fim de moldar imagens de mulheres
negras (BUENO, 2019, p. 70).

Diante de tal potencialidade e para ser coerente com a afirmação acerca dos
limites de transposição do conceito em estudos de imagens de mulheres negras no
contexto brasileiro, precisamos abordar as situações de vida delas no Brasil. Lélia
Gonzalez (1982) ressalta que, para compreender melhor a situação da mulher negra e
do povo negro na sociedade brasileira, devemos retomar alguns fatos históricos, como
o período da escravização. Destaca a antropóloga que, oficialmente, o tráfico negreiro
teve início em 1550, mas antes mesmo já havia africanos trabalhando em plantações
de cana-de-açúcar no Brasil, de modo que, no final do século XVI, os escravos eram a
maioria da população (GONZALEZ, 1982).
O povo negro sempre articulou resistências contra as situações de exploração
vivenciadas no Brasil, exemplos disso eram os quilombos, formas de resistência
ordenada como organização social; e os movimentos urbanos armados, que buscavam
a tomada do poder (GONZALEZ, 1982). Nesse contexto, a mulher negra exercia a
“tarefa de doação de força moral para seu homem, seus filhos ou seus irmãos de
cativeiro” (GONZALEZ, 1982, p. 92). As escravas do eito, mulheres que atuavam nas
plantações, incitavam os seus companheiros para a fuga ou a revolta; as mucamas, por
sua vez, eram as responsáveis pelos trabalhos domésticos da casa grande e por cuidar
e amamentar as crianças brancas, e, após o ofício na casa grande, elas cuidavam de seus
filhos e filhas e davam assistência aos companheiros que retornavam do trabalho nas
plantações (GONZALEZ, 1982). Ainda por meio desse resgate histórico, Gonzalez

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

(1982) ressalta que as mucamas eram exploradas sexualmente pelos homens brancos,
fato que, apesar de ser uma violência, era motivo de ciúmes por parte das sinhás.
Os aspectos históricos abordados por Gonzalez (1982) expõem um passado
em que as mulheres negras possuíam posições específicas na sociedade brasileira.
Operacionalizando tais posições com o conceito de imagens de controle de Collins
(2019), visualizamos uma aproximação entre a mammy e o ofício de cuidado com os
afazeres domésticos desempenhado pela mucama. A mammy é a serviçal fiel e obediente
das famílias brancas. Segundo Collins (2019), essa imagem de controle, no passado,
justificava a exploração econômica das escravas domésticas e, na contemporaneidade,
objetiva legitimar a manutenção das mulheres negras na prestação de serviços
domésticos. Tal imagem de controle reitera opressões de gênero, de raça e de classe
das mulheres negras enquanto pessoa que ocupa a posição de serviçal para a família
branca.
O posicionamento das mulheres negras como prestadoras do trabalho
doméstico também foi visualizado por Gonzalez (1984). Para ela, a empregada
doméstica é a “mucama permitida” no cotidiano, momento em que a dimensão sexual
é ocultada, sendo retomada em situações como o Carnaval, em que as mulheres negras
são vistas pela imagem da mulata3 (GONZALEZ, 1994). No cotidiano, ressalta
Gonzalez (1994), as mulheres negras são concebidas como domésticas, independente
de realizarem ou não essa atividade, pois, a partir de um julgamento racista, classista e
sexista, ocorrem situações de discriminação, nas quais as mulheres negras são
impedidas de usarem elevadores principais ou são barradas por porteiros e seguranças
que presumem que a posição delas é de servidão.
Segundo Collins (2019), a imagem de controle da mammy objetiva ocultar tal
exploração, de modo que naturaliza o fato de que mulheres negras possuem ganhos
menores do que mulheres brancas, homens brancos e homens negros. Esse cenário
desigual é uma realidade do Brasil, pois, de acordo com o informativo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que analisou a ocupação formal ou
informal em relação ao rendimento médio real habitual de pessoas ocupadas no Brasil
em 2018, as mulheres pretas ou pardas (47,8%) eram o grupo que mais exercia
ocupações informais, em relação às taxas de homens pretos ou pardos (46,9%),
mulheres brancas (34,7%) e homens brancos (34,4%) (IBGE, 2019). Em relação ao
rendimento médio, as pessoas brancas receberam R$2.796 em 2018; enquanto as

3 A antropóloga mobiliza o termo “mulata” considerando o seu significado tradicionalmente


aceito, sendo “filha ou mestiça de preto/a com branca/o” (GONZALEZ, 1982, p. 98), o que
é concebido por ela como “produto de exportação”, ou seja, quando jovens negras exibem
seus corpos seminus para a apreciação de homens, principalmente turistas que visitam o Brasil
durante as comemorações do Carnaval (GONZALEZ, 1982). Os termos “mulata” e “mulato”
são concebidos como pejorativos, pois remetem a como os adeptos da interpretação biológica
dos comportamentos humanos em estudos sobre as raças nomeavam, a partir do século XIX,
o filho ou a filha de um homem negro com uma mulher branca/de uma mulher branca com
um homem negro, de modo que tal termo faz alusão à mula, sugerindo uma possível
esterilidade do rapaz ou da moça adquirida pela miscigenação das raças (SCHWARCZ, 1993).

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Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

pessoas pretas ou pardas receberam R$1.608 (IBGE, 2019). Em ocupações formais,


pessoas brancas tiveram em média R$3.282 de rendimento, sendo que o valor médio
das pessoas pretas ou pardas foi de R$2.082 no mesmo período (IBGE, 2019). Apesar
dos rendimentos serem menores para os dois grupos nas ocupações informais, pessoas
brancas ainda tiveram maior rendimento em 2018 (R$1.814) em relação ao rendimento
médio das pessoas pretas ou pardas (R$1.050) (IBGE, 2019). Assim, sendo as mulheres
negras o grupo que mais exerce ocupações informais e essa atividade a que teve menor
rendimento em 2018, entendemos que elas são as que estão em pior situação dentro
deste cenário desigual da sociedade brasileira.
A proximidade da imagem de controle da mammy da empregada doméstica
abordada por Gonzalez (1984) e os dados sobre as ocupações e os rendimentos dos
brasileiros e brasileiras expõem uma possibilidade de mobilização do conceito de
Collins em estudos de imagens de mulheres negras no contexto brasileiro. Essa
percepção se reforça quando visualizamos a situação de exploração econômica de
classe social vivenciada pelas mulheres negras no Brasil. Assim sendo, compreendemos
que as imagens de mulheres negras na situação de serviçal doméstica das famílias
brancas veiculadas em novelas, programas de televisão, filmes, publicidade etc. no país
podem ser problematizadas tendo em vista a imagem de controle da mammy.
A imagem de controle da mãe dependente do Estado, por sua vez, está
relacionada ao acesso, por parte das mulheres negras de classe trabalhadora, aos
direitos providos pelo Estado, de modo que expõe um viés de gênero, de classe e de
raça (COLLINS, 2019). A origem dessa imagem está na ideia da mulher negra
procriadora, pois atrela a fecundidade das mulheres negras à economia política
(COLLINS, 2019). Segundo Collins (2019, p. 150), “durante a escravidão, a imagem
da mulher procriadora retratava as mulheres negras como mais adequadas para ter
filhos tão facilmente quanto os animais, essa imagem forneceu justificação para a
interferência na vida reprodutiva das africanas escravizadas”. No contexto
contemporâneo brasileiro, Bueno (2019) destaca que essa imagem de controle foi
evocada pelos grupos de elite quando foram aplicadas políticas de redistribuição de
renda nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (de 1 de janeiro de 2003 a 31 de
dezembro de 2010) e de Dilma Rousseff (de 1 de janeiro de 2011 a 31 de agosto de
2016), ambos do Partido dos Trabalhadores. Nessa imagem de controle, a fecundidade
das mulheres negras seria considerada um problema na medida em que significaria
maior acesso às políticas de bem-estar social, pois parte da ideia de que as mulheres
negras se reproduziam para aumentar o valor recebido por benefícios sociais
(BUENO, 2019).
A dimensão sexual mencionada por Gonzalez (1984) na imagem da mulata se
aproxima da imagem de controle da jezebel. Segundo Collins (2019), essa imagem
exprime os esforços para controlar a sexualidade das mulheres negras, pois posiciona
as mulheres na categoria de sexualmente agressivas, o que, no período da escravização,
visava justificar os ataques sexuais dos homens brancos. Essa imagem de controle
promove a animalização dos corpos e das condutas das mulheres negras, pois, como

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

ressalta Bueno (2019), o pensamento binário institui parâmetros a partir da concepção


que se tem sobre as mulheres brancas, concebidas como exemplos de feminilidade,
meigas e doces no âmbito da sexualidade; as mulheres negras, por sua vez, são
compreendidas enquanto promíscuas, lascivas e, até mesmo, predadoras sexuais.
Segundo Bueno (2019), a ideia de que os negros e as negras são sexualmente
ativos está relacionada ao etnocentrismo europeu do século XVII, pois os europeus,
ao se depararem com os nativos africanos e indígenas com poucas vestimentas,
consideraram tais costumes obscenos e um indício de luxúria sexual descontrolada.
Essa ideia promoveu, além da objetificação do povo negro, a sexualização de seus
corpos. Nesse aspecto, a reprodução da imagem de controle da jezebel nas sociedades
contemporâneas perpetua tal significação acerca das mulheres negras.
Observamos que as imagens de controle mencionadas agregam concepções
negativas sobre as mulheres negras. Contudo, Bueno (2019) ressalta que é possível a
existência de imagens de controle que partem de ideias e comportamentos lidos como
positivos. Essas imagens são problemáticas porque, assim como as imagens concebidas
a partir de leituras negativas, são formuladas por uma definição externa (BUENO,
2019). Assim sendo, compreendemos que uma questão central relativa às imagens
sobre as mulheres negras está no fato de que, objetificadas, elas são definidas por
terceiros. Nesse ponto, reiteramos a importância da autodefinição e da autoavaliação
como formas de resistência às imagens de controle.
Ainda dentro do escopo de potencialidades do uso do conceito de imagens de
controle de Collins (2016, 2019) em estudos que se propõem a investigar as imagens
de mulheres negras no contexto brasileiro, compreendemos que tal conceito
proporciona uma análise de como as ideias originárias do período da escravização
operam como justificativas para as situações de injustiça social no Brasil. Bueno (2019)
explica que “assim como as imagens de controle foram utilizadas durante o período
escravocrata para justificar as violências produzidas pelo racismo, na atualidade, mídia
de massas reproduz as ideologias necessárias para a manutenção das estruturas de
segregação racial”. Nesse entendimento, o conceito de imagens de controle possibilita
investigar como as ideologias racista e sexista são reproduzidas visando a manutenção
da subordinação das mulheres negras na sociedade brasileira.

Considerações finais

O conceito de imagens de controle integra o pensamento feminista negro,


teoria social crítica elaborada pela socióloga Patricia Hill Collins (2016, 2019). Esse
conceito problematiza as imagens sobre as mulheres negras estadunidenses originárias
no período da escravização e que constituem uma dimensão ideológica da opressão
sobre elas (COLLINS, 2016, 2019). Dentro da perspectiva teórica que integra, as
imagens de controle são concebidas como elementos que oferecem justificativas para
as situações de injustiça social, como o racismo, o sexismo, a pobreza, o etarismo etc.,

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

pois as imagens atribuem valorações às mulheres negras (COLLINS, 2019, BUENO,


2019). Assim, o conceito formulado por Collins (2019) propõe analisar as imagens de
controle que são aplicadas às afro-americanas, pois possibilita investigar aspectos
relativos à objetificação das mulheres negras e compreender como o gênero, a raça, a
classe e a sexualidade se interseccionam na composição de opressões.
Como evidenciado, o conceito foi elaborado tendo em vista a cultura
estadunidense. Esse fato expõe um limite do mesmo, haja vista que cada sociedade
possui aspectos culturais específicos. Consideramos esse limite e compreendemos que
o mesmo possa ser contornado se o uso do conceito for acompanhado de informações
sobre as situações de vida das mulheres negras no contexto socioeconômico cultural
brasileiro. Assim, as particularidades da sociedade brasileira são consideradas, bem
como significa uma postura de melhor diálogo com a realidade social da investigação,
que pode fazer emergir imagens restritivas quanto às situações de vida das mulheres
negras no Brasil passíveis de serem analisadas.
Acerca das potencialidades da transposição do conceito para estudos de
imagens de mulheres negras no contexto brasileiro, as imagens de controle da mammy,
da mãe dependente do Estado e da jezebel abordadas neste estudo expõem uma
possível aplicabilidade do conceito, pois proporcionam análises de como ideias
originárias no período da escravização oferecem justificativas para as situações de
injustiça social no Brasil. Assim sendo, consideramos que o conceito pode contribuir
para investigações que problematizem as opressões aplicadas às vivências das mulheres
negras na sociedade brasileira; bem como sobre as formas de resistência às imagens de
controle articuladas por este grupo.

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo. Ed. Sueli Carneiro: Pólen,


2019.

BUENO, Winnie de Campos. Processos de resistência e construção de


subjetividade no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra
Black Feminist Thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment (2009) a partir
do conceito de imagens de controle. 2019. 167 f. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2019.

COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica


do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99/127,
jan/abr 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-
31-01- 00099.pdf. Acesso em: 09 mar. 2021.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e


a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

GONZALEZ. Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, Madel T. (Org.).
O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1982. p. 87-106.

GONZALEZ. Lélia. Racismo e sexismo da cultura brasileira. Revista Ciências


Sociais Hoje, Anpocs, São Paulo, 1984, p. 223-244.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

IBGE, (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Diretoria de Pesquisas,


Coordenação de População e Indicadores Sociais. Desigualdade Sociais por Cor ou
Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.
Acesso em 24 jun. 2021.

LUGONES, María. “The Coloniality of Gender”.In: Worlds & Knowledges


Otherwise, p. 1-16, 2008.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e


questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia Brasileira das Letras,
1993.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

O SOM AO REDOR, FILM AS PHILOSOPHY

Igor Gonçalves de Jesus1

Resumo: O fazer filosófico está em constante mudança, desde o surgimento da escrita


até as tecnologias mais recentes, não seria diferente com o advento da sétima arte.
Stanley Cavell, em suas reflexões sobre Cinema e Filosofia, identificou que a criação
do cinema estivesse destinada à Filosofia [as if meant for philosophy] e isso nos levaria
a uma forma peculiar da produção filosófica. Aceitando o direcionamento de Cavell,
o presente artigo tem por objetivo investigar essa questão relacionada ao âmbito da
Filosofia do Cinema, especificamente voltada ao cinema brasileiro, conjugada pela
análise fílmica da obra de Kleber Mendonça Filho intitulada O som ao redor (2012).
A questão, em sua maneira sintética de expressão, “De qual maneira percebe-se um
fazer filosófico no primeiro longa de Kleber Mendonça Filho?”. As respostas dirigidas
neste artigo possuem, também, a intenção de investigar uma produção de filmes como
filosofia no âmbito nacional, ou seja, como podemos direcionar nossa percepção, em
alguns filmes nacionais, para pistas da existência do fazer filosófico fílmico. Como
reforço de nosso horizonte, apoiaremos nossas ideias em referenciais teóricos como
James Conant, o próprio Stanley Cavell e alguns pensadores brasileiros como Miriam
Rossini.

Palavras-chave: Filosofia. Filosofia do Cinema. Stanley Cavell. Cinema brasileiro

Introdução

O presente artigo tem por objetivo investigar uma questão relacionada ao


âmbito da Filosofia do Cinema conjugada pela análise fílmica da obra de Kleber
Mendonça Filho intitulada “O som ao redor”. A questão, em sua maneira sintética de
expressão, “de qual maneira percebe-se um fazer filosófico no primeiro longa de
Kleber Mendonça Filho?”. Para sanarmos qualquer tipo de investida contra a validade,
ou efetividade, daquilo que se trabalhará no decorrer deste escrito, disporemos de uma
introdução afirmativa sobre como é possível um filme fazer Filosofia.
Para James Conant,

“Filosofia”, disse Aristóteles, “começa com o maravilhamento”. Essa é uma maneira


simpática de dizê-lo. Mas o que isso significa na prática pode muitas vezes ser
experimentado como alguma coisa um tanto irritante. Filosofia muitas vezes consiste
em perguntar questões que são tão elementares que pode parecer que suas respostas
devem ser óbvias. Uma coisa que pode tornar irritante a atividade da filosofia é que
quando se tenta responder essas perguntas aparentemente infantis, descobre-se que

1 Mestrando em Filosofia pela UFRGS. E-mail: xiggorx@gmail.com

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

calha de ser surpreendentemente difícil fazê-lo. Questões filosóficas muitas vezes têm
a forma de uma pergunta por alguma coisa que aparentemente não podemos deixar
de saber, mas que quando tentamos dizer o que é isso que todos já sabemos, nos
encontramos incapazes de dizer alguma coisa que nos satisfaça. Nos encontramos
envolvidos pela perplexidade.2

Podemos partir da exposição acima do texto de James Conant para traçar um


direcionamento sobre a possibilidades de filmes fazer Filosofia. Porém, torna-se
necessário um alerta que a finalidade deste escrito não é uma defesa definitiva ou um
ponto final para tal debate dentro dos limites da Filosofia, mas sim de uma explicitação
da abertura da discussão filosófica por novos meios.
Se tomarmos como verdadeira a máxima aristotélica acerca do maravilhamento
como estopim do processo de investigação filosófica, então a argumentação acerca de
que podemos nos maravilhar das maneiras mais diversas, e por diferentes meios,
mostra-se plausível para dizer que o ato de filosofar não se limita a uma forma de
escrita analítica ou ensaísta. Não iremos adentrar nas traduções, ou questões mais
pontuais acerca do que Aristóteles estaria chamando por “maravilhamento”, cabe aqui
apenas supor que é um fenômeno humano que produz na mente de quem percebe um
contato com questões mais íntimas e elementares acerca do modo como entendemos
e/ou interagimos com a realidade que nos cerca.
Tal concepção aristotélica vai ao encontro de sensações estéticas e de ordem
subjetiva que um filme pode nos proporcionar. Por meio de desenvolvimento de
histórias, técnicas de filmagens e montagem, um filme se mostra como meio para que
possamos ser atingidos por esse maravilhamento. Os filmes podem nos levar a
perceber situações que ignoramos cotidianamente, ou por motivos de determinação
ideológicas ou por problemas com a proximidade geográfica das situações. Essa
relação com o ver realidades que não estão apresentadas para nós de maneira distinta
pode ser dada através da obra cinematográfica. Porém, interessante notar que se nosso
cerne argumentativo for válido a Filosofia pode ser produzida por diversas maneiras e
meios.
Para Cavell,

The condition of human perception I claim film reveals is our modern fate of live in
the world primarily by viewing it, taking views of it. As if something has increasingly
been happening to us over the past two or three centuries that has produced a sense
of distance from the world.3

Se conecta com o que expomos anteriormente, a prevalência do ver como


principal fonte de acesso ao mundo que nos cerca torna possível afirmações sobre a

2 CONANT, James. O mundo de um filme. Trad. Nykolas Fredrich Von Peters, in TECHIO,
Jônadas e WILLIGES, Flávio. Filosofia e Cinema: Uma Antologia. Editora UFPEL, Pelotas,
2019.
3 Cavell on Film, pp. 109-110

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

relação do fazer filosófico por meio dos filmes. Seria algo direcionado para o modo de
como os filmes desvelam para o ser humano condições anteriores a sua própria
percepção, sejam essas condições de ordem moral, estética, epistêmica, de linguagem
etc. Dito de outro modo, o cinema/os filmes apresenta-se para a Filosofia como um
âmbito aberto para experimentação da possibilidade de visualizar ideais e situações
onde, até então, só era possível por meio de experiências de pensamento ou reflexões
mais elaboradas.
Nossa hipótese, dita de maneira suscita nos parágrafos acima, é de que o
desenvolvimento do cinema e as diversas formas de se fazer um filme proporcionam
para um espectador um despertar para o maravilhamento inerente às questões
filosóficas presentes na nossa realidade. Esse acesso é dado de um modo
fundamentalmente audiovisual, apenas isso já reconstrói o fazer filosófico preso, até
aquele momento, a uma quase exclusividade da escrita. Abre-se então uma gama de
novas investigações de questões filosóficas oriundas desse novo meio de produção,
onde os sentidos humanos são mais cobrados como meios para percepção dessas
questões fundamentais. Experienciar por meio de um filme como situações e
problemas se apresentam em uma determinada situação passou a ser cada vez mais
frequente nas nossas idas ao cinema, ou no consumo das plataformas de streaming.
Tendo apresentado a discussão sobre a possibilidades de filmes fazerem
filosofia, e não esgotando um âmbito tão fecundo para debates, podemos passar, agora,
à investigação sobre a resposta de nossa primeira questão, a saber, há no filme ‘O som ao
redor’ o desenvolvimento de uma Filosofia cinematográfica?

O Filme e a Filosofia

O primeiro longa-metragem de ficção do diretor Kleber Mendonça Filho traz


consigo a possibilidade de construirmos uma averiguação acerca da possibilidade de
haver ali algum tipo de fazer filosófico. Partiremos da ideia de que não há um método
definitivo para propor asseverações sobre a identificação da presentificação de
questões filosóficas numa obra cinematográfica, incorremos, então, num
direcionamento que acaba por investigar alguns casos específicos e identificar suas
características e particularidades filosóficas, bem como propõe uma vertente
wittgensteiniana da Filosofia.
Para começarmos as considerações acerca da resposta à nossa questão
norteadora precisamos esclarecer o percurso que iremos tomar. Para Rossini (2008)
“O sentido do filme é, portanto, um entre muitos outros. [...] Através do filme,
revivemos o passado, percebemos novas nuances do presente, conhecemos outras
culturas, capturados pelo efeito de realidade, ou seja, pela sensação de estarmos diante
da concretude do real.” Partiremos da definição sobre sentido do filme defendida por
Rossini e exploraremos a presença no filme “O som ao redor”.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Como norte teórico temos a ideia de que os filmes seriam objetos abertos a
variadas perspectivas de sentido, e entendemos que esses sentidos podem ser ditos de
três modos distintos, a saber, o sentido da produção do filme, o sentido do objeto fílmico e, por
fim, o sentido do tempo. Acreditamos que há aqui uma similaridade com o que é
defendido por Conant no seu artigo “O mundo de um filme” (2019), onde haveria três
formas de registro ontológicos para falarmos de um filme, uma forma relacionada à
produção fílmica, aquilo que é mostrado no filme e aquilo que está presente no mundo do filme.
O sentido da produção do filme, encontrado no pensamento de Rossini, conecta-se
com o que Conant chama de forma relacionada à produção fílmica, pois há no background
de ambos a ideia de que aquilo que é feito anteriormente ao que vemos na tela garante
no espectador uma sensação mais profunda das questões abordadas no filme. Locais
onde o filme se passa, os atores escalados para representar os papéis, questões técnicas,
como as relações dos diretos de arte, fotografia, geral etc., impactam como será nossa
inserção naquele mundo a ser representado pela tela do cinema e o quão profunda será
nossa sensação do real com aquela obra. O sentido do objeto fílmico e o que é mostrado no
filme também possuem similaridades, pois em ambos há o direcionamento para aquilo
que existiria exclusivamente no mundo do filme, isto é, as técnicas de direção, recursos
audiovisuais, a montagem das cenas etc. Por fim, o que Rossini chama de sentido do
tempo, parece estar atrelado à concepção de Conant daquilo que está presente no mundo do
filme, o que seria fundamentalmente percebido apenas naquele mundo criado em tela
que vemos, elementos como a história do filme, o desenvolvimento dos personagens
e lugares, o enredo principal e adjacentes, a temporalidade, etc.

Figura 1 - Plano zenital


Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

Há na cena acima uma conexão com os 3 aspectos supracitados da relação


entre os conceitos de Conant e Rossini. Pode-se perceber elementos de construção de

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

cena pelo uso de uma razão de aspecto, desenho de luz, enquadramento, lentes da
câmera, etc. Percebe-se também elementos inerentes ao próprio filme, tal qual os
carros que não possuem a mesma finalidade dentro das telas e fora delas, para tanto os
carros na cena em questão podem servir como artifício metafórico para denotar uma
passagem de tempo e/ou uma temporalidade frenética de uma Recife que ignora
relações afetivas que podem haver por suas ruas. Por fim, identificamos também a
continuidade da montagem de uma unidade estilística do filme como sendo algo que é
próprio do filme. Isto é, aquilo que o diretor mostra no começo de seu filme não está
ali sem nenhum propósito, mas sim serve para sintetizar um processo que será
desenvolvido no decorrer da trama e essa imagem citada volta como uma referência
simbólica no terceiro ato da obra.

Figura 2 - Rima visual


Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

O diretor Kleber Mendonça Filho utiliza-se de rimas visuais e sonoras para


construir sua trama e desenvolver seus personagens, cada elemento apresentado serve
como um propósito maior no escopo fílmico. O Som ao Redor se desenvolve em quatro
atos, divididos em três partes, pode-se, à primeira vista, parecer um recurso simplório
para que o espectador adentre no universo criado no filme, porém tal recurso também
pode servir como desafio para aquele que assiste em exercitar sua percepção das
relações desenvolvidas no filme.
Torna-se necessário explicitar aqui que não iremos fazer uma análise cena a
cena do filme, nem tampouco iremos propor uma crítica cinematográfica da obra em
questão. Mas sim investigaremos como estão presentes os elementos filosóficos no
filme.
Sim, partimos da ideia de que há em O Som ao Redor uma forma filosófica de
refletir alguns temas presentes na realidade do povo brasileiro. A primeira e mais

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

notável reflexão é a ideia de divisão social dentro de Recife, mas não se limitando
apenas a essa capital.
Durante toda a trama elementos fílmicos são articulados para produzir no
espectador a sensação de como a divisão social é percebida de maneira díspar entre os
personagens em tela. No exemplo abaixo, a cena se constrói de modo a mostrar essa
presença, enquanto o casal está acordando em uma sala suja pelos restos de uma festa
ocorrida na noite anterior, a empregada com suas netas chega pelos fundos para
começar mais um dia de trabalho.

Figura 3 - As divisões sociais


Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

A parede que divide a cena serve como metáfora para os mecanismos de


distanciamento das classes sociais na nossa realidade, enquanto de um lado da cena há
aqueles que gozam dos prazeres de viver em uma sociedade extremamente desigual,
do outro vemos uma família que não tem opção a não ser enfrentar diversas
humilhações para conseguir o seu sustento.
O filme também constrói em nós uma inquietação acerca das relações de
espaço e propriedade que se mostra além de um primeiro olhar sobre o enredo da
película, mas está numa camada mais profunda de compreensão quando investigamos
a relação entre a câmera e a cena. O Som ao Redor arquiteta sua Recife de maneira quase
labiríntica, onde a mescla entre a dinâmica do aberto e fechado funciona quase como
uma rima visual da espacialidade da divisão social, ao ponto que os personagens com
um maior poder aquisitivo são retratados, em sua maioria, em planos abertos (o que
dá ao espectador a possibilidade de contemplar horizontes possíveis daquela cidade),
e, os personagens mais marginalizados, como as empregadas, estão sempre em planos
mais fechados e internos, criando uma sensação de isolamento e/ou de exclusão da
percepção da sua própria cidade.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 4 - Contrastes
Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

O contraste da amplitude representada na imagem acima vai de encontro com


a carência de espaço nas cenas que se seguem. Essa dinâmica remonta às relações sobre
liberdade que pode ser percebida em nossa realidade, enquanto a luta por espaço e a
qualidade desse espaço é notável pela expansão vertical das cidades pela especulação
imobiliária, para a população mais humilde a finitude se apresenta como o único
caminho a ser trilhado.
A relação da finitude e da amplitude apresenta-se como plano de fundo durante
o tempo da obra. Os personagens mais abastados financeiramente são comumente
caracterizados como despregados de valores convencionais, o amor que não precisa
ser eterno, o conhecimento do mundo, mas ainda voltando para suas origens, a
relativização da criminalidade, a preocupação com a importância social das funções
desempenhadas etc. Já os personagens mais humildes caracterizam-se por sentimentos
mais naturais, como a raiva, o rancor, a ira, além de serem reiteradamente associados
ao egoísmo mais radical, como a dona de casa que tenta de várias maneiras silenciar o
cachorro.
Porém há ainda uma certa subversão desses pressupostos. Encontramos no
decorrer do filme cenas que sugerem que esses aspectos sociais não são tão simplórios
assim. Destacamos aqui dois momentos distintos, o primeiro remete-se à cena dos
garotos jogando futebol dentro de uma residência, com o aumento da verticalização e
os inúmeros prédios e condomínios sendo construídos a diversão em comunitária teve
que sofrer uma mudança, mas ainda está presente. As crianças jogando futebol são um
exemplo de uma certa forma de resistência das tradições mais básicas do convívio em
vizinhança, onde mesmo com pouco espaço para a diversão, acabam por encontrar

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

um modo de superar as limitações territoriais e adaptar a socialização aos caminhos


mais estreitos desse labirinto de sons e prédios.
O segundo momento é justamente a cena em que há três personagens
banhando-se em uma cachoeira quando um deles tem um insight da sua riqueza ter sido
construída por meio do sangue da exploração escravocrata de sua família. Nesse
momento, o diretor faz questão de pôr o ator olhando diretamente para a câmera,
como uma conversa visual, num diálogo sem a presença de palavras como só o cinema
nos permite experienciar. Porém a cena não se encerra por aí, a sequência do
personagem acordando e continuando olhando para a câmera reforça ainda mais esse
diálogo e a percepção de que aquilo que vimos não foi apenas um sonho, mas sim uma
representação visual de uma parte infeliz da história brasileira. A grandiosidade da cena
não para por aí, pois o diretor faz questão de nos mostrar que, ao acordar, o
personagem não está apenas olhando para nós, ele está olhando, também, diretamente
para uma jovem criança filha e uma empregada doméstica, negra.

Figura 5 - O olhar para além do filme


Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

O fazer filosófico do filme

Acreditamos que tendo respondido a primeira questão proposta neste artigo,


podemos passar, então, para o empenho de traçar n’O Som ao Redor as formas em que
há o desenvolvimento das questões filosóficas presentes. Para tanto buscaremos apoio
teórico em alguns escritos de Stanley Cavell.
O fazer filosófico presente no filme de Kleber Mendonça Filho se mostra de
uma maneira distinta das demais formas de fazer filosofia. Para além das questões que

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

já foram expostas nesse artigo, que podemos tirar de uma leitura mais primária, ou
mais profunda, da obra, há, também, outras questões adjacentes e que são caras à
Filosofia. Não adentraremos na tarefa de enumerá-las, apenas deixaremos de
sobressalto questões como o consumo de bens culturais por uma classe social mais
rica e a marginalização da sexualidade dentro de nossa sociedade.
Entretanto, o diretor vai além em apresentar questões Filosóficas nos diálogos
proferidos pelos personagens ou por referências visuais a questões mais complexas,
acreditamos que cinematográfico filosófico tem seu expoente na forma que o filme é
feito, ou seja, na unidade estilística do filme. Sendo mais específico, acreditamos que o
fazer filosófico de O Som ao Redor está em deixar o espaço ser o protagonista da história,
onde o espaço fílmico acaba falando muito mais que os personagens.
Para sustentar essa ideia precisamos de alguns pressupostos teóricos da
Filosofia de Stanley Cavell,

If the presence of the camera is to be made known, it has to be acknowledged in the


work it does. This is the seriousness of all the shakings and turnings and zoomings
and reinings and unkind cuts to which it has lately been impelled. But then why isn't
the projected image itself a sufficient acknowledgment? Surely we are not in doubt
that it comes by way of a camera. But what is this certainty, this not being in doubt?4

Quando o espectador percebe a presença da câmera naquela obra que se está


vendo, deve-se ter, por parte da produção do filme, alguma finalidade que devemos
atentar. Parece nos projetar uma certeza de que ali estamos vendo um personagem que
não é o próprio ator que interpreta, mas sim algo diferente, podemos ver uma rua
sendo mostrada, mas não é a mesma rua que conhecemos, perceber que a câmera gera
um impacto na forma de realidade que percebemos no mundo fílmico faz parte do
jogo cinematográfico com o qual estamos acostumados a interagir. A câmera pode dar
vida a um personagem, a uma história, a um enredo, mas no caso de O Som ao Redor,
acreditamos que ela põe vida no espaço fílmico.
A dinâmica da montagem do filme revela de maneira direta as tensões
implícitas entre os núcleos de personagens e histórias desenvolvidas pela obra. Os
embates entre os personagens não é o único motor que move a trama, mas há também
o embate com o espaço presente.

4 The World Viewed, p. 128.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 6 - O olhar para fora


Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

Figura 7 - O olhar para dentro


Cena do filme O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2013

A representação desse espaço acaba sendo tencionada pela representação


dramática dos personagens. Enquanto os personagens interagem com a câmera,
desenvolvendo sua atuação, para mostrar suas intenções, medos, desejos etc. O espaço
é uma parte desse diálogo sem voz, cuja única maneira de sabermos que ali há um
participante na conversa é através do uso da câmera.
“The camera cannot in general merely declare itself; it must give at least the
illusion of saying something.” (CAVELL, 1979) e no filme isso se faz presente. A
câmera deixa essa ilusão de que há algo sendo dito, mas sem o uso das palavras, a

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

cidade parece dialogar com a trama, onde o espaço público e privado, através de uma
problematização mais iconográfica da forma que uma cidade pode se alterar, ou pela
falta de uma concretude nítida da importância da dinâmica geográfica para criação de
um sentido próprio de um povo, o diretor parece saber que deixar a câmera ser a voz
dessa cidade sem palavras, sem meio para se comunicar, sem interlocutor, é a chave de
oferecer uma reflexão sobre as nossas relações simbólicas dentro de uma história social
presente ao nosso redor.

Conclusão

Por fim, cremos ter alcançado os objetivos traçados para o desenvolvimento


deste artigo, não esgotando a discussão, mas ampliando nosso horizonte de perspectiva
para o ato de fazer Filosofia. Porém, talvez tenhamos incorrido num outro âmbito de
maneira indireta, uma discussão sobre a possibilidade de o audiovisual criar formas de
representações filosóficas de maneira própria. Isto é, o trançar das formas de
audiovisuais de pensar e apresentar ideias pode acabar por gerar uma particular análise
de suas produções. Analogamente à revolução no fazer filosófico provocada pelo uso
da escrita, o som e a imagem, para nosso tempo, pode gerar um novo leque de questões
e experimentações de conceitos filosóficos pouco explorados ao longo da história.
É de nosso conhecimento que o que foi apresentado aqui possa ser colocado
em dúvida, apontando limites para aplicação em outros casos, ou mesmo sobre a
possibilidade de universalização dos argumentos usados. Não é de nossa intenção
esperar que nossa análise sirva como fundamento para analisar-se outras obras
audiovisuais, bem como que nosso empenho seja o único possível para pensar sobre a
obra de Kleber Mendonça Filho. Esperamos apenas que o presente artigo crie debates
e conflitos saudáveis para gerar cada vez mais literatura sobre os enlaces entre a
Filosofia e o Cinema.
Partilhamos de uma ideia cavelliana sobre a relação do cinema com a Filosofia,
presente em sua obra Contesting Tears, de que o cinema estivesse destinado à Filosofia,
pois essa tecnologia/arte impactaria na forma do fazer filosófico sobre representações
e noções de realidade. Isto é, o surgimento do cinema impactaria na forma de organizar
o saber filosófico frente à possibilidade de experimentar linguagens que não estão
limitadas a palavras, mas onde há a possibilidade de explorar imagens, montagens,
decupagem, e, para o nosso objeto de estudo nesse artigo, o som.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Referências

CAVELL, S. Cavell on Film. New York: SUNY Press, 2005.

_________. The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film. New York:
The Viking Press, 1971.

_________. The Claim of Reason: Wittgenstein, Skepticism, Morality, and Tragedy.


New York: Oxford University Press, 1979

CONANT, James. O mundo de um filme. Trad. Nykolas Fredrich Von Peters, in


TECHIO, Jônadas e WILLIGES, Flávio. Filosofia e Cinema: Uma Antologia.
Editora UFPEL, Pelotas, 2019.

O SOM ao redor. Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie


Lesclaux. Brasil, 2012. DVD, Recife: Cinemascópio, colorido, 131 min., NTSC, 2013.

ROSSINI, M. S. O cinema e a história: ênfases e linguagens. In: Sandra Jatahy


Pesavento; Nádia Maria Weber Santos; Miriam de Souza Rossini. (Org.). Narrativas,
imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. 1 ed.Porto Alegre:
Asterisco, 2008, v. 1, p. 123-147.

ROTHMAN, William (ed.). Cavell On Film. New York: State University of New
York Press, 2005.

SINNERBRINK, Robert. New Philosophies of Film: Thinking Images. London


and New York: Continuum, 2011.

MULHALL, Stephen. On Film. Oxford: Routledge, 2008. ISBN 9780415441537.

WARTENBERG, Thomas E. "Beyond mere illustration: How films can be


philosophy." In: The Journal of aesthetics and art criticism, 64.1, 2006, pp. 19-32.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

AS FOTOGRAFIAS DE EVANDRO TEIXEIRA E SEU OLHAR


ENGAJADO NO FOTOLIVRO “

Luís Gustavo Cavalheiro Silva1

Resumo: Durante a década de 1960, a imprensa brasileira sofre um processo de reformas


editoriais e gráficas, em que a fotografia passa a ser mais valorizada. Outras mudanças se
deram na expansão e profissionalização dos fotógrafos nas décadas de 1970 e 1980. Neste
cenário, temos Evandro Teixeira, responsável por registrar momentos marcantes da história
do Brasil, como a tomada do Forte de Copacabana pelos militares; a passeata dos 100 mil e
o movimento estudantil de 1968, além de ser um dos fotógrafos que conseguiram registrar o
funeral do poeta Pablo Neruda, durante a queda do governo do presidente Salvador Allende,
no Chile, em 1973. Tomando como fonte e objeto o fotolivro Vou Viver: tributo ao Poeta
Pablo Neruda (2005), de Evandro Teixeira, esta pesquisa, realizada no âmbito do meu
mestrado (em andamento), pretende realizar análises sistemáticas de seu conteúdo, a fim de
recompor um diálogo que as fotografias em questão estabeleceram com o contexto político,
social e cultural da época em que as imagens foram capturadas e em que o fotolivro foi
publicado. Busca-se, com isso, ampliar a compreensão da história do fotojornalismo
brasileiro, bem como contribuir para o estudo de fotolivros latino-americanos.

Palavras-chave: Evandro Teixeira; Fotolivro; Fotografia; Fotojornalismo; Fotojornalistas


Brasileiros.

Introdução: notas sobre fotografia e fotojornalismo

Vivemos em uma sociedade onde temos fácil acesso a milhares de fotografias


diariamente. Registros de acontecimentos do mundo todo são compartilhados pela
internet quase que simultaneamente aos eventos. A democratização do recurso
imagético, por meio dos celulares, transformou o modo de se fazer jornalismo e,
consequentemente, o fotojornalismo e nos abre uma questão: o que queremos registrar
e guardar para o futuro? O presente trabalho tem como objetivo situar o
fotojornalismo como construtor de memória a partir das fotografias de Evandro
Teixeira e seu fotolivro Vou Viver: um tributo a Pablo Neruda.
A história da fotografia, desde sua invenção no século XIX e evolução ao longo
do século XX, é marcada por diversas transformações que significaram um enorme
salto para a popularização dos retratos. Esses avanços tecnológicos possibilitaram que

1Mestrando em História pela UNESP, Campus de Assis/SP. Graduado no curso de História


da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
(UNESP).
E-mail: cavalheiroluisg@gmail.com

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

as fotografias se proliferassem de forma mais rápida, devido à reprodutibilidade


técnica2, e mais barata. A fotografia deixa de ser apenas um entretenimento para
amadores e alcança o posto de atividade profissional com escalas industriais3.
Alguns estudiosos olham para a história da fotografia a partir do seu
desenvolvimento tecnológico e da sua estética e passam a encarar a foto como
“espelho da realidade”, uma prova que legitima de forma inquestionável a existência
daquilo que mostra. Visões opostas propõem que a história da fotografia é uma história
de substituição e imposição de convenções, de domínio e abandono de ideias4. Outros
pensadores sugerem que a foto não é apenas o produto de uma técnica e de uma ação,
é igualmente um ato icônico, sabendo que esse “ato” não se resume apenas ao gesto
da produção da imagem, abrangendo o ato de sua recepção e de sua contemplação5.
Philippe Dubois6, divide o percurso histórico da fotografia em três tempos: a
fotografia como espelho do real (discurso da mimese), por meio de discursos de críticos do
século XIX, que consideravam a foto como a imitação mais perfeita da realidade, com um
caráter mimético, devido ao seu procedimento mecânico que permite criar uma
imagem de maneira “automática” e “objetiva”, sem intervenção do artista; a fotografia
como transformação do real (discurso do código e da desconstrução), em que os críticos se
colocam contra o discurso de mimese, denunciando a característica de “espelho
fotográfico” e o “efeito de real”, e reconhecem a fotografia como um instrumento de
transposição, de análise, de interpretação e até de transformação do real; a fotografia
como traço de um real (o discurso do índice e da referência), que considera o realismo
existente na foto, mas sem o ilusionismo mimético. A imagem, em um primeiro
momento, remete ao seu referente, índice, indo além do efeito do real; em um segundo
momento ela pode se tornar parecida ao seu referente, um ícone, e assim adquirir
sentido, ou seja, tornar-se símbolo. Dentre os três grandes tipos de concepção
explorados por Dubois, foi exatamente a característica de “registro da verdade” e
“espelho do mundo” que a atividade jornalística aproveitou e incorporou dando
origem ao conhecido fotojornalismo.
O termo fotojornalismo não possui uma definição clara e bem delimitada, pode
abranger tanto fotografias de notícias e projetos documentais, como também
ilustrações fotográficas. O princípio do fotojornalismo é a informação, não somente
por meio de imagens, mas em conciliação de fotografias e textos que possam auxiliar

2 BENJAMIM, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Obras
Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
3 BARBOSA, Carlos A. S. História, Historiadores e Imagem: algumas notas introdutórias. In:

Ricardo Alexandre Ferreira; Raphael N. N. Sebrian; Ariel José Pires; Karina Anhezini. (Org.).
Leituras do Passado. 2ed.Campinas: Pontes Editores, 2009, v. , p. 15-16.
4 SOUSA, Jorge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Florianópolis: Letras

Contemporâneas, 2000, p. 2-11.


5 ROCHE, Denis. Introdução. In: DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução

de Marina Appeneller. Campinas, SP: Papirus, 1994, p. 15-21.


6 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appeneller. Campinas,

SP: Papirus, 1994, p. 25-53.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

a compreensão da mensagem a ser transmitida 7. Fazer fotojornalismo é


descrever/narrar o acontecimento em causa com imagens, geralmente, assuntos da
atualidade e de interesse momentâneo.
Apesar das muitas tentativas de conceitualização, a atividade fotojornalística
continua sendo amplamente discutida. Uma corrente de estudiosos conceitua o
fotojornalismo como sendo a consequência dos vários tipos de fotografias de
imprensa, entendendo-se por fotografia de imprensa toda fotografia publicada, até
mesmo fotografia de moda, gente, coluna social, reproduções e fotos estáticas 8. Existe
outra corrente que limita o alcance do fotojornalismo apenas para as fotografias que
carregam consigo informações de certa importância para o texto que acompanham,
que complementam o jornalismo informativo, investigativo e denunciativo. Para Boni9,
a principal característica é a informação trazida pela imagem fotográfica.
Assim, toda fotografia que traga alguma informação caracteriza
fotojornalismo. Mesmo as de arquivo, desde que contenham uma história ainda
desconhecida visualmente do leitor, podem ser consideradas como tal. Nem tudo o
que sai publicado, porém, pode ser considerado como fotojornalismo. Muitas
fotografias publicadas são irrelevantes enquanto informação. São meramente
ilustrativas ou exercem função de sedução junto ao leitor.10
Para Gisèle Freund11, o surgimento da fotografia de imprensa causa uma
grande transformação na subjetividade humana ao mudar a visão das massas. Uma
nova janela para o mundo se abre e cria-se a sensação de que as distâncias se encolhem.
A imagem passa a ser vista como uma representação sólida do mundo de cada
indivíduo.
De acordo com Louzada12, a fotografia na imprensa trata-se de uma imagem
técnica, resultado da tecnologia da época. Esse desenvolvimento tecnológico da
fotografia causa um falso sentimento de historicidade de sucessões, mas é necessário
afirmar que a história da fotografia e seu desenvolvimento são frutos de longo processo
histórico. Entre os principais avanços da tecnológicos estão o filme em rolo com 24
poses, substituindo as chapas secas que deveriam ser trocadas a cada foto tirada, o que
permite que o fotógrafo tivesse maior liberdade e aproxima a fotografia da imagem em
movimento; e as lentes anastigmáticas, que são mais claras e sem distorções,
possibilitando uma imagem mais nítida e registrar momentos antes impensáveis13.

7 SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo: uma introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia
na imprensa. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2002, p. 7-11.
8 BONI, Paulo César. O discurso fotográfico: a intencionalidade de comunicação no fotojornalismo. Tese

(Doutorado em Ciências da Comunicação) – ECA/Universidade de São Paulo, São Paulo,


2000, p. 248.
9 Ibid., p. 258.
10 Ibid., p. 258.
11 FREUND. 1995, p. 20. apud LOUZADA, 2013. p. 30.
12 LOUZADA, Silvana. Prata da casa: fotógrafos e fotografia no Rio de Janeiro (1950-1960). Niterói,

Editora da UFF, 2013, p. 25-26.


13 Ibid., p. 35-36.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

A união dos novos filmes e das novas lentes permite que o fotógrafo registre
o instantâneo, característica essencial para o desenvolvimento fotojornalismo. Após
todos esses avanços tecnológicos, a fotografia passa a ocupar lugar de privilégio nas
reportagens, trazendo imagens com pequenas legendas ou, até mesmo, sem texto14.

História, memória e fotografia

As fotografias sempre nos remetem a um sentimento de nostalgia. Fotografar


os momentos, desde os mais íntimos com a família e amigos até os eventos sociais e
políticos, é uma forma de fornecer lembranças para o futuro. Como destacam
Felizardo e Samain15, “assim, como a palavra fotografia, que do grego significa a ‘escrita
da luz’, a palavra memória também traz consigo traços de credibilidade, por evidenciar
os fatos como se parecem, por mostrar os caminhos da lembrança”. Portanto, a
fotografia é um suporte primordial para compor e construir narrativas e memórias.
O pesquisador Arlindo Machado enfatiza que a fotografia “desde os
primórdios de sua prática, tem sido conhecida como ‘espelho do mundo’, só que um
espelho dotado de memória”16. Para o autor, a fotografia teria a capacidade de replicar
o mundo com uma certa neutralidade de seus procedimentos, tendo o fotógrafo apenas
um papel administrativo17.
Boris Kossoy acredita que as fotografias, sejam elas como recordações da vida
familiar ou como meio de informação/jornalística, devem ser consideradas como
fontes históricas de alcance multidisciplinar para desvendar o passado18. De acordo
com o autor, a fotografia “representa o congelamento do gesto e da paisagem, e
portanto a perpetuação de um momento, em outras palavras, da memória: da memória
do indivíduo, da comunidade, dos costumes, do fato social, da paisagem urbana, da
natureza”19.
No entanto, ainda que sejam consideradas como imparciais ou como “espelho
do mundo”, devido às suas técnicas de produção, as fotografias não devem ser tratadas
como portadoras da verdade, assim como qualquer outra fonte histórica. Como nos
alertam Felizardo e Samain, a fotografia “assim como a memória, pode ‘selecionar’
partes do real a fim de iludir, manipular, fazer parecer”20.

14 BARBOSA, Carlos A. S. 2009. Op. cit.. p. 19-20.


15FELIZARDO, Adair; SAMAIN, Etienne. A fotografia como objeto e recurso de memória. In.
Discursos Fotográficos, Londrina, v.3, n.3, p.205-220, 2007. p. 210.
16 MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1979. p. 10-11.
17 Ibid., p. 10-11.
18 KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 161.
19 Ibid., p. 161.
20 FELIZARDO; SAMAIN. 2007. Op. cit.. p. 211.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Em seu livro História e Memória, Le Goff afirma que a fotografia está entre as
manifestações da memória coletiva mais marcantes que apareceram ao longo dos
tempos21. Ele ressalta o surgimento de dois fenômenos:

O primeiro, a seguir à I Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos.


A comemoração funerária encontra aí um novo desenvolvimento. Em numerosos
países é erigido um túmulo ao Soldado Desconhecido, procurando ultrapassar os
limites da memória, associada ao anonimato, proclamando sobre um cadáver sem
nome a coesão da nação em torno da memória comum. O segundo é a fotografia, que
revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma
verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo
e da evolução cronológica22.

Com a popularização da fotografia, as pessoas passam a registrar seu cotidiano


e eventos familiares sem a necessidade de um fotógrafo profissional, possibilitando a
conservação da memória de forma mais eficaz. A figura materna tem grande destaque
no papel de registar e conservar a memória familiar, como afirmam Felizardo e Samain:

É importante salientar o papel da mãe como retratista e mantenedora das lembranças


familiares. Pode-se até afirmar que é ela quem tem o papel e a preocupação em
acompanhar o crescimento dos filhos, em preservar, organizar, catalogar as fotos, a
memória fotográfica da família. Essa memória ajuda a dar sentido à nossa existência;
ela nos faz tornar cidadãos, compreender melhor o mundo, e a compreender quem
somos23.

Em sua obra A Memória Coletiva24, o sociólogo francês Maurice Halbwachs,


afirma que a memória, por mais íntima e pessoal que seja, deveria ser compreendida
como um fenômeno coletivo e social, algo concebido coletivamente e passível de
transformações. Como afirma o autor:

Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com
objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é
necessário que os outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós:
porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se
confundem.

Assim, podemos falar sobre os elementos constitutivos da memória, tanto


individual como coletiva. De acordo com Michael Pollak, temos em primeiro lugar os
acontecimentos vividos pessoalmente, ou seja, pelo próprio indivíduo. Em segundo lugar

21 LE GOFF, Jacques. História e memória. 5.ed. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.


22 Ibid., p. 460.
23 FELIZARDO; SAMAIN. 2007. Op. cit.. p. 213.
24 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. p. 26

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Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

temos os acontecimentos vividos em grupo, que o autor chama de “vividos por tabela”. Além
dos acontecimentos, segundo o autor, a memória é formada por pessoas/personagens, sejam
eles realmente encontrados ao longo da vida, aqueles que frequentaram indiretamente
os conhecidos, e aqueles que não fizeram parte do espaço-tempo da pessoa. Por fim,
além dos acontecimentos e personagens, temos os lugares. São os lugares da memória, os
lugares ligados a uma lembrança pessoal, os lugares de comemoração. Os lugares fora
do espaço-tempo da vida de uma pessoa podem ser relevantes para a memória
coletiva25.
Após termos contato com todos esses conceitos, não podemos negar que a
fotografia pode ser considerada um fenômeno que revolucionou a memória, como
bem disse Le Goff. Ela transformou a forma de ver e pensar o mundo. Segundo
Kossoy, após seu advento, “o homem passou a ter um conhecimento mais preciso e
amplo de outras realidades que lhe eram, até aquele momento, transmitidas unicamente
pela tradição escrita, verbal e pictórica”, além de possibilitar o autoconhecimento e
recordação, ampliação dos horizontes artísticos, documentação e denúncia26.

Evandro Teixeira e o fotolivro

Considerado como um dos principais protagonistas do fotojornalismo


brasileiro, Teixeira nasceu em 25 de dezembro de 1935, no município de Irajuba, Bahia.
Em entrevista à revista Discursos Fotográficos27, relata que estudou no município de Jequié
e depois em Ipiaú, mudou-se para Salvador e por fim Rio de Janeiro. Em Jequié,
trabalhou no Jornal de Jequié, onde comprou sua primeira câmera fotográfica, em
seguida foi estudar em Ipiaú, onde fazia fotografias para o jornal Rio Novo. Ao se mudar
para Salvador, começou um curso de fotografia na revista A Cigarra, estudando por
correspondência com o José Medeiros e passando a estagiar no Diário de Notícias, como
fotógrafo nos municípios do interior. Com apoio da família, se mudou para o Rio de
Janeiro em busca de melhores oportunidades com o jornalismo e, por intermédio de
um amigo, conseguiu um estágio e, posteriormente, um cargo como fotógrafo no
Diário da Noite, onde trabalhou até o início dos anos de 1960.
O fotógrafo iniciou sua carreira no Jornal do Brasil no final de 1962, onde
trabalhou até 2010, quando a edição impressa do jornal deixou de circular. De acordo
com Teixeira28, o JB foi censurado diversas vezes, até mesmo saindo em branco. Após
o golpe, em um primeiro momento, a presença dos militares dentro das instalações do
jornal tornou-se uma constante.

25 POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v.5, n.10, p.200-212, 1992. p. 2-3.
26 KOSSOY, Boris. História e Memória. – 2. ed. rev. – São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p.26.
27 BONI, Paulo César. A fotografia a serviço da luta contra a ditadura militar no Brasil – Entrevista com

Evandro Teixeira. Discursos Fotográficos, Londrina, v.8, n.12, p.217-252, jan./jun. 2012.
28 Ibid., p. 243.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Responsável por registrar momentos marcantes da história do Brasil, como,


por exemplo, a tomada do Forte de Copacabana, na noite do golpe, Teixeira é um dos
exemplos de resistência e luta contra a ditadura militar por meio de sua fotografia. O
fotojornalista conta que utilizou sua câmera fotográfica como “arma” 29. Com sua
câmera sempre em mãos, vivenciou momentos marcantes e únicos que ele registrou
para deixar documentado. Ele também foi um dos poucos fotógrafos a conseguir
registrar o funeral do poeta – Prêmio Nobel de Literatura – Pablo Neruda, em 1973,
durante a queda do governo do presidente Salvador Allende, no Chile.
Suas fotografias saíram das páginas dos jornais e passaram para o livro
Fotojornalismo30 e Vou Viver: tributo ao Poeta Pablo Neruda31, posteriormente, para os
museus de arte com a exposição Evandro Teixeira: a constituição do mundo, em 2015 no
Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), em celebração aos seus 60 anos de profissão.
Publicado no ano de 2005, pela editora Textual, em parceria com a prefeitura
da cidade do Rio de Janeiro, o livro Vou Viver configura-se como nosso principal
material de pesquisa.
Os registros fotojornalísticos a partir de sua publicação em livros, exibição em
museus, festivais, feiras de fotografia e galerias de arte, devem ser analisados por outra
perspectiva. De acordo com Monteiro32, as imagens passam de registro de um contexto
histórico para objeto de apreciação visual, além de serem analisadas pelas técnicas e
olhar do fotógrafo sobre o assunto abordado.
Para refletir sobre fotolivro, faz-se necessário compreender a natureza desse
tipo de publicação, sendo essencial uma análise que confronte o seu processo de
produção, sua materialidade, conteúdo, indivíduos envolvidos, levando em
consideração as informações contidas no próprio fotolivro e materiais externos que
tenham alguma ligação.
Muitos termos são encontrados para designar produções que utilizam imagens
fotográficas. Livros ilustrados, catálogos, fotozines, fotolivros, portfólios, entre outros,
o que causa grande confusão entre os conceitos que buscam definir essas publicações.
Muitas vezes esses livros são agrupados por seu contexto histórico, pela sua forma e
conteúdo, objetivos da obra, e muitos outros fatores, como acontece nas obras The
Photobook: A History33, de Martin Parr e Gerry Badger e em Fotolivros Latino Americanos34,
de Horácio Fernández.
Entre todas as definições encontradas, a que acreditamos melhor contemplar
o termo “fotolivro” é a descrita pelo pesquisador Gerry Badger em uma matéria
publicada na Revista ZUM, onde compreende-se por fotolivros as publicações com

29 Ibid., p. 243-244.
30 TEIXEIRA, Evandro. Fotojornalismo. Rio de Janeiro: Editora JB, 1982.
31 Id., 2005.
32 MONTEIRO, Charles. História e Fotojornalismo: reflexões sobre o conceito e a pesquisa

na área. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 17, p. 64 ‐ 89. jan./abr. 2016, p.


83.
33 BADGER, Gerry; PARR, Martin. The Photobook: a History. Londres: Phaidon, 2004.
34 FERNÁNDEZ, Horacio. Fotolivros Latino-americanos. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

imagens fotográficas com caráter mais autoral, um tipo de livro em que as imagens se
sobressaem ao conteúdo textual. Segundo Badger, o trabalho do fotógrafo somado ao
dos responsáveis pela produção, como editores, designers gráficos, contribuem para
construção de uma narrativa visual35. O fotógrafo passa a ser o “autor” e adquire
espaço para se expressar de forma mais subjetiva, não sendo apenas um método de
documentação, mas sim uma arte com estrutura e coerência.
Apesar de sua existência coincidir com o nascimento da própria fotografia, em
meados do século XIX, somente nos últimos anos é que o fotolivro passou a ser mais
prestigiado por instituições culturais, festivais e galerias onde servem como catálogo à
fotografia de arte. Ainda que seja considerado como um eficaz meio de apresentação,
comunicação e leitura de conjuntos fotográficos, de acordo com Fernández, o interesse
pelos fotolivros continua muito recente, o que resulta em poucos estudos que tentam
compreendê-lo ou que ressaltam sua relevância na história da comunicação e da arte36.
Em uma análise superficial do fotolivro Vou Viver, verifica-se que ele foi
produzido para servir de tributo ao poeta chileno Pablo Neruda. Rapidamente
percebe-se que o livro se destina não somente ao público brasileiro, como também a
outros públicos latino-americanos, já que se trata de uma obra bilingue. Todo o
conteúdo do mesmo possui uma versão traduzida para o espanhol. Temos também a
união dos registros fotográficos de Teixeira com a arte poética de Neruda, as imagens
e os poemas se mesclam por toda a publicação.
A obra reúne em suas páginas, aproximadamente, 67 (sessenta e sete)
fotografias que fazem parte do acervo pessoal de Teixeira, sendo 60 (sessenta) delas
correspondentes ao período da instauração do regime militar chileno. Constitui-se em
três capítulos: (I) A última viagem do velho homem do sul; (II) Os mortos da praça; e, (III) Quero
escurecer, dormir. Nas suas primeiras páginas, antes do primeiro capítulo, temos o poema
Ode ao Rio de Janeiro, de Neruda; em seguida temos um texto introdutório de Cesar
Maia, prefeito do Rio de Janeiro na época, onde declara a importância do livro. Para
Maia37, o fotolivro tem grande valor por unir a arte fotográfica de Evandro à arte
poética de Neruda, pois ambos, fotografias e poemas, são puros e brutos.
Após essa breve apresentação do fotolivro e do fotógrafo/autor da obra,
podemos trazer nosso objeto de pesquisa para o debate teórico entre a relação
memória, história e fotografia e levantar algumas hipóteses.
Comecemos falando sobre as fotografias destinadas inicialmente a estampar as
páginas do Jornal do Brasil e que, posteriormente, foram inseridas em um fotolivro.
Podemos afirmar que a linguagem das imagens sofre mudanças, elas passam de objetos

35 BADGER, Gerry. Por que fotolivros são importantes. Revista ZUM, n. 8, abril de 2015,
pág. 132 – 155.
36 FERNÁNDEZ. Op. cit.. 2011, p.10-11.
37 TEIXEIRA, Evandro. Vou Viver: Tributo ao Poeta Pablo Neruda. Editora: Textual, 2005,

p. 6-7.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

de informação e denúncia para objetos de apreciação38. No entanto, não significa que


essas fotografias sejam desprovidas de intencionalidades e não possam construir uma
narrativa visual, pelo contrário, este formato em fotolivro permite que o autor crie sua
própria versão da história a partir das escolhas gráficas que são feitas.

Os fotolivros comunicam como um todo, não apenas as imagens comunicam, mas


também os materiais escolhidos, o tamanho, o peso do livro, até o preço pelo qual o
livro é vendido, também diz muito. O conceito está relacionado ao que o livro diz e
propicia de experiência ao leitor39.

Das janelas dos prédios e estabelecimentos de Santiago, Teixeira conta em


entrevista40 que passou os dias fotografando os acontecimentos seguintes após o golpe
militar, produzindo muito material que, possivelmente, integra seu arquivo pessoal.
Desse modo, podemos supor que para a montagem do fotolivro o autor teve que fazer
escolhas. Essa é apenas uma escolha, entre tantas outras, que faz parte do processo de
criação de um fotolivro e que determinam e influenciam como o leitor receberá a
mensagem que os organizadores do livro querem passar.
Barbosa41 comenta que os historiadores devem se preocupar ao pesquisar
fotografias que fazem parte de um projeto maior originalmente e, ao serem inseridas
em outros projetos, são fragmentadas e individualizadas. No caso de Vou Viver, ele é
composto por registros fotográficos de diversos momentos diferentes da passagem de
Teixeira pelo Chile, em 1973, sem indicar se na sua construção seguiram ou não uma
cronologia.
Outro ponto a ser observado ao longo da obra é a respeito do posicionamento
e tamanho das imagens nas páginas. Algumas fotografias aparecem em tamanhos
maiores do que as outras, muitas vezes, ocupando páginas inteiras. Para Ramos, “o
tamanho da imagem evidencia sua hierarquia em relação às demais. Trata-se da imagem
mais importante, do clímax da micronarrativa”42. Dessa forma, entendemos que as
fotografias em evidência são aquelas que o autor/fotógrafo deseja que o leitor dedique
mais atenção, conduzindo-o em sua narrativa visual.
O primeiro capítulo, o mais breve em relação aos demais, conta somente com
um texto do jornalista Fritz Utzeri43, que relata a tensão vivida pelo povo chileno
durante os primeiros dias do governo militar de Augusto Pinochet e a morte de
Neruda. O jornalista busca descrever detalhadamente os últimos dias do governo de

38 MONTEIRO, Charles. História e Fotojornalismo: reflexões sobre o conceito e a pesquisa


na área. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 17, p. 64 ‐ 89. jan./abr. 2016, p.
83.
39 RAMOS, Marina Feldhues. Conhecer fotolivros: (in) definições, histórias e processos de produção.

Dissertação (Mestrado). Recife, 2017. p. 116.


40 BONI, Paulo César. Op. cit. 2012. p. 230.
41 BARBOSA, Carlos A. S. Op. cit.. 2009. p. 22.
42 RAMOS, Marina Feldhues. Op. cit. 2017. p. 97.
43 Ibid., p. 9-13.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Salvador Allende e os primeiros passos do governo militar de Augusto Pinochet, bem


como os últimos momentos de vida do poeta, através de relatos de Matilde, esposa de
Neruda, e do próprio Evandro Teixeira.
O segundo capítulo, chamado Os mortos da praça, retrata em 13 (treze)
fotografias toda a tensão dos primeiros dias do governo de Pinochet, com grande foco
nos soldados do exército que ocupavam todos os lugares públicos. Esse capítulo não
possui textos escritos e suas páginas têm o fundo na cor preta. Ao analisarmos tal
capítulo, tomamos a liberdade para uma livre interpretação, levando em consideração
o título Os mortos da praça e os símbolos presentes nestas páginas – a ausência de textos
escritos e o fundo das páginas na cor preta –, esses elementos poderiam representar
uma forma de luto por aqueles que perderam a vida durante a repressão violenta do
governo de Pinochet.
O terceiro, e último, capítulo, Quero escurecer, dormir, apresenta 48 (quarenta e
oito) registros do funeral do poeta Neruda. São registros desde o preparo do corpo
ainda no hospital, até seu túmulo no Cemitério Geral de Santiago e, por fim, imagens
mais recentes da antiga casa de Pablo Neruda em Isla Negra, que hoje é um museu que
conta a história da vida do poeta.
Em entrevista à Frederico Füllgraf, o fotógrafo conta que a imprensa brasileira
estava proibida, pela censura, de noticiarem sobre a queda de Allende. Dessa forma,
muitas fotografias não puderam ser publicadas. Füllgraf44 argumenta que tais registros
são de grande importância, pois poderiam “desmentir o atestado de óbito de Neruda”
e auxiliar na investigação para esclarecer as causas da morte do poeta, visto que a causa
mortis teria sido uma caquexia, que se caracteriza pela perda de peso e massa muscular
acentuada, e as fotos não reproduzem um Neruda definhado.
Ainda no capítulo Quero escurecer, dormir, podemos notar que as imagens são
encadeadas não só pretendendo criar uma linearidade temporal, do corpo de Neruda
no hospital, do velório em sua casa em Isla Negra e o enterro no Cemitério Geral de
Santiago, mas também criar uma empatia do leitor e aproximá-lo da história que está
sendo contada. Por fim, temos uma fotografia de uma pomba no centro das ruas vazias
de Santiago, o que invoca um sentimento de esperança para aquela dura realidade
retratada.

Considerações finais

Não podemos negar que a fotografia é um importante


documento/monumento da atualidade e com ela somos capazes de manter nossas
lembranças de momentos importantes conservadas. Por intermédio dos registros
fotográficos podemos “vivenciar” momentos que não presenciamos fisicamente.

44FÜLLGRAF, Frederico. Fotógrafo brasileiro cobriu secretamente a morte de Neruda. In:


GGN, 27/05/2013 https://jornalggn.com.br/historia/fotografo-brasileiro-cobriu-
secretamente-morte-de-neruda/. Acesso em 14/01/2021.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Acreditamos que os fotolivros tenham características similares aos álbuns


fotográficos, em relação à história-memória. De acordo com Barbosa, “os álbuns
ilustrados reelaboram uma memória, escolhendo comemorações, acontecimentos,
personagens, heróis aptos a construir uma narrativa com relação a seu tempo”45. Dessa
forma, podemos afirmar que o fotolivro pode ser mais do que objetos de apreciação,
eles são fontes históricas. Eles permitem a historização da reconstituição do passado.
Por meio do seu formato, o autor/fotógrafo pode contar sua versão dos
acontecimentos, criar novas narrativas e subverter a História Oficial. Como bem
afirma Kossoy:

Acrescentando, omitindo ou alterando fatos e circunstâncias que advêm de cada foto,


o retratado ou o retratista têm sempre, na imagem única ou no conjunto das imagens
colecionadas, o start da lembrança, da recordação, ponto de partida, enfim, da narrativa
dos fatos e emoções46.

Referências

BARBOSA, Carlos A. S. História, Historiadores e Imagem: algumas notas


introdutórias. In: Ricardo Alexandre Ferreira; Raphael N. N. Sebrian; Ariel José Pires;
Karina Anhezini. (Org.). Leituras do Passado. 2ed.Campinas: Pontes Editores, 2009.

BONI, Paulo César. O discurso fotográfico: a intencionalidade de comunicação


no fotojornalismo. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) –
ECA/Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

BONI, Paulo César. A fotografia a serviço da luta contra a ditadura militar no


Brasil – Entrevista com Evandro Teixeira. Discursos Fotográficos, Londrina, v.8,
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BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica., in:


Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina


Appeneller. Campinas, SP: Papirus, 1994.

FELIZARDO, Adair; SAMAIN, Etienne. A fotografia como objeto e recurso de


memória. In. Discursos Fotográficos, Londrina, v.3, n.3, p.205-220, 2007.

45BARBOSA, Carlos A. S. Op. cit.. 2009. p. 23-24.


46KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
p. 139.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

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Neruda. In: GGN, 27/05/2013 https://jornalggn.com.br/historia/fotografo-
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

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2001.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê


Editorial, 1999.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 5.ed. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003

LOUZADA, Silvana. Prata da casa: fotógrafos e fotografia no Rio de Janeiro


(1950-1960). Niterói, Editora da UFF, 2013

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1979.

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pesquisa na área. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 17, p. 64 ‐ 89.
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SOUSA, Jorge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental.


Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000

TEIXEIRA, Evandro. Vou Viver: Tributo ao Poeta Pablo Neruda. Editora:


Textual, 2005.

TEIXEIRA, Evandro. Fotojornalismo. Rio de Janeiro: Editora JB, 1982

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

AS REPRESENTAÇÕES DA VELHICE E DA MORTE NO


CINEMA DE INGMAR BERGMAN

Maria Paula da Silva Lima1

Resumo: Envelhecer e morrer. Uma sequência moderna das condições humanas que
nem sempre se mostram correlatas. Por vezes inalcançável, a velhice é um fenômeno
concebido de diversas maneiras, variando de acordo com a classe social, com a cultura
e com o período histórico. A morte, por sua vez, também possui suas variações, uma
vez que é percebida e ritualizada de diferentes formas, variando de acordo com a época
e com a organização social em que se apresenta. Valendo-se de duas produções
cinematográficas de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, ambas
produzidas em 1957, tornou-se possível compreender a relação dos homens com a
morte e com o envelhecimento. Em O Sétimo Selo, Bergman se volta para Idade Média,
onde retrata a morte como parte da vida, representando-a na figura de um homem,
portanto personificada, como também por meio de alegorias e simbolismos. Em
Morangos Silvestres, por sua vez, Bergman se volta para a contemporaneidade e retrata a
dificuldade do velho contemporâneo de lidar com seu próprio fim, ao passo que
enfrenta dilemas como o abandono e a solidão.

Palavras-chave: Velhice; Morte; Cinema; Ingmar Bergman.

Introdução

Envelhecer e morrer. Uma sequência moderna das condições humanas que


nem sempre se mostram correlatas. Por vezes inalcançável, a velhice, assim como a
idade, é um fenômeno concebido de diversas maneiras de acordo com a classe social
e com o pertencimento étnico (envelhecer se apresenta muitas vezes como um
privilégio), com a cultura (a diferenciação etária nem sempre se acontece da mesma
forma, assim como a aceitação social dos membros mais velhos), com o gênero
(mulheres e homens geralmente vivenciam o envelhecer de maneiras distintas) e com
o período histórico (uma vez que construções sociais sobre velhice e infância variam
de acordo com o tempo).
Historicamente, tomando a Idade Média como exemplo, é observado que,
mesmo que as etapas da vida já se mostrassem visíveis, a Idade Média foi um período
marcado pela falta de diferenciação etária, que só ganhou forma na modernidade com
o desenvolvimento do capitalismo, onde as pessoas passaram a desempenhar funções
diferentes no mundo do trabalho. Pode-se dizer, portanto, que a velhice passa a ser

1Graduanda no Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Londrina.


Artigo desenvolvido com auxílio da Fundação Araucária. Email: maria.paula.21@uel.br

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

um problema social ligado ao processo de produção capitalista. Atualmente, ela é


percebida também a partir das mortes das funções físicas e intelectuais, que acabam
provocando a morte profissional, acarretando, por sua vez, na desvalorização e
marginalização do velho. Como apresentado, a velhice, ao longo da história, vem sendo
caracterizada apenas pelas perdas que a acompanham no processo de envelhecimento,
mas há situações em que a própria velhice é considerada uma conquista.2
Assim como a velhice, a morte adquire contornos e dramaticidades distintas
quando vistas a partir destes mesmos marcadores sociais. Na Europa, durante a Idade
Média, por exemplo, a morte era tratada com naturalidade e maior aceitação (Ariès,
1977), mas ainda era encarada com grande dor e tormenta, considerando que o
medievo era marcado pelo trinômio “fome, peste e guerra”, fator que impossibilitava
ao indivíduo receber a morte com alívio (Elias, 1982). Os ritos de morte eram
cumpridos com simplicidade e “sem caráter dramático ou gestos de emoções
excessivas” e os moribundos, avisados de sua morte, organizavam uma cerimônia
pública e contavam com a presença de parentes, amigos e vizinhos e até mesmo de
crianças. Dessa forma, como aponta Nobert Elias (1982, p.14), a morte não era um
evento solitário, como tem acontecido na contemporaneidade, quando não é mais
recebida numa cerimônia pública e nem acontece preferencialmente nas casas dos
moribundos, mas sim nos hospitais.
Para entender a relação com o envelhecimento e a morte em sociedades
capitalistas e contemporâneas, foram analisadas duas produções cinematográficas
suecas: Morangos Silvestres e O Sétimo Selo, ambas lançadas em 1957 por Ingmar
Bergman. O primeiro filme, Morangos Silvestres, se passa nos anos 1950 e retrata a
dificuldade do homem em lidar com a morte, sendo uma obra essencial para explorar
a experiência do velho com seu próprio fim. O segundo filme, O Sétimo Selo, se passa
na Idade Média e retrata a morte como parte da vida e a indiferença de Deus sobre a
condição que a humanidade enfrentava naquele período.

2 Tomando como base o cenário brasileiro, é notável que o país possui maior concentração
de pessoas jovens, enquanto 14,6%, segundo dados do IBGE de 2019, correspondem a
população idosa com idade igual ou superior a 60 anos. Enquanto isso, países como o Japão,
que é marcado como líder por sua população majoritariamente velha, tem o número de idosos
correspondendo a 28% da população com idade igual ou superior a 65 anos. Sabe-se que,
mesmo o Brasil tendo sua população formada, em sua maioria, por pessoas pretas e pardas, os
estudos sobre a velhice desenvolvidos no país não costumam abordar a questão racial.
Contudo, os poucos estudos desenvolvidos nessa área apontam para uma população idosa do
Brasil ser formada majoritariamente por brancos. Essa problemática pode ser explicada por
vários fatores relacionados à condição em que a população negra se encontra desde o período
pós-escravocrata que, até hoje, não foi revertida, uma vez que a população negra integrou a
sociedade de classes no Brasil em situação de extrema vulnerabilidade, constituindo os
operários destituídos de capital e com poucas chances de ascensão social (FERNANDES,
1978).

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

O cinema de Ingmar Bergman

Em 1957, Ingmar Bergman dirige duas de suas maiores obras cinematográficas:


O Sétimo Selo – onde discute as perturbações na idade média, as quais constrói com
enorme pessimismo, fazendo com que os homens não possam ser capazes de se
salvarem de suas próprias angústias, - e Morangos Silvestres, onde adota um certo
otimismo quando comparado às perturbações do homem medieval, dando aos
personagens a possibilidade do renascimento.
Considerado por muitos como o “auge de sua genialidade”, O Sétimo Selo é
um filme adaptado de uma peça teatral, onde o cineasta optou por conservar tais
aspectos teatrais. Assim como todas as obras de Bergman, esta é considerada uma obra
neo-expressionista, marcada pelo cenário simples e rústico, pelo uso de alegorias e
simbolismos. Questões existenciais também são tratadas com frequência em suas
obras, trazendo à tona reflexões sobre a brevidade vida, a solidão e a fé.
O filme se passa na Idade Média, período marcado pelas Cruzadas, pela crise
do feudalismo e pelo trinômio “guerra, peste e fome”. Nesse contexto, Bergman sob
uma estética monocromática, constrói um cenário apocalíptico introduzindo um forte
realismo quando apresenta os atores desprovidos de qualquer higiene, com dentes
podres ou machucados, vestidos em trapos ou vestimentas comuns naquele período.
Com isso, Bergman promove uma representação com certos estereótipos do homem
medieval, mas rompendo com a visão romantizada do medievo.
Diferente de O Sétimo Selo, Morangos Silvestres se passa na
contemporaneidade. Vale lembrar que a diferenciação etária é um advento da
modernidade, característica inexistente na Idade Média. Dada a essa observação,
Bergman se propôs a analisar as perturbações do homem moderno também na velhice.
Assim, no mesmo ano em que Bergman encarou a inevitabilidade da morte, ele se
voltou para as perturbações da vida, encarando, agora, a possibilidade do
renascimento, como veremos a seguir.

Representação da velhice no filme Morangos Silvestres

O filme Morangos Silvestres se inicia com um relato reflexivo do médico Isak


Borg, protagonista do filme, sobre seu afastamento voluntário da vida social e a velhice
solitária que estava levando.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 1: A solidão
Fonte: Morangos Silvestres (Tempo – 00:00:47) de Ingmar Bergman, produzido em 1957

Desde o início, a solidão se apresenta no filme, seja no relato, seja no espaço


em que Borg é apresentado, acompanhado apenas de seu cachorro, livros e retratos de
sua família. Após essa introdução, a narrativa segue para Borg dormindo, em primeiro
de junho, dia em que teve um sonho estranho, como o próprio relata. Assim, o filme
segue para uma das cenas mais famosas do cinema bergmaniano. No sonho, Borg
aparece cercado por “casas em ruínas”, enquanto caminha por “ruas vazias” e se
depara com um relógio na parede sem ponteiros, e, assustado, consulta seu relógio de
bolso, que também se apresenta do mesmo jeito.

Figuras 2 e 3: “O tempo acabou”


Fonte: Morangos Silvestres (Tempo – figura 2: 00:04:34 e figura 3: 00:04:41) de Ingmar
Bergman, produzido em 1957.

3 Figura 1 – Imagem apresentada na primeira parte do filme Morangos Silvestres (Tempo –


00:00:47) de Ingmar Bergman, produzido em 1957, que apresenta a velhice solitária do
personagem Isak Borg.
4 Sequência de imagens presente no filme Morangos Silvestres (Tempo – figura 2: 00:04:34 e

figura 3: 00:04:41) de Ingmar Bergman, produzido em 1957, que apresenta o personagem Isak
Borg, em frente a dois relógios sem ponteiros, simulando que uma suspensão do tempo.

- 194 -
Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Na sequência, o médico busca contato com um homem de sobretudo e chapéu,


que cai ao chão deixando sua forma sólida, como se estivesse se decompondo.

Figuras 4, 5 e 6: Um corpo que se desfaz


Fonte: Morangos Silvestres (Tempo – figura 4: 00:05:00, figura 5: 00:06:07 e figura 6:
00:06:15) de Ingmar Bergman, produzido em 1957.

Um relógio toca e uma carruagem passa pelo médico, se desmontando e


deixando cair o que carregava ali dentro: um caixão que se abre e deixa à mostra a mão
do defunto. Borg se aproxima lentamente do corpo e tenta agarrar a mão do morto,
até perceber que quem está no caixão é ele mesmo.

Figuras 7, 8 e 9: O vivo encarando sua morte


Fonte: Morangos Silvestres (Tempo – figura 7: 00:06:42, figura 8: 00:07:49 e figura 9:
00:08:15) de Ingmar Bergman, produzido em 1957.

Contudo, lembremos, tudo não se passava de um sonho. Após se ver dentro


do caixão, Borg acorda, avista o relógio com ponteiros e percebe que ainda há tempo.
Ao acordar, Isak Borg se arruma para ir a Lund para receber um prêmio
honorário e decide, de última hora, que irá de carro e não de avião, contrariando a
vontade de Agda, sua empregada. Nesse primeiro contato de Borg com alguém, o filme
o apresenta, através de terceiros, como um sujeito egoísta e indiferente aos outros.

5 Sequência de imagens presente no filme Morangos Silvestres (Tempo – figura 4: 00:05:00,


figura 5: 00:06:07 e figura 6: 00:06:15) de Ingmar Bergman, produzido em 1957, que apresenta
um corpo se desfazendo, remetendo a ideia de um corpo em decomposição.
6 Sequência de imagens presente no filme Morangos Silvestres (Tempo – figura 7: 00:06:42,

figura 8: 00:07:49 e figura 9: 00:08:15) de Ingmar Bergman, produzido em 1957, que apresenta
o personagem Isak Borg encarando a própria morte.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Contudo, a decisão não foi à toa, já que Borg estava disposto a celebrar a vida até o
fim do dia e então inicia sua viagem ao lado de Marianne, esposa de seu filho Evald.
Ambos se dirigem com várias críticas, na qual Marianne acusa Isak de ser egoísta e
indiferente, acusações que, agora, parecem atingir o médico, de modo que ele
demonstra espanto e dor. Mais adiante, Isak e Marianne seguem para o bosque onde
o velho passou a infância, fazendo com que o médico, tomado pela nostalgia, se
permitisse mergulhar nas lembranças do passado.
A primeira recordação a que o velho é acometido é de sua prima e antiga
namorada, Sara, interpretada por Bibi Anderson, que lhe aparece jovem, enquanto Isak
se mantém velho. Mesmo impossibilitado de interagir com suas recordações, ele tenta,
ao ver Sara, que aparece colhendo morangos silvestres, quando é surpreendida por
Sigfrid, irmão de Isak, que a convence a beijá-lo, mesmo sabendo que ela e seu irmão
estão em um relacionamento. Sara se entrega a Sigfrid lamentando a traição que
provocara a Isak, a quem descreve como “sensível, gentil e inteligente”.
O velho é levado de volta ao presente por uma menina também chamada Sara,
interpretada também por Bibi Anderson, menina essa que mais tarde, junto aos seus
amigos, Anders e Viktor, passa a acompanhar Borg e Marianne durante a viagem.
Nesse cenário, por sua vez, Sara não lhe aparece resgatando-o do abandono ao qual o
teria lançado anteriormente, mas o levando a uma vivacidade de sentimentos, lhe
proporcionando um renascimento (KALIN, 2003).
Os momentos de introspecção que seguiram, foram marcados por sentimentos
de felicidade, como também por tristeza, como é observado na visita em que Borg faz
a mãe. Desde o início, a velha de 96 anos, demonstra como a sua existência não tem
mais sentido e como a vida está repleta de dor, provocando medo em Marianne.
Mexendo numa caixa cheia de lembranças, a velha pega um relógio que se mostra sem
ponteiros como o relógio do sonho de Isak. Assim, a visita a mãe revela a Borg uma
indiferença e frieza, diante da morte e também a solidão em que a velha se mostra
enquanto aguarda seu próprio fim. Essas condições também acometem o médico em
um segundo sonho onde ele encara novamente o abandono, depois a culpa, sua própria
indiferença e a solidão.
Borg acorda e se dá conta de que está vivo, mesmo não se sentindo assim, e
que não foi dado inteiramente ao abandono. Ao seu lado está Marianne, que relata
estar grávida e comenta sobre o sofrimento em que Evald, filho de Borg, se encontra
e decide que não irá abandonar o marido. Mais adiante, Isak Borg sonha, mais uma
vez, que está em stället, cercado por uma multidão de corvos sobrevoando o bosque e
morangos Silvestres derrubados da cesta da Sara, antigo amor de Isak. Sara aponta
como Isak está velho e que logo morrerá, ao contrário dela, que ainda era jovem e
ainda tinha o que viver.
Mais adiante, Borg é chamado por um homem mais tarde revelado como
Inspetor Alman, que o chama de professor, o pede para entrar e o leva a uma sala de
aula. O homem se senta na mesa de professor, pede a Isak que lhe entregue um livro
e depois o pede para identificar uma amostra da bactéria no microscópio. Ele olha e

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

diz que há algo de errado, o Inspetor diz o contrário e Isak insiste que não vê nada.
Em seguida o inspetor pede para que Isak leia o texto escrito na lousa e Isak lê em voz
alta mas diz não entender o que está escrito. O inspetor aponta que ali está escrito o
primeiro dever de um médico, ao qual o velho demonstra não recordar, e é acusado
de culpa pelo inspetor Alman.
No teste seguinte, Borg é designado para examinar uma paciente que ele, a
priori, tem como morta. Contudo, a paciente levanta a cabeça e ri de forma maléfica
para Isak, que recua assustado. O inspetor Alman o atesta como incompetente,
enquanto o acusa por ser indiferente e egoísta a partir da falecida esposa de Isa, Karin,
a quem confronta em seguida.
Ao saírem da casa, Isak e o inspetor encontram Karin junto a um homem,
rindo descontroladamente, como sorria a paciente morta que Isak teria examinado a
pouco. Mesmo que ainda estivesse sonhando, aquele encontro com Karin era uma
lembrança que Borg guardava há mais de 30 anos, em que sua esposa aparece lhe
traindo. Na lembrança, Karin relata que contará a Isak sobre sua traição e descreve a
indiferença com que Borg lidaria com o caso, a fazendo se sentir a única culpada pela
traição. Na sequência, Karin desaparece do sonho de Isak, enquanto o inspetor Alman
aponta para a solidão em que o médico se colocou.
Nesse sonho, foi possível perceber a sequência dos abandonos sofridos por
Isak Borg. O primeiro, ocasionado por Sara, que o torna frio e indiferente aos outros,
incluindo a sua esposa, Karin, fazendo com que o protagonista tomasse consciência
dos danos causados pelo seu modo de ser com os outros. Dessa forma, Bergman
constrói o sofrimento do homem não causado pela indiferença de Deus, mas pela
indiferença do próprio homem para com os outros. A recusa do homem de sentir amor
e permitir amar, de não pedir perdão nem perdoar, e se tornar um morto em vida.
Isak acorda ao lado de Marianne e percebe que está vivo e não está sozinho.
Borg comenta que se sente “morto, apesar de vivo” e Marianne o compara a Evald,
que também é marcado pela dor e pela indiferença provocadas pelo abandono dos
pais. Isak, ao saber do sofrimento em que o filho se encontra, entende como deve
confrontar sua frieza e demonstrar afeto ao filho.
Nas cenas finais, Borg finaliza sua viagem e recebe seu prêmio honorário, na
presença de Evald, Agda, Marianne e Sara, a jovem que conheceu durante a viagem,
além de seus amigos. Ele se aproxima de Agda, sua empregada, que lhe nega qualquer
intimidade. Depois, busca reconciliação com o filho, mesmo sendo perceptível que o
abandono sofrido pelos dois não permitia que a relação entre ambos fosse revertida.
Vale mencionar também a relação desenvolvida entre Isak e Sara, que, em poucas
horas, passou a considerá-lo como pai. Isak Borg agora parecia confrontar a
indiferença que o acometia há tempos, mesmo que todas as tentativas de se aproximar
dos outros o devolvesse à solidão.
O filme encerra com o último sonho: Isak está em stället, o lugar onde os
morangos silvestres não estão mais. Ele está disposto a encontrar consigo mesmo e

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

compreender os eventos que o levaram até ali, pois ainda há vida, ainda é tempo de
renascer.

A representação da morte em O Sétimo Selo

Enquanto em Morangos Silvestres a morte se apresenta através do vivo


encarando seu fim e com possibilidade do renascimento, em O Sétimo Selo a Morte,
apresentada de forma alegórica e personificada, surge marcando a inevitabilidade do
fim. Nesse cenário, Bergman se volta para a Idade Média e apresenta a morte como
parte da vida humana – Afinal, como diz a morte personificada ao cavaleiro: “tenho
caminhado ao seu lado há muito tempo”; tempo este que se iniciou no nascimento.
Introduz-se, assim, a indispensável figura da morte no estar vivo.
O primeiro contato da Morte, interpretada por Bengo Ekerot, com o cavaleiro
Antonius Block, é marcado pela ausência do medo por parte do vivo, que demonstra
aceitação pelo seu próprio fim. A atitude de Block diante da morte representa o
comportamento do homem medieval ao confrontar seu próprio fim. Como aponta
Philippe Ariès (1977), em sua obra “História da morte no ocidente”, na Idade Média,
o sujeito “não se morre sem se ter tido tempo de saber que se vai morrer”,
características referentes ao que ele chama de “morte domada”, que se apresenta “ao
mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro”
(Ariès 1977, p. 61).
É importante frisar que, mesmo que os medievais aguardassem o seu fim com
resignação, a morte nunca se apresentou de forma pacífica. Como aponta Nobert Elias
(1982, p. 13), além da Idade Média ser marcada pela guerra, pela peste e pela fome,
“pregadores e frades mendicantes reforçavam o medo [da morte]. Em quadros e
escritos surgiu o motivo das danças da morte, as danças macabras”. Mesmo encarando
a morte desse modo, o cavaleiro busca negociar com ela e propõe um duelo de xadrez.
Ela aceita a proposta e assim, inspirando-se na pintura “A Morte joga Xadrez” do
medieval sueco Albertus Pictor.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 11: Jogando Xadrez com Morte


Fonte: O Sétimo Selo (Tempo – figura 10: 00:05:24) de Ingmar Bergman, produzido em
1957

Figura 11: A morte joga xadrez


Fonte: “A morte joga xadrez” que foi pintada pelo medieval sueco Albertus Pictor (1450-
1509)

Depois disso, o cavaleiro Block e seu fiel escudeiro, Jons, vão a uma igreja. Lá,
Jons se depara com a morte representada a partir da pintura “A Dança da Morte.”,
que, na obra de Bergman, teria sido pintada por Albertus Pictor. Jons questiona o

7 Imagem presente no filme O Sétimo Selo (Tempo – figura 10: 00:05:24) de Ingmar Bergman,
produzido em 1957, apresentando o personagem Antonius Block disputando sua vida num
duelo de xadrez com a Morte.
8 “A morte joga xadrez” que foi pintada pelo medieval sueco Albertus Pictor (1450-1509),

inspirou o cineasta Ingmar Bergman na reprodução da imagem “Jogando Xadrez com a


Morte” Como as demais pinturas de Albertus, a pintura em questão está pintada nas paredes
da Igreja de Täby, na Suécia.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

motivo daquela pintura estar ali, já que aquela representação obviamente não faria
ninguém feliz. O diálogo entre o escudeiro e o pintor se intensifica quando ambos
refletem sobre a importância daquela representação, chegando à conclusão de que,
quando as pessoas se deparam com ela, elas refletem sobre seu fim, ficam aterrorizadas
e correm para “os braços do padre”.
Elias (1982) aponta que as mortes no medievo tendiam a ser mais dolorosas,
misturadas ao sentimento de culpa e do medo da punição pós-morte. Dessa forma, o
homem medieval era atormentado pela ideia de morrer na guerra, pela peste, pela fome,
e ainda pelo medo da eternidade no inferno gerado pela igreja, como observado a
seguir.

Figuras 12, 13 e 14: A morte no imaginário coletivo


Fonte: O Sétimo Selo (tempo: figura 12 – 00:17:25, figura 13 – 00:39:09 e figura 14 00:41:26)
de Ingmar Bergman, produzido em 1957.

Um som de trombetas ressoa, um coro começa e um grupo de pessoas caminha


praça adentro. O casal de atores se cala e observa aterrorizado o grupo se aproximando,
com homens vestidos em hábitos dos quais dois conduzem a caminhada balançando
lentamente seus incensários. Logo atrás, dois homens surgem carregando a cruz com
a figura de Jesus Cristo pregada nela. Estes são seguidos por um homem que, com as
mãos ao alto, elevam o crânio de um homem. Outros dois homens surgem carregando
um modelo de capela. À esquerda destes, encontra-se um homem de muletas olhando
singelamente para a capela, e à direita, um homem caminhando com as mãos
entrelaçadas clamando por misericórdia.
Logo depois, surge uma mulher vestida numa coroa de espinhos,
acompanhada de um homem despido se autoflagelando. Estes são seguidos por um
outro homem, também despido, implorando por misericórdia, enquanto é chicoteado
por um outro homem. Em seguida, três homens vestidos em hábitos surgem
carregando uma cruz de madeira. Estes, por fim, são seguidos por vários outros
homens, com vestes rasgadas chicoteando umas às outras. A plateia se ajoelha diante

9Sequência de imagens presente no filme O Sétimo Selo (tempo: figura 12 – 00:17:25, figura
13 – 00:39:09 e figura 14 00:41:26) de Ingmar Bergman, produzido em 1957, que apresenta
como a morte é construída no imaginário coletivo.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

dos homens, quando estes passam com seus incensários. O homem que outrora
caminhava de pé ao lado da capela, agora se ajoelha. Ao final, uma mulher se prostra
em prantos, todos se ajoelham e começam a clamar por misericórdia. Assim, um
homem, observando atentamente as pessoas a sua volta, exaltado, tomado por um
sentimento de angústia diante do que estava prestes a declamar, inicia um discurso
eloquente (O SÉTIMO SELO, 00:39:20):

“Deus está nos castigando! Silêncio! Todos nós padeceremos com a Morte Negra.
Você aí, parado como um bovino. E você sentado com toda essa autocomplacência.
Esta pode ser sua última hora! A Morte está atrás de todos vocês! Posso ver sua
sombra refletindo no sol! A foice está brilhando sobre suas cabeças! Qual de vocês
será o primeiro a morrer? [...] Você, mulher, que tem tanta vida dentro de si, será que
vai definhar antes do anoitecer? [...] Vocês não entendem, seus idiotas, que todos vão
morrer? Vocês estão condenados! Estão ouvindo? Todos vocês! Condenados!
Condenados!”

O discurso finaliza com um tenro clamor por piedade, ainda com grande
eloquência. Por fim, todos os presentes se reúnem e retomam a caminhada.
Já na segunda metade do filme, Block se encontra com Mia, uma artista que se
apresentava na praça antes do ritual, e seu filho, Mikhael, por quem logo se encanta.
Um tempo depois, o artista Jof, marido de Mia e pai de Mikhael, os encontra após fugir
de uma briga no bar, sujo e machucado, por quem Block logo é convidado para comer
morangos silvestres e tomar um pouco de leite. Block se oferece para levar o casal de
artistas até seu destino, que relutam de início, mas aceitam no final. Sentado na grama,
comendo morangos silvestres e tomando leite junto à Mia, ao escudeiro e ao Jof, que
toca seu ataúde, o cavaleiro é tomado pelas lembranças de sua esposa e goza daquele
momento de paz em meio a tanto sofrimento. Nesse momento, Block demonstra
entender o real sentido da vida. Dessa forma, reconhecendo a morte como inevitável,
é como se fosse possível tornar a vida o instante mais notável quando seu fim se mostra
iminente.
Após essa breve representação do viver, Bergman retorna às representações da
morte e dessa vez, quem teve a infelicidade de se encontrar com a Morte foi o artista
Skat. Vale frisar que Skat difere dos outros atores, sendo apresentado como um
homem perverso e egoísta. Nessa cena em especial, o artista discute com um ferreiro
após ter se envolvido com sua esposa. O ferreiro, por sua vez, ameaça matar Skat por
ter corrompido sua amada. O artista toma a frente e finge acabar com a própria vida
por vergonha. Quando todos se afastam, Skat comemora a “nova vida” que acabara
de ganhar e repousa numa árvore. A Morte aparece para ele com uma serra e começa
a cortar a árvore em que o artista está. O artista, desesperado, questiona-a:

Artista: Está cortando a minha árvore. Por que está cortando minha árvore? Poderia
pelo menos ter a educação de me dizer quem é?
Morte: Estou cortando a árvore, pois seu tempo acabou.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Artista: Não tenho tempo para isto.


Morte: Não tem tempo?
Artista: Tenho uma apresentação.
Morte: Foi cancelada, o ator morreu.
Artista: E o meu contrato?
Morte: Foi cancelado.
Artista: Minha família, meus filhos...
Morte: Tenha vergonha, Skat.
Artista: Tudo bem, estou envergonhado. Não tem um perdão especial para atores?
Morte: Não neste caso.
Artista: Nenhuma alternativa? nenhuma exceção?

A árvore é cortada e o artista morre.


Aqui é notável uma mensagem vinculada ao teatro que remete à possibilidade
de vida. Com o artista Jof por exemplo, personagem que possui visões e tem a
possibilidade de ser salvo temporariamente da morte, devido a sua capacidade de olhar
para além da realidade em que vive. Dessa forma, os que escapam a morte são atores,
mas não todos os atores. São justamente os atores que, apesar de tanta morte,
produzem vida.
Bergman retoma a carga dramática rapidamente quando Block e o escudeiro
presenciam uma mulher ser condenada ao fogo pela inquisição por ter “se deitado com
o diabo”. O cavaleiro se aproxima da mulher e lhe pede para conversar com o diabo a
fim de compreender os desígnios de Deus. Mas, durante a conversa, Block, convencido
da inocência da mulher, oferece à mulher algo que a aliviaria da dor enquanto fosse
lançada ao fogo, uma vez que a morte lhe era iminente e, nesse caso, injusta.
Mais à frente, Bergman representa a morte através de Raval, inimigo do
escudeiro. Raval surge em completo desespero, desamparado e implorando por
misericórdia enquanto a peste se apoderava de seu corpo até finalmente matá-lo.
Todos o observam em completa agonia, Mia tenta ajudá-lo, mas é impedida pelo
escudeiro que lhe lembra que não há nada ao que se fazer. A recusa da ajuda pode ser
explicada pelas medidas tomadas no medievo, como mostra Foucault (1977), que
controlavam a propagação da peste através do controle sobre os corpos dos indivíduos
que passaram a ser comumente isolados.
Nessas duas representações da morte, é possível notar como Bergman toma a
morte como repleta de dor e tormenta, demonstrando como a resignação não a torna
mais pacífica e com menos sofrimento, como demonstrou Nobert Elias (1982). Além
da dor física causada pelo fogo e pela peste, Bergman explora as angústias que o
homem se depara com as incertezas do “pós-morte”, quando a possibilidade de ser
lançado ao vazio é reforçada e se concretiza.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

10

Figura 15: Dança Macabra


Fonte: Alegoria “Dança Macabra”, criada pelo ilustrador alemão Michael Wolgemut em
1493

11

Figura 16: Dançando com a Morte


Fonte: O Sétimo Selo (Tempo: 01:35:40) de Ingmar Bergman, produzido em 1957

Como esperado, a Morte vence o jogo, mas opta por não matar Block naquele
momento, assegurando que, quando o encontrasse novamente, o mataria junto de seus
companheiros. Não demorou muito para que o cavaleiro se unisse novamente aos seus
companheiros, sendo eles, agora, o escudeiro e a sua acompanhante; o ferreiro e sua
esposa, Lisa. O cavaleiro e seus companheiros seguem para o que parece ser uma igreja
e lá encontram sua esposa, Karin, a quem não via há dez anos. Todos se reúnem em
volta da mesa para celebrar aquela ocasião. Block, agora, se mantém aflito lembrando
da promessa que a Morte havia feito a ele a pouco. A Morte surge, todos se levantam
e a encaram, cada um à sua maneira.
Karin, a esposa de Block encara a Morte com leve temor e se apresenta a ela.
Do mesmo modo, o ferreiro, ao lado de Lisa, apresenta a si e a sua esposa. A
acompanhante de Jons, a encara em silêncio, e se ajoelha diante dela com os olhos
lacrimejados. O cavaleiro, agora, se volta para a Morte com aflição e temor, buscando
reconciliação com Deus e clamando a Ele por misericórdia. Jons, por sua vez, se porta
com um leve temor, zombando da fé de Block. Contudo, com fé ou não, com temor

10 Alegoria “Dança Macabra”, criada pelo ilustrador alemão Michael Wolgemut em 1493, que
representa a universalidade da morte, remetendo a ideia de que a morte une a todos.
11 Imagem presente na cena final do filme O Sétimo Selo (Tempo: figura 16 – 01:35:40) de

Ingmar Bergman, produzido em 1957, que apresenta a Morte unindo a todos em sua dança.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

ou resignação, a Morte convidou a todos para dançar, distanciando-os do amanhecer


e os levando para a escuridão.

Considerações finais

Esse artigo analisou duas produções cinematográficas de Ingmar Bergman, O


Sétimo Selo e Morangos Silvestres, ambas produzidas em 1957. Tornou-se possível
compreender a relação dos homens com a morte e com o envelhecimento. Em O
Sétimo Selo, Bergman se volta para Idade Média, onde retrata a morte como parte da
vida, representando-a na figura de um homem, portanto personificada, como também
por meio de alegorias e simbolismos. Em Morangos Silvestres, por sua vez, Bergman se
volta para a contemporaneidade e retrata a dificuldade do velho contemporâneo de
lidar com seu próprio fim, ao passo que enfrenta dilemas como o abandono e a solidão.
Devido ao contexto medieval, marcado pelas Cruzadas e pela crise do
feudalismo e pelo trinômio “guerra, peste e fome”, Bergman sob uma estética
monocromática, constrói um cenário apocalíptico introduzindo um forte realismo
quando apresenta os atores desprovidos de qualquer higiene, com dentes podres ou
machucados, vestidos em trapos ou vestimentas comuns naquele período,
representando-os com certo estereótipo, mas rompendo com a visão romantizada do
medievo.
Diferente de O Sétimo Selo, Morangos Silvestres se passa na
contemporaneidade, onde Bergman discute as perturbações do homem moderno
também na velhice. Assim, no mesmo ano em que Bergman encarou a inevitabilidade
da morte, ele se voltou para as perturbações da vida, encarando, agora, a possibilidade
do renascimento.

Referências

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora


Guanabara, 1960.

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves,


1977.

BARREIRA JÚNIOR, Edilson B. A morte no imaginário coletivo medieval: o olhar


contemporâneo de Ingmar Bergman no filme O sétimo selo. In: Anais da 29a.
Reunião Brasileira de Antropologia. Natal: ABA, 2014. Disponível online
em:http://www.29rba.abant.org.br/resources/anais/1/1400115826_ARQUIVO_A
MORTENOIMAGINARIOCOLETIVOMEDIEVAL-RBA.pdf , acesso em
19/08/2021.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

ELIAS, Nobert. A solidão dos moribundos. Brasília: Zahar, 1986.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São


Paulo: Ática, 1978.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade (vol. 1 – A vontade de saber). Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis, Editora


Vozes, 1977.

GEERTZ, Clifford. A arte como sistema cultural. In: GEERTZ, Clifford. O saber
local: novos ensaios de antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1988.

KALIN, Jesse. The Films of Ingman Bergman. Cambridge University Press:


Cambridge, 2003.

MINAYO, Maria Cecília de Souza, SCOTT, Russel Parry. Antropologia, saúde e


envelhecimento. Envelhecimento e juventude no Japão e no Brasil: idosos, jovens e
a problematização da saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002.

REYNA, Carlos. Antropologia e cinema: algumas considerações teórico-


metodológicas. Ambivalências, v. 07, n. 13, 2019.

O SÉTIMO Selo. Direção de Ingmar Bergman. Suécia: Allan Ekellund, 1957, 1 DVD,
91 min.

MORANGOS Silvestres. Direção de Ingmar Bergman. Suécia: Allan Ekellund, 1957,


1 DVD, 91 min.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

ANÁLISES DE FILMES BRASILEIROS EM REDE SOCIAL:


CULTURA PARA ALÉM DO IMAGINÁRIO

Valeria Verónica Quiroga1

Resumo: Este trabalho surge a partir da pesquisa para uma apresentação em formato
de live em que analisei quatro filmes brasileiros para um público maioritariamente
argentino. A live foi denominada Cine brasileño: mejorá tu portugués con pelis. O trabalho foi
veiculado na rede social Instagram em junho/2020, logo nos primeiros meses de
isolamento social devido à pandemia de Covid-19. A apresentação teve
aproximadamente 500 visualizações até a escrita deste resumo. Os filmes analisados:
“A hora da Estrela” (1985), “Anjos do Sol” (2006), “Estômago” (2007) e “Bacurau”
(2019). Quando pensamos em Argentina, sabe-se que há um peculiar imaginário acerca
de Brasil. Algo semelhante ocorre entre brasileiros quando tratamos do imaginário
acerca da país vizinho. Assim, neste trabalho, me proponho a tratar aspectos culturais
importantes apresentados nos filmes que, muitas vezes, vão além daqueles expostos
em grandes produções brasileiras ou, ainda, nas novelas que, como sabemos, são
largamente veiculadas em vários países, especialmente na fronteiriça Argentina.

Palavras-chave: cinema brasileiro; imaginário; cultura

A no Instagram

Sonia Rodríguez Mella é argentina, tradutora e autora do Diccionario Acme


Espanhol Português/ Português Espanhol, autora de Portugués en un abrir y cerrar de ojos, e de
Hablemos en portugués: tu guía de fonética. Rodríguez Mella é também autora do blog
traducirportugues.com.ar e possui um canal no Instagram chamado
@traduccionesdeportugues. Em 12 de junho de 2020, foi ao ar a live ¡Mejorá tu portugués
con pelis! Para a qual apresentei uma breve análise de quatro filmes brasileiros, com o
intuito de abordar questões culturais, linguísticas, de estereótipos e imaginários que
permeassem as obras. A apresentação está no seguinte endereço
https://www.instagram.com/tv/CBWlkYynoEw/?igshid=of8ydinj901i e até o
momento da escrita deste texto conta com aproximadamente 500 visualizações. A
seguir apresentamos o banner com as informações divulgadas pela idealizadora do
canal:

1 Docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: valeria.quiroga@ufpr.br

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Figura 1: Postagem no Instagram


Fonte: Elaboração própria

Os filmes analisados

A ideia da entrevistadora de @traduccionesdeportugues foi mostrar aspectos


culturais do Brasil por meio de obras cinematográficas, para as quais selecionei quatro
A hora da estrela (1985), Anjos do Sol (2006), Estômago (2007) e Bacurau (2019), que
comento com mais detalhes em cada uma das subseções a seguir, que tem o nome de
cada obra, bem como sua direção. Nas considerações finais apresentamos aspectos
levantados pelos participantes no dia da apresentação.

A hora da estrela (1985). Direção: Suzana Amaral

O filme A hora da estrela é uma adaptação da obra homônima de Clarice


Lisperctor, de 1977. Nessa narrativa, Macabéa, a protagonista, é uma jovem de
dezenove anos, alagoana que se muda a São Paulo, Capital, em busca de melhores
oportunidades de vida. A moça trabalha como datilógrafa em uma pequena empresa,
apesar de pouco entender a língua portuguesa, bem como a arte da mecanografia. Suas
colegas de trabalho a tratam com desprezo e Macabéa, por sua vez, não entende as
figuras de linguagem utilizadas. A jovem secretária se envolve num relacionamento
amoroso com o violento e tóxico Olímpico, que não perde a oportunidade de humilhar
e desprezar a moça. Um dos muitos exemplos dessa relação está no seguinte diálogo:

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

- (...)
Olímpico _ Deputado é doutor.
Macabéa _ Ih, é?
O _ Mas eu não tô dizendo? Se eu tô dizendo é porque é! Você não acredita?
(gritando)
M_ Acredito, acredito sim. Eu não quero te ofender.
(A hora da estrela, 48’39” – 48’53”)

Uma das distrações da protagonista é olhar vitrines – quaisquer que sejam –,


como as de lojas de material de construção, por exemplo, assim como passear nas
plataformas do Metrô da cidade. Apesar de sua inocência, quando se aproxima das
faixas limitantes para os pedestres não acessarem partes arriscadas entre o trem e a
plataforma, Macabéa acredita que os seguranças a olham com lascívia, sendo que eles
fazem seu trabalho de monitoramento e segurança. O filme está ambientado em São
Paulo, Capital, espaço que como comenta Naxara (1998) é “(...) o espaço da perdição,
do falso brilho que enganava os ingênuos – aqueles que vinham para a cidade iludidos,
que provinham do campo contra a esperteza daqueles que viviam nas cidades e
conheciam as suas armadilhas.” (p. 118)
Neste filme há a presença de Fernanda Montenegro, grande ícone do cinema
brasileiro e, portanto, muito conhecida, também, do público estrangeiro.
Os pontos que chamaram a atenção do público da live foram as características simples
de Macabéa, sua visão simplória da vida, bem como a realidade de muitos migrantes
que ainda hoje passam pelas dificuldades experimentadas pela moça, bem como,
muitas vezes o desprezo e ‘invisibilidade’ em grandes centros urbanos, como pode ser
observado na própria fala da personagem no seguinte diálogo:

Olímpico - Pois é...


Macabéa _ Pois é, o que?
O _ Eu só disse “pois é”.
M_ Mas pois é o que?
O _ É melhor a gente mudar de conversa. Porque você não entende...
M_ Entender o que?
O _ Ai meu Deus, Macabéa, vamos mudar de assunto?
M_ Nós vamos falar então de que?
O _ Por que que você não fala de você?
M_ Eeeu?
O _Por que esse espanto? Gente fala de gente.
M_ Ah, mas eu não acho que sou muita gente...
O _Se você não é gente, o que que você é, então?
M_É que eu ainda não tô acostumada.
O _O que? Não se acostumou com que?
M_ É que eu não sei explicar. Será que eu sou eu?
O _Olha eu vou embora. Eu vou me embora porque você não tem é jeito!
(A hora da estrela, 52’46” a 54’43”)

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

Anjos do Sol (2006). Direção: Rudi Lagemann

O filme foi rodado no sertão da Bahia, num garimpo da Amazônia e no Rio


de Janeiro. Trata, especificamente, do comércio de meninas – a partir dos doze anos –
, que são destinadas à prostituição. O artigo de Camargo (2006), informa que o filme
se trata de uma produção nacional que conta a história de Maria, que aos doze anos se
torna prostituta em um garimpo. Essa realidade, segundo a estudiosa, atinge 100 mil
crianças e adolescentes no país. O dado está baseado em estudos da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Camargo também informa que as meninas vivem
em regimes análogos à escravidão, já que “teoricamente recebem pelos programas, mas
têm descontado o valor das roupas, comida, alojamento e remédios (...) sofrem
violências físicas e ameaças psicológicas para não deixarem o local.”. Na trama
aparecem leilões de menores, cujo pagamento do programa com as meninas é realizado
em ouro: 3g por programa.
Apesar dos aspectos apontados no parágrafo acima, a religião aparece como
personagem coadjuvante, considerando-se o sincretismo existente no Brasil e, em
vários locais onde foi filmado, o filme traz imagens de santos e altares.
Uma figura importante na trama é Saraiva, o dono da “pensão” onde trabalham
as meninas, que muitas vezes são rechaçadas por serem alfabetizadas, uma vez que
reclamam por salários e melhores condições de trabalho. As meninas que sofreram
doenças como a malária também são menos ‘cotadas’ no comércio pelo que passam
para atender a seus clientes.
O diretor de Anjos do Sol, Rudi Lagemann, aponta que algumas organizações
não governamentais brasileiras utilizaram o filme para ampliar a discussão sobre o tema
tratado na obra, considerando-se que o filme está baseado na realidade (CAMARGO,
2006).
Um dos destaques no elenco de Anjos do Sol é Vera Holtz, que faz o papel de
cafetina e é uma atriz de grande projeção tanto nacional, quanto internacionalmente.

Estômago (2007). Direção: Marcos Jorge

Jessé Souza inicia o primeiro capítulo de seu Ralé Brasileira, afirmando “Nós,
brasileiros, somos o povo da alegria, do calor humano, da hospitalidade e do sexo. Em
resumo: somos o povo da “emocionalidade” e da “espontaneidade” (...)” (2011, p. 29).
Escolhemos essa citação para o início de nossa apresentação acerca do filme Estômago,
filmado na cidade de Curitiba, Paraná, mas que poderia ser realizado em qualquer
grande cidade – ou capital – do país. Os elementos apontados por Souza como a
alegria, o calor humano, a hospitalidade e o sexo entram, em maior ou menor grau em
várias das análises destes filmes e com Estômago não é diferente. Kuczynski (2011)
observa que “é possível incluir a fotografia privilegiando o ato de cozinhar/ comer
com planos mais fechados e iluminados. É o que ocorre em uma das cenas iniciais, de

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

quando Raimundo Nonato descobre seu talento no boteco do seu Zulmiro”. Nesse
aspecto, a fotografia entra como um elemento muito importante nesta análise, dado
que as cores, muito vivas, fazem com que as cenas apresentem grande qualidade
imagética.
No argumento, temos Raimundo Nonato, jovem nordestino que se desloca de
ônibus de sua cidade para tentar a vida, assim como Macabéa, para uma cidade maior.
É outro nordestino que se encontra com os elementos tratados por Naxara (1998)
quando delineia as representações do brasileiro. A alegria, o calor humano, a
hospitalidade e o sexo permeiam o filme de Marcos Jorge, porém não necessariamente
nessa ordem. Aspectos culinários são muito relevantes na obra cinematográfica, dado
que Raimundo Nonato é preso e, no cárcere, se destaca por melhorar o aspecto e sabor
dos alimentos oferecidos aos detentos. Nesse sentido e por tal característica, Nonato
ascende na hierarquia do presídio, ganhando o respeito dos colegas de cela. Assim,
notamos a hospitalidade dos presos em receber Nonato. O sexo, porém, chega com a
prostituta Íria, por quem o protagonista se apaixona e acredita viver um
relacionamento.
Atores de destaque na obra de Marcos Jorge são: João Miguel, Fabiula
Nascimento, Babu Santana, Paulo Miklos, Jean Pierre Noher – alguns muito
conhecidos tanto do público brasileiro como estrangeiro, considerando que trabalham
em telenovelas: produtos de também de grande difusão da cultura e disseminação e
estereótipos nacionais.

Bacurau (2019). Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

A obra dos diretores pernambucanos Mendonça Filho e Dornelles foi


considerada por muitos críticos uma despedida do cinema brasileiro, devido às
temáticas abordadas na obra, que considera: a distância dos centros urbanos, a
memória coletiva do brasileiro – como no velório que aparece numa das primeiras
cenas, o coronelismo, a falta de políticas públicas. Por tais aspectos, o filme está
considerado um faroeste brasileiro, já que se trata de um misto entre resistência, ficção
científica e cangaço. Aidar, em seu artigo, comenta que “o filme é bastante fiel à
realidade nacional, contando inclusive com a população local em seu elenco, o que foi
essencial para retratar um Brasil cheio de desigualdades, mas sobretudo de resistência
popular.”
Laura Aidar, em seu texto de análise do filme, aponta, também a importância
das mulheres e do matriarcado em Bacurau, já que a trama se inicia com o velório de
Carmelita, responsável por uma grande família, tão diversa quanto o povo brasileiro.
Um ponto importante e que foi tratado durante a live, foi o aspecto de alguns
brasileiros não se sentirem brasileiros como os residentes de Bacurau, por exemplo,
considerando-se “mais iguais aos norte-americanos” – em fala dos próprios

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

personagens –, e, assim, superiores, por serem descendentes de europeus, o que, no


filme, causa um grande estranhamento aos estrangeiros que fazem parte da trama.
Como personagens importantes do filme temos um professor, uma médica,
Domingas, interpretada por Sônia Braga – e muito conhecida pelo público
internacional. Essa é uma personagem forte e ressalta o papel de força da mulher no
meio em que vive, apesar de seus problemas de saúde. Temos também o político
corrupto, na figura do prefeito da cidade, que se aproxima do povo em épocas
eleitorais. Ademais, como já foi citado, temos os habitantes da cidade, que, como
chamamos na linguagem cinematográfica, são ‘não-atores’.
Lunga, por sua parte, é um dos personagens mais emblemáticos do filme e
apresenta características queer, uma vez que transita entre o masculino e o feminino,
dando, assim, visibilidade ao personagem que lidera a resistência naquela cidade do
nordeste do Brasil.

Questões culturais

Os filmes analisados tratam de aspectos como o preconceito – contra a mulher,


contra os nordestinos, religião, que em alguns filmes aparece como pano de fundo em
algumas cenas, bem como política – no que se refere a Bacurau e as questões referentes
à hierarquia existente no presídio em que estava Raimundo Nonato, no filme Estômago.
Questões linguísticas são importantes e podem ser relacionadas quando se trata
de cinema para falantes de outras línguas, o espanhol, em sua maioria como
participantes da live. As variantes nordestinas ficam em evidência nas análises, bem
como aspectos linguísticos que tem relação com as temáticas abordadas.
O papel da mulher é uma constante em todas as obras e está retratado por
Macabéa, em A hora da estrela, Maria – e todas as meninas de Anjos do Sol –, Iria, no
papel da prostituta de Estômago, bem como Domingas e Teresa em Bacurau. Apesar de
serem mulheres de diversas idades, origens e atuações na sociedade, todos os filmes as
apresentam como destaques em suas obras. Esse ponto foi ressaltado na apresentação
ao vivo, uma vez que a data coincidiu com o Dia dos Namorados no Brasil, data em
que se lembra muito de feminicídios e abusos contra a mulher. Esse ponto, assim, foi
lembrado tanto pela apresentadora da live, quanto pelos participantes.

Considerações finais

Durante a apresentação houve contribuições dos participantes no que se refere


a vocabulário e questões culturais apresentadas nos filmes, como a vida no garimpo, a
vida dos migrantes nordestinos nas grandes cidades – e as distâncias recorridas por
eles deixando suas cidades e famílias para se instalarem em grandes centros, como foi

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

o caso de Macabéa, em A hora da estrela, e Raimundo Nonato, em Estômago. Não é


diferente o que acontece com as meninas aliciadas para a prostituição em Anjos do Sol.
As locações dos filmes são personagens extras, uma vez que há cenas no sertão,
como em Anjos do Sol e Bacurau, mas também aparecem grandes centros como Rio
de Janeiro e São Paulo, que servem para contrabalancear a grandiosidade de um país
continental.
Os participantes, que nos brindaram com comentários e perguntas, eram
oriundos da Argentina, Brasil, Espanha, Marrocos e Turquia. Esse foi um primeiro
trabalho via remota que me inspirou a analisar filmes, desenvolver um Projeto de
Extensão Universitária com Eventos2 e Cursos3 sobre o assunto, o que tem gerado um
trabalho muito profícuo no que se refere a ações extensionistas. Vale salientar que,
como prevê a Extensão Universitária, há parcerias entre instituições no que se refere
aos comentários dos filmes, e os envolvidos são de áreas diversas, que sempre
dialogam, quais sejam: artes, filosofia, literatura, linguística, teatro, entre tantas outras
que completam os diálogos. Instituições como UEL, UTFPR, UNESP, UFSCar,
UNESPAR, Secretaria de Educação de São Paulo, e outras cedem seus profissionais
para um trabalho interprofissional e interdisciplinar como deve ser a Extensão
Universitária, que surgiu a partir da apresentação que ora relatamos. Nas notas de
rodapé foram citados um Evento de Extensão e um Curso, ambos sob nomenclatura
Cinema ibero-americano: diálogos e reflexões em tempos de pandemia, porém, no momento da
escrita deste artigo estamos promovendo a 2ª edição do Curso de Extensão – 2º/
semestre/ 2021, com a previsão de comentários de cinco filmes ibero-americanos.
Vale ressaltar, por fim, que os estudantes – bolsistas e voluntários –, muito
auxiliam na divulgação das ações extensionistas, criando os links de acesso para as lives,
bem como os canais no YouTube, atuando, também em sua gestão. Espera-se,
portanto, que a participação nestes eventos impacte em sua formação docente de
maneira positiva e inovadora.

Referências

A HORA da estrela. Direção: Suzana Amaral. Produção de Assunção Hernandes.


Brasil: Embrafilme, 1985. 1 DVD.

AIDAR, Laura. Bacurau: análise do filme. Disponível em


https://www.culturagenial.com/bacurau-analise/, 2021.

2 Evento de Extensão Universitária realizado no 2º semestre/ 2020


https://linktr.ee/Cinemaiberoamericano, contendo oito filmes e suas análises.
3 Curso de Extensão Universitária realizado no 1º semestre/ 2021
https://linktr.ee/cinema.iberoamericano, contendo seis filmes e suas análises.

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Eixo 3
Estudos sobre a Imagem e expressões artísticas

ANJOS do sol. Direção: Rudi Lagemann. Produção de ... Brasil: Downtown Filmes,
2006. 1 DVD.

BACURAU. Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Produção de


Emilie Lesclaux, Said Ben Said e Michel Merkt. Brasil e França: Vitrine Filmes (Brasil)
e SBS Distribution (França), 2019. 1 DVD.

BIZARRO, Rosa; BRAGA, Fátima. Da (s) cultura (s) de ensino ao ensino da (s)
cultura (s) na aula de Língua Estrangeira. 2014.

CAMARGO, Beatriz. “Anjos do Sol” retrata exploração sexual de crianças no


Brasil. Disponível em https://reporterbrasil.org.br/2006/08/anjos-do-sol-retrata-
exploracao-sexual-de-criancas-no-brasil/, 2006. Acesso em outubro de 2021.

ESTÔMAGO. Direção: Marcos Jorge. Produção de Cláudia da Natividade (Zencrane


Filmes): Downtown Filmes, Brasil, 2007. 1 DVD.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. TupyKurumin, 2006.

KUCZYNSKI, Uliana. “ESTÔMAGO”, o filme, como prato principal para a história:


projeções da alimentação no cinema. In: III Encontro Nacional de Estudos da
Imagem. Londrina, 2011. (p. 2854 a 2864)

NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra:


representações do brasileiro, 1870/ 1920. São Paulo: Annablume, 1998.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: como é e como vive. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.

VILASECA, Angels Olivera. Hacia la competencia intercultural en el aprendizaje


de una lengua extranjera. Estudio del choque cultural y los malentendidos.
Edinumen, Madrid, 2000.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

DO MATERIAL PARA O VIRTUAL: COMO OS PAPÉIS DE


GÊNERO SE MANIFESTAM NO UNIVERSO ONLINE DE
?

Alice Silva Poltronieri1

Resumo: A internet, junto ao desenvolvimento de diferentes dispositivos


tecnológicos, possibilitou o surgimento de novas esferas de interação e sociabilidade,
que deixaram de ter como palco ambientes materiais e passaram a ocorrer também no
universo virtual, no mundo on-line. As relações existentes no mundo material passaram
a ocorrer também na rede, e ambas influenciam e modificam uma à outra
constantemente. Entre os novos nichos de sociabilidade e interação, os jogos online
multiplayer tem obtido cada vez mais adesão, principalmente do público infanto-
juvenil. Busca-se, no presente artigo, investigar de que forma as relações sociais, mais
especificamente as manifestações de estereótipos e papeis de gênero, tão recorrentes
no mundo material, ocorrem dentro do universo de League of Legends, um dos games
mais jogados mundialmente na atualidade. Para tanto, foi analisado de que forma a
arquitetura do jogo e de seus personagens é construída, bem como a maneira segundo
a qual os jogadores se relacionam entre si e com esta arquitetura, que pode ou não
reforçar padrões e estereótipos.

Palavras-chave: League of Legends, papeis de gênero, gamers, jogos online, teoria feminista.

Introdução

O surgimento da internet, entrelaçado ao desenvolvimento de diferentes


dispositivos tecnológicos, possibilitou o surgimento de novas esferas de interação e
sociabilidade, que deixaram de ter como palco apenas ambientes materiais e passaram
a ocorrer também no universo virtual, no mundo on-line. As relações existentes no
mundo material, portanto, passaram a ocorrer também na rede, e ambas influenciam e
modificam uma à outra constantemente. Entre os novos nichos de sociabilidade e
interação, os jogos online têm obtido cada vez mais destaque principalmente entre o
público infanto-juvenil.
Alguns gêneros de jogos online possibilitam interação e comunicação entre os
jogadores de formas variadas, como pings (alertas sonoros), mensagens prontas, chat
de texto e chat de voz. Além do contato in game (dentro do jogo), os jogadores
frequentemente se comunicam através de programas como Discord, TeamSpeak (TS)

1 Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina. E-mail:


alice.silva.poltronieri@uel.br

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

e Skype, e criam grupos e páginas em plataformas, como Facebook e Reddit, para se


comunicarem com outros jogadores, formando grandes comunidades de indivíduos
com interesses semelhantes.
Os jogos online, portanto, tem criado um ambiente importante de socialização
e interação de indivíduos em diferentes faixas etárias, com destaque para o público
jovem. A crescente importância da esfera virtual no cotidiano de indivíduos ao redor
de todo o globo traz consigo a necessidade de que as ciências humanas direcionem
olhares atentos a este campo de estudo em ascensão. Uma vez que o meio virtual tanto
reproduz as relações sociais presentes no mundo material como interfere no mesmo e
o modifica, é essencial que se discorra acerca de como estas relações ocorrem no
mundo online, bem como se estude a constituição do virtual por si só. Neste sentido,
estudar a arquitetura dos jogos online se torna relevante pois possibilita analisar de que
forma a construção destes universos reproduz e perpetua padrões presentes na esfera
material, mas também em que medida se contrapõe ao que a precedeu. Considerando
que públicos de todas as idades passam cada vez mais tempo imersos em ambientes
virtuais, tanto a arquitetura dos jogos eletrônicos como as interações que ocorrem
nesta esfera podem ter forte peso na maneira como os usuários se comunicam entre si
tanto dentro quanto fora dos jogos.
Tendo isto em mente, foram analisadas, no presente trabalho, a arquitetura e
construção dos personagens de um dos games de computador mais jogados atualmente
– League of Legends – e à forma como os jogadores e jogadoras reagem a esta
construção por meio de suas escolhas de personagens. O objetivo da análise esteve
centrado em buscar entender de que formas os estereótipos e papeis de gênero se
manifestam tanto no universo do jogo quanto nas escolhas de quais personagens os
usuários mais utilizam para jogar.
Inicialmente, para alcançar tal objetivo, foi feita uma revisão bibliográfica
acerca de trabalhos que envolvessem temáticas relacionadas a jogos online no geral,
League of Legends, violência e estereótipos de gênero dentro dos jogos e suas
manifestações entre os jogadores. A leitura desta bibliografia possibilitou a percepção
de que é recorrente que a arquitetura dos jogos e a construção dos personagens
reforcem estereótipos de gênero envolvendo tanto o ideal de feminilidade quanto o de
masculinidade. Trabalhos acerca do jogo foco deste trabalho demonstraram como os
campeões e campeãs presentes em seu universo também endossam tais fantasias acerca
do feminino e masculino, bem como reforçam estereótipos de gênero. Analisou-se,
então, a construção dos personagens, que foram classificados de acordo com suas
características físicas, função (habilidades) e sexo.
Após o levantamento bibliográfico, leitura e análise dos personagens da marca,
os esforços foram direcionados para a sondagem dos perfis de jogadores e jogadoras.
Para chegar a tais perfis, foi utilizada a plataforma Twitch, site no qual qualquer
indivíduo pode transmitir seus jogos e atividades diversas ao vivo e interagir com o
público. Foram selecionados 300 perfis válidos e rastreáveis encontrados pela
pesquisadora, divididos entre mulheres (150) e homens (150) de acordo com a

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

autoidentificação dos usuários. Os dados acerca das escolhas dos usuários foram
coletados através do site Op.gg, que mapeia e registra os personagens escolhidos por
todos os jogadores de League of Legends em suas partidas ranqueadas. Tendo em vista
a maior exatidão possível quanto aos dados coletados, foram computados os cinco
personagens mais jogados por cada um dos 300 usuários, totalizando 1500 escolhas.

As mulheres e os

O aumento do número de jogadoras e as críticas que têm sido feitas ao


preconceito de gênero existente no ambiente dos jogos têm colocado em xeque a antes
inquestionável dominância e supremacia de homens como único público-alvo e como
ponto de partida para criação dos jogos, trazendo tópicos e questionamentos acerca
do conteúdo, usuários e as relações sociais que têm seu palco no mundo virtual
(MYERS, 2019). Muito se tem questionado acerca da forma como as mulheres são
representadas nos jogos; a diferença entre os trajes utilizados por personagens
masculinos e femininos salta aos olhos: enquanto os homens utilizam armaduras e
tecidos para proteger seus corpos para a batalha, as mulheres nos jogos utilizam muito
menos vestimentas para cobrir seus corpos, representados majoritariamente de forma
sexualizada e repletos de peças curtas, muitas vezes apenas com o suficiente para
ocultar a genitália e os seios salientes. Por vezes, o apelo à sensualidade se dá mesmo
entre aquelas que utilizam armaduras: os chamados boob plates, armaduras que destacam
os seios.
Muitas vezes, além do visual não condizente com a representação de guerreiras,
as personagens femininas são construídas de maneiras que as tornam dependentes de
personagens masculinos. São representadas de forma frágil, delicada, e suas habilidades
em jogo frequentemente são apenas de cura e de suporte ao seu time, como se fossem
cuidadoras. Nesses casos, é possível perceber que muitos jogos eletrônicos
(re)constroem um universo no qual os papeis de gênero existentes no mundo material
são também impostos às personagens e jogadoras dentro do mundo virtual.
Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, trata a clara divisão de papeis de gênero
que existe em nossa sociedade. Segundo a autora, “a humanidade se reparte em duas
categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses,
ocupações são manifestamente diferentes” (BEAUVOIR, 1970, p. 08-09). A autora
brasileira Gabriela Kurtz (2019), em sua tese sobre discurso e manifestações de
violência simbólica de gênero nos jogos Dota 2 e League of Legends, afirma que “Simone
de Beauvoir (1967; 1970) dedicou-se em suas obras a desvelar como a produção de
verdades em diversas áreas do conhecimento contribuíram para a construção do que é
ser mulher” (KURTZ, 2019, p. 44). Neste sentido, a identidade da mulher não é algo
determinado por seu sexo de nascimento: trata-se de uma construção que é
constantemente reiterada e renovada, buscando justificar uma suposta inferioridade do
ser humano nascido fêmea, tornando-o submisso ao nascido macho.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

A filósofa norte-americana Judith Butler, por sua vez, trata as categorias sexo
e gênero de maneira diferente de Simone de Beauvoir. Para ela, não apenas a ideia de
gênero, mas também a própria definição de sexo, envolveria um discurso socialmente
construído. A categoria sexo seria, neste sentido, um discurso que remete a ordens
biológicas e tem como objetivo validar a opressão sobre as mulheres, ao passo que
gênero estaria na instância das performatividades, na ordem do social (BUTLER,
2010). Neste sentido, gênero em Butler seria, segundo Kurtz, uma “contínua estilização
do corpo que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência da substância,
ou seja, de uma maneira natural de ser” (KURTZ, 2019, p. 44). As performatividades
– e o gênero –, portanto, não seriam verdadeiramente uma escolha: é o que se espera
de um homem ou de uma mulher, um conjunto de atos que se repetem dentro de um
quadro regulatório rígido, como se houvesse, segundo Kurtz, uma espécie de “script”.
Sexo e gênero, neste sentido, são categorias diferentes e não neutras para estas autoras.
A autora brasileira movimenta, então, a obra de West e Zimmerman (1987),
autores que complementam as visões acerca de sexo e gênero propostas nas páginas
anteriores, reforçando que a relação entre processos biológicos e culturais é complexa.
Estes autores trazem três conceitos: sexo, categoria sexual e gênero. De acordo com
tabela adaptada pela autora (KURTZ, 2019), retirada da obra Gender & Society (1987),
sexo é determinado no nascimento pelas genitais, ou pelos cromossomos; categoria
sexual é “estabelecida a partir da aplicação de do critério sexo e [...] é sustentada no
dia-a-dia pela exibição de marcas de identificação socialmente requeridas”, é a
demonstração física externa do sexo; e gênero consiste na “atividade de gerenciar
condutas situadas sob concepções normativas em atitudes apropriadas para cada
categoria sexual e [...] emerge a partir de reinvindicações reforçadas no pertencimento
a alguma categoria sexual” (KURTZ, 2019, p.46).
Estaríamos, então, sempre sob alguma categoria sexual. O gênero, segundo
estes autores, vai além de uma demonstração identitária: é um fazer.

Fazendo gênero significa criar diferenças entre homens e mulheres que não são
naturais, nem de essência ou de natureza biológica. A partir do momento em
que essas diferenças são construídas, elas são utilizadas para reforçar a
“essência” do gênero (KURTZ, 2019, p. 47)

Seguindo esta linha de pensamento, feminilidade e masculinidade – e gênero –


são, segundo Kurtz, fruto da capacidade humana de manipular símbolos, e são
reforçados em todos os âmbitos sociais. Gênero e os papeis por ele impostos,
portanto, por estarem relacionados diretamente ao social, são categorias que se
diferenciam de acordo com a cultura e com os símbolos nela presentes e influenciam
as maneiras como os indivíduos se apresentam e veem os outros. Os indivíduos são,
desde pequenos, treinados para se comportar de acordo com os papeis de gênero que
a sociedade em que vive define como aqueles referentes ao seu sexo de nascimento,
que corresponderá a categoria sexual que é esperada de seu sexo, e acabam se tornando

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

o que praticam ser. West e Zimmerman (1987) caracterizam gênero como “um
dispositivo ideológico poderoso, pois produz, reproduz e legitima as escolhas e limites
que estão pressupostas na categoria sexual” (KURTZ, 2019, p. 49). Classificar um
indivíduo como do sexo feminino ou masculino, portanto, pressupõe uma série de
premissas posteriores que incluem a classificação sexual e a atividade de fazer gênero
(KURTZ, 2019).
Dessa forma, a sociedade ocidental espera que os indivíduos aparentem ser da
categoria sexual correspondendo a seu sexo – feminino ou masculino – e façam gênero
também equivalente. Esta dicotomia é reforçada por diversas vias tradicionais, como
a Igreja, escolas, família, e, devido às mudanças culturais nos últimos anos, também
pelos games e sua comunidade. Além da divisão em duas categorias ser visível no mundo
material – do qual tratava Beauvoir –, ela também está fortemente presente na nova
esfera em ascensão, o mundo virtual, e, dentro dele, particularmente, no universo dos
game(r)s.
O mundo dos games considerado, por muito tempo, um local
fundamentalmente masculino e, assim sendo, esse foi o público ao qual o universo
virtual serviu e em torno do qual os games se desenvolveram. Por considerar o público
masculino como alvo de seu mercado, a indústria de jogos buscou agradar essa parcela
da população, o que implica na construção de um universo extremamente generificado:
os personagens masculinos são construídos como fortes, musculosos, cobertos com
armaduras e prontos para a batalha, enquanto as personagens femininas
frequentemente são representadas por figuras frágeis, dependentes e hipersexualizadas,
com poucas vestimentas, o que deixa seus corpos à mostra para objetificação pelo
público alvo. A construção das personagens femininas também as liga, segundo
Mungioli (2011), ao mito da maternidade, mantendo também no mundo virtual a ideia
de que a função da mulher seria cuidar de e proteger seus companheiros de partida.
Por ter sido até então considerado como entretenimento do público masculino,
a presença das mulheres como jogadoras as expõe a recorrentes episódios de misoginia
e assédio (MYERS, 2010). Até 2010, como afirma Myers em seu artigo para o site
Kotaku, questões relacionadas à presença e representação da mulher nos jogos online
eram praticamente inexistentes e, quando surgiam, eram combatidas ferozmente pelo
público até então foco dos jogos, o masculino; e os indivíduos que procuravam abordar
tais tópicos eram ameaçados mesmo fora da internet. Com o aumento da presença
feminina entre o público consumidor dos jogos e video games, a violência imposta às
mulheres, que já era um grande problema social trazido à tona por estudos
contemporâneos, tornou-se ainda mais visível e frequente também na nova esfera que
tem se desenvolvido ao longo do século XXI, a virtual.
A reiteração tanto dos papeis de gênero quanto da violência direcionada às
mulheres evidencia que o mundo virtual não é uma realidade descolada do mundo
material. Amanda Rodrigues (2016), em sua dissertação sobre territorialidades e gênero
em League of Legends, defende que estes dois mundos consistem em realidades

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

complementares, que são influenciadas uma pela outra. Para tratar a relação entre
material e virtual, a autora evoca Suely Fragoso (2015), segundo a qual
O ‘espaço material’ é aquele onde se encontram as coisas físicas: o corpo do jogador,
os aparelhos que ele utiliza para jogar, os objetos que estão à sua volta, etc. A
impressão de que esta categoria tem menos importância ou complexidade que as
anteriores é decorrente da vitalidade da herança cartesiana, que faz com que toda
atenção à materialidade pareça ingênua, reduzindo os existentes do mundo às
aparências e superficialidades. No entanto, dada a inseparabilidade entre o corpo e a
consciência, algumas das principais chaves para entender a experiência espacial dos
games se encontram no espaço material. (FRAGOSO, 2015, p 199, apud
RODRIGUES, 2016, p. 38).

Dessa forma, segundo Rodrigues, “o mundo virtual é um simulacro do mundo


material com seus pontos positivos e negativos, mas que tem como uma característica
própria não depender da fisicalidade para que as relações humanas possam ocorrer”
(RODRIGUES, 2016, p. 25). O que diferencia os dois mundos é a imaterialidade do
virtual, que acaba desvinculando os indivíduos da ideia de que suas ações podem ter
consequências. O anonimato da web traz uma sensação de segurança, fazendo com que
os indivíduos reproduzam as estruturas sociais de poder presentes na sociedade de
forma menos inibida. O universo e a comunidade de League of Legends, inseridos no
virtual, não fogem a essa caracterização: uma rápida observação de comentários em
grupos e perfis de plataformas como Facebook e Twitter possibilita o contato com
diversos tipos de violência proferidos explicitamente entre os jogadores, sendo as
violações mais frequentes o assédio às jogadoras e o discurso de ódio a minorias.
Graciele Silveira (2020), em um artigo sobre interações em grupos de LoL no
Facebook, aborda os tipos de violência simbólica de gênero que podem ser ali
observados, como assédio sexual, insultos, interdição de discurso, reiteração de
estereótipos, além da culpabilização das vítimas pelas agressões sofridas. A autora
chega à conclusão de que, nos jogos eletrônicos, os homens ocupam uma posição
privilegiada, sendo a eles permitidos comportamentos violentos e de liderança,
enquanto às mulheres são atribuídas características como fragilidade e dependência.
A caracterização das mulheres como frágeis e dependes, portanto, não é fruto
exclusivo da interação entre os jogadores. É fato que os gamers reproduzem os
discursos de poder e estereótipos relacionados aos papeis de gênero em suas interações
tanto no mundo material quanto no virtual. No entanto, além de estar presente nos
discursos dos jogadores, tais estereótipos também são reproduzidos através da
arquitetura do jogo. É relevante que se investigue as formas por meio das quais a
elaboração de personagens (156 no total) de League of Legends, jogo que que possui
tanta visibilidade nacional e internacional, pode reforçar comportamentos
discriminatórios por parte dos jogadores, além de favorecer a submissão por uma
parcela do público aos padrões ali apresentados, uma vez que muitas pessoas, e
principalmente os jovens, têm passado cada vez mais tempo imersos no mundo virtual,
seja jogando o jogo em si ou conectadas a comunidades relacionadas ao assunto.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Construção dos personagens

A aparência dos personagens, bem como suas habilidades, varia


consideravelmente de acordo com sua classe e função dentro do jogo. Adotamos
classificações visuais apresentadas por Jéssica Nascimento em sua tese Estereótipos
femininos nos jogos eletrônicos online: um estudo sobre representações de gênero em League of Legends
(UFB), concluída em 2016.
Em uma primeira instância, alguns dados foram coletados e reunidos a partir
de uma análise quantitativa e descritiva, realizada com recursos disponíveis no próprio
site do jogo. Em seguida, foram mapeados quantos personagens são do sexo feminino
e masculino, a partir de suas características visuais e narrativas; comparou-se também
a variedade visual dos personagens femininos e masculinos; o modo em que ambos os
personagens são apresentados em suas splash arts [...]. A análise foi necessária para
constatar de que forma as personagens de sexo feminino são retratadas em League
(NASCIMENTO, 2016, p. 53).
Inicialmente, os personagens foram classificados de acordo com o sexo
definido pela própria marca. Os personagens do sexo masculinos representam uma
maioria considerável, como mostra o gráfico 1. Há 98 personagens do sexo masculino,
57 do sexo feminino e 1 personagem é composto pelos dois sexos. Há diferenças ainda
mais expressivas que entre a quantidade de personagens do sexo feminino e masculino.
As diferenças entre os padrões e características físicas enquadrados em cada um dos
sexos explicita a necessidade de direcionar olhares críticos para a construção dos
personagens e arquitetura de League of Legends.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Assim como Nascimento, classificamos os personagens de acordo com a


presença ou ausência de características humanas como seios, polegares e aparência
física e facial humanoide. Os personagens que apresentassem mais características
humanoides que animalescas foram enquadrados como possuidores de características
humanas (fatia “com” do gráfico 2). Aqueles que possuíssem mais características
animalescas, como garras, asas e presas, e o físico coberto de pelagem e semelhante ao
de animais – como gatos, esquilos etc. –, por sua vez, foram enquadrados como não
possuidores de traços humanos (fatia “sem”).

Entre os personagens femininos, a esmagadora maioria pode ser enquadrada


na categoria humana: 54 das 57 campeãs (94,7%) possuem características
majoritariamente humanas enquanto, entre os campeões, estes atributos constituem 51
dos 98 personagens (52%).
Tais dados são interessantes para se pensar por qual motivo há pouca (ou
nenhuma) diversificação das características visuais das personagens femininas em
League se comparadas às masculinas. Sejam robôs, seres de outro mundo ou criaturas
fantásticas, a aparência e corpo dessas personagens nos remetem, quase sempre, a uma
mulher, humana, fruto de um padrão estético imposto por um olhar de apreciação
masculina hegemônico - presença constante de seios, cinturas, nádegas e pernas bem
definidas. Discursos como esse reforçam "verdades cristalizadas", únicas, em relação
à representação das mulheres, uma vez que "as imagens dizem muito, nos produzem,
nos significam, nos sonham" (LOPONTE, 2002, p. 284, apud NASCIMENTO, 2016,
p. 54).
No universo de League of Legends é possível perceber, portanto, que a construção
das campeãs raramente foge dos padrões com quais estamos acostumadas a lidar no
mundo material. De maneira geral e em comparação com os personagens do sexo
masculino, como mostrará o gráfico 3, as campeãs apresentam construções visuais
majoritariamente hiper sexualizadas, sensuais, com seios salientes e chamativos ou

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

parcialmente nuas (pernas e tórax). O gráfico que ilustra os episódios de sensualidade,


nudez ou hiper sexualização dos personagens chama a atenção para o fato de que mais
da metade das campeãs apresenta tais características – 35 (61,4%) –, enquanto o
mesmo ocorre apenas com 20 campeões (20,4%).

Ainda que usem armaduras, como é o caso das poucas que ocupam a função
tanque, há ainda um forte apelo sexual devido a presença dos chamados boob plates,
“armaduras que, embora sejam aparentemente feitas com metais pesados, ainda assim
ressaltam os seios das personagens” (NASCIMENTO, 2016, p. 64), como é o caso de
Leona, Vi e Shyvana, por exemplo. Há, algumas campeãs que, assim como os tanques
e lutadores do sexo masculino, utilizam armaduras e escudos, sem serem sensualizadas,
e possuem porte físico mais robusto e atlético; Illaoi, Camille e Rell são exemplos de
campeãs que não apresentam apelo sexual.
Quando analisamos as diferenças visuais entre os campeões e campeãs que são
enquadrados na função suporte, que tem função de “cuidadores” de seus
companheiros, seja ela primária ou secundária, as discrepâncias também saltam aos
olhos. Entre os 33 personagens que podem exercer a função de suporte, 12 são do
sexo masculino e 21 do sexo feminino.
Quando se trata dos campeões suportes, mesmo aqueles que são suportes e
magos não tem um visual tão frágil quanto os personagens do sexo oposto. Neste
sentido, é possível que a construção das personagens, além de demonstrar sinais de
sexualização tanto de campeões quanto campeãs – mais fortemente nas últimas –,
também manifeste e propague alguns estereótipos de gênero envolvendo a fragilidade
e dependência das mulheres.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Perfis das jogadoras e jogadores

Mago, assassino, lutador, tanque, suporte e atirador, bem como junções entre
duas destas, são as funções dos personagens que os jogadores de League of Legends
podem escolher para controlar durante as partidas gerenciadas.
Nesta pesquisa, buscou-se mapear os personagens escolhidos pelos usuários
em partidas ranqueadas (que valem pontos de rank). Para chegar a estes perfis, foram
observadas transmissões na plataforma de streaming Twitch.tv, onde pode-se obter os
nomes/nicks dos streamers dentro do jogo. Foram observados entre 300 e 320 streamers
para obtenção de um extenso banco de dados.
Após a coleta de todos os perfis, foram selecionados, entre os coletados, os
primeiros 300 perfis válidos que possuíssem no mínimo 20 partidas ranqueadas
computadas pela plataforma OP.gg tendo em vista alcançar a maior exatidão dos dados
e estimativas realizadas. Dentre estes 300 perfis, 150 corresponderam a usuários que
se declaram homens e 150 perfis de usuárias que se declaram mulheres. Neste sentido,
não houve qualquer tipo de diferenciação relacionada à opção sexual ou identidade de
gênero (cis ou trans). A divisão entre homens e mulheres foi feita de acordo com a
autodeterminação dos/as streamers, definida em seus respectivos perfis, possibilitando
a análise das escolhas dos jogadores e jogadoras.
Selecionados os perfis, foram coletadas as cinco escolhas mais frequentes
destes 300 jogadores e jogadoras, totalizando 1500 escolhas de personagens a serem
analisadas. Estes 1500 dados, logicamente, foram distribuídos entre os 156
personagens disponíveis. Para tanto, foram confeccionadas duas novas tabela – na qual
estavam inclusos todos os campeões e campeãs em ordem alfabética e com cores
indicando o sexo definido2 –; estas tabelas foram alimentadas com a frequência de
escolha dos jogadores: a primeira com o personagem mais escolhido por cada um dos
300 jogadores, e a segunda com os cinco personagens mais escolhidos.

Campeões e campeãs mais escolhidos

A análise dos 300 perfis possibilitou estimar quais são os campeões mais
escolhidos, aqueles que aparecem em primeiro lugar nos perfis computados na
plataforma OP.gg.
A tabela 1 contabiliza as escolhas das 150 jogadoras e dos 150 jogadores
analisados, que foram divididas de acordo com o personagem mais jogado (favorito)
por cada um e classificadas em personagem mulher (ou definida como pertencente ao
sexo feminino), homem (ou definido como pertencente ao sexo masculino) e Kindred

2 Os campeões definidos como homens foram destacados com a cor azul, e as campeãs
definidas como mulheres com a cor laranja.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

(personagem que possui duas partes, uma pertencente ao sexo feminino – ovelha – e
outra ao masculino – lobo).

A tabela 2 apresenta tendências semelhantes às obtidas na tabela 1 quanto à


diferença de escolha entre jogadoras e jogadores. Quanto à escolha de personagens, as
jogadoras de League of Legends cujos dados foram coletados apresentaram apenas 102
dos 156 personagens entre os cinco mais jogados, deixando de escolher 54 campeões,
enquanto os jogadores deixaram de escolher apenas 12 campeões, o que indica que
houve mais variedade de escolha entre os jogadores homens. Além disso, as jogadoras
mulheres demonstraram preferência clara por jogar com personagens também
mulheres: cerca de 82,13% de suas 750 escolhas corresponderam a personagens do
sexo feminino (616), e apenas 17,87% a personagens do sexo masculino. Os jogadores
homens, em contrapartida, não demonstraram a mesma polarização nas escolhas: cerca
de 46,67% das escolhas dos jogadores corresponderam a campeãs (335), e 53,33% a
campeões, demonstrando um equilíbrio maior entre as preferências.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Uma diferença tão grande nas preferências entre jogadoras e jogadores descarta
também a possibilidade que as escolhas sejam feitas a partir de quais personagens
encontram-se mais fortes naquele momento do jogo, uma vez que a empresa
constantemente modifica os campeões tendo em vista a manutenção do
balanceamento entre as classes e funções dos personagens.
A mencionada variedade de escolhas – ou ausência dela – é vista também
quando analisamos a quantidade de vezes, entre os 1500 dados, que cada campeão
aparece como mais jogado. Entre os jogadores, como pode ser observado na tabela 3,
poucos foram os personagens que foram observados acima de 20 vezes. Além disso,
metade dos personagens mais jogados exercem as funções assassino e lutador. Há
apenas dois personagens que exercem funções de suporte entre os dez mais jogados
por jogadores, situação que se mostrará muito diferente ao analisarmos as escolhas das
jogadoras. Além disso, há tanto campeões do sexo masculino quanto feminino entre
as dez escolhas favoritas dos jogadores.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Por outro lado, as jogadoras tendem, segundo os dados sistematizados, a


concentrar mais suas escolhas: entre os dez personagens mais utilizados, a maioria
esteve presente em mais de 30 perfis diferentes. Lulu (79), Lux (46), Morgana (38)
Nami (37) e Seraphine (35) foram as cinco campeãs que ocuparam a posição de mais
jogadas entre a maior parte do público feminino, e todas exercem as funções suporte
e mago. De fato, entre os personagens mais jogados pelo público feminino, apenas
dois não exercem as funções de suporte ou mago – Jinx e Miss Fortune, que possuem
apenas a função atirador. A tabela 4 mostra que, diferentemente dos jogadores, as
jogadoras escolhem majoritariamente personagens apenas do sexo feminino
Quando consideramos os cinco personagens mais escolhidos por jogadores e
jogadoras, as diferenças no padrão de escolha entre estes dois públicos se mostram,
como demonstrado, muito consistentes. Os dez personagens mais utilizados pelos
jogadores somam apenas 167 das 750 escolhas, o que demonstra, mais uma vez, como suas
escolhas estão, em certa medida, mais bem distribuídas entre os 156 personagens. As dez
escolhas mais frequentes das jogadoras, no entanto, se concentram exclusivamente em
personagens femininas; de fato, o primeiro personagem masculino aparece apenas na
18° posição e corresponde a um atirador-mago, Ezreal (10 vezes). Das 750 escolhas
analisadas, incríveis 386 correspondem às campeãs presentes na tabela 4, ou seja:
metade das preferências relacionadas a 156 personagens estão concentradas em apenas
10 deles, algo impossível de se ignorar.
A dualidade de classes da maioria dos campeões dificulta a realização de uma
estimativa acerca das porcentagens de escolha de cada função tanto por jogadoras
quanto por jogadores. No entanto, o fato de cerca de 50% das escolhas do público
feminino estar relacionado a campeãs que exercem funções de suporte ou mago dão
sinais de que esta é, provavelmente, a escolha mais comum entre as jogadoras, em
contraste com os jogadores, que aparentam variar um pouco mais, havendo destaque
para lutadores e assassinos.

Considerações finais

Partindo da análise das 1500 escolhas coletadas e considerando-se a exposição


das diferenças facilmente perceptíveis entre os visuais de personagens do sexo
masculino e feminino disponíveis no jogo League of Legends., é possível que se chegue a
algumas conclusões, mesmo que estas sejam ainda, no momento da escrita deste artigo,
parciais.
Entre as dez personagens mais jogadas pelo público feminino, apenas duas
correspondem a atiradoras, sendo todas as outras inclusas nas classes de suporte e
mago. As campeãs com funções suporte-mago presentes na tabela possuem magias
que fornecem cura ou escudo a seus aliados, e acabam exercendo funções de
“cuidadoras” de seus companheiros de equipe. As campeãs destas classes, como
mencionado, frequentemente são representadas de maneira frágil e delicada pela marca

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

e o fato de o público feminino concentrar quase 50% de suas escolhas nestas


personagens pode sinalizar que esta parcela de usuários de fato responde de maneira
positiva à construção generificada e estereotipada do universo e arquitetura do jogo.
O público masculino, por sua vez, não concentra suas escolhas em personagens
que necessariamente sejam do sexo masculino e estejam inclusos em padrões
estereotipados de masculinidade. A análise de todos os 1500 dados coletados permite
observar que, de fato, os jogadores escolhem mais personagens do sexo masculino e
que exerçam funções de força ou resistência com mais frequência que as jogadoras,
mas há uma maior variedade entre as escolhas.
Há interesse em dar continuidade à pesquisa e buscar entender os porquês
existentes por trás das escolhas de jogadoras e jogadores, e como ambos veem e lidam
com a arquitetura do jogo e construção dos personagens da marca. Para tanto,
considera-se a possibilidade de entrevistar os usuários que tiveram suas escolhas
analisadas, tantos quanto forem possíveis.
É essencial que as ciências humanas e sociais, cada vez mais, voltem os olhos
para as relações que ocorrem no mundo virtual, uma vez que estas influenciam e são
influenciadas pelas relações que ocorrem no mundo material. As constatações aqui
apresentadas reforçam a necessidade de que sejam analisados com atenção, dentro do
mundo virtual, os grupos e comunidades de gamers, bem como se esmiúçam as relações
destes com os jogos eletrônicos, além da própria construção e arquitetura destes.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1970.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 3 ed.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

KURTZ, Gabriela Birnfeld. “Respeita aí”: Os discursos e a subversão das regras


como manifestações de violência simbólica de gênero nos jogos digitais Dota 2 e
League of Legends. 2019. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Informação, Porto Alegre, BR-RS, 2019.

MUNGIOLI, Artur Palma. A personagem feminina nos games do século XXI:


Uma análise dos 20 jogos mais vendidos de 2011. 2011. Disponível:
https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/04/Artur-Palma-
Mungioli.pdf. Acesso em 08 de jul. de 2020.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

MYERS, Maddy. The Cost Of Being A Woman Who Covers Video Games.
Kotaku, 2020. Disponível em: https://kotaku.com/the-cost-of-being-a-woman-who-
covers-video-games-1840793836. Acesso em: 01 de jan. de 2020.

NASCIMENTO, Jéssica. Estereótipos femininos nos jogos eletrônicos online:


um estudo sobre representações de gênero em League of Legends. 2016. 88 folhas.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social, habilitação em
jornalismo) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2016.

RODRIGUES, Amanda Maria Lima. “Mina é tudo elojob”? – Territorialidades e


diferenciação de gênero em League of Legends. 2016. 119 folhas. Dissertação
(Mestrado em Cultura e Territorialidades) – Instituto de Arte e Comunicação Social,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.

SILVEIRA, Graciele Urrutia Dias. O discurso de violência simbólica em interações no


Facebook sobre a participação feminina no cenário dos jogos eletrônicos de combate.
Revista Linguagem e Ensino, ano 14, n. 2, vol. 23, abr-jun, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/17363. Acesso em
09 de jul. de 2020.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: UMA ANÁLISE


PSICOSSOCIAL

Luís Paulo Nallin de Oliveira1


Sonia Regina Vargas Mansano2

Resumo: Pensar a relação entre ciência, tecnologia e inovação na interface com a vida
cotidiana da população ganha cada vez mais destaque no cenário brasileiro em especial
no que se refere às políticas públicas educacionais e de pesquisa. Adotando a
perspectiva teórica da Psicologia Social, este estudo tem por objetivo identificar as
ações governamentais voltadas à promoção e disseminação de práticas associadas à
produção de ciência, tecnologia e inovação, atentando para seus efeitos. Primeiro,
serão apresentadas leis e diretrizes que indicam concessões de créditos, fomentos e
reduções de alíquotas fiscais para criar um ambiente favorável à inovação no país. Na
sequência, ressaltam-se os efeitos dessas políticas no aumento do número de vagas
para cursos de graduação em instituições de ensino superior e institutos tecnológicos.
Em seguida, abordam-se os efeitos psicossociais dessa disseminação junto à
população, em especial no campo laboral. Ao final, sublinhamos a importância de
acompanhar as políticas educacionais de nosso país a fim de analisar criticamente seus
efeitos no cotidiano dos docentes, cientistas, estudantes e população em geral.

Palavras-chave: Ciência; Tecnologia; Inovação; Psicologia Social.

Introdução

A pesquisa científica brasileira decorre, em grande parte, de diferentes ações


realizadas ao longo do século XX, que envolveram a estruturação de institutos de
pesquisa, a construção de estradas, portos e pontes, bem como um esquadrinhamento
da população em termos de saúde e saneamento para o controle de doenças epidêmicas
(VARGAS, 2001). Tais ações foram marcadas pela articulação “de conhecimentos
científicos para solução de problemas técnicos” (VARGAS, 2001, p. 58) e práticos,
tendo como alvo o cotidiano da população e sua governamentalidade.
Consoante a essas ações, o dia a dia da população contemporânea tem sido
atravessado por novos equipamentos tecnológicos e serviços que são utilizados para o
desempenho das mais variadas atividades, como a mobilidade, a comunicação

1 Mestre em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração da


Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Paraná, Brasil. E-mail:
luispaulonallin@gmail.com
2 Docente no Programa de Pós-Graduação em Administração, do Programa de Pós-

Graduação em Psicologia e do Departamento de Psicologia Social e Institucional da


Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: mansano@uel.br

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

instantânea, a educação e o trabalho à distância. Cada um deles envolve a produção


direta de conhecimentos voltados à tecnologia e à inovação. Esta última, mais
recentemente, tem ganhado ênfase nas Instituições de Ensino Superior (IES) sendo
foco das concessões orçamentárias para o desenvolvimento de pesquisas científicas
nas mais diversas áreas, que passam a incorporá-la (BRASIL, 2020a; 2020b). Para que
essas transformações pudessem ocorrer, ao longo das últimas décadas foram
consolidadas as condições mínimas necessárias para a disseminação de novas
tecnologias e suas inovações, tanto no cotidiano populacional quanto na pesquisa
científica do país, efetivadas por meio de uma série de intervenções estatais.
Nesse sentido, Foucault (2019) salienta a emergência de uma forma de poder
marcante nas sociedades ocidentais e que se ocupa, entre outras coisas, da
administração de recursos, riquezas e meios de subsistência. Assim, essa prática
governamental busca gerir “os costumes, os hábitos, as formas de agir ou de pensar”
(FOUCAULT, 2019, p. 415), produzindo os mais diversos efeitos na vida da
população. No que concerne à disseminação de inovações tecnológicas voltadas para
o mercado laboral, alguns efeitos aludem à ampliação da lucratividade industrial
(GORZ, 2005), diminuição de postos de trabalho (FORRESTER, 1997) e pulverização
de novas formas de trabalho que enaltecem o mérito individual à revelia de impasses
sociais mais amplos (LAZZARATO; NEGRI, 2013). Nesse sentido, pesquisas
recentes denunciam a precariedade dos novos modelos de trabalho (AMORIM;
MODA, 2020) e ascensão do desemprego (BACCARIN, 2019), ambos decorrentes,
em certa medida, da fragilidade de um olhar crítico sobre tais progressos.
Atento a isso, o objetivo desta pesquisa consistiu em identificar as ações
governamentais voltadas à promoção e disseminação de valores e práticas que
associam e valorizam a produção de ciência, tecnologia e inovação, atentando para seus
efeitos psicossociais na vida da população. Para isso, esta investigação de cunho teórico
e histórico se utiliza da noção de governamentalidade de Foucault (2019) e envolveu
um levantamento de informações em veículos oficiais do Estado que versassem sobre
as noções de tecnologia e de inovação. Ao todo, foram selecionados e analisados nove
documentos (BRASIL, 2001a; 2001b; 2002; 2005; 2006; 2015; 2016; 2018; MCTIC,
2014) que abordavam as políticas brasileiras voltadas à ciência, tecnologia e inovação.
Em seguida, buscou-se levantar os documentos que versavam sobre a ampliação do
acesso ao ensino brasileiro, com especial atenção para a formação profissional técnica
e superior de áreas tecnológicas, sendo analisados cinco textos (BRASIL, 2001c, 2008;
CAPES, 2004; 2010; MEC, 2005). Com base nesse material, a pesquisa foi organizada
em três partes subsequentes. Na primeira, colocam-se em relevo as estratégias
utilizadas na estruturação da pesquisa científica e tecnológica com ênfase na inovação
e nos valores e interesses disseminados e associados. Na sequência, foram descritas as
instituições que acolhem e disseminam tais ideias, fazendo operar a formação de
profissionais dedicados à produção e ao consumo de inovações. Por fim, salientam-se
os efeitos psicossociais dessa ampla difusão, especialmente vinculados à restrição de
acesso ao emprego e renda geradores de exclusão social.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Ao final deste estudo, será possível ressaltar a importância de acompanhar as


ações ligadas à política educacional profissionalizante e superior de nosso país no
intuito de analisar criticamente seus efeitos psicossociais no cotidiano dos docentes,
cientistas, estudantes e população em geral.

Da ciência e tecnologia à inovação: uma trajetória recente

Na história política brasileira a relação entre ciência e tecnologia com vistas à


inovação remonta ao ano de 2001. A promulgação da Lei da Informática, de n˚ 10.176,
e o fortalecimento do Fundo Verde-Amarelo, pela Lei n˚ 10.332, articulavam os
primeiros passos de incentivo à Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) visando fortalecer
a competitividade de empresas pela promoção de parcerias com as universidades,
especialmente as públicas (BRASIL, 2001a; 2001b). Consoante a isso, a Conferência
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação realizada no mesmo ano, teve por objetivo
“construir um país mais dinâmico e socialmente mais justo” (BRASIL, 2002, p. 21).
Para isso, assinalava ser “imperativo reconhecer a Inovação como elemento essencial
para consolidar a funcionalidade do trinômio Ciência, Tecnologia e Inovação”
(BRASIL, 2002, p. 26). Nessa esteira, o trinômio é entendido pelo Livro Branco da
Ciência, Tecnologia e Inovação como um processo social que, além de conhecimento,
“envolve a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento nas empresas [...]; a
importação e absorção de tecnologias; a formação de pessoas qualificadas e sua fixação
nas empresas; e, a disponibilidade de infra-estrutura científica e tecnológica” (BRASIL,
2002, p. 27). Nota-se que, por meio da inovação, impasses ligados às empresas vão
ganhando destaque nos objetivos da governança estatal, tornando-se prioridade nas
pesquisas científico-tecnológicas.
Para compreender os efeitos dessa disseminação na vida da população, este
estudo recorre à noção de governo de Foucault (2019) que a define “como a maneira
correta de dispor as coisas para conduzi-las [...] a um objetivo adequado a cada uma
das coisas a governar. O que implica [...] uma pluralidade de fins específicos”
(FOUCAULT, 2019, p. 417). No caso em análise, as “coisas” e os “fins” incluem:

Criar um ambiente favorável à inovação no País; ampliar a capacidade de inovação e


expandir a base científica e tecnológica nacional; consolidar, aperfeiçoar e modernizar
o aparato institucional de Ciência, Tecnologia e Inovação; integrar todas as regiões ao
esforço nacional de capacitação para Ciência, Tecnologia e Inovação; desenvolver uma
base ampla de apoio e envolvimento da sociedade na Política Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação; transformar a CT&I em elemento estratégico da política de
desenvolvimento nacional (BRASIL, 2002, p. 36).

Assim, os anos que se seguiram foram marcados por diferentes ações


legislativas, como o caso da elaboração da chamada Lei da Inovação, n ̊ 10.973 de 2004
que, para fomentar a parceria entre universidades e empresas, possibilitou que elas

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

acessassem recursos diretamente do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico


e Tecnológico (FNDTC) (CGEE, 2010). A chamada Lei do Bem, n ̊ 11.196 de 2005,
foi outra iniciativa que propiciou a redução de alíquotas e incentivos fiscais
relacionados à importação e exportação de inovações, bem como à redução de taxas
para manutenção de patentes a fim de resultar, em empresas brasileiras, “maior
competitividade no mercado” (BRASIL, 2005, p. 8). O ano de 2006 foi marcado pela
primeira chamada pública para o Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas na
Modalidade de Subvenção Econômica a Micro e Pequenas Empresas (PAPPE
Subvenção), que disponibilizou para empresas privadas recursos estatais não
reembolsáveis (CGEE, 2010). Naquele ano também foram regulamentadas diretrizes
sobre os tipos de pesquisas cujos objetivos tratavam do aprimoramento do setor
produtivo (BRASIL, 2006), ação que reverberou com a ampliação do Programa de
Capacitação de Recursos Humanos para o Desenvolvimento Tecnológico (RHAE)
para alocação de pesquisadores em empresas (CGEE, 2010). Essas estratégias são
destacas como diferentes ações que o Estado adotou no intuito de atender o fomento
à inovação nas empresas, não recorrendo apenas às leis, mas adotando o uso de outras
ferramentas de intervenção direta sobre as instituições privadas e públicas de ensino e
pesquisa.
Sobre a finalidade de um governo, Foucault (2019) menciona que ela “está nas
coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na intensificação dos processos
que ele dirige e nos instrumentos do governo, em vez de serem constituídos por leis,
são táticas diversas” (p. 418). Um exemplo da intensificação voltada especificamente à
inovação ocorreu por meio da sua alocação ao lado da ciência e da tecnologia,
publicada na Emenda Constitucional 85 e promulgada em 2015, que operacionalizava
o favorecimento das áreas ligadas à inovação, fornecendo “aos que delas se ocupem
meios e condições especiais de trabalho” (BRASIL, 2015, p. 4). A articulação entre a
Emenda Constitucional 85, a Lei n˚ 13.243 de 2016 (BRASIL, 2016) e o Decreto n˚
9.283 de 2018 (BRASIL, 2018) constituiu o marco legal do Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC) e engendrou complementos e
alterações em oito leis, incluindo a Lei da Inovação supracitada. Assim o referido
marco fortificou e disponibilizou diferentes ações como a “subvenção econômica, [...]
financiamento, [...] participação societária, [...] bônus tecnológico, [...] incentivo fiscais,
[...] concessão de bolsas, [...] uso de poder de compra do Estado, [...] e fundos de
investimentos” (BRASIL, 2016, p. 1). Tais estratégias eram destinadas a “apoiar
atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, para atender às prioridades das
políticas industrial e tecnológica nacional” (BRASIL, 2016, p. 1), cujos resultados
esperados eram de promover o progresso econômico e social para “tornar o País mais
inovador e competitivo” (MCTIC, 2019, p. 8).
As diferentes estratégias executadas pelo governo brasileiro ao longo das
últimas duas décadas ressaltam que os investimentos associados à ciência e à tecnologia
passaram a incorporar uma forte preocupação com a inovação. Com efeito, as
demandas de competitividade e lucratividade, ligadas aos interesses privados e de

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

mercado, foram inseridas na agenda política tanto em relação à pesquisa científico-


tecnológica brasileira quanto aos profissionais de que dela se ocupam. Nessa esteira
serão evidenciados efeitos psicossociais em instituições públicas e privadas, uma vez
que elas estão amplamente envolvidas com a formação de profissionais que atendam
as expectativas do mercado.

Instituições ensino e pesquisa: impasses

No processo de elaboração de uma política de pesquisa científica brasileira,


diversas instituições foram estruturadas, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) (VARGAS, 2001). Ambas assumiram posição de
destaque no país uma vez que seus agentes sociais participam da elaboração de normas
e diretrizes reguladoras do ensino superior e de pós-graduações, bem como da
execução dessas políticas (CAPES, 2004).
Inicialmente, cabe destacar que o Plano Nacional de Educação, de 2001,
endossava a participação de estudantes de graduação para práticas de extensão
(BRASIL, 2001c). Ainda que tais atividades tenham sua importância, com o passar do
tempo, é possível notar que esse foco foi mais direcionado às iniciativas de pesquisa,
tecnologia e inovação. É o que vemos presente no Plano Nacional de Pós-Graduação,
de 2005 a 2010, que reforça essa ideia e assinala que “o desenvolvimento científico e
tecnológico tornou-se [...] um fator determinante na geração de emprego e renda e na
promoção de bem-estar social. Não por acaso, muitas nações se referem à Ciência e
Tecnologia como uma questão de poder, capaz de dividir o mundo” (CAPES, 2004,
p. 49). Assim, articulados com as ações do Estado relatadas na seção anterior, os anos
subsequentes foram marcados pelo foco na expansão da rede de ensino federal de nível
técnico e superior voltados à área tecnológica.
Nessa esteira, o Programa de Expansão da Rede Federal Fase I, de 2005, foi
responsável pela criação de Escolas Técnicas e Agrotécnicas Federais e pela ampliação
das Unidades de Ensino Descentralizadas (MEC, 2005). Consoante a essa iniciativa, o
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (REUNI) juntamente com o Programa de Expansão (2003-2008) foram
responsáveis pela ampliação da capacidade de formação de recursos humanos
contando com a criação, até 2008, de 104 novos campi (BRASIL, 2009). Naquele ano,
houve também a criação dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) e
a institucionalização da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica. Esta última englobou a criação dos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia (IF), a ampliação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR) e dos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) do Rio de
Janeiro e Minas Gerais (BRASIL, 2008). Acompanhando as ideias de Foucault (2019)
a respeito da noção de governamentalidade, identifica-se a disposição desses elementos

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

legais como a “maneira correta de dispor as coisas para conduzi-las [...] a um objetivo
adequado” (p. 417). Nessa perspectiva em análise, busca-se “assegurar a
disponibilidade de meios materiais e humanos compatíveis com as necessidades e a
dinâmica dos processos de inovação” (BRASIL, 2002, p. 50).
Como mencionado, a perspectiva de governo da população, tal qual analisada
por Foucault (2019), busca administrar não apenas os recursos tangíveis, como a
estruturação geral da área científico-tecnológica, mas também inserir nesse cálculo “os
costumes, os hábitos, as formas de agir ou de pensar” (FOUCAULT, 2019, p. 415).
Tendo isso em vista, nota-se uma consistente imbricação entre o progresso de ciência,
tecnologia e inovação com o desenvolvimento econômico, industrial e social de nosso
país. O PNPG de 2011 a 2020 expressa tal posicionamento:

[...] o conhecimento científico-tecnológico, bem como a inovação por ele engendrada,


são patrimônios sociais que permitem gerar desenvolvimento sustentável, ampliando
a produtividade e a competitividade do país, contribuindo para a melhoria da
qualidade de vida, através da aceleração da criação e qualificação de empregos e
democratizando oportunidades (CAPES, 2010, p. 180).

As ações descritas nesta seção demonstram uma orientação desenvolvimentista


que centraliza os progressos de tecnologia e inovação como essenciais para a soberania
do Brasil em relação aos demais países. Elas também mencionam uma atenção para o
bem-estar da população pelo atendimento das prioridades industriais e de mercado.
Tal perspectiva ganha consistência na proliferação de instituições de ensino e pesquisa
que vão, aos poucos, aderindo e disseminando tais valores e ideias.

Efeitos psicossociais da tecnologia e da inovação no cotidiano

Analisando as transformações que envolveram a emergência do capitalismo


nos séculos XVIII e XIX, Foucault (2019, p. 144) assinala que “o controle da sociedade
sobre os indivíduos não opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas
começa no corpo, com o corpo”. Para o autor, tal controle pode operar por meio de
diferentes instituições e suas práticas, incluindo aí a universidade, que participa do
cotidiano da população, gerando práticas e conhecimentos específicos. Assim, ao
adotar uma perspectiva psicossocial de análise, estamos referidos ao estudo de Sawaia
(2014) para quem as práticas e os conhecimentos estão situados social, histórica e
geograficamente, podendo ser transformados em meio a esforços coletivos.
Com base no PNPG de 2010 a 2020 (CAPES, 2010), no Relatório Anual da
Utilização de Incentivos Fiscais de 2014 (MCTIC, 2014) e em estudo do Centro de
Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE, 2018), entre os anos de 2011 e 2017, os setores
econômicos com o maior número de empresas contempladas foram a indústria de
transformação bem como o setor de informação e comunicação que ocuparam 61% e

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

14,9% de participação. Atrelado a isso, o nível de qualificação absorvidos para


atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em tais empresas foi o de graduação.
Tal formação vai ao encontro da maior concentração (62%) de pesquisas do tipo
Desenvolvimento Experimental (DE) que, por um lado, se baseiam em técnicas
heurísticas e, por outro lado, buscam demonstrar a viabilidade de produtos e processos
(BRASIL, 2006). É possível entrever, assim, que profissionais graduados compõem a
mão de obra mais acessível para as atividades de P&D, cujo foco volta-se para a
otimização da competitividade e produtividade.
Nesse sentido, a partir de uma perspectiva crítica, Gorz (2005) assinala que o
conhecimento científico-tecnológico “faz parte do capital fixo como extorsão do
sobretrabalho” (p. 34), gerando efeitos na substituição do trabalho humano por
máquinas. Exemplo disso é descrito por Baccarin (2019) que analisou os efeitos sociais
da mecanização no cultivo de cana-de-açúcar no estado de São Paulo, constatando que,
entre 2007 e 2017, o número de trabalhadores decresceu de 209.700 para 104.755. O
autor ainda destaca que “foram registradas ações de capacitação especificamente
ligadas aos interesses empresariais imediatos, não se revelando maior preocupação
pública com a grande maioria dos trabalhadores não qualificados que perderam o
emprego” (BACCARIN, 2019, p. 164). Acerca dos efeitos gerados pelo desemprego,
Forrester (1997) põe em relevo aspectos psicossociais e salienta: “Não é o desemprego
em si que é nefasto, mas o sofrimento que ele gera e que para muitos provém da
inadequação àquilo que o define, àquilo que o termo ‘desempregado’ projeta, mesmo
que fora de uso, mas ainda determinando seu estatuto” (p. 10).
Quando a valorização e a intensificação da tecnologia e inovação estão
atreladas majoritariamente à maximização da produtividade e da lucratividade das
empresas, elas tendem gerar desemprego e sofrimentos psíquicos diversos. Tal
tendência evidencia o desafio a ser enfrentado pela população, mas também por
estudantes, docentes e pesquisadores sobre a relevância de problematizar a práticas
dessa área, valendo-se de saberes de outras áreas, como as Humanas e Sociais.
Consideramos neste estudo que a tecnologia e a inovação podem ir além dos valores
individualistas e mercadológicos amplamente difundidos, colocando em cena também
as iniciativas voltadas para a potencialização coletiva. Assim, acompanhamos as ideias
de Sabariego (2018, p. 345), para que as ciências possam desafiar “a ordem
comunicativa dominante na perspectiva da apropriação e construção coletivas,
questionando as práticas e o pensamento hegemônico”. Isso abriria espaço para
efetivar políticas públicas comprometidas com o bem-estar da coletividade bem como
com a garantia de acesso ao emprego e à renda.

Considerações finais

Ao final desta investigação cabe salientar alguns pontos de conclusão que, por
sua vez, abrem para outros questionamentos. Em primeiro lugar, as intervenções

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

governamentais brasileiras voltadas para o desenvolvimento da ciência e tecnologia,


com vistas à inovação, tomam a indústria e o mercado como um dos pilares para
sustentar o progresso social. Essa opção nem sempre busca assegurar à população um
contexto de bem-estar e pleno emprego. Nessa perspectiva, o Estado dispõe de todo
um aparato institucional e financeiro voltado à formação de profissionais que serão
responsáveis pela produção de tecnologia e inovação. Com isso, nota-se que os
benefícios financeiros concedidos tendem a suprir a produtividade e,
consequentemente, a lucratividade.
Em segundo lugar, a ausência de uma análise crítica sobre a efetivação de tais
estratégias, que leve em conta efeitos nocivos do desemprego, em parte gerado nas
demandas industriais, culmina na adesão aos processos de exclusão social do trabalho
e de sofrimento laboral, sendo que ambos estão diretamente relacionados à restrição
de acesso ao emprego e à renda.
Por fim, levando em conta a complexidade presente nos processos de exclusão
social quando associados ao desenvolvimento de tecnologia e inovação cabe
questionar: Como as formações profissionais nas áreas mais aderentes à tecnologia e à
inovação se posicionam em relação aos efeitos de exclusão social? Quais valores e
requisitos são postos em circulação nesta formação, a fim de atender aos interesses
industriais e de mercado? Acreditamos que essas e outras perguntas precisam ser
assinaladas em um esforço multidisciplinar no intuito de compreender e transformar
as forças mobilizadas para garantir o progresso da tecnologia e da inovação na
atualidade.

Referências

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BRASIL. Lei n˚ 10.176 de janeiro de 2001. Altera a Lei n˚8.248, de 23 de outubro de


1991, a Lei n˚8.387, de 30 de dezembro de 1991, e o Decreto-Lei no 288, de 28 de
fevereiro de 1967, dispondo sobre a capacitação e competitividade do setor de
tecnologia da informação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 2001a, p. 1.

BRASIL. Lei n˚ 10.332 de dezembro de 2001. Institui mecanismo de financiamento


para o Programa de Ciência e Tecnologia para o Agronegócio, para o Programa de
Fomento à Pesquisa em Saúde, para o Programa Biotecnologia e Recursos Genéticos

- 237 -
Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

– Genoma, para o Programa de Ciência e Tecnologia para o Setor Aeronáutico e


para o Programa de Inovação para Competitividade, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 19 dez. 2001b, p. 1.

BRASIL. Lei n˚ 10.172 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e


dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 09 jan. 2001c, p. 1.

BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. Livro Branco da Ciência,


Tecnologia e Inovação. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2002.

BRASIL. Lei n˚ 11.196 de novembro de 2005. Institui o Regime Especial de


Tributação para a Plataforma de Exportação de Serviços de Tecnologia da
Informação - REPES, o Regime Especial de Aquisição de Bens de Capital para
Empresas Exportadoras - RECAP e o Programa de Inclusão Digital; dispõe sobre
incentivos fiscais para a inovação tecnológica; […] e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 2005, p. 1.

BRASIL. Decreto n˚ 5.798, de 7 de junho de 2006. Regulamenta os incentivos fiscais


às atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, de
que tratam os arts. 17 a 26 da Lei n˚ 11.196, de 21 de novembro de 2005. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 08 jun. 2006, p. 2.

BRASIL. Lei n˚ 11.892 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação


Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30
dez. 2008, p. 1.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional n˚85, de 26 de fevereiro de


2015. Altera e adiciona dispositivos na Constituição Federal para atualizar o
tratamento das atividades de ciência, tecnologia e inovação. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 26 fev. 2015, p. 4.

BRASIL. Lei n˚ 13.243 de janeiro de 2016. Dispõe sobre incentivos à inovação e à


pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 2016, p. 1.

BRASIL. Decreto n˚ 9.283, de 7 de fevereiro de 2018. Regulamenta a Lei nº 10.973,


de 2 de dezembro de 2004, a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, o art. 24, § 3º, e
o art. 32, § 7º, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, o art. 1º da Lei nº 8.010, de
29 de março de 1990, e o art. 2º, caput, inciso I, alínea "g", da Lei nº 8.032, de 12 de
abril de 1990, e altera o Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, para estabelecer
medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica


e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. Diário Oficial da
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âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC),
no que se refere a projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e
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BRASIL. Portaria nº 1.329, de 27 de março de 2020. Altera a A Portaria nº 1.122, de


19 de março de 2020, que define as prioridades, no âmbito do Ministério da Ciência,
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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

LAZER E CONTRADIÇÃO: O JORNALISMO BOÊMIO DE


LONDRINA NA DÉCADA DE 1950

Nícolas de Souza Pires1

Resumo: A cidade de Londrina promoveu na década de 1950 um verdadeiro surto de


crescimento populacional e econômico. Nas ruas da cidade os moradores assistiam
mudanças espaciais, como também os próprios hábitos londrinenses se modificavam
com a chegada da modernidade ao sertão paranaense. Desse modo, o jornalismo se
enquadra em uma perspectiva de informar os leitores sobre a cidade que se transforma
rapidamente, sendo que grande parte das informações são encontradas na chamada
“zona do meretrício” local de lazer e também destinado aos excluídos de Londrina.
Interessante perceber que a região tão discutida nos jornais da época, servia de base
para as notícias da imprensa londrinense. Ali onde marginais e prostitutas se
misturavam era também o local de recolher o conteúdo jornalístico, além do mais
profissionais da imprensa julgavam e escreviam sobre o espaço decaído, no entanto se
divertiam nele.

Palavras-chave: Boêmia; Contradição; Jornalismo; Londrina; Progresso.

Introdução

O contexto do jornalismo na década de 1950 em Londrina pode também ser


considerado a partir das transformações urbanas e sociais que ocorreram nesse
período, do mesmo modo em que as alterações proporcionaram um momento em que
há um grande avanço na estrutura econômica da cidade.
Também vale destacar a formação da imprensa londrinense, e como esse
segmento profissional se desenvolveu nos primeiros anos da cidade. Além dos
jornalistas profissionais, alguns profissionais liberais participaram desse meio
contribuindo para a vida intelectual. Por outro lado, houve dentro da imprensa uma
separação ideológica entre aqueles que estavam ao lado dos ilustres e outros que
lutavam contra os poderosos.
No contexto dos anos 50, a zona do meretrício era um local discriminado pela
elite de Londrina. Julgavam esse local como um antro de imoralidade e insegurança
para os cidadãos londrinenses, de modo que nas páginas dos jornais em grande parte
surgia matérias pejorativas e acusatórias sobre o espaço na cidade. Porém, era um local
de lazer e diversão para os londrinenses. Na medida em que criminalizavam a região
da prostituição, muitos indivíduos participavam das noites de farra, inclusive os

1Graduando em Licenciatura do curso de História pela Universidade Estadual de Londrina


(UEL) e-mail: nicolas.souza.pires@uel.br

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

jornalistas. A posição dos profissionais proporcionava um trânsito entre os espaços,


seja ele de lazer ou profissional e até mesmo de classe. No entanto, a postura adotada
pode representar as preferências políticas ou lutas individuais dos jornalistas, ao
enfrentar ou não a cidade do “Progresso”.
O presente artigo tem como objetivo delinear alguns apontamentos sobre o
ambiente dos jornalistas expandindo a noção de contexto a partir do espaço marginal
em que também estavam habituados, e por outro lado compreender os elementos de
ambiguidade que viviam naquele momento, como algo característico de uma sociedade
moderna (BERMAN, 1986).

Londrina cidade que cresce

Durante as primeiras décadas da colonização do norte paranaense, Londrina


sofreu grandes e decisivas transformações na sua estrutura social e econômica. Os anos
que seguem após o fim da hegemonia da Companhia de Terras Norte do Paraná no
fim da década de 1940 abre espaço para um novo panorama social. A ascensão da
burguesia cafeeira ocupa nesse sentido um fator fundamental para as análises sobre a
cidade (ARIAS NETO, 2008), principalmente na década de 1950. Considerada na
historiografia londrinense o momento do “Eldorado2” as alterações espaciais que
atuam no plano econômico exercem uma grande influência na sociabilidade e formas
de contato entre os indivíduos, moldando também uma nova concepção de valores
pautada sobretudo na ordem, disciplina e trabalho. Assim, entendemos como a cidade
era concebida naquele período considerado como o auge cafeeiro.
Nas representações da imprensa, do início dos anos 1950, o emprego de
qualificativos para designar a cidade era muito exagerado: Cidade Milagre, Mina de
Ouro do Brasil, Cidade Progresso, Grande Empório, Capital do Norte e Capital
Mundial do Café são os adjetivos mais comuns que acompanhavam ou antecediam o
nome de Londrina. (ARIAS NETO, 2008, p.102).
Podemos imaginar o sucesso que a década teve em relação ao surto de
modernidade levado ao sertão paranaense. A cidade do norte do Paraná promoveu
uma série de reformas urbanas que visava embelezar o município, que valorizava os
espaços livres como os parques e praças (ROLIM, 1999). Isso apontava o ímpeto de
construção moderna ou sinal de civilidade que pretendia executar. Como demonstra
Benatti (1997, p 28) “O progresso econômico imprimia ao corpo da cidade novos
traços e características, remodelando-a totalmente”. Nesse ponto o café contribuiu
para essas alterações, pois também alavancou uma série de crescimento comercial: dos
bares; hotéis; pensões e restaurantes que surgiam na cidade em crescimento.

2O trabalho basilar nesse sentido é atribuído ao “O Eldorado: Representações da política em


Londrina (1930-1975) do autor José Miguel Arias Neto.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Ao relacionar esse contexto de uma sociedade burguesa, alguns espaços foram


criados exatamente para contemplar essa classe distinta. Um dos símbolos criados na
época foi o Cine Teatro Ouro Verde no ano de 1952 3, na época atendia a um desejo
cultural da classe dominante para se destacar socialmente dos demais cidadãos. As
modernas construções traziam conforto e o que mais havia de inovador para a cidade
que se ergue.
Também nesse cenário devemos destacar o moralismo empregado nessa
década. Alguns planos foram criados para controle e manutenção da ordem, dentre
eles quero evidenciar a criação da polícia de costumes, segundo Rolim (1999, p. 93)
“[…] tinha a incumbência de investigar e prevenir a prostituição, evitando que
afetassem a moralidade pública, comportamentos que pudessem afetar a honra e a
dignidade de famílias[…]”. Essas atitudes em relação à vida noturna ou do próprio
lazer, demonstra como a sociedade encarava essas práticas populares, por outro lado
as contradições aparecem em uma análise mais profunda sobre o tema.
Na rota para uma vida melhor a cidade se torna o destino de centenas de
famílias que desde o fim da década de 1940 iniciam um processo de imigração. A cidade
que planejada desde os anos iniciais estava modelada para uma certa quantidade de
habitantes, na medida em que a propaganda disseminava a ideia do Eldorado e da terra
abundante, veiculada nos jornais, promove uma onda de imigrantes de todos os cantos
do Brasil e do mundo rumo ao norte paranaense. Essa densidade populacional
construiu uma massa de desagregados, como afirma Benatti (1997, p. 70) “Os pobres
e marginais começaram a penetrar e ocupar cada vez mais os espaços refinados da urbs
[…]”. Dessa forma podemos identificar os motivos que levaram a noção da disciplina
e ordem no espaço londrinense.
Essa contextualização se mostra extremamente importante para revelar o pano
de fundo em que se insere os jornalistas e a qualquer tema que envolva uma análise das
relações de força existentes na cidade. É evidente, que o tema deste artigo está em um
contexto complexo e principalmente que está imerso em uma temporalidade que a
própria história se vê cheia de caminhos possíveis, simplesmente pelo fato de haver
em tão pouco tempo mudanças sociais e culturais tão rápidas na sociedade londrinense
do “Eldorado”.

A imprensa londrinense

Nesse contexto de uma sociedade burguesa, e consequentemente moralista, o


jornalismo da cidade se insere também em transformações internas. Como já
mencionado, na esfera social a cidade se expande em diversidade e os discursos
veiculados nas páginas de jornal valorizam certos elementos em detrimento de outros,
utilizando a comunicação para veicular seus ideais políticos.

3 Atualmente sob a direção da Universidade Estadual de Londrina.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Contudo, os profissionais da imprensa são sujeitos que trabalham no ramo e


precisam sobreviver por meio dela, a vida jornalística não era fácil pois haviam muitas
dificuldades a serem enfrentadas. A primeira delas, e talvez a mais relevante, seja o
fator de investimento nos jornais. O grande e destacado jornalista Marinósio Filho4
afirma (1991, p. 129) “O grande número de jornais e revistas que circulou em nosso
município é a visão clara das dificuldades em que vivíamos naqueles anos”. Ao longo
da história de Londrina houve diversas tentativas de se consolidar no mercado
profissional da imprensa, porém somente aqueles que tiveram um investimento
financeiro conseguiram sobreviver por mais tempo.
Exemplo disso, temos o Paraná Norte ligado aos interesses da Companhia de
Terras. No início da década de 1930 o jornal se alia ao empreendimento e contribui
para as exaltações sobre a “Terra da Promissão” que são evidentes nas páginas do
mencionado jornal (ARIAS NETO, 2008). Já na década de 1950, a Folha de Londrina
com uma proposta mais neutra e se adequando aos políticos e ao modo de realizar essa
política, se consolida no ramo5. Tais exemplos demonstram como duas empresas se
consolidaram no mercado jornalístico, aliando-se aos dominantes de um lado uma
postura tendenciosa, e por outro adequando-se às transformações.
Como enfatizei o primeiro aspecto do jornalismo sendo a dificuldade
financeira nas primeiras décadas, devo mencionar alguns exemplos dessas
adversidades. Já que trabalhamos com a década de 1950, considerando o contexto do
imigrantismo na cidade destaca Marinósio Filho (1991, p. 78) “As décadas de 50/70
foram pródigas no aparecimento de jornais em Londrina. Pequenos e médios”. Assim,
o que o jornalista pretende demonstrar é que no bojo das aventuras londrinenses,
alguns sujeitos se enveredavam pelo mercado jornalístico criando uma porção de
jornais que abrem em um dia, convivem com as dificuldades, e logo já fecham as portas
pouco tempo depois de sua abertura.
Destaco o jornal “O Repórter” lançado em 1954, segundo Marinósio (1991).
Era realizado pelo casal Renato Melito e Maria Antonieta Fiuza Melito. A relação
matrimonial pode ter causado também a desativação do jornal, devido aos
desentendimentos conjugais. Outro jornal, o “Última Hora” com a participação de
Dicesar Plaisant e Marinósio Filho, durou apenas poucos meses. Existem na época
diversos exemplos de jornais que surgiam de um dia para o outro, e na mesma medida
desaparecia por conta de motivos diversos: falta de dinheiro, intrigas, ameaças, era um
cenário que permitia qualquer evento simples para transformar o jornal em lembrança
na memória dos profissionais.
No jornalismo de Londrina muitos atuavam na profissão, mas não eram
profissionais da área. Nas redações dos jornais haviam sujeitos que desempenhavam
na sociedade outros segmentos de trabalho profissional como: médicos, advogados e
artistas. Aliás, o próprio objetivo de viver do jornal era doloroso e difícil:

4 Jornalista que também era músico e figura relevante no cenário intelectual.


5 Vale ressaltar a grande quantidade de propagandas existentes no jornal de João
Milanez.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Londrina, na ausência dos consumidores das produções/publicações, os


pretendentes a escritor-intelectual nunca conseguiriam sobreviver, pois não havia
tiragem suficiente para se manter apenas com isso. Uma das soluções seria o “mercado
de empregos” oferecido pela imprensa. Isso explica ser ela o primeiro e, muitas vezes,
único escoadouro de autores como Marinósio Trigueiros Filho, Delio Cesar, Edison
Maschio e Zaqueu de Melo (este também foi empregado por igrejas, escolas e
faculdades). Teriam de ser alocados em jornais e neles divulgar sua “arte” ou pena de
aluguel. Tanto melhor se o jornal não for adversário de poderosos locais, do estado do
Paraná ou do país. (SPIRANDELLI, 2017, p. 248)
Assim compreendemos as grandes dificuldades enfrentadas não somente de
ser um profissional da imprensa no que se referia ser jornalista enfrentando todas as
dificuldades de sua profissão. Também, era o jornal que dava espaço para outros
intelectuais expressarem suas ideias por meio dos periódicos. Participando deste modo
na vida intelectual da cidade nos próprios jornais.
A imprensa em Londrina também poderia ser classificada nesse período de
formas distintas, e de fato não era algo homogêneo. O jornalismo ou aqueles que
exerciam as atividades nesta classe profissional, poderiam ser classificados como uma
“imprensa chapa branca” aquela que estava alinhada com a ordem social e aos
interesses políticos dos dominantes, e por outro lado a “imprensa alternativa” que
como o próprio nome já diz, referia-se aos jornalistas opositores que denunciavam as
arbitrariedades dos poderosos:
Os jornalistas da imprensa alternativa costumavam justificar a polarização
representando a si próprios como tributários das causas populares, ao mesmo tempo
em que retratavam a Folha de Londrina como sendo a expoente de uma “imprensa de
elite”, “chapa branca”, complacente com as corrupções dos poderosos […]
(MELHADO, 2014, p.185)
Nesse sentido, havia uma separação ideológica entre os jornalistas em atender
aos interesses de grupos particulares ou populares no segmento da comunicação na
cidade. Isso refletia um cenário político intenso de um conflito de interesses bem
demarcado que se encontrava nas páginas dos jornais. Desse modo o jornalismo além
das problemáticas financeiras cercava-se dessas disputas partidárias. Por outro lado, os
construtores da notícia conviviam com um contexto peculiar ao se apropriar também
do local onde colhiam as informações que alimentavam os periódicos, nesse momento
devemos caracterizar o palco das doidivanas, a zona do meretrício.

A zona do meretrício

A zona situada na antiga Vila Matos (onde atualmente se encontra a rodoviária


José Garcia Villar) era o local da prostituição que no fim da década de 1940 havia se
mudado da rua Rio Grande do Sul. A atividade sexual existe na cidade desde o início
nas construções das primeiras casas de madeira em Londrina, tempos em que

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

projetavam um sonho de uma vida boa e uma cidade próspera. No sentido de atribuir
uma explicação coerente sobre as práticas do lenocínio na cidade, o autor Antônio
Benatti (1997) apresenta duas hipóteses para as atividades sexuais, a primeira delas é
que havia homens em demasia na cidade, consequentemente uma baixa vida sexual
masculina, ou seja, faltavam mulheres na cidade tanto para o prazer sexual quanto para
a constituição de famílias e crescimento populacional; a segunda foi basicamente pela
falta de locais que proporcionassem lazer e uma vida noturna.
Pode ser compreendida em termos como a prostituição se instalou na cidade
rústica dos anos 30. Mas, atribuir o sentido de um local que gerencia somente a venda
de sexo destinada ao público masculino, torna-se um olhar extremamente machista e
limitado. O meretrício de Londrina era muito mais do que um local de prostitutas;
jogadores e da malandragem. Veremos a seguir o que a localidade proporcionava aos
cidadãos.
Junto com a modernização da cidade as casas de prostituição ganharam uma
nova roupagem, ou seja, com o crescimento econômico por conta do café os grandes
fazendeiros e empresários se divertiam na noite londrinense em casas luxuosas. Em
muitos casos fechavam boates em espaços particulares para as farras com as garotas.
A vida noturna cresceu junto com o sucesso do café, da mesma forma que era na zona
que apontava sobre a economia da região (BENATTI, 1997).
Além desses fatores que impulsionaram as diversões da noite londrinense,
haviam outros motivos que comprovam o sucesso da vida noturna no norte
paranaense. Um dos exemplos, segundo Arias Neto (2008, p. 119) “Parte do grande
movimento do aeroporto local – na época, o terceiro do Brasil – era composto por
aviões que transportavam prostitutas de luxo para aquelas casas[…]”. Ao chegar ao
aeroporto, os curiosos logo recepcionavam as garotas vindas de muitos cantos do
Brasil e do mundo, e já escolhiam ali mesmo a sua companhia para as festas noturnas.
Também na zona, haviam muitos outros grupos marginalizados pela sociedade.
Não era uma questão somente com as prostitutas, já mencionado anteriormente na
Vila Matos haviam todos os tipos de personagens: jogadores; malandros, mendigos e
vadios que são alguns exemplos de grupos que estavam presentes no espaço. Estavam
todos alocados no mesmo perímetro, como diz Rolim (1999, p.36) “[...]o objetivo era
de regular a vida cotidiana no espaço urbano, determinando os lugares a serem
ocupados e eliminando os aspectos indesejáveis”. A sociedade com tais práticas de
segregação visava submeter os populares para além dos limites da cidade ordenada,
que estava se construindo no centro da cidade.
A própria ocupação dessa região denunciava que não suportaria aquele excesso
de gente que chegou à cidade na década de 1950. Ali encontravam-se muitos indivíduos
sem oportunidade na cidade do “Eldorado”, no qual era vendida para outros locais
como uma terra do “Progresso”. De certo modo, o que provocou esse cenário do
meretrício era também a falta de oportunidade que os imigrantes se deparavam ao
chegar em Londrina. Portanto, para sobreviver no município alguma atividade deveria

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

ser desempenhada, mesmo que fosse viver de golpes ou furtos na área central, ou até
mesmo o trottoir6 pela urbe.
Pensar esse local para além dos adjetivos pejorativos dados a ele, nos move a
pensar como um espaço que visa uma perspectiva mais profunda e acolhedora com os
que viveram a boêmia em Londrina. A Vila Matos dentro de todos os seus atributos,
era um espaço de sociabilidade (BENATTI, 1997). Era nas boates e na vida noturna
da cidade que as pessoas se comunicavam, divertiam, trocavam experiências. Nesse
sentido, os próprios jornalistas compreendendo que a zona do meretrício era um local
movimentado, onde a vida social brilhava, partiam para a região para vivenciar, relatar,
e tripudiar os acontecimentos e situações na zona do amor.

O jornalismo boêmio

Os jornalistas, por outro lado, além de profissionais da comunicação, eram


sujeitos que faziam parte da sociedade. Naquele período os jornalistas percorriam a
zona do meretrício para colher as informações que preenchiam as páginas dos jornais.
A estratégia era estar sempre por lá, pois era na boêmia que aconteciam os fatos que
interessavam o público, para se informar e saber sobre o cotidiano da cidade.
Nos jornais da cidade eram relatados os mais diversos casos que aconteciam
por Londrina, sejam eles policiais; criminosos; curiosos; fenômenos sobrenaturais e
situações fantásticas. São alguns exemplos que eram apresentados nos jornais como
informações do que ocorria na cidade. Isso formava no imaginário da elite uma
sensação de medo em Londrina, pois haviam situações que aconteciam e que
possivelmente poderiam alterar o controle da sociedade londrinense (ROLIM, 1999).
De acordo com tal interpretação, essas ocorrências eram denunciadas para controlar a
população e o status quo da sociedade por meio principalmente da polícia.
Nesse sentido, o próprio jornalismo ao destacar as ações criminosas de diversas
naturezas, promoviam uma afirmação das preocupações de uma época. Ao mesmo
tempo, sugere Rolim (1999, p.75) “[…] a imprensa assumiu, ao nível do discurso e da
opinião pública, um papel destacado na tarefa de combater os supostos criminosos”.
Era um anseio que vinha das elites para manter e conservar seu estado de controle
social.
Do mesmo modo, os discursos contra a zona do meretrício eram produzidos
até mesmo por quem viveu de uma maneira mais direta as noites de folia em Londrina.
Aqui já mencionamos o nome do jornalista Marinósio Filho, tão lembrado como um
dos mais destacados profissionais da imprensa desta cidade. Conforme o trabalho
desenvolvido por Melhado (2014, p.170) “Para o músico Marinósio Filho, recém-
chegado do Uruguai e procurando arranjar novos shows no Brasil, a miragem de uma
intensa e rica vida noturna em Londrina deve ter prefigurado uma boa oportunidade”.

6 Termo utilizado para a prostituição de calçada, ou seja, nas ruas fora das casas e boates.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

Desta maneira, o próprio Marinósio era um cantor que atuou na noite londrinense e
que inclusive teve um relacionamento com uma cafetina de uma grande boate da
cidade.
Nesse meio tempo, nas aventuras que a cidade proporcionava e
consequentemente forçava os sujeitos a se movimentar. O jornalista criou um jornal
no fim da década de 1940 chamado “O Combate”. A respeito desse assunto, Melhado
(2014, p.205) “[...]O Combate veiculava reportagens enérgicas nas quais defendia a
completa segregação das prostitutas, incitando as autoridades policiais a removerem as
‘mariposas’ das áreas centrais da cidade”. Fica evidente a ambiguidade/contradição do
jornalista que viveu e sentiu a vida noturna, e que por outro lado não sensibiliza com
quem exerce as atividades da noite e da diversão.
Além dessas perspectivas, temos um caso curioso de uma confusão ocorrida
na zona analisada pelo autor Tony Hara. A situação ocorreu por conta de uma prisão
arbitrária de um sujeito identificado como “Biquinha”, os populares que
acompanhavam a cena se revoltaram e ameaçavam os policiais com ripas e pedras.
Toda essa desordem ocasionou uma morte e dois feridos nessa conjuntura (HARA,
2000).
De acordo com tal ocorrido, um dos soldados relatou que os jornalistas Ciro
Ibirá e Dicesar Plaisant estiveram no acontecido e inflavam a população contra os
policiais. De certo que esse depoimento induz a pensar a ação dos jornalistas na
confusão.
Mesmo sendo acusado pelos policiais de agressão e de liderar a revolta popular,
Ciro Ibirá não cedeu e desmentiu a versão da polícia de que houve primeiro disparos
contra a patrulha. E mais, descreveu fisicamente o perfil de um dos soldados que abriu
fogo contra os populares. (HARA, 2000, p.47)
Nessa perspectiva identificamos uma ação diferente daquela realizada por
Marinósio, assim Ciro e Dicesar participam de uma ato em prol dos populares,
auxiliando e oferecendo suporte contra aqueles policiais que reprimiam as pessoas no
ambiente do meretrício.
Avaliar a perspectiva da zona, nos faz refletir também sobre outras formas de
lazer e diversão que havia na região. Além das casas eróticas, haviam restaurantes,
churrascarias e bares que eram constituintes da vida noturna londrinense. Dessa forma,
aponta Benatti (1997, p.113) “O bar Líder, na avenida Paraná, marcou época como um
dos palcos da vida boêmia da região”. Era um reduto dos boêmios da cidade, e também
servia como um ponto de recolher informações dos acontecimentos sociais.
Os marginalizados de Londrina estavam “restritos”7 à Vila Matos, lá se
encontravam os excluídos da cidade ou aqueles rejeitados pela ordem moral da
sociedade londrinense. Desse modo, os jornalistas conviviam com as margens da
cidade (considerada a região da boêmia) era naquele local que os profissionais da

7 Apesar de existir um espaço destinado aos indesejados em Londrina, alguns perambulavam


fora do confinamento, o que servia de prato cheio à imprensa e o julgamento moral desses
transeuntes hostis na sociedade da ordem e disciplina.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

imprensa circulavam e festejavam junto aos populares; prostitutas e malandros que ali
habitavam. Porém, antes da convivência havia um julgamento desses espaços
considerados imorais compartilhados nos jornais. Da mistura de corpos que havia no
meretrício, antes disso era um espaço social entre os sujeitos, que se tornou ao longo
do tempo objeto de estudo dos pesquisadores.
Viver na cidade era uma aventura naqueles tempos, tanto para os que
chegavam, tanto aos que já viviam em Londrina. De todo esse contexto da
modernização espacial inovando os locais da cidade, junto com os espaços decaídos,
se tornam uma relação complexa de análise. Segundo Hara (2000, p45) “A presença de
jornalistas nos cabarés e bares da zona do meretrício não constituía uma novidade ou
um desvio de regra”. Após a conclusão de sua rotina de trabalho, era na zona que se
divertiam e comemoravam com os companheiros. Os profissionais da imprensa viviam
na boêmia da cidade após o labor.
Em relação a isso, era nos periódicos que os jornalistas difamavam a região do
amor. Foi já no final da década de 1940 que as notícias moralistas ganharam força
contra a marginália (HARA, 2000). Ao fazer uma análise sobre a vida de Marinósio
Filho, afirma o pesquisador Melhado (2014, p.209) “Embora vivessem os prazeres da
zona do meretrício e mantivessem relações com a marginália local, os jornalistas-
boêmios escreviam seus textos, baseados em discursos professados por membros das
elites econômicas, políticas ou policiais[…]”. Dessa forma, os profissionais iam contra
as próprias atitudes tomadas no cotidiano tanto quanto comunicador, ou mesmo
sujeito social que perambulava e participava desses espaços sociais julgados por eles
próprios nos periódicos da cidade.
Nessa perspectiva da cidade de Londrina com intensas transformações vivendo
sua modernidade, assim Berman define a vida moderna (1986, p.15) “[…] é encontrar-
se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
autotransformação e transformação das coisas em redor […]”. Ao mesmo tempo
revela as contradições que os indivíduos estão expostos, em conviver com abundantes
alterações, e as repletas mudanças que aconteceram na sociedade.
O essencial da análise visa compreender o universo de inserção dos
profissionais na sociedade, participando tanto como sujeitos da história, como também
produtores de histórias e discursos. As fontes jornalísticas são em grande parte um
material privilegiado na história da cidade, tem grande presença em trabalhos
renomados utilizados por historiadores, sociólogos e pesquisadores de forma geral. Os
jornais fazem parte da representação do passado na cidade, desse modo uma análise
dos espaços sociais pode revelar os condicionamentos políticos dos jornalistas, ou seja,
os motivos e as lutas em que os profissionais enfrentavam, como também suas relações
de proximidade ou distanciamento com sujeitos de uma linha ideológica semelhante
ou não a sua.
As ambiguidades da vida moderna em conviver com as margens da cidade
londrinense revelam traços contraditórios aos que são representados nos jornais. O
local de convivência e relacionamento pessoal vivido pelos jornalistas é relevante para

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

a historiografia ao considerar os contextos em que se inserem os intelectuais da cidade


e as disposições em que lutavam na sociedade de classes. As participações nesses
cenários e espaços revelam suas condições, mas além do “Eldorado” existe a zona do
meretrício que também revela as preocupações; distanciamentos e ambiguidades dos
jornalistas considerando os seus espaços profissionais e também de sociabilidade.

Considerações Finais

Londrina e o jornalismo estão intimamente ligados, pois naquele período


houve uma série de transformações que foram cruciais para os acontecimentos e
desenvolvimento da imprensa e da cidade. Assim, da mesma forma em que o
“Progresso” chega na região, os espaços se alteram e do mesmo modo as influências
da modernidade são aparentes nas estruturas sociais. Não é diferente no mundo
jornalístico, mesmo com seus ataques à zona do meretrício muitos profissionais da
imprensa foliavam nos bares e boates da Vila Matos.
Essa perspectiva considera o espaço periférico e excludente muito presente na
formação ideológica e social do profissional/intelectual atuante dentro do contexto da
imprensa londrinense. Isso promove uma percepção da postura social e política dos
profissionais, seja de um grupo jornalístico ou até mesmo de um indivíduo sobre as
pretensões da profissão de jornalista, considerando-o também como um agente social
ao participar dos diferentes grupos e espaços mesmo que de maneira ambígua.

Referências

ADUM, Sônia Maria Sperandio Lopes. Historiografia Norte Paranaense: Alguns


apontamentos. In: ALEGRO, Regina Célia (Orgs). Temas e questões para o ensino
de história do Paraná. Londrina: Eduel, 2013.

ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: representações da política em Londrina


1930/1975. 2.ed. Londrina: Eduel, 2008.

BENATTI, Antônio Paulo. O Centro e As Margens: Prostituição e vida boêmia em


Londrina (1930-1960). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da


modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

DION, Sylvie. O “fait divers” como gênero narrativo. Letras (Santa Maria), v. 34,
p. 123-131, 2007.

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Eixo 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade

FILHO, Marinósio. Dos porões da delegacia de polícia. 2.ed. Londrina: Kan,


2013.

FILHO, Marinósio; NETO, Marinósio. História da Imprensa de Londrina: do


baú do jornalista. Londrina: UEL, 1991.

HARA, Tony. Caçadores de notícias: História e crônicas policiais de Londrina


1948-1970. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000.

MASCHIO, Edison. Escândalos da Província. 2° ed. Londrina: Kan, 2011.

MELHADO, Felipe de Camargo. Anti-herói entre heróis: Marinósio Filho, boemia


e jornalismo da Londrina do Eldorado. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação em História Social, 2014.

ROLIM, Rivail Carvalho. O policiamento e a ordem: histórias da polícia em


Londrina 1948-1962. Londrina: Ed. UEL, 1999.

SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. Intelectuais e vida cultural em Londrina-PR


(1950-1979). Dossiê Arte do Carnaval Arquivos do CMD, Volume 6, N.1. Jul/Dez
2017.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

O ISOLAMENTO POLÍTICO DO HOMEM, O ABANDONO


DO MUNDO E A APARIÇÃO DOS MOVIMENTOS
TOTALITÁRIOS

Alessandro Marinelli de Oliveira1


Orientadora Dra. Maria Cristina Müller 2

Resumo: Investiga-se o homem indiferente aos assuntos públicos e se ele compõe a


massa como um elemento essencial ao advento de movimentos totalitários. Averígua-
se ainda o papel da ideologia e do terror para a implementação e a manutenção do
totalitarismo. A pesquisa é bibliográfica e utiliza-se como procedimento a leitura,
análise e compreensão de obras de Hannah Arendt e de seus comentadores. Destaca-
se a atualidade do pensamento crítico de Arendt em relação ao mundo moderno e a
alienação dos homens que compõem esse mundo; não há espaço para a política para
o homem que transita apenas no espaço privado, a procura de fastio. Tais problemas
persistem até os dias atuais e ensejam o advento de movimentos totalitários mesmo
em países que adotam o regime político democrático.

Palavras-chave: Isolamento, massa; ideologia; terror; totalitarismo;

Neste artigo identifica-se o homem atomizado, indiferente aos assuntos


públicos, neutro em questões políticas, que não transcende o mero estar vivo, como
componente das massas essenciais ao advento totalitarista. O alheamento político,
conjugado à força irresistível da ideologia e ao terror, são elementos que suscitam a
aparição e a manutenção dos regimes totalitários. Demonstra-se aqui que a
degeneração de regimes políticos democráticos advém do alheamento do homem,
desinteressado pela liberdade e felicidade públicas, e defende-se que o advento de
movimentos totalitários pode ser evitado pelo prestígio ao espaço político, necessário
ao exercício da política.
Para o ser humano que se perde na urgência metabólica da garantia da própria
vida, não há tempo para a política (MÜLLER, 2018, p.43). Esse homem, a quem
Hannah Arendt (2020, p. 155) chama de animal laborans, tem por bem maior a sua
felicidade privada – que por sua vez se traduz como saciedade e mesmo fastio.
Não há espaço para a política onde não há uma dimensão de grandeza que
transcenda o mero estar vivo e os deleites que ele envolve, onde a liberdade não se

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UEL – Universidade Estadual


de Londrina. E-mail: alessandro.oliveira@uel.br
2 Professora do Departamento de Filosofia da UEL – Universidade Estadual de Londrina.

Coordenadora do GT Filosofia Política Contemporânea da ANPOF. E-mail:


cristinamuller@uel.br

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

sobreponha à saciedade. A vitória desse animal laborans traduziu o apequenamento da


estatura e dos horizontes do homem moderno. O seu triunfo representou o ocaso da
política (CORREIA, 2020a, XLV - XLVI).
Esse alheamento do homem foi observado por Arendt na obra Origens do
Totalitarismo. Nela, a filósofa analisa a presença das massas nos movimentos totalitários.
O termo, explica ela, se aplica ao conjunto de

pessoas que, simplesmente devido ao seu número ou à sua indiferença, ou a mistura


de ambos, não se pode integrar numa organização baseada em interesse comum, seja
partido político, organização profissional ou sindicato dos trabalhadores (ARENDT,
2012, p. 438 e 439).

Um homem parecido foi descrito por Ortega Y Gasset (2016, p. 173), antes da
Segunda Grande Guerra: um homem que possui um contentamento consigo próprio
e que o leva a se fechar para toda instância exterior, a não escutar, a não pôr em questão
suas opiniões e a não contar com os demais. Um homem que age, pois, como se só ele
e seus congêneres existissem no mundo. Um homem que intervém em tudo impondo
sua opinião vulgar, sem considerações, contemplações, trâmites nem reservas.
Em sua obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, a filosofa
alemã aprofunda suas críticas em relação ao homem de massa, tido por ela como
incapaz de pensar criticamente, de julgar com alargamento3.
Ao ser enviada à Israel pela revista americana New Yorker, para cobrir o
julgamento de Adolf K. Eichmann – organizador da logística da deportação de judeus
para os campos de extermínio – percebeu, com surpresa, alguns traços de sua
personalidade. Eichmann era portador de uma fala permeada de clichês, parecia
animado com o próprio julgamento, era autovangloriador, esquecediço, distraído e
aparentemente incapaz (CORREIA, 2020).
Sobre ele, concluiu a filósofa “apesar de todos os esforços da promotoria, todo
mundo percebia que esse homem não era um monstro; mas era difícil não desconfiar
de que fosse um palhaço”. Terrível era a constatação de que “havia muitos como
Eichmann – não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas assustadoramente normais”
(ARENDT, 2019, p. 67).
Ao examinar Eichmann, constatou, com segurança, que é possível a uma
pessoa absolutamente normal social e psiquicamente, perpetrar um mal ilimitado. Um
oportunista inconsequente e burocrata irrefletido, tornou possível que um evento
mundano se apresentasse como a falência dos padrões morais tradicionais (CORREIA,
2013, p.63).

3 Sobre o julgar de maneira ampliada, esclarece Arendt: “Quase não se falou dessa phronesis
através dos séculos, que em Aristóteles é a verdadeira virtude cardinal da coisa política. Só a
encontramos de novo em Kant, na explanação da razão saudável do homem como um bem
do juízo. Ele a chama de ‘maneira de pensar ampliada’ e a define expressamente como a
capacidade ‘[de] pensar no lugar de todos os outros’” (ARENDT, 2018a, pg. 111).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Segundo Arendt (2012, p. 438), a principal característica do homem que integra


a massa não é brutalidade nem rudeza, mas o seu isolamento político, uma solidão
insuportável que implica na perda do próprio “eu”.
Sobre o isolamento político, Arendt (2012, p. 633) ensina ainda que “é aquele
impasse no qual os homens se veem quando a esfera pública de suas vidas, ondem
agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída”.
Fenômenos sociais modernos, consubstanciados no desarraigamento, no
abandono próprio das massas e no triunfo de um tipo humano que encontra sua
satisfação simplesmente no processo de trabalho e de consumo, ajudaram a forjar uma
sociedade constituída por pessoas inábeis para cuidar do mundo.
Adorno e Horkheimer (1985, p. 47) chegaram a uma conclusão parecida ao
afirmaram que “o industrialismo coisifica as almas”, que os homens se transformam
em “meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade”, e
ainda que a “cultura de massa revela o caráter fictício que a forma do indivíduo sempre
exibiu na era da burguesia”, tudo para descrevem o “um mero ser genérico”, um
componente das massas.
O totalitarismo se apoia nesse tipo de homem: atomizado, supérfluo, incapaz
de se ocupar com a política (ARENDT, 2012, p. 453).
O uso popular da palavra totalitarismo com o propósito de denunciar algum
mal político supremo não era empregado até o final da Segunda Guerra Mundial.
Mesmo depois dos primeiros anos do pós-guerra, o rótulo para o mal em política era
imperialismo. Assim usada, a palavra costumava denotar agressividade na política
externa. Do mesmo modo hoje utiliza-se totalitarismo para denotar a ânsia pelo poder,
a vontade de dominar, o terror e a chamada estrutura estatal monolítica (ARENDT,
2002, p. 43).
O totalitarismo constituiu a ruptura definitiva da filosofia política tradicional e
das categorias que, até então, serviram para orientar o estabelecimento do certo e do
errado, isto é, a ruptura com a tradição do pensamento moral (MÜLLER, 2011, p. 14).
Desvelou a ruína das categorias de pensamento e dos padrões de juízo da civilização
ocidental, posto que

[...] a tradição, as religiões, os mandamentos orientadores do certo e do errado, os


costumes, as regras de condutas existentes não foram suficientes para impedir as
perversidades e desumanidades que foram cometidas, não por um único indivíduo,
mas por uma sociedade inteira (MÜLLER, 2011, p. 18).

E essa sociedade de massa foi essencial para o advento totalitário pois, em um


contexto de ausência de mundo comum e de supressão de participação política, o
poder político desaparece e formas totalitárias encontram terreno fértil para se
desenvolver. O totalitarismo foi possível porque havia um ambiente peculiar, um
ambiente em que vida privada era privilegiada em detrimento da vida pública. A vida
privada era balizada pelo cálculo e pelo oportunismo. A responsabilidade de cada um

- 255 -
Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

com a construção de um mundo comum havia sido negligenciada (MÜLLER, 2012, p.


308).
As massas concederam força aos movimentos totalitários tais como o nazismo
e o comunismo. Sustentaram-no sem questionamentos – basta relembrar que Hitler
chegou legalmente ao governo e lá permaneceu por longo tempo a despeito de lutas
intrapartidárias e crises que foram superadas graças ao apoio e a confiança das massas.
Não por outro motivo os movimentos totalitários têm por objetivo organizar essas
massas (ARENDT, 2012, p. 435).
A participação dessas massas nos movimentos totalitários destruiu duas ilusões
existentes nos países democráticos. A primeira, a de que o povo, na sua maioria,
participava ativamente do governo e simpatizava com um ou outro partido; a segunda,
que as massas politicamente indiferentes eram neutras e sem importância. Postas
abaixo tais ilusões, percebeu-se que um país, supostamente democrático, em que se
apregoava a participação da maioria, podia funcionar de acordo com normas aceitas
apenas por uma minoria, uma vez que a maioria podia ser composta por uma massa
politicamente neutra e apática (MÜLLER, 2012, p. 309).
A base psicológica do homem-da-massa é a lealdade total – irrestrita,
incondicional e inalterável – de cada um dos seus membros, exigida mesmo antes da
tomada do governo. Para obter essa lealdade, qualquer movimento totalitário utiliza,
basicamente, a ideologia de que o movimento abrangerá toda a humanidade no devido
tempo. (MÜLLER, 2012, p. 311).
As ideologias pervertem a lógica dialética (tese, antítese e síntese) para fazer
desaparecer qualquer possível contradição, isto é, as contradições são explicadas pela
ideologia como estágios de um movimento coeso; assim, se, na lógica clássica, o único
movimento possível é o processo de dedução a partir de uma premissa, na ideologia a
primeira tese transforma-se em premissa necessária, ou apodítica, para o processo de
dedução que, por sua vez, explica o movimento. Dessa forma, as contradições que os
fatos possam trazer são explicadas como estágios de um mesmo movimento coerente
e idêntico (MÜLLER, 2012, p. 318).
Arendt (2012, p. 627-628) elenca três elementos nomeadamente totalitários que
são típicos a qualquer pensamento ideológico, quais sejam, a pretensão de explicação
total, a insistência de que existe uma realidade “mais verdadeira” escondida por detrás
de todas as coisas perceptíveis, e a dissociação entre pensamento e experiência.
O emprego da ideologia tinha por objetivo era a obediência cega, imune a
qualquer tentativa de se compreender o que se fazia, posto que a compreensão abria
espaço para a crítica, para o pensamento por si mesmo e para a contestação. Também
foi através da ideologia que os movimentos totalitários encontraram uma fórmula para
aterrorizar e dominar internamente o indivíduo (MÜLLER, 2012, p. 311).
Nos campos de concentração, o uso do terror era o meio para a doutrinação e
o consequente domínio total; o terror visava à supressão da espontaneidade, abolindo
consequentemente a ação. Afinal, a perda da espontaneidade só é possível em
circunstâncias extraordinárias, como aquelas encontradas nos campos de

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

concentração. Portanto, o campo de concentração é o local – o laboratório – que


permite a concretização e a realização da crença do movimento totalitário de que tudo
é possível (MÜLLER, 2012, p. 313).
Foi testemunha desse terror o italiano Primo Levi, deportado em 1944 para
Auschwitz. Em seu livro “É isso um homem”, escreveu: “daqui só se sai pela chaminé”
(LEVI, 1988, p. 36), frase que alude a incineração dos corpos de prisioneiros vítimas
do massacre administrativo perpetrado pelos nazistas em campo de concentração
como aquele.
Para se concretizar o aniquilamento da espontaneidade, criaram-se
estratagemas que iniciaram muito antes dos próprios campos de extermínio. Esse
artifício foi descrito por Arendt (2012, 594-603) como a produção de três mortes: a
morte da personalidade jurídica, com a perda da proteção da lei; a morte da
personalidade moral, com a destruição da dimensão da solidariedade humana que liga
um ser humano a outro através de um sentimento de pertença e de reconhecimento;
e, finalmente, a morte da personalidade humana, por meio do aniquilamento da sua
individualidade e da sua “capacidade de iniciar algo novo”.
Sobre tais mortes, notadamente sobre a destruição da espontaneidade, produto
da individualidade, que nada mais é do que a capacidade humana da ação necessária à
criação de um espaço da política que pudesse impedir o advento do totalitarismo,
discorre Müller:

Diante desse quadro que inicia com a perda da proteção da lei, passa pela destruição
da solidariedade e pelo aniquilamento da espontaneidade, e chega ao extermínio frio
e sistemático de corpos humanos, é possível compreender a passividade e a não
contestação dos internos dos campos de extermínio às atrocidades que sofriam; eles
haviam perdido a capacidade de ação, esta vinculada à espontaneidade. [...] A
espontaneidade é produto da individualidade; aniquilada a individualidade, aniquila-se
a espontaneidade – e a espontaneidade nada mais é do que a capacidade humana da
ação. À espontaneidade se ajunta a natalidade. É o nascimento que move os seres
humanos para a ação. [...] Ao exercer a atividade da ação, o ser humano cria um espaço
atemporal e aespacial, que chamamos de espaço da política. A política é, assim, o
espaço entre-os-homens, construído se houver a ação e discurso. Política e liberdade
se identificam, pois, sem espontaneidade para iniciar algo novo no mundo feito de
outros seres humanos igualmente aptos para agir, a ação não se efetiva. [...] Nos
Estados totalitários, a individualidade ou qualquer outra forma de distinção entre os
seres humanos é inadmissível. Isso porque ao se permitir a individualidade –
singularidade – permitir-se-ia a ação e com ela o poder político e era isso que o
movimento totalitário queria evitar (MÜLLER, 2012, p. 313-316).

Antes mesmo das manifestações totalitárias havidas no Século XX, Arendt


constatou que a sociedade moderna estava em crise. Segundo ela, já não havia mais
regras, padrões, verdades tradicionais eternas, aplicáveis como parâmetro de conduta:

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

A crise tem sido muitas vezes definida como uma quebra de tais regras e padrões, e
isso não porque nos tornamos de repente tão perversos que não reconhecemos mais
o que tempos anteriores acreditavam ser verdades eternas, mas, pelo contrário, porque
essas verdades tradicionais parecem não se aplicar mais. Como Tocqueville observou:
quando o passado deixa de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia
na obscuridade. [...] Acho que ninguém expressou com mais precisão concreta o
impacto que esse colapso deve ter nas mentes e nos corações dos homens que vivem
nessas condições do que Churchill. Ele escreveu as seguintes palavras há mais de trinta
anos - antes de Auschwitz, Hiroshima, da bomba de hidrogênio, etc: “Quase nada
materialmente estabelecido que eu fui educado para acreditar que era permanente e
vital durou. Tudo que eu tinha certeza, ou fui ensinado a ter certeza, que era
impossível, aconteceu” (ARENDT, 2018b, pp. 1965-1966).4

Alertou a filósofa de Hannover que nós deveríamos pensar, julgar e agir


considerando o passado, mas não acreditando na validade das chamadas “lições da
história”. Falava ela sobre os princípios morais:

A verdade moral, seja derivada da filosofia ou da religião, assemelha-se mais à validade


dos acordos do que à validade convincente das afirmações científicas. Esses acordos
determinam a ação de todos quando se tornam costumes, costumes morais com seus
próprios padrões de conduta que finalmente se tornam evidentes. Todos nós sabemos
quantos séculos se passaram até que os homens pudessem dizer que todos os homens
nascem iguais, que esta é uma verdade evidente. Isso também é de fato um acordo;
Jefferson disse que consideramos isso verdade e acrescentou a palavra evidente na
esperança de fazer um acordo – “nós mantemos” - mais convincente (ARENDT,
2018b, pp. 1965-1966).5

4 Em tradução livre ao seguinte trecho: The crisis has often been defined as a breakdown of
such rules and standards, and this not because we have become all of a sudden so wicked as
no longer to recognize what former times have believed to be eternal verities, but, on the
contrary, because these traditional verities seem no longer to apply. As Tocqueville noted:
when the past ceases to throw its light upon the future, the mind of man wanders in obscurity.
[...] I think no one has expressed with more concrete precision the impact this breakdown
must have on the minds and hearts of men living under such conditions than Churchill. He
wrote the following words more than thirty years ago – before Auschwitz, Hiroshima, the
hydrogen bomb, etc.: “Scarcely anything materially established which I was brought up to
believe was permanent and vital has lasted. Everything I was sure, or was taught to be sure,
was impossible has happened”
5 Em tradução livre ao seguinte trecho: Moral truth, be it derived from philosophy or from

religion, resembles more the validity of agreements that the compelling validity of scientific
statements. These agreements determine the action of all when they have become mores,
morality customs with their own standards of conduct that finally become self-evident. We all
know how many centuries it took until men could say that all men are born equal, that this is
a self-evident truth. This, too, is in fact an agreement; Jefferson said we hold this to be true, and
he added the word self-evident in the hope of making an agreement – “we hold”- more
compelling.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Arendt conclamava a todos a adotarem um novo código de conduta, baseado


na verdade moral, seja ela vindoura da filosofia ou da religião, que encontrava sua
validade mais em agreements do que em scientific statements, ou, em tradução livre, mais
em acordos, em concordâncias, do que em declarações científicas, a exemplo do que
foi dito por Jefferson (ARENDT, 2018b, pp. 1965-1966).
Todas essas constatações, alertas e recomendações, aparentemente, não
serviram à superação do alheamento do homem. A massa, composta por esses homens
desinteressados nos assuntos públicos, e que não alimentam qualquer pretensão de
conquistar a liberdade pública (contentes com a manutenção da liberdade privada e
com o seu fastio), mais presentemente, vem servindo a alguns regimes democráticos
onde o poder popular é exercido por meio de representação para a consolidação de
algumas formas de autoritarismo.
É o que parece ter ocorrido, ou que ainda vem ocorrendo, no Brasil, nos
Estados Unidos da América, na Índia e na Hungria. Nesses países, em boa medida
graças à massa desinteressada nos assuntos públicos, trilha-se um novo caminho do
populismo engendrado pelo poder de turno, alguns deles como a promoção de
elementos centrais típicos do fascismo, quais sejam, a glorificação da violência, o
emprego de discriminação às minorias, o uso da “mentira fascista” (onde o mentiroso
acredita em suas mentiras) e da xenofobia (FINCHELSTEIN, 2019, passim).
Os líderes políticos desses países teriam sido eleitos em razão da falta de
participação da população “no jogo da democracia”, bem como em razão do prestígio
dado à tecnocracia (FINCHELSTEIN, 2019, passim).
Confirma esse temor, no Brasil, o aparecimento do que foi chamado de
neointegralismo, apresentado como a suposta evolução do Movimento Integralista da
década de 30, de marcante contorno fascista, que tinha à frente Plínio Salgado,
personalidade que caminhava entre o chefe político e o chefe religioso (CALDEIRA
NETO; GONÇALVES, 2020, p. 195).
É importante rememorar que o nascimento do Movimento Integralista se deu
por meio da publicação de um manifesto elogioso à autoridade, crítico aos partidos
políticos e defensor do princípio da autoridade. O lema “Deus, pátria e família”, se
encaixava perfeitamente nos princípios da doutrina, conforme expresso no Manifesto:
Deus, que dirige o destino dos povos, pátria, nosso lar, e família - início e fim de tudo
(CALDEIRA NETO; GONÇALVES, 2020, p.183).
Seja como for, tais movimentos políticos se fortalecem, paradoxalmente, graças
à democracia representativa e à falta de espírito republicano. Torna-se necessário
superar a crise na democracia representativa por meio do fortalecimento da república
e do espírito revolucionário – o primeiro, por meio da descentralização do poder,
como entendia Jefferson (apud, ARENDT, 2011, p.313), o segundo pela retomada do
gosto pela liberdade e felicidade públicas – exteriorizadas pelo exercício direto da
política, que transcenda as liberdades civis e não se resumam ao fastio e ao bem-estar
social.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Arendt (2012, p. 639) acreditava que o nascimento de novos homens e


mulheres, constituía um revide ao advento de movimentos totalitários, assim como a
possível superação do homem atomizado, que tudo apequena e que impossibilita a
criação do espaço da política. Citando Agostinho, afirmou que “o homem foi criado
para que houvesse um começo”, para depois arrematar que “cada novo nascimento
garante esse começo; ele, é, na verdade, cada um de nós”.
É com a política – necessidade imperiosa à vida humana, tanto a do indivíduo,
quanto da sociedade, por meio do qual se dá a liberdade e felicidades públicas
(ARENDT, 2018a, p. 40, 48 e 49).
Conclui-se que o triunfo de um tipo humano que encontra sua satisfação
simplesmente no processo de trabalho e de consumo forjou uma sociedade constituída
por pessoas que abandonaram o espaço público, e que esse tipo de homem, atomizado
e incapaz de se ocupar com a política, compõe as massas que sustentam movimentos
totalitários, que as organizam, por meio da ideologia e do terror, a fim de
permanecerem no poder.
A crise da sociedade moderna do século passado, onde não havia mais regras,
padrões ou verdades tradicionais eternas, parece persistir até os dias atuais. Alertas não
bastaram à superação do homem atomizado, que continua a servir a regimes para a
consolidação de algumas formas de autoritarismo. Essa crise pode ser suplantada pelo
revide aos movimentos totalitários, o que se dá por meio da superação do homem
atomizado com a criação do espaço político necessário ao exercício da política,
possibilidade que sempre se renova com a natalidade.

Referências

ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:


fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1985.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 13. ed. rev. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2020.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do


mal; Trad. José Rubens Siqueira. 25. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ARENDT, Hannah. O que é política? Org. Úrsula Ludz; Trad. Reinaldo Guarany;
Kurt Sontheimer. 12. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018a.

ARENDT, Hannah. Thinking Without a Banister: essays in understanding 1953-


1975. New York: Schocken Books, 2018b.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2012.

ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:


Companhia das Letras, 2011.

ARENDT, Hannah. Compreensão e Política. In. ARENDT, Hannah. A dignidade


da política. 3. ed., Trad. Helena Martins, Frida Coelho, Antônio Abranches, César
Almeida, Cláudia Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002, p. 39-53.

CALDEIRA NETO, Odilon; GONÇALVES, Leandro Pereira. O fascismo em


camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV Editora,
2020.

CORREIA, Adriano. O Eichmann de Hannah Arendt. Estado de São Paulo. São


Paulo. 30 de jun. 2020. Estado da Arte. Disponível em
<https://estadodaarte.estadao.com.br/eichmann-hannah-arendt-anpof-correia/>.
Acesso em 23 set. 2020.

CORREIA, Adriano. Pensar o que estamos fazendo. In: ARENDT, Hannah. A


Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 13. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2020a.

CORREIA, Adriano. Arendt e Kant: banalidade do mal e mal radical. Argumentos,


Fortaleza, ano 5, n. 9, jan./jun 2013, p. 63-78.

FINCHELSTEIN, Federico. Do Fascismo ao Populismo na História. Trad.


Jaime Araújo. Lisboa: Edições 70, 2019.

LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MÜLLER, Maria Cristina. Apologia à obra A Condição Humana de Hannah Arendt 60


anos após a sua publicação. Princípios, Natal, v. 25, n. 48, Set.-Dez. 2018, p. 31-58.

MÜLLER, Maria Cristina. Totalitarismo e Poder Político em Arendt. In:


CHITOLINA, C. L.; PEREIRA, J. A.; OLIVEIRA, L. B. de; BORDIN, R. A. (Org.)
Estado, indivíduo e sociedade: problemas contemporâneos, Jundiaí, Paco
Editorial, 2012, p. 307-325.

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

MÜLLER, Maria Cristina. O imperativo da compreensão. In: OLIVEIRA, Kathlen


Luana de; SCHAPER, Valério Guilherme (Org.) Hannah Arendt: uma amizade em
comum, São Leopoldo, Oikos/EST, 2011, p. 11-23.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Trad. Felipe Denardi.


Campinas: VIDE Editorial, 2016.

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

OS DIFERENTES TIPOS DE COSMOPOLITISMO EM KANT

Angélica Godinho da Costa1

Resumo: O desenvolvimento deste estudo pondera os diferentes tipos de


cosmopolitismo, tipos que não se excluem, mas deveras estão inter-relacionados. A
pesquisa considera principalmente a tipologia adotada por Pauline Kleingeld e
entendemos também que aspectos adjacentes a estes conceitos, como hierarquia de
raça, gênero, modo de vida, entre outras divisões tratadas por Immanuel Kant,
impactaram em suas transformações e na mudança da concepção geral de
cosmopolitismo. No final do século XVIII, o cosmopolitismo alemão não era uma
ideia única abrangente, ao invés disso apresentou-se em pelo menos seis variedades
diferentes: o cosmopolitismo moral (1), os que propunham uma reforma da ordem
política (2) e jurídica internacional (3), o cosmopolitismo cultural (4), o cosmopolitismo
econômico (5) e o ideal cosmopolita romântico (6) - da humanidade unida por fé e
amor. Dedicaremos maior atenção às variantes mais exploradas na concepção kantiana
de cosmopolitismo: o moral, o político e o jurídico; caracterizando a posição de Kant
dentro destas variantes. Dentro deste cenário, trabalharemos com dois momentos
argumentativos: antes descreveremos os principais tipos de cosmopolitismo e
posteriormente explicaremos quais deles Kant desenvolve em suas obras, utilizando
também textos de outros intérpretes kantianos como Georg Cavallar.

Palavras-chave: Tipos de Cosmopolitismo; Cosmopolitismo alemão; Immanuel


Kant; Pauline Kleingeld.

Introdução

Os alemães são os modelos de cosmopolitas, segundo Immanuel Kant. O


filósofo prussiano destaca a hospitalidade deles com estrangeiros, em sua obra de 1798
– Antropologia de um ponto de vista pragmático, ao identificar que reconhecem facilmente o
mérito de outros, também pela modéstia deles em lidar com terceiros e pela capacidade
de rapidamente aprender outros idiomas - “O alemão aprende línguas estrangeiras mais
que qualquer outro [...] não tem orgulho nacional, nem se apega, como cosmopolita

1Mestranda e Técnica do projeto de pesquisa: Método de Análise e Síntese em Kant, no


Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina – Londrina, Brasil; Bolsista
CAPES; Especialista em Gerenciamento de Marketing, St. Joseph’s College of Business
Administration – Bangalore, India; Especialista em Gerenciamento de Shopping Centers pelo
ICSC International Council of Shopping Centers – Nova Iorque, EUA; Bacharel em
Publicidade, Propaganda e Criação – Hab. Marketing, Universidade Presbiteriana Mackenzie -
São Paulo, Brasil; angelica.godinho@uel.br.

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

que é, à sua pátria” (KANT, 1798 – 7:317-18)2. Essa notável descrição do povo alemão,
que o cerca de intelectualidade, contudo foi praticamente varrida no século XIX pela
onda nacionalista. Esse termo usado por Kant distingue-se do perfil de cosmopolita
viajante que não está apegado a lugar algum, ao contrário, está voltado a um cidadão
que reconhece outras culturas, respeita e se interessa por elas, agindo como membro
de uma comunidade global e inclusive não requer viajar por diversos outros países.
Neste sentido, eleger Kant o pai do cosmopolitismo poderia carregar uma dose
de ironia, se considerarmos o fato de que o filósofo passou toda a vida na pequena
cidade de Koenigsberg, no interior da Prússia, com singelos deslocamentos que não
ultrapassaram 200km de raio de sua residência. Como sua própria biografia ilustrou,
encontra uma perfeita compatibilidade do ideal cosmopolita com o fato de ter vivido
sempre em sua cidade natal, que contava com porto marítimo, universidade, escritórios
oficiais do governo e intenso fluxo de comércio internacional; o que proporcionava
uma grande exposição a vários idiomas e culturas (KANT, 1798 – 7:120-21).
Embora o conceito permeie entre pensadores de diferentes épocas, os registros
de sua contribuição e profundidade no tema superaram pensadores que o antecederam,
bem como servem de referência ainda hoje a qualquer pesquisador contemporâneo
que mergulhe no estudo das relações entre os povos. O cosmopolitismo tem sido
revivido nas últimas três décadas, especialmente pelo ressurgimento de um sentimento
nacionalista em muitas partes do mundo, bem como pelo globalismo que tem se
intensificado nesse período. Alguns autores contemporâneos, como Martha
Nussbaum, defendem a versão moral do cosmopolitismo, no entanto outros como
Thomas Pogge, David Held e Jürgen Habbermas afirmam que é claramente uma
questão política.
Esses autores frequentemente se voltam ao cosmopolitismo do século XVIII,
especialmente a Immanuel Kant e suas noções de igualdade moral entre todos os
humanos, a existência de um conjunto de direitos humanos e principalmente a urgência
em se estabelecer uma instituição política formando uma liga de nações. Todavia, a
complexidade do cosmopolitismo do século XVIII não foi completamente explorada.
Poucos acadêmicos têm examinado profundamente as diversas teorias cosmopolitas
dessa época para determinar quais são suas características e qual forma toma essa
ordem global.
O principal objetivo deste texto é mostrar que no final do século XVIII o
cosmopolitismo alemão não era uma única e abrangente ideia, mas ao invés disso era
composto de ao menos seis variedades diferentes: o cosmopolitismo moral (1) – em
que os humanos constituem uma única comunidade com obrigações morais diante de
todos os demais, independentemente de sua nacionalidade, idioma, religião, costumes,

2 As referências aos textos de Kant serão realizadas a partir da edição das obras completas,
segundo a Akademie-Ausgabe. As indicações a Kant são feitas por autor e data; seguidas da
paginação da academia de Berlim. Já as referências a outros autores serão realizadas por nome
do autor, ano de publicação da obra e página.

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

etc. –, a proposta de uma reforma política internacional (2) e também de ordem jurídica
(3), o cosmopolitismo cultural (4) – que destaca o valor de um pluralismo cultural
global –, o cosmopolitismo econômico (5) – que visa estabelecer um livre mercado
global onde todos os humanos possuem igualdade nas tratativas com parceiros
comerciais – e, finalmente, o cosmopolitismo “ romântico” ou humanitário (6) – como
um ideal de humanidade unida por fé e amor. Estes tipos de cosmopolitismo, têm sido
objeto de estudo de Pauline Kleingeld neste milênio e no final do século XIX por
Thomas J. Schlereth and Albert Mathiez, tendo este último se voltado apenas ao
cosmopolitismo francês. Outros nomes como Karen O’Brien desenvolveram estudos
grandiosos acerca de uma ideia de civilização europeia, contudo não discutem o
cosmopolitismo no sentido do termo trabalhado neste texto. Esta pesquisa destaca as
variantes mais exploradas na concepção kantiana de cosmopolitismo: o moral, o
político e o jurídico.

Os tipos de Cosmopolitismo em Kant

Segundo George Cavallar, o cosmopolitismo é “a crença ou teoria que todos


os humanos, independente de raça, gênero, religião ou afiliação política, pertencem ou
deveriam pertencer a uma única comunidade” (CAVALLAR, 2019, p. 4). Ele pode
adotar três diferentes princípios: um escopo de alcance global, no qual todos os
humanos pertencem a ele (1); um elemento de normativa universal, no qual todos os
humanos desfrutam de igual status moral e compartilham certas características
essenciais (2) e o foco nos indivíduos, não nas nações tribos ou povos (3); portanto,
esta comunidade global deve ser cultivada e promovida, a fim de tentar compreender
culturas diferentes de suas próprias. Os discursos contemporâneos implícita e
explicitamente costumam distinguir diferentes tipos de cosmopolitismo.
O cosmopolitismo moral pode adotar diferentes formas dependendo de como
se vê a natureza da moralidade e a raiz desta visão é encontrada nos antigos cínicos3
(no século IV a.C.) e nos estoicos (III a.C.) – de acordo com os primeiros seria mais
uma teoria positiva e crítica às convenções da época, para os seguintes, todos os
humanos deveriam ser considerados concidadãos e vizinhos, mas estes não se
dispuseram a propor reformas da corrente ordem política mundial. Portanto, refere-se
a uma cidadania moral em uma comunidade moral, o que difere de uma cidadania
política em um estado transnacional e esta noção é central no pensamento do
cosmopolitismo moral alemão do século XVII, ela consiste em cumprir o dever moral
da melhor maneira possível. Essa é uma visão kantiana e outro contemporâneo
representante deste cosmopolitismo moral é o romancista e editor Christoph Martin
Wieland (1733-1813), um dos intelectuais alemães mais influentes da época que

3 Inspirado por Sócrates, vale destacar a frase de Diógenes, quando foi questionado de onde
veio e respondeu: “Sou um cidadão do mundo [kosmopolitês]” (Diogenes Laertius VI 63), por
identificar-se não como um cidadão de Sínope, mas um cidadão do mundo.

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

combatia o nacionalismo local, mas não propunha reformas radicais nos cenários
políticos internacionais. Compartilhava a visão de Kant, de que os esforços
cosmopolitas deveriam se voltar a reformas e não a revoluções. A ideia central nos
direitos humanos cosmopolitas (cosmopolitismo moral) é que existem direitos e
deveres universais, sendo que estes não deveriam se limitar em escopo, ou seja, eles
deveriam ser aplicados a todos os seres humanos.
Se todos os humanos se qualificam como cidadãos da comunidade moral e a
respectiva natureza desta moralidade, são essas as questões que diferem os
cosmopolitas morais. Entretanto, concordam com a igualdade moral de todos os
humanos como objeto de interesse moral concomitante ao ideal de imparcialidade.
Veem nossas obrigações morais com extensão além das fronteiras de uma nação e não
comprometidas com um ideal político remodelando a ordem mundial.
Todavia, a expressão “cidadão do mundo” no sentido literal volta-se a uma
ordem política e jurídica do mundo todo. Visão, esta, que constitui os
cosmopolitismos: político e jurídico, que veremos a seguir.
Alguns filósofos do final do século XVIII incluíram ao seu cosmopolitismo
moral, uma teoria política que defende uma federação de estados, entre eles Immanuel
Kant, Johann Gottileb Fichte e Friedrich Schlegel. Com eles, a ideia uma federação
internacional cosmopolita surge em uma versão4 forte e outra mais suave. A defesa de
uma linha mais tênue é a de Kant, que defende a formação de uma liga de estados sem
poder coercivo. As mais fortes ficam com Fichte – estabelecer uma liga com autoridade
para se fazer cumprir a lei federal – e Schlegel – com o ideal romântico de uma
democracia não coerciva da república mundial das repúblicas.
Kant acrescenta ao seu cosmopolitismo moral, a teoria política cosmopolita.
Em 1784, na obra Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita, acreditava em
uma visão cosmopolita de mundo composto por estados formando uma federação,
algo similar a uma comunidade civil de nações, submetidas a leis comuns e autoridade
que se fizesse cumprir às leis. Posteriormente, em À paz perpétua (1795), argumentava
ainda que os estados deveriam se submeter à lei comum, mas unindo-se a uma liga de
estados na promoção da paz. Com isso, foi criticado, sendo tido como inconsistente,
especialmente por negligenciar a possibilidade de um estado transferir somente parte
de sua soberania ao nível federal, ou seja, apenas a parte relativa às suas relações entre
si, mantendo a soberania nos assuntos internos. Tais críticas vinham principalmente
de Fichte e Schlegel, que assim como Kant se opunham a uma única nação-estado, em
que todos os indivíduos na terra estariam a ela submetidos.
Fichte alegava a necessidade de se estabelecer um estado de estados com
coerção e Schlegel a não coerciva república de repúblicas, mas em Fundamento do Direito
Natural (1796), Fichte abandona a ideia de estado de estados em favor da “liga” de
nações. Passa a afirmar que os estados não devem ser forçados a se juntar à federação,
contudo mantém-se a favor de poderes coercivos na “liga”. Para Fichte, se um estado

4 Referimo-nos aqui ao grau de coesão interna das federações dos estados exigidos nessa teoria.

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

viola um tratado ou se recusa a reconhecer outro estado da liga, esta é uma razão para
guerra. Por conseguinte, a liga deve manter uma posição de fazer cumprir a lei pela
guerra armada ou ter a opção de se armar quanto necessário.
O não hierárquico estado-nação de Schlegel, composto de repúblicas livres e
igualitárias, é o ideal da república de repúblicas e qualifica a versão do cosmopolitismo
federativo internacional. Esse não é o único tipo de cosmopolitismo político, outra
variante é a validade normativa de um particular conjunto de direitos humanos que,
em termos kantianos, chamamos de “direito cosmopolita”.
Kant foi provavelmente o primeiro a introduzir o direito cosmopolita, a
categoria de cosmopolitismo jurídico5 como uma categoria especial do direito público,
que teve destaque principalmente nos círculos kantianos até o início do século XIX.
Segundo Kant, o direito internacional trata das leis entre os estados, em
contraste ao direito cosmopolita, que regula a relação entre estados e indivíduos de
diferentes nações, na medida em que suas relações não são reguladas por tratados
legítimos entre tais estados. Em À paz perpétua, o cerne do cosmopolitismo jurídico
afirma que estados e indivíduos têm o direito de tentar estabelecer relações com outros
estados e seus cidadãos, mas não o direito de entrar em território estrangeiro. Estados
têm o direito de recusar visitantes, mas não violentamente e não resultando em suas
mortes. Para George Cavallar, o cosmopolitismo político convencionalmente defende
uma espécie de ordem global baseada em uma regulamentação jurídica internacional,
muitas vezes tomando partido de uma federação mundial ou um estado mundial.
O cosmopolitismo jurídico está relacionado ao comércio internacional de um
modo mais amplo, também ao cosmopolitismo econômico, e inclui qualquer forma de
comunicação, interação, troca ou negócios além das fronteiras. No século XVII, esse
cosmopolitismo econômico (ou comercial) indicava que o mercado econômico deveria
se tornar uma esfera global de livre comércio e seus principais expoentes foram Adam
Smith, junto a outros intelectuais do iluminismo escocês, destacando também o alemão
Dietrich Hermann Hegewisch. Todavia, recentemente o intercâmbio comercial
irrestrito por intervenções estatais foi atacado como um neoliberalismo e o
cosmopolitismo econômico clássico foi reformulado de um modo que inclui
elementos do cosmopolitismo moral e político.

Considerações finais

Um novo tipo de cosmopolitismo surge a partir destes mencionados


anteriormente no texto, conforme Ulrich Beck, seria um “pensamento global”. Esta
forma de pensar seria denominada de “cosmopolitismo epistemológico”
(CAVALLAR, 2019, p.5), trata-se de uma orientação cognitiva, tendo como teor

5Embora autores que defendem o cosmopolitismo jurídico, também defendam o político:


cosmopolitismo federativo internacional, o inverso não acontece.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

central a imparcialidade. Nela, há uma predisposição que nos leva a uma abertura em
relação aos outros e uma maior recepção à pluralidade.
Kant, sobretudo, defendia uma teoria moral cosmopolita, a qual levava o
cosmopolitismo a muitas direções. Além do aspecto moral do cosmopolitismo, como
uma atitude baseada na ação (não passiva), o filósofo desenvolveu as dimensões
política, econômica e cultural da cidadania mundial, bem como elaborou os
dispositivos necessários a uma instituição global, a fim de realizar uma genuína
“condição cosmopolita” (KLEINGELD, 2012, p.3), mesmo não sendo o único a
promovê-la em sua época.
Os diferentes tipos de cosmopolitismo não se excluem, em verdade estão inter-
relacionados. A complexidade do cosmopolitismo do século XVIII ainda não foi
completamente explorada. Durante os séculos XIX e XX houve um aumento
substancial do nacionalismo, todavia houve também ondas de cosmopolitismo que
levaram, por exemplo, à criação da Liga das Nações e das Nações Unidas, bem como
à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nas últimas décadas o cosmopolitismo
parece estar em ascensão novamente, a rica variedade de perspectivas cosmopolitas
que brotaram na Alemanha dois séculos atrás, merecem renovada atenção para ambos:
iluminar o contexto histórico do cosmopolitismo e apontar a diferentes formas que o
cosmopolitismo pode assumir.
Defensores e críticos do cosmopolitismo concordam com uma forma de
universalismo. É a visão que todos os humanos compartilham sobre certas
características que unem, ou deveriam uni-los em uma ordem global que transcende
fronteiras e garante sua designação de um cidadão do mundo.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

FEUERBACH – EM VISTAS DO HOMEM INTEGRAL

Arlei de Espíndola1

Resumo: O modo de fazer justiça a Ludwig Feuerbach está em ler seus próprios textos
e seguir as diretivas que ele apresenta, daí dever-se-á produzir um outro entendimento
acerca de sua obra, havendo de reconhecer seu mérito. Do contrário, está-se amarrado
a preconceitos, entendendo-o enquanto um autor menor, simples ponto de passagem
entre Hegel e Marx, retirando-o a possibilidade de trazer algo novo no sentido teórico,
ficando-se sem poder minimizar seu ateísmo; esse último, malgrado exista, é passível
de uma ponderação, pois distancia-se de algo que se revela absoluto, uma vez que o
desejo do filósofo é ver se afirmar o homem, reconhecendo o conjunto potencial de
sua humanidade.

Palavras-chave: Crítica da religião. Teologia invertida. Razão. Liberdade.


Antropologia.

Considerações Iniciais

Ludwig Feuerbach (1804-1872) é um pensador alemão, contemporâneo, pós


hegeliano, do começo do século XIX, não suficientemente conhecido do público
brasileiro, que impõe alguma dificuldade, aliás, a seu leitor empenhado de modo sério,
naquele contato inicial com sua obra na totalidade, visando estudá-la, que se destaca
com a Essência do cristianismo, publicada em 1841, em Leipzig, na Alemanha. Isto chega
a levar, não raro, ao questionamento: compensa gastar energia e tempo, manuseando,
com afinco, num primeiro momento, seus tantos textos?
Pois fato é que, após alguma insistência, se começa a encontrar, entretanto, o
sentido, passando-se a compreender melhor, então, que sua leitura agrega, é
importante, faz-se necessária, tendo sua obra assistemática, entrecortada por
aforismos, propósito de indicar uma ruptura, uma quebra, significativa, no quadro da
tradição, sugerindo um novo ponto de partida. Para esse elemento aparecer, com o
qual podemos avistar o florescimento de sua parcial originalidade, é preciso acessar,
via de regra, seus próprios textos. Nisto, também, pode-se apreender, assim, o caráter
parcial e relativo de seu ateísmo, mesmo não deixando este de existir.
1. Feuerbach manifesta interesse, de início, no seu percurso formativo, pelos
assuntos “religião” e “teologia” e tudo aquilo que esteja com isso relacionado. É com

1Professor Associado do Departamento de Filosofia da UEL. Mestre e Doutor em Filosofia


pela Unicamp. Pós doc. em Fil. na PUC/RS. Este texto consiste em divulgação parcial da
pesquisa cadastrada na PROPPG/UEL sob o nº 10834. E-mail: earlei@uel.br;
earlei@sercomtel.com.br

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

o tempo que vai se aproximar e mesmo conceder prioridade, na agenda de trabalho, à


ciência, à antropologia, à filosofia, etc. Sua questão maior é encontrar um novo
fundamento para o pensar, motivo pelo qual não se incomoda em parecer um homem,
um pesquisador, monotemático; o que visa, sim, Feuerbach, é a verticalidade das ideias,
estabelecer algo de inédito no percurso, deixando de se mostrar pobre, sem clareza,
ainda recebendo a pecha de autor secundário, filósofo menor. Aprofundando-se em
discutir a temática religiosa, teológica, e da filosofia idealística, abstrata, que exerce
supremacia no seu tempo, consegue desenvolver e apresentar sua maior contribuição
inicialmente, fazendo-a associada a seu nome, quando empreende a crítica,
reconhecida por Marx, da dura alienação religiosa.
Vista ao centro, é algo que se dá quando deixa de notar que a figura de Deus
seria obra sua, sendo ele, antecipando ação de mecanismos inconscientes, tais quais
indicariam, depois, Freud, o pai da psicanálise, acometido por uma estima pessoal
baixa, ruim, negativa, dando ao ser superior, o ente transcendente, este ar de perfeição,
de intocabilidade.
2. Nossa questão aqui é que se tem diferença ao buscar compreender essa
verdade lendo primeiro Marx, ou outro autor, que recepcione o pensamento de
Feuerbach no intuito de se familiarizar com seu feito, sua empresa teórica.
Frequentemente, o que acontece é que o autor aparece preso, fixado, entre os dois
gigantes Hegel e Marx, mesmo que seu engenho não esteja reduzido a servir de simples
ponto de passagem entre ambos.
A cena intelectual é ocupada naquele momento por esses dois grandes
personagens de nossa história, e Feuerbach precisa entender e aproveitar, acreditando
haver o momento certo para as investidas mais decisivas, a ocasião oportuna e acertada
para apresentar suas ideias, que vão se sobressair, ganhando destaque, vale afirmar,
devido este aspecto teórico-crítico. O é de direito reivindicar sua autonomia em relação
a estes autores monumentais, sendo a maneira de fazer, de realizar, este
encaminhamento, lendo seus próprios trabalhos, atentando à cronologia, vendo-a em
separado, o que não é tão fácil, apostando no seu compromisso com suas verdades
que é procedente, sendo que esta leitura, por intermediários, não é nada benéfica.
A história mostra os primeiros esforços de leitura, no sentido de levar ao
reconhecimento do filósofo, apontando para essa necessidade – seja em que país for.
Ilustremos aqui com Henri Arvon (1964), que indica que se render justiça a nosso
pensador implica liberá-lo:

Nisto que concerne certos aspectos de seu pensamento, dos liames marxistas que o
sufocam, a fim de lhe restituir esta relativa independência que ele está no direito de
reclamar, tanto em relação a Marx que o segue, quanto de Hegel que o precede
(ARVON, 1964, p. 19-20. Trad. minha).

Por esta regra, ainda que seja difícil a condição de um leitor parcial, sem muito
ajudar, sem muito contribuir, vê-se as pesquisas atuais criando atribulações e conflitos.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Essas trazem todo o turbilhão das leituras desordenadas, apesar de se encontrar uma
outra organização que introduz um processo mais lento e gradual, sem isolar o fascínio
das descobertas. Então, vale reforçar:

Para que o pensamento feuerbachiano recobre seu ordenamento verdadeiro, antes que
recorrer aos críticos de Marx, tratemos de acompanhá-lo em seus esforços múltiplos
em vistas de assegurar à filosofia de seu tempo um novo ponto de partida (ARVON,
1964, p. 19-20. Tradução minha).

Quando começa a ser lido é encaminhada uma produção maior em torno de


sua obra, gerando naturalmente maior interesse, tendo-se essa justiça melhor firmada.
Na França e na Espanha isso começa a acontecer, portanto, na segunda metade do
século XX; em: Portugal, Brasil, Itália, mais recentemente talvez, sem produzir ainda
todo o efeito que é possível, havendo esta concordância do que seria caro: o foco no
homem, no seu humanismo! Em síntese, a: “paixão de humanidade é [...] o signo sob
o qual [...] estabelece, formula e desenvolve o seu pensamento. Uma paixão polémica,
mas incontornável” (MOURA, 1993, p. 9). Termina esclarecendo então que “a negação
de Deus a que precede é” mesmo em tese essa “afirmação [...] do homem na sua
realidade e medida” (MOURA, 1993, p. 9).
Sem parecer este ateu inveterado, colocando a religião enquanto algo
indispensável, é resgatado deste espaço digno, o homem que aparece, frequentemente,
em condição constrangedora, de nulidade na ordem estabelecida da cultura, a qual não
confere a este ser, o único que é capaz de deliberar, de estabelecer religiões, estas
produções que o elevam, dignificando-o na escalada da vida, terminando por
diferenciá-lo das bestas indomáveis, portanto, que conhecem apenas a ação dos
instintos, sem poder se alargarem.
2.1. A consideração de nosso filósofo a partir, notadamente, das Teses sobre
Feuerbach (1845) editadas por Engels, enquanto apêndice do trabalho retomado, desta
mesma época, mas ajustado ao tempo dele, revela-se complicada então e falseadora da
verdade. Este visava servir enquanto uma homenagem de ambos ao fundador do
“materialismo antropológico” que ele representa, ao final, chamando-se Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, publicado, em sua 1ª edição, no ano de 1886,
três anos após a morte de Marx. Era para ser apenas positivo, mas terminou favorável
e desfavorável pelos ajustes empreendidos, incentivando estes graves prejuízos gerados
pela pressa. Essa produção, de Engels, carregando o citado apêndice, ajuda
favoravelmente a entender que as 11 Teses, apesar de importantes, são posteriores ao
momento em que se justificou refletir sobre a necessidade da homenagem. Neste
momento, começa a deixar de gozar, já, de prestígio e crédito, os quais foram bem
expressivos, ainda que se possa tomar como um tempo passado rapidamente, pois sua
referência incontestável é justamente o lançamento de A essência do cristianismo, nos idos
de 1841. Cabe lembrar, segundo Engels:

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

O entusiasmo foi geral – e momentaneamente todos nós nos transformamos em


‘feuerbachianos’. Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que
ponto se deixou influenciar por ela – apesar de todas as suas reservas críticas – pode
ser visto em A Sagrada Família (1845) (ENGELS, 2016, p. 27).

Com a escrita das 11 Teses, Marx encaminha e apresenta a visão de um homem,


e um pensador, que pretende se afastar da filosofia, denunciando o esgotamento desta,
pois não julga que haja sentido em trabalhar senão em torno da práxis, das
transformações do mundo, único fazer cabível para este, desde um certo momento, a
fim de entabular-se, diferentemente de Feuerbach talvez, uma teoria, compreendendo
já o fator econômico, e a luta de classes que vai ser declarada formalmente, inclusive,
em 1848, enquanto o gerador, na origem, das disparidades mais colossais, junto com o
fator financeiro explicitamente e econômico.2
É certo que o elemento humanista, do caráter, de Marx figura e acopla-se, por
outro lado, no invólucro, que é sugerido por Feuerbach, no livro que se festeja, pela
decretação e o alarde realizado, ao sepultar a teologia, a filosofia especulativa, via a
crítica mais firme até ali da religião, ora decaída, que se empreenderam com o
lançamento de A Essência do cristianismo (1841), este livro maior do autor, penalizado já,
é verdade, mas convencido de suas concepções, de seu pensar, que não pode estar no
todo das Teses sobre Feuerbach.3
A crença tanto de Feuerbach, quanto de Marx, deve coincidir aqui, portanto,
pois “o homem de carne e osso” que é reivindicado representa o ponto de partida de
superação do idealismo, da filosofia especulativa, colocado enquanto propósito.
Transformada em força teológica, abstrata, é representante da velha filosofia, no seu
ápice da tradição, tendo nossa vida maior plenitude com este trunfo frente ao ato
opressor e despótico, frente a falta de espaço concreto no mundo para realizarmos as
possibilidades humanas todas que nós teríamos.
Isto é assentido por Marx, mas é preciso ir ao humanismo feurbachiano para
melhor compreender tal resolução, de inverter os termos que ele fez, que tanto
encantou à época, sendo um chamado para o leitor de hoje: “Teologia é antropologia”.
Compreendo, ao final, que há dois modos de pensamento começando, cada um por
sua vez, seu tempo, a trilhar suas trajetórias autônomas, diferentes, e que uma não é
traduzida pela outra, sendo o prejuízo, inicialmente, quiçá de Feuerbach.

2 Reza o Manifesto em 1848 definindo outra orientação: “A história de todas as sociedades que
já existem é a história de luta de classes” (MARX & ENGELS, 1999, p. 9) Bobbio parece
alimentar ponto de vista semelhante, trazendo-nos importante contribuição. Veja-se:
BOBBIO, N. Nem com Marx, nem contra Marx, p. 162-163.
3 Mondolfo. R. Estudos sobre Marx, cap. I. SP: Mestre Jou, 1967: “O pensamento de Feuerbach

não está apresentado no seu real e genuíno conteúdo e significado. Quem quer que a elas se
atenha, pode crer que a filosofia da práxis [...] é a antítese da posição de Feuerbach. Com isso
se reduz a possibilidade de compreender o processo de formação do pensamento de Marx e
se corre o risco de não entendê-lo exatamente em seus motivos inspiradores e quiçá em seu
significado essencial” (p. 15-16).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

3. O filósofo de Landshut encontra pela frente o desafio de estabelecer em um


ambiente dominado pela expressiva presença nada menos do que de Hegel, como já
se sabe. É orientado, na construção de sua tese de doutoramento, por este grande
homem tido enquanto filósofo oficial do Estado, e na respeitosa Carta anexada à tese
ele já revela, em meio a seus cuidados, na preservação da hierarquia, seu desejo de
ruptura com sua filosofia abstrusa, hermética, abstrata, desconectada da realidade da
vida e do poder de mover mundos.
Alguém que é capaz de abdicar, notadamente, de sua permanência na carreira,
acalentada por muitos, e de consumar uma cátedra na experiência inicial que encontra
espaço para realizar em Erlangen, enquanto professor universitário, algo tão caro à
época, não parece estar a brincar à toa, tendo a convicção sobre seu declarado ateísmo,
sua convicção de que a base da vida é material, embora tenha suas complicações. Para
dizer, com feito, da sua desconformidade com ele e seu idealismo no fortalecimento
da crítica, Feuerbach questiona Hegel sobre a ordem que ele julga correta, pois é o
“ser” certamente, no entendimento do solitário de Bruckberg, que precisa vir antes do
“pensar”. Com esta inversão proposta em 1839 em Para a crítica da filosofia de Hegel,
reforçada, em 1841, com seu gesto fundador produzindo a unidade, diga-se, dos
contraditórios, as coisas todas são florescidas, nascem, no plano material sendo o
aparato teórico e conceitual resultante do esforço que se aplica para a preservação da
memória do vivido, o que não representa exatamente negar o substrato essencial e
substantivo em Feuerbach, até este momento de seu apogeu. Não foi sepultada na sua
pena o esforço, a batalha serena, de preservar e edificar a filosofia, de criar, de fazer
aparecer, um outro humano, requerendo-a nova, mas sendo ainda filosofia, que virá
brotar exato pelo esforço do coração.
3.1. Em 1849 Feuerbach reivindica, considera, sendo ciente do seu ostracismo,
a possibilidade de ter os colegas enquanto objeto, ou promotores, de crítica. Mas o
filósofo sabe o que lhe é alvo de recusa, visto que sua problemática mesmo é a viva
afirmação do homem. E mesmo o saber desenvolvido tem de valer a pena, tem de
implicar no desenvolvimento da “felicidade” do conjunto do gênero humano. Em
vistas dessa meta, deste conhecimento, somos chamados sutilmente e com o cuidado
de estar a ler um personagem importante.
Mesmo que se tenha o tempo das coisas, ainda que a natureza aja sabiamente,
somos impulsionados a buscar mais saber. Ao julgar que a antropologia ou melhor a
teologia, o idealismo, a filosofia especulativa, se resolve na ciência antropológica, não
quer dizer do encaminhamento de uma facilitação do caso. Este texto maior que
inaugura o “materialismo antropológico”, dissolvendo de vez o impasse, e garantindo
que a chave do seu pensamento, na Essência do cristianismo, é a antropologia, assim como
o sensível, coloca os raciocínios em bons termos aquilo que está só em sentido virtual,
que aparece efetivamente existente na escrita, do que precisa ainda fundamentar. Ora,
ateísmo é não apostar no homem, é não valorizá-lo minimamente, e equivocado é se
pensar que não é possível se apresentar se não for firmando o justo lugar de nosso

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

outro texto virtualmente existente, baseado na reivindicação da contradição, da


complexidade, da tensão que não trava o movimento, enquanto componente humano.
A atitude negativa mantém vivo este interesse de ver ecoar o reconhecimento
dos seus pares na oferta de tranquilizá-los. Esse esforço empreendido não chega ao
livro que já se efetivou, e o filósofo cria um diálogo entre ele e um par seu. Tal esforço
de Feuerbach pode ser confundido com quem sequer faz um esforço, mantém um
empenho para se enganar.
Não se vê por certo uma facilitação aqui, pois o quadro presente põe um quase
na mira, fazendo-o um autor importante, criativo. Não fora o comprometimento de
colegas, um outro dado, estes tópicos poderiam lhe condenar, sem absolvição, posto
que é o não feito que cedeu aqui este apoio.
4. Ao dizer que a teologia, em linhas gerais, é antropologia, Feuerbach não quer
pôr o todo da ênfase na parte negativa de a Essência do cristianismo, e também os textos
do ano seguinte, e o outro, desejariam trabalhar com a ideia de que o germe deste
projeto ocupa hoje o centro de interesse. Quer dizer, não é seu ateísmo, fruto da
alienação religiosa que o toca mais, visto que o livro abriga duas partes, uma é a negativa
e a outra positiva, e a primeira confirma a esperança depositada no homem. Estas
“Teses provisórias” e os “Princípios da filosofia do futuro”, somados pela indicação do artigo
que antecipa o título “Necessidade de uma reforma da filosofia” querem alertar para esta
descoberta sem tanta relevância assim.
Mas o caso é que este homem que mantém algo de metafísico, na sua
constituição de humano, pelo contexto em que se encontra, persegue a conexão com
o homem integral cuja existência nunca é totalmente acabada, jamais aparece
totalmente pronta. Trata-se de uma edificação importante, de exercício permanente,
que não isola, não impede, os encargos, dos quais brota o humano mais surpreendente
e de interesse geral, carregando a liberdade do viver e do fazer.
Interessa falar enfim, aqui, deste espaço mesmo da criação, do livro importante
que há para fazer, para completar, dialogando-se sobre algo que vinga a contento, por
exemplo, neste apagar das luzes. Neste contexto, o mundo parece visitado, pois este
está digerindo, ensaiando, projetando, o que está para escrever-se.
Ao propor a inversão e sugerir os conceitos brotando no agir, no fazer
puramente humano, sem sepultar a existência da natureza potencial, essencial,
consuma-se a conduta seguindo a agenda, inicialmente, não na recusa do pensamento,
mas na definição deste novo ponto de partida, ficando claro que o homem passa a ser
considerado e digno de confiança em um fazer dentro do possível dinamizando uma
outra escrita sempre renovada da história. Movido por sua integralidade, desde que
este é tomado enquanto a chave da filosofia, pois é descoberto, só assim, um outro a
cada momento, fazendo-se algo possível.
É a aposta aqui de uma sensualidade emancipada, na interpretação de Alfred
Schmidt (1975), numa sociedade pós-teísta que deve diminuir a ignorância sobre o
humano. Esse não se descobre no isolamento, requer a conexão com outro, requer
alimentação do amor, a consideração do desejo, a presença considerada da

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

corporalidade, a orientação de uma luz que o move mostrando que o próprio Hegel, o
idealismo absoluto, a teologia, sobrevivem indicando qual é o problema eterno, não
resolvido, do ocidente, quando ganhamos esta face de divinos. Nisto pergunto-me
sobre a idolatria do homem, a mitificação do ser de carne e osso, contradição, é certo,
mas, como argumenta Artur Morão (2001), com a intenção de não ser, daí para frente.
5. Distingue-se julgar os limites deste pensamento, lendo-o a partir dos textos
mesmo de Feuerbach, e não pelos preconceitos que se criam no contato de quem o
considera já fora no estágio em que toda a cultura especulativa aparece, mesmo que
por bem pouco tempo, mantém-se sob a sua tutela. Incompreensível, é isso deixar de
ser assim da noite para o dia ali na sociedade. Mesmo que o seja o registro real,
concreto, não deve ser apagado. E quando ele parece se desfazer, o que se dá é a
abertura de um outro caminho, mais plausível, aliás, pois opta por não retroalimentar
a guerra e sim aponta para uma unidade humana saudável, apoiada no ato de alteridade,
de cuidado do outro no básico da vida para viver bem, na atenção ao mundo natural,
sem defender preconceitos, dogmatismos, superfluidades excessivas, mas aceitar que
o espaço público precisa da abertura para o diálogo, para estudar, aprender, projetar
sonhos, movendo-nos dia a dia, reconhecendo que se contradizer não assume um
caráter apenas negativo, mas dele, do conflito incidental, a vida também depende e
deve ser respeitada.
A chave para bem interpretar Feuerbach requer que se entenda que não o
interessa negar absolutamente a religião e que seu propósito não é se fazer um
materialista e ateu inveterado. Muito o importa ver afastar o elemento excessivo da
cultura religiosa falsificada no seu propósito, que perde em vida. Por isso é que pensa
uma reforma da filosofia que encontre seu impulso no agir que se move pela razão, e
a vontade, conectada ao coração, no seu fundamento, que é afetivo, caloroso, raiz
maior do humano que não se robotiza, como se dá na esfera presente de nossos
“imperativos”, feito espécie de ditames, de valores absolutos, assim como faz a própria
tradição que deseja ver negada no sentido do que vale, de nossa parte, todo o desprezo,
quando é carente da desprezível idolatria, mitificação barata, de transformação sagrada,
como se nós carecêssemos de nos conservarmos faltos de energia, de vida, de saúde.
Mesmo que estejamos ante a crítica, o desejo, marcado pelo elemento controverso,
aponta a condenação, mas sinaliza que religião se faz presente, marcando a diferença,
nunca deixando de faltar ao longo dos períodos históricos, das épocas vividas, dos
tempos passados, sendo o clamor que a forma nova da filosofia também possa carregar
seu selo de autenticidade, ligado ao coração, falando sempre vivamente, com a força
que lhe é própria, produzindo a diferença. Lembremos que sempre:

os períodos da humanidade distinguem-se apenas por transformações religiosas. O


movimento histórico só atinge um fundamento onde ele penetra no coração do
homem. O coração não é uma forma da religião, como se houvesse também de residir
no coração; é a essência da religião” (FEUERBACH, 2002, p. 14).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Este humano aqui que se está para desenhar, mantendo este caráter plástico
que o informa em muito do seu contorno, e seu volume no interior que fica para nós,
ir esculpindo, pouco a pouco, desde que aceitemos esta noção e estejamos abertos, até
que a filosofia, nele mesmo, acaba esgotada da mesma forma, também sepultada, em
partes, não no todo, está ali para seguir-se, enterrando-se lá, debaixo do solo mesmo,
o velho, o tradicional, contanto que pusemos ou cultivemos, ali, onde ficou o que ficou,
uma espécie de método, para produzir vida deste homem feito de integralidade.
Nesta pista, o alerta deixado, seriam estas “Teses” e “Princípios”, com o eixo na
criação informada pelo elemento da sensibilidade emancipada, ativada. Aqui estando
por terminar, não sendo suficientes para essa reforma, para substituir aqueles grandes
edifícios conceituais, vale o olhar e a crítica, mas não longe desta seara sem apreço por
inércias e dogmatismos, e saberes standartizados, engessados, mas dispostos ao
exercício do encontro e do amor, ingredientes de vida trazendo surpresas e produzindo
felicidade.
Por isso o protesto feito por Feuerbach, notadamente, contra aqueles que só
sabiam lhe ver enquanto um ateu, ao que respondeu, já passado até o momento destas
escritas por executar, estando-se em 1846, tendo corrido tudo isso que ora foi descrito,
ciente de que sua prioridade era o homem, como é próprio de sua época que é mais
recente:

Quem não sabe dizer senão que não sou ateu não sabe nada de mim. A questão de se
Deus existe ou não, a contraposição entre teísmo e ateísmo pertence aos séculos XVII
e XVIII. Eu nego a Deus. Isto quer dizer em meu caso: eu nego a negação do homem.
Em vez de uma posição ilusória, fantástica, celestial do homem, que na vida real se
converte necessariamente em negação do homem, eu proponho a posição sensível,
real, e, portanto, necessariamente política e social do homem. A questão sobre o ser
ou não ser Deus é em meu caso unicamente a questão sobre o ser ou não ser do
homem (FEUERBACH apud ARRAYÁS, 1993, p. XXX)

Fica muito claro que Feuerbach prioriza, portanto, seu desejo de atender o
problema humano, livrando-o dos males da religião, mas gerados pela teologia e a
filosofia especulativa. Parece que, sem o querer, vem divinizar o humano, e termina
não fugindo daquela contradição de fazer do homem um Deus, de idolatrá-lo, sendo
que é isso que tratava de fugir, de deixar de fazer. E não estamos diante de algo que é
possível, pelo menos se pode vir e certificar com a avaliação daquilo que ele mesmo
produziu.

Considerações Finais

Espiritualizar-se, projetar mundos, sem cair nestas armadilhas não é tão simples
como poder-se-ia imaginar. Agora resolver o problema da teologia com a redução ou
inversão antropológica poderia significar um sinônimo de simplificação do problema

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

colocado, haja vista que este humano é construção permanente. A substância, a carga
potencial integral do humano, só pode ir se fazendo visto que este, por certo, é mais
do que um ser de carne osso, tendo deixado de ser conceito, de ser só um braço do
corpo, de ser só razão, etc. É verdade, para terminar, que:

O atrativo que hoje oferece a filosofia feuerbachiana deriva de que seu centro o
constitui ‘a fé e o amor pelo homem; não pelo homem de razão do Iluminismo e nem
sequer pelo espiritual do Romantismo idealista, senão pelo homem de carne e osso
que em sua mesma natureza tem o princípio de um íntimo desenvolvimento pelo
homem que tem seu equilíbrio dinâmico na infinita, não apagada sede de felicidade,
para a qual tende com toda a força de seu sentimento e de seu desejo. A liberação
deste homem dos muitos vínculos que o encadeiam é o problema central do
pensamento de Feuerbach, que por causa destes vínculos tem sofrido dolorosamente
(BANFI apud FEUERBACH, 1971, p. 7)

É nítido o fascínio que vem gerar o homem colocado no foco das atenções,
mas percebe-se que dedicar nossas fichas a atender seus anseios de realização, de
alcançar uma vida feliz, é diferente do que lidar com a complexidade, o mistério que
este em verdade significa. É claro que soma a presença do leitor que vem reforçar sua
exegese dizendo da centralização da escrita no homem produzindo esta fratura no
pensar contemporâneo, dando forma ao materialismo fazendo complexo este ateísmo
aí delineado porque o homem não se tornou mais familiar, e o conhecimento dele é
importante não resultando deste simples ato negativo, reprovador, do que está
estabelecido, colocado, na religião cristã, por exemplo, na filosofia especulativa, etc.
Voltarmos nossa atenção para o estudo da religião, finalmente, que é
antropologia e depois projetar a edificação de uma filosofia nova ou reformada ou,
quem sabe, estabelecer a reforma da filosofia que se faz necessária, envolvendo
misturar, aqui, ingredientes religiosos na presente formação. Ora, o que se tem, seja
enquanto diagnóstico, seja enquanto prognóstico, é toda uma variação, um conjunto,
de bens e de males conexos que se mostram. É certo então que Feuerbach não propõe
fazer nas suas investidas, de acordo com Tomasoni, uma “simples negação da religião,
mas mira também” recuperar sempre “os valores inscritos na religião” (TOMASONI,
2015, p. 22).
Ao penetrar no universo de estudos dos assuntos e posições do cristianismo,
no caso específico dos trabalhos em torno de A essência do cristianismo, que nada mais é
que o carro-chefe de Feuerbach, tanto mais “percebe que o homem”, vale dizer, “é
complexo e que não é adequadamente compreendido pela filosofia idealística”
(TOMASONI, 2015, p. 35). Nutrindo todo este desejo de fazer-se entender, o que se
conclui é que a leitura direta dos textos de Feuerbach, cria para nós outras e novas
demandas de trabalho, e centraliza o foco em outros temas, esgotando aquela ideia de
pobreza teórica sepultando, de vez, a noção de um Feuerbach preso entre Hegel e
Marx, ou fazendo-se simples ponto de passagens entre eles, justificando essa atenção
dispensada.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

A RECEPÇÃO DE RECOMENDAÇÕES QUANTO AO


TRABALHO DECENTE NAS DECISÕES JUDICIAIS
REFERENTES AO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DE
2016 E 2017: UMA HIPÓTESE NEGADA

Baruana Calado dos Santos1

Resumo: Objetiva-se apresentar resultado de pesquisa de mestrado que buscou


verificar a influência das recomendações sobre trabalho decente, veiculadas pelo
Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento na fundamentação das decisões judiciais brasileiras relativas ao
trabalho escravo, nos anos subsequentes à referida publicação. A partir da sociologia
histórica processual e da teoria jurídica da transnormatividade, a análise hermenêutica
histórica das decisões revelou que suas fundamentações não acolhem as
recomendações do PNUD - nem tampouco da OIT, mentora da Agenda do Trabalho
Decente. As decisões judiciais ainda se ocupam, essencialmente, em definir o conceito
de trabalho escravo, o qual já foi muito debatido e definido tanto no âmbito
internacional quanto no doméstico, e demonstram pouca eficácia na coibição do crime
ao estipularem baixo valor indenizatório para os que se utilizam de mão de obra
escravizada. Ao destacar a importância das estratégias sugeridas pelo PNUD, pela
garantia da expansão do trabalho decente, sob enfoque da perspectiva do
desenvolvimento humano (não só no Brasil, mas globalmente) para o combate ao
trabalho escravo, busca-se indicar caminhos para sua aplicabilidade como comandos
de otimização na prática judicial brasileira.

Palavras-chave: Relatório de Desenvolvimento Humano/RDH. Trabalho Decente.


Trabalho Escravo. Decisões Judiciais Brasileiras.

Introdução

Atento à preocupante escalada da precarização mundial das condições de


trabalho, o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do PNUD, de 2015, traz
à baila o tema do trabalho sob o enfoque da perspectiva do desenvolvimento humano,
a fim de que o trabalho, tomado no sentido multidimensional do trabalho decente, seja
um meio de ampliação das capacidades das pessoas.
Com base no conceito de trabalho decente produzido no interior da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), o RDH estipula o trabalho forçado, o

1Professora no curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG; mestra


em Ciências Sociais; graduada em Direito e Ciências Sociais na Universidade Estadual de
Londrina – UEL. E-mail: baruana.cs@gmail.com.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

trabalho infantil e o realizado por vítimas de tráfico humano como tipos de trabalho
que restringem as opções de vida da pessoa, impedindo qualquer possibilidade de
desenvolvimento humano, porquanto violam direitos humanos, remuneram de forma
injusta, destroem a dignidade humana, subtraem a liberdade, a autonomia e a segurança
(PNUD, 2015). O sintagma “trabalho forçado” é utilizado pelo relatório para apontar
uma das formas que prejudicam o desenvolvimento humano, cuja forma mais cruel
seria a escravidão e a servidão por dívida a relação laboral mais comum.
Com isso, toma-se por parâmetro o fato de que o contraponto do trabalho
escravo é o trabalho decente, fundamentado nos princípios relacionados a uma vida
mais justa e digna do trabalhador, na qual haja oportunidades para mulheres e homens
terem acesso ao trabalho digno, produtivo e realizado em condições de liberdade,
equidade, segurança e dignidade humanas, de acordo com os objetivos estratégicos da
OIT (a promoção dos direitos fundamentais no trabalho, o emprego, a proteção social
e o diálogo social).
Para fins do estudo, ampliou-se ao máximo o conceito de trabalho escravo,
compreendendo-o, consoante o exposto por Rezende e Rezende (2013), “trabalho
escravo” é aqui uma expressão usada em sentido lato para fazer referência a toda
relação de trabalho que implique em uma ou mais das seguintes situações:
a) trabalho para o qual o trabalhador não se tenha oferecido voluntariamente;
b) trabalhador vítima de sequestro e cárcere privado; c) trabalhador induzido a
deslocar-se até o local da realização do trabalho por falsas promessas; d) trabalhador
submetido à coação moral, psicológica e/ou física, como quando é forçado a
permanecer trabalhando por ameaças de morte ou punição física, ou por suposta dívida
com o empregador, o que configura servidão por dívida; e) trabalhador submetido a
condições degradantes, ou seja, que coloquem o trabalhador em risco da sua saúde
física e mental, retirando-lhe a dignidade de pessoa; e f) trabalhador submetido ao
trabalho exaustivo, seja pelo aumento da jornada além do permitido por lei, seja pela
estipulação de metas de difícil alcance e exercício de trabalho extenuante quando o
pagamento é feito pelo resultado.

Fundamentação do problema

No Brasil, o trabalho escravo contemporâneo encontra solo fértil na realidade


brutalmente desigual, concentradora de terra, renda e poder. A leitura que a ONU
realiza das ações do Estado brasileiro quanto ao combate ao trabalho escravo, sobre o
qual há tanto avanços quanto retrocessos (ONU, 2016), é um exemplo importante para
que se perceba a existência da simultaneidade de processos civilizacionais e
descivilizacionais, de acordo com o pensamento de Norbert Elias (1993, 2011).
Os processos civilizacionais devem ser compreendidos como aqueles que são
norteados por ações e procedimentos que objetivam dotar o Estado de direito, afirmar
a democratização das relações sociais, promover a geração de canais de participação e

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

de comunicação entre todos os grupos sociais. Em contrapartida, os processos


descivilizacionais assentam-se em comportamentos e atitudes que avalizam a
manutenção do desequilíbrio de poder no Brasil, “das exclusões, das desigualdades
sociais extremas, da inobservância das leis e do não reconhecimento dos direitos de
uma parte da população brasileira” (REZENDE; REZENDE, 2013, p.7).
Ao mesmo tempo que se percebe o esforço para viabilizar formas eficazes de
combate ao trabalho escravo por meio da mobilização de diversos setores do Estado
e de diversas entidades da sociedade civil (movimento civilizacional), também existem
ações que desvirtuam tal tentativa (movimentos descivilizacionais). Um dos
parâmetros que podem servir de auxílio na mobilização em prol do movimento
civilizacional são os RDHs, compreendidos como “uma forma de pressionar os
Estados nacionais a cumprir o que foi acordado nos tratados, convenções e pactos
internacionais” (REZENDE; REZENDE, 2013a, s/p).
A abordagem que se apresentou como mais adequada para pensar a relação
normativa entre as recomendações do PNUD e as decisões judiciais foi a de situar tais
recomendações na esfera dos comandos de otimização, a partir da teoria de Alexy. Os
RDHs veiculariam princípios jurídicos já resguardados no ordenamento interno
brasileiro. Assim, o trabalho decente estaria apto a se firmar como um norteador de
maximização do princípio da dignidade humana no caso concreto de trabalho escravo.
Assim, com o intuito mais amplo de avaliar os reais alcances da influência de
normativas internacionais no campo doméstico, questiona-se a postura do Judiciário
brasileiro frente ao combate ao trabalho escravo no que toca à aplicação do conceito
de trabalho decente nos termos presentes no RDH de 2015 e outros documentos de
circulação global.

Metodologia

As fontes documentais (relatórios e decisões judiciais) aqui utilizadas são


produzidas e analisadas no âmbito do mesmo momento histórico, o que interfere no
modo como são lidas, pois é necessário que o pesquisador consiga um distanciamento
suficientemente adequado para olhar o documento na processualidade histórica que o
constitui.
Por essa razão, recorre-se à hermenêutica-histórica, como sugere Rezende
(2015; 2017) para análise dos RDHs, pois combina a hermenêutica de profundidade
de John B. Thompson com a análise dos jogos configuracionais de Norbert Elias, que
pressupõe a atenção ao processo histórico no qual se estabelecem. A análise dos
relatórios na perspectiva hermenêutica é possível porque “ela está voltada para a
compreensão do significado construído, por seus elaboradores, acerca das ações e
procedimentos que possam, embora supostamente, levar ao desenvolvimento
humano” (REZENDE, 2015, p. 36).
Primeiramente, destaca-se o pressuposto de que não é possível apreender o

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

objeto de modo definitivo. Diferentemente, o conhecimento gerado, que possibilita


aproximações à realidade, é provisório e sujeito à revisão, mas, ainda assim, é “um
conhecimento que pode e deve ser continuamente produzido a fim de contribuir para
a busca por uma sociedade política, econômica e socialmente menos desigual”
(VERONESE; GUARESCHI, 2006, p. 86).
O levantamento das decisões analisadas ocorreu no endereço eletrônico do
Tribunal Superior do Trabalho (TST), órgão de última instância da Justiça do Trabalho.
A partir do TST, buscou-se chegar, no caso da ausência de acórdãos referentes ao
mérito do litígio, às decisões das instâncias inferiores, que abordaram o mérito, pelos
relatórios presentes nos acórdãos.
Restringiu-se o período de busca de decisões realizadas a partir de 2016, ano
posterior ao da publicação do RDH de 2015. Dentre as opções de busca, optou-se pela
dos acórdãos na “consulta unificada”, a partir, após vários testes, do conjunto de
termos <“ação civil pública” E (“escravo” OU “trabalho forçado”)>.
Os acórdãos encontrados no sistema de busca disponível no site do tribunal
foram 125. No entanto, na clivagem para verificar em um mesmo acórdão, apurou-se
a existência das expressões “escravo” ou “trabalho forçado” e “ação civil pública”.
Constatou-se nas ementas que a quantidade caiu para 48 acórdãos, considerando-se os
casos em que também apareceram sintagmas como “trabalho degradante” e os
referentes à “ação coletiva”.
Ainda numa busca de caráter quantitativo, por meio do auxílio do software
ATLAS ti, verificou-se que das 48 decisões judiciais, ao menos uma vez, 3 citaram o
“trabalho digno” e nenhuma o “trabalho decente”; 19 utilizaram a expressão “trabalho
escravo”; 18, “condições análogas às de escravo”; 10, “condição análoga à de escravo”;
8, “trabalho análogo ao de escravo”; 3, “condições de trabalho análogas às de escravo”;
1, “condição análoga ao trabalho escravo”; 1, “função análoga ao trabalho escravo”; 1,
“condição similar ao trabalho escravo”; e 1, “situação análoga à de escravo”. Embora
a maioria dos acórdãos empregue declaradamente a expressão “trabalho escravo”, a
ampla variedade de designações, para se referir ao mesmo fenômeno em um universo
de apenas 48 acórdãos, demonstra que, também no âmbito judiciário, há ausência de
consenso sobre esse assunto.
Em decorrência desse levantamento, observou-se que das 48 decisões judiciais,
5 se destacaram pela quantidade de vezes que abordaram o tema. Examinando-se a
classificação oferecida pelo próprio ATLAS ti, constatou-se que as 48 decisões judiciais
foram designadas como P1, P2, ..., P48 para facilitar sua menção. Dessa forma, como
estudo de casos, foram analisadas as cinco decisões que se apresentaram mais
expressivas para o objeto de estudo, quais sejam: P5, P8, P32, P36 e P43.
O P5 refere-se ao Processo nº TST-AIRR-101800-82.2008.5.09.0562; o P8, ao
Processo nº TST-E-RR-125985-97.2009.5.12.0003; o P32, ao Processo nº TST-AgR-
CorPar-27202-05.2015.5.00.0000; o P36, ao Processo nº TST-AIRR-133-
64.2014.5.23.0041; e o P43 referência ao Processo nº TST-ED-ARR-53100-
49.2011.5.16.0021. O P32 é parte do processo em andamento referente à Ação Civil

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Pública nº 10842-83.2014.5.03.0149 e requereu análise de dois outros acórdãos: o


P32.1, da 2ª Vara do Trabalho de Poços de Caldas, Autos nº 10842-83. 2014.5.03.0149,
e o P32.2, Processo do TRT 3ª Região nº 0010842-83.2014.5.03.0149 (RO). Do
mesmo modo, o P43, tornou necessário analisar o P43.1, Processo nº TST-ARR-
53100-49.2011.5.16.0021.

Resultado e Discussão

Aqui, serão apresentados os resultados da análise do P5 e do P43.


O P5 diz respeito à avaliação que o TST faz com relação à tipificação de
“trabalho degradante”. O MPT havia ajuizado ação civil pública perante a Justiça do
Trabalho caracterizando, como “trabalho análogo ao de escravo”, o trabalho nas
condições às quais os trabalhadores da Usina Central do Paraná S.A. estavam
submetidos. A finalidade dessa ação era libertar a totalidade dos empregados por meio
da declaração de rescisão indireta dos contratos de trabalho.
Em primeira instância, reconheceu-se a violação de direitos trabalhistas quanto
à a) ausência de condições básicas de higiene, o que incluía a ausência de sabão para
lavar as mãos antes das refeições, a ausência de lugar apropriado para as refeições e a
falta de banheiros adequados; b) fornecimento de transporte precário aos
trabalhadores rurais; c) ausência de correto fornecimento e substituição dos
equipamentos de proteção individual; d) desrespeito às normas de manejo dos
agroquímicos, com risco da saúde dos trabalhadores; e e) atraso reiterado de salários
dos empregados e o não-depósito das contribuições previdenciárias e FGTS. Esta
última situação, porém, já teria sido sanada em ação judicial própria.
No entanto, a Justiça do Trabalho decidiu que era controvertido enquadrar as
situações comprovadas pelo MPT como condições análogas à de escravo, pois, em seu
entendimento, elas não configurariam “condição de trabalho degradante”.
De acordo com a Corte, para a caracterização de condição análoga à de escravo
deveria haver a apuração de trabalhos forçados; jornadas exaustivas; condições
degradantes de trabalho; ou restrição à locomoção do trabalhador. No caso sob análise,
estavam ausentes as hipóteses de trabalho forçado, jornada exaustiva e restrição a
locomoção. Faltaria averiguar se a situação na qual se encontravam os empregados
poderia ser considerada como “condição degradante de trabalho”. A Corte entendeu
que não, porque deveria ser considerado, como de escravo, “somente o trabalho
extremamente degradante realizado quando não há qualquer condição de moradia,
alimentação e higiene e ainda, quando ocorram atos de coercitividade ou alguma forma
de dependência econômica, ainda que haja liberdade de ir e vir” (BRASIL, 2017, p. 1 -
2, grifo nosso).
Ou seja, na visão da Corte, as violações cometidas pelo empregador não
reuniriam todos os requisitos necessários para tipificá-las como condições de trabalho
degradante. Não teria sido trazido pelo MPT a hipótese de dependência econômica

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

dos trabalhadores, uma vez que “os empregados recebiam salários efetivamente, ainda
que houvesse algum atraso” (BRASIL, 2017, p. 2). Da mesma forma, não teria sido
constatada “situação absolutamente precária de moradia, tanto que, com relação aos
empregados que moram na sede da Usina, o Ministério Público do Trabalho se absteve
de pleitear a rescisão do contrato de trabalho, eis que era essencial à sua sobrevivência”
e “que os casos em que se constatou situação degradante, os trabalhadores dormiam
em barracas” (BRASIL, 2017, p. 2).
Esse entendimento foi confirmado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Na decisão do P5 consta que a conduta da reclamada que deixa de zelar pela saúde e
dignidade de seus empregados configura ato ilícito por omissão, e não trabalho em
condições análogas à de escravo, por submeter os empregados a trabalho degradante
quando os privou de locais adequados para a satisfação das necessidades fisiológicas
durante a jornada de trabalho (banheiros e refeitórios) e de transporte adequado, entre
outros.
Com isso, o TST endossou o entendimento dado pelo TRT, para quem “por
mais que se constate irregularidades e desrespeito à dignidade dos trabalhadores no
que se refere a condições de higiene, transporte e alimentação, são condições que não
se enquadram como extremamente degradantes, a ponto de se equiparar à moderna
escravidão” (BRASIL, 2017, p. 8, grifo nosso). Para sustentar seu entendimento, o
TRT se utilizou das delimitações próprias do trabalho forçado do Relatório Global da
OIT, do qual Suguimatsu (2009) extrai o seguinte:

Não obstante a proximidade dos conceitos e as comuns imprecisões terminológicas,


o Relatório Global permite algumas conclusões: a) ‘trabalho forçado’ é uma expressão
genérica, que abrange algumas práticas abusivas de apropriação do trabalho alheio; b)
seus elementos definidores são a imposição, sob ameaça de punição (que vai além da
punição penal) e a natureza involuntária do trabalho; c) São formas de ‘trabalho
forçado’, a ‘escravidão’ (estado ou condição de uma pessoa sobre a qual se exerce
poder decorrente do direito de propriedade, em caráter permanente) e a ‘condição
análoga a de escravo’ (que abrange servidão por dívida e da gleba, tráfico de pessoas,
entre outras); d) ‘condições extremamente precárias de trabalho’ podem ou não caracterizar
‘trabalho forçado’, dependendo da natureza e gravidade dos mecanismos coercitivos empregados.
(Suguimatsu, 2009, p. 36, grifo nosso)

Por essa citação se nota que o TRT adverte para a suposta distinção entre o
conceito penal para o trabalho análogo à condição de escravo e o conceito de trabalho
degradante. Neste não haveria “o atendimento às condições mínimas de proteção,
[para evidenciar], na menor das hipóteses, desprezo pela vida humana” (BRASIL,
2017, p. 9 - 10). O trabalho degradante

[...] pode ser compreendido como aquele em que não há o respeito mínimo às
obrigações decorrentes do contrato, não se confundindo com o trabalho análogo à
condição de escravo, que o pressupõe. Todo trabalho em que o ser humano é

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desprezado nos valores mínimos de sua dignidade deve ser como tal considerado.
(BRASIL, 2017, p. 3)

Fazendo essa distinção, o TST afirma não ser possível caracterizar o caso citado
como de trabalho análogo à condição de escravo, nos termos do direito penal, mesmo
que evidenciado “o inadimplemento das obrigações mínimas do contrato, que atinge
de igual modo, o patrimônio imaterial do empregado” (BRASIL, 2017, p. 3).
No caso do P5, desde a primeira instância, ficou decidido que a denúncia
oferecida pelo MPT não se adequava ao trabalho análogo ao de escravo. Esta decisão
foi confirmada tanto pelo TRT da 9ª Região (perante o qual o MPT interpôs Recurso
de Revista e obteve negativa) quanto pelo TST (que analisou o Agravo de Instrumento
interposto pelo MPT e negou-lhe provimento, conforme o P5).
Pelo exposto no acórdão, para haver condição análoga à de escravo, não basta
o trabalhador estar submetido a trabalho degradante, ou seja, em condições que
minimizem a sua segurança e degradam a sua saúde física e mental (Rezende e Rezende,
2013), ele precisa estar submetido a trabalho extremamente degradante, isto é, “quando
não há qualquer condição de moradia, alimentação e higiene e, ainda, quando ocorram
atos de coercitividade ou alguma forma de dependência econômica” (BRASIL, 2017,
p. 8). Assim, não basta que o trabalhador tenha sua dignidade aviltada, ele precisa ter
sua dignidade violada em várias esferas conjuntamente. Reproduz o acórdão do TST,
afirmado pelo TRT:

não há, na situação em foco, condição análoga à de escravidão por trabalho


degradante, eis que este requer a presença de situações extremas de ausência do
mínimo à prestação laboral, tanto que a maioria dos trabalhadores escolhem, livremente,
continuar trabalhando para a ré, ainda que em mesmas condições. (BRASIL, 2017, p. 8, grifo
nosso)

Ao tomar por base o fato de a maioria dos trabalhadores “escolherem,


livremente, continuar trabalhando para a ré, ainda que em mesmas condições” para
afirmar a inexistência de condição análoga à de escravidão, os julgadores parecem não
tomar nota da realidade social que leva muitas pessoas a se submeter
“voluntariamente” à condição de trabalho precário por, simplesmente, não terem outra
alternativa, conforme afirmou, em entrevista, Lelio Bentes Corrêa, Ministro do TST
desde 2003:

Não há margem numa situação como essa para se considerar qualquer manifestação
espontânea desses trabalhadores; eles são vítimas de uma situação de exclusão
econômica e social que infelizmente ainda não foi corrigida por meio dos necessários
investimentos públicos e de programas de emprego e geração renda. (BRASIL, 2013,
p. 2)

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Ainda que demonstrem preocupação com a condição precária à qual os


trabalhadores estão submetidos, os julgadores não a tipificam como análoga à de
escravo, tipificam-na simplesmente como ato ilícito por omissão, deixando de garantir
a proteção dos trabalhadores requerida na petição do MPT e, assim, toleram diversas
violações ao trabalho decente.
Em sendo assim, a tendência é restringir, ao invés de ampliar, a tipificação de
trabalho análogo ao de escravo, por si só, bastando apenas isso para impossibilitar que
se atendam as recomendações atinentes ao trabalho decente como substrato material
para ampliar a caracterização do trabalho escravo. Quando se baseiam na análise de
Marlene T. F. Suguimatsu sobre o Relatório Global da OIT referente ao trabalho
forçado, os julgadores o fazem de modo a fundamentar a interpretação restritiva (ao
invés da ampla) do artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
Esse acórdão parece ser um exemplo do problema da interpretação e da
aplicação da lei, quando deixa de tomar o princípio da dignidade humana como critério
interpretativo para todas as normas do sistema jurídico:

Um tipo aberto, como o do artigo 149 do Código Penal, passível de abarcar uma
infinidade de situações concretas para proteger e amparar o trabalhador reduzido à
condição análoga à de escravo e para punir o criminoso, ao invés de ter sua aplicação
ampliada e disseminada – no intuito de reconhecer como cidadãos todos os
trabalhadores deste Estado democrático de direito e de coibir as práticas criminosas
contra as pessoas e contra o próprio Estado –, vem sendo interpretado e aplicado de
forma restrita e mitigada. (REZENDE; REZENDE, 2013, p. 28)

No P43, o TST analisa e rejeita o Embargo de Declaração oposto pelos réus da ação
civil pública, que questionava o provimento dado ao Recurso de Revista interposto pelo MPT
quanto à configuração do trabalho em condição análoga à de escravo. Ou seja, o TST, em
face do Embargo, decidiu manter a decisão que reconheceu, como violação do artigo 149 do
Código Penal, a redução dos trabalhadores à condição análoga à de escravo, determinando que
o Ministério Público fosse comunicado para tomar as providências cabíveis.
Recorrendo-se apenas a esse acórdão não é possível saber em que se fundamenta o
mérito do caso para verificar de que modo a Corte construiu sua argumentação favorável à
tipificação do fato apresentado pelo MPT às normas legais, sendo, por isso, necessária a análise
do julgado de 10 de maio de 2017, aqui chamado de P43.1, sobre o qual houve o Embargo de
Declaração, rejeitado pelo TST no P43. Trata-se de acórdão que confirmou a condenação ao
pagamento de R$100 mil de indenização por dano moral coletivo da Fazenda São Pedro e de
seu proprietário, Raimundo Nonato Oliveira Lima, no processo de ação civil pública movida
pelo MPT do Maranhão por exploração de trabalho análogo ao de escravo.
O histórico do caso resume-se da seguinte forma: em primeira instância houve a
condenação ao pagamento da indenização por dano moral coletivo devido à exploração de
trabalho análogo ao de escravo. Esta decisão foi reformada em segunda instância, pelo TRT,
que considerou que não havia a configuração de trabalho escravo. Acionado pela via recursal,
o TST, por sua vez, confirmou a decisão de primeira instância.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

O argumento utilizado pelo TRT para não configurar como trabalho escravo o caso
em questão foi o de que os trabalhadores não estavam enclausurados, razão pela qual o TRT afirmou:
“embora reconhecida a realização de trabalho em condições degradantes, não restou
demonstrado nos autos a redução dos representados à condição análoga à de escravo”
(BRASIL, 2017a, p. 2), já que “em nenhum momento, houve alusão a qualquer impedimento
à ampla liberdade de locomoção dos trabalhadores” (BRASIL, 2017a, p. 2), que atestasse que
“a liberdade de ir e vir é incompatível com a condição de trabalhador escravo” (BRASIL,
2017a, p. 2). Afirma o TRT:

[...] o descumprimento de leis trabalhistas por parte do empregador não deve ser
confundido com a prática de conduta tipificada, na lei, como crime de redução à
condição análoga à de escravo, nos termos pretendidos pelo autor, ainda mais quando
levamos em consideração que, em nenhum momento, houve alusão a qualquer
impedimento à ampla liberdade de locomoção dos trabalhadores, seja por meio de
coação física, psicológica, moral ou por dívida. Afinal, a liberdade de ir e vir é
incompatível com a condição de trabalhador escravo. (BRASIL, 2017a, p. 6)

Chamando a atenção para a necessidade de adequação do entendimento


jurisprudencial aos conceitos de “escravidão moderna” e “trabalho escravo
contemporâneo”, o TST, por unanimidade, entendeu que o TRT havia interpretado o
dispositivo legal de modo restritivo, já que ignorou o trabalho em condições
degradantes, presente no caso, como elemento que por si só caracteriza o trabalho
escravo. O TST acrescenta:

A caracterização do trabalho escravo não mais está atrelada condicionalmente à


restrição da liberdade de locomoção do empregado – conceito revisto em face da
chamada “escravidão moderna”. É preciso aperfeiçoar a interpretação do fato
concreto, de modo a adequá-lo ao conceito contemporâneo de trabalho escravo
contemporâneo. Nesse sentido têm caminhado a jurisprudência e a doutrina. Uma vez
configuradas as condições degradantes a que eram submetidos os empregados,
evidenciado o trabalho em condição análoga à de escravo, o que se declara, nos exatos
termos do art. 149 do Código Penal. (BRASIL, 2017a, p. 2 e 3)

O TST deixa claro que desde que fiquem comprovadas as condições de


trabalho degradante há que se aplicar o previsto no artigo 149 do Código Penal. As
condições degradantes são confirmadas, desde a primeira instância, pelo desrespeito a
condições mínimas de trabalho relativas à higiene (ausência de instalações sanitárias
adequadas, esgoto a céu aberto e falta de água potável), à saúde (ausência de quaisquer
medicamentos ou outros meios necessários para prestação de primeiros socorros em
caso de acidente), à moradia (casa precária, cujas paredes de taipa eram sustentadas por
madeira podre com frestas que impediam o isolamento do vento e da chuva, sem água
encanada e sem banheiro) e à alimentação.
Para embasar seu posicionamento, o TST recorre à Constituição (artigo 1º,
incisos III e IV; artigo 5º, incisos III, X e XLVII; artigo 6º e 7º), ao Código Penal

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

(artigo 149), a Convenções nº 29 e nº 105 da OIT, a decisões anteriores do TST, à


doutrina jurídica e até à entrevista de Fernando Henrique Cardoso em 1995, na qual o
então presidente afirma que a diferença da escravidão antiga para a contemporânea é
que enquanto naquela o escravo conhecia seu senhor, nesta não sabe quem ele é.
O Tribunal reconhece que ainda há dificuldades na própria jurisprudência em
romper com o entendimento restritivo de trabalho escravo, como faz o TRT no caso
recorrido, posto que, anteriormente, a restrição de liberdade era ponderação única para
caracterização do trabalho escravo. A restrição de liberdade é compreendida tanto
como coação econômica, segundo a Convenção nº 95 da OIT, quanto como coação
moral e coação física, de acordo com as Convenções nº 29 e nº 105 da OIT. No
entanto, por meio da doutrina, o Tribunal endossa o conceito atual de trabalho escravo,
mais amplo do que o previsto no artigo 2º da Convenção nº 29 da OIT, entendendo
que a definição nele apresentada já não exaure o conceito hodierno de trabalho
escravo.
Não se limitando à interpretação literal do artigo 149 do Código Penal em
vigor, o TST atrela-o ao entendimento de que, atualmente, o conceito de trabalho
escravo pauta-se não mais apenas na restrição de liberdade, mas amplia-o para abarcar
o trabalho forçado, o trabalho em condições degradantes e o trabalho com jornada
exaustiva, visto serem estas formas de trabalho que coisificam o trabalhador, ferindo
sua dignidade.
Destarte, a dignidade da pessoa humana aparece como fundamento basilar,
conforme o artigo 1º da Constituição Federal, para impedir a coisificação do ser
humano nas relações de trabalho. Assim, enquanto anteriormente a caracterização do
trabalho escravo dava-se a partir do valor “liberdade”, hoje ela expande-se para o valor
“dignidade”, embasando-se na ideia de que: “[...] o ‘paradigma’ para a aferição mudou;
deixou de ser apenas o trabalho livre, passando a ser o ‘trabalho digno’” (Brito Filho,
2005 apud Brasil, 2017a, p. 13).
Cabe ressaltar a diferença entre os casos P5 e P43.1.
No P5, as violações aos direitos do trabalhador não foram tidas como graves
o suficiente para serem consideradas como condição degradante para configurar-se
como “condição extremamente degradante” para ser tipificado como trabalho análogo
ao de escravo. Lembre-se que as violações incluíam ausência de condições básicas de
higiene (falta de sabão para lavar as mãos antes das refeições, de lugar apropriado para
as refeições e de banheiros adequados); transporte precário; ausência ou inadequação
de equipamentos de proteção individual; desatenção às normas de manejo dos
agroquímicos, colocando-se em risco da saúde dos trabalhadores; e atraso reiterado de
salários dos empregados e o não-depósito das contribuições previdenciárias e FGTS.
Já, no P43.1, não se nega, em nenhuma instância, a existência de trabalho em condições
degradantes.
No entanto, ainda que, no acórdão do P43.1, entendendo tratar-se o caso de
trabalho em condições análogas à de escravo, o TST não alterou o valor atribuído aos
danos morais coletivos, que se manteve no mesmo arbitrado pelo TRT, de

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

R$100.000,00, enquanto o MPT havia pleiteado o dobro. O TST justifica-se alegando


ausência de refutação ao argumento do TRT pelo MPT em relação ao valor da
indenização.
Abaixa-se o valor da indenização sob o argumento dos princípios de
razoabilidade e de proporcionalidade, de acordo com os artigos 927 e 944 do Código Civil
e o artigo 5º, incisos V e X da Constituição Federal, de modo que, aos olhos tanto do
TRT quanto do TST o “curto” tempo de duração da submissão dos trabalhadores à
escravidão contemporânea antes da fiscalização (um mês) não ensejaria pagamento do
valor demandado. Na ausência da refutação do MPT quanto a esse fundamento da
decisão recorrida, o TST manteve a redução da indenização.
Os tribunais ignoram o fato de que, não fosse a fiscalização ter ocorrido
naquele momento, os trabalhadores continuariam sendo escravizados, e não teria
cessado a prática criminosa. Além disso, o artigo 944 do Código Civil, de 2002, no
caput, prevê que a indenização é medida pela extensão do dano. No caso de trabalho
escravo, o dano (material, psicológico, moral) causado às pessoas a ele submetidas é
incomensurável, tenha sido “curto” ou não o tempo de permanência nessa condição.
A hipótese de redução da indenização - prevista no parágrafo único do mesmo
artigo: “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá
o juiz reduzir, equitativamente, a indenização” (Brasil, 2002, art. 944, parágrafo único)
- não comporta os casos de submissão de pessoas a condições análogas à de escravo,
pois quem escraviza o faz dolosamente e a situação de quem é escravizado é sempre
de extrema gravidade. Assim, ao invés de diminuí-la, os tribunais deveriam, de ofício,
aumentá-la, de modo a demonstrar severidade na punição daquele que se utiliza de
trabalho escravo.
Esse caso de diminuição do valor demandado, que já não era tão expressivo,
explicita a dificuldade de arbitrar um valor indenizatório mais vultuoso, o que
enfraquece, significativamente, o combate ao trabalho escravo no Brasil. Ainda que se
reconheça o crime cometido, dá-se mais atenção ao ônus reparatório que o
escravizador teria do que à gravidade de submeter alguém ao regime de escravidão
contemporânea.
Além da interpretação restrita da lei, esbarra-se também em questões formais-
processuais, que ainda possuem mais força argumentativa para frear a punição
pecuniária do que possui o reconhecimento da existência da condição análoga à da
escravidão para ampliá-la, como expresso no fundamento exposto pelo TST: “Ao
deixar de refutar todos os fundamentos da decisão recorrida, o recorrente não procede
ao necessário cotejo analítico entre a tese posta e os dispositivos indicados, de modo
que desatende o disposto no art. 896, §1º-A, III, da CLT” (BRASIL, 2017a, p. 19).

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Considerações Finais

Na linha das decisões acima descritas, nenhuma das outras analisadas indica
influência direta ou indireta das recomendações do PNUD, o que desvalizada a
hipótese de poderem ser consideradas tipos normativos de comando de otimização.
Defende-se que a ausência desses princípios faz parte das barreiras enfrentadas no
combate ao trabalho escravo no Brasil e demonstram o desequilíbrio de forças entre
os interesses divergentes. Tomando o lado dos que buscam promover a abolição do
trabalho escravo, o estudo buscou propor um modo de argumentação jurídica que
venha a fomentar decisões judiciais que realmente coíbam o crime, primeiro, ao
reconhecer a prática criminosa e, segundo, ao arbitrar punição pecuniária significativa
aos escravizadores.
Destaca-se que a punição judicial se figura como um dos mecanismos de
combate ao trabalho escravo – e que poderiam constituir-se auxílio argumentativo as
recomendações do PNUD como comandos de otimização, que não têm ainda
funcionado enquanto tal nos processos de decisão condenatórios do trabalho escravo
atual. A punição judicial é apenas um dos mecanismos; ela não toca na raiz do
problema, e é insuficiente para erradicar o trabalho escravo no Brasil, mas é,
certamente, um instrumento de fortalecimento nesse combate.
Com isso, espera-se que este estudo venha a contribuir para pensar as novas
relações de interdependência entre o global e o local, não se limitando em
generalizações; colaborar com as reflexões que visam enfrentar as dificuldades de
superação do trabalho escravo no Brasil, com enfoque nas práticas do judiciário; e,
sobretudo, agregar ao espírito ainda maior de resistência no enfrentamento dos novos
desafios antepostos à classe trabalhadora no final desta década.

Referências

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7ª Turma CMB/rfs. Processo nºTST-AIRR-101800-82.2008.5.09.0562.
Agravados: Usina Central Do Paraná S.A.- Agricultura, Indústria e Comércio e
Outros E União (PGF). Agravante: Ministério Público do Trabalho da 9ª Região.
Relator: Min. Cláudio Brandão. Brasília.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (TST). (10 de maio de 2017ª). Acórdão da


6ª Turma ACV/fpr. Processo nºTST-ARR-53100-49.2011.5.16.0021. Agravantes e
Recorridos: Raimundo Nonato Oliveira Lima e Outra. Agravado e Recorrente:
Ministério Público Do Trabalho da 16ª Região. Relator: Aloysio Corrêa da Veiga.
Brasília.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (TST). (18 jun. 2013). Notícias do TST.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

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<http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/trabalho-
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.

ELIAS, Norbert. (2011). O Processo Civilizador: Uma história dos Costumes.


Tradução: Ruy Jungmann. Ed. 1. Rio de Janeiro: Zahar. Vol. 2.

ELIAS, Norbert. (1993). O Processo Civilizador: Formação do Estado e


Civilização. Tradução da versão inglesa: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar. Vol.
1.

NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL – ONU BRASIL. (abril 2016). Trabalho


Escravo. Nações Unidas no Brasil, Brasília. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2016/04/position-paper-trabalho-
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PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO –


PNUD. (2015). Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015. Lisboa: Camões –
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REZENDE, Maria José de. (jul./dez., 2017) A análise dos Relatórios do


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erradicação do trabalho escravo no Brasil hoje e a exposição dos muitos desafios
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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

SUGUIMATSU, Marlene T. F. (2009). Condições de existência digna, direitos


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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

IDEOLOGIAS POLÍTICAS NO GOVERNO BOLSONARO:


ASSOCIAÇÕES E RUPTURAS INTERNAS

Beatriz Olivieri Marcos1

Resumo: O intuito deste trabalho foi o de analisar o duplo movimento dos setores de
direita que cercearam o governo de Jair Bolsonaro, que são o de associação e de
dissociação. As eleições presidenciais de 2018 no Brasil colocaram no poder central
“uma agenda politicamente autoritária, socialmente conservadora e economicamente
neoliberal” (DA SILVA E RODRIGUES, p. 87, 2021) que abrange diversas filiações
partidárias, apartidárias, militantes e militares de duas ideologias políticas centrais: a
neoliberal e a conservadora. O objetivo é investigar as circunstâncias históricas e
contextuais de formação da Nova Direita brasileira (Rocha, 2018), ao mesmo tempo
em que analiso conceitualmente as ideologias políticas desses grupos que a compõem.
Assim, pretende-se em conjunto buscar elementos analíticos próprios dos conflitos
que resultaram em rupturas de alianças, no sentido de elencar características da política
gerida por Bolsonaro diante dos e com os atores políticos que entra(ra)m e sae(íra)m
do seu governo.

Palavras-chave: Ideologias Políticas. Conflitos intragovernamentais. Governo


Bolsonaro. Neoliberalismo. Conservadorismo.

Introdução

A eleição presidencial de 2018 acabou por eleger Jair Bolsonaro (sem partido),
então candidato do Partido Social Liberal (PSL), o qual contava com uma aliança de
liberais e conservadores, que é considerada a ala da extrema-direita. Essa ala é formada
por diversos setores da direita que conta(va)m primordialmente com olavistas2,
(ultra)liberais profissionais, militares, ativistas pró-mercado e fundamentalistas
religiosos.
No momento, estamos em 2021, durante o terceiro ano do mandato
presidencial e já contabilizamos 16 demissões das pastas de diversos ministérios3, sem
contar as transferências entre ministérios e outros cargos, como aqueles distribuídos

1 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e-mail:


beatriz.olivieri@uel.br.
2 Entendido como ‘guru do presidente’, Olavo de Carvalho direciona discursos agressivos e

sádicos contra o que considera de esquerda, reforçando ideologicamente o anticomunismo.


Ver em: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/08-dez-2019/o-olavismo-tomou-conta-da-
cultura-no-brasil-mas-o-que-e-o-olavismo-11591056.html
3 Ver em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/salles-e-o-160-ministro-a-sair-do-

governo-bolsonaro-em-dois-anos-e-meio-de-governo.shtml

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

em estatais e/ou dentro do Palácio do Planalto. Um exemplo que criou um imenso


debate em torno desse tema foi a saída, em abril de 2020, do juiz e advogado Sérgio
Moro, figura-chave da Operação Lava-Jato, do ministério da Justiça e Segurança Pública
do Brasil, após Bolsonaro tentar interferir na troca de diretor-chefe da Polícia Federal,
função a cargo da pasta da justiça4. Nunca na história da democracia brasileira, desde
o período de redemocratização, se presenciou um mandato tão conflitante e disruptivo
como o do presidente atual.
As razões, acredito, não são meramente ideológicas, mas ligam-se também às
práticas políticas pelas quais Bolsonaro tem grande apreço populista e autoritário,
fazendo insurgir pragmaticamente uma barreira às promessas de campanha voltadas a
pretensão de descentralizar os poderes do Estado que os ultraliberais, como o ministro
da economia Paulo Guedes, esperavam. Tal perspectiva transparece, por exemplo,
quando se examina seus discursos sob o viés da despolitização, ao querer se diferenciar
de políticos, colocando-se como capitão do exército que vai salvar o Brasil (das pautas
identitárias, da corrupção, entre outros). Suas táticas, assim como as de bolsonaristas,
foram, durante a campanha, de descentralizar as ações eleitorais, de acordo com
Stromer-Galley (2014, apud Oliveira; Moreira Maia, 2021), por meio de redes sociais
pelas quais geraram tanto engajamento a ponto de colocar esses mecanismos utilizados
como uma nova maneira de adentrar a esfera do discurso e da participação políticos.
O que deve ser constatado para a pesquisa é que esse governo, ao mesmo tempo que
é produto de uma aliança ultraliberal-conservadora que gerou frutos na sociedade civil,
produz grandes choques pragmáticos no campo político, ou melhor, na
governabilidade do Executivo Federal brasileiro.
A disforia gerada pelas mobilizações de rua no período de intensos protestos e
polarização política entre 2013 e 2016 alavancou consequências nefastas à jovem
democracia liberal brasileira, como o processo de impeachment à ex-presidente petista
Dilma Rousseff (2010-2014; 2014-2016). E com contribuições recentes, como de
Rocha (2018), podemos observar mais atentamente como agiu a nova direita sob esses
eventos que culminaram na eleição de Bolsonaro (2019-).
Dado que a pesquisa foi desenvolvida limitadamente por, de um lado, um curto
prazo, em que busquei recorrer a bibliografias e notícias de maiores alcances na
literatura e nos meios de comunicação, respectivamente; e, por outro lado, em um
contexto pandêmico global de covid-19, em que não pude realizar buscas empíricas e
nem estabelecer trocas mais diretas com o ambiente universitário o qual poderia render
aprimoramento às análises. Assim, o intuito é amparar as afirmações a respeito dos
conflitos na esfera política dessa aliança de coalizões em volta de Bolsonaro por meio
da metodologia teórica da ciência política. Outra situação limitante é o próprio tema
da pesquisa, que se apresenta como um fenômeno em continuidade e causando novos
rompimentos visto que ainda está em ocorrência no tempo que se situa. Para tanto,

4Ver em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/24/moro-anuncia-demissao-do-


ministerio-da-justica-e-deixa-o-governo-bolsonaro.ghtml

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

busquei analisar apenas os eventos ocorridos até o primeiro semestre desse ano, visto
que é impossível continuar abrangendo cada passo do que está ocorrendo na política
eufórica do governo atual.
É necessário, então, partir da explicação do que seria essa nova direita no poder
para buscar alternativas teóricas da ciência política para a explicação dos conflitos e
eventuais rupturas que se dão tão abrupta e ascendentemente no governo Bolsonaro,
exemplificado pelas saídas, discursos públicos e até troca de ataques pessoalizados em
redes sociais dos atores envolvidos. Sobre as alianças, lançamos questões centrais, como:
O que se entende por ideologias políticas? Quais as ideologias políticas dessas alianças?
Como foram formadas? O que leva essas ideologias a entrarem em choque e gerar
rupturas no campo político?
Pretendo utilizar análises da ciência política para adentrar no tópico de
ideologias políticas, urgindo a necessidade de explorar as ideologias de grupos políticos
que formam o amálgama do governo, a saber duas ideologias centrais: neoliberal e
conservadora, que podem explicar o panorama abrangente de defesas microideológicas
dos diversos grupos que as compõem. Portanto, não serão apreendidas todas as
ideologias que se firmam na sociedade civil, ou a autoidentificação ideológica
(Carreirão, 2007), o que levou os diferentes setores de classes a votar em Bolsonaro,
mas sim do espectro dessa nova direita em que os atores políticos atuam na sociedade
política por excelência, que detêm espaço na manutenção do Estado dado aos três
Poderes e ao Congresso Nacional.
As análises de Camila Rocha (2018) e de Wendy Brown (2006) são norteadoras
da pesquisa em si. Pensando, como fez Rocha, a nova direita e seu processo de
formação e diferenciação com a dita velha direita e seus aspectos ideológicos,
relaciona-se em entrelinhas com o estudo de ideologias políticas de Brown que
administram a esfera política dos Estados Unidos. Tento não esgotar os conceitos, mas
sim explorar similitudes que possam explicar, em primeiro lugar, a coalizão desses
setores de direita; e, em segundo lugar, a ruptura, assumindo que as ideologias entram
em choque no campo político.

Ideologias Políticas: Conceitos

Como foi afirmado, o governo Bolsonaro apresenta em si uma aliança


resultante de vertentes ideológicas que ora convergem em pontos cruciais ora divergem
em outros. As ideologias observadas referem-se à liberal e à conservadora, que podem,
dentro de seus repertórios, abranger diversas filiações, desde a ultraliberal até a
fundamentalista religiosa. As questões convergentes entre elas são referentes a
organização administrativa do Estado, da economia e da própria política em si. Há
intersecções e sobreposições de variáveis políticas entre ambas ideologias no que
confere o desejo de projeto de sociedade. Isso constrói as ideologias políticas,

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

independentemente de qual espectro contínuo de esquerda e direita bobbiano 5 ela


assume.
Conforme afirma Rosas (2014), não existe ação política sem ideologia. Segundo
ele, ideologias políticas concebem sentido ao entendimento – assim como a
autopercepção individual e coletiva – sobre os assuntos do Estado e da governação.
Parto da explicação de Michael Freeden (2003; apud ROCHA, 2018) e sua perspectiva
morfológica a qual distribui as ideologias políticas analiticamente em caráter macro e
micro. As macro-ideologias são definidas como ‘’internamente complexas e, para além
de diversos conceitos nucleares nem sempre facilmente conciliáveis, englobam
conceitos adjacentes e periféricos que as adaptam às diferentes circunstâncias
históricas’’. (ROSAS, 2014, s.p.):
Podem, portanto, circunscrever não somente as esferas institucionais. Aqui se
encontraria, dentre as ideologias centrais, o liberalismo e o conservadorismo, enquanto
o neoliberalismo se encontra como ideologia-modular/segmentar, que se caracteriza,
segundo Rocha, como uma ideologia menos sistematizada que, “ainda que se orientem
por alguns princípios liberais específicos, os combinam com formulações relacionadas
a outras tradições” (p. 46, 2018).
Para os neoliberais, o Estado é instrumento regulador da organização social e
de mercado visto um contexto em que havia uma forte regulação administrativa
(DARDOT e LAVAL, 2016) por parte do Estado de bem-estar social, e também diante
da ineficiência da prática do liberalismo puro na segunda metade do século XX, na
Inglaterra e nos EUA com Thatcher e Reagan, respectivamente. O neoliberalismo
surge com o princípio de reforçar a presença de um estado capaz de gerenciar as leis e
todo aparato jurídico de acordo com a abordagem empresarial. Essa racionalidade
política vem sendo importada desde a década de 1980, e a década seguinte foi
considerada como o auge de ideias pró-mercado sendo fomentadas no espaço público.
Já o (neo)conservadorismo6, segundo Brown, se baseia no modelo de
sociedade pelo qual a moral religiosa permeia todas as organizações a nível de vida e
de estado. Citando Anne Norton (2005), em seu artigo, Brown (2006, p. 697) define o
neoconservadorismo como desejo por:

(...) um estado forte e um estado que colocará sua força em uso (...) rejeitam a
vulgaridade da cultura de massa (...) aliam-se à religião e às cruzadas religiosas (...)
encorajam os valores familiares e o elogio às formas mais antigas de vida familiar (...)
veem na guerra e na preparação para a guerra a restauração da virtude privada e do
espírito público (...) clamam por um renascimento do patriotismo, um exército forte
e uma política externa expansionista. (Tradução minha)

5 A referência utilizada foi ROSAS, 2014, n.p.


6 Utilizo o termo conservadorismo, sem o prefixo neo, como adotado por Camila Rocha
(2018), mas sem retirar completamente o ‘neo’ para não apagar da análise de Wendy Brown
(2006)

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Para além disso, é preciso um Estado forte para desviar as políticas identitárias
do centro de pautas, como defendido por Bolsonaro contra o avanço de pautas e
movimentos feminista e LGBTQIA+ nos governos petistas. Reforça um compromisso
de agenda estabelecer uma homogeneidade do povo reforçando mutuamente a cultura
nacionalista e anulação de pluralidades. Para tanto, o logo de sua campanha é “O Brasil
acima de tudo. Deus acima de todos”.
Afirmo que o governo Bolsonaro é neoliberal e conservador, visto seu
intervencionismo em todas as esferas, tanto política quanto econômica. Esse elemento
perpassa pela pessoalidade autoritária que o presidente mantém com familiares e
próximos – seus filhos, amigos políticos e generais de sua confiança ocupando cargos
públicos. Pretendo então afirmar que o neoliberalismo não é meramente uma ideologia
política, pois, segundo Brown (2006), ele perpassa pelas relações econômicas, sociais,
culturais e políticas. Opera uma e através desta racionalidade política, no sentido
foucaultiano7, que é capaz de estruturar capilarmente todos os âmbitos das esferas
públicas e privadas fazendo se romper a barreira entre elas sob a lógica do mercado.
De acordo com Gago (2018. P. 15), o neoliberalismo se caracteriza, e principalmente
se diferencia do liberalismo, por ser:

(...) um regime de existência social e uma forma de autoridade política instalada pelas
ditaduras (...) que foi consolidado nas décadas seguintes a partir de grandes reformas
estruturais, conforme a lógica de ajuste das políticas globais.

Para além de organizar a esfera econômica, o neoliberalismo incide na


universalização de valores meritocráticos e de mercado sob os indivíduos, não mais no
modelo de welfare state, mas sim como modos de vida organizados por estruturas
político-jurídicas reguladas pelo Estado, transformando a vida, as políticas e os valores
em mercadoria. A eficiência é a chave, não a anarquia do livre mercado, não sendo
mais cabível afirmar os direitos e liberdades como naturais. Transpassa sua própria
fronteira política onde passa a operar uma racionalidade política-mercado (Brown,
2006) no ethos, na cultura da realidade social.
O neoliberalismo se interliga, mas não necessariamente, com o
conservadorismo. Bolsonaro governa com política direcionada primordialmente a
defender de volta os valores cristãos e judaicos, como ficou explícito nas passeatas que
fez com seus apoiadores defendendo Israel8, contra o infalível kit gay9, e junto a isso
defende o estabelecimento da ordem natural dos cidadãos de bem. Sobre o último
ponto, sua equipe tem um histórico semelhante, como Paulo Guedes, então ministro
da economia, que, na época da eleição presidencial, engatou na equipe do então

7 BROWN, 2006, p. 693.


8 Ver em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/12/16/perto-de-nos-
nada-tem-diz-bolsonaro-ao-cumprimentar-israel.htm
9 O ‘’kit gay’’ foi uma das pautas ao qual se opôs Bolsonaro em sua campanha. Mas não é nova,

na verdade, se refere pejorativamente a um projeto chamado Escola Sem Homofobia. Ver em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/12/politica/1539356381_052616.html

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Eixo 5
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candidato com o slogan “união entre a ordem e o progresso”10. Guedes não à toa é
considerado por Rocha (2018) como o sujeito que selou o amálgama ultraliberal-
conservador do governo, visto que Guedes foi um dos fundadores do Instituto Mises
Brasil (IMB), em 2007, de caráter ultraliberal tanto na economia quanto na política.
A definição dada por Rocha a um dos setores que se aglutinaram nesse processo,
e o que mais resiste ainda atualmente em torno de Bolsonaro, caracterizando até ele
mesmo e sua família, é esse termo: liberal-conservador, ou, como bem conhecido, liberal
na economia e conservador nos costumes. Penso que esse termo pode ser racionalizado
na forma como Wendy Brown descreve as demandas interseccionalizadas entre as
ideologias neoliberal e neoconservadora. A nova direita brasileira (Rocha, 2018)
apresenta em si não somente a racionalidade neoliberal como modo de gerir a política e
a vida social dos cidadãos (Brown, 2006), como também um gerenciamento que vem
sendo recorrente às lideranças populistas em muitas partes do mundo. Da Silva e
Rodrigues (2021) nos oferecem a conceitualização de “populismo autoritário” de Stuart
Hall (1988, p. 90) que se encaixa com a visão dessas lideranças populistas da extrema-
direita globais:

O populismo autoritário combina os temas ressonantes do conservadorismo orgânico


– nação, família, dever, autoridade, padrões, tradicionalismo – com os temas
agressivos de um neoliberalismo renovado – interesse próprio, individualismo
competitivo, antiestatismo.

O’SULLIVAN (2013) considera uma Nova Direita, pensando no pós-Segunda


Guerra Mundial, a qual oferece três versões, mas que considero que há uma intersecção
entre as partes quando transpassadas ao contexto da cultura política brasileira. Uma, de
um lado, reverbera um nacionalismo exacerbado, já a outra defende o livre mercado; a
terceira, a crença de um Estado onde “the little that is not privatized is centralized” (p.
360). Por outro lado, os liberais-conservadores foram figurados por Rocha (2018) como
um grupo não necessariamente homogêneo que começou a aparecer na cena pública em
2015 na esteira da “primavera feminista no Brasil”. Fez-se como uma onda conservadora
que tinha Bolsonaro como um forte ator político no Congresso denunciando as pautas
identitárias e progressistas. Ricardo Salles era um dos que se juntaram à família Bolsonaro
para “inverter a predominância do ultraliberalismo” (ROCHA, p. 176, 2018). Então, os
liberais-conservadores têm em comum essas pautas da Nova Direita trazida por
O’Sullivan, que correspondem aos grupos que se aglutinaram em torno de Bolsonaro, com
sua ida ao Partido Social Cristão (PSC) em 2016, carregando a ideologia conservadora com
a defesa de pautas liberais.
No contexto, o neoliberalismo como política emergiu da recusa do liberalismo
puramente econômico em meados dos anos 90, quando o Plano Real de Fernando
Henrique de Cardoso que caracterizou os políticos próximos a essa matriz econômica

10Ver em: http://www.ihu.unisinos.br/188-noticias/noticias-2018/584166-jair-bolsonaro-e-


a-perversao-do-liberalismo

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como “centro” – os pessedebistas – com objetivo de estabelecer um capitalismo popular


e privatização popular (ROCHA, 2018).

Alianças políticas e a Nova Direita

A base de coalizão no período que se seguiu à eleição presidencial de Bolsonaro


em 2018 aglutinou vários setores da direita, entretanto, importante ressaltar, que
tinham em si filiações pró-mercado e/ou conservadoras mais extremistas desde o
primeiro turno e de filiações mais moderadas, como o PSDB11, no segundo turno. Foi
esse avanço estratégico de alianças que conduziu inclusive seu então partido – Partido
Social Liberal – a obter cerca de 52 cadeiras no Congresso, um crescimento de 1.341%,
com relação à última eleição, em 201412.
O cenário do governo Bolsonaro não pode desconsiderar os períodos
anteriores à vitória de Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. Esse é um fator
indissociável da análise histórica que busco conciliar com a pragmática metodológica
da qual me disponho. Vivemos, no período das duas décadas do século XX, a onda
rosa13 dos governos petistas (2002-2016), atravessada por períodos de intensas e
complexas mobilizações populares e greves das quais implodiu a crise política de Dilma
Rousseff e que culminou no processo de impeachment da presidente de esquerda
democraticamente eleita. Os efeitos específicos da crise desses períodos não serão
analisados, a não ser os elementos que permitem aprofundar teoricamente a disputa de
ideologias e conflitos internos ao governo Bolsonaro.
Nenhum evento ou fenômeno se repete na história. Esse entendimento perpassa
pela necessidade que urge de entendermos, enquanto sujeitos políticos a frente de nosso
tempo, as singularidades de cada acontecimento por mais que se assemelhe a um passado
remetente. A formação da Nova Direita, que se propõe a balizar os avanços da
democracia liberal com a evangelização homogênea e judaica, ao mesmo tempo que
mantém, ainda que não consensualmente em todas as filiações, os militares na
centralização do poder Executivo, não pode ser comparada com a ‘velha direita’; mas
pode, sim, e deve ser considerada um desenvolvimento desta. Dito isso, é bom
(re)lembrar a importância que teve a direita no decorrer da ditadura até o presente
momento.

11 Ver em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2018/noticia/2018/10/07/doria-


declara-apoio-a-bolsonaro-e-diz-que-derrotara-esquerda-em-sao-paulo.ghtml. Atualmente o
PSDB é um dos partidos que buscam se desvincular do atual governo, negando seu apoio.
12 Ver em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018

/10/11/psl-e-o-partido-que-ganhou-maior-numero-de-votos-na-eleicao-para-a-camara-mdb-
e-o-que-mais-perdeu.ghtml
13 O termo se refere a estudos políticos sobre as experiências latino-americanas de governos

de esquerda e de centro-esquerda ao longo da primeira década do século XXI. Essa


nomenclatura, segundo Rocha, foi retirada dos autores Dominguez, Lievesley e Ludlam (2011).
(p. 16, 2018)

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Eixo 5
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O neoliberalismo, ao começar a ser difundido pelos anos 30 e 40, surgiu no


Brasil por meio de traduções do livro “O caminho da servidão” de Friedrich Hayek,
um dos autores centrais da ideologia neoliberal conservadora. Como postura, defendia
de maneira inédita no ideário de formação política de sua época a fundação de
organizações não-partidárias para disseminação dos conteúdos políticos e econômicos
de livre mercado, que começaram a ser fundadas na década de 60. Esse período foi
decisivo para a aliança das direitas liberal e conservadora em torno de um objetivo
maior: barrar a esquerda e instituir o ideário anticomunista de maneira mais
centralizada no sistema político, que culminou no golpe de 1964 e no governo militar.
Como fica firmado:

No Brasil, a promoção de um ideário pró-mercado se deu em meio a uma forte


campanha contra a esquerda que uniu conservadores e defensores do capitalismo de
livre-mercado em torno do discurso anticomunista, os quais desencadearam o golpe
civil-militar em 1964. (ROCHA, p. 42, 2018)

Após o fim do governo de Castelo Branco, em 1967, essa associação liberal-


conservadora foi se desmanchando devido à política econômica nacional-
desenvolvimentista adotada pelos posteriores governos, onde houve uma
predominância de conservadores no cerne da política sobrepostos aos liberais e sua
ambição de seguir projetos pró-mercado.
Entretanto, na década de 1980, Rocha ressalta que instituições que visavam
formar sujeitos com ideais pró-mercado financiadas por organizações civis e privadas
estadunidenses, como os think tanks, deram uma guinada na formação de futuros atores
políticos brasileiros. Como foi o caso dos Chicago boys, auge da difusão neoliberal no
Chile durante a ditadura de Pinochet, que formou entre muitos ultraliberais o atual
ministro da economia, Paulo Guedes, e o bolsonarista Winston Ling. Guedes, aliás, foi
o fundador do Instituto Millenium, em 2006, junto com Bernardo Santoro – este com
quem dividiu primeiro o Congresso com Bolsonaro no PSC e depois no PEN
(rebatizado de Patriota, por influência de Jair Bolsonaro).
Foi na década de 1990 que o neoliberalismo teve seu auge no país. No processo
de redemocratização, com o governo Collor, ultraliberais tinham inserção na política
para definir planos e estratégias de governo liberais, com o objetivo de controlar a
inflação e gerar crescimento (WEYLAND, 1996; apud MUDDE; KALTWASSER, p.
497, 2013). Mas com essa centralização corrente, os institutos responsáveis por
disseminar os ideários pró-mercado logo perderam palco frente às políticas
socialdemocratas reformistas que estavam se instalando ao decorrer da década. Muitos
desses institutos chegaram até a fechar e a disseminação do neoliberalismo
experimentou declínio.
No início dos anos 2000, a Nova Direita, antes de começar a se formar, foi se
apropriando de outros espaços públicos, como as redes sociais (Orkut, blogs – onde
Olavo de Carvalho teve predominância), para disseminar suas ideias e valores, cada

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Eixo 5
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grupo na sua comunidade separadamente. Estavam formando-se os contra-públicos


não-subalternos dos quais observou Rocha (2018). Foram essas comunidades no
Orkut, inclusive, os primeiros passos de atores políticos que viriam, em seguida, a
fundar novos institutos pró-mercado e partidos políticos, como Instituto da Realidade
Nacional (2006), atual Instituto Mises Brasil, e o Partido Libertários (2009). A
importância do aparecimento de contra-públicos foi muito importante para os futuros
eventos que se seguiram. O surgimento, por exemplo, da Campanha Pró-
Impeachment só ocorreu devido a organização de contra-públicos ultraliberais desde
o auge do lulismo, de 2006 a 2010 (p. 21).
Prosseguindo para a crise do sistema político, atesto que, após o auge do
lulismo, foi legitimando pouco a pouco a insurgência de setores da direita em torno de
uma pauta em comum: tomar o poder para, assim, tirar a esquerda. O que não é
novidade, mas as organizações das direitas foram consolidando a nova direita que é
tão atuante. Moisés (2020) considera como erro do Partido dos Trabalhadores como
condicionantes do antiesquerdismo que se formou em maior velocidade a partir de
2013, a ausência de autocrítica em dois momentos: diante do escândalo de corrupção
do ‘’Mensalão’’, no governo de Lula, e diante da instabilidade econômica gerada pela
crise política no governo Dilma, em seu segundo mandato. Daí surge conceitualmente
o antiesquerdismo e antipetismo como sentimentos político-partidários cultivados por
esses setores, especialmente por Olavo de Carvalho.
Olavo apareceu como apoio moral, ou ala ideológica, da base do presidente – e
dele próprio. Segundo Rocha (2018), conhecido por sua crítica agressiva e feroz através
de seu blog Mídia Sem Máscara, fundada em 2002 após o sucesso de sua obra “O imbecil
coletivo”, o autodenominado filósofo busca criticar a esquerda brasileira e a disseminar o
ideário anticomunista. Autor de celebres frases como “o rock leva ao aborto e ao
satanismo”, faz pontuais críticas à cultura nacional hegemonizadas pela esquerda do PT
desde o começo dos anos 2000. Se considera o “parteiro da nova direita”14, como o
próprio afirma. A retórica do ódio alçada pela família Bolsonaro constitui a semiologia da
nova direita, que já é um fenômeno da comunicação pública das extremas-direitas ao
redor do mundo em que é, conforme afirma Sponholz (2020), definida como racional
com relação a fins – políticos, como neste caso.
Essa comunicação perpassa pelo uso da oratória e do discurso populistas e
autoritários, que fazia com que seus eleitores se atraíssem para o polo de identificação
com a ideologia conservadora – sem se expressarem dessa maneira. Linguagem simples
(não-política), homogeneidade do povo, nacionalismo são traços que marcam,
segundo as autoras Oliveira e Maia (2020), líderes populistas. E indo adiante, marcam
a onda neopopulista15, que tem raízes na política brasileira (WEFFORT; apud MOISÉS,
2020), também a nova direita tanto na sua performatividade, ou seja, no engajamento

14 Ver em: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/08-dez-2019/o-olavismo-tomou-conta-da-


cultura-no-brasil-mas-o-que-e-o-olavismo-11591056.html
15 Termo cunhado por Moisés (2020) para se referir à velha tradição na América Latina de

ações prático-políticas que desmantelam o Estado de Direito.

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Eixo 5
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com suas bases e agentes políticos, como na formulação de políticas públicas, opondo-
se às pautas identitárias, estas criticadas veementemente pelo guru Olavo e seus
seguidores.
Na primeira década dos anos 2000, os setores de direita estavam espalhados
por diversas associações, think tanks, comunidades no Orkut e nos partidos. Não era
só Olavo que tecia críticas ao esquerdismo, como também diversas figuras que foram
se aglutinando com os eventos posteriores à eleição de Dilma Rousseff (PT), em 2010.
A oratória vinculava-se por um novo meio de comunicação que é objeto de estudo
para entender a formação dessa nova direita, que é a internet. As redes sociais são
configuradas como um espaço onde se formaram os já citados contra-públicos
(digitais), conceito de Warner (2002) resgatado por Rocha (2018) para definir
‘’identidades, interesses e discursos (compartilhados) tão conflitivos com o horizonte
cultural dominante’’ (p. 20). O horizonte dominante, segundo os sujeitos dessa nova
direita, seria os espaços hegemonicamente dominados pela esquerda, como as
universidades e os meios de comunicação burgueses mais influentes. Para tanto, as
redes sociais serviram e continuam servindo como espaço onde cada vez mais o
bolsonarismo – mas não somente – deflagra suas posições e pensamentos de maneira
disruptiva alçando a perfomatividade desejada para compartilhar seus anseios políticos.
Inicialmente foram ocupados majoritariamente por universitários e pelos profissionais
liberais da classe média, como foi o caso do Partido Líber, de ideologia ultraliberal,
criado como comunidade no Orkut.
Foi no pós-Junho de 2013, após uma onda de protestos de massa contra,
inicialmente, o aumento da tarifa de transportes movimentada pelo Movimento Passe
Livre (MPL) que aglutinou ampla mobilização contra o governo federal, inclusive. Esse
é um tema divisor de águas para as ciências sociais, mas que para a análise dessa nova
direita reflete muito as ações que uniram as divergentes forças e ideologias políticas em
prol de barrar a esquerda, mesmo que de maneira despolitizada. A união liberais-
conservadores com os ultraliberais foi uma das forças inéditas que surgiram do
momento posterior a essa onda. Envoltos aos temas antigos de anticorrupção e
antiesquerdismo, de um lado, e aos novos temas como as políticas econômicas do
governo Dilma mais o escândalo de corrupção do Petrolão, houve grande atuação de
líderes ultraliberais e conservadores, como o Líber e Marcello Reis16, nas redes sociais
para chamar o público para as mobilizações.
Contudo, foi somente em 2014, após a reeleição de Dilma Rousseff, que a
formação da nova direita seguiu rumos mais alinhados e conclusivos. A derrota da
candidata era dada como certa, mas visto que vencera, foi esse fator que foi decisivo que
uniu ultraliberais com conservadores e todos os setores que estavam envolvidos. Exemplo
disso foi a Campanha Pró-Impeachment que:

16 Reis quem deu origem à página Revoltados online, pela qual propagava o conservadorismo.

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(...) pela primeira vez, os ultraliberais, os Revoltados Online, e outras figuras icônicas
da nova direita em formação, como Eduardo Bolsonaro, Lobão e Olavo de Carvalho,
se uniram em torno de pautas em comum. (ROCHA, p. 167, 2018)

Foi nessa linha que surgiram movimentos como o Vem pra Rua (2014) e o
Movimento Brasil Livre (2014) e até mesmo o Partido Novo, oficializado na
institucionalidade em 2015. Militantes começaram a se aglutinar sob a família
Bolsonaro devido aos tons mais agressivos que eram propagados por Jair e seus três
filhos em suas redes sociais contra o governo federal e a favor das manifestações que
estavam ocorrendo. A família Bolsonaro se tornou porta-voz dessa união antiesquerda
que estava próxima da política institucional como organização não mais
descentralizada como ocorria com a velha direita e sua relação com organizações civis
não-partidárias. A Nova Direita encontrou par com a política institucional, pois se via
como uma alternativa aos governos petistas e suas políticas reformistas e pouco
liberais.
As eleições de 2018 confirmaram essa insatisfação que estava inundando os
atores políticos que hoje ora buscam alternativa ao governo Bolsonaro ora esperam
que há tempo para que seus anseios sejam saciados pelo ex-capitão. Foram o evento
que consolidou a formação dessa Nova Direita, pois rompeu com o temor que tinham
os conservadores de serem considerados como defensores da ditadura civil-militar.
Para além disso, significou um novo ciclo político na visão de muitos analistas. Para
Moisés significou:

(...) mais do que uma inclinação neoliberal, um governo populista, conservador e de


extrema direita (que) chegou ao poder (...) foi a profunda rejeição das elites políticas
tradicionais pela maioria dos eleitores e, especialmente, o rechaço de um modo de
fazer política – e da cultura política correspondente – que foi responsável pela captura
do Estado por um esquema sistêmico de corrupção envolvendo empresários,
burocratas de estatais e líderes de partidos que fizeram a democratização dos anos 80
e depois iniciaram um ciclo de reformas modernizadoras do Estado. (p. 29, 2020)

Rupturas ideológicas no campo pragmático

Após as eleições, a governabilidade do governo na prática foi travada por


embates entre as pautas defendidas entre as ideologias neoliberal e conservadora visto
que, a esquerda já não era um obstáculo à, em primeiro lugar, disputa do poder e, em
segundo, alteração da governança que começou no governo Temer, ou seja, com o
processo de impeachment de Rousseff. Segundo Rocha (2018), as macro-ideologias
buscam legitimidade na esfera pública ao mesmo tempo que buscam obter
predominância; ou seja, elas disputam espaço com outras ideologias menos
desenvolvidas, as modulares (p. 45). Nesse caso, as ideologias que regem o governo
como também o bolsonarismo estão gerando conflitos no campo político desde o

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início do mandato presidencial de Bolsonaro; e está cabendo ao poder Executivo


centralizar as ações e opiniões públicas que saem do Palácio do Planalto e sua cúpula
de ministros, diferentemente de como ocorreu durante a campanha.
Como esta pesquisa se baseia em analisar os conflitos propriamente internos
ao governo Bolsonaro, não será acolhida a questão da perda de apoio de sua base ou
eleitores. A conduta pertinente será olhar para esses conflitos como sinal de gastura do
governo e a potencialidade de sua força de governabilidade a partir da perspectiva dos
estudos ofertados das ideologias políticas como racionalidades que guiam a moral e a
prática política de Bolsonaro, seus ministros e sua relação com outros poderes que
influenciam na estrutura de governança (ou ausência dela) da esfera política
institucional.
Podemos (e devemos) pensar em múltiplos fatores determinantes, pois cada
grupo ou sujeito que faz parte desse processo de ruptura tem suas motivações
particulares de práxis ideológica. Portanto, elenquei somente quatro elementos
analíticos para basear a análise: (1) presidencialismo de coalizão; (2) intervencionismo
econômico; (3) centralismo ou autoritarismo político; (4) presença de
militares/militarização.
Primeiro fator corresponde a questão do presidencialismo de coalizão.
Amorim Neto traz uma reflexão17 sobre o governo, da qual extrai que o atual governo
não forma um presidencialismo de coalizão, pois, segundo a literatura acadêmica, para
isso precisaria de um apoio legislativo de pelo menos 50% + 1 do Congresso ao
Executivo, como fator decisivo; mas que, por outro lado, agora caminha para tal visto
que desde 2019, quando saiu do PSL por descontentamento interno18, a relação entre
o Executivo e o Legislativo e Judiciário19 estava enfraquecida e dificilmente o governo
federal estava conseguindo passar seus projetos20. A coalizão pode ser vista como uma
tática fundamental para a governabilidade no sentido de se fazer aprovar projetos
dentro do Congresso, pois, segundo Moisés (2020), seguindo a leitura de Abranches
(1988), todos os governos, após o processo de redemocratização, adotaram o
presidencialismo de coalizão no seu governo. Ao caracterizar os arranjos institucionais
de Dilma e de Bolsonaro como disruptivos e de caráter negativo; no caso do segundo,

17 Vem em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/o-governo-bolsonaro-em-2021-colecao-de-


grupos-vs-coalizao-interpartidaria
18 Ver em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/12/deputados-do-psl-dizem-que-

bolsonaro-decidiu-deixar-partido-e-criar-nova-legenda.ghtml
19 Jair Bolsonaro protagoniza, desde 2019, desentendimentos com Alexandre de Moraes e Luiz

Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e
presidente do STF, respectivamente.
Ver em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4942083-supremo-reage-
a-escalada-autoritaria-de-bolsonaro.html
20 Ver em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/08/das-40-propostas-

enviadas-pelo-governo-bolsonaro-apenas-seis-foram-aprovadas-no-1o-semestre-
cjyutpzq001f101pnbe5k2w17.html

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Eixo 5
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repetiu o erro de formar uma base minoritária, mas que vem, desde 2020, tentando
consertar (p. 25).
Sobre este ponto, alguns outros autores na literatura acadêmica chamam não
de presidencialismo de coalizão, mas sim de centralização21, com atuação pertinente e
crescente de militares e generais das Forças Armadas. Entretanto, apesar dessa
aproximação com as Forças, Bolsonaro teve que moderar seus discursos por um
período para poder se aproximar do Centrão, pois, segundo Amorim Neto (2006; apud
DERSCHNER, 2020) tanto partidos quanto o presidente de ideologias consideradas
extremistas encontram dificuldade para formar um gabinete presidencial com outros
partidos – chegando até mesmo a afetar a governabilidade. Extremistas podem ser
caracterizados, segundo Mudde (2019; apud DA SILVA; RODRIGUES, 2021, p. 88)
como rejeitando dois componentes: o democrático, como ‘’a regra da maioria traduzida
em processos eleitorais nos quais todos os cidadãos são considerados iguais’’; e o
componente liberal, como os “direitos humanos, proteção às minorias, separação de
poderes e demais elementos que compõem o rule of law”.
Diante das observações feitas ao longo da pesquisa, não podemos
desconsiderar que Bolsonaro se encontra numa posição ideológica de extrema-direita
de caráter conservador, pois é autoritário e populista. O conceito de autoritarismo é
emprestado de Mudde (2019, p. 69), resgatado por Da Silva e Rodrigues (2021), que
se define como “a crença em uma sociedade estritamente ordenada, na qual as
infrações à autoridade devem ser severamente punidas” (p. 89). A “nova política” de
Bolsonaro tem delineamentos autoritários como projeto, dos quais se repetem
discursos sobre temas centrais à questão de segurança pública de sua campanha, como:
corrupção, bandidagem, globalização, etc. – questão na qual estão representados os
interesses e privilégios da ala militar (DA SILVA; RODRIGUES, 2021). A
governamentalidade22 é guiada por um viés autoritário como modus operandi, em que
o Estado deve cooptar os sujeitos e empresas privadas, por exemplo, ao direito ao
armamento, alterando a função de sua responsabilidade e transferindo para indivíduos,
principalmente.
O segundo elemento, o intervencionismo econômico diz sobre o desgaste das
elites e grupos econômicos. A agenda ultraliberal de privatizações de empresas estatais
públicas e não-públicas de Guedes vem encontrando barreiras no Congresso, como a
Medida Provisória 902 da Casa da Moeda, por causa de seu cunho autoritário, de
mentalidade dos anos 70 – contexto da ditadura de Pinochet, pela qual Guedes tem
grande admiração. Para além, Da Silva e Rodrigues (2021) identificam o
intervencionismo nos projetos de Bolsonaro ainda enquanto ocupava a Câmara dos

21 Azevedo (2020), em: https://www.em.com.br/app/colunistas/luiz-carlos-


azedo/2020/05/06/interna_luiz_carlos_azedo,1144726/jair-bolsonaro-optou-por-fazer-
governo-de-colisao-e-nao-de-coalizao.shtml; e Cardoso Jr (2019)
22 Segundo Amos (2010), é um termo criado por Michael Foucault (1991), que: “Denota uma

preocupação com a problemática geral de regulamentar, direcionar e governar nas sociedades


modernas em todas as principais áreas do Estado” (p. 25)

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Deputados, em prol de beneficiar segmentos específicos da economia e da sociedade


civil, como militares e camadas das classes médias (p. 95).
Portanto, apesar do aumento da criação de empresas estatais subsidiárias, para
que ocorra a venda pelo governo federal sem o aval do Congresso, as privatizações
estão ocorrendo em passos mais largos e lentos do que esperava os ultraliberais. Assim,
os ultraliberais perdem cada vez mais espaço na agenda e racham com o governo, como
aconteceu com a saída23 de Paulo Uebel e Salim Mattar da equipe econômica de
Guedes, e também boa parte de sua base de apoio de líderes de movimentos que
ocupam cargos institucionais, como os bolsonaristas migrando para o possível
próximo partido de legenda de Bolsonaro, os Patriotas, e rachando o PSL, partido que
elegeu Bolsonaro. Mesmo que sejam bolsonaristas em essência, o governo central não
representa mais a agenda que apoiam, como fica explícito com a fala do deputado
federal de São Paulo, Júnior Bozzella, que pretende ‘desbolsonarizar’ o partido, pois
“(...) O DNA do PSL é liberal, em defesa das instituições”24. A política econômica de
enxugamento do Estado mínimo e de austeridade que estava prevista com a Reforma
da Previdência ainda está tramitando-se em medidas provisórias, mas muitas ainda não
foram aprovadas, como a MP 873/2019, que visa aniquilar as atividades sindicais
(CERQUEIRA; CARDOSO JR., p. 321, 2020).
O terceiro elemento opera sobre o modo de governar do poder Executivo. A
ala olavista, ou ala ideológica do governo, precisamente por sua linguagem não-
convencional e disruptiva, vem sendo a ala mais conflituosa com as diversas outras que
compõem o governo. Isto porque essa ala, assim como o próprio Olavo, utiliza-se da
agressividade como tom de comunicação para ser contrário às decisões pautadas por
outros atores nesse processo. Como com o vice-presidente Mourão, em que Olavo
utilizou-se de seus perfis públicos para deferir ataques pessoais ao vice de Bolsonaro;
e contou com apoio, inclusive, dos filhos do presidente. Sempre ancorados na retórica
de inimizade e desafeto pela ala militar. Porém, a questão está centrada mais sobre o
autoritarismo político por meio do qual opera Bolsonaro. Os acenos antidemocráticos
explanados pelos discursos e práticas do atual presidente refletem-se na questão de
legitimidade do Estado de conseguir organizar a vida social e política. Como já
apontado, a ideologia neoliberal, no contexto de globalização, permite que a
racionalidade de mercado penetre o Estado de Direito, mas ao operar nele reacende o
resquício ditatorial e autoritário de centralização do Poder Executivo buscando
fragmentar os outros poderes. Daí a relação do Executivo com essas outras partes
constitutivas da democracia liberal vai perdendo sentido e vai criando-se um ambiente
de profunda instabilidade política. De acordo com Moisés (2020), “a
institucionalização da democracia não é um fenômeno unidimensional ou linear (...)

23 Ver em: https://www.poder360.com.br/economia/salim-mattar-e-paulo-uebel-pedem-


demissao-da-equipe-economica/
24 Ver em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/rachado-entre-aliados-e-
opositores-de-bolsonaro-psl-filia-vereador-e-abre-caminho-para-lideres-do-mbl.shtml

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

podendo combinar distintos arranjos constitucionais” (p. 22). A autonomia que


Bolsonaro busca para o Executivo nada mais é uma tentativa de instaurar o
autoritarismo como arranjo extraconstitucional no modelo político de democracia.
Sobre o último elemento, a presença dos militares é latente visto que, por um
lado, o atual presidente é um ex-capitão saído da caserna do Exército para a política
institucional, sem nunca ter se desvinculado seja da corporação – onde é considerado
por, principalmente os baixos oficialatos, como mito – seja dos laços de proximidade
que mantém com generais e militares; e, por outro lado, uma das alianças surgidas
durante as eleições presidenciais foi seu vice, Hamilton Mourão. Segundo Leirner
(2020, p. 240), em 2014, ocorreu um movimento de “abertura dos portões da caserna
para a política”; isso, somando-se ao fato do protagonismo de Bolsonaro em denunciar
as pautas petistas na Câmara e nas redes sociais, acabou permitindo que os militares
adentrassem na esfera política. No início do mandato, os militares, junto com os
apartidários, detinham a maioria dos ministérios (DERSCHNER, 2020), e neste
momento, em 2021, os militares compõem, só nos ministérios, cerca de 30,4%25. Isso
sem contar os mais de 6 mil militares ocupando cargos civis26. Há evidentemente uma
instrumentalização das Forças Armadas na esfera política como um todo, e isso
incomoda outras alas, fato que já causou gastura ainda em 2019. A Reforma foi palco
para que as Forças Armadas se beneficiassem com as mudanças estruturais que
estavam vindo – o que contribuía diretamente para o fenômeno de aparelhamento da
militarização como controle social da sociedade civil. A ala liberal se colocou contra os
privilégios dados à categoria de militares, reivindicando que a mudança fosse ampla27
– o que não vem acontecendo.

Conclusão

Quando pautamos uma temática tão abrangente e difusa como ideologias


políticas, o cientista social, em particular o político, não pode desconsiderar todas as
vertentes e ideologias que se combinam ou se contrapõem na esfera da
governabilidade. Dentre os agentes não estudados mas que tem suma importância para
continuar pesquisando esse tema, são os militares. A atuação dos militares no governo
Bolsonaro é diferente de qualquer outra desde o período de redemocratização. Os
militares ocupam lugares centrais nos cargos ministeriais assim como em grandes

25 Esquematização própria, visto que, em seu quadro ministerial, os militares ocupam 7 de 23


cadeiras existentes
26 Ver em: https://oglobo.globo.com/brasil/presenca-de-militares-em-cargos-civis-mais-que-

dobrou-no-governo-bolsonaro-25079165
27 Ver em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/01/20/interna_

politica,731785/divergencias-afetam-frente-de-apoio-a-bolsonaro.shtml

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empresas estatais, como o general da reserva Joaquim Silva e Luna no comando da


Petrobras28.
Com isso, fica cada vez mais colorido a necessidade de se continuar analisando
os posicionamentos e posturas ideológicas do presidente com relação às políticas
nacionais e internacionais. O autoritarismo está para além do discurso de ódio
compartilhado com seus companheiros próximos no governo federal, está também
prática política do seu governo, mas sem que se torne em si um regime autoritário.
Militares estão ocupando as pastas assim como cargos públicos enquanto seu
eleitorado mais fiel, como os ultraliberais, já estão abandonando o barco. O liberalismo
em tese reprova o intervencionismo, como está ocorrendo, mas não o autoritarismo,
pois foi através desses discursos que Bolsonaro recebeu apoio em massa de militantes
do ideário pró-mercado, como nos mostrou estudos de Camila Rocha (2018) e nos
mostra a imprensa.
Isto pode ter relação com a ideia da não-política no cerne conservador do
capitão reformado. De acordo com sua longa passagem pelo Exército brasileiro que
foi marcada pela construção de uma identidade militar, segundo Castro29, na qual a
base da instituição militar era a hierarquia e a disciplina. Entretanto, na década de 1980,
Bolsonaro foi expulso da caserna por ter um comportamento nocivo à instituição, pois
envolvia política. Bolsonaro chegou a reivindicar melhor salário, o que lhe rendeu
prisão por 15 dias por indisciplina, ao participar de um plano para explodir bombas
em quartéis contra o baixo reajuste do soldo, do qual foi absolvido. Diante disso, em
1988 foi afastado e passou a ser capitão na reserva e a ocupar a política institucional,
virando vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (PDC).
Está explícito que a associação entre os diversos setores da direita se deu em
torno do antiesquerdismo e do antipetismo como pautas projeto de governo – para
salvar a Pátria. O que se seguiu após Junho de 2013 foi pouco a pouco, mas num ritmo
acelerado para a história, a união de diversos personagens por meio dos contra-
públicos digitais, facilitados pela digitalização (CELIKATES, 2015; apud ROCHA,
2018) para tornar o espaço público – tanto as ruas como as redes sociais – um lugar
por excelência de disputa de poder, que se transportou mais tarde para a esfera política
institucional, na qual essas mesmas figuras foram se associando a partidos políticos e
alguns, inclusive, em convergência com o presidente da república.
É preciso continuar buscando analisar a ruptura dessas associações ideológicas
para que caminhemos na direção de um amplo e aberto entendimento teórico das
ideologias políticas e seu movimento na prática política de nossa sociedade. O recorte
do governo de Jair Bolsonaro é importante para ver como o desenvolvimento da Nova
Direita, estudado por Camila Rocha (2018), pode estar agora significando um processo
de profunda ruptura. E, para além da ruptura, encarar a esfera política brasileira como

28 Ver em: https://economia.ig.com.br/2021-05-29/petrobras-general-silva-e-luna-


bolsonaro-interferencia.html
29 Ver em: http://www.revistasilva.cep.eb.mil.br/pt/edicao-anteriores/2-uncategorised/26-

tradicao-transformacao-e-o-espirito-militar-uma-entrevista-com-celso-castro

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um espaço de disputa de poder onde reina, por um lado, a governabilidade por meio
da coalizão majoritária de partidos políticos; e, por outro lado, a relação amigo-inimigo.
Mouffe (2019) estabelece a importância dos afetos na construção de indivíduos com
valores democráticos que respeitem as pluralidades existentes na sociedade civil. Com
base nisso, passo a posicionar os discursos compartilhados pela ala ideológica de
Bolsonaro como um modelo contrário ao incentivo de valores democráticos pelos
afetos e paixões. O sentimentalismo é característica dos discursos utilizados através da
simbologia da relação de inimizade que Bolsonaro e a ala conservadora joga como
regra (anti)democrática. Segundo Caixeta (2006), para Carl Smichtt, o político só se
constrói segundo a relação amigo-inimigo; o inimigo é um inimigo público,
representado como “aquilo que o caracteriza é uma possível confrontação com ele,
onde a própria questão da vida está sendo colocada” (p. 48). Bolsonaro se refere aos
seus adversários políticos como inimigos públicos, e não como adversários, que seriam
inimigos legítimos das políticas democráticas. Olhar com inimizade para adversários
pressupõe um estado de exceção, onde o antagonismo normativo não alcança, e,
portanto, a deflagração física pode ocorrer caso necessária para isto, parece ter as
Forças Armadas, e em especial o Exército, como seu braço de apoio.
Adiante, com o Executivo estremecido, Bolsonaro busca apoio na base popular
que o elegeu e na conciliação com partidos do Centrão. Com mentalidade autoritária,
segundo Moisés (2020), ele rejeitara as regras do jogo político brasileiro, tal qual a
formação de coalizões, para governar e trouxe de volta a instabilidade política entre
Executivo e os outros poderes, principalmente com o Legislativo. Hoje, já com o
discurso moderado, Bolsonaro afirma que “Tirando os partidos e centro e de esquerda,
sobrariam 150 deputados. Com 150, não vou a lugar nenhum. Então, a minha
aproximação com os partidos de centro é pela governabilidade.” (BOLSONARO,
2021)
Ainda que Bolsonaro esteja alterando seu modo de jogar o jogo político para
se adequar a velha política, ou seja, aos arranjos institucionais do sistema político
brasileiro que por si é hiperfragmentado e sempre mais próximo da instabilidade
política, os acontecimentos no decorrer de seu governo já mostraram que as ideologias
de cada núcleo sofrem mais choques do que aproximações, o que leva a refletir que
não conseguem formar um governo buscando conciliar-se uns com os outros. O fator
fundamental que levou a união já não é mais discutível, até que se prove contrário nas
eleições de 2022. Contudo, até lá, Bolsonaro vai buscar novos apoios, e a ideologia
conservadora há de prevalecer sobre as outras, visto que as elites econômicas estão
divididas quanto a isso. Longe de desgastar esse debate, portanto, concluo ressaltando
que a democracia liberal não escapou das práticas políticas autoritárias que definem os
atores políticos que operam no limite da constitucionalidade. Contesto a afirmação de
Mouffe (apud DA SILVA e RODRIGUES, p. 103, 2021) de que o projeto de
Bolsonaro põe em risco a democracia pluralista, pois um sistema de governo que abriga
em seu cerne uma Constituição pós-autoritária sem eliminar por completo as entranhas

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Eixo 5
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da ditadura não pode ser considerado como pluralista por si. De Souza e Brasilino
(2015), em uma passagem, afirmam, citando Zaverucha (2008, p. 133):

Promulgada a Constituição Federal de 1988, reforça-se a centralidade das polícias militares


na seara da segurança pública, tornando ainda mais turva a linha que separa a vocação
militar de defesa da soberania nacional e a função policial de ordenamento social interno
– condição sine qua non para qualquer regime democrático.

Um governo com ideologia conservadora que se alia à liberal como


demonstrado ao longo do desenvolvimento da pesquisa, pode ser considerado como
(proto)fascista, militarizado, etc.; e a democracia como iliberal. O governo e seu projeto
político militarizado avança mesmo sem uma boa parte da base que o apoiou; teremos
que esperar para ver se e quando irá colidir de uma vez essa onda populista e fascista
da extrema-esquerda brasileira, que urge sua imparidade diante de as outros setores de
(centro-direita).

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Eixo 5
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ÉTICA, LIBERDADE EMPRESARIAL E PROTEÇÃO DE


DADOS PESSOAIS

Bianca Michels Silveira1


Guilherme de Assis Furtado2
Sávio Araújo de Lemos Silva3

Resumo: Atualmente, no âmbito da Quarta Revolução Industrial, temos que os dados


pessoais, interferindo diretamente nos meios de produção, se converteram em
verdadeira forma de controle de mercado, conduta vedada pelo sistema jurídico
brasileiro, conforme art. 170, IV, da Constituição Federal. Por outro lado, sabe-se que
a eticidade norteia as relações civis nacionais, sendo imprescindível a análise ética deste
controle de mercado, quando da responsabilização jurídica. A proteção de dados no
sistema jurídico vigente confere um regime de maior responsabilização ao
descumpridor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Entretanto, este
é um paradigma ético por vezes incompleto, havendo a possibilidade de outros
instrumentos filosóficos e sociais, objetivando a análise dos limites da liberdade
empresarial e a consequente carga de responsabilização das empresas que realizam
tratamento de dados em casos de abusos.

Palavras-chave: Ética. Liberdade Empresarial. Livre Concorrência. Proteção de


Dados Pessoais.

Introdução

Atualmente a sociedade encontra-se no ambiente do pós-positivismo jurídico,


considerando que nos períodos entre Guerras Mundiais a aplicação pura da norma
jurídica foi insuficiente para o direcionamento do Direito em função de seus objetivos
de pacificação e obtenção de segurança social, com a preservação da dignidade
humana.
Ademais, alia-se ao fato da falência do positivismo jurídico a aceleração da
alteração das relações sociais na sociedade da informação, impondo a necessidade de
dinamização do processo de regulação jurídico-social.

1 Graduanda em Enfermagem pela UNIFIL (2021) e Filosofia pela UEL (2021). E-mail:
bianca.michels@uel.br.
2 Graduando em Direito pelas Faculdades Londrina (2021) e Filosofia pela UEL (2021). E-

mail: guilherme.assis@uel.br.
3 Bacharel em Direito pela UEL (2012) e graduando em Filosofia pela mesma instituição de

ensino (2021). E-mail: savio.lemos.silva@uel.br.

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Eixo 5
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Nesta conjuntura, verifica-se que as legislações hodiernas apontam a técnica de


fixação de cláusulas abertas, as quais determinam um norte principiológico para o
aplicador do direito, que possui uma maior liberdade na atividade de subsunção
jurídica.
Com efeito, nasce a característica de plasticidade da norma jurídica, através da
técnica anteriormente mencionada, a qual possibilita o acompanhamento da dinâmica
social e a concatenação do Direito em função de seus objetivos.
Nesta linha, surge a Teoria Tridimensional do Direito, do Prof. Miguel Reale,
na qual o Direito deve ser compreendido na sua tríplice relação entre fato, valor e
norma jurídica, de forma dinâmica.
Assim, o Direito não possui mais um caráter autopoiético, alicerçando-se
também em valores éticos e sociais. Ou seja, a norma jurídica, durante sua
aplicabilidade, se capilariza para buscar sua fundamentação nos axiomas anteriormente
mencionados, os quais estão em constante transformação em virtude da evolução
social. Em suma, a plasticidade da norma jurídica enquadra-se na formatação dada
pelos valores propedêuticos da ciência jurídica.
Nesta linha, destaca-se a importância dos estudos Éticos e Sociais, em conjunto
com o Direito, no bojo da Quarta Revolução Industrial, em que o dinamismo social
atingiu patamares que obstam a previsibilidade das futuras relações de mercado, em
virtude da Transformação Digital dos meios de produção.

1. Impactos da Quarta Revolução Industrial e o tratamento de dados

Nos últimos anos, a relação entre indústria, tecnologia e digitalização vem


fomentando diversas discussões sociais, éticas, filosóficas e especialmente jurídicas.
Notório também a velocidade com que os processos tecnológicos surgem e
reinventam seus próprios meios industriais, trazendo um impacto sistêmico em nossa
vida cotidiana e coletiva. Ao observarem este fenômeno, economistas, juristas e
filósofos apontam que estamos em uma 4ª Revolução Industrial, a qual “difere de tudo
aquilo já foi experimentado pela humanidade” (SCHWAB, 2019, p. 15)
O economista alemão Klaus Schwab, um dos idealizadores do conceito da 4ª.
Revolução Industrial, em obra homônima, define este momento como um tempo de
mudanças profundas nas concepções atuais da tecnologia, bem como algo que irá
mudar todo o contexto social, econômico e cultural em que estamos inseridos.
Para o economista mencionado no parágrafo anterior, há 3 processos que
garantem a visão desta 4ª Revolução Industrial, sendo eles: i) a velocidade com que a
tecnologia gera outras tecnologias ainda mais qualificadas que as anteriores; ii)
amplitude e profundidade, sendo estas as mudanças relevantes que alteram o que
fazíamos e o que somos; iii) impacto sistêmico que envolve, principalmente, as relações
interpessoais e empresariais (SCHWAB, 2019, p. 17).

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No entanto, este assunto é complexo e denso em vários sentidos, aos quais


precisam ser debatidos entre as camadas do direito, da sociologia e da filosofia, uma
vez que presentes no âmbito social, tornando inafastável o dever de proteção do
Estado, através dos sistemas de justiça, para garantia da devida regulamentação
legislativa destas tecnologias emergentes.
Klaus Schwab ainda discute acerca do problema do aumento da desigualdade
no referido contexto contemporâneo, em dois níveis, um global e outro individual.
Em uma questão macro, verifica-se que enquanto em alguns países já se discute
o acesso à internet como Direito Fundamental ou Direito Humano (p. ex. União
Europeia), em outro viés, tem-se que mais da metade da população mundial ainda não
tem acesso a saneamento básico, ao passo que cerca de 40% dos habitantes do globo
vivem sem água e sabão para lavar as mãos (UNICEF/ONU, 2020).
Esta é uma situação de desigualdade que pode ser reforçada pela
Transformação Digital dos meios de produção, considerando a concentração de
tecnologia nos países desenvolvidos.
Na perspectiva micro, tem-se que a automação gerada pela 4ª. Revolução
Industrial impende em um grande desequilíbrio entre oferta de produtos e de trabalho
(mão-de-obra):

“Durante os últimos anos, a esmagadora maioria dos países mais desenvolvidos e


também algumas economias em rápido crescimento, como a China, têm passado por
um declínio significativo de sua mão de obra vista como porcentagem do PIB. Metade
dessa queda é em razão da queda no preço relativo dos bens de investimento, sendo
que esta última foi causada pelos progressos das inovações (que obriga as empresas a
substituírem trabalho por capital – intelectual ou tecnológico)” (SCHWAB, 2019, p.
20).

No processo da Transformação Digital dos meios de produção, postos de


trabalhos formais são fechados, acarretando concentração de capital no entorno do
detentor da ideia inovadora, assim como ocorre no fenômeno da “uberização do
mercado de trabalho”.
Do exposto, em ambos os níveis (micro e macro), verifica-se que a 4ª.
Revolução Industrial tem um problema congênito com a concentração de capital, em
especial o capital intelectual ou tecnológico, acarretando uma situação de desigualdade.
Os efeitos da digitalização em massa, por sua vez, marcados pela supracitada
4ª Revolução Industrial se ligam diretamente ao tratamento de dados e a Lei Geral de
Proteção de Dados – LGPD, a qual, embora relativamente recente no Brasil, tem raízes
que perpassam mais de cinco décadas de discussão.
Discutida primeiramente na Alemanha na segunda metade do século XX, a
proteção de dados vem como um marco global, sendo instaurada concretamente em
mais de 140 países atualmente (DONEDA, 2021, p. 7).
Desde a década de 1960 nos Estados Unidos, onde se tem os primeiros
preparos para uma informática automatizada capaz de armazenar dados e captar

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

informações, originou-se uma preocupação séria com a relevância do direito à


privacidade e principalmente à liberdade de expressão, tendo sido debatida pelo
Congresso Americano sobre as suas respectivas viabilidades e eficácias (DONEDA,
2021, p. 7), o que, posteriormente, viria a ser lido como um fenômeno digital integrante
dos direitos fundamentais.
Essa característica debatida principalmente nos tribunais da Alemanha, e nos
Estados Unidos, a qual significou um marco de relevância para o resto do mundo,
sinalizou ainda a forte colisão do tratamento de dados em relação aos direitos
fundamentais tais como à privacidade, liberdade e garantias sociais, permeando ainda
pela interpretação da autodeterminação informacional, debatidos a partir do direito de
personalidade, ou seja, reconhecendo que o cidadão tem o direito de saber quais dados
são armazenados referente a sua pessoa e para qual fim se é utilizado (DONEDA,
2021, p. 7).
A relevância dessas discussões observou o ritmo exponencial do uso de dados
pessoais no século XX, trazendo novos desafios e demandas aos debates no Brasil, que
necessitava de instrumentos de controle e manutenção das garantias individuais, aos
quais foram necessários marcos legislativos para atender e preencher esta insegurança
jurídica.
Embora a regulamentação de uma lei específica para o tema carecesse no Brasil,
e mesmo com propostas nascentes antes da Constituição de 1988 como foi o Projeto
de Lei 2.796 de 1980, o debate sobre o tema no prisma político carecia de atenção.
Alguns autores apontavam que implicitamente a Constituição Federal de 1988
já fornecia alguns desses instrumentos de controle em seu texto sendo ele o instituto
do habeas data, ao qual é definido por Ingo Sarlet como:

“[...] ação constitucional, com status de direito-garantia fundamental autônomo, que


precisamente busca assegurar ao indivíduo o conhecimento e mesmo a possibilidade
de buscar ratificação de dados constantes de registro de bancos de dados de entidades
governamentais ou de caráter público” (SARLET, 2021, p. 13).

Igualmente, um marco importante para a utilização sistemática de proteção aos


consumidores no ordenamento jurídico Brasileiro, em relação às empresas, se dá pela
aplicação do Código de Defesa do Consumidor – CDC, que foi capaz de lidar com
uma alta demanda de ações que versavam sobre dados.
Desta forma, observa-se que o fenômeno da regulação dos dados sob o prisma
Constitucional já obtinha uma disposição hermenêutica pautada nas colaborações
implícitas no texto constitucional, como é o caso do habeas data junto à aplicação do
Código de Defesa do Consumidor, mas que, no entanto, a regulamentação da LGPD
significou um marco no processo das garantias constitucionais, bem como criou
estruturas para o tratamento de dados que correspondem a uma grande tendência de
mercado contemporâneo, submetendo empresas e demais institutos aos princípios de

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proteção de dados e normas isonômicas (SARLET, 2021, p. 13), as quais ainda podem
ser otimizadas pelas bases propedêuticas do Direito, conforme será analisado a seguir.

2. Concentração de capital e o estado de natureza em Hobbes

A concentração de capital sempre foi um problema a ser enfrentado pelo


pensamento liberal, uma vez que é o ponto de contato entre liberalismo econômico e
político, para aqueles que enxergam a referida dualidade.
Isto porque a concentração de capital é um fator de poder político, ao passo
que o pensamento liberal político busca a desconcentração de poder, uma vez que a
ideia em sentido contrário pode levar à subjugação de indivíduos. Nesta linha, a
preocupação de Klaus Schwab quanto à possibilidade de acentuação das desigualdades
socioeconômicas no contexto da Quarta Revolução Industrial, mencionado no
primeiro tópico deste estudo, é de extrema relevância.
Esta subjugação de indivíduos pelo poder econômico deve ser solucionada
pelo Direito, instituído pelo Estado, a fim de equalizar os polos desta relação sócio-
jurídica. Sem o Direito, neste aspecto, regulando a concentração de poder,
ingressaríamos no Estado de Natureza Hobbesiano.
O Estado de Natureza em Hobbes é uma hipótese conceitual anterior ao
Estado Civil, como uma negação deste último. Impera no Estado de Natureza a
possibilidade total do uso da força, em uma guerra de todos contra todos, sem qualquer
segurança ao indivíduo, na perspectiva de que sempre haverá alguém mais forte, o que
pode ser verificado no regime concorrencial extremado.
A concorrência mercadológica, sem qualquer regulamentação, gera um colapso
da própria concorrência, o que se convencionou chamar de tendência autofágica do
sistema capitalista. É neste espírito que nascem as políticas públicas, através do Direito,
de combate à cartelização, ou seja, antitruste.
Não seria exagero, atualmente, afirmar-se que grandes grupos econômicos
gerenciadores de Big Data, como a Google, a Apple e o Facebook, constituem
monopólios digitais, com reações legislativas ocorrendo neste instante ao redor do
mundo em desfavor destes grupos econômicos.
Apesar do Estado de Natureza se mostrar como uma situação hipotética, calha
destacar que Hobbes desenvolve seus estudos na efervescência do movimento
empirista inglês, tendo inclusive se relacionado com Francis Bacon em meados de 1616
(MAGALHÃES, p. 32).
Ou seja, este estado hipotético é possivelmente uma análise empírica de
Hobbes e de sua vivência no âmbito da Guerra Civil Inglesa (falência do poder
constituído) e do nascimento do Mercantilismo (competição intra-burguesa ilimitada)
(MAGALHÃES, p. 84).

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Alguns autores inclusive pontuam Hobbes como um dos precursores do


Estado de Bem-Estar Social (MAGALHÃES, p. 77), considerando que o objetivo do
Estado é a segurança e prosperidade individual do povo (HOBBES, p. 9).
Note-se que o regime mercantil e o campo atual da digitalização e uso de dados
possuem como ponto de contato a precariedade de regulamentação, o que induziria a
um Estado de Natureza, em uma guerra de todos contra todos.
Nesta linha, é imprescindível salientar que Liberdade e Sigilo Empresariais não
podem ser confundidos com arbitrariedade, ou seja, com ausência de regulamentação
por parte do Estado, sob pena dos grandes grupos econômicos que realizam o
tratamento de dados converterem a atual sociedade em um novo tipo de servidão.

3. Justiça e Igualdade em Ralws:

José Eli da Veiga, Professor de Economia da USP, em obra intitulada


“Sustentabilidade: a legitimação de um novo olhar”, defende que os países
desenvolvidos adotem uma situação de prosperidade sem crescimento, para que os
países em desenvolvimento possam atingir o mesmo grau de prosperidade. A
transferência de tecnologia, neste ponto, poderia ser um instrumento para obtenção
do referido equilíbrio pretendido.
Esta perspectiva de um equilíbrio socioeconômico também pode ser aplicada
em um nível micro-social, na relação entre ao tratamento de dados que grandes
empresas que realizam tratamento de dados em relação aos consumidores, aplicando-
se a perspectiva de um benefício coletivo, conforme lição de Rawls:

“Na justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento


cooperativo para a vantagem de todos. A estrutura básica é um sistema público de
regras que define um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos
no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios, atribuindo a cada um
certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O que uma pessoa faz depende
do que as regras públicas determinam a respeito do que ela tem direito de fazer, e os
direitos de uma pessoa dependem do que ela faz. Alcança-se a distribuição que resulta
desses princípios honrando os direitos determinados pelo que as pessoas se
comprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas” (LIMA apud RAWLS, 2019,
p. 24).

Neste sentido, a Transformação Digital dos meios de produção deve ser uma
medida que beneficie a sociedade de uma forma coletiva e proporcional, através de
uma visão liberal-cooperativa, evitando-se o controle de mercado.
Por outro lado, esperar que essa postura cooperativa apareça espontaneamente
no seio social é uma relativa ingenuidade, considerando que desde o início da sociedade
este fato é algo que não se verificou, pela prevalência da postura de competição
intersubjetiva, conforme exposto alhures.

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4. Constitucionalismo digital e a regulamentação das empresas

No âmbito dos direitos e garantias fundamentais originários das


regulamentações e princípios do ciberespaço, nasce uma corrente teórica do Direito
Constitucional contemporâneo a fim de “organizar a partir de prescrições comuns de
reconhecimento, afirmação e proteção de direitos fundamentos” (MENDES E
FERNANDES, 2018, p. 8) no prisma das relações emergentes do espaço virtual,
buscando a regulamentação e a obtenção de justiça e igualdade mencionadas nos itens
anteriores.
O que se mostra um “quadro normativo de proteção dos direitos fundamentais
e de reequilíbrio de poderes na governança do ambiente digital” (MENDES E
FERNANDES, 2018, p. 12).
Observa-se, ainda mais frequente, a responsabilidade com que as empresas
privadas devem ser submetidas, a fim de delimitar suas atividades em meio a tantas
garantias e direitos fundamentais com o advento da internet.
São direitos à expressão, liberdade religiosa e direitos partidários, que
enaltecem o exercício da democracia. No entanto, concomitantemente ao exercício de
tais direitos, nasce a preocupação dos crimes cibernéticos, como o cyberbullying e as fake
- 324 -ecl.
Tais implicações engajam situações e debates muitas vezes não enfrentadas
pelas Cortes Constitucionais ocasionado pelo exponencial desenvolvimento
tecnológico que implica nas mais novas cenas e contextos sociais. Como já
mencionado anteriormente, o Direito não pode permanecer inerte mediante ao
progresso tecnológico.
O regime do ambiente virtual, evidenciado por intermediadores de conteúdos
que perpassam milhões de usuários, passa a ser um cenário ideal para a um controle
de dados e fluxo informacional, o que, com isso, gera até mesmo um controle do
próprio detentor do fluxo informacional. No entanto, vemos um fenômeno
recorrentes na gama das empresas dominantes de mercado (MENDES E
FERNANDES, 2018, p. 12).
A dominação de grandes grupos econômicos em monopólios digitais já é uma
realidade, conforme exposto acima, uma vez que estes possuem acesso a uma ampla
gama de algoritmos e fluxo de dados capazes de determinar situações políticas, sociais
e culturais. De acordo com Mendes e Fernandes:

“As decisões privadas tomadas por essas empresas possuem reflexos diretos nas
possibilidades de realização de liberdades públicas. Tal realidade enseja duas
implicações relevantes para a jurisdição constitucional no que toca à proteção de
direitos relacionados à liberdade de expressão (2018, p. 12)”.

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Verifica-se neste passo, que as empresas privadas detentoras de fluxos de


informação acabam por tratar dados e evidenciar poderes de resolução de conflitos no
que tange aos direitos fundamentais antes mesmo de um processo judicial ou via
administrativa. Assim, aparentemente, com os termos e contratos iniciais, pautados
sobretudo, em ditames constitucionais, estes são reguladores e podem funcionar como
verdadeiros tribunais (MENDES E FERNANDES, 2018, p. 12).
Tribunais na Europa já estão incursionando sobre estes novos desafios da era
digital, definindo parâmetros para a aplicação do chamado regime híbrido de
corresponsabilidade dos intermediários on-line. Este sistema consiste em uma série de
regimentos detalhados de obrigações as quais os provedores devem cumprir para que
sejam, de forma categórica e célere, eficazes no tratamento de conteúdos
potencialmente nocivos à liberdade (MENDES E FERNANDES, 2018, p. 12).
Ademais, este processo não significa uma ruptura dos termos ou da autonomia
das empresas que possuem estes dados e analisam, de forma autônoma, tais
comportamentos de seus usuários. A decisão vincula-se à ideia de um controle estatal
para que não haja repressões e limitações a direitos de liberdade de expressão e a
delimitação arbitrária por parte de quem controla todos estes dados, tornando clara a
ideia de necessidade do Estado em Hobbes para preservação da liberdade, conforme
acima elencado.
Neste sentido, vivenciamos um período marcado pela Quarta Revolução
Industrial e uma crescente expansão dos domínios da digitalização em massa,
demonstrando o rápido avanço de empresas que tratam diversos dados e possuem, em
ampla maioria, poderes para mudar questões sociais e de cunho constitucional.
Assim, o Constitucionalismo Digital vem para clarear algumas dessas situações,
as quais têm se tornando puramente habituais, uma vez que o direito não pode deixar
de acompanhar o progresso tecnológico e social.

5. O Paradigma Digital em Habermas

Para Jürgen Habermas, esfera pública é o espaço que se configura quando


indivíduos se reúnem para discutir questões de interesse público. Nesse espaço, sem
que haja intermediações, regras ou formalidades, o discurso e a articulação dos
indivíduos evoluem para a emergência de uma opinião coletiva e comum.
De forma que a esfera pública se contrapõe ao Estado – sendo formada por
indivíduos privados, mas que passam a discutir temas relacionados ao coletivo – e
torna-se o espaço de intermediação entre os indivíduos e o sistema (HABERMAS,
1984).
Habermas publicou a obra “Teoria da Ação Comunicativa” (1981), que se
refere à legitimidade e à garantia de um consenso racional-estratégico construído
discursivamente, preservando princípios éticos para concretização da transparência
como subsídio para a gestão social.

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Nesta linha, há a possibilidade de aplicação da ideia de transparência dos


assuntos públicos na concepção de empreendimento social-cooperativo abordada por
Rawls, conforme acima exposto.
Em apertada síntese, para obter-se a liberdade e a igualdade apontada por
Rawls, é imprescindível a transparência da gestão dos assuntos públicos, para que
todos tenham capacidade real de escolha, e tendo em vista ainda que, neste caso, os
interesses privados devem ser relativizados.

“Na ação comunicativa, os participantes não são orientados principalmente para seu
próprio sucesso; em vez disso, buscam seus fins individuais sob a condição de que
seus respectivos planos de ação possam ser harmonizados entre si com base em uma
definição compartilhada da situação” (1987, p. 367).

Habermas utiliza o conceito do agir comunicativo como base para sua teoria
do consenso, pois onde não existe a possibilidade de uma comunicação livre, em que
todos tenham condições para que possam se manifestar sempre que assim o desejarem,
não será possível a busca do consenso para a solução dos conflitos e discussões de
qualquer área do saber humano.
Salienta-se que o sigilo empresarial sobre como é realizado o tratamento de
dados, aliado à falta de conhecimento técnico da população perante os grandes grupos
econômicos que realizam esta exploração comercial é um problema de transparência a
ser enfrentado no contexto moderno.
Nesta linha, é indispensável a figura do Estado para esclarecer os pontos
obscuros do tratamento de dados, de forma acessível a toda a população, inclusive
através de medidas comissivas ou impondo estas obrigações de esclarecimento às
empresas que explorem este nicho de atividade, não só impondo proibições e sanções
aos grupos econômicos que realizam o tratamento de dados.
Isto porque o paradigma social contemporâneo que surgiu com o progresso de
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) (SILVA, 2014, p. 72) e o impacto
social gerado pela Quarta Revolução Industrial influenciaram o Constitucionalismo
Digital sob consolidação legítima do Estado Democrático de Direito e proteção da
liberdade individual no ciberespaço, conferindo às empresas obrigações de
responsabilidades sociais que vão além das obrigações econômicas, contratuais ou
legais.
Os desafios ao paradigma do Constitucionalismo Humanista e Social,
despontados no Ocidente desde meados da década de 1970, conforme já salientado,
têm sido aprofundados ao longo do tempo, fazendo-se presentes em distintas
experiências históricas e nacionais, colocando o ser humano no centro do
ordenamento jurídico, através da primazia da dignidade humana de Rosseau-Kant, em
detrimento de uma exploração econômica arbitrária.

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Eixo 5
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Nesta linha, é imprescindível que os conceitos de liberdade e segurança sejam


harmonizados, justamente para preservação da prevalência da dignidade humana
mencionada no parágrafo anterior.

6. Da aparente dissociação entre liberdade e segurança na sociedade do


risco

O contexto entre guerras demonstrou que o ser humano é capaz de optar pela
abstenção de sua capacidade de escolha, o que deu origem aos Estados Totalitários no
referido período, os quais em sua grande maioria foram eleitos democraticamente, em
um movimento de autofagia política.
Na visão de Ulrich Beck, no ambiente pós-moderno da sociedade do risco o
indivíduo busca um totalitarismo legítimo diante do perigo social, que em algumas
situações se mostra incomensurável (BECK, 2011, p. 97).
Cotidianamente, a sociedade assiste o progressivo endurecimento das leis
penais a cada crime bárbaro que impacta momentaneamente a população, continuando
este movimento de auto-supressão da liberdade. E esta disposição não é nova.
Dostoiévski, na obra “Os Irmãos Karamazov” (1879), já alertava para esta questão
existencial, sobre a busca pela segurança em detrimento da liberdade.
Entretanto, Beck traz um alento aos idealistas da liberdade. No ambiente pós-
moderno, a social-democracia europeia criou um ambiente de emancipação do
indivíduo, que fomentou a busca pela liberdade (BECK, 2011, p. 115).
Vale destacar, por outro lado, que a atual conjuntura social, da Quarta
Revolução Industrial levanta um questionamento sobre o totalitarismo digital imposto
em decorrência da personalização dos meios de produção.
Para garantir uma relativa segurança, os indivíduos utilizam inúmeros bancos
de dados e algoritmos de aplicativos informatizados, submetendo-se ao controle dos
grandes grupos econômicos.
Nesta linha, verifica-se que há uma substituição do controle exercido pelo
Estado em virtude daquele exercido pelos grandes grupos econômicos que agem em
monopólio para tratamento de dados pessoais.
Hordienamente, os algoritmos que realizam o tratamento de dados pessoais
voltados para o mercado tomam proporções exponenciais, ao que cabe a reflexão
sobre nossa autonomia em relação aos processos digitais de produção.
O grande problema reside no fato que os dirigentes do Estado são eleitos
democraticamente para orientar a Administração Pública na busca de soluções que
atendam ao interesse público, submetidos a um regime de responsabilização política,
civil, penal e social; enquanto que estes grandes grupos econômicos estão orientados
em direção de interesses privados.
Nesta linha, é imperioso que os benefícios trazidos pela Quarta Revolução
Industrial sejam divididos coletivamente, na perspectiva do empreendimento social

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Eixo 5
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apontado por Rawls, a fim de propiciar igualdade e emancipação social, induzindo a


sociedade na busca pela liberdade, bem como realizando-se uma exumação do papel
do Estado no controle dos interesses privados dos grandes grupos econômicos que
agem em monopólio para o tratamento de dados pessoais.
Por outro lado, há que se salientar que a visão de Ulrich Beck sobre o regime
de antecipação e distribuição equânime de grandes riscos, como os ambientais,
também tem espaço de aplicação no presente estudo.
Simplificando a questão, se os grandes potenciais poluidores têm uma maior
carga de responsabilização por dano ambiental, é de se esperar que os grandes grupos
econômicos que realizam o tratamento de dados em regime de monopólio também
tenham uma maior carga de responsabilização e obrigações sociais no caso de mal uso
de dados, a fim de propiciar o resultado de antecipação e distribuição equânime de
grandes riscos, mencionado no parágrafo anterior.

Conclusões

Do exposto, verifica-se que a liberdade, no âmago dos ensinamentos de


Hobbes e Rawls, é um conceito que implica o reconhecimento da necessidade de
regulação e igualdade, ao passo que ambas estas perspectivas apontam a imperiosa
interferência do Estado para assegurar estes dois princípios, bem como a transparência
dos assuntos de interesse público, garantindo-se assim a plenitude da liberdade,
inclusive na atual condição de Transformação Digital dos meios de produção,
Sociedade da Informação (e Risco) e Quarta Revolução Industrial.
Nesta linha, verifica-se que é de vital importância a exumação do papel do
Estado como ente regulador do espaço político e público, assegurando as garantias
constitucionais que permitam a convivência fora de um espaço de subjugação.
Inexistindo a possibilidade de um retrocesso social quanto às inovações
tecnológicas, é imperiosa a necessidade de regulação destas inovações, através do
Direito em sua perspectiva completa, aliado a questões éticas e sociais, para o
desempenho do empreendimento social de forma harmônica e justa.

Referências

BECK, Ulrich. SOCIEDADE DE RISCO: Rumo a uma outra modernidade. 2ª.


Ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011.

DONEDA, Danilo; e SARLET, Ingo Wolfgang. Fundamentos teóricos e históricos


de proteção de dados pessoais. In: Fundamentos constitucionais: o direito à
proteção de dados. (Coord.) MENDES, Laura Schetel; DONEDA, Danilo;

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

SARLET, Ingo Wolfgang; RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Tratado de


Proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021, E-book, pag. 7.

HABERMAS. Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido de


Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Trad. Guido de


Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz


Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

LIMA, Newton de Oliveira Lima. 10 Lições sobre RAWLS. Petrópolis: Editora


Vozes, 2019.

MAGALHÃES, Fernando. 10 Lições sobre HOBBES. Petrópolis: Editora Vozes,


2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo


digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro.
Revista Brasileira de Direito. Passo Fundo, v. 16, n. 1, 2018.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed., São Paulo: Editora


Saraiva, 1994.

SILVA, Rafael Pinto da. Definindo o Paradigma das TICs e seu diálogo com a
Divisão Global Digital. Revista Ibero-Americana De Ciência Da Informação,
6(1), pp. 68–85, 2014.

SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. Bauru: Edipro, 2019.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS DE PROFESSORAS DE


CIÊNCIAS SOCIAIS DA USP (1934-1969)

Claudinei Carlos Spirandelli1

Resumo: O trabalho, cujo objetivo é interpretar sociologicamente a atuação de


cientistas sociais uspianos, investiga trajetórias intelectuais de professoras do Curso
de Ciências Sociais da FFCL-USP. Tal é feito a partir da análise de disputas simbólicas
– típicas de grupos intelectuais e voltadas para a conquista da afirmação acadêmica
– nas Cátedras do Curso. Essas disputas seriam inerentes à busca de poder e
legitimação, por intelectuais em geral, e correspondem a clivagens que são
analisadas a partir das origens sociais das professoras e das relações de sociabilidade
em que se enredavam. O autor mostra que tais origens e relações teriam interferido
nas carreiras delas (posições ocupadas, cargos, títulos e obras produzidas). Ele usa
como referenciais teóricos obras de Bourdieu e Elias, e se vale de textos
biográficos, autobiográficos, depoimentos, memoriais e cartas.

Palavras-chave: campo intelectual; grupos acadêmicos; história intelectual

Introdução

O texto que ora se apresenta trata de versão adaptada e sintetizada de trabalho


de pesquisa e de reflexões que originaram nossa tese de doutoramento, iniciada no ano
de 2004 e defendida no ano de 2009, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, na Universidade de São
Paulo (USP). A tese, posteriormente, foi transformada no livro Trajetórias intelectuais:
professoras do Curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969) (SPIRANDELLI,
2011).
O trabalho utiliza, como referenciais teóricos principais, ideias e conceitos
de Pierre Bourdieu, Norbert Elias, além de Karl Mannheim, bem como se vale de
textos biográficos, autobiográficos, depoimentos, entrevistas, memoriais e cartas 2.

1 Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de


Londrina (UEL-PR). E-mail: spirandelli@uel.br.
2 Resumidamente, de Bourdieu, utilizamos a ideia sobre as questões de poder enredadas no

interior daquilo que ele chama de campo, onde os agentes se “digladiam”, com seus capitais
e habitus (cf. BOURDIEU, 1968; 1974; 1989); assim, abordamos as origens sociais e origens de
classe das professoras. De Elias, pautamo-nos pelo raciocínio segundo o qual
constrangimentos, exigências, necessidades e demandas sociais (de grupos/frações de classe)
são exercidas sobre o intelectual e sua produção, balizando sua autonomia e obras (cf. ELIAS,
1995; 2001). Já as questões referentes à construção dos recortes geracional (e histórico) foram
elaboradas a partir de noção de Mannheim (1979). Finalmente, a respeito de Weber, realizamos

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Nisso tudo, ele se insere no âmbito dos estudos da sociologia da cultura, mais
especificamente na chamada história intelectual ou sociologia da vida intelectual. E, tendo
sido pesquisadas mais de cinco dezenas de nomes importantes, de ambos os sexos,
chegamos aos nomes das principais professoras/pesquisadoras/intelectuais que
seriam analisadas: Gioconda Mussolini e Eunice Ribeiro Durham
(antropólogas); Paula Beiguelman e Maria do Carmo Campello de Souza
(cientistas políticas); Maria Isaura Pereira de Queiroz, Maria Sylvia de
Carvalho Franco e Eva Alterman Blay (sociólogas).
No geral, a pesquisa analisou disputas simbólicas – típicas de grupos
intelectuais e voltadas para a conquista da afirmação acadêmica – nas Cátedras do
Curso. Tais disputas seriam inerentes à busca de afirmação, poder e leg itimação,
por parte dos cientistas sociais em geral, e correspondem a clivagens que são
analisadas a partir das origens sociais dessas professoras e das relações de
sociabilidade em que elas se enredavam. Tais origens e relações teriam interferido
nas carreiras das professoras (ou seja, nas posições, cargos, títulos que
conquistavam, obras que produziam etc.).
Para tudo isso, foram “constituídas” gerações de professoras (cientistas
sociais), bem como grandes quadros sinópticos com os dados coletados. Idem para
um amplo estudo sobre o regime de Cátedras (o sistema organizativo dos cursos da
USP de então). E último, mas não único, a tudo isso foi juntada uma abordagem a
objetos e obras significativas das principais professoras analisadas, que se
relacionariam com as suas trajetórias de vida, trajetórias profissionais e intelectuais.
Em síntese, a pesquisa procura lançar luzes sobre as razões do tipo de
visibilidade das mulheres na produção do conhecimento científico, particularmente nas
ciências sociais. E, tendo passado mais de década da finalização do trabalho,
entendemos que ele vem a incorporar, de modo feliz, discussões de nossa época, tendo
em vista as lutas e conquistas das mulheres no interior de diversas áreas de atuação. O
que pôde ser constatado, com tal empreendimento de pesquisa, para além de discursos,
foram as condições gerais de mulheres intelectuais de um período – e condições estas
que poderiam ser entendidas como inseridas em “subalternidade”, “submissão”,
“vulnerabilidade”, “opressão”, “dominação masculina” etc., mas que foram analisadas
conforme específicos conceitos sociológicos de pesquisa e tendo sido levados em
conta o espírito do momento recortado (anos 1930-1960). Finalmente, para o intuito
do específico deste evento (o XIII SEPECH-UEL), preferimos apresentar um quadro
sintetizado de referida pesquisa, e expor, de modo principal, as conclusões do estudo.

diálogos em torno de suas ideias e estudos a respeito de letrados (intelectuais) do Oriente e


sobre a rotinização (da construção do conhecimento) no Ocidente (cf. WEBER, 1963; 2004;
1999).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Desenvolvimento da pesquisa: recortes temporais e

O recorte histórico, balizado pelas construções geracionais (explicitadas mais


à frente) que fizemos, as quais remontam a meados dos anos 1930, com o surgimento
da Universidade de São Paulo (USP) e o início dos trabalhos de ensino e pesquisa no
interior da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (a FFCL), uma das principais do
conjunto da referida instituição. Esse recorte continua, ao passar pelo ano de 1953 – o
qual representa o início do período de predomínio da então Cadeira de Sociologia I,
quando o sociólogo Florestan Fernandes, já com maturidade profissional, institucional
e intelectual, torna-se seu líder – e este será o ponto de viragem, com as balizas de
identidade e de diferenciação em relação às Cadeiras componentes do então
Departamento de Ciências Sociais da Faculdade. O recorte termina em fins da década de
1960, quando é instituída a atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (a
FFLCH). Tal periodização compôs duas gerações de professoras, conformados por
época/ano de nascimento das pesquisadas, ano de início das graduações e atuações
profissionais.
Em termos mais amplos, o sistema de Cadeiras, ou Cátedras, com suas origens
nas antigas universidades europeias, previa uma composição ou junção de diversas
disciplinas, com seus devidos docentes, e obedecia a uma formatação coerente e
centralizada. Tal sistema vigorou na referida Faculdade de 1934 até 1969, sendo que o
Curso de Ciências Sociais acabou sendo composto, basicamente, por quatro Cadeiras
– a saber, a de Antropologia, a de Política, a de Sociologia I e a de Sociologia II (cf. ARRUDA,
1995; JACKSON, 2003; 2007; MICELI, 1995; 2001; PULICI, 2004).
Em termos mais específicos, as Cátedras compunham o sistema organizativo e
condutor das diversas disciplinas do Curso (cada uma “gerenciava” as suas disciplinas
de Antropologia, de Política e de Sociologia); também encampavam disputas de poder
(acadêmico) e embates, tanto entre si, quanto no interior de cada uma delas. Tais
refregas se ampliariam em meados da década de 1950, quando o Curso começa a
constituir-se de docentes (e mesmo alunos) oriundos de estratos sociais diferenciados,
os quais se engalfinham tanto em relação ao estilo da feitura do texto acadêmico
produzidos pelos integrantes das Cadeiras.
As Cátedras eram centradas fortemente em seus chefes ou regentes, os
catedráticos. É o caso típico de Florestan Fernandes: professor a partir de 1945, seria em
1953 que ele chefiaria, ainda como regente interino, a sua cadeira, a de Sociologia I.
Nela, este professor estuda e orienta trabalhos e disciplinas sobre relações sociais, a
estrutura de classes do País, pesquisas sobre índios, negros e o capitalismo brasileiro;
seus discípulos abraçam tais raciocínios e temas com semelhante profundidade; obras
e pesquisas desse tipo construíram o prestígio dos cientistas sociais da então chamada
escola” sociológica paulista, espécie de grupo que investiga as relações raciais, a
modernização” capitalista e a “superação do atraso” no Brasil. Os integrantes da
Cadeira I (com Florestan de 1953 a 1968 na regência), tentam explicar a caminhada do

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

País, no início dos governos militares, para a situação de capitalismo “dependente”. O


grupo pensa no futuro, na superação do “atraso” brasileiro.
Desde a fundação da USP, em 1934, passaram algum tempo pela Cadeira Paul
Arbousse-Bastide, Claude Lévi Strauss, Roger Bastide, além de Antonio Candido de
Mello e Souza, Gilda de Mello e Souza, Lavinia Villela, Lucilla Herrmann. Após 1953,
até o final do sistema, os integrantes da Cadeira de Sociologia I, além de Florestan
Fernandes (sucedendo a Roger Bastide), seriam Fernando Henrique Cardoso, Octavio
Ianni, Renato Jardim Moreira, Leôncio Martins Rodrigues, José de Souza Martins, entre
outros. Há mulheres na Cadeira, mas nunca estão entre as principais na hierarquia, nos
temas e com as principais disciplinas a lecionar. Após 1953, as principais seriam Maria
Sylvia de Carvalho Franco, Marialice Menccarini Foracchi, Lourdes Sola, Heloisa
Helena T. de Souza Martins, entre outras.
Enquanto isso, a Cadeira de Sociologia II centrava estudos no passado
brasileiro, no Brasil rural, sertanejo, tendo visada de estudos diferentes, portanto. Ela
contribui à sua maneira para estudos sobre como se colocava a sociedade brasileira de
então, em termos de pluralidades de tempos históricos. Expôs a problemática da
transição cultural e dos bloqueios às mudanças e lentidões nos processos sociais de
transição da sociedade tradicional brasileira para uma moderna, algo que se chocava
com a visão mais “desenvolvimentista” da outra Cadeira. Os trabalhos sobre alta
cultura, ou sobre famílias, caipiras e grupos rústicos em geral, em torno de um Brasil
profundo, quase esquecido, assinalam bem as características da Cadeira II. Por ela
passaram Paul Arbousse-Bastide, Roger Bastide, Fernando de Azevedo, Ruy Galvão
de A. Coelho, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Aparecida Joly Gouvea, Eva Alterman
Blay etc.
Já a Cadeira de Antropologia se estruturaria para o Curso em fins da década
de 1940. Teve como membros os professores alemães Emilio Willems e Egon
Schaden, bem como Antonio Augusto Arantes, José Francisco Fernandes Quirino
dos Santos e outros. Entre as mulheres, além de Gioconda Mussolini, atuaram
Eunice Ribeiro Durham, Ruth Correa Leite Cardoso, Renate Brigitte Nützler
Viertler e Thekla Olga Hartmann.
Essa Cadeira registrou diversas controvérsias e embates institucionais. Um
deles revelou-se nas divergências teóricas e políticas entre Emilio Willems e
Florestan Fernandes ou, institucionalmente, entre as Cadeiras de Antropologia e
de Sociologia I. Em fins dos anos 1940, ambos polemizariam, em artigos na revista
Sociologia, a respeito de diferentes concepções sobre classes sociais e sobre cultura. De
um lado, Emilio Willems e seu colega, o sociólogo Donald Pierson, defendendo e
enfatizando a necessidade de mais pesquisas empíricas estilo norte-americano da
Escola Sociológica de Chicago e da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
Enquanto isso, Florestan Fernandes, na Sociologia I, defende as grandes
generalizações, de teor globalizante, que seriam, segundo ele, úteis para o
entendimento das típicas sociedades capitalistas modernas.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Outras disputas se ligam ao fato de a professora Gioconda Mussolini ter


realizado diálogos críticos com o método de estudos de comunidade, contrapondo-se
ao primeiro catedrático (ou chefe) Emilio Willems (e até aos membros das Cadeiras
de Sociologia). Gioconda Mussolini seria pivô de querelas na Cadeira, irrompendo
em distanciamento, até de seu Orientador do inacabado doutorado, Egon Schaden,
o então regente da Cátedra na década de 1960 (CORREA, 1995). Em linhas gerais,
tais foram alguns dos choques que ocorreram na Cadeira; seriam, contudo,
relevantes para a configuração de obras de suas mais importantes integrantes,
Gioconda Mussolini e Eunice Ribeiro Durham.
A Cadeira de Política começaria oficialmente em 1941. Por ela passaram
Antonio de Sampaio Dória, Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide, George
Gurvitch, Lourival Gomes Machado, Fernando Henrique Cardoso, Oliveiros da
Silva Ferreira, Francisco Corrêa Weffort, entre outros. Entre as mulheres, Paula
Beiguelman, Maria do Carmo Campello de Souza, Célia Nunes Galvão Quirino dos
Santos, entre outras. A Cadeira se tornaria, em 1950, parte integrante do
Departamento de Sociologia e Antropologia, órgão criado em 1948 para gerir todo o
Curso de Ciências Sociais da FFCL-USP.
Da Cadeira de Política e suas rusgas com as de Sociologia, bem como as
internas. Assim, de 1954 a 1967, Lourival Gomes Machado seria o Catedrático. Em
algumas oportunidades (nos anos de 1952 e de 1963), Paula Beiguelman seria
“regente a título precário”, substituindo o Catedrático de turno. Com a vaga, em
1968, ocorre o concurso em que Fernando Henrique Cardoso vence Paula
Beiguelman, conquistando a regência efetiva da Cadeira. O sociólogo iria
transformá-la, então, em Cadeira de Ciência Política. Contudo, no início de 1969,
após o Ato Institucional nº. 5, sua aposentadoria compulsória e as reformas
universitárias, seu projeto foi abortado. Cardoso era sociólogo do grupo de
Florestan Fernandes, o que poria a Política na órbita da Sociologia I.
No entanto, todos os embates aqui relatados devem ser vistos de modo
sempre matizado, por não serem tão radicalmente opostos. Mas eram disputas sutis
por poder. Contudo, as disputas foram assim expostas para efeito didático.

Eixos de análise: , de e de

Metodologicamente falando, temos um primeiro eixo (de análises), que é o da


questão geracional – o qual objetivou uma forma de “separação” entre todos os
professores. A geração, aqui, diz respeito a um grande tipo de sentimento de pertença;
é uma categoria analítica que, em termos sintéticos, refere-se a um grupo
organicamente vinculado, delimitador de uma fase da vida dos indivíduos, mas que vai
além da etapa cronológica, pois se relaciona ao bloco daqueles nascidos em época
semelhante, que vive os mesmos acontecimentos durante a sua formação e que
compartilha as mesmas experiências históricas significativas. Isso tudo originaria uma

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

consciência comum, que permaneceria ao longo da vida do indivíduo. Tal teria


ocorrido com as professoras em seus grupos de origem ou grupos afins junto aos quais
elas cresceram. Desse modo, as gerações das cientistas sociais de nossa pesquisa,
interpostas, são compostas por indivíduos que viveram nas mesmas épocas, integraram
faixas etárias similares, participaram das correntes sociais e intelectuais características
de seus meios sociais e períodos históricos, frequentaram os mesmos ambientes da
Faculdade e que criaram vínculos concretos pela exposição aos mesmos ambientes
sociais e intelectuais. Assim, trabalhar com o termo geração também ajudou a definir as
fronteiras regulamentadoras das também dinâmicas relações de gênero.
Em termos de articulação, a configuração de geração foi auxiliada pelo termo
habitus (da classe social de origem das professoras): no fim, ambos acabam por definir
ou delinear as fronteiras regulamentadoras de relações dinâmicas, tornando mais
objetivas (em termos heurísticos e metodológicos, ou seja, mais concretas, mais aparentes,
reais) as formas de “separação” entre professores – no caso, os/as mais antigos e os
mais recentes.
E tendo sido pesquisadas mais de cinco dezenas de nomes importantes, de
ambos os sexos, chegamos à constituição das gerações e dos nomes das pesquisadas.
Como 1ª. Geração (1934-1952), temos: Gioconda Mussolini (Cadeira de
Antropologia); Paula Beiguelman, (Cadeira de Política); Lavinia Costa Villela, Lucila
Herrmann, Gilda de Mello e Souza (Cadeira de Sociologia I); Maria Isaura Pereira de
Queiroz e Aparecida Joly Gouvea (Cadeira de Sociologia II) (Cf. SPIRANDELLI,
2011, p. 49-57). Serão as precursoras.
Como 2ª. Geração (1953-1969), temos Ruth Correa Leite Cardoso, Eunice
Ribeiro Durham, Thekla Olga Hartmann, Renate Brigitte N. Viertler (Cadeira de
Antropologia); Célia Nunes Galvão Quirino dos Santos, Nely P. P. Curti, Maria do
Carmo Campello de Souza, Cecy Martinho, Marly M. R. Spinola (Cadeira de Política);
Marialice Menccarini. Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Lourdes Sola
(Cadeira de Sociologia I); Lia Fukui, Eva Blay; Heloisa Helena T. de Souza Martins
(Cadeira de Sociologia II) (Cf. SPIRANDELLI, 2011, p. 49-57). Serão as rotinizadas.
O segundo eixo diz respeito às origens (tipos familiares, classes/frações de classes
sociais, grupos sociais) e experiências sociais das professoras relacionando tudo isso a
relações delas com a estrutura da Universidade, as participações em grupos
acadêmicos, políticos ou feministas), redes e relações de sociabilidade (parcerias de
amizade, familiares ou matrimoniais). Procuramos aqui saber como a articulação de
todos eles teria atuado, positiva ou negativamente, em suas trajetórias e na construção
de seu espaço institucional.
O terceiro eixo teve por foco os objetos de pesquisa e obras das professoras. Aqui as
análises pretenderam dar conta das formas da produção intelectual e de poder nas áreas
que compunham as Ciências Sociais da USP do referido período.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Trajetórias, relações de sociabilidade e obras

Temos aqui as principais professoras da 1ª. Geração, a das chamadas


precursoras. A primeira é a antropóloga Gioconda Mussolini (1913-1969). Nascida
em São Paulo (SP), é filha de um imigrante italiano, operário e contador, e de uma
brasileira mulata. Solteira, ex-professora primária, batalhou para se firmar como
professora e pesquisadora da FFCL/USP; mantinha relações com outras instituições
de pesquisa universitárias de São Paulo, com Florestan Fernandes e a cadeira deste, e
com visões da sociologia e antropologia norte-americanas. Pelo fato de não pôr
término à sua tese de doutoramento (por suas grandes autoexigências), ficou impedido
de ser a primeira catedrática da área, após a saída do titular, em 1967. Também teve
rusgas teóricas com os mestres da cadeira, os antropólogos Emilio Willems e Egon
Schaden. Querida pelos ex-alunos, vem a falecer em 1969, solteira e sem filhos.
Paula Beiguelman (1926-2009), nascida em Santos (SP), judia, era amiga de
Gioconda Mussolini. Com origem modesta, teve dificuldades econômicas na
infância. Proveniente do proletariado, ela, bem como a amiga Gioconda, teriam
sido alunas dedicadas; demonstrava vontade férrea, o que supõe desejo de ascensão
social obtida pela educação, algo típico de camadas populares da época, sobretudo
as de extração imigrante. Trabalhava como funciona pública, quando foi convidada
por Lourival Gomes Machado para lecionar na Faculdade, em 1949. Iniciou como
auxiliar de ensino na sua Cadeira; nela, foi também colaboradora.
A importância de Paula Beiguelman poderia residir no estudo da formação
política do povo brasileiro, como na tese A formação do povo no complexo cafeeiro:
aspectos políticos (2005), apresentada no concurso em que disputou com o então
Livre-docente Fernando Henrique Cardoso, em 1968, a obtenção da regência
efetiva da Cadeira de Política, sendo ele o vencedor, por mérito e competência, o
que muito abalou a professora. Mas, em 1969, ambos seriam cassados pelo Ato
Institucional 5, com as Cadeiras e o Curso sendo remontados. Ao voltar do exílio,
e aposentada, afastou-se da Academia. Ela se somente se casaria após 1969, ajudando
a criar dois enteados; mas, o que salta aos olhos é que sua rede de relacionamentos
parecia ser reduzida: a professora, de origem modesta, sem capital social,
educacional, intelectual, político, não tinha o que retraduzir para o espaço da
Faculdade de Filosofia, a não ser a garra e o esforço.
Por fim, temos Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018), outra
paulistana. Oriunda de tradicional família da elite, composta de poderosos e
influentes ramos de fazendeiros do interior paulista, viveu uma infância tranquila,
com vários irmãos, estudando em bom colégio público, o prestigioso Instituto
Caetano de Campos (por onde passaram Gioconda Mussolini, Lucila Herrmann,
Lavinia Costa Villela, Eunice Ribeiro Durham e Célia Nunes Galvão Quirino dos
Santos; apesar de público, era frequentado por alunos oriundos da burguesia
emergente ou da elite rural paulista, principalmente nos ensinos secundário e
normalista). Ela tinha orgulho das origens paulistas “quatrocentonas”.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Ela ingressa no Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia em


1946, formando-se em 1949. Doutorou-se em 1956 pela Université de Paris, com
equivalência na USP em 1960. Atuou como professora concursada de Sociologia
da Educação no Instituto de Educação de Matão (SP), e começaria a lecionar
Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP como assistente da Cadeira de
Sociologia I em 1951, transferindo-se para a Cadeira de Sociologia II em 1958; onde
foi assistente-doutor em 1960, livre-docente em 1963, adjunta em 1973; e obteria o
título de Professora Emérita da USP no ano de 1990. Na carreira de décadas, amealhou
prêmios e prestígio nacional e internacional; lecionou no exterior; e pesquisou religiões
e culturas do Brasil rural, tradicional e do interior.
Faleceu centenária, não se casou, nem teve filhos – como solteira, o
designativo, além de significar estado civil, poderia ser sinal de que não dependia
intelectualmente ou profissionalmente, de homens. Oriunda de aristocráticas, ricas
e cultas famílias paulistas, soube catalisar seus ricos capitais de forma a dar vazão
aos desejos de vencer na vida acadêmica, de se legitimar nela.
As três deram início a delimitações de novos estilos de trabalho (que os
pósteros herdariam), caracterizado pelo abandono do papel tradicional, e novos focos
de estudo, como populações de um Brasil do interior, suas culturas, a produção cultural
que originam, religiosidade, o proletariado urbano nascente etc.
Já as principais professoras da 2ª. Geração, após 1953, chamadas de
rotinizadas, foram quatro. Similarmente às professoras da geração anterior,
abordaremos as origens sociais/origens de classe, com os respectivos capitais
sociais e habitus adquiridos trazidos por estas professoras para o convívio na
Faculdade, e as relações de sociabilidade em que estiveram entrelaçadas. Uma das
professoras é a antropóloga Eunice Todescan Ribeiro Durham (1932). Nascida em
Limeira (SP), mudou-se, ainda criança, para a capital paulista. Neta de imigrantes, as
origens sociais remontam a famílias italianas pelo lado materno (Todescan) e classe
média/pequena burguesia ascendente. Seu pai, professor de História em colégios
de São Paulo capital e de Educação na FFCL-USP, José Querino Ribeiro, era
brasileiro oriundo de famílias tradicionais do interior paulista. Ela sempre te ve
relações de proximidade e amizade com a colega de Cadeira, a antropóloga Ruth
Correa Leite Cardoso e seu marido, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Graduou-se em Ciências Sociais pela FFCL-USP em 1954, terminou o
mestrado em 1964 e o doutorado em 1967, ambos em Antropologia Social. Fez pós-
graduação nos EUA, nos anos 1950. Formada, lecionou em colégios públicos e foi
assistente (1958) e professora (1959-60) no Sedes Sapientiae, atual Pontifícia
Universidade Católica (PUC) paulistana. Na Cadeira de Antropologia, entre 1955 e
1969, foi assistente, auxiliar de ensino, instrutora, regente “precária” e assistente -
doutor. Teve por temas a antropologia urbana, mudanças sociais, assimilação,
migrações urbanas, transições para a sociedade industrial; neles, distanciou-se do
pensamento teórico do orientador e dos temas deste, como aculturação e etnologia
indígena brasileira. O distanciamento intelectual aumentaria depois da passagem da

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

professora pelos EUA. Eunice também foi ativa em discussões sobre política
científica e ensino na universidade, e membro importante de diversas entidades
acadêmicas nacionais. Também foi agraciada com muitas honrarias científicas e
acadêmicas.
Hoje é divorciada; casara-se, na década de 1960, com o antropólogo norte-
americano John Durham, com quem teve um filho; mas o matrimônio não teve
reflexo em sua vida profissional, pois pertence a geração em que relações de gênero
influenciam menos o desenrolar de carreiras femininas, diferentemente da anterior,
em que o matrimônio era quase divisora de águas para “atrapalhar” a profissão de
docente/pesquisador.
Outra integrante dessa geração é Maria do Carmo Campello de Souza
(1935-2006). Nascida em Pindamonhangaba (SP), pertencia a setores da classe
média, sendo o pai médico, vereador e ex-presidente da Câmara Municipal da
cidade, irmãos militares, advogados e a mãe, professora primária. A cientista
política tornou-se bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela FFCL-USP em
1962. Fez “especialização” (título da época) em Política (1964), orientada por Paula
Beiguelman. No período do governo militar, esteve presa por alguns meses – no
ano de 1970. Após, voltou às atividades docentes, iniciando as pesquisas que
engendrariam seu doutoramento, orientado por Francisco Weffort. Iniciou as
atividades profissionais como professora em escola pública; foi pesquisadora
bolsista em diversos locais da USP; em 1965, iniciaria a docência, como instrutora,
na Cadeira de Política, até 1969. No início da década de 1970, seria auxiliar de
ensino, professora assistente-doutor e se aposentaria como professora-doutora, em
meados da década de 1980.
Foi casada, em primeiras núpcias, com o antropólogo John Manuel de
Souza em 1969; divorciada, uniu-se ao cientista político Bolívar Lamounier, na
década de 1970; posteriormente, a um matemático francês. Teve uma filha. E,
muito diferente do matrimônio significar um empecilho, o casamento
correspondeu-lhe a uma grande parceria intelectual nessa fase da carreira, ou a uma
grande interlocução teórica, que muito a auxiliou no desenvolvimento da Tese de
Doutorado. Bem humorada, sociável e querida por todos, era carinhosamente
chamada de “Carmute”. Suas convivências, formas de sociabilidade e redes de
relações sociais bem poderiam corresponder, em certa medida, às estratégias
tomadas por ela (por vezes, inconscientemente) para sua conquista do lugar ao sol.
A professora faleceu na capital paulista em 2006.
Continuando, temos Maria Sylvia de Carvalho Franco (1930), oriunda, pelo
lado materno, de tradicional família da elite paulista, e nascida em Araraquara (SP). Ela
obtém o bacharelado em Ciências Sociais pela FFCL-USP (1952); o doutorado (1964)
viria com o texto publicado em 1969 como Homens livres na ordem escravocrata (1997).
Participa como aluna, e depois, como pesquisadora e professora assistente, da Cadeira
de Sociologia I, integrando o grupo sob a orientação de Florestan Fernandes, nesses
anos 1950-1960. Após as reformas universitárias e o início da década de 1970, passa

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

para o Departamento de Filosofia da USP; finalmente, se aposenta nessa área, pela


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP), no final da década de 1980. Ela
não sofreu muito a oposição do grande nome da Sociologia uspiana, Florestan
Fernandes, apesar da origem social diversa da dele, o que não significava,
necessariamente, a inexistência de rusgas, como, discordâncias de ordem teórica da
socióloga em relação a ele, a Fernando Henrique Cardoso ou a Octavio Ianni.
A professora casara-se, em primeiras núpcias, na década de 1950, com o
sociólogo Renato Jardim Moreira, também da Cadeira de Sociologia I (separada,
ela se casaria, muitos anos depois, com o professor de Filosofia da UNICAMP
Roberto Romano); mas, trabalhava com Renato Moreira, provavelmente,
auxiliando-se, ligados que eram à mesma Cadeira: ou seja, como produto de uma
nova geração, as assimetrias nas relações de gênero já se mostram diferentes,
minimizadas, incorporando-se menos como barreiras (de preconceito), para com
as carreiras dessas professoras da Faculdade. Era a principal e mais destacada
mulher do grupo e da Cadeira de Florestan Fernandes. Este fora, enfim, o máximo
a que ela conseguira chegar, dada a configuração existente, à qual não poderia fugir.
Não lhe seria permitido agir de outra forma. Mulheres podiam disputar obras, não
postos de poder. Acabou se transferindo para a área de Filosofia. Mas, com as
cassações de quase todos os nomes principais das Cadeiras, os exílios e a extinção
do regime, tudo ficaria tragicamente esfacelado – o próprio Curso de Ciências
Sociais da USP ficaria acéfalo. Transferência para a Filosofia seria uma sobreviver.
A última do grupo é Eva Alterman Blay (1937), nascida na capital paulista.
É brasileira, filha de imigrantes judeus poloneses. O pai era industrial e
comerciante, o que os torna integrantes da burguesia ascendente e pressupõe
infância e juventude economicamente tranquilas; sendo oriunda de família de
imigrantes, as relações de parentesco seriam limitadas ou circunscritas,
provavelmente, ao bairro e ao grupo étnico judaico. Obteve bacharelado e
licenciatura em Ciências Sociais pela FFCL-USP em 1959; fez “Especialização” em
Sociologia (1966), Mestrado (1968), Doutorado (1973), Livre-docência (1982), Pós-
Doutorado (1996), todos na USP. Foi auxiliar de pesquisa no grupo de Maria Sylvia
de Carvalho Franco (1958-1960); auxiliar de pesquisa no Instituto Roberto Simonsen
(1963); instrutora voluntária na Cadeira de Sociologia II (1961 -1963), instrutora
(1963-1969); professora contratada até 1978, quando se efetivaria; hoje é professora
titular (aposentada, mas atuante) do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.
A professora tem pioneirismo nos estudos sobre mulher, relações de gênero,
mercado de trabalho feminino; melhorias urbanas e assuntos afins. Teve por tema
de teses estudos sobre mulher, sobre relações de gênero, sobre educação, profissionalização
e trabalho feminino, entre outros, em suas pós-graduações e pesquisas em geral. Após
a década de 1970, aprofundou a vida acadêmica ao lado de atuante vida política
institucional, atuando no Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo,
na implantação da Delegacia da Mulher, no Núcleo de Estudos da Mulher e
Relações Sociais de Gênero (NEMGE). Foi Senadora da República (1992 -1994) e

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

realizou trabalhos para a Organização das Nações Unidas (ONU). A professora é


casada, desde 1964, com o empresário judeu Jaime Blay. E relevante foi a
estabilidade do casamento, pois o marido, bem sucedido, dava-lhe tanto o apoio
para que se aprofundasse na carreira, quanto a tranquilidade econômica para que
não se preocupasse com a sobrevivência. Nesse caso, outra típica intelectual
representante da moderna geração em que o marido é mais apoio que barreira; e
geração na qual o matrimônio e o celibato já não significam tantos obstáculos à uma
carreira.
Finalmente, estas quatro professoras, bem como as demais integrantes do grupo
geracional mencionadas logo se incorporariam às novas lides científicas, burocratizadas
e profissionais, com carreiras acadêmicas plenas e definidas, pode do ascender a mais
postos do que suas colegas de geração anterior. Novas condições, novas formas, mas
lutas menos árduas.
O último eixo aborda objetos e obras significativas dessas principais
professoras analisadas, e que circulam e se relacionam às suas trajetórias de vida,
trajetórias profissionais, intelectuais e de “opções” profissionais. Mostra também
diferenças e identidades entre tais obras e as cientistas sociais elaboradoras delas.
Segundo nossa interpretação, tais escritos “dialogaram”, mesmo que indiretamente.
Assim, estariam ligados, de alguma maneira, A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos
políticos (2005), de Paula Beiguelman; Estado e partidos políticos no Brasil: 1930-1964 (1990),
de Maria do Carmo Campello de Souza; Persistência e mudança em sociedades de “folk” no
Brasil (1955) e Cunha: tradição e transição em uma cultura rural do Brasil (1949) (resenha
sobre obra de Emilio Willems), ambos de Gioconda Mussolini; A caminho da cidade: a
vida rural e a migração para São Paulo (1973), de Eunice Ribeiro Durham; O mandonismo
local na vida política brasileira (1976) e O coronelismo numa interpretação sociológica (1975),
ambos de Maria Isaura Pereira de Queiroz; Trabalho domesticado: a mulher na indústria
paulista (1978), de Eva Alterman Blay; e Homens livres na ordem escravocrata (1997), de
Maria Sylvia de Carvalho Franco. Com o objetivo de perceber aproximações,
identidades e similaridades nas pesquisas dessas professoras, foi construída esta série
representativa de objetos e obras, as quais carregam algo comum entre si.

Considerações finais

Nossa discussão teórica retoma o enfoque da Sociologia da cultura, feito pelo


sociólogo brasileiro Sergio Miceli – cuja marca interpretativa, numa expressão sintética,
é desvelar os condicionantes sociais que estão por trás das condutas e atitudes dos
indivíduos produtores de cultura. Assim, disputas, tanto em relação a estilos da feitura
do texto acadêmico (por exemplo, a crítica ao texto ensaístico dos membros da Cadeira
de Sociologia II, feita por membros da Cadeira de Sociologia I) quanto em relação à
utilização social da ciência e às ligações desta com a ideologia e o poder. Alguns dos
conflitos podiam também ser resolvidos por meio de migrações ou saídas de

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

profissionais para outros cursos, faculdades e universidades, ou na criação e


“desdobramentos” de novas Cadeiras num mesmo curso. Como exemplos, temos a
transferência de Gilda de Mello e Souza, de primeira assistente da Cadeira de Sociologia
I para a de Estética, no Curso de Filosofia (PONTES, 1998); ou a de Antonio Candido
de Mello e Souza, para outra faculdade recém fundada em Assis-SP, no Curso de
Letras; a de Annita de Castilho e Marcondes Cabral para cadeira no Curso de
Psicologia; a de Diva Benevides Pinho para similar no Curso de Economia etc.
Em meio a tudo isso, uma faceta importante mostrou-se, qual seja, a questão
relacional, a qual diz respeito aos constrangimentos que a sociabilidade da época, com
suas regras, proporcionava às mulheres (estudantes e profissionais) mas que, ao mesmo
tempo, poderia permitia algum espaço para que também pudessem tentar o novo, o
inusitado. Em verdade, as regras da época construíam um quadro em que delimitavam
o que as mulheres não podiam fazer – mas, dentro do que poderiam, elas teriam
aproveitado bastante. As regras de sociabilidade não especificavam, os limites até onde
as mulheres poderiam ir. Aí teriam ocorridos os avanços. Sintetizando, temos um
sistema profissional de cátedras, institucional, interagindo com o habitus e as origens sociais
das professoras; essa situação unida à específicas regras de sociabilidade nas relações
entre gêneros dos anos 1930/1960; e tudo isso mediado por um desenho geracional
da época. O resultado dessa “equação” são carreiras e obras das mulheres cientistas
sociais da USP do período em questão.
Isso tudo circunscreveria até que ponto as realizações humanas poderiam ser
produtos negociados entre determinações sociais e escolhas individuais. Então, é certo
afirmar que sempre teriam existido disputas simbólicas entre grupos intelectuais na
FFCL-USP para se fazerem representar, conquistar “lugares ao sol”, serem atores
relevantes a influenciar a condução do Estado, as áreas das artes, da cultura e da
educação de uma sociedade. E as professoras/intelectuais aqui tratadas também
pretenderam ser relevantes na condução das visões do poder (na área política, na
acadêmica e em geral) e da vida social em suas épocas, para com isso, conseguirem se
valorizar, se impor e “vencer” na vida.

Referências

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

PRESSUPOSTOS MORAIS E JURÍDICOS DA PAZ PERPÉTUA


KANTIANA

Cleiton Marcolino Isidoro dos Santos1

Resumo: O projeto kantiano de paz perpétua configura entre as obras de maior


impacto para o mundo moderno e contemporâneo, abarcando em seu conteúdo um
apanhado de todo desenrolar filosófico do autor. Nesse sentido, uma busca pelos
pressupostos morais e jurídicos que permeiam o ideário de seu projeto é de valor
significativo, uma vez que permite ao leitor assimilar toda a profundidade do projeto
kantiano de paz. Dentre os pressupostos morais que agem em uníssono com o ideal
pacificador kantiano, pode-se levantar: o homem como fim terminal da criação; a
dignidade do homem como fim em si mesmo, o reino dos fins e; o progresso do gênero
humano. De outro modo, dentre os pressupostos jurídicos que embasam o
pensamento político do projeto, estão: o contratualismo; o Estado de direito; a
soberania e harmonia entre os poderes estatais; o cidadão no Estado de direito e; o
princípio da publicidade. Assim, compreender as ideias centrais do pensamento
kantiano se faz de fundamental importância para o completo entendimento de seu
projeto pacificador, uma vez que todos pressupostos aqui mencionados estão em
constante harmonia com o ideal pacificador do autor.

Palavras-chave: Paz perpétua. Immanuel Kant. Filosofia Política.

Introdução

Este artigo tratará de analisar os pressupostos morais e jurídicos presentes no


projeto kantiano de paz perpétua, buscando responder à pergunta: Qual é o papel da
moral e do direito na efetivação e manutenção do projeto de paz perpétua? Cumpre
observar neste momento que a questão dada já trabalha com a ideia de possibilidade
de realização, uma vez que se fundamenta no dever e no direito dos homens e,
consequentemente, dos Estados. Como salienta Kant “[...] os princípios políticos
dirigidos à paz perpétua não são inatingíveis. Pelo contrário, visto que a aproximação
contínua dela constitui uma tarefa fundada no dever e, por conseguinte, no direito”
(MS AA06: 350)2.

1 Mestrando em filosofia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Linha de pesquisa:


Ética e Filosofia Política. E-mail: cleiton.marcolino@uel.br; cleiton327@hotmail.com.
2 As obras de Kant serão referenciadas conforme a Akademie. Doravante citaremos apenas a

abreviatura, seguida do número do volume e da página (ver nome completo das obras na
bibliografia). KANT, Immanuel. Akademieausgabe von Immanuel Kants Gesammelten Werken. Bände
und Verknüpfungen den Inhaltsverzeichnissen. Disponível em:
http://www.korpora.org/kant/verzeichnisse-gesamt.html.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Dessa forma, pressupostos morais como: o homem como fim terminal da


criação; a dignidade do homem como fim em si mesmo, o reino dos fins e; o progresso
do gênero humano; em complemento com pressupostos jurídicos fornecidos pelo
contratualismo; o Estado de direito; a soberania e harmonia entre os poderes estatais;
o cidadão no Estado de direito e; o princípio da publicidade serão considerados como
bases fundamentais para compreensão do projeto de paz kantiano.
Compreender a função da moral e do direito no projeto kantiano é depreender
os passos pelos quais o homem, como sujeito moral, deve dar para efetivar a paz.
Ressalta Klemme (2010, p. 40): “temos o dever legal de promover a paz perpétua, e a
promoveremos melhor por meio do que fazemos, para o que somos moralmente
obrigados”. Além de possibilitar as ações concretas de efetivação, deve-se interligar
tais pressupostos com o ponto de partida fundamental da busca pela pacificação, ou
seja, o veto irresistível da razão prática, isto é, “não deve haver guerra alguma, nem
entre tu e eu no estado de natureza, nem guerra entre nós como Estados” (MS AA06:
354). Assim, tanto os elementos morais, quanto jurídicos desempenharão sua função
não apenas instrumental, mas condicionante, isto é, não serão apenas meios para
pacificação, mas conditio sine quan non para manutenção da paz perpétua.

Pressupostos morais

Como afirma Klemme (2010, p. 40), a questão moral está no centro do projeto
pacificador kantiano sob o dever que temos em promover a paz perpétua, assim,
“temos o dever legal de promover a paz perpétua, e promoveremos melhor por meio
do que fazemos, para o que somos moralmente obrigados”. Nesse sentido,
compreender os pressupostos morais que fundamentam o projeto kantiano torna-se
imperioso, uma vez que o filósofo prescreve seus artigos preliminares e definitos sob
a batuta de tais conceitos.
Seguindo a ordem pré-estabelecida na introdução deste artigo, o homem como
fim terminal da criação será primeiro pressuposto moral a ser abordado. Para
compreender tal conceito cumpre fazer-se uma diferenciação entre fim último (Letzter
Zweck) e fim terminal (Endzweck) da natureza. Para tal, segue a explicação de Höffe:

Um fim último ocupa, numa hierarquia de fins, a posição suprema, o topo; o fim
último já é, portanto, algo supremo, um fim superlativo. Kant admite tacitamente que
tal fim superlativo pode perfeitamente existir na natureza enquanto natureza. Para um
fim terminal, porém, é preciso mais; um fim terminal é um “fim último mais x”,
portanto um superlativo que, estranhamente, de alguma maneira ainda intensifica o
caráter de superlativo. Para que um fim último também possa ser um fim terminal, é
preciso, como Kant explica antes, não se pode pensar a existência desse ser de outra
maneira do que como fim terminal (Höffe, 2009, p. 25-6).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Como fim último, Kant prescreve que a natureza, como sistema


teleologicamente organizado, alçou o homem, único ser dotado de entendimento
(Verstand), como seu fim último (KU AA05: 430) para que possa haver o amplo
desenvolvimento das predisposições do ser humano. Assim, a natureza cumpre seu
papel finalístico possibilitando que o homem aperfeiçoe e desenvolva tudo que é
inerente ao seu ser, tornando-se, assim, o fim terminal da criação. Como fim terminal,
o homem assume para si o papel de realizar fins mais elevados e incondicionados,
como a busca pela paz.
Dado seu papel como fim terminal da criação, o homem deve compreender
que sua posição privilegiada não lhe traz apenas prerrogativas, mas também indica sua
responsabilidade perante as demais criaturas. Para isso, o homem deve buscar
desenvolver sua cultura. Porém, para que isso possa se resolver, o mesmo deve deixar
um ambiente de hostilidade e adentrar numa comunidade civil, intenção última da
natureza (KU AA05: 432).
Em seguida, outro pressuposto da paz kantiana é a ideia de dignidade humana
como fim em si mesmo. Para dissertar sobre tal conceito, cumpre observar os
fundamentos que embasam a própria concepção de dignidade, isto é, a racionalidade,
a liberdade e a autonomia. Assim como aludido no pressuposto anterior, a
racionalidade é algo que diferencia o homem do restante das criaturas da natureza. Por
possuir esta natureza racional, qualquer indivíduo deve identificar no outro aquilo que
lhe é único, como salienta Altman (2011, p. 207): “um ser racional reconhece que
outros seres racionais merecem respeito”.
Quanto à liberdade, segue os dizeres de Kant: “A todo o ser racional que tem
uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente também a ideia da liberdade, sob
a qual ele unicamente pode agir” (GMS AA04: 448). Nesse sentido, é sob a faculdade
racional que o indivíduo pode escolher livremente suas decisões, ou seja, pode agir
incondicionalmente. Por fim, a autonomia, “fundamento da dignidade da natureza
humana e de toda a natureza racional” (GMS AA04: 436), isto é, a capacidade da
vontade de produzir ações cuja causa não é outra senão ela mesma.
Sob tais fundamentos, o ser digno possui responsabilidade frente a própria
humanidade, devendo agir sob o imperativo prático: “age de tal maneira que uses a
humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (GMS AA04: 429).
Assim, ao tratar o outro como valor absoluto e fim de toda ação, tratará a própria
humanidade como fim em si mesma.
Intimamente ligado ao conceito de dignidade humana, a ideia de reino dos fins
é o reconhecimento de um todo teleológico e moral, no qual cada indivíduo, como ser
racional, compreende a humanidade na pessoa do outro e encontra seu lugar nesse
reino. Nele, todos os membros jamais tratam “a si mesmo ou aos outros simplesmente
como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si” (GMS AA04: 433). Nas
palavras de Joaquim Salgado:

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

O reino dos fins é o reino das pessoas ou dos seres, cuja ação tem como princípio a
liberdade, e só poderá ser instaurado na medida em que o agir de cada indivíduo se
paute pelas máximas do membro do reino dos fins cuja legislação vale universalmente
(1986, p. 252).

Nesta tônica, as ações praticadas por cada indivíduo visam a transformação de


uma realidade que, enquanto não consumada, parece insatisfatória. Nesse sentido, a
idealização de um reino dos fins passa a ser o cumprimento de “uma exigência da razão
pura, como o é a formação das sociedades civis que administram o direito”
(OROPEZA, 2016, p. 26). Para isso, cada indivíduo, em uma pluralidade, busca se
consolidar numa totalidade, isto é, num ideal de humanidade. Sendo assim, o objetivo
final dos integrantes dessa totalidade é “primeiro um fim da humanidade e, apenas
como consequência, um fim de todos os membros dessa comunidade – apenas porque
a humanidade se encontra em cada um” (NOUR, 2004, p. 59).
Por fim, o último pressuposto, o progresso do gênero humano. Tal conceito
pressupõe o homem como um ser em constante progresso, nesse sentido, cabe a ele
trabalhar no aperfeiçoamento de suas disposições morais, além daquelas utilizadas nas
transformações da natureza (suposições técnicas) e aquelas pragmáticas, como a
polidez e a civilidade. Cumpre salientar que para o filósofo tal progresso só pode ser
alcançado na espécie humana, não no indivíduo, uma vez que a espécie é infinita e
imortal e, em contrapartida, o indivíduo é finito e mortal. Daí sua tese que “no homem
(como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam o uso da
sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo” (IaG
AA08: 018).
Quanto ao móvel propulsor da progressão humana, Kant alude ao caráter
positivo da insociável sociabilidade na retirada do homem do estado de letargia para o
constante aperfeiçoamento. Daí o veemente agradecimento de Kant à natureza:

Graças, pois, à Natureza pela incompatibilidade, pela vaidade invejosamente


emuladora, pela ânsia insaciável de posses ou também do mandar! Sem elas, todas as
excelentes disposições naturais da humanidade dormitariam eternamente, sem
desabrochar (IaG AA08: 021).

Nesse sentido, o ser humano tem o dever de sair de sua condição de natureza,
onde reina sua animalidade, para cada vez mais rumo à humanidade, onde se torna
capaz de estabelecer fins a si mesmo (MS AA06: 387). Nessa acepção, o constante
aprimoramento moral leva a espécie humana à concreção do estado civil, ambiente
este que atribui às relações interpessoais o princípio da dignidade humana. Nesse
sentido, alude o filósofo: “na espécie humana, deve ocorrer qualquer experiência que,
enquanto evento, indica uma constituição e aptidão suas para ser causa do progresso
para o melhor” (SF AA07: 084).
Enfim, é visível que todos pressupostos morais aqui elencados desencadeiam
uma necessária coalização com pressupostos jurídicos que fundamentam a vida em

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

sociedade. Além disso, agem de forma que um complementa o outro num emaranhado
de passos que levam a humanidade à paz perpétua.

Pressupostos jurídicos

Em complemento aos pressupostos morais, os jurídicos veem ao encontro da


uma solução elegante ao problema da guerra. Tais pressupostos surgem com a ideia da
consolidação de uma comunidade civil, algo pré-anunciado nos conceitos morais
abordados. Nesse sentido, os pressupostos que fundamentam o projeto kantiano de
paz são aqueles necessários para a consolidação e progresso da humanidade.
Para isso, Kant anuncia que o homem deve sair de seu estado de natureza e
adentrar numa comunidade civil. Nesse primeiro mandamento encontra-se o primeiro
pressuposto jurídico deste trabalho, ou seja, o contratualismo kantiano. Logo na
introdução dos artigos definitivos da paz perpétua, o filósofo já diz que o estado de
natureza nada mais é que “um estado de guerra, ou seja, um estado no qual ainda que
as hostilidades não estejam declaradas, nota-se uma constante ameaça” (ZeF AA08:
348-9). Daí a necessidade de um contrato social que, com base num imperativo moral,
instaure uma condição jurídica onde todos os indivíduos possam viver sob leis de
direito.
A saída do estado de natureza para uma comunidade civil é a exigência
necessário para o próximo pressuposto jurídico, seja ele, o Estado civil. Kant conceitua
Estado (civitas) como “a união de uma multidão de seres humanos submetida a leis do
direito” (MS, AA06: 313). O Estado kantiano tem como principal função regular e
assegurar os direitos de seus cidadãos através da união de seus membros sob um regime
jurídico. Além disso, tem a incumbência de estimular o bem comum, nas palavras do
filósofo:

Temos, pois, aqui um dever de índole peculiar, não dos homens para com homens,
mas do gênero humano para consigo mesmo. Toda a espécie de seres racionais está
objetivamente determinada, na ideia, a saber, ao fomento do bem supremo como bem
comunitário (RGV, AA06: 097).

Ao estabelecer uma sociedade civil baseada num elemento jurídico, deve-se


definir qual será o fundamento do novo regime jurídico, Kant complementa esta
lacuna determinando que a lei máxima de um Estado deve ser republicana. Por
resultar-se da ideia de contrato originário, a constituição republicana é a única capaz
de resolver o problema da guerra e oferecer uma convivência pacífica aos seus
integrantes (ZeF, AA 08: 351).
Concebido o Estado civil, surge a necessidade do terceiro pressuposto, ou seja,
a soberania e a harmonia entre os poderes estatais. Ao conceber um estado civil, Kant

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

estrutura seu funcionamento através de três poderes fundamentais: o poder legislativo,


executivo e judiciário. Prescreve o filósofo:

Todo Estado encerra três poderes dentro de si, isto é, a vontade unida geral consiste
de três pessoas (trias politica): o poder soberano (soberania) na pessoa do legislador; o
poder executivo na pessoa do governante (em consonância com a lei) e o poder
judiciário (para outorgar a cada um o que é seu de acordo com a lei) na pessoa do juiz
(potestas legislatória, rectoria et iudiciaria) (MS, AA 06: 313).

Dentre os três poderes, aquele que assume o posto de soberano universal é o


legislativo. Tal posto é justificado pelo fato que o poder legislativo só pertence à
vontade unida do povo, pois uma vez que toda lei proceda do povo, dificilmente
poderá criar leis injustas. Assim, somente a vontade concordante e unificada de todos
os indivíduos é capaz de criar leis justas, uma vez que suas decisões recaem sobre si e
sobre o outro, isto é, uma vontade legisladora universal (MS, AA 06: 313). Tal
pensamento encontra respaldo no que Kant chama de pedra-de-toque do Estado, onde
tudo que se possa decretar como lei sobre uma comunidade reside na pergunta:
“poderia um povo impor a si próprio essa lei?” (WA, AA08: 039).
Em complemento ao poder legislativo, vem o poder executivo cuja função é
administrar o Estado baseando suas ações através da norma jurídica dada pelo povo
unido. Kant adverte ao fato de que o governante não pode ser, ao mesmo tempo, o
legislador do Estado, visto que, para o autor, tal fato acarretaria num governo
despótico. Assim, o regente não pode ascender ao cargo de senhor do povo (legislador)
porque suas ações estão subordinadas à lei, ou seja, ao povo (MS, AA 06: 316).
Complementando a tríade do Estado, o poder judiciário possui a julgar os indivíduos
pelo direito. Assim, o povo julga a si mesmo através da escolha de cidadãos que, após
nomeação, serão representantes da lei. Somente o povo, por meio de seus
representantes, podem julgar os seus (MS, AA 06: 316-7).
Dado o poder de cada parte da tríade estatal, Kant conclui que, por mais
soberano cada poder possa ser, deve haver entre eles uma harmonia. Neste sistema,
tais poderes coordenam-se entre si, todos de igual valor, um subordinado ao outro.
Segue o filósofo:

Em conformidade com isso, os três poderes no Estado, em primeiro lugar, se


coordenam (potestates coordinatae) entre si como uma multiplicidade de pessoas morais,
ou seja, cada um complementa as outras para completar a constituição do Estado
(complementum ad sufficientiam); todavia, em segundo lugar, também se subordinam
(subordinatae) entre si de maneira que um deles, ao assistir a um outro, fica
impossibilitado também de usurpar sua função; em lugar disso, cada um possui seu
próprio princípio, isto é, realmente comanda na sua qualidade de pessoa particular,
porém ainda sob a condição da vontade de um superior; em terceiro lugar, através da
associação de ambas cada súdito recebe sua porção de direitos (MS, AA06: 316).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Estabelecido o Estado civil, cumpre analisar o próximo pressuposto jurídico,


o cidadão no Estado de direito. Kant conceitua a cidadania a partir de três atributos,
são eles: 1- liberdade legal, atributo de obedecer unicamente a lei à qual deu seu
assentimento; 2- igualdade civil, atributo que permite que os indivíduos possam se
obrigar mutuamente dentro do Estado; e, 3- independência civil, arbítrio que cada cidadão
deve ter para sua existência e preservação (MS, AA06: 314).
Dado o primeiro atributo, confere-se, segundo Bobbio (2000, p. 231), que não
existem cidadãos e não-cidadãos, e sim indivíduos igualmente livres. Ainda nesta
temática, o segundo atributo também não fornece nenhuma distinção em relação à
cidadania. No entanto, em relação ao terceiro atributo há uma diferença entre cidadão
e não-cidadão. Para compreender essa distinção, deve-se atentar ao fato que, para
Kant, tal atributo segue o princípio da personalidade civil, isto é, capacidade de
“prescindir de ser representado por outro, quando se trata de direitos” (MS, AA06:
314). Dessa forma, o filósofo alia a personalidade civil com o conceito de cidadão,
registrando que cidadão é “quem tem o direito do voto” (TP, AA08: 295). Assim,
pode-se concluir que, cidadão é aquele que é independente e, por isso, pode participar
do Estado, em contrapartida, o não-cidadão é aquele que é dependente do outro e, por
tal fato, não pode se auto representar no Estado3.
A fim de finalizar os pressupostos jurídicos, passe-se agora ao princípio da
publicidade que, de modo sucinto, refere-se a uma avalição das máximas em busca de
certificar se essas são justas ou injustas (ZeF AA08: 381). Nesse sentido, a publicidade
proporciona um critério a priori da razão, no qual há a possibilidade de conhecer
imediatamente, como por um experimento da razão pura, a falsidade ou a veracidade
da pretensão jurídica. Assim, as leis são avaliadas sob o ponto de vista da sua
legitimidade perante a razão pura, consequentemente, as que não passam pelo crivo da
publicidade são, de imediato, consideradas injustas.
Cumpre ressaltar que o princípio da publicidade não designa apenas um
imperativo de publicitar, isto é, tornar público toda norma jurídica. Além disso, tal
princípio traz em si a reunião de todas as liberdades individuais presentes no contrato
social posto em prática no Estado civil (PIM, 2006, p. 46). Assim, a publicidade dá a
oportunidade que o interesse geral possa decidir os caminhos que a comunidade civil
deva seguir, como a decisão de ir ou não à guerra.

Paz perpétua à luz dos pressupostos morais e jurídicos

Dentro do projeto de paz perpétua, os pressupostos morais e jurídicos se


entremeiam em uma harmonização que busca apenas consolidar o imperativo do veto
irresistível da razão prática, isto é, “não deve haver guerra alguma, nem entre tu e eu

3Cumpre salientar que essa visão política do filósofo apenas refletia as ideias da época. Dessa
forma, não se deve ler tais trechos de forma espantada, apenas refletir os pensamentos nele
contidos.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

no estado de natureza, nem guerra entre nós como Estados” (MS AA06: 354). Dessa
forma, tantos os pressupostos morais, quanto os jurídicos serão refletidos nessa seção
em conjunto, uma vez que seus conceitos se complementam no projeto de paz
kantiano.
A paz é uma tarefa trabalhada dentro da história do gênero humano que tem
como protagonista4 o próprio homem enquanto fim terminal da criação. Neste
progresso humano, o mecanismo da insociável sociabilidade age como coadjuvante na
busca da paz. Para isso, tanto as relações de antagonismo entre os indivíduos, quanto
a inclinação de sociabilidade em busca da manutenção das liberdades externas, fizeram
com que a espécie humana entrasse numa comunidade jurídica por meio de um
contrato social, procedimento denominado por Lima (2015, p. 42) como
“disciplinamento da insociabilidade”. Kant demonstra a importância de tal contrato na
seguinte analogia:

Só dentro da cerca que é a constituição civil é que essas mesmas inclinações produzem
o melhor resultado – tal como as arvores num bosque, justamente por cada qual
procurar tirar à outra o ar e o sol, se forçam a - 352 -ecla-los por cima de si mesmas e
assim conseguem um belo porte, ao passo que as que se encontram em liberdade e
entre si isoladas estendem caprichosamente os seus ramos e crescem deformadas,
tortas e retorcidas (IaG AA08: 022).

Ademais, tal antagonismo não opera apenas entre os indivíduos, se alastra para
as relações entre os Estados, uma vez que, por serem formados por seres humanos,
tendem a reproduzir o mesmo esquema. Dessa forma, a mesma insociável
sociabilidade que obrigou os homens a criar um Estado civil, atua novamente para
incentivar tais Estados a “sair do estado sem leis dos selvagens e ingressar numa liga
de povos, onde cada Estado, inclusive o mais pequeno, poderia aguardar a sua
segurança e seu direito” (IaG AA08: 024).
Dada a relação entre indivíduos num Estado civil e a consequente relação dos
Estados numa liga de povos, cumpre à história humana resguardar uma unidade,
regularidade e continuidade teleológica. Nesse caso, o homem, único fim terminal da
criação, capaz de decidir sobre a guerra e a paz, deve circunscrever a humanidade numa
relação cosmopolita, isto é, uma relação exterior e interdependente entre os Estados e
os cidadãos do mundo. Para Louden (2008, p. 521), a concepção cosmopolita, inserida
na natureza humana, tem como efeito a criação de “um mapa moral teleológico, um
guia prático pelo qual os seres humanos devem se orientar, tanto no passado quanto
no presente”.

4 O papel da insociável sociabilidade no pensamento kantiano passo por consideráveis


mudanças de interpretações pelo autor, desde sua leitura em “Ideia de uma história universal
de um ponto de vista cosmopolita” (Cf. IaG AA08: 015-031) até sua releitura em “O conflito
das faculdades” (Cf. SF AA07: 079-094). Desse modo, nesse artigo será seguida a ideia da
insociável sociabilidade apenas como apoio ao progresso humano, dando ao indivíduo o papel
de protagonista no progresso do gênero humano.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Este mapa moral teleológico age a partir do imperativo categórico, rechaçando


qualquer ação que seja contrária à própria dignidade do homem como fim em si
mesmo. Nesse sentido, qualquer que seja a sociedade que deve ser formada para a
consequente paz deve, de modo imperativo, resguardar o valor da dignidade humano
como núcleo de valor de seu sistema constitutivo (Cf. MERTENS, 2007, p. 235). Além
disso, a concepção cosmopolita de sociedade é necessária para que os indivíduos
possam se espalhar pelo globo terrestre e, a partir do contato com outros indivíduos,
possam se desenvolver de diversas maneiras, de modo que todas as predisposições
naturais possam, eventualmente, ser totalmente atualizadas e, com isso, o gênero
humano possa progredir para o melhor, em direção aos seus fins determinados
teleologicamente (CF. HEDRICK, 2008, p. 251).
Os passos jurídicos na construção e na busca pela paz perpétua perpassa por
todo conceito de reino dos fins, uma vez que um ordenamento jurídico entre Estados
é a condição necessária para que a humanidade entre no reino dos fins como
coletividade de pessoas morais. Tal critério é necessário porque somente em tal
ordenamento há a possibilidade de pleno progresso humano. Nesse sentido, quando
o povo, não os governantes, decidem sobre a guerra num Estado republicano (CF.
ZeF AA08: 351), a guerra chegará ao fim, uma vez que todos os indivíduos decidirão
sobre seu futuro e, ainda mais importante, não serão utilizados como instrumentos de
guerra pelo seu governante, afirmando assim, sua dignidade como fim em si mesmo.
Como aludido anteriormente, o consequente reino dos fins passa,
necessariamente pelo progresso moral e jurídico da espécie humana. Nesse sentido, a
constituição de um Estaco civil republicano, cujo poder soberano repousa na voz do
povo (legislativo) em harmonia e independência entre os outros poderes permitem o
amplo desenvolvimento humano e estatal. Assim, o consequente progresso jurídico do
Estado terá como consequência o progresso moral humano, nas palavras de Korsgaard
(1996, p. 33) “uma boa constituição não deve ser esperada da moralidade, mas,
inversamente, uma boa condição moral de um povo deve ser esperada apenas sob uma
boa constituição”. Neste ambiente de contínuo progresso humano deve haver sempre
a transparência da publicidade, uma vez que “a interdição da publicidade impede o
progresso de um povo para o melhor” (SF AA07: 089).

Conclusão

Em suma, retornamos à questão inicial, “qual é o papel da moral e do direito


na efetivação e manutenção do projeto de paz perpétua?” Como analisado neste artigo,
ambos pressupostos permeiam o caminho do progresso humano para a consequente
pacificação da sociedade, além disso, agem em harmonia e interdependência, um
implicando o outro.
Podemos compreender o caminha da paz perpétua como o percurso onde a
moral humana se alia com os passos jurídicos de fomento para uma comunidade civil

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

ordenada pelo reino dos fins. Nesse sentido, o homem como fim terminal da criação
tem como obrigação o constante aperfeiçoamento moral e jurídico, dando à luz o
conceito de progresso do gênero humano que, por sua vez age no campo moral e
jurídico, impulsionando a humanidade, através da insociável sociabilidade a adentrar
num ordenamento jurídico onde poderá se constituir um Estado civil cujo
desenvolvimento jurídico restará numa constituição republicana.
Tal constituição republicana terá como núcleo de valor a dignidade do homem
como fim em si mesmo, garantindo aos homens o direito de decidirem sobre a guerra
e paz, concretizando, assim, o papel do homem como fim terminal da criação. Além
disso, tal constituição elevará o papel dos cidadãos numa esfera de soberania que, em
harmonia com os outros poderes estatais, garantirão ao cidadão aquilo que lhe é
devido.
Sob tais preceitos, o mecanismo do progresso humano ainda continua a
transformar a sociedade. Nesse sentido, os Estados republicanos se unem numa liga
de povos que buscam garantir entre os entes estatais a consequente paz através do
regimento de conceitos morais e jurídicos amplamente compartilhados. Pior fim,
Estados e cidadãos se unem numa constituição recíproca do direito cosmopolita, onde
o indivíduo passa a ser cidadão do mundo e, os Estados passam a ser espaços de amplo
desenvolvimento moral e jurídico para o consequente reino dos fins.
Em suma, os pressupostos morais e jurídicos apresentados nesse artigo são os
caminhos pelos quais o homem busca a paz perpétua, uma vez que o amplo
aperfeiçoamento de ambos garante ao progresso do gênero humano ações e
instituições que consolidam cada vez mais o projeto pacificador.

Referências

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practical philosophy. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2011.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

A IDEIA DE LIBERDADE INATA KANTIANA ENQUANTO


POSSIBILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS

Gabriel Alves Galdino1

Resumo: Kant afirma na Metafísica dos Costumes (1797) que a liberdade inata, ou seja,
“a independência em relação ao arbítrio coercitivo de um outro, na medida em que
possa coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal” (MSRL,
AA 06: 237), é o único direito que cabe a todo homem em virtude de sua própria
humanidade. Partindo desse excerto, Otfried Höffe, em seu artigo Kant’s Innate Right as
a Rational Criterion for Human Rights (2010), dá início à interpretação corrente de que é
possível fundamentar os direitos humanos a partir da ideia kantiana de liberdade inata.
Nesse contexto, o presente trabalho busca investigar se de fato há, na própria letra de
Kant, a possibilidade de fundamentação dos direitos humanos, analisando as
ocorrências e a abrangência da ideia de liberdade inata nas obras de teor ético e político
deste filósofo, sobretudo em sua Metafísica dos Costumes.

Palavras-chave: Liberdade inata. Direito inato. Direitos humanos. Metafísica dos


Costumes.

Introdução

É célebre a passagem da Metafísica dos Costumes na qual Kant define a liberdade


inata como “a independência em relação ao arbítrio coercitivo de um outro, na medida
em que possa coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal”;
“é esse direito único, originário que cabe a todo homem em virtude de sua
humanidade” (MSRL, AA 06: 237). Partindo sobretudo do título desse excerto, a saber,
Existe apenas um direito inato, Höffe, no artigo Kant’s Innate Right as a Rational Criterion for
Human Rights (2010) defendeu a interpretação, que vigora ainda hoje, de que a filosofia
moral kantiana possibilita a fundamentação de uma teoria dos direitos humanos em
sentido lato.2
No começo de seu artigo, a argumentação de Höffe tem como cerne a questão
se há um único direito humano, ou se há um conjunto de direitos humanos.3 E tendo

1Mestrando no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina


(PPGFIl- UFSC), e-mail:g.a.galdino1@gmail.com.
2Tendo como princípio a ideia de direitos básicos concernentes a todos os seres humanos.
3Essa problemática havia sido, segundo ele, suscitada pelo Sistema de direitos públicos subjetivos de

Georg Jellinek. Este autor distingue três tipos de reivindicações que um sujeito jurídico pode
fazer, concedendo-lhes a todos o estatuto de direitos humanos “nomeadamente direitos de

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

em vista que a definição do único direito inato é muito breve, para obter uma maior
compreensão de tal direito, Höffe recorre a passagens da Introdução à Metafísica dos
Costumes e a algumas definições analíticas da Doutrina da Virtude, partes que compõem
a Metafísica dos Costumes. Ainda na introdução de seu artigo, ele resume sua interpretação
acerca da filosofia prática kantiana através das seis etapas seguintes: (i) a distinção entre
o direito natural e direito positivo; (ii) uma discussão sobre o conceito moral de direito
e a lei moral do direito; (iii) uma defesa da autorização para o uso da força; (iv) uma
interpretação do trecho “em virtude de sua humanidade”; (v) uma conciliação das
quatro derivações com o único direito inato; e (vi) a conclusão com a apresentação de
dois “quase-direitos humanos”.
Höffe elucida como é fundamentado o direito positivo empreendendo uma
explicação da filosofia prática kantiana que aborda desde o conceito de “direito
natural” até a ideia de “humanidade”. Depois desse ponto, ele passa a explicar a ideia
de “humanidade” presente na definição do único direito inato. Höffe constata que a
ideia de “humanidade” não ocorre em todas as três introduções que existem na
Metafísica dos costumes, (ela só ocorre de modo sucinto e por duas vezes na Introdução à
Doutrina do Direito (HÖFFE, 2010, p. 84)). Por isso, o filósofo recorre à ideia de
humanidade da elaboração do Imperativo Categórico presente na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, o qual é definido como: “Age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (GMS, AA 04: 429).
Vale ressaltar que é justamente essa definição do Imperativo Categórico que Kant
utiliza para realizar a Divisão da Metafísica dos Costumes em geral que é ilustrada em uma
tabela esquematizada com a distinção entre deveres de virtude e os deveres jurídicos
(MSRL: AA 06: 239).4

A interpretação da passagem “em virtude de sua humanidade” por Höffe

Höffe (2010, p.84) se apoia no conceito de pessoa, a saber, como sujeito


passível de imputação, que consta na Introdução da Metafísica dos Costumes (MSRL, AA
06: 223) e na noção de “ser moral” da Doutrina da Virtude (MSTL, AA 06: 429), para
melhor compreender o termo “humanidade” que ocorre na definição de liberdade
inata na Introdução à Doutrina do Direito. Desse modo, ele constrói a noção de um direito

liberdade pessoal (status negativus), direitos de participação democrática (status activus) e social e
direitos culturais (status positivus) - em todos os casos, fala-se de vários direitos humanos.
4Os deveres ligados ao direito são perfeitos por estabelecerem regras específicas, isto é,

objetivas, dirigidas à ação e produtoras de deveres jurídicos para nós mesmos, através do
“direito da humanidade em nossa própria pessoa”, ou para outrem, por meio dos “direitos dos
homens”. Já os deveres ligados à ética são imperfeitos porque possuem apenas máximas
subjetivas para a ação, cujos resultados visados são: o fim da humanidade em nós mesmos,
quando eu trato a humanidade em mim mesmo como um fim, ou o fim dos homens, quando
os demais são tratados como um fim (MSRL, AA:06, 240).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

inato que pode ser facultado a todas as pessoas. Höffe chega a falar em “direitos das
pessoas” e de sua equivalência aos direitos humanos.
A problemática que se apresenta é a seguinte: apesar do Imperativo Categórico
ser aplicado às duas partes da Metafísica dos Costumes, é possível defender que ele o
é de modo distinto, afinal, ele deve seguir a dinâmica de funcionamento do âmbito no
qual ele será inserido.5 Como o próprio Höffe (2010, p. 74) comenta: “a Doutrina do
Direito trata apenas do jurídico, as leis da liberdade que se dirigem apenas às ações externas
e sua conformidade com a lei (MSRL, AA 06: 214). Elas incluem o direito inato”.
Podemos deduzir que a “humanidade” contida no “único direito inato a todo
homem em virtude de sua humanidade”, por encontrar-se no âmbito jurídico, deve ser
um conceito “obediente” às regras deste sistema. E para compreendê-la naquilo que
lhe cabe, temos que interpretá-la segundo a ideia dos deveres jurídicos. Ademais, como
Barbieri (2018, p.63) e Dall’Agnol (2015, p.345) resumiram didaticamente, no âmbito
jurídico devemos tratar a humanidade como se fosse um fim em si mesmo, isto é, temos
que agir apenas conforme o Imperativo Categórico.
Após a interpretação da ideia de humanidade, Höffe explica que há quatro
derivações analíticas da liberdade inata (igualdade, independência, integridade e
imprejudicabilidade inatas), bem como propõe harmonizar tais derivações com a ideia
de um único direito inato. É interessante notar que o autor toma de saída o único
direito inato e as suas derivações como direitos humanos, e ainda desloca o polo da
discussão sobre a possibilidade de uma fundamentação racional dos direitos humanos
para a discussão de uma possível pluralidade de direitos inatos que seriam compatíveis
entre si e, principalmente, fundamentariam uma noção ampla de Direitos Humanos
(Cf. HÖFFE, 2010, 87-90).
O contexto descrito acima, bem como as interpretações análogas em outras
obras filosóficas mais recentes,6 nos levou a investigar se de fato há, na própria letra
de Kant, a possibilidade de fundamentação dos direitos humanos. Para tal, propomos
analisar as ocorrências e a abrangência da ideia de liberdade inata nas obras de teor
ético e político deste filósofo, principalmente em sua Metafísica dos Costumes.

5De acordo com Kant, “a mera concordância ou discrepância, sem considerar o móbil da
mesma, denomina-se legalidade (conformidade à lei), mas aquela em que a ideia do dever pela
lei é ao mesmo tempo o móbil da ação se chama moralidade (eticidade) da mesma” (MRSL,
AA:06, 219). Podemos constatar, então, que a divisão entre deveres jurídicos e deveres de
virtude depende diretamente da relação que cada dever mantém com o móbil que atua no seu
cumprimento. Quando a legislação faz da ação um dever, e desse dever, simultaneamente, um
móbil, estamos diante de um dever de virtude, e, por conseguinte, no campo da Ética; por
outro lado, quando uma ação não inclui o móbil na lei, admitindo qualquer móbil desde que
externamente esteja de acordo com a norma, estamos diante de um dever jurídico, isto é, no
campo do Direito (MSRL, AA 06: 219).
6O livro de Direitos Humanos em Kant e Habermas (TONETTO, 2010) e o livro de Kant’s Political

Legacy: human rights, peace progress (CARANTI, 2017).

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

As ocorrências da liberdade inata

Como se sabe, há apenas quatro ocorrências da liberdade inata na Metafísica dos


Costumes, a primeira se encontra na sua própria definição e foi mencionada no início
desta exposição; a segunda se encontra na Primeira parte da Doutrina Geral do Direito, cujo
nome é O direito privado sobre o meu e o seu exteriores em geral (MSRL, AA 06: 245). Na §6,
Kant relaciona a violação da liberdade inata (“ser afetado naquilo que é internamente
meu”), com a proposição jurídica a priori chamada posse empírica, e exemplifica: “[se]
sou o detentor de uma coisa (portanto estou a ela ligado fisicamente), então aquele que
a afeta contra meu consentimento (por exemplo retirando-me uma maçã da [minha]
mão) afeta o internamente meu (minha liberdade)” (MSRL, AA 06: 250). Essa
passagem dá início à fundamentação da posse, isto é, da legitimação da propriedade
privada, e portanto não se relaciona necessariamente com uma fundamentação dos
direitos humanos.
A terceira ocorrência da liberdade inata vincula-se à igualdade inata e será
explicitada mais à frente, enquanto a quarta encontra-se inserida na temática do Direito
Público, na §47 da primeira seção intitulada O direito político. Kant diz que ela deve ser
renunciada pelo súdito em favor do soberano, para que este possa devolvê-la
inteiramente àquele logo após o firmamento do contrato originário da sociedade civil
(MSRL, AA 06: 315-16). É importante notar, nesse contexto, que a liberdade recebida
após o contrato perde seu caráter selvagem ilimitado e se torna limitada, conforme as
leis estabelecidas pelo soberano (MSRL, AA 06: 316). A incompatibilidade da liberdade
inata com os direitos humanos parece, aqui, evidente, pois enquanto a liberdade pode
ser suspensa e limitada no firmamento contrato originário, os direitos humanos jamais
podem ser suspensos, muito menos limitados.

As derivações analíticas da liberdade inata

Além das ocorrências da ideia de liberdade inata na obra de Kant, é preciso


verificar também se os direitos humanos poderiam ser fundamentados a partir das
derivações analíticas desta liberdade, a saber: (i) a igualdade inata, (ii) a independência inata,
(iii) a integridade inata e a (iv) imprejudicabilidade inata7 (MSRL, AA:06, 237). Passemos a
essa tarefa.
A igualdade inata, é definida, na Metafísica dos costumes, como a possibilidade de
coação recíproca dos arbítrios uns dos outros. Embora essa definição seja muito breve,
é possível complementá-la através do conceito de “igualdade civil” exposto por Kant
na Doutrina do Direito (nesta, mais especificamente, no Direito Pessoal de caráter real). Tal
complementação deve levar em conta que no estado de natureza também haveria
formas legítimas de sociedade, às quais Kant denomina de sociedade conjugal, sociedade

7Nomenclatura proposta por Barbieri (2018, pp: 49; 51; 55 e 61)

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

familiar e sociedade doméstica. Isso fica mais evidente na §22 quando Kant fundamenta a
aquisição do “meu” e do “seu” exterior a nível doméstico afirmando que “esse tipo de
direito é o de posse de um objeto exterior como uma coisa e do uso do mesmo como
uma pessoa”. Para Kant, essa posse não é fundada em um fato arbitrário, nem em um
contrato, mas em uma lei que, por envolver a posse de uma pessoa, “tem de ser um
direito que está além de todo o direito real e pessoal”, denominado “direito da
humanidade em nossa própria pessoa” e que nos faculta a permissão natural de possuir
uma pessoa deste modo (MSRL, AA 06: 276). Kant afirma que essa lei permite três
tipos diferentes de posses, a depender do que foi adquirido: O Direito Conjugal, quando
o homem adquire uma mulher (§24); O Direito dos Pais, quando estes adquirem filhos
(§28); e O Direito do chefe de família, quando a família adquire criados (§30) (MSRL, AA
06: 277-284).
É interessante destacar que, embora o direito de adquirir, aparentemente, caiba
a diferentes sujeitos, uma vez que esse direito pertence ao homem, no direito conjugal,
aos pais, no direitos dos pais, e à família, no direito do chefe de família, Kant afirma no
Direito Pessoal de Caráter Real, ser esse direito “o que o varão tem de possuir a sua mulher,
os seus filhos e os seus servos domésticos”, os quais ele usa como pessoa, uma vez
que estes são dotados de dignidade, mas os possui como coisas que devem ser
restituídas em caso de fuga ou rapto (MSRL, AA 06: 277). Ademais, ao contrário da
definição de igualdade que acabara de postular, Kant diz no direito conjugal que “o
homem é a parte que manda e a mulher a parte que obedece” (MSRL, AA 06: 279). E
curiosamente, para ele, isso não anularia a igualdade natural entre o casal, pois estaria
fundado em uma suposta “superioridade natural da capacidade [por parte do homem]
de promover o interesse comum da casa” (MSRL, AA 06: 279). A mulher, assim,
deveria submeter-se a todas as decisões do homem, que a coage sem poder ser por ela
coagido. Portanto, a igualdade inata, entendida enquanto a capacidade de coação
recíproca entre os arbítrios, promove uma relação desigual entre os membros da
sociedade doméstica (inclusive no estado de natureza), porque nela somente o varão
adulto pode coagir sem ser coagido pelos outros membros. Por conseguinte, tal
igualdade não parece ser compatível com uma teoria dos direitos humanos, uma vez
que estes devem ser válidos em igual extensão para todos os seres humanos.
A independência inata é definida por Kant como “a capacidade de ser seu
próprio senhor”, ou “sui iuris” (MSRL, AA 06: 237). Como ocorre com a igualdade
inata, essa citação também é breve demais para tirarmos conclusões a respeito da sua
compatibilidade com direitos humanos. No entanto, pode-se usar a noção de
independência civil de Teoria e Práxis para analisar o conceito de “sui iuris”. Nessa obra,
Kant expõe os critérios cujo cumprimento dá direito a ser cidadão do Estado. O
primeiro critério é uma qualidade natural, a saber, não ser criança nem mulher,
enquanto o segundo restringe a cidadania aqueles que têm uma qualidade econômica
diferenciada: ser seu próprio senhor, “sui iuris” (TP, AA 08: 295). Podemos observar,
assim, que o conceito de cidadania adotado por Kant é extremamente excludente, pois
através da qualidade natural ele exclui de seu âmbito mais da metade de todos os seres

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

humanos e, através da qualidade econômica, exclui a grande maioria dos demais.


A integridade inata, definida como a “qualidade de ser um homem íntegro (iusti)
porque anterior a qualquer ato jurídico não fez qualquer ato incorreto” (MSRL, AA
06: 238), também se encontra implicada nas considerações que Kant faz sobre o direito
penal, que são problemáticas. Kant autoriza a posse de “delinquentes” enquanto
escravos, argumentando que, apesar de no Estado não haver homens sem qualquer
dignidade – isto é, cada homem deve possuir, no mínimo, a dignidade de cidadão –
quando estes cometem algum crime, eles se tornam um “mero instrumento do arbítrio
de um outro (do Estado ou de outro cidadão)” (MSRL, AA 06: 329-30). Dito isso, fica
evidente que uma concepção de integridade inata, que pode ser suspensa justo durante
a condenação de um sujeito jurídico quando do cumprimento da pena, é incompatível
com os direitos humanos, pois é exatamente em momentos como esses e contra os
excessos cometidos pelo Estado que geralmente se reivindica esses direitos.
A imprejudicabilidade inata, é definida como “a competência para fazer a
outrem o que em si não os prejudica no que é seu […] contar-lhes ou prometer-lhes
algo, ser verdadeiro e sincero, ou mentiroso e falso, simplesmente porque depende
disso se irão ou não crer nele” (MSRL, AA06: 238). Nessa passagem, em uma nota de
rodapé, Kant continua defendendo como aceitável, no sentido jurídico, a mentira que
não causa danos aos direitos de outrem. É evidente que essa passagem autoriza um
certo tipo de mentira no âmbito do direito. Não obstante, como destacamos, o âmbito
da ética segue outras regras, cujas descrições deixam evidente a impossibilidade de se
contar qualquer mentira, pois aquele que o faz, deixa de cumprir com o Dever do homem
para consigo mesmo, meramente enquanto um ser moral (MSTL, AA 06: 429). Para Kant, a
mentira é “a recusa e aniquilação da dignidade humana”, uma vez que, ao contar uma
mentira, o ser humano faz intencionalmente o oposto à finalidade que a comunicação
de um pensamento se propõe, se tornando assim “um fenômeno meramente ilusório
de homem”. Portanto, para o filósofo, qualquer pessoa, ao contar uma mentira, se
torna algo inferior a uma coisa, visto que esta ainda possui uma finalidade, enquanto
aquela nem isso possui mais (MSTL, AA 06: 429-30).

Considerações finais

Partimos da problemática colocada por Höffe, que afirma a possibilidade de


fundamentação dos direitos humanos com base em dois tópicos: (i) no título Há um
único direito inato, e com ele a questão paralela de uma possível pluralidade de direitos
humanos, que a nosso ver suplanta a real questão de uma fundamentação dos direitos
humanos; (ii) o uso do conceito de humanidade da Doutrina da Virtude como parte
elucidativa da definição da liberdade inata “em virtude de sua própria humanidade”
não leva em conta a diferença de funcionamento de cada âmbito da moral, visto que a
ideia de liberdade inata foi apresentada na Doutrina do Direito, tratando-se, com efeito,
de um fundamento para o conceito jurídico de posse, do “meu” e do “seu” exterior.

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Após o que, analisamos cada ocorrência da liberdade inata e verificamos sua


compatibilidade com os direitos humanos, e de modo semelhante procedemos em
relação às derivações analíticas da liberdade inata. E, nesses pontos, em oposição a
Höffe, notamos que uma fundamentação racional dos direitos humanos a partir da
liberdade inata kantiana apresenta vários obstáculos na própria obra do filósofo
alemão. Por fim, entendemos que o aprofundamento da discussão – sobretudo num
momento em que ideias totalitárias voltam a ser abertamente defendidas – poderá
contribuir para o desenvolvimento da questão acerca da fundamentação dos direitos
humanos, seja para fortalecer os argumentos já postulados, seja para indicar a
necessidade de sua reelaboração a partir de bases mais sólidas.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

COVID-19: A ÉTICA NARCÍSICA DA EMPATIA EM


FRANGALHOS

Gustavo Felipe Berça Ogata1


Fabrícia Garla Pismel2

Resumo Pretende-se, com a elaboração do presente trabalho, analisar e refletir acerca


dos aspectos éticos nas relações humanas durante o isolamento social decorrente da
pandemia causada pela COVID-19. A situação de pandemia provocada pelo
Coronavírus acabou por mostrar que algumas atitudes e comportamentos humanos,
mesmo em situações críticas e que demandam a colaboração de todos para a cessação
da situação de risco, fogem completamente à ética e, muitas vezes, até mesmo ao bom
senso. Em vez de contribuir para a melhoria do quadro grave de saúde enfrentado
mundialmente, parte da população agiu de forma a inobservar as medidas sanitárias e
de segurança vigentes, colocando em risco não apenas a própria saúde, mas também a
saúde pública. Não se ignora que há muitos fatores envolvidos e importantes para
determinar o comportamento e o agir humano, especialmente em situações adversas.
Todavia, não se pode olvidar que, em muitos casos, determinadas atitudes que
poderiam ser praticadas e/ou evitadas em prol do bem comum, mesmo havendo
possibilidade, não foram respeitadas. Este trabalho terá enfoque precisamente neste
âmbito, ou seja, quando o agir ético era possível diante da presença de circunstâncias
favoráveis e, apesar disto, não foi colocado em prática. Tais situações puderam ser
amplamente observadas durante a pandemia, na medida em que parcela da população
agiu de forma egoísta e individualista, deixando de respeitar o outro. Nesse sentido,
intenta-se abordar algumas questões ligadas à ética, como por exemplo o respeito ao
próximo, questionando-se, principalmente, as divergências e os limites tênues
existentes entre liberdade, ética e Direito. Tenciona-se demonstrar que o estudo
conjunto das referidas matérias revela o atual esfacelamento do agir sob o ponto de
vista coletivo e evidencia a cultura do individualismo, apregoada pela cultura
imediatista, das relações instantâneas, momentâneas e efêmeras, do consumo
exacerbado e da pseudo ética fordista. Serão expostas, ainda, as consequências, no
campo ético, de fenômenos constatados na rotina de isolamento social no Brasil, como
festas clandestinas, a não observação do distanciamento social e pessoas que recusam
a aplicação da vacina. Como uma das possíveis soluções, propõe-se uma mudança
social drástica, no que tange o trato com as pessoas, refletindo desde questões sobre
liberdade até a etiqueta, a pequena ética.

1 Graduando em Direito na Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá/PR, Brasil,


Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica, ra109227@uem.br
2 Especialização em Filosofia Política e Jurídica na Universidade Estadual de Londrina (UEL),

Londrina/PR, Brasil, fabriciapismel@hotmail.com

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

1. Considerações iniciais sobre os fatores sociais e o vírus sars-cov-2

Em um trabalho destinado a refletir sobre a ética da população brasileira


durante o enfrentamento da COVID-19, é necessário que haja algumas delimitações e
esclarecimentos. Primeiramente, não se busca tecer infundadas críticas aos
trabalhadores que necessariamente precisam se deslocar de seus lares a fim de garantir
seu sustento ou a outras pessoas que, devido aos mais diversos motivos, estiveram
impossibilitadas de cumprir todas as medidas sanitárias e de segurança adotadas
durante a pandemia.
Em segundo lugar, não é também o intuito culpar os governantes pelos
desmazelos de algumas pessoas ao descumprir medidas sanitárias. Outrossim, entende-
se que algumas ações daqueles que representam o povo foram responsáveis pela
potencialização da imprudência da população e com isso, colaboraram de forma crucial
para o agravamento de condições agudas que levaram ao óbito de mais de meio milhão
de brasileiros.
Com isso, faz-se necessário apresentar a primeira delimitação: as determinantes
sociais da saúde, apresentadas por Donald M. Berwick (2020). Tais determinantes
versam sobre a distribuição equitativa de recursos, principalmente no que tange à
segurança econômica. Dessa forma, como bem enfatiza Horton (2020), a COVID-19
não é uma pandemia, mas uma síndrome respiratória aguda, cujo vetor é um vírus que
correlaciona a síndrome a diversos fatores não infecciosos. Para o autor, os efeitos
causados pela doença são amplificados pelo contexto de discrepância social.
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se inferir que não basta a ciência
desenvolver vacinas potentes ou o Estado aplicá-las de forma eficiente; é necessário
um enfrentamento multidimensional. É claro que a vacinação desigual e atrasada tem
gerado graves consequências como, por exemplo, novas cepas do vírus, essas com
mutações que podem levar a uma maior resistência às vacinas disponíveis
(GAMEIRO, 2021). No entanto, lembrando que o vírus é transmitido pelo contato
com um doente, o primeiro passo é o isolamento social.
Considerando os apontamentos apresentados anteriormente e tendo em vista
que, no Brasil, há uma altíssima vulnerabilidade social, enquanto não há formas de
subsistência (alimentação, saneamento básico, moradia, segurança pública e
econômica, saúde básica, dentre outros fatores), não há como toda a população realizar
o isolamento social de forma adequada, eficaz e eficiente.
Destacado isso, cumpre enfatizar que não é essa parcela da sociedade que neste
trabalho será levada à reflexão, mas sim a parcela da sociedade que possui condições
de cumprir as normas de isolamento social, mas escolhem não o fazer, promovendo e
participando de festas clandestinas, bem como superlotando bares e restaurantes.
A título de exemplificação, somente em Curitiba/PR, do dia 07 ao dia 09 de
maio de 2021, foram R$ 330.550 em multas aplicadas em bares que estavam
descumprindo as normas sanitárias (CURITIBA, 2021). Esse tipo de comportamento
levou à pergunta que instigou a elaboração do presente trabalho e que o direciona:

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

quais as causas da perversidade humana ao desconsiderar a si e ao outro através de


uma pseudo ética narcísica?

2. Sobre a Ética

A ética é compreendida como a área da filosofia responsável por estudar as


ações e o comportamento humano, bem como os princípios que os orientam e a
capacidade de avaliá-los. Trata-se, assim, da análise dos princípios que servem como
diretrizes e direcionamentos para o agir humano, abrangendo diversas áreas do
comportamento, com a finalidade de encontrar a melhor forma de agir e viver no
mundo.
Cada cultura e cada sociedade humana é construída com base em determinados
valores, advindos da interpretação do certo e do errado, do bom e do ruim, do bem e
do mal. À ética cabe analisar e estudar os valores nos quais se fundamentam as
sociedades e, consequentemente, o comportamento humano. Este, por sua vez, é
baseado em um conjunto de premissas ou juízos de valores que determinam e
interpretação da realidade e são responsáveis pela valoração das ações, definindo,
assim, o certo e o errado.
Apesar de a ética estar relacionada à moral, ambas se diferem na medida em
que aquela é analisada de maneira geral e universalizada, ao passo que esta está atrelada
a fatores sociais e culturais que acabam por influenciar as ações humanas. Ainda, a ética
estabelece o pensamento humano como fundamento do modo de viver, enquanto a
moral encontra seu alicerce na obediência às normas e costumes, que podem variar de
acordo com a região, cultura, religião, entre outros fatores.
Pode-se afirmar que as esferas da ética e da moral se tangenciam, de forma a
complementar uma à outra, mas não se incluem ou excluem totalmente. Ou seja,
ambas possuem o mesmo significado, mas não são completamente separadas, pois
apresentam aspectos significativos em comum. As duas áreas podem ser
compreendidas como princípios nos quais todas as sociedades se baseiam, a fim de
conseguirem se organizar, se estabelecer de forma duradoura, harmoniosa, pacífica e
agradável aos seus habitantes e sem as quais a convivência humana não seria possível,
ao menos não na forma como é exercida.
Tanto a ética quanto a moral vistam orientar a conduta do homem, delimitando
seu comportamento. Ambas podem ser vistas como instrumento de controle social e
possuem como característica a regulamentação das ações dos indivíduos de uma
mesma sociedade, sendo de extrema importância para a estruturação da convivência
humana, uma vez que não é possível haver relações saudáveis, harmônicas e benéficas
entre os homens sem que haja qualquer conjunto de regras, princípios ou diretrizes de
como agir.
Ao longo da história, muitos foram os filósofos que buscaram estudar,
compreender e definir a ética. Um dos pensadores que muito contribuiu para o tema

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

foi Aristóteles, que procurou averiguar quais seriam os princípios orientadores do agir
humano e o que corresponderia a uma vida virtuosa. O autor entente de que a
finalidade da vida é a felicidade e que, para alcançá-la, é necessário trilhar um caminho
que vise o bem maior, por meio da prática e do exercício da ética.
Immanuel Kant, por seu turno, associou a ética a razão, de forma que este é o
fundamento primordial daquele. Sua teoria se afastou da visão existente à época de que
a divindade era o fundamento último da moralidade. O escritor assevera que a razão é
responsável por orientar as ações e governar a vontade humana. Assim, a autonomia
da razão é, para o filósofo, um princípio ético fundamental e a fonte de dever de ação,
fazendo com que o ser humano seja capaz de compreender e formular regras para si
mesmo.
Em que pese certas características e nuances das definições e fundamentos da
ética variem de autor para autor, certo é que a ética é compreendida, de maneira geral,
como a filosofia da moral, responsável por estudar e estabelecer as bases para o agir
correto do ser humano. Há divergências, entre os filósofos, acerca do exato significado
do ser e do agir de forma ética, pois cada pensador fundamenta a ética em uma virtude,
máxima ou princípio diferente.
Não obstante, tem-se que as ações e comportamentos humanos podem ser
considerados éticos quando implicam na prática daquilo que é considerado bom,
correto ou certo, apresentando condutas consideradas adequadas por uma
determinada sociedade. Dessa forma, o agir ético perpassa por questões como respeito,
empatia e cordialidade, relacionando-se ao comportamento socialmente aceito e
esperado em determinadas condições e circunstâncias de tempo, local, espaço, entre
outros.

3. Buscando entender os desvios

A fim de entender aqueles que desviam da perspectiva ética proposta por Paul
Ricoeur (2019), qual seja, “visar à verdadeira vida com e para o outro em instituições
justas” (RICOEUR, 2019, p. 197), é necessário seguir um princípio moral Kantiano
citado por Schopenhauer em sua obra “Sobre a ética” (2012), o qual indica que não se
deve realizar uma valorização objetiva de um sujeito à luz de valores e dignidade, bem
como, não se deve considerar algum tipo de “maldade de sua vontade, nem a limitação
de seu entendimento e a incorreção de seus conceitos” (SCHOPENHAUER, 2012, p.
40 e 41). Isso porque para compreender uma ação é necessário verificar quais as dores
e/ou necessidades, medos do indivíduo analisado, até porque, pode-se prejudicar
outrem através de uma ação por essa ignorância, falta de propósito ou maldade e
mesmo assim haver uma culpa moral no autor da ação (BAUMAN, 2021, p. 31).
Contudo, é extremamente difícil conseguir elencar um fator ou grupo de
fatores como causa de um desvio. Dessa forma, buscar-se-á apresentar alguns dos
possíveis sintomas de que há um crescente aumento do redirecionamento das causas

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que levam a uma ação, as quais estão sendo focadas cada vez mais no ser e menos nos
outros. Bauman (2021, p. 32), aponta como um grande problema para a ética é o alto
nível de divisão de tarefas, no sentido que, colocam-se muitos agentes para que os
impactos negativos sejam dissipados, ou seja, o número de pessoas envolvidas é tão
grande que é impossível identificar um culpado.
Aplicando o apontamento ao caso aqui trabalhado, pode-se realizar a seguinte
associação: os desvios sociais são em grupos grandes que se aglomeram e acabam
falsamente se eximindo da culpa de disseminação do vírus. Dessa forma, mesmo que
haja uma culpa parcial de alguns dos agentes, a mesma em nada irá influir no resultado
final já causado. O mesmo ocorre com o governo. Como exemplificação, analisa-se a
distribuição de culpas entre Governo Federal, Estadual e Municipal. Ministério da
Saúde, Regionais de Saúde e Secretarias da Saúde. No final, o povo está perdido.
Assim, de um lado tem-se pessoas que estão arriscando suas vidas e de seus
familiares para trazer sustento ao lar e de outro pessoas que, opcionalmente, escolhem
por se exporem e colocam em risco não só a si e sua família como todos ao seu redor,
como trabalhadores(as) domésticos(as) que se expõem ao risco de infecção sem
possuir qualquer outra opção (SENADO, 2021). Em síntese, todas as ações geram
consequências. Quando se fala em saúde pública, essas consequências são agudas.
Logo, a partir do sintoma, refletir-se-á possíveis desdobramentos que culmina na ética
narcísica. Para compreender o conceito é necessário entender o que é o narcisismo.

3.1 uma breve exposição sobre o narcisismo à luz da psicanálise

Antes de apresentar um conceito sobre o narcisismo é necessário tão logo


realizar uma diferenciação. O senso comum confunde o ego com o narcisismo e tal
confusão é fácil de ocorrer, principalmente pelo fato de alguns autores diferenciarem
conceitos de ego simplesmente com a alteração da letra “e” de maiúsculo quando se
refere ao self, o eu (Ego) e minúsculo quando se refere a teoria do aparelho psíquico
(ego). Assim, para que haja um correto entendimento do conceito, é preciso que haja
esse alerta no início da explicação. O ego, de acordo com a psicanálise, vem da teoria
estrutural proposta por Sigmund Freud em 1923 na obra “O ego e o id”.
Segundo tal teoria existem três instâncias psíquicas, o id, o ego e o superego.
O id seriam as pulsões, os desejos indiscriminados não acessíveis ao consciente,
extravasando por meio de fleches (sonho, traumas...). Já o Superego seria a instância
moral castradora, a consciência de cada pessoa que limita os desejos proibidos
socialmente. Por fim, o ego é o mediador, que busca ao máximo evitar os colapsos
entre desejos e castração moral (FREUD, 1976).
Superado essa confusão entre a teoria psicanalítica e o senso comum, passar-
se-á às origens do termo narcisismo. A palavra narcisismo se refere a um mito romano
de autoria do poeta Ovídio. Nesse mito, Narciso era um homem muito belo.
Proporcional a sua beleza era sua arrogância. Despertava na maioria das pessoas – e

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

até mesmo de ninfas – o amor. Porém, uma dessas ninfas, Eco, foi desprezada por
Narciso e para se vingar solicitou ajuda da deusa Nêmeses. Essa fez com que aquele
se apaixonasse por sua imagem que era refletida em um rio. Logo, ele ficou deveras
encantado por si mesmo, tanto que definhou olhando para seu próprio rosto e foi
transformado pela deusa em uma flor, batizada com seu nome.
Na psicanálise, o termo narcisismo foi introduzido por Paul Nacke em 1899,
em sua obra “Estudos sobre perversões sexuais”, sendo utilizado para denominar o
estado em que o sujeito ama a si mesmo. Para Freud (2010), o narcisismo é abordado
como uma fase do desenvolvimento pessoal de cada indivíduo. No estágio de
narcisismo é possível observar uma transição do autoerotismo (prazer do sujeito com
seu próprio corpo) para o outro como ser destinado ao amor. Caso não ocorra essa
transição, dificilmente o sujeito irá desenvolver a habilidade do convívio com o
diferente, por tanto, com a sociedade.
De acordo com o Manual de diagnóstico de Doenças Mentais, quinta edição,
DSM-5 (DRAFT, 1990), o narcisismo é enquadrado como Transtorno de
Personalidade Narcisista (TPN)3, que consiste em um “padrão generalizado de
grandiosidade, necessidade de adulação e falta de empatia” (SKODOL, 2019). De
acordo com Skodol (2019), os pacientes que possuem tal transtorno possuem uma
estima além do normal de suas habilidades e, em geral, enaltecem suas realizações. O
sentimento é de superioridade ou de que se é especial, diferente dos outros, estando,
os pacientes, mais preocupados em serem admirados, prestigiados que com o outro,
inclusive explorando-o para conseguir chegar em seus objetivos, tendo como início
dos sintomas a fase adulta.

3.2 Do místico ao antropocentrismo: empatia aos frangalhos e moral


distorcida, o surgimento da ética narcísica

Desde os primórdios, a humanidade tem buscado respostas para a vida e morte


em todas as suas extensões. Porém, o incompreensível ao ser humano para as
tecnologias disponíveis na época foi atribuído aos deuses. Surgiram os deuses da chuva,
do sol, da lua, da prosperidade, dentre outros. Com o tempo, as capacidades de
compreensão dos fenômenos naturais passam a ser maiores, a ciência se desenvolve e
consegue prevenir ou antecipar catástrofes, cultivar em solos antes inférteis, controlar
o fogo, pragas e doenças.
Lentamente, as explicações místicas passaram a não mais fazer sentido a todos.
A perseguição começou e as trevas se instauraram, não só proibindo como punindo
contestações. Com toda perseguição, o anseio pela liberdade. Antes, tal conceito era
abordado através do livre-arbítrio que de livre tinha somente a probabilidade de prática

3Classificado pelo CID-10, Classificação Internacional de Doenças, em sua 10ª edição (NLM,
2011), sob o código F.60.8 (outros transtornos específicos da personalidade).

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

da ação, vez que, somente ao pensar etária o sujeito incorrendo em erro e, dependendo
do erro, seria punido pela eternidade. O medo e a vontade de poder pensar e agir
livremente explodiu com o humanismo. O místico passa a ser apenas uma muleta
metafísica e o homem passa a ser deus.
Boa parte das instituições e anseios criados pelo humanismo, principalmente
no que tange o direito, hoje não se mostram cumpridos. A igualdade está somente no
papel4. A fraternidade é escassa e a liberdade é o início do problema. O clero foi
substituído pelos legisladores. A moral deveria ser substituída por algo que todos os
seres humanos atribuíssem legitimidade, não resultantes de uma deidade. Mas a
deidade somente saiu do campo metafísico e se encontra no físico.
Dessa maneira, quando se observa a falta de empatia de pessoas que
voluntariamente descumprem medidas sanitárias em meio a surtos de infecção por um
vírus extremamente letal, questiona-se que, possivelmente, a estrutura de formação
moral da sociedade não logrou êxito total, logo, as justas instituições citadas
anteriormente como uma das finalidades da ética, são cada vez mais inatingíveis.
Considerando isso, os indícios da patologia relacionada ao Transtorno de
Personalidade Narcisista são cada vez mais observáveis, principalmente no que tange
a falta de empatia, palavra essa que tem origem do grego, que forma-se com a soma de
em, que significa dentro de, com pathos, que significa sofrimento, dor. Logo, empatia,
de acordo com David E. Zimerman significa ter o “poder de sentir-se dentro do outro
por meio de adequadas identificações projetivas e introjetivas” (ZIMERMAN, 2008,
p. 120)
Ademais, verificando os comportamentos sociais questionados, remetem a
formação do ego. Em analogia, as pessoas que não estão cumprindo o isolamento
social voluntariamente ao participar de festas clandestinas, aglomerações em bares e
restaurantes, dentre outros comportamentos, assemelham-se a um recém-nascido. Isso
porque, nesse não há ainda a formação da instância psíquica ego, bem como do
superego. Assim, tudo é id, ou seja, desejo, prazer puro. Com o tempo, surge o ego
arcaico, que acaba por expelir o que é desagradável ao desejo, vez que, ainda não há o
desenvolvimento do superego como instância moral. Dessa forma, cumprindo com
seu papel de evitar colapsos, o ego, em seu estágio primitivo, busca atender as
exigências do id, das vontades (ZIMERMAN, 2008, p.114).
Considerando que os códigos de condutas morais solidificados acabam por
tecer o que compreendemos como ética e que a moral pós-humanismo foi
desenvolvida a mercê do homem, é muito difícil cumprir com toda expectativa da
comunidade em geral. Por conta disso, códigos paralelos passam a se definir,
principalmente ao redor do sentimento oceânico, que consiste na “[...] participação do

4Atualmente, no Brasil, de acordo com Oxfam Brasil e outros (2021), a insegurança alimentar
atinge mais de 19 milhões de brasileiros. Além disso, 35 milhões de brasileiros não possuem
acesso a água potável, bem como cerca de 100 milhões não possuem acesso ao saneamento
básico (MARTINS, 2021). No Paraná há um defensor público para cada 84.816 pessoas
(PARIS, 2021).

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Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

ego em expectativas inalcançavelmente elevadas” (ZIMERMAN, 2008, p.303). Assim


surge a ética narcisista ou ética narcísica.

Conclusões

À luz do exposto, de fato, o caso estudado é muito complexo, sendo a ponta


do iceberg. Não há como apontar soluções, vez que, é um fenômeno enraizado na
sociedade contemporânea que levou décadas para se desenvolver progressivamente.
Pode-se apontar alguns fatores que podem minimizar as consequências do
individualismo exacerbado, da ética narcísica, quais sejam: uma mudança das
metodologias de ensino, focando, desde a mais tenra infância o trabalho em grupo,
desenvolvendo atividades que busquem desenvolver um senso de consciência coletiva
e uma mudança na cultura das empresas, que já vem sendo notada, no sentido de
incentivar o cooperativismo, a colaboração.
Propõe-se uma mudança das metodologias de ensino no sentido de, ao invés
de instigar a competição, deveria ser observadas as necessidades de cada aluno e suas
habilidades. As habilidades deveriam ser desenvolvidas e utilizadas para suprir as
necessidades de outros colegas e tais necessidades, quando não apenas de matéria,
deveriam ser identificadas e trabalhadas com a indicação de psicoterapia. Cria-se uma
cultura de enfrentamento de problemas os encarando de outro ângulo e diminuindo o
preconceito com a terapia.
Outrossim, de nada adiantaria uma mudança metodológica no ensino se
quando for buscar um emprego o sujeito for pisoteado, engolido por um sistema
individualista e sujo. É necessário que as empresas passem a focar mais na colaboração
e desenvolvimento conjunto ao invés de beneficiar que chega aos resultados desejados,
no entanto o faz sozinho, muitas vezes, utilizando-se dos outros.
Esses minimizadores trazem um efeito direito sobre a ética narcísica e,
consequentemente, aos comportamentos decorrentes dela, como é o caso de pessoas
que descumprem medidas sanitárias para o seu bel prazer. Se for criada uma cultura de
benefício aos que buscam o bem comum, o narcisismo será cada vez mais combatido.
Por mais que seja difícil que uma pessoa com Transtorno de Personalidade Narcísica
reconheça tal condição, caso o primeiro minimizador funcione e lá no início de sua
formação a pessoa já ser indicada a psicoterapia, dificilmente irá ela desenvolver o TPN
e assim, cada vez menos comportamentos de baixa ou nula empatia irão ser tão
reproduzidos como atualmente.

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ZIMERMAN, David. Vocabulário contemporâneo de psicanálise [recurso


eletrônico] / David Zimerman. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed, 2008.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

OS SOLDADOS DO MATE: A ECONOMIA MATEIRA DO


PARANÁ E A GUERRA DO PARAGUAI (1864-1870)

Matheus Pelaquim Silva1

Resumo: A Guerra do Paraguai, travada entre o Império brasileiro, Argentina e


Uruguai, contra a República do Paraguai marcou a História da América Latina.
Segundo um consenso entre historiadores é considerado o maior conflito militar
ocorrido neste continente. Este trabalho consiste em um relatório de andamento de
pesquisa, nele pretende-se abordar a Província do Paraná no contexto da Guerra do
Paraguai, mais especificamente compreender a relação da economia da erva-mate desta
província com a decisão dos presidentes provinciais em engajar-se no conflito. Com
isso, analisamos os discursos destes presidentes a partir da metodologia do paradigma
indiciário proposto por Ginzburg. No âmbito teórico, utilizamos René Rémond e sua
ideia de História política, onde Política, Economia e Guerra se interligam no
entendimento de práticas sociais. Além do mais, iremos trabalhar a forma que ocorreu
a convocação dos soldados paranaenses e seus feitos no teatro da guerra, dando um
enfoque a mais na Guarda Nacional, já que o Império brasileiro não havia imposto
obrigatoriedade sob o Paraná para enviar homens da milícia cidadã. Porém o
presidente provincial encabeçou uma árdua mobilização de homens da guarda nacional
e marcou a entrada efetiva desta província no conflito.

Palavras-chave: Guerra do Paraguai; Província do Paraná; Economia da erva-mate;


Paradigma indiciário; Guarda Nacional.

Introdução

A Guerra do Paraguai foi o maior e mais marcante conflito da história da


América do Sul, deixando traços não apenas nos países que se envolveram diretamente,
como o caso do Império brasileiro, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, mas de todos
os componentes do continente sul-americano. “Foi o conflito externo de maior
repercussão para os países envolvidos, quer quanto à mobilização e perda de homens,
quer quanto aos aspectos políticos e financeiros.” (DORATIOTO, 2002, p.17). Fora
que não foram apenas os países envolvidos diretamente que foram influenciados, mas
sim toda a região da América Latina “A Guerra aconteceu e colocou uma região inteira
em polvorosa” (MENEZES, 1998, p.161).
Temos o estopim desta guerra com Solano López capturando a embarcação
Marquês de Olinda e posteriormente invadindo o solo brasileiro pela província do

1Graduando em História pela UEL, experiência em História Militar Brasileira, participante


do grupo A História Militar no Brasil 1850-1900. E-mail: mtsbvb@gmail.com.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Mato Grosso em dezembro de 1864 provocando a consequente reação imperial que


mobiliza tropas de todas as províncias. Inúmeras reviravoltas marcam esta guerra que
veio ter sua conclusão no primeiro trimestre de 1870 com o assassinato de Solano
Lopez em próprio solo paraguaio.
Este trabalho tem o formato de um relatório de progresso de pesquisa, por
conta disso estarão presentes pontos importantes para um projeto de pesquisa como
"objetivos", "justificativa" e "metodologia'', além de levantar as discussões realizadas
no percurso desta pesquisa até o presente momento.
Falando previamente do objetivo desta pesquisa é trabalhar com a participação
da província do Paraná na Guerra do Paraguai. Como já foi mencionado
anteriormente, houve uma mobilização gigantesca em todo o império brasileiro, essas
mobilizações foram diversas, os decretos de convocações eram gerais, válidas para
todas as regiões, mas cada província tinha sua própria dinâmica; no caso paranaense,
ocorreu um “esquecimento” no que se refere a convocação dos homens da Guarda
Nacional do Paraná, o decreto que tornava obrigatório o envio de homens deste
segmento militar não abrangia o Paraná, entretanto, a elite política local, encabeçada
pelos presidentes provinciais, decidiram organizar por conta própria enviar “[...] o
presidente da Província, ao iniciar-se a guerra, reclamou contra o esquecimento, e
pediu que novo decreto fosse feito, mais amplo, incluindo o Paraná” (CARNEIRO,
1995, p.61). Com todas essas informações, nos resta perguntar qual o motivo dessa
decisão? Temos uma hipótese a motivação que teria levado a elite política paranaense
adentrar na Guerra do Paraguai desta forma teria sido os interesses políticos que
estavam em torno da produção da erva-mate na província do Paraná.
Levantamos essa hipótese pois na segunda metade do século XIX a produção
do mate em solo paranaense estava emergindo, encontrava-se em uma crescente, e
quem mais se empolgava eram os homens da elite econômica que produziam a erva,
“Os engenhos de erva-mate se localizavam principalmente no litoral da Província, nas
cidades de Paranaguá, Antonina e Morretes, e havia alguns poucos funcionando na
capital, Curitiba” (BRITO, 2011, p.28). Esta produção era voltada, basicamente, para
a exportação no comércio da Prata, porém vale ressaltar que o mate paranaense tinha
um forte concorrente no que se refere o domínio da comercialização da erva dentre as
repúblicas dessa região, o próprio Paraguai.
Metodologicamente, analisamos fontes documentais da época, focando os
discursos daqueles que produziram as nossas fontes primárias, e para isso, nos
amparamos, principalmente, no conceito do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg
(2007), encontrado na obra Mitos Emblemas e Sinais; a ideia aqui é encontrar
pequenas “pegadas” (pistas) nos documentos. Já pensando no quesito teórico, a obra
que será utilizada será a de René Rémond (2003) Por uma História Política. Então
buscamos a correlação dos conceitos Política, Economia e Guerra, à luz de sua noção
de História Política.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

1. Objetivos

O objetivo geral desta pesquisa, é comprovar a hipótese geral. Essa hipótese


busca provar que havia interesses econômicos nas ações militares dos presidentes da
província do Paraná e sua consequente elite política local em mobilizar e enviar ao
teatro de guerra os guardas nacionais de seu território. Esses interesses econômicos se
referem a produção da erva-mate em solo paranaense.
Sendo assim, vamos buscar encontrar interligações entre a política, que está
expressa pelos presidentes provinciais, as questões militares, pois o recorte contextual
deste trabalho é a Guerra do Paraguai e finalmente a economia que está demonstrada
pela erva-mate e sua lógica produtiva. Tudo isso para então demonstrar como o Paraná
adentrou na guerra do Paraguai por conta desse fator econômico.
Especificamente, buscaremos uma demonstração das características da
economia da erva-mate paranaense, visto que ela é um ponto chave na discussão; além
do mais iremos pensar como ocorreu a mobilização e convocação dos soldados
paranaenses rumo ao teatro da guerra, e para terminar, focaremos na Guarda Nacional
do Paraná, buscando caracterizá-la e discorrer sobre suas funções e feitos na guerra.

2. Justificativa

A Guerra do Paraguai sempre foi um assunto que levantou interesse a minha


pessoa, entretanto, todas as questões que envolviam este processo histórico sempre
foram um tanto quanto rasas, as abordagens, fossem elas escolares ou até midiáticas,
não levantavam novidades, por isso existe um fervor particular em trabalhar este
assunto de uma forma que privilegiasse uma nova problemática. Além do mais, o que
fomentou o nascer desta pesquisa foi a leitura do livro O Paraná na Guerra do
Paraguai de autoria de David Carneiro. Esta obra, por mais que seja extensa, creio
que suas discussões são mais introdutórias, principalmente pela característica
positivista do autor, porém foram justamente elas que abriram caminho para as
problematizações fundamentais do presente trabalho.
Além do mais, todos os ocorridos na Guerra do Paraguai marcaram a história
dos países envolvidos, sendo assim, trabalhar o envolvimento da província do Paraná
e como ela influenciou no processo histórico é de suma importância. Além do mais, a
compreensão destes quesitos também incrementa o entendimento de como foi
trilhado os rumos dos paranaenses a partir deste ocorrido, isso se torna possível pois
iremos trabalhar não só a relação militar do conflito armado, mas também todas as
questões políticas e econômicas envolvidas e como elas se alteraram, ou como
permaneceram, com todos os resultados da guerra.
Outro ponto é a questão acadêmica com suas correntes historiográficas que

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

buscam explicar as motivações que levaram a Guerra do Paraguai acontecer; logo


findada a guerra temos a formação do que chamamos de corrente tradicionalista:

Sendo assim, a historiografia tradicional brasileira, representada em sua maioria por


militares, como o General Paulo Queiroz Duarte, Dionísio Cerqueira, Tasso Fragoso,
A d´Escragnolle Taunay... respectivamente, a ideia sistematizada e “simplificada” de
que este conflito internacional foi ocasionado pelas pretensões tirânicas do presidente
paraguaio, Solano López, em conquistar toda região platina e então tornar- se o
“Napoleão do Prata. (FERRER, 2004, p.20)

A questão tirânica pode ser importante para se pensar a personalidade de


Solano López, mas esta não pode ser considerada como ponto principal que fez o
conflito ocorrer. Para contrariar essa corrente, temos a base revisionista, que
influenciada pelo contexto mundial da Guerra Fria e no caso brasileiro o governo
ditatorial militar, tem parâmetros muito fortes no marxismo:

No século XX, aproximadamente nos anos de 1960 surgiu uma corrente revisionista
sobre a História da Guerra do Paraguai, na qual autores como León Pomer da
Argentina e o jornalista Julio José Chiavenato do Brasil, passaram a defender a tese de
que o Paraguai foi massacrado pelo Brasil, Argentina e Uruguai que se uniram devido
à influência do governo britânico, que temia a “independência econômica” do
Paraguai. (FERRER, 2004, p.23)

Por sua vez, essa corrente revisionista, por mais que tenha sua contribuição por
problematizar o tradicionalismo, ela não se sustenta nas questões de historicidade, fora
que a documentação utilizada em trabalhos desta tendência não se sustenta. Sendo
assim, chegamos no fim do século XX e início do XXI onde temos a inauguração de
uma nova corrente que busca em questões diversas, como os fatores geopolíticos,
sociais, para explicar o estopim da Guerra do Paraguai:

Outra tese mais atual sobre a Guerra do Paraguai se concretiza nas obras de Francisco
Fernando M. Doratioto, Ricardo Salles, Alfredo da Mota Menezes, Vitor Izeckson,
Marco Antônio Cunha, André Toral, Mauro César Silveira, dentre outros, que buscam
analisar o conflito internacional do Prata a partir de uma visão social e cultural,
baseado em pesquisas históricas, diferente dos tradicionalistas que ao analisarem essa
Guerra, se prendem muito às estratégias e táticas militares, além da ideia do início da
guerra centralizar-se na figura tirânica de Francisco Solano López. (FERRER, 2004,
p.29)

Dessa forma, este trabalho vem contribuir com essa atual corrente
historiográfica, visto que ela abre as portas para abordagens sociais e nosso recorte da
província do Paraná se torna possível; e além do mais, há uma escassez de trabalhos
historiográficos que tratam especificamente sobre este assunto, os artigos, teses e livros
que remetem ao tema, não tem ele como assunto central a especificidade paranaense

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

nos moldes apresentados nesta pesquisa, apenas citam a perspectiva da província no


conflito e não focam totalmente em algum ocorrido específico, sendo assim este
trabalho vem para agregar em uma área de grande potencial mas por enquanto tão
pouca explorada.

3. Metodologia

A principal fonte metodológica será GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas


e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989”, onde o
historiador vai realizar conexões com inúmeros campos, como as artes “Pelo contrário,
é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados
pelas características da escola a que o pintor pertencia.” (GINZBURG, 1989, p.144);
alguns ramos médicos

Nos três casos, entrevê-se o modelo da semiótica médica: a disciplina que permite
diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas
superficiais, às vezes irrelevante aos olhos do leigo” (GINZBURG, 1989, p.151)

E faz analogia até com o homem caçador: “O caçador teria sido o primeiro a
‘narrar uma história’ porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se não
imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos”. (GINZBURG,
1989, p.152)
Assim é formulado o paradigma indiciário, um método que busca analisar as
fontes documentais buscando seus pequenos vestígios e a compreensão histórica viria
a partir do entendimento desses pequenos pontos a serem encontrados no processo
da pesquisa histórica.
Este conceito será utilizado na presente pesquisa para analisar as fontes
anteriormente referidas, mais especificamente trabalhar os discursos dos redatores das
fontes primárias, buscaremos as particularidades em cada discurso presidencial, para
encontrar elementos que possam mudar totalmente a fala, o documento, fazendo com
que expressões digam cada vez mais sobre quem está explanando e quais são suas reais
pretensões.
Visto as perspectivas a serem alcançadas neste trabalho, para podermos pensar
a relação teórica do trabalho iremos usar “RÉMOND, René. Por uma história
política. 2ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003”, com seu conceito de História
Política, onde por conta de processos históricos e sociais, a própria noção de político
vai se alargar abarcando inúmeras esferas e influenciando os indivíduos:

A história como realidade, tomada no sentido da sequência dos acontecimentos, teve


seu papel nessa volta às boas graças do político: a experiência das guerras, cujo
desencadeamento não pode ser explicado apenas pela referência aos dados da
economia, a pressão cada vez mais perceptível das relações internacionais na vida

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

interna do Estados lembraram que a política tinha incidência sobre o destino dos
povos e as de que o político tinha uma consistência própria e dispunha mesmo de uma
certa autonomia em relação aos outros componentes da realidade social… Outra coisa
atuou no mesmo sentido para reintegrar os fatos políticos ao campo de observação da
história: a ampliação do domínio da ação política com o aumento das atribuições do
Estado. (RÉMOND, 2003, p.23)

Sendo assim, vamos buscar uma interligação entre os conceitos de Política,


Economia e Guerra para trabalhar o contexto da participação da província do Paraná
na Guerra do Paraguai já que este alargamento do político, como cita o autor, leva ao
entendimento das coisas a partir de uma noção que “O político não constituiu um
setor separado: é uma modalidade da prática o social” (RÉMOND, 2003, p.35). Então
se vamos partir desta noção de prática social, tanto as relações políticas realizadas no
Paraná, como a produção da erva-mate e a própria Guerra têm essa mesma natureza.

4. Discussões Realizadas

A partir daqui, irei discorrer sobre alguns pontos que até o presente momento
já foram trabalhados, acerca dos principais pontos da pesquisa. Quando pensamos na
hipótese central do trabalho, que se baseia na ideia de que o Paraná entrou na Guerra
do Paraguai por conta das questões políticas e econômicas que rodeavam a produção
da erva-mate paranaense, vemos que quando analisamos as fontes, fica evidente,
através do discurso, que o presidente André Augusto de Pádua Fleury, que foi decisivo
para o contexto pois ele que mobilizou as tropas da Guarda Nacional de sua província
rumo a guerra, está interessado no afrouxamento da concorrência com o Paraguai que
irá decair com a chegada do conflito:

“Essa concorrencia afrouxará com a guerra, que imos levar á Assumpção; mas, ainda
assim, é conveniente que aquelle excellente chá procure algures um consumidor mais
numeroso e garantidor de larga e generosa indemnisação” (FLEURY, 1865, p.50)

Eu ressalto que existe um interesse no decaimento da concorrência, mesmo


que o presidente afirma que por hora seja necessário o Paraná procurar novos
mercados, a frase “que imos levar à Assumpção” é fundamental, pois mesmo que a
Guerra foi iniciada pela parte paraguaia, o seu discurso coloca os brasileiros e ele
mesmo na posição de ataque na guerra, e isso ressalta mais ainda seu interesse neste
ocorrido.
É necessário lembrar que mesmo a erva-mate sendo o principal pilar
econômico paranaense na época, havia discussões sobre substituí-la “No Relatório de
1865 encontramos importantes elementos que destacam a tentativa do governo de
diversificar a economia paranaense e diminuir a dependência com a cultura do mate”
(PEREIRA, 2016, p.23). Isso não deixa de ser verdade, mas se formos analisar a fundo

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

o discurso todo do presidente, existe uma constância; quando o Fleury se refere a um


tempo presente, esta fala possui um tom mais melancólico no que se refere a erva-
mate “Presentemente, pouca esperança se póde ter da exportação em grande ou
pequena escala da herva-mate, para os mercados da Europa; por quanto é nelles apenas
conhecida, mesmo de nome” (FLEURY, 1865, p.51). Porém toda sua fala que possui
um tom de esperança está presente do tempo futuro:

“Possam estes constantes esforços da administração, acompanhados de maior zelo no


beneficio da herva, concorrer poderosamente para sua mais abundante exportação; e
conseguinte prosperidade da provincia” (FLEURY, 1865, p.51)

E o motivo disso é justamente pois no contexto do autor, o Paraná e o poderio


de exportação de sua erva-mate não são páreos para o Paraguai ainda, mas com a
chegada da guerra e uma possível desestabilização do principal concorrente, a
exportação da erva-mate pode ganhar o comércio europeu, por isso as falas em um
tempo futuro são mais animadoras.
Além desta questão central, até o presente momento foi possível fazer um
levantamento sobre a Guarda Nacional paranaense.
Sobre uma noção da definição geral das características da Guarda Nacional
como um todo para o Brasil, temos a autora Jeanne Berrance de Castro e sua obra A
Milícia Cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850, fica nítido que houve uma
transição no tocante a classe social dos homens que faziam parte deste segmento
militar, em uma primeira instância o serviço ficava nas mãos dos componentes das
classes mais baixas “Naquela sociedade de classes sociais bem marcadas e
hierarquizadas, o peso do recrutamento recaía sobre as classes mais desfavorecidas”
(CASTRO, 1977, p.70).
Porém, gradativamente, as questões políticas no Império foram se alterando, e
isso foi influenciando nas características da Guarda Nacional, até que em 1850 temos
a consolidação da mesma e uma mudança radical “A qualificação passou a ser feita
quase exclusivamente em termos de prestígio pessoal, de perseguições particulares ou
políticas” (CASTRO, 1977, p.182”). Dessa forma, temos uma Guarda Nacional não
mais democrática.
Se pensarmos esses parâmetros aqui estabelecidos sobre a Guarda Nacional,
veremos que no caso paranaense “Geralmente os membros da guarda nacional, ou os
guardas nacionais qualificados eram lavradores pobres, que prejudicavam a economia
da agricultura servindo na guarnição da província, prática agravada no período da
Guerra contra o Paraguai” (BRITO,2011, p.32). Vemos então que eram os homens
pobres e que proviam das atividades agrícolas que formavam a Guarda Nacional,
porém, quando comparamos este segmento com a guarda policial paranaense nos
deparamos com essa situação:

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

A guarda policial he huma instituição absurda, porque sendo composta dos


- 382 -roletári da guarda nacional, e consequentemente organisads com
- 382 -roletários e com o rebotalho da população, visto que a regra fala de 200U de
renda- abrange tudo, exige-se, entretanto, dela serviço incompatível com o estado
pouco favorável de fortuna, que he o seo característico (VASCONCELLOS, 1854,
p.30)

Mesmo que eram homens pobres que faziam parte da Guarda Nacional, havia
pessoas abaixo deles segundo o discurso do presidente Vasconcellos, no caso os
homens da guarda policial que eram excluídos da milícia cidadã, proletários e
entendidos como o resto da população paranaense.
Pensando agora em seus feitos na Guerra do Paraguai, entende-se que essa
Guarda, inicialmente, ficou retida aos serviços de guarnição dentro do próprio Paraná,
porém em algumas ocasiões ela já se deslocavam, como na tentativa de defesa da
Província do Mato Grosso:

Em data de 27 do Abril de 1865 seguio desta Corte para Santos, com direcção a Mato
Grosso, o Corpo de artilharia do Amazonas, que em marcha reunio-se não só ao
Corpo de guarnição do Paraná, que desta Província havia marchado com o mesmo
destino, como ao de guarnição de S. Paulo, Companhia de Cavàllaria e Corpo de
Voluntários Policiaes da mesma Província, perfazendo ao todo 568 praças sob o
Commando do Coronel Manoel Pedro Drago (FERRAZ, 1866, p.34)

O saldo foi que, ao final do conflito, a Guarda Nacional paranaense efetivou


várias funções, algumas até que não era de sua natureza:

Não devo passar a outro assumpto, sem tributar á briosa guarda cívica do Paraná os
louvores á que tem direito por seus esforços no constante desempenho de todo o
serviço de guarnição e de policia, que desde o começo da guerra pesa sobre ella. Seria
injustiça si o não fizesse; é ella aqui, como em todas as províncias, credora da gratidão
nacional. (CARVALHO, 1870, p.25)

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho podemos observar vários pontos centrais para o


desenvolvimento da pesquisa, existem poucos trabalhos historiográficos que
contemplam o Paraná e sua participação na Guerra do Paraguai desta maneira, então
a pesquisa vem para agregar pensando nos meios acadêmicos.
A hipótese principal, a de que o Paraná entrou na Guerra do Paraguai por conta
da erva-mate, ainda precisa ser mais desenvolvida, porém o que foi trabalhado até o
presente, pensando também os parâmetros metodológicos e teóricos, existe uma
sustentação quando nos deparamos com os discursos dos presidentes da época.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

E por fim, foi levantado a discussão sobre a Guarda Nacional do Paraná, onde
vemos que ela tinha homens menos abastados socialmente e agrícolas cumprindo suas
funções e que durante a Guerra do Paraguai ela desenvolveu funções variadas.

Referências

BRITO, Edilson. A serviço da pátria: o recrutamento militar na Província do


Paraná durante a Guerra do Paraguai (1865-1870).2011. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis.

CARNEIRO, David. O Paraná na guerra do Paraguai. Curitiba. Fundação


Cultural. 1995.

CARVALHO, Antonio Luiz Affonso de. Relatório apresentado à assembleia


legislativa do Paraná. Curitiba. 1870. Disponível em:
http://www.arquivopublico.pr.gov.br/ Acesso em: 11 out. 2021

CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a guarda nacional de 1831 a 1850.
São Paulo. Nacional. 1977.

DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai.


São
Paulo. Companhia das Letras. 2002

FERRAZ, Angelo. Relatório apresentado à assembleia geral legislativa na


quarta sessão da décima segunda legislatura pelo ministro e secretario de
estado dos negócios da guerra. Rio de Janeiro. 1866. Disponível em: Disponível
em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ Acesso em: 11 out. 2021

FERRER, Francisca. O recrutamento militar na guerra do Paraguai:


Voluntariado e coerção. 2004. Dissertação (Mestrado em História). PONTIFÍCIA
UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre.

FLEURY, André. Relatório do presidente da Província do Paraná. Curitiba.


1865. Disponível em: : http://www.arquivopublico.pr.gov.br/ Acesso em: 11 out.
2021.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989.

MENEZES, Alfredo da Mota. Guerra do Paraguai: como construímos o conflito.


São Paulo: Contexto; Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1998

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

RÉMOND, René. Por uma história política. 2ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2003.

VASCONCELLOS, Zacarias. Relatório do presidente da Província. Curitiba.


1854. Disponível em: http://www.arquivopublico.pr.gov.br/ Acesso em: 11 out.
2021.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

HANNAH ARENDT E O ESQUEMA DA ASCENSÃO E


QUEDA DO ESTADOS-NAÇÕES EUROPEUS COM
RELAÇÃO AO POVO JUDEU

Robson José Valentino Cruz1

Resumo: Esta comunicação pretende mostrar, segundo Hannah Arendt, que nos
séculos XVII e XVIII era lento o desenvolvimento dos Estados-nações e o mesmo se
processava sob a tutela dos monarcas absolutos. Muitos judeus emergiram
individualmente do anonimato marginalizador para posições atraentes e quase sempre
influentes de judeus da corte, que financiavam os negócios do Estado e administravam
as transações financeiras dos seus soberanos. Poucos judeus eram atingidos com essas
modificações em geral e a grande maioria continuavam a viver dentro dos antigos
padrões do feudalismo. Assim, o objetivo do trabalho é analisar que após a Revolução
Francesa, que alterou radicalmente as condições políticas de todo o continente
europeu, surgiram Estados-Nações no sentido moderno, cujas transações comerciais
exigiam muito mais capital e crédito do que jamais dispuseram os judeus da corte.
Percebe-se então que as novas e maiores necessidades governamentais só poderiam
ser satisfeitas com a fortuna combinada dos grupos judeus mais ricos da Europa
ocidental e central. O que iniciará o processo de assimilação e do imperialismo no
continente europeu.

Palavras-chave: Ideologia; Estados-Nações; Assimilação; Imperialismo.

Nacionalismo, Antissemitismo e Imperialismo

Em sua obra: Arendt, A guide for the perplexed, Karin A. Fry diz que o
antissemitismo e o Imperialismo decreveram os fatores que cristalizaram quando do
florescimento de uma atitude racista na Europa de começos do século XX. Para Fry -
e aqui estamos de acordo - Arendt está particularmente interessada em esboçar a
história dos elementos que tornaram possível a emergência da nova formação política
do totalitarismo:

Arendt começa com a discussão do desenvolvimento da amplamente difusa crença no


antissemitismo da Europa. Arendt discorda de algumas das teorias mais comuns de
seu tempo no que diz respeito ao tratamento dos judeus na Europa [...] A opinião de
Arendt é que os judeus tinham uma posição estranha e especial na Europa e jamais
foram completamente assimilados. Os judeus eram favorecidos por várias cortes

1 Mestrando em Filosofia na Universidade Estadual de Londrina – UEL,


robson.valentinocruz@uel.br

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

aristocráticas porque eles ofereciam empréstimos e riqueza à monarquia e à


aristocracia. Isto garantia-lhes certos privilégios e favores políticos, mas, ao mesmo
tempo, ainda eram tratados como um grupo separado, sem direitos políticos
integrais.(FRY, 2010,p.24-5)

Tal problema foi acentuado com o surgimento do Estado-nação e com a queda


das monarquias, uma vez que o valor material dos judeus para o Estado já não existia.
“Uma vez que os direitos políticos não estavam assegurados, não haviam nenhum
incentivo para que o Estado vigiasse pelo bem estar dos judeus, permitindo, assim, a
possibilidade do aparecimento de um antissemitismo pelo país afora, o que foi um
passo decisivo e que levou à aceitação da ideologia nazista”. (FRY, 2010, p.25). Seja
como párias ou como novos-ricos (pauvenners), o povo judeu não era aceito na Europa
e, para Arendt, seu status de pária ou novo-rico foi um fator importante e que abriu a
porta para o antissemitismo desenfreado no começo do século XX.
Do ponto de vista sociológico, o Estado nação era o corpo político das classes
camponesas europeias emancipadas - dos latifundiários e proprietários rurais, e é por
isso que os exércitos nacionais só conseguiram se manterem e preservarem suas
posições permanentes nesses Estados enquanto se constituía e se mantinham a
verdadeira representação da classe rural, isso até o fim do século XIX. O exército era
a honra desses fazendeiros, eles eram transformados em senhores, o exército os
corporificava e os fortalecia e o patriotismo era a forma ideal da propriedade. O
nacionalismo ocidental, foi produto de classes firmemente enraizadas e emancipadas
A consciência da nacionalidade é recente se a compararmos com a estrutura do
Estado, esta consciência nacional é consequência da secular evolução da monarquia e
do despotismo esclarecido. Estes Estados na forma de República ou representados à
maneira da monarquia constitucional; o Estado herdou como função suprema a
proteção de todos os habitantes do seu território, independente de nacionalidade, e
devia agir como instituição2 legal suprema. Quando o Estado nação surgiu com a
crescente consciência nacional do povo, essa herança de proteger qualquer cidadão
ruiu, pois a consciência nacional do povo interferiu nessas funções de proteção. Em
nome da vontade do povo, o Estado foi obrigado a reconhecer como cidadãos
somente os “nacionais” (e aqui se inicia a tragédia), visto que uma vez que o Estado só
concederá direitos civis e políticos completos apenas àqueles que pertenciam à
comunidade nacional por direito de origem ou por direito de ter nascido no solo. Para
Arendt, isso significou que o Estado foi parcialmente transformado de instrumento da
lei em instrumento da nação. (ARENDT, 1989)

2 O direito à cidadania do nascimento expressa uma divisão importante estabelecida em finais


do século XVIII, início do século XIX: o jus soli foi instalado pelas revoluções americanas e
francesas e significa o direito à cidadania para todas as crianças nascidas nesses territórios, ao
passo que a Alemanha e os países do Leste Europeu estabeleceram o jus sanguinis, limitando o
direito à cidadania aos filhos de cidadãos já existentes. Assim sendo, a noção de ascendência
era crucial na visão essencialista da nação representada pelo jus sanguinis, ao passo que o jus solis
representava uma compreensão mais aberta e flexível de cidadania.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

A facilidade pela qual a nação (ou os nacionalistas) conquistaram o Estado,


foram a queda das monarquias absolutas e o surgimento de classes. O monarca
absoluto servia aos interesses da nação como um todo. O despotismo esclarecido os
reis comandam o povo e o interesse comanda os reis. Esse interesse comum corria o
perigo de ser substituído por permanentes conflitos entre as numerosas classes e pela
luta do controle estatal. O único laço comum que restava aos cidadãos de um Estado
nação, sem um monarca que simbolizasse a essência do grupo, era a origem comum:

“Assim, num século em que cada classe e cada segmento da população eram
dominados por interesses próprios, o interesse da nação como um todo era
supostamente garantido pela origem comum, que encontrou sua expressão
sentimental no nacionalismo”. (ARENDT, 1989, p.262)

O conflito entre Estado e a nação é fruto do próprio nascimento do Estado


nação moderno. Após a declaração dos direitos do Homem na ocasião da revolução
francesa, ficou clara a exigência da soberania nacional para que as pessoas tivessem
direito a esses Direitos do Homem. O resultado prático e catastrófico que já
conhecemos foi a contradição que daí por diante, os direitos humanos passaram a ser
protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais, e a instituição do
Estado, cuja tarefa era de proteger e garantir ao homem os seus direitos como cidadão
e como membro de grupo, perdeu a aparência legal e racional e podia agora ser
interpretada pelos românticos como nebulosa representação de uma “alma nacional”
que estava além e acima da lei.
Em sua essência, o nacionalismo ideológico é essa transformação do Estado
em instrumento da nação e da identificação (cores, símbolos, bandeira e linguagem) do
cidadão como membro da nação. A luta de classes havia enterrado a antiga ordem
feudal. Um liberalismo individual permeou a sociedade neste período que acreditava,
equivocadamente, que o Estado governava meros indivíduos, quando na realidade
governava era as classes que se digladiavam pelo poder. Essas mesmas classes viam no
Estado uma espécie de entidade suprema. “O nacionalismo sempre conservou essa
íntima lealdade ao governo e nunca chegou a perder a sua função de manter um
precário equilíbrio entre a nação e o Estado, de um lado, e entre os cidadãos de uma
sociedade atomizada, do outro. (ARENDT, 1989, p.263).
Hannah Arendt nos indica que tudo isso parecia ser o desejo da nação que o
Estado a protegesse das consequências de sua atomização social e, ao mesmo tempo,
garantisse a possibilidade de permanecer nesse Estado de atomização. Para isso, o
Estado teve que reforçar a centralização, que monopolizou todos os instrumentos de
violência e possibilidade de poder. O nacionalismo tornou-se o precioso aglutinante
que iria unir um Estado centralizado a uma sociedade atomizada, e realmente,
demonstrou ser a única ligação operante a ativa entre os indivíduos formadores do
Estado nação. (ARENDT, 1989)

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Os cidadãos nativos de um Estado nação com frequência olhavam de uma


forma preconceituosa e com desprezo os cidadãos naturalizados (que haviam recebido
seus direitos por lei ou por nascimento) do Estado, e não da nação.
A autora nos apresenta, de uma forma esquemática a ascensão e a queda do
sistema de Estados-Nações europeus com relação ao povo judeu. Segue-se desta forma
os seguintes estágios. 1. Nos séculos XVII e XVIII, era lento o desenvolvimento dos
Estados-nações e o mesmo se processava sob a tutela dos monarcas absolutos. Muitos
judeus emergiram individualmente do anonimato marginalizador para posições
atraentes e quase sempre influentes de judeus da corte, que financiavam os negócios
do Estado e administravam as transações financeiras dos seus soberanos. Poucos
judeus eram atingidos com essas modificações em geral e a grande maioria
continuavam a viver dentro dos antigos padrões do feudalismo. 2. Após a Revolução
Francesa, que alterou radicalmente as condições políticas de todo o continente
europeu, surgiram Estados-Nações no sentido moderno, cujas transações comerciais
exigiam muito mais capital e crédito do que jamais dispuseram os judeus da corte. As
novas e maiores necessidades governamentais só poderiam ser satisfeitas com a
fortuna combinada dos grupos judeus mais ricos da Europa ocidental e central,
confiada por eles a banqueiros judeus que, no entanto, como banqueiros, precisavam
da coletividade judaicas organizadas como fonte de captação do dinheiro, e as
apoiavam nesse sentido. É justamente neste período que começa a concessão de
privilégios - até então só necessários aos judeus da corte que haviam feito fortuna nos
centros urbanos no século XVII. Por fim, foi concedida aos judeus a emancipação em
todos os Estados-Nações, exceto naqueles países em que os judeus, devido ao seu
elevado número e ao seu atraso social geral (como na Rússia), não conseguiram
organizar-se em grupo especial, à parte, de função econômica destinada a apoiar
financeiramente o Estado. (ARENDT, 1989).
No estágio 3. Essa relação entre judeus e governo era indiferente aos olhos da
burguesia no que diz respeito à política de um modo geral e também às finanças do
Estado. Essa indiferença vai chegar ao fim com o surgimento do Imperialismo no
século XIX, uma vez que os negócios capitalistas em expansão necessitaram do apoio
ativo do Estado para a expansão. Em virtude disso, o Imperialismo vai minar as bases
do Estado-Nação e incutir nas nações europeias o espírito comercial de concorrência
competitiva. Os judeus foram substituídos por homens de negócio e de mentalidade
imperialista. Por fim, o estágio 4 mostra que o povo judeu do ocidente europeu como
grupo desintegrou-se juntamente com o Estado-nação nas décadas que precederam a
primeira guerra mundial. Na era imperialista, a riqueza dos judeus havia se tornado
insignificantes. O elemento judeu, intereuropeu e não nacional, tornou-se objeto de
ódio, devido sua riqueza inútil, e de desprezo, devido sua falta de poder. O declínio
europeu após a guerra deixou os destituídos de poder, atomizados em um rebanho de
pessoas mais ou menos ricas. (ARENDT, 1989).
Os primeiros governos a necessitarem de renda regular e de finanças seguras
foram as monarquias absolutistas, sob as quais o Estado nação viria a nascer. Príncipes

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

e reis feudais antes do Estado nação também necessitavam de renda, e até mesmo de
crédito, mas apenas para fins específicos e operações temporárias. Esses monarcas
absolutos antes cuidavam de suas necessidades financeiras pelo velho método de
guerra e pilhagem, e em parte pelo sistema de monopólio de impostos, o que poderia
destruir seu poder, pois atingia as fortunas da nobreza e despertava hostilização por
parte da população.
Antes dos editos de emancipação, cada casa principesca e cada monarca da
Europa, já possuía um judeu da corte para administrar as finanças. Durante os séculos
XVII e XVIII, esses judeus eram sempre indivíduos isolados que mantinham conexão
intereuropeia e dispunham de fontes de crédito na Europa mas não constituíam
entidade financeira internacional. Os judeus individualmente e as primeiras pequenas
ricas comunidades judaicas dispunham de poder elevado que se permitiram abordar
com maior relevância não só as discussões sobre seus privilégios, mas também sobre
o direito de obtê-las, em contrapartida as autoridades dos Estados abordavam e se
referiam de maneira cuidadosa a importância dos serviços que os judeus prestavam ao
Estado.

“Não há sombra de dúvida quanto à conexão entre os serviços prestados e privilégios


concedidos. Na França, na Baviera, na Áustria e na Prússia os judeus privilegiados
recebiam títulos de nobreza, de modo que ultrapassaram o mero status de homens
ricos.” (ARENDT, 1989, p.37)

Hannah Arendt nos aponta que até fins do século XVIII nenhuma das camadas
ou classes da sociedade tinha o desejo ou estava disposta a tornar-se classe governante,
ou seja, identificar-se com o governo como a nobreza havia feito durante o período
monárquico absolutista que perdurou nos séculos anteriores. Para ela, o fato de a
monarquia não ter conseguido encontrar uma classe que substituísse a aristocracia
dentro da sociedade levou ao rápido desenvolvimento do Estado nação e à presunção
de que este sistema estivesse acima de todas as classes, independente da sociedade e
com sua pluralidade de interesses particulares que a perfaziam. O sistema do Estado
nação aprofundou a brecha entre Estado e sociedade e a estrutura política da nação
repousava nesta brecha. Conclui Arendt que: sem essa brecha não seria nem necessário
nem possível incluir os judeus na história europeia em termos de igualdade.
(ARENDT, 1989)
O Estado, ao falhar na tentativa de ter uma das classes como representantes,
passou a se dedicar como poderosa empresa comercial. O crescimento dos negócios
estatais foi causado pelo conflito entre o Estado e as forças financeiramente poderosas
da burguesia, que preferiram dedicar-se ao investimento privado, e evitando a
intervenção no e do Estado.
Para Arendt, é neste momento um dos mais cruciais para o entendimento do
porque as comunidades judaicas e o judeus da corte são tão importantes para o
desfecho catastrófico de tudo que virá desta aliança. Ela nos aponta que:

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

“foram os judeus a única parte da população disposta a financiar os primórdios do


Estado e a ligar seu destino ao desenvolvimento Estatal com o seu crédito e suas
ligações internacionais, estavam em excelente posição para ajudar o Estado nação a
afirmar-se entre os maiores empregadores e empresas da época. Acentuados
privilégios e mudanças decisivas na condição de vida dos judeus constituíam o preço
pela prestação de tais serviços e, ao mesmo tempo, a recompensa por grandes riscos.”
(ARENDT, 1989, p.38)

No fim do século XVIII, muitos judeus em Berlim no ápice de suas fortunas,


impediram o influxo dos judeus da província oriental – ex polonesas – do império
germânico, porque não desejavam dividir a sua igualdade com seus correligionários
mais pobres e menos cultos, os quais não reconheciam como iguais. Arendt relembra
que quando, ao tempo da Assembleia Nacional Francesa, os judeus de Bordeaux e
Avignon protestaram violentamente contra a concessão de igualdade, por parte do
governo francês, aos judeus das províncias orientais. Percebemos o desabafo da autora
em relação à concessão de igualdade, mais como concessão de privilégios, do que
igualdade em si. Segundo Arendt, ficou claro que os judeus não pensavam em termos
de direitos iguais, mas, sim, de privilégios e liberdades especiais. O que não surpreende
que judeus privilegiados, ligados aos negócios de governos e conscientes da natureza e
condição de seu status, contrariavam em aceitar a concessão para todos os judeus dessa
liberdade, que eles conseguiram em troca pelos seus serviços, e por isso, não podia,
tornar-se um direito a ser compartilhados por todos da comunidade judaica.
(ARENDT, 1989)
Para Arendt, somente no fim do século XIX, com a ascensão do Imperialismo,
que instigou as classes proprietárias a mudarem de opinião em relação à
improdutividade do Estado. Com isso, em grande medida, a expansão do Imperialismo
conjugado ao aperfeiçoamento e ao domínio dos instrumentos de violência por parte
do Estado, torna interessante, a partir de então, ter o Estado como parceiro nos
negócios comerciais o que atraiu as classes dos proprietários (burguesia, aristocracia,
fazendeiros, nobreza) a investirem nos negócios estatais para o além-mar. De forma
gradual e automática os judeus vão passar a perder as posições exclusivas de
investidores estatais, e, ao mesmo tempo, passam a perder também suas posições
singulares e muitas vezes exclusivas dentro dos Estados.
Quando, em meados do século XIX, alguns Estados já tinham suficientes
créditos, passaram a dispensar o financiamento e a garantia dos judeus para seus
empréstimos. Como mostramos no parágrafo acima, com a evolução do imperialismo
as classes proprietárias, nobreza e outros que antes não davam a mínima ao
investimento estatal e percebendo que o Estado nação agora fazia parte de seus
destinos particulares fez com que eles dispusessem créditos ao governo, o quanto estes
necessitarem. O Estado nação tornou-se a única entidade capaz e que podia realmente
proteger as propriedades de seus cidadãos.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Para Arendt, o tipo de relação entre os judeus e a aristocracia impediu que o


grupo judeu se ligasse a outra camada da sociedade, e com o declínio do Estado nação;
esta relação desapareceu no fim do século XIX e nunca mais foi substituída. Desta
maneira, nos aponta a autora que as consequências do que sobrou dessas relações
foram as seguintes:

Como seu vestígio, entre os judeus permaneceu a inclinação por títulos aristocráticos
(especialmente na Áustria e na França) e, no tocante aos não judeus, uma espécie de
anti-semitismo liberal, que colocava judeus e nobreza num mesmo nível, por alegar
que ambos se aliavam financeiramente à burguesia em ascensão. Esses argumentos,
correntes na Prússia e na França, eram plausíveis antes da emancipação geral dos
judeus, pois os privilégios dos judeus da corte realmente se assemelhavam aos direitos
e às liberdades da nobreza; os judeus demonstravam o mesmo medo da aristocracia
de perder os privilégios, e usavam os mesmos argumentos contra a igualdade de todos.
(ARENDT, 1989, p.40)

No século XVIII muitos judeus privilegiados foram outorgados com títulos


menores de nobreza, e no começo do século XIX quando judeus ricos que perderam
seus laços com as comunidades judaicas, buscaram status social seguindo o modelo da
aristocracia. Contudo, Arendt aqui também mostra que essa busca foi em vão, uma
vez que a nobreza estava em declínio sendo empurrada pela rica burguesia em
crescimento material e de influência nos negócios do Estado, ao contrário, os judeus
ascendiam em suas posições sociais. O outro motivo está no fato de a própria
aristocracia, especialmente na Prússia, veio a ser a primeira classe a esboçar uma
ideologia baseada no antissemitismo.
Como os judeus eram fornecedores em tempos de guerra e, como servos do
rei, todavia, jamais participaram dos conflitos de uma forma politicamente direta.
Quando esses conflitos se intensificaram evoluindo para guerras nacionais de cunho
ideológico, os judeus mantiveram suas características de grupo internacional, ou seja,
nunca estiveram ligados a uma causa nacional.
Segundo Arendt, não sendo mais banqueiros estatais nem fornecedores em
tempos de guerra entre estados nacionalistas: “os judeus tornaram-se consultores
financeiros e assistentes em tratado de paz e de modo mais organizado e menos
indefinido, mensageiros e intermediários na transmissão de notícias” (ARENDT,
1989, p.41). Para a autora, o significado da eliminação dos judeus do cenário
internacional tinha um significado mais amplo e mais profundo do que o
antissemitismo propriamente dito. Arendt nos esclarece que os judeus eram valiosos
na guerra (enquanto fornecedores e prestadores de serviços aos monarcas) na medida
em que, usados como elementos não nacional, assegurava a possibilidade de paz:
“enquanto o objetivo dos beligerantes nas guerras de competição era a paz de
acomodação e o restabelecimento do modus vivendis”. (ARENDT, 1989, p.41)
Quando as guerras tornaram-se ideológicas, sendo muitas vezes a ideologia
aplicada e construída em diferentes viés de ufanismo nacional; passaram a visar a

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

completa aniquilação do inimigo quando das guerras nacionais ideológicas, desde


então, os judeus deixaram de ser úteis. Para a autora, isso levou à destruição de sua
existência coletiva, à extinção da vida grupal específica e na tentativa de seu extermínio
físico.

Referências

ARENDT, Hannah. Escritos Judaicos. Barueri, SP: Amarilys, 2016.

ARENDT, Hannah. Rahel Varnhagem: a vida de uma judia alemã na época do


Romantismo. Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará, 1994b.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e


Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das cruzadas ao Século XX. São Paulo:


Companhia das Letras, 2018.

FRY, Karin. A. Compreender Hannah Arendt. Petrópolis: Ed. Vozes, 2010.

KNOTT, Marie Luise. The correspondence of Hannah Arendt and Gersom


Scholem. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2017

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

A RELEVÂNCIA DO CONCEITO WITTGENSTEINIANO DE


“IMAGEM” PARA A COMPREENSÃO DA FORMAÇÃO DO
PENSAMENTO FASCISTA

Thiago Salvador Novi1

Resumo: Pode-se afirmar que uma das principais contribuições do filósofo austríaco
Ludwig Wittgenstein seja a sua concepção do método filosófico enquanto a busca da
dissolução de problemas gerados pela linguagem, através do esclarecimento das
estruturas presentes na própria linguagem. Realiza-se uma representação perspícua, a
qual permite ao investigador desemaranhar os “problemas filosóficos”, segmentos de
nossa linguagem que são fontes de confusões conceituais. Partindo dessa concepção,
é possível readequar as diversas investigações da Filosofia de modo a nos fornecer
respostas verdadeiramente satisfatórias, inclusive nas questões referentes à Política.
Desse modo, o presente trabalho irá demonstrar como o conceito de “imagem”
(paradigma proto-teorético que constituiu a base de teorias filosóficas sofisticadas e de
juízos de agentes presentes na sociedade), presente na chamada “segunda fase” de
Wittgenstein, constitui um instrumento teórico importante para a compreensão da
formação do pensamento fascista na mente de agentes políticos, por nos permitir uma
representação perspícua do paradigma em que estas ideias se desenvolvem nos juízos
dos indivíduos, possibilitando, assim, sua verdadeira dissolução.

Palavras-chave: Filosofia Política; Filosofia da Linguagem; Fascismo

Pode-se afirmar que uma das principais contribuições do filósofo austríaco


Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951) para a filosofia seja a concepção radical que ele
apresenta da mesma. Preocupado com o aparente fracasso da filosofia em “estabelecer
um campo de conhecimentos genuínos” (HACKER, 2000, p. 11) aos moldes das
ciências físicas e da matemática, mesmo após seus mais de dois mil anos de existência,
Wittgenstein questiona-a enquanto disciplina cognitiva, na qual seria atingido algum
progresso através do refinamento e da descoberta de novos conhecimentos e teorias.
Em sua obra, especialmente naquela sua chamada “segunda fase”, tendo as
Investigações Filosóficas como principal produção, encontramos menos proposições
positivas e teses sobre determinadas questões do que observações a respeito dos
processos de formação do pensamento filosófico. Podemos perceber isso em seu
prefácio:

1 Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL);


thiago.salvador@uel.br

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

Os mesmos pontos, ou quase os mesmos, foram abordados incessantemente por


caminhos diferentes, sugerindo sempre novas imagens. Inúmeras dessas imagens
estavam mal desenhadas ou não eram características, sofrendo todas as falhas de um
desenhista incompetente. E se estas fossem eliminadas, restaria um número de
paisagens passáveis, que, no mais das vezes retocadas, deveriam ser ordenadas de tal
forma que pudessem dar ao observador um retrato da paisagem - Assim, este livro é,
na verdade, apenas um álbum. (WITTGENSTEIN. 1996, p. 25)

Alguns intérpretes enxergam nesse prefácio uma afirmação do autor de que


este buscaria apenas introduzir determinadas ideias próprias, em oposição àquelas
“atacadas” ao longo do livro - em especial a imagem agostiniana da linguagem. Marcelo
Silva de Carvalho (2006), por exemplo, é partidário dessa posição em sua tese de
doutoramento, apontando que esses esboços traçados por Wittgenstein representariam
a construção de uma nova imagem da linguagem, a qual seria melhor desenvolvida em
obras futuras, como Da Certeza.
No entanto, acredito que essa chave-de-leitura limita as potencialidades
libertadoras das Investigações, além de contrariar o próprio conceito wittgensteiniano de
“imagem”, como buscarei mostrar adiante. Ocorre que, se encararmos os esboços das
Investigações como simplesmente isso, esboços, e não como introduções a ideias
positivas sofisticadas, percebemos que o texto busca explorar o surgimento e
desenvolvimento das ideias filosóficas, e identificar onde o nosso pensamento cai em
armadilhas. Desse modo, as diversas imagens do álbum possuem a mesma função dos
jogos de linguagem: ser mero exemplo, e não o ponto central da obra.
Como aponta Stern (2004), as Investigações se comportam como um diálogo
entre diversas vozes, muitas vezes não identificadas. Diferentemente de um diálogo
platônico, no entanto, o foco aqui não é encontrar, através da dialética, o melhor
argumento capaz de solucionar uma determinada questão; o interesse de Wittgenstein
está em revelar os próprios desdobramentos de nossas ideias, tanto que as discussões
no livro raramente apresentam conclusões, muitas vezes apenas partindo para outro
assunto, como se as vozes em disputa tivessem desistido da querelle. O importante aqui
não é onde chegamos, mas sim nosso ponto de partida e os métodos que usamos para
sair dele.
“A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos
meios da nossa linguagem” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 65). A ambiguidade da
construção gramatical dessa frase revela o caráter da filosofia defendido por
Wittgenstein: o método filosófico consiste na resolução/dissolução de problemas
criados pelo uso da linguagem, através do esclarecimento das estruturas da própria
linguagem.
Partindo dessa concepção, é possível readequar as diversas investigações da
Filosofia de modo que elas nos forneçam respostas verdadeiramente satisfatórias.
Através de uma “representação perspícua” (“representação panorâmica”, em outras
traduções) o filósofo pode mapear e desemaranhar os “problemas filosóficos”,
segmentos de nossa linguagem que são fontes de confusões conceituais (HACKER,

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

2000). Jogamos luz sobre os problemas que atormentam a nossa mente, entendendo
nossas formas de representação, nossos modos de ver as coisas (WITTGENSTEIN,
1996, p. 67) e, ao contrário de produzir novos conceitos que apenas complicariam o
emaranhado, simplesmente rearranjamos as peças ao nosso dispor, permitindo que o
problema se dissolva sozinho:

“Estes problemas [filosóficos] não são empíricos, mas são resolvidos por meio de um
exame do trabalho de nossa linguagem e de tal modo que seja reconhecido: contra o
impulso de mal compreendê-lo. Os problemas são resolvidos não pelo acúmulo de
novas experiências2, mas pela combinação do que já é há muito tempo conhecido”
(WITTGENSTEIN, 1996, p. 65)

Partindo dessa concepção, alguns pesquisadores buscaram investigar as


aplicações políticas da obra do autor asutríaco. Moore (2010) aponta a existência de
uma corrente de intérpretes convencionalistas, os quais enxergam no trabalho de
Wittgenstein ideias muito próximas do pluralismo irrealista, vertente da filosofia
política que entende os valores como crenças e hábitos variantes culturalmente, e não
como realidades fáticas além-homem. Dentre os convencionalistas, Moore destaca
aqueles de posição neutra, que não percebem qualquer pretensão normativa na obra
de Wittgenstein, apenas lembretes das dimensões normativas de nossas formas de vida.
Nas próximas páginas, serão analisadas as interpretações de dois filósofos
convencionalistas neutros: David Owen e James Tully. Buscará demonstrar como as
ideias dos dois possibilitam uma representação perspícua do fenômeno social da
formação política do indivíduo, em especial sob a influência de ideias fascistas. Com
tal representação, seria possível atingir as “raízes profundas” dessas ideias (HACKER,
2000), permitindo que elas sejam dissolvidas, ou eliminadas.

Imagem de mundo e 3

De acordo com David Owen (2003), a concepção da filosofia enquanto terapia


é a principal contribuição de Wittgenstein para a filosofia política. A partir dessa ótica,

2 Algumas traduções para o português utilizam “informações” no lugar de “experiências”. A


tradução para o inglês também utiliza o termo “informations”. Tal dualidade se dá pela
característica do substantivo no original: “Erfahrung”. “Erfahrung” se refere àquilo aprendido
após um deslocamento, uma viagem, com o retorno ao lar, tendo desse modo uma forte ligação
com o conhecimento prático, experimentado. Desse modo, “experiência” é a tradução mais
adequada.
3 Aspectival é um neologismo que não encontra tradução direta para o português. Na língua

inglesa, o termo “aspect” possui um sentido duplo: refere-se tanto às características exteriores
do objeto observado, quanto ao ponto-de-vista do sujeito observador; este último sentido é o
utilizado por Owen em seu texto. Desse modo, uma possível tradução para aspectival captivity
seria “aprisionamento do ponto-de-vista”. Por ser uma tradução inexata, preferimos manter o
termo em inglês ao longo do texto, com o intuito de preservar seu sentido original.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

a filosofia teria como objetivo a dissolução de coações imateriais (nonphysical constraints)


na autonomia do indivíduo. Autonomia, para Owen, seria "[the individual’s] capacity to
make and act on (...) [their] own judgment” (OWEN, 2003, p. 82). O autor tem como
principal fonte de sua interpretação o §115 das Investigações (WITTGENSTEIN, 1996,
p. 65): “Uma imagem nos mantinha presos. E não pudemos dela sair, pois residia em
nossa linguagem, que parecia repeti-la para nós inexoravelmente”. A partir desse
trecho, três perguntas surgem em nossa mente: o que Wittgenstein quer dizer com
“imagem”? De que maneira uma imagem pode nos manter presos? Como nos
tornamos suscetíveis a esse aprisionamento?
Imagens (pictures) seriam sistemas de juízo que determinam o pensar e o agir de
um determinado agente no mundo ao seu redor; Glock, ao tratar da “imagem
agostiniana"4, descreve imagens como “paradigmas proto-teoréticos” que, de forma
tácita, “se encontram na base de teorias filosóficas sofisticadas” (GLOCK, 1996. p.
41). Essa imagem delimita aquilo que está disponível ao agente para desenvolver seus
próprios juízos, criando uma moldura para sua capacidade de atuação no mundo.
Uma analogia interessante pode ser feita com uma partida de futebol, em que
o time é o agente e o esquema tático é a imagem de mundo a que ele está submetido.
O esquema tático delimita as ações e interpretações do jogo disponíveis ao time:
determina como os zagueiros podem fazer a marcação, como o meio-campo pode
articular as jogadas, como os atacantes podem se posicionar e quebrar as linhas de
defesa da equipe adversária. Cria-se uma imagem de mundo (neste caso, o microcosmo
de um jogo de futebol) capaz de prover ao agente determinadas interpretações sobre
os elementos deste mundo; diferentes imagens (diferentes esquemas táticos) oferecem
diferentes possibilidades de atuação e de interpretação ao agente.
Repare que, dessa forma, uma imagem não é inerentemente ruim: seu valor é
determinado pela sua capacidade de orientar nossos julgamentos práticos de modo a
nos entendermos enquanto agentes (OWEN, 2003). Além disso, por serem sistemas
de julgamento, imagens de mundo são condições necessárias para nosso pensamento
e ação. A preocupação de Wittgenstein com as imagens de mundo se refere à aquisição
da linguagem, ao tornar-se consciente5, processo em que herdamos o acordo de
julgamentos que compõe nossa forma de vida. Verificamos isso no seguinte trecho de
On Certainty:

4 A existência ou não de uma “imagem agostiniana” nas Investigações Filosóficas é


controversa; o exemplo de Glock foi trazido à tona apenas para esclarecer melhor o conceito
de “imagem”. Para maiores informações a respeito, conferir: STERN, David G..
Wittgenstein's Philosophical Investigations: an introduction. Nova York: Cambridge
University Press, 2004.
5 A expressão original em inglês utilizada por Owen é “to become minded”. “Tornar-se

consciente” é uma tradução imprecisa, visto que perde a característica construtiva da original:
“become minded” refere-se à construção de nosso aparato mental a partir da aquisição da
linguagem, com toda a herança advinda dela.

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Eixo 5
Estudos Éticos, Sociopolíticos e Jurídicos

140. We do not learn the practice of making empirical judgments by learning rules: we
are taught judgments and their conexion with other judgments. A totality of judgments
is made plausible to us.
141. When we first begin to believe anything, what we believe is not a single proposition,
it is a whole system of propositions. (Light dawns gradually over the whole.)
142. It is not single axioms that strike me as obvious, it is a system in which
consequences and premises give one another mutual support. (WITTGENSTEIN,
1969, p. 21)

Owen destaca um outro trecho mais adiante, em que Wittgenstein trata da


imagem da Terra enquanto uma bola:

147.The picture of the earth as a ball is a good picture, it proves itself everywhere, it is
also a simple picture - in short, we work with it without doubting it.
(WITTGENSTEIN, 1969, p. 22)

No entanto, Owen aponta, com as constantes mudanças ocorrendo na


realidade ao nosso redor, nossa imagem de mundo pode tornar-se problemática, no
sentido de não mais nos possibilitar entendermo-nos enquanto agentes. Esta, na
realidade, é a maneira de se avaliar o valor de uma imagem de mundo, através de sua
capacidade de guiar nossos julgamentos e ações. Veja, portanto, que não tratamos aqui
de uma questão de lógica: por se encontrar em um estado proto-teorético, anterior a
formulações sofisticadas do pensamento, imagens de mundo sempre permitirão a
criação de juízos logicamente coerentes dentro de seu escopo. Seu valor encontra-se
no quanto ela limita o agente, e não na sua capacidade de formular pensamentos
verdadeiros ou falsos. Esse ponto será importante mais à frente na discussão, quando
tratarmos do confronto entre imagens de mundo.
O que significa, então, ter sua autonomia limitada por uma imagem de mundo,
estar aprisionado à ela? A aspectival captivity descrita por Owen trata de uma mistura de
dois tipos de prisão: estar preso por força ou estar preso por um encanto, estar
hipnotizado. A primeira se refere à uma obstrução à nossa autonomia, enquanto a
segunda se refere à uma obstrução à nossa capacidade de criar juízos. Um exemplo
disso é dado por Wittgenstein em "Cultura e Valor", no qual um homem se encontra
preso em uma sala com uma porta destrancada que abre ao ser puxada; no entanto, só
ocorre a esse homem empurrar a porta, por assumir como um princípio, e não como
um julgamento, que essa é a única maneira de abri-la. Em outras palavras, seu sistema
de juízos, sua imagem de mundo está limitando sua autonomia, impedindo-o de agir
no mundo.
O perigo de tal aprisionamento é que, enquanto pensamos que estamos
delineando a natureza do nosso objeto de preocupação, estamos apenas delineando o
quadro através do qual o observamos (OWEN, 2003). Wittgenstein trata disso
explicitamente nas Investigações, nos §§ 109-115. Ele inicia defendendo que os
problemas filosóficos não são empíricos, mas sim “resolvidos por meio de um exame

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do trabalho de nossa linguagem e de tal modo que seja reconhecido: contra o impulso
de mal compreendê-lo” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 65), como verificamos na
introdução. Em seguida, como é típico de seu método, expõem uma afirmação que
encapsula o problema discutido: “A linguagem (ou pensamento) é algo único”. O
problema não se encontra na afirmação em si - em nenhum momento ele discute se
ela é ou não verdadeira - mas sim no efeito que ela produz em nosso pensamento.
Trata-se de uma superstição, criada por nossas ilusões gramaticais. Quando estamos
presos à essa superstição, à essa imagem, incapazes de compreendê-la como tal,
acreditamos, com nossas investigações, “seguir sem cessar o curso da natureza, mas
andamos apenas ao longo da forma através da qual a contemplamos” (1996, p. 65). Tal
aprisionamento nos causa inquietações: quando a realidade entra em conflito com
nossa imagem de mundo, dizemos “Não é assim!”, “É preciso que seja assim!”, com
intuito de conformá-la às bases do nosso pensamento, ao nosso chão.
É possível encontrar na História da Filosofia exemplos de como a aspectival
captivity pode limitar nossos juízos, mesmo quando realizamos análises embasadas
empiricamente. Tomemos o exemplo de Aristóteles em A Política. Para o leitor
contemporâneo, o texto do Estagirita pode parecer, à princípio, extremamente
problemático: sua defesa da escravidão, da superioridade do homem sobre a mulher e
da extinção de qualquer heterogeneidade dentro da sociedade civil podem parecer
meras afirmações árbitrárias, representantes do interesse da elite aristocrática ateniense.
Porém, isso muda se lembrarmos que, além de uma obra crítica, A Política é também
uma obra descritiva. Descrito por ele próprio na Introdução do livro, o método
aristotélico consiste na análise criteriosa dos elementos decompostos do objeto de
estudo (ARISTÓTELES, 1991). Desse modo, quando ele afirma que os escravos,
assim como os animais, são seres que “não participam de forma alguma da felicidade
pública, nem vivem conforme suas próprias vontades” (1991, p.45), ele não está
partindo de um juízo de valor, mas sim de uma análise precisa dos elementos da
sociedade ao seu redor: na sociedade ateniense daquela época, essa era a condição do
escravo. Seu único erro é não enxergar que tal fato não corresponde à perfeição da
natureza. Aristóteles está preso na imagem de mundo de que a observação empírica
representa a verdade absoluta, a perfeição natural, e não apenas uma simples
observação.
Bobbio, em um de seus ensaios publicados em Jusnaturalismo e Positivismo Jurídico
(2016), intitulado Natureza e função da filosofia do direito, expõe como a concepção da
filosofia do direito enquanto filosofia aplicada foi prejudicial para o desenvolvimento
da disciplina. Em um de seus exemplos sobre os malefícios dessa transposição
impensada de soluções da filosofia para o direito, ele diz:

Não saberia dizer quanto mal fez a Kelsen ter “flertado” com o neokantismo no início
de seus estudos, o que o induziu a considerar o sollen (...) como uma categoria
transcendental de nosso conhecimento, e acabou por despertar-lhe algumas

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dificuldades das quais permaneceu prisioneiro até as últimas obras (BOBBIO, 2016,
p. 59)

Vemos aqui, novamente, o quanto a aspectival captivity pode ser limitadora para
o desenvolvimento dos juízos de um agente. Segundo Owen, nesse tipo de coação
imaterial o indivíduo não consegue aferir o valor de sua imagem de mundo, porque
enxerga ela como a única existente, ou melhor, não tem consciência dela. Esse ponto
é fundamental: sob a aspectival captivity, o indivíduo não pensa que a única imagem
possível é aquela a qual ele está preso; ele, na verdade, falha em enxergar a possibilidade
da possibilidade de outras imagens, por isso entende sua imagem como a única forma
de enxergar o mundo e não consegue aferir o seu valor, a capacidade dela de guiar sua
autonomia.
Para nos acercarmos do tema principal da presente discussão - apesar de o
exemplo de Aristóteles já nos oferecer um pequeno vislumbre - iremos nos afastar um
pouco da filosofia e nos aproximarmos do cinema, para compreender como a aspectival
captivity pode limitar a autonomia política dos agentes em uma sociedade, levando-os
ao fascismo. Em Metropolis, filme alemão de 1927, dirigido por Fritz Lang,
acompanhamos uma cidade fictícia em um futuro distante, marcada por uma profunda
desigualdade social, com uma elite vivendo em arranha-céus luxuosos e uma classe
operária morando no subterrâneo. Numa mistura inovadora entre a estética
expressionista e a futurista, Lang apresenta como o indivíduo pode se ver tomado pelo
maquinário, tendo sua autonomia reduzida a mero apêndice de uma linha de produção
industrial – em uma das cenas mais famosas do filme, o personagem Freder se vê preso
nos controles de uma máquina gigantesca, em um ritmo vertiginoso que o leva à
exaustão física, sem nunca poder parar. Em Metropolis, a classe trabalhadora se encontra
completamente despida de sua autonomia, existindo apenas como meras engrenagens
da cidade. Porém, ela não é coagida fisicamente a esse estado: em nenhum momento
do filme aparecem forças estatais obrigando os trabalhadores a cumprirem sua rotina,
ou punindo os desviantes. Por que, então, eles seguem nessa rotina? Por que não se
libertam?
A fotografia do filme nos ajuda a entender essa questão. Na abertura do longa,
e em todo o seu percurso, estão presentes diversos planos da cidade: é demonstrada
toda a sua imponência e imensidão, com prédios cujo topo não conseguimos nem
enxergar, com seus limites estendendo-se além do alcance da nossa visão. A cidade é
o único horizonte em Metropolis, e isso tanto geograficamente quanto espiritualmente.
Para a classe trabalhadora, sua imagem de mundo, a paisagem sobre a qual pode
construir seus juízos e suas ações, está completamente ocupada pelos significados
políticos, econômicos e sociais daquela cidade; qualquer tentativa de mudança que não
ataque diretamente essa imagem de mundo está fadada ao fracasso, a apenas delinear
o quadro do objeto, sem nunca atingi-lo. Desse modo, quando uma revolta irrompe
na cidade, os trabalhadores, apesar de vitoriosos, conseguem apenas um acordo

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corporativista com a classe dominante, seguindo o motto do início do filme: “O


mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração”.
Tal solução socioeconômica é muito semelhante àquelas adotadas pelos
regimes nazi-fascistas da primeira metade do Século XX, como o modelo de
normatização subordinada estatal (DELGADO, 2019), o qual suprime, através de
legislações trabalhistas ou aparato repressivo estatal, qualquer tipo de conflito de classe,
garantindo o corporativismo de Estado. Assim, buscamos demonstrar como a aspectival
captivity é um fator importante para ser analisado na formação de ideologias políticas,
com o fascismo entre elas.

A reflexão crítica enquanto prática e os limites do debate racional

Vimos no último capítulo como o aprisionamento à uma imagem de mundo


dissolve a autonomia dos agentes de uma sociedade, tornando-os submissos ou
participativos de movimentos políticos de massa, tais como o nazi-fascismo. Como,
então, podem agentes democráticos, atuantes de uma imagem de mundo distinta,
atacar e destruir essas ideias?
Habermas oferece uma solução para esse problema através da reflexão crítica.
Na sua visão, nossa vida política só pode ser livre se as regras que delimitam nossas
ações forem baseadas em um acordo coletivo (TULLY, 1989). A atividade de “chegar
a um acordo” deve ser uma forma de reflexão crítica. Tal reflexão deve filtrar nossas
decisões a partir de três pontos de validade: certeza, verdade e sinceridade (rightness,
truth and sincerity), garantindo que nossas discussões sejam racionais e fujam do lugar-
comum da comunicação cotidiana. Assim, removemos a aura de “universal” dos
nossos juízos ordinários, despindo-os até aquilo mais essencial: “são certos?”, “são
verdadeiros?” e “são sinceros?”. Como diz Tully, Habermas tem como intenção, ao
propor esse tipo de comunicação, validar ou invalidar aquilo que costumeiramente
funciona como chão de nossos juízos. É fácil traçar a ligação entre esse “chão” e a
“imagem de mundo” discutida no último capítulo: defendo que os dois termos se
referem à mesma coisa.
Assim, através da reflexão crítica, um agente democrático poderia atingir a
imagem de mundo fascista, revelando suas inadequações aos três pontos de validade.
Tully, no entanto, em seu artigo “Wittgenstein and Political Philosophy: Understanding
Practices of Critical Reflections” revela como essa visão de Habermas é limitada. Na
realidade, é impossível remover uma imagem de mundo de uma discussão racional:
qualquer atividade de reflexão crítica exige que os interlocutores tenham um chão em
comum, algo tomado como certo (taken for granted), e isso é algo totalmente racional.
Por exemplo, realizamos isso neste mesmo artigo, uma forma de comunicação que, ao
menos como pretexto, busca ser extremamente crítica e racional. Seria razoável se meu
interlocutor (aquele que está lendo este texto) questionasse se estou realmente falando
de Ludwig Wittgenstein, e não de algum outro filósofo austríaco, nascido no final do

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Séc. XIX, falecido na metade do Séc. XX, que também publicou, na mesma data, um
livro chamado Investigações Filosóficas, e que também se chama Ludwig Wittgenstein?
Não foi necessário apresentar nenhum documento oficial do Império Austro-Húngaro
para comprovar que estamos falando da mesma pessoa, tomamos esse fato como certo
ao iniciarmos esta discussão. Mesmo aqueles pontos que foram discutidos por extenso
neste texto, como o conceito de imagem de mundo, não passam de acordos tácitos
entre autor e leitor: em nenhum momento minha exposição sobre “imagens de
mundo” apresentou argumentos racionais suficientes para passar pelos três pontos de
validade de Habermas, mas isso não foi empecilho para a continuação racional desta
discussão. Aliás, esta foi a atitude mais razoável. A visão habermasiana de racionalidade
que identifica “razoabilidade” com “dar razões” é mero nonsense disfarçado (TULLY,
1989).
Wittgenstein apresenta pontos semelhantes nas Investigações:

211. “Seja como for que você o ensine a continuar a faixa decorativa, como pode ele
saber como fazê-lo por si próprio?” - Ora, como eu sei? - Se isto significa: “tenho
razões?”, então a resposta é: logo não terei mais razões. E agirei então sem razões
(1996, p. 95)
(...)
217. “Como posso seguir uma regra?” - Se isto não é uma pergunta pelas causa, é
então uma pergunta pela justificação para o fato de que eu ajo segundo a regra assim.
Se esgotei as justificações, então atingi a rocha dura e minha pá entortou. Estou então
inclinado a dizer: “é assim que eu ajo”.
(Lembre-se que, muitas vezes, exigimos elucidações não por causa do seu conteúdo,
mas sim por causa da sua forma. É uma exigência arquitetônica; a elucidação é uma
espécie de moldura aparente que nada contém). (1996, p. 96)

Para que a atividade de chegar a um acordo se desenvolva, algo deve ser


tomado a priori pelos interlocutores, servir como um chão (TULLY, 1989). Jogos de
linguagem de reflexão crítica estão eles mesmos fundados no uso costumeiro das
palavras; são, por esse motivo, práticas, inseridas em uma forma de vida
(WITTGENSTEIN, 1996, p. 35). Desse modo, diferente do que Habermas defende,
não é a força do melhor argumento que que causa a concordância entre os agentes; é
a tácita concordância entre os agentes que garante a força do argumento (TULLY,
1989).
Voltando para nosso exemplo do começo do capítulo, percebemos como o
embate racional é ineficaz para a dissolução do ideário fascista, por apenas atingir os
juízos construídos acima da imagem de mundo, mas nunca atacando-a diretamente.
Na realidade, se um agente com uma imagem de mundo contendo a convicção da
libertação proletária (um “comunista”, digamos), entrar em um debate intelectual com
um agente cuja imagem de mundo sustenta o corporativismo estatal (um “fascista”),
nenhum dele sairá mudado da discussão: o chão de seus argumentos permanecerá

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intacto, possibilitando que novos castelos de areia sejam construídos, mesmo que estes
tenham sido derrubados racionalmente.

Conclusão e desdobramentos futuros

Verificamos, então, a importância do conceito wittgensteiniano de imagem de


mundo para a compreensão do pensamento fascista, e de como tal conceito nos
fornece chaves importantes para o combate a tais ideias, tarefa sempre necessária em
uma sociedade democrática. A respeito da dissolução das imagens de mundo, Owen
(2003) nos fornece como perspectiva a atividade da genealogia enquanto representação
perspícua. Nos moldes de Nietzsche e Foucault, a história intelectual seria capaz de
revelar que as imagens de mundo são apenas isso, imagens, e dessa forma o agente
estaria livre de seu aprisionamento.
Na tentativa de testar a eficácia dessa ideia, como desdobramento futuro desta
pesquisa, buscarei investigar a influência de um dos mais importantes teóricos do
direito do Brasil, Miguel Reale, na formação da imagem de mundo dos juristas
brasileiros. A escolha de Reale vai além de sua importância jurídica: na década de 30
ele foi o terceiro homem em comando da Ação Integralista Brasileira, o maior partido
de massas de extrema direita da história do Brasil, atuando como Secretário de
Doutrina da organização. Leandro Pereira Gonçalves descreve sua atuação da seguinte
forma:

Se encargaba de la doctrina y la organización de la juventud integralista y era


considerado uno de los principales ideólogos. Fue también editor y director de un
importante periódico de São Paulo, Acção, y construyó un discurso sobre el mundo
laboral de gran repercusión (GONÇALVES, 2017, p. 250)

Temos, então, diversas possibilidades, além desta proposta acima: analisar a


própria imagem de mundo que fundamentou o pensamento de Reale; analisar a
influência das ideias de Reale na construção da imagem de mundo integralista; analisar
as influências da imagem de mundo integralista em outros setores da sociedade, além
dos estudantes de direito. Além disso, como aponta Gonçalves (2017), a bibliografia a
respeito das idéias integralistas de Reale é escassa, permitindo amplo espaço para
investigações futuras.

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Referências

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BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e Positivismo Jurídico. São Paulo: Editora


Unesp, 2016.

CARVALHO, Marcelo Silva de. Imagem e Dissolução: entre as "investigações" e


"da certeza". 2006. 1 v. Tese (Doutorado) - Curso de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2007.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr,


2019.

GLOCK, Hans-Johann. A Wittgenstein Dictionary. Oxford: Blackwell, 1996.

GONÇALVES, Leandro Pereira. Un ensayo bibliográfico sobre el integralismo


brasileño. Ayer, Madri, v. 105, n. 1, p. 241-256, jan. 2017. Semestral.

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Unesp, 2000.

MOORE, Matthew J.. Wittgenstein, value pluralism and politics. Philosophy &
Social Criticism, [S.L.], v. 36, n. 9, p. 1113-1136, 25 out. 2010. SAGE Publications.
http://dx.doi.org/10.1177/0191453710384354.

OWEN, David. Genealogy as Perspicuous Representation. In: HEYES, Cressida J.


(ed.). The Grammar of Politics: wittgenstein and political philosophy. Ithaca:
Cornell University Press, 2003. p. 82-99.

STERN, David G.. Wittgenstein's Philosophical Investigations: an introduction.


Nova York: Cambridge University Press, 2004.

Tully, James. “Wittgenstein and Political Philosophy: Understanding Practices of


Critical Reflection.” Political Theory, vol. 17, no. 2, 1989, pp. 172–204. JSTOR,
www.jstor.org/stable/191248. Accessed 31 Aug. 2021.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultura,


1996.

WITTGENSTEIN, Ludwig. On Certainty. Oxford: Blackwell, 1969.


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