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Bonaldo, Frederico

As 5 grandes correntes éticas ocidentais: Aula 7

ISBN:

1. Filosofia

CDD 100
__________________________________________

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SINOPSE
Nesta aula, abordaremos a ética da explicação do comportamento humano de
David Hume. Hume desenvolveu a estrutura da psicologia humana, a fim de explicar
a dinâmica da psicologia da ação e o papel que a razão e as emoções desempenham
nesse processo. Ética de segunda pessoa, a moral humeana destaca a participação
imprescindível do outro na qualificação das ações em morais e imorais.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você compreenda: o que era o empirismo e
como se diferenciava do racionalismo; o que é a ética da segunda pessoa; o papel do
outro na ética humana; a estrutura da psicologia humana; a dinâmica da psicologia
da ação; o que move o ser humano; como alguém pode analisar suas ações.

Introdução
Antes de iniciarmos o conteúdo desta aula, gostaria de relembrar as cinco
grandes correntes que serão trabalhadas até o final do curso:
1) A Ética das Virtudes;
2) A Ética do Dever;
3) A Ética da Coordenação Social;
4) A Ética da descrição do Comportamento Humano;
5) A Ética da Utilidade ou Utilitarismo.
Chegamos, portanto, à quarta corrente, a Ética da descrição do
comportamento humano, a ética de David Hume.

O empirismo e o racionalismo
David Hume era um filósofo escocês, que nasceu em 1711 e faleceu em 1776.
Ele foi o expoente máximo de uma escola de filosofia chamada empirismo. A filosofia
moderna tem duas escolas, paralelas no tempo. Uma delas é o racionalismo, que tem
início com René Descartes. A outra, o empirismo.
O empirismo teve início com Francis Bacon, que viveu entre 1564 e 1626. A
essa escola de pensamento também pertenciam Thomas Hobbes, John Locke,
George Berkeley e, é claro, David Hume. Este é o suprassumo do empirismo, sendo
o mais radical de todos seus adeptos.
Posteriormente, Immanuel Kant buscou conciliar as duas linhas filosóficas, o
racionalismo e o empirismo. A filosofia de Kant, conhecida como filosofia
transcendental, acaba tendo uma série na própria Alemanha, a qual estava na época
do romantismo literário, artístico, recebendo muitas influências, e terminam por fundar
a última linha filosófica da Idade Moderna, que se chama idealismo. O idealismo
alemão tem como principais representantes o Johann Gottlieb Fichte (1762-1814),
Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) e o Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831). Hegel declarou terminada a filosofia por já haver dito tudo que
tinha que ser dito. Posteriormente, há as reações ao Hegel como Kierkegaard e à
idade moderna como um todo, caso do Nietzsche. Usufruindo de muito sucesso até
hoje, Nietzsche esmigalhou a filosofia moderna.
O empirismo, portanto, é a corrente na qual se insere o David Hume, que faz
essa ética como explicação ou como descrição do comportamento humano. O
empirismo se opunha, de certo modo, ao racionalismo contemporâneo a ele. O
racionalismo de Spinoza, de Descartes, Malebranche e de Leibniz. O empirismo tinha
uma maior preocupação com a teoria do conhecimento humano e com a filosofia
social sobre o Estado do que com questões metafísicas, sendo estas o alvo de
preocupação maior dos racionalistas. Outra diferença significativa entre essas duas
escolas é que o empirismo adotava como método de investigação, de pesquisa, a
experiência sensorial, a experiência sensível, ao passo que o racionalismo adotava o
chamado apriorismo matemático, ou seja, a concepção de que os seres humanos
nascem com ideias inatas prévias à experiência sensível, sensorial. Para os
empiristas, o ser humano nasce como uma mesa vazia, ou seja, quando um indivíduo
humano nasce, sua mente não tem nenhuma ideia. É com a experiência sensível que
estas vão sendo adquiridas. Assim, a priori não tem nada, só a posteriori que o ser
humano começa a ter ideias.

Do “eu penso” para o “nós agimos”


O David Hume escreveu dois livros, nos quais ele trata da teoria do
conhecimento mas também da ética. Concretamente, falaremos da ética. O primeiro
se chama “Treatise of Human Nature”. Em tradução, “Tratado da Natureza Humana1”.

1
“Tratado da Natureza Humana” é considerado pelos especialistas a principal obra do filósofo empirista escocês
David Hume. O livro, publicado em 1739-1740, foi escrito inicialmente na Inglaterra e posteriormente na França.
A obra é composta de três volumes, os quais foram publicados entre 1739 e 1740.
Pouco mais de dez anos depois, em 1751, Hume lançou outro livro chamado “An
enquiry concerning the principles of morals”, em tradução “Uma investigação sobre o
princípio da moral2”, em que procura explicar, com maior didática, o que já havia
proposto no “Tratado da natureza humana”. Portanto, o que abordaremos acerca da
ética da descrição do comportamento humano de David Hume está contido em ambos
livros.
Nessas duas obras, Hume realiza um giro na filosofia moral, um giro nos
estudos filosóficos sobre a ética. Ele abandona o paradigma do “eu penso” de
Descartes para, a partir desse abandono, desenvolver uma ética com base no “nós
agimos”. O “eu penso” pode pensar muitas coisas falsas, muitas coisas que não
correspondem à realidade, diria o Hume. Ao passo que, ao adotar o “nós agimos”,
estamos falando de algo concreto, algo que é empírico, que o indivíduo vê acontecer.
As pessoas agem. Eu ajo e os outros agem. As pessoas tomam decisões e realizam
ações em seguida. Então, o Hume tenta descrever a ação humana, explicá-la até
onde consegue com esse método empírico, pois ele nunca vai partir para nada
metafísico, para nada além da matéria, além da physis, e não vai usar, nessa
descrição, as categorias de bem e mal.

O teste do sensorial
Hume afirma que categorias de bem e mal, de certo e errado, são ideias que
temos na cabeça. Para saber se uma ideia que temos na cabeça existe na realidade,
precisamos nos perguntar: alguma vez os meus sentidos externos, a visão, o olfato,
a audição, sentiram essas ideias? Alguma vez eu pude olhar, cheirar, ouvir, degustar,
tocar, bem ou mal? Não? Então eu devo descartar essas ideias. Depois, por questões
de convenção, o Hume acaba usando essas palavras, bem e mal, virtude e vício, mas
sempre associadas a experiências sensíveis, sempre sobre o crivo da experiência
sensorial.

2
Segundo o autor, o homem é um ser racional que tenta fundamentar todas as suas atividades na razão, entre
elas a busca do conhecimento e do aprimoramento moral.
Para o David Hume, o lugar da nossa consciência, do nosso conhecimento de
nós mesmos, do conhecimento do que nos cerca e das nossas certezas, não é o
nosso pensamento. O lugar da nossa consciência e das nossas certezas é a nossa
prática. É a nossa prática, porque está ligada à nossa experiência sensível. Não a
outro tipo de conhecimento se não o conhecimento sensível. Não há o conhecimento
propriamente abstrato, intelectual. O conhecimento intelectual existe, porém é frágil,
é precário. O conhecimento sensível que passa pelo tato, pela visão, pelo olfato, pela
audição, esse sim é claro, é seguro. É o contrário do racionalismo. Descartes afirma
que o conhecimento intelectual é que não enganoso, ao passo que o conhecimento
sensível é enganoso. Então, há essa diferença basilar entre as duas linhas filosóficas
da modernidade.
A ética, em Hume, vai se tornar uma ciência explicativa e descritiva do
comportamento humano e não vai recorrer em nenhum momento à metafísica, porque
o empirismo julga impossível que haja alguma realidade que não seja material, física,
além da física, e muito menos à religião, porque a religião trata de Deus, dos anjos,
eventualmente, a depender da religião, dos santos, da alma. Realidades imateriais.
De acordo com o critério do empirismo, se não podemos ter certeza desses
elementos, porque os nossos sentidos nunca os perceberam, temos descartar essas
ideias, pois são enganosas.

Da física newtoniana à cultura histórica


No “Tratado da natureza humana”, Hume se preocupou em explicar o
comportamento do ser humano nos moldes da física de Isaac Newton (1643-1727).
Ou seja, Hume tentou demonstrar que o comportamento humano seria o resultado de
poucos princípios que fossem simples e constantes. Esses princípios seriam
basicamente as nossas paixões. Se conseguíssemos tratar as paixões de maneira
científica tal como a física de Newton tratava a realidade material, conseguiríamos
saber quais seriam as consequentes ações humanas, decisões humanas,
poderíamos fazer uma previsão de como o ser humano agiria se nós conseguíssemos
individualizar e saber bem o funcionamento de cada paixão humana, do ódio, do
medo, da alegria, do amor. Isso no primeiro livro.
Já no “Uma investigação sobre o princípio da moral”, Hume troca esse modelo
da física newtoniana pelo modelo da cultura. O comportamento humano começa a
ser explicado por ele através dos conceitos historicamente variáveis que utilizamos
nos nossos discursos. Por exemplo, a palavra tolerância. A tolerância é suportar algo
errado. Houve momentos na história em que o que era considerado errado não era
suportado, era castigado. Com o advento do cristianismo, começa a haver a tolerância
para com comportamentos humanos considerados equivocados. Por exemplo:
Agostinho de Hipona dizia no século 4 d.C., que, embora fosse muito imoral e muito
perniciosa para quem a praticasse e para quem fosse destinatário dela, a prostituição
não deveria ser legalmente castigada, juridicamente punida. Isso seria
contraproducente do ponto de vista do bem comum. Esse é somente um exemplo.
Essa questão da tolerância é algo que vai crescendo com o passar dos séculos depois
de Cristo, depois do advento do cristianismo. Isso apenas para dar um exemplo de
mudança cultural que pode acontecer ao longo do tempo. Hume em “Uma
investigação sobre o princípio da moral” começa a adotar mais esse modelo da
mudança cultural através da história em vez da física newtoniana, porque percebeu
que era insuficiente tentar explicar o comportamento humano tentando matematizar
ou tratar as paixões humanas de uma maneira exata. As paixões humanas não são
passíveis de uma aferição certa, inequívoca, em que tal paixão vai gerar tal ação.
Hume se deu conta que não dá para saber isso e, portanto, trocou o modelo da física
newtoniana aplicada às paixões pelo modelo da cultura histórica.

Ateus e pagãos x Cristãos


O Hume procurou mostrar que a moral seria mais próspera em uma sociedade
composta de ateus e pagãos do que em uma sociedade de cristãos. Ele vivia na
Escócia, um país cristão, pertencente ao Reino Unido. Para Hume, a religião
monoteísta estragava a moral, porque ele concebia o monoteísmo cristão como a
crença em um Deus que motiva a boa conduta das pessoas que nele creem através
da ameaça com punições, da coerção. De fato, se formos pesquisar na história
humana, há posturas religiosas cristãs e de outras matrizes que acabam sendo
pautadas por picuinhas morais motivadas pelo medo. Isso é inequívoco, inegável.
Mas, também, no cristianismo e em outras matrizes religiosas, há abundantes
exemplos na história humana de pessoas que realizaram, na sua vida, muitíssimos
atos heroicos em prol dos outros, completamente desinteressadas, motivadas pelo
amor a Deus e pelo amor ao próximo. Quer dizer, tomar a religião como algo ruim, a
religião cristã, no caso do Hume, por identificar que um grupo grande de cristãos tenta
agir corretamente porque tem medo da punição caso cometa erros, e afirmar que
todo cristianismo é como essas pessoas o concebem, é uma cegueira, porque é tomar
a parte pelo todo.

A estrutura da psicologia humana


Em seus dois livros já mencionados, Hume concebe a estrutura da psicologia
humana, uma espécie de filosofia do homem. Os elementos da natureza humana que
dão origem a nossas ações.
Na base, temos as paixões e os sentimentos morais.
Acima, há a razão humana.
Entre as paixões e sentimentos morais e a razão humana, há um nível
intermediário que se chama juízos morais.
Há um circuito entre essas instâncias e há uma dinâmica entre elas da qual
são originadas as nossas ações. David Hume explica esse circuito, essa dinâmica,
da seguinte maneira:
As nossas paixões são impressões violentas que nós temos. Por exemplo: o
amor-próprio, a benevolência, o orgulho. São impressões sensoriais violentas. O
sentimentos morais são, contrariamente às paixões, são impressões calmas. Eles
seriam basicamente o nosso senso moral, uma espécie de órgão que temos para
perceber o que é conveniente ou inconveniente do ponto de vista ético, e o nosso
senso estético, uma espécie de órgão que faria com que nós percebêssemos o que
é belo e o que é feio. Tudo começaria com as impressões violentas das paixões. Só
que, ao mesmo tempo, os nossos sentimentos morais começam a enviar, para a
nossa razão, essas impressões calmas, o resultado do nosso senso moral e do nosso
senso estético. A razão vai constatar fatos, formar ideias e vai fazer relações entre
esses fatos e essas ideias, mas não vai ser capaz de motivar as nossas ações, o
nosso comportamento. O princípio do nosso comportamento são as paixões. Então,
os nossos sentimentos morais estão compostos como que por dois órgãos, o órgão
do senso moral e do senso estético, os quais enviam, para nossa razão, impressões
calmas, ponderadas, sobre o que nós consideramos como certo errado, como belo
ou feio. A razão constata os fatos do mundo, forma ideias a partir desses fatos, faz a
relação entre essas ideias e esses fatos, mas não é capaz de motivar as nossas
ações, o nosso comportamento. O princípio de motivação das nossas ações, dos
nossos comportamentos são as paixões. Essas impressões violentas são o motor da
nossas ações.
A razão recebe dos sentimentos morais essas impressões calmas. E, a partir
dessa informação, ela produz juízos morais. Os juízos morais são informações que a
razão vai fornecer às paixões. Por exemplo: a nossa inteligência fornece para nossas
paixões informações tal qual como ocorrem os fatos do mundo, como estão
constituídos, quais são as duas dinâmicas; quais são os meios para atingir uma
determinada finalidade; quais são as ações convenientes para dar vazão às paixões,
qual ação que se deve tomar para dar vazão a uma paixão. Então, esses juízos saem
da razão e chegam às paixões. Com esses juízos morais, as paixões conseguem
organizar essas impressões violentas em que elas se constituem e, a partir daí, as
paixões geram a ação, geram um ato livre. Essa é basicamente a psicologia da ação
de David Hume. Como resumo: pouquíssima importância à razão, na ética, e muita
importância às paixões e sentimentos.

Simpatia: uma paixão fundamental


Neste ponto, há uma paixão interessante de mencionarmos que é a paixão
da simpatia, a qual hoje chamamos de empatia. Simpatia vem do grego sympathos,
que quer dizer padecimento conjunto. Sym remete àquilo que é sincrônico, ao mesmo
tempo, mesmo. Então, quando há simpatia por alguém, etimologicamente, é que você
padece do que a outra pessoa padece juntamente com ela. Você consegue ter a
percepção de quais sentimentos ela está tendo e você compartilha com ela, entra em
conexão com ela. Hume afirmava, portanto, que o comportamento é basicamente
movido pelas paixões, então, ele é passional. Por ser passional, o comportamento
não é nem moral, nem imoral, ele é amoral ou não-moral, neutro, e faz com que a
pessoa tenda a ficar fechada em si mesma, a encerrar-se em si mesma sem se
comunicar com as outras pessoas. Mas, graças a paixão que cada um de nós tem,
chamada simpatia, conseguimos sentir as paixões dos outros, de alguma maneira,
conseguimos entender o prazer e o desprazer que os outros sentem. A simpatia,
segundo Hume, permitiria que nós soubéssemos o que é prazeroso e o que doloroso
para os demais.
O Hume tem uma afirmação um pouco gratuita em relação a isso. Para ele,
todos nós temos as mesmíssimas paixões básicas e essas mesmíssimas paixões
básicas gerariam em cada um de nós, igualmente, as mesmas reações de prazer e
de dor diante das mesmas situações. Como ele poderia saber isso? Alguma vez ele
percebeu, através de um dos seus cinco sentidos, a paixão de prazer ou de desprazer
de alguém? Não. Hume observou o comportamento de alguém que denotava, que
significava, que aquela pessoa estava sentindo um desprazer ou um prazer. Agora,
ter essa certeza que todo mundo tem essas mesmas paixões e que estas mesmas
paixões geram as mesmas reações diante dos mesmos fatos, é uma afirmação que
vai um pouco além do método empiricista, completamente sensorial, que o próprio
Hume adota.
De qualquer maneira, o Hume dizia que a paixão da simpatia era a responsável
por permitir que nós soubéssemos o que os outros estavam sentindo. A simpatia, para
o Hume, era uma condição necessária para que nos comportássemos moralmente
bem, de maneira moralmente aceitável. Ainda que fosse uma condição necessária,
esta não é uma condição suficiente, porque a nossa simpatia poderia estar
desajustada. Assim, o indivíduo poderia aprovar um sentimento de prazer ou dor dos
outros que, na verdade, deveriam ser reprovados. Portanto, a nossa simpatia deveria
ser educada, deveria ser corrigida.

O ponto de vista moral


A simpatia precisava ser ajustada pelo que o Hume chamava de ponto de vista
moral, como se fosse um critério de moralidade, de ética, ao qual todos temos de nos
adaptar. Concretamente, temos de adaptar a paixão de simpatia a esse critério. O
ponto de vista moral é o ponto de vista que precisamos assumir, para nós, para
corrigirmos a nossa simpatia e, consequentemente, equilibrarmos todas as nossas
outras paixões, além da simpatia. Esse ponto de vista é a ótica, a perspectiva, o
ângulo, do espectador das ações individuais, daquela pessoa que está olhando para
o indivíduo, ou seja, dos outros. Não é a do próprio indivíduo, não é a de alguém que
mande neste, mas de alguém que o observa. É a perspectiva do observador, a qual,
de acordo com Hume, é uma perspectiva imparcial e desinteressada, justamente
porque pode valer para todas as pessoas. Essa é a perspectiva que os indivíduos têm
que adotar. Estes têm que pensar consigo mesmos e julgar as suas ações como se
fossem um outro, como se se vissem de fora, como se estivessem se auto-
observando. Contudo, essa concepção pode até resultar em uma doença psíquica,
porque a preocupação exagerada com a própria imagem faz com que percamos a
espontaneidade e até mesmo a alegria de viver. Logicamente, não podemos estar
completamente alheios ao que os outros pensam de mim. É preciso ter esse retorno
e aceitar correções. De qualquer maneira, ter isso como critério único para vida, vai
resultar em uma obsessão e, provavelmente, em uma doença do ponto de vista
psíquico. Então, é algo que eu vejo como problemático: o único critério de moralidade
ser a visão alheia sobre a conduta individual.

Vícios e virtudes
A partir do ponto de vista moral do espectador, segundo Hume, conseguimos
avaliar quais condutas nossas são aprováveis ou reprováveis, mas não só nossas
próprias condutas como também as condutas alheias, as condutas dos outros. É
possível transpor esse juízo para o comportamento das outras pessoas. O critério
dessa avaliação, quais ações são aprováveis ou reprováveis, é empiricista também,
é sensorial. É o sentimento de satisfação ou de insatisfação que se experimenta ao
observar as condutas. As condutas aprováveis, ou seja, aquelas que me geram um
sentimento de satisfação, Hume dá o nome de virtudes, porque era um termo usado
há muito tempo no âmbito da ética, da filosofia moral. As condutas reprováveis,
aqueles que fazem com que se experimente um sentimento de insatisfação são os
vícios, que também é uma nomenclatura que já era usado havia muito tempo na
época do Hume. Então, as virtudes são as condutas aprováveis que geram um
sentimento de satisfação.

Podemos adquirir virtudes?


Para o Hume, as virtudes não são adquiridas mediante a disciplina e o
exercício, como sempre conceberam na filosofia clássica. Para filosofia clássica, se
uma pessoa quer ser mais alegre, quer manifestar mais alegria, precisa ser uma
pessoa que faz atos de alegria, tais como sorrir ou interessar-se, como se já tivesse
a virtude implantada dentro de si. Ou seja, a pessoa deve agir como se já fosse
alegre. Aristóteles dizia que é assim que tem que funcionar porque na vida prática, na
vida da ação, da práxis, não há outra maneira. De acordo com a ética clássica, a
disciplina e o exercício conscientes, não robotizados, propositados, que visam à
aquisição daquelas qualidades de caráter, eram os caminhos para adquirir as
virtudes.
Hume, por outro lado, afirma que as virtudes são fatos naturais, motivações
que possuímos ou não, uma vez que concebe as virtudes como condutas aprováveis,
que geram um sentimento de satisfação em nós. De fato, existem condutas próprias
e de outras pessoas que geram satisfação enquanto outras condutas causam repulsa.
Com em relação a isso, não há muito controle. A satisfação ou a repulsa emergem.
Para o Hume, a disciplina e o exercícios não faziam com que um indivíduo adquirisse
virtudes, pois estas se resumiam ao sentir algo positivo, satisfatório, perante uma
conduta alheia ou própria.

A ética da segunda pessoa (e os demais modelos)


Isso configura um modelo ético que poderíamos chamar de ética da segunda
pessoa. A ética da segunda pessoa é justamente a ética do espectador, a ética do
observador.
As éticas podem ser de três tipos:
1) Ética da Primeira Pessoa: caso da ética de Aristóteles e de Tomás de
Aquino. Nesta, o sujeito é o executor da ação, mas também o
compositor da ação. Ele pensa para depois executar. É o indivíduo que
decide livremente o que vai fazer. É o indivíduo que compõe a ação. Ao
ser executor, ele é ator. E, ao ser compositor da ação, ele é autor.
2) Ética da Terceira Pessoa: caso da ética baseada no pensamento de
Thomas Hobbes. Nesta, “alguém manda no sujeito”, ou seja, o sujeito é
o executor da ação, é o ator, mas não é o compositor, o autor. Quem
compõe a ação, o autor, é quem manda no sujeito, como o soberano.
No caso de Thomas Hobbes, a religião não está presente aqui, somente
a questão política. Toda moralidade está concentrada nas leis públicas.
Não existe uma moralidade pessoal.
3) Ética da Segunda Pessoa: caso da ética do David Hume. Esta é a ética
do observador. Não é nem daquele que manda, nem do próprio sujeito,
que vê o que é mais conveniente para si tendo como principal critério,
para isso, a sua própria consciência. A ética do observador é a ética da
pessoa que observa a ação.
As virtudes naturais e artificiais
Hume distinguia entre virtudes naturais e virtudes artificiais.
Esse ponto pode ficar um pouco estranho para nós, porque Hume chama de
virtudes naturais os comportamentos aprováveis por nós, porque sentimentos
satisfação ao vê-los, e que são praticados independentemente do sistema de regras
convencionado socialmente. Seja de regras jurídicas, públicas, seja de regras de ética
ou de moral social. São aqueles comportamentos meramente aprováveis porque o
sentimento que tem-se perante eles é um sentimento satisfatório.
Hume chama de virtudes artificiais comportamentos aprováveis que são
praticados para que possamos cumprir as regras sociais convencionadas, as leis, por
exemplo, as normas éticas dos grupos a que pertençamos, ou as normas de ética.
Para ele, as virtudes artificiais são a ética de terceira pessoa. Um exemplo de virtude
artificial para Hume é a justiça, porque a pessoa está se pautando em uma norma
externa a ela. A fidelidade e a lealdade são outros exemplos de virtude artificial. A
pessoa é fiel e leal não por querer, por entender que é necessário, mas porque está
convencionado que é producente ser leal e é producente ser fiel. A moderação nos
prazeres é outra virtude artificial, porque uma pessoa não tem moderação nos
prazeres por entender que é melhor para ela, mas porque há uma norma externa que
afirma que isso é conveniente para a coordenação social. Neste aspecto, existe um
parentesco bastante grande com Thomas Hobbes. Este trata somente das regras
sociais de origem estatal, daquelas leis promulgadas pelo soberano. No caso do
Hume, outras regras, que não as leis públicas, são igualmente abrangidas.

A obrigação moral
Em um trecho que veremos a seguir, constante em “Tratado da Natureza
Humana”, Hume tenta explicar o que é uma obrigação moral. Muitas vezes,
declaramos que temos obrigação moral de adotar certa conduta. Hume vai contra
essa nossa intuição ao afirmar:
“Toda moral depende dos nossos sentimentos e quando uma ação, ou até
mesmo uma qualidade da mente, nos agrada de certo modo, dizemos que é virtuosa.
Por outro lado, quando experimentamos um desprazer de tipo análogo, quando
descuramos ou não realizamos uma ação determinada, dizemos que temos a
obrigação de realizá-la.”. Em resumo, a obrigação moral, para o Hume, é o nome que
damos ao incômodo que sentimos quando não fazemos determinadas ações. Essa
sensação incômoda se chama obrigação moral. Ou seja, a obrigação moral é só
negativa. Ela é só incômoda.
Muitas vezes, sentimo-nos impelidos por obrigações morais, por dívidas
morais para com os outros, com alegria, sabendo que vamos retribuir a alguém algo
bom que nos fez. Claro que, muitas vezes, sentimos isso de forma negativa. Mas,
para o Hume, é só negativa.
Pergunta: também já está na palavra, a obrigação de ter de fazer isso, não é algo
deliberado?
A palavra obrigação vem do obligatio, no latim, que significa uma ligação
que tenho com alguém. E por causa dessa ligação, eu tenho de manter um
relacionamento com essa pessoa. Mas isso não é algo que venha de fora, é algo que
o indivíduo percebe. Vem de dentro do indivíduo. É justamente uma palavra cujo
significado foi sendo deturpado. Ouvimos falar de obrigação, de dever, e temos uma
concepção, uma impressão negativa em relação a essas palavras, como se fosse
algo não espontâneo, que fosse algo não prazeroso, não gratificante. Outras palavras
sofreram o mesmo processo. A palavra prudência. Hoje, quando aconselhamos uma
pessoa a ser prudente, estamos, na verdade, dizendo para que seja cautelosa, seja
precavida. No entanto, a prudência vai muito além disso. Faz parte da prudência ser
uma pessoa sagaz. Uma pessoa sagaz é aquela que sabe decidir de maneira
acertada e com rapidez. Então, a precaução, a cautela, faz parte da prudência, mas
junto com a sagacidade. Uma pessoa prudente é uma pessoa que pensa antes de
agir, mas age rápido e pensa rápido, portanto. O prudente não é aquela pessoa que
anda sempre indecisa. O amor e a ideia de amor também. Hoje, o amor acaba quando
acaba o sentimento. O sentimento de satisfação de estar ao lado de uma pessoa
terminou porque eu já me acostumei, os defeitos da pessoa me incomodam, etc.,
então dá-se por terminado o amor. Aí as pessoas se separam. O sentimento de
satisfação, de gratificação de estar ao lado de alguém, pode acabar, e normalmente
acaba, porque todas as pessoas são iguais, ou seja, não são grande coisa. Todos
nós sabemos que não somos o suprassumo, e não existe ninguém que seja. O
sentimento de gratificação, por viver ao lado de alguém, acaba mesmo. O amor é a
decisão livre de continuar ao lado daquela pessoa mesmo após o fim do sentimento
de gratificação. Esse é o conceito originário de amor. É doação. É doar-se. É entregar-
se a alguém, mesmo após o sentimento acabar. Inclusive, esse ato de doação, após
o fim do sentimento de gratificação, é que pode trazer de volta o sentimento. Existe
um místico do século de ouro espanhol, João da Cruz (1542 - 1591), que afirmava
“onde não há amor, ponha amor e tirarás amor”. Ou seja, quando sentires a paixão
que costuma acompanhar o amor, continua amando, continua entregando-te e aí, a
paixão que acompanha o ato de entregar-se, voltará.

O destino das teorias de Hume


Veremos, para finalizar, o resumo da aventura histórica e da ressonância
contemporânea da ética de David Hume.
David Hume viveu no século 18, nos anos 1700. Ele não teve discípulos
imediatos e somente no século 20 apareceram estudiosos que tomaram proveito da
ética por ele desenvolvida. A sua Teoria do Conhecimento é muito bem aproveitada
e David Hume é visto como um dos filósofos mais agudos da história do pensamento
humano. Inclusive, em uma das aulas anteriores do curso, alguém havia mencionado
que David Hume aparecia como o filósofo mais admirado por professores de filosofia
e filósofos contemporâneos. Mas não por sua teoria moral, mas pela teoria do
conhecimento.
A teoria moral de David Hume foi atacada pelos seus contemporâneos e
também por filósofos que vieram depois, a começar pelo Kant. Kant aprovou a teoria
do conhecimento de Hume, dando razão para a afirmação deste que só existe
conhecimento sensível, não existe conhecimento por abstração. O único
conhecimento que existe é o conhecimento sensorial. Kant afirmou que Hume o
despertou de seu sonho dogmático, pois achava que havia conhecimento intelectual
prévio à sensação, ou seja, a priori. Kant é um dos que adere à teoria do
conhecimento de Hume, mas não adere de maneira alguma à sua teoria moral, pelo
contrário. A crítica deveu-se, sobretudo, pelo ceticismo moral de Hume. O Hume
afirmava que não existe bem e mal, certo e errado. Para ele, o que existe são
sensações de aprovação e sensação de reprovação. Esse é o único critério para ele,
e foi rejeitado por muitos filósofos por causa disso.

Hume e os filósofos analíticos


No século 20, entre as décadas de 1930 e 1960, a filosofia analítica, que mexe
muito com a linguagem, com o significado das palavras e das proposições que a
linguagem humana pode compor, aproveitou a ética humana. As características
centrais dessa filosofia analítica ou da filosofia da linguagem no campo da ética, são
as seguintes:
1) Não propõe uma ética, mas uma metaética. Uma metaética é um
discurso que fala da ética. Meta no sentido de além da ética. Falar da
ética é, por exemplo, identificar a terminologia utilizada no campo ético,
como “certo” e “errado”, “virtude” e “vício”. A metaética analisa os
múltiplos significados que estas palavras apresentam e lhes usam para
compor um inventário. Depois, são analisadas as proposições em que
essas palavras estão inseridas, a fim de determinar qual dos
significados faz mais sentido dentro dessas proposições. A partir disso,
faz-se um discurso sobre a ética, uma metaética, portanto.
2) Do ponto de vista lógico, para a filosofia analítica, as normas éticas são
enunciados prescritivos - ou seja, dão prescrições, mandamentos, como
“João deve ir para casa”, emitem ordens -, que podem ser de três tipos:
a) obrigatórios: obrigam uma determinada conduta;
b) proibitivos: proíbem uma determinada conduta;
c) facultativos: afirmam que a conduta pode ser feita. A pessoa tem
o arbítrio para decidir adotá-la ou não.
Uma vez que as ordens, os enunciados prescritivos, não descrevem fatos que
nós observamos, não podem ser classificados como verdadeiros e falsos, como o
podem ser os enunciados descritivos. Por exemplo, o enunciado descritivo “João vai
para casa”. É possível verificar se João realmente está indo para casa ou não. Se ele
estiver indo para casa, é verdadeiro o enunciado “João vai para casa.”, senão, é falso.
“João vai para casa” é afirmar que algo é, que algo está a ocorrer, está acontecendo.
Deste modo, as normas éticas não tem sentido racional, porque não podem ser
classificadas como verdadeiras e falsas. As normas éticas são enunciados
prescritivos. Não podemos saber se “João deve ir para casa” é verdadeiro ou falso.
Não é nem verdadeiro, nem falso. Pode ser, de acordo com uma norma criada,
apropriado ou inapropriado.
A ética de David Hume era muito conveniente para o tipo de visão da filosofia
analítica, porque o Hume preconizava que essas diferenciações da moral, certo e
errado, bem e mal, virtude e vício, etc., esses binômios, não se baseavam na nossa
razão, somente nas nossas paixões e sentimentos. Portanto, eles não eram racionais.
Eles eram aceitáveis ou inaceitáveis segundo uma norma que se cria de maneira
voluntarista, não de maneira racional.

Hume e nossos atos presentes


A influência da ética de Hume em temas da filosofia moral contemporânea e
da prática moral contemporânea, ou seja, das nossas vidas. Vejamos algumas
afirmações:
1) Os seres humanos são motivados a agir principalmente por causa de
seus desejos e paixões. A razão tem papel secundário. Mostrar, à
pessoa que age, como e em que medida ela consegue satisfazer os
seus desejos. Consiste em mostrar, à pessoa que age, em que medida
ela consegue satisfazer os seus desejos, além de procurar evitar que
surja um conflito entre seus desejos e os desejos de outras vários
sujeitos agentes.
Nós somos motivados a dar vazão às nossas paixões, a sermos autênticos.
Uma orientação para que ajamos de acordo com nossos sentimentos e impulsos. De
alguma maneira, isso também se nota nos votos de felicitações no natal, no ano novo,
no dia do aniversário. Deseja-se muita saúde, muita prosperidade, muito sucesso.
Quer dizer, está-se desejando que a pessoa colha prazeres, que seus desejos sejam
realizados, porque é isso que a pessoa quer para si.
2) Em ética, não pode haver imperativos categóricos3, porque senão os
desejos das pessoas não podem ser satisfeitos totalmente. Os
imperativos éticos podem ser apenas hipotéticos4.
Se fizéssemos uma enquete social, hoje não é muito aceitável dizer “não se
deve mentir nunca”. As pessoas até poderiam concordar levianamente, sem nunca
adotar isso para dentro de si mesmas.

3
Um imperativo categórico é um mandamento absoluto, que não tem exceção.
4
Um imperativo hipotético é aquele que admite exceção. Os imperativos hipotéticos só são válidos dentro de
certas circunstâncias, dada uma certa hipótese.
3) As virtudes e os vícios são amplamente concebidos como Hume os
pensou. Desejos que se concretizam em condutas aprováveis ou
reprováveis pelos observadores. Deste modo, as virtudes podem entrar
em conflitos irresolúveis, porque os observadores podem divergir a
respeito de sua aprovação.
É lógico que podem entrar. Pensemos em um caso concreto: qual o limite do
humor? Podemos pensar nesses casos que envolvem artistas ou comediantes e
outras pessoas que são atingidas pelas piadas que fazem. Tem-se, por um lado, o
direito à liberdade de expressão humorística e, por outro, o direito à honra, o direito à
vida privada, etc.. Tanto um como outro são considerados pela nossa sensibilidade
atual como algo virtuoso. No entanto, entram em conflito, muitas vezes.
4) A justiça entendida como imparcialidade pode ser incompatível com
outras virtudes que Hume considerava necessárias, como a fidelidade
a pessoas e a compromissos assumidos [continua]
A justiça entendida como imparcialidade é própria das tradições éticas
kantiana, utilitarista e dos replicadores de Hobbes nos dias de hoje, os neo
contratualistas, como John Rawls e Jürgen Habermas. A justiça como imparcialidade
tem que aceitar aquilo que foi convencionado socialmente. Mas, se obedecermos
aquilo que foi convencionado socialmente, muitas vezes, deixaremos de ser fiéis a
algumas pessoas ou a alguns compromissos assumidos. Se positivado e
convencionado socialmente que se pode cometer eutanásia a pedido de qualquer um,
como acontece em alguns países, o médico que fez o juramento hipocrático de
preservar a vida sempre, e seguir a lei, aplicando a eutanásia em uma pessoa que a
está pedindo, vai estar contrariando esse juramento hipocrático que é um
compromisso que ele assumiu. Apenas para dar um exemplo.
[continuação] De todo modo, na atualidade, procura-se estabelecer uma justiça
baseada em convenções sociais fragmentadas, estabelecidas por várias grupos de
cidadãos comuns, e não por aquelas poucas pessoas que participam dos pactos e
discursos que pretendem valer para a sociedade como um todo. É o que se chama
de multiculturalismo ou de pluralismo ético.
Há muitas culturas morais hoje, múltiplas, e as éticas, as morais, são plurais.
Não existe mais uma ética singular que todos aceitam. Como se tivesse havido
alguma vez na história. Sempre há uma ética predominante. A ética predominante
hoje, ao meu modo de ver, é a de garantir que exista a paz e cada um possa usar um
pouco da sua liberdade obedecendo às regras socialmente instituídas. A ética
imperante nos dias de hoje é a ética tipicamente hobbesiana. O multiculturalismo é
inevitável e o pluralismo ético também, porque tudo depende do sentimento, tudo
depende das paixões, tudo depende do agrado e do desagrado, que é a base do
Hume.
Eu forneço um contraexemplo. Lógico, isso é pequeno, mas, de qualquer
maneira, pode fazer com que pensemos. Eu tenho um amigo professor de filosofia,
muito competente, foi dar uma palestra para estudantes de medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais, há anos. Nessa palestra, ele mencionou o Jérôme Lejeune,
que foi um médico geneticista francês, responsável por descobrir a causa
cromossômica da Síndrome de Down. Lejeune era contrário ao aborto e esse meu
amigo mencionou isso e prosseguiu com a palestra. Ao final da aula, uma das
ouvintes era uma estudante de medicina indígena, tinha saído de uma tribo e tinha
ido cursar medicina na federal de Minas. Essa estudante expôs que o que ele havia
dito sobre o Jérôme Lejeune a havia tocado, não pela questão propriamente do
aborto, mas pela questão do infanticídio. Ele perguntou a ela por quê. Ela afirmou: o
senhor pode perceber que eu sou indígena. Eu fui criada em uma tribo. Eu ia para
escola, mas eu vivia segundo os costumes da minha tribo. Dentre estes costumes,
está o costume do infanticídio. Se uma criança nasce defeituosa, essa criança é
morta. Esse meu amigo questionou por que isso acontece, qual a gênese dessa
prática, por que a criança defeituosa é morta? Essa estudante respondeu que essas
crianças são mortas porque, antigamente, como as tribos eram nômades, estavam
sempre mudando de lugar, tendo que transpor obstáculos naturais para isso, etc.. A
pessoa que tivesse defeitos físicos sofreria muito nessas mudanças. Então, por uma
motivação de piedade para com essa criança, esta era morta ao nascer. Esse meu
amigo disse que era compreensível que este gesto era motivado pela piedade, não
pela crueldade. Ele indagou: você me disse que a sua tribo era nômade? E a
estudante respondeu com uma confirmação, partilhando que há muitas décadas sua
tribo deixou de ser nômade. Meu amigo perguntou: e se fosse disser para eles, você
relembrar para os chefes da tribo, que as circunstâncias mudaram e que vocês
poderiam abandonar o infanticídio dos defeituosos, pois há maneira de cuidar dessas
crianças e tal? A estudante afirmou: eu nunca tinha pensado nisso professor. E, de
fato, temos assembleias periódicas na tribo, e eu acho que essa ideia vai ser aceita,
até porque como eu estou fazendo medicina, eles me olham com outros olhos.
Eu não sei qual o desfecho dessa história, mas eu a acho interessante porque
costumamos afirmar que os índios têm uma moral completamente diferente da nossa,
mas não é tão diferente assim. Por razões de misericórdia e de piedade, podemos
não matar as crianças defeituosas. Por outro lado, eles, por razão de piedade e de
misericórdia, matam essas crianças defeituosas. Quer dizer, podemos chegar a um
entendimento. Pode haver uma tradução de uma prática moral de uma certa tradição
para outra, e vice-versa. Essa ideia da incomunicabilidade absoluta entre as éticas
plurais, as morais plurais, talvez não seja muito verdadeira.

PERGUNTAS
1) Você mencionou que Hume descarta as idéias de bem e mal porque elas são
intangíveis, são contra o empirismo, pois você vivencia o bem e o mal, mas
não consegue tocar neles. Eu estava lendo um texto que falava justamente
sobre como os seres humanos, hoje em dia e sempre, foram regidos pelo
nosso corpo, uma vez que temos hormônios e estes regem as nossas ações,
que são basicamente nossas paixões. E que não podemos falar o que é bem
ou mal. Bem ou mal é como denominamos algo que sentimos dentro de nós
mesmos. Então, não é algo real. O que pode ser bem para mim pode não ser
bem para o outro.
Eu te respondo com aquilo que eu aprendi da ética clássica, de Aristóteles e
Tomás de Aquino. De fato, isso acontece, as nossas paixões e sentimentos são o
princípio da nossa vida moral. Por isso que uma ética que não leve em conta os
sentimentos, as paixões, os impulsos, não é uma ética verdadeira, pois não está
dando conta da realidade. No entanto, uma vez que nós aceitamos que a nossa
inteligência é capaz de conhecer, cada vez mais, a verdade sobre nós mesmos e
sobre as coisas fora de nós, e, consequentemente, saber o que é verdade e o que é
falso nessas coisas, que do ponto de vista da ética se chama bem ou mal, o
verdadeiro é o bem, o falso é o mal, isso pode ser o critério para direcionar as paixões
para um lado ou para o outro. Para fazer uma imagem gráfica: o ser humano seria
uma carroça puxada por cavalos potentes, puro sangue, com um cocheiro segurando
as rédeas. Esses cavalos puro sangue vão fazer com que a carroça ande são as
nossas paixões. E o cocheiro, com as rédeas, é a nossa razão. Vamos supor que
tenha um arado atrás para sulcar o campo para, depois, fazer plantio. Se tem os
cavalos puro sangue, poderosos e fortes, puxando a carroça e, consequentemente, o
arado, vai sulcando a terra na direção que o cocheiro vai dando, está-se potenciando
as paixões, não as está suprimindo. Você está direcionando-as.
Nessa metáfora, os juízos morais são a consideração do que é bom e do que
é mau aqui e agora.

Comentário: achei também muito interessante o que Hume falou sobre os ateus e
pagãos em relação aos cristãos, porque hoje muitas pessoas realmente só cumprem
o que está na bíblia por medo da punição.
Nas religiões, existem as punições, assim como na vida civil. As sanções do
código penal são todas punitivas. As punições servem, não como origem do bem e
do mal, mas para garantir que se faça o bem e se evite o mal. É uma garantia, mas
isso não anula a liberdade humana, nem para fazer o bem nem para fazer o mal.
Pensemos o código penal: no art. 121, está escrito que matar alguém é punido com
6 a 20 anos de reclusão. O fato de existir a possibilidade de o indivíduo ser preso se
matar alguém, que não seja por legítima defesa, não faz com que, necessariamente,
um indivíduo deixe de matar livremente as pessoas, ainda que exista essa sanção.
Na religião, analogamente, vale a mesma coisa. Existe a sanção do inferno. Existe a
sanção da tristeza nessa vida, se você vive uma vida de pecado. Agora, não é porque
existem essas sanções previstas, que o indivíduo necessariamente vai ver bem por
medo a essas sanções, a essas punições. Pode ser que o indivíduo as viva porque
está convencido de que aquelas práticas realmente te fazem feliz. Podemos fazer o
bem livremente e de maneira positiva, ainda que exista uma sanção para quem não
o faça.

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