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A Coleção

Textos da China Antiga apresenta uma seleção


de fragmentos traduzidos dos mais antigos
clássicos dessa civilização, desde suas origens até
o período da dinastia Han. Nosso objetivo é ajudar
na difusão desse conhecimento, e familiarizar o
leitor com fontes pouco conhecidas em língua
portuguesa. Todos os textos aqui publicados estão
disponíveis no sítio Textos da China Antiga, que
integra o Projeto Orientalismo. Esse volume é uma
versão do texto Yuejing 樂經 do Liji 禮記 editado
por Kongzi (Confúcio) 孔子, séc. 6 aec. Tal como
a poesia, a música era um dos sustentáculos da alma
humana para Confúcio. Este tratado se perdeu, e
aparentemente um de seus poucos fragmentos foi
incluído no Liji. Ele constituiria, pois, o Sexto
Clássico. O texto foi extraído de Lin Yutang,‘A
Sabedoria de Confúcio’. Rio de Janeiro: J.
Olympio, 1958.
Da Música
A Música brota do coração humano quando ele é
tocado pelo mundo exterior. Sob o impacto do
mundo exterior, o coração emociona-se e então se
expressa por sons. Tais sons ecoam ou combinam-
se a outros, afinal produzindo uma riquíssima
variedade e quando os vários sons se tornam
regulares, tem-se o ritmo. A distribuição dos sons
para diversão nossa, em combinação com a dança
militar (com achas e escudos) e a dança civil (com
longas plumas e caudas de raposas), denomina-se
música.

Música é a forma segundo a qual se produzem os


sons, que brotam do coração humano quando
tocado pelo mundo exterior. Assim, quando nele é
tocada a fibra da tristeza, são amargos e tristes os
sons produzidos; quando é tocada a fibra da
satisfação, são langorosos e lentos os sons
produzidos; quando é tocada a fibra da alegria, são
brilhantes e expansivos os sons produzidos; quando
é tocada a fibra da ira, são ásperos e duros os sons
produzidos; quando é tocada a fibra da piedade, são
simples e claros os sons produzidos; quando é
tocada a fibra do amor, são gentis e doces os sons
produzidos. Estas seis espécies de emoção não são
normais: são estados produzidos pelo toque do
mundo exterior.

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Por isso os reis da Antiguidade preocupavam-se
com as coisas capazes de afetar o coração humano:
assim buscavam eles orientar os ideais e as
aspirações do povo por meio da li, estabelecer a
harmonia dos sons por meio da música, regular a
conduta social por meio do bom governo, e evitar a
imoralidade por meio do castigo. Li, música, e
castigo, bem como o governo, têm um objetivo
comum - promover o equilíbrio nos corações
humanos e realizar os princípios da ordem política.

A música brota do coração humano. Quando


suscitadas, as emoções exprimem-se por sons, os
quais, ao assumirem forma definida, constituem a
música. Por isso a música de uma nação próspera e
feliz é tranquila e alegre, e o governo é ordeiro; a
música de uma nação atrapalhada manifesta
insatisfação e raiva, e o governo é caótico; e a
música de uma nação destruída mostra apenas
tristeza e saudade do passado, e o povo é infeliz.
Eis como sempre encontramos governo e música
em estreita relação.

A clave de C (Dó) simboliza o rei; a clave de D


(Ré) simboliza o ministro; a clave de E (Mi)
simboliza o povo; a clave de G (Sol) simboliza os
negócios do país; a clave de A (Lá) simboliza a
natureza. Quando se harmonizam as cinco claves,
não há sons discrepantes. Quando desafina a clave
de C. a música perde o seu fundamento e o rei
descura os próprios afazeres; quando desafina a
clave de D, a música perde a sua gradação e os
ministros prevaricam; quando desafina a clave de
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E, a música é triste e o povo sente-se desgraçado;
quando desafina a clave de G, a música é fúnebre e
os negócios do país complicam-se; quando desafina
a clave de A, a música sugere perigo e o povo passa
miséria. Quando todas as claves desafinam e se
confundem, generaliza-se a discórdia e pouco mais
viverá a nação.

A música dos Estados de Cheng e Wei é a música


dos países em confusão, quase chegando à
discórdia geral. A melodia de No campo das
amoras, das margens do Rio p'u (em Wei), é
música de nação destruída, cujo governo titubeia e
cujo povo se desgarra ou vive em permanente
insegurança, a caluniar os governantes e cada qual
a buscar vantagens pessoais sem nenhum
escrúpulo.

As notas musicais brotam do coração humano, e a


música está em relação com os princípios da
conduta humana. Por isso os animais conhecem os
sons mas não sabem as notas, e a plebe conhece as
notas mas não sabe música. Só o homem superior é
capaz de entender música. Assim, do estudo dos
sons chega-se à compreensão das notas musicais;
do estudo das notas musicais, chega-se à
compreensão da música; e do estudo da música
chega-se à compreensão dos princípios de governo
e fica-se preparado para governar. Portanto é
impossível falar de nas musicais a uma pessoa que
não identifique os sons, impossível falar de música
a uma pessoa que não saiba as notas musicais.
Aquele que compreende a música acha-se muito
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perto de compreender a li, e ao homem que domine
a li e a música podemos chamar virtuoso - porque
virtude é domínio.

Daí que o dizer-se a música é bem cultivada em


determinado país não significa ser a sua música
elaborada ou complexa, nem que as suas festas e
cerimônias revistam-se de gostos complicados.
Quando no templo ancestral Chou ouvimos a
música do seh, com suas cordas vermelhas e sua
caixa perfurada, e apenas um homem cantando e
três fazendo o coro, sentimos certa contenção nas
melodias; e quando assistimos às cerimônias da
festa real, com vinho escuro e peixe cru e caldo
insulso, sentimos certa contenção no uso do
tempero. Os antigos reis, portanto, não instituíram
os rituais e a música apenas para o fim de satisfazer
aos nossos sentidos ("boca, estômago, ouvido e
olho") e sim para incutir no povo o bom gosto e o
apego à normalidade.

A natureza do homem é geralmente tranquila, mas


principia a ter desejos quando afetada pelo mundo
exterior. Com o dom de pensar a mente torna-se
consciente do impacto do mundo material, gerando
em nós simpatias e antipatias. Quando as simpatias
e antipatias não são devidamente controladas e a
consciência se deixa seduzir pelo mundo material,
perdemos o nosso eu autêntico e anula-se em nós a
razão da Natureza. Quando o homem se expõe
constantemente às coisas do mundo material que o
afetam, e não controla suas simpatias e antipatias,
empolga-o a realidade material e ele se torna
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materialista ou desumano; quando um homem se
torna materialista ou desumano, anula-se o
princípio de razão da Natureza e a criatura cede aos
apetites - daí a rebeldia, a desobediência, a
esperteza e a tapeação, a imoralidade geral. Dá-se
então o espetáculo dos poderosos a aviltar os
fracos, a maioria a perseguir a minoria, os espertos
a enganar os de boa-fé, os fisicamente fortes dando
largas à violência, os mutilados e enfermos sem ter
quem os assista, os velhos e as crianças e os
inválidos ao desamparo. É o caminho do caos.

Controlam-se os cidadãos por meio da música e dos


rituais, instituídos pelos reis antigos. O pranto e a
lamentação, e a ostentação dos trajes de luto feitos
de cânhamo e sem bainhas, têm por fim conter o
sofrimento nos funerais; o gongo, o tambor, a acha
e o escudo (na música e dança) têm por fim
celebrar a felicidade e a paz; a cerimônia do
casamento, a "investidura" dos rapazes com o
"boné" e das donzelas com a "coifa” ao atingirem a
maioridade, têm por fim realçar a distinção entre os
sexos; os certames de arco e flecha e os festejos
urbanos têm por fim normalizar as relações sociais.
Os rituais regulam os sentimentos do povo, o
governo ordena-lhe a conduta e os castigos
previnem os crimes. Quando os ritos, a música, os
castigos e o governo vão todos em bom andamento,
completam-se então os princípios da ordem
política.

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*

A música une, o ritual distingue. Pela união as


pessoas tornam-se amigas pela distinção aprendem
a respeitar-se. Se predomina a música, a estrutura
social tende a tornar-se amorfa; se o ritual
predomina, a vida social tende a tornar-se
demasiado fria.

A música e aos rituais cabe manter em equilíbrio os


sentimentos e a conduta do povo. A instituição dos
rituais propicia uma noção bem clara de ordem e
disciplina, enquanto a divulgação da música e dos
cantares suscita uma atmosfera popular de paz.
Quando o bom gosto afasta-se do mau gosto, têm-
se meios de distinguir a gente boa da gente má; e
quando a violência é prevista nas leis penais e os
bons cidadãos são colhidos para o serviço público,
então o governo torna-se ordeiro e estável. Com a
doutrina do amor para ministrar afeto, e a doutrina
do dever para ministrar retidão, o povo aprenderá a
viver moralmente.

A música vem do íntimo, ao passo que os rituais


vêm de fora. Por vir do íntimo, a música é
espontânea e calma. Por virem de fora, os rituais
caracterizam-se pelo seu formalismo. A música
verdadeiramente sublime é sempre simples nos
seus movimentos, e os rituais verdadeiramente
sublimes são sempre singelos na sua forma.
Quando prevalece a boa música não há sentimento
de inquietação, e quando prevalece o ritual
adequado não há rixas nem lutas. Ao dizer-se que

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pela simples maneira de curvar-se em saudação
pode o rei governar o mundo, vai nisso uma
referência ao poder da música e dos rituais. Quando
os elementos de violência de um país são mantidos
quietos, os vários governantes vêm render-lhe
homenagens, ensarilham-se as armas de guerra, as
cinco leis penais não são postas em uso, o povo não
tem receios e o imperador não tem ira - então é que
prevaleceu a música; quando pais e filhos têm
afeição recíproca, os mais jovens respeitam os mais
velhos e tal respeito estende-se a todos os cidadãos,
e o próprio imperador vive uma vida exemplar,
pode-se então dizer que a li prevaleceu.

A grande música compartilha dos princípios


harmonizadores do universo, e o grande ritual
compartilha dos princípios diferenciadores do
universo. Através dos princípios de harmonia,
restaura-se a ordem no mundo físico; e através dos
princípios de diferenciação, afinal, podemos
oferecer sacrifícios ao Céu e à Terra. Temos
portanto ritual e música no mundo material, e as
divindades várias no mundo espiritual - e assim
viverá o mundo com respeito e amor. Os rituais
incutem o respeito em diversas circunstâncias, e a
música incute o amor sob diversas formas. Quando
semelhante condição moral se estabelece mediante
os rituais e a música, tem-se a continuidade da
cultura pela ascensão de governantes sábios. Os
acontecimentos políticos diferem com (os
governantes de) as gerações diferentes, e os rituais
e a música para a celebração dos acontecimentos

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recebem denominações adequadas às várias
realizações dos governantes.

A música expressa a harmonia do universo,


enquanto que os rituais expressam a ordem do
universo. A harmonia põe em comunhão todas as
coisas e a ordem põe cada coisa em seu lugar. A
música provém do céu, os rituais padronizam-se na
terra; transgredir esses padrões resultará em
desordem e violência. Para termos a música e os
rituais adequados, havemos de compreender
necessariamente os princípios do Céu e da Terra.

Eis por que o Sábio cria a música para atender ao


Céu e traça os rituais para atender à Terra. Quando
música e rituais se estabelecem, temos o Céu e a
Terra a funcionar em perfeita ordem. O Céu fica no
alto e a Terra fica embaixo, e nessa mesma relação
devem ficar o rei e os ministros. Quando o mais
alto e o mais baixo se distribuem em diferentes
níveis, temos o princípio das castas sociais. Quando
a lei rege ação e reação, temos em resultado as
relações entre grandes e pequenos. E quando as
miríades de coisas classificam-se e grupam-se
conforme sua natureza, reconhecemos o princípio
da diversificação no mundo. Assim se formam de
estrelas, as constelações simbólicas no céu, e os
caprichosos desenhos das montanhas e rios e coisas
na terra - tudo isso demonstrando que a li atua
segundo o princípio diversificador do universo.

Quando sobem os vapores da superfície terrestre e


descem os vapores das camadas superiores da

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atmosfera, quando os princípios yin e yang
encontram-se, atritam-se, e o céu e a terra agem um
sobre o outro; e quando, aceleradas pelo trovão e o
relâmpago, vivificadas pelo vento e pela chuva,
estimuladas pela sequência das estações do ano,
aquecidas pelo sol e pela lua, as coisas crescem e se
desenvolvem - tudo isso demonstra que a música
atua segundo o princípio harmonizador do
universo.

A música encarna as forças primordiais da


natureza, ao passo que a li reflete a criação. O Céu
representa o princípio do eterno movimento, ao
passo que a Terra representa o princípio da
permanente quietude - e esses dois princípios, o do
movimento e o do repouso - penetram toda a vida
entre o Céu e a Terra. Eis por que o Sábio fala de
música e rituais.

Quando virdes o tipo de dança de uma nação,


conhecer-lhe-eis o caráter...

O homem é dotado de sangue e alento e


consciência, mas a tristeza ou felicidade, ou alegria
ou ira, ele sente conforme as circunstâncias; seus
formulados desejos resultam de reações diante do
mundo material. Portanto, quando predomina um
tipo de música sombria e depressiva, sabe-se que o
povo é triste e desgraçado; quando predomina um
tipo de música langorosa, fácil, com árias
prolongadas, sabe-se que o povo é feliz e pacífico;

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quando predomina um tipo de música forte e
vigorosa, começando e acabando com exuberância
de sons, sabe-se que o povo é voluntarioso e forte;
quando predomina um tipo de música pura, piedosa
e magnificente, sabe-se que o povo é afetuoso e
cordial; quando predomina um tipo de música
lasciva, excitante e lúbrica, sabe-se que o povo é
imoral.

Quando a gleba é pobre os seres não crescem, e


quando a pesca não é controlada conforme as
estações do ano os peixes não chegam a
desenvolver-se; quando o clima se estraga,
degeneram as plantas e os animais, e quando o
mundo é caótico a música e os rituais tornam-se
licenciosos, e então encontra-se um tipo de música
lamentosa sem contenção e alegre sem
tranquilidade.

Por isso o homem superior procura instaurar a


harmonia no coração humano através do
descobrimento da sua natureza e procura fazer da
música um meio de levá-lo à perfeição da sua
cultura. Quando predomina esse tipo de música e o
espírito do povo é orientado para os justos ideais e
aspirações, pode-se perceber o advento de uma
grande nação.

O caráter é a espinha dorsal da natureza humana, e


a música é a inflorescência do caráter. Os
instrumentos de metal, pedra, corda e bambu são
meros instrumentos da música. Pelo poema fala o
coração, pelo canto expressa-se a nossa voz, e a

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dança expressa os nossos movimentos. Estas três
artes brotam da alma humana, e adquirem outras
expressões mediante os instrumentos de música.
Portanto, da profundidade do sentimento provém a
clareza formal, e do poder sugestivo da melodia
provém a espiritualidade da atmosfera então criada.
Essa harmonia cresce da alma e encontra sua
expressão florescente em forma de música. Por isso
a música é a única coisa que não se presta a
enganar as pessoas ou a insinuar falsas intenções...

O Barão Wen, de Wei, perguntou a Tsehsia,


discípulo de Confúcio: "Por que é que me dá sono
sempre que ouço música antiga, metido em meus
trajes oficiais, e nunca me sinto cansado quando
ouço a música de Cheng e de Wei? Por que a
música clássica é assim, e a outra não o é?"

Tsehsia respondeu: - "Na música antiga. os


dançarinos movem-se em formação, para diante e
para trás, numa atmosfera de paz e ordem, com
certa luxúria de movimentos. O hsuan (instrumento
de cordas), a cabaça, e o sheng (espécie de gaita de
boca feita de tubos de bambu), mantêm-se prontos
e à espera, até que o tambor dá o sinal do início. A
música principia com os movimentos da dança civil
e termina com os da dança militar, havendo uma
continuidade de movimentos do começo ao fim,
enquanto o próprio compasso contém ou orienta os
dançarinos inclinados a atuar com demasiada
rapidez. Depois de ouvir tal música, o homem

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superior há de encontrar-se num estado de ânimo
propício à discussão de costumes e gostos dos
antepassados, sobre o aprimoramento do indivíduo
e a regularização da vida nacional: eis a principal
característica da música clássica. Na música
moderna, as pessoas curvam os corpos enquanto
vão para a frente e para trás, há um dilúvio de sons
imorais sem contenção nem forma, e os atores e os
anões, vestidos como macacos, misturam-se com os
homens e as mulheres presentes, como se não
conhecessem os próprios pais e filhos. Depois
desse espetáculo é impossível discutir sobre gostos
e hábitos dos antigos: eis a principal característica
da música nova. Afinal, vindes arguir-me a respeito
de música, mas o que realmente vos interessa não
passa de ruídos. Ruído e música têm algo em
comum, sem dúvida, mas são coisas inteiramente
diversas."

- "Que quereis dizer?" - insistiu o Barão Wen.

Tsehsia prosseguiu:

- "Nos velhos tempos as forças da natureza estavam


em harmonia e o clima variava de acordo com as
quatro estações; os cidadãos demonstravam bom
caráter e as colheitas eram abundantes; não se
verificavam epidemias, não se viam monstros nem
maus augúrios. Era o tempo em que tudo ia bem.
Surgiram então os Sábios (ou sacerdotes)
estabeleceram a disciplina social para as relações
entre os pais e os filhos, entre os reis e seus
ministros. Com a instauração da disciplina social a

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vida entrou em ordem, e com a vida em ordem os
Sábios estabeleceram os diapasões corretos para os
seis tubos da gaita[xvi] e as cinco claves musicais.
O povo começou então a cantar solos e coros com
acompanhamento de hsuan (instrumento de cordas)
e essa ficou sendo a música sagrada (literalmente:
"sons virtuosos"), e sagrada era toda a música. Mas
o que realmente vos interessa não é mais do que
uma mixórdia de sons lúbricos."

- "Posso perguntar de onde provêm os sons


lúbricos?" - tornou o barão.

- "A música de Cheng é lúbrica e corrompe, a


música de Sung é mole e torna o homem
afeminado, a música de Wei é monótona e
aborrece, e a música de Ch'i é áspera e torna o
homem insolente. Estes quatro tipos de música são
sensuais e minam o caráter do povo, por isso não se
devem usar por ocasião dos sacrifícios religiosos.
Diz o Livro dos Cantares - "Os sons harmoniosos
são shu e yung e meus antepassados os escutavam."
Shu quer dizer "pio" e yung quer dizer "pacifico".
Se tendes piedade e paz como traços de caráter,
podereis fazer de uma nação o que quiserdes."

Tsehsia continuou a falar:

- "Tudo o que um rei tem a fazer é ver bem as


coisas de que gosta ou não gosta. O que agradar ao
rei, o povo o fará; no que fizer o rei, o povo o
imitará. Tal é o sentido daquela passagem do Livro

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dos Cantares, que diz - "É muito fácil guiar o
povo."

Assim pensando, os Sábios (ou sacerdotes) fizeram


os instrumentos de música: o yao (tamborim com
duas bolotas suspensas a um e outro lado da
baqueta, bolotas essas que o percutiam quando se
fazia rolar a baqueta entre as palmas das mãos), o
surdo, o k'ung e o ch'ia (tambores quadrados, de
madeira, com os tampos abertos no centro), o hsuan
e o ch'ih (variedades de instrumentos de sopro,
sendo o hsuan uma espécie de pote de barro com
seis furos e o ch'ih uma espécie de "flauta de Pã",
feita de vários tubos de bambu, cada qual com sua
embocadura). Estes seis instrumentos produzem os
sons usados na música sacra. Além deles, há os
sinos ou guizos. O ch'ing (lâmina de pedra
suspensa num estojo), o yu (espécie de fole com 36
embocaduras), e o seh (longo instrumento
horizontal com cinqüenta-cordas); e há também a
dança com achas e escudos (dança militar) ou com
rabos de boi e penas de faisão (dança civil). Tal é a
música usada no culto aos antigos reis e nas
libações: é a espécie de música mediante a qual se
incutiu uma noção de ordem social entre as
diversas classes e o senso de disciplina entre mais
velhos e mais jovens, entre superiores e
subalternos, através das gerações subsequentes.

O som do sino é claro e ressonante; sua claridade e


ressonância fazem-no especialmente indicado para
marcar os sinais, sinais esses que dão uma
impressão de majestade. e essa impressão de
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majestade inspira um sentimento de poderio
militar. Por isto, quando o soberano escuta o sino,
pensa em suas patentes militares. O som da pedra
musical é agudo e nítido; sua agudeza e nitidez
tendem a incrementar o senso de decisão, e o senso
de decisão torna mais fácil para os generais a morte
em combate. Por isto, quando o soberano escuta a
pedra musical, pensa em seus súditos militares
mortos nas frentes de batalha. O som das cordas é
queixoso e o seu queixume clareia a alma, e a
clareza de espírito induz ao senso de retidão. Por
isto, quando o soberano escuta o som de
instrumentos de corda, o ch'in e o seh (ambos
horizontais, de cordas esticadas sobre uma caixa
horizontal), pensa ele em seus ministros corretos. O
som do bambu (semelhante ao dos instrumentos de
sopro de madeira, no Ocidente) é líquido, e essa
qualidade tende a espalhar-se por toda parte e a
unir as massas populares. Por isto, quando o
soberano escuta o som dos instrumentos de bambu,
pensa em seus vassalos das províncias. O som dos
tambores grandes e pequenos é barulhento,
qualidade essa que tende a despertar e excitar; a
excitação leva as massas à ação. Por isto, quando o
soberano ouve o som dos tambores, pensa em seus
grandes soldados. Daí se conclui portanto que, ao
escutar música, o soberano não ouve os ruídos
apenas - o que ele percebe é a significação peculiar
som.[xvii]

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*

Pinmou Chia estava um dia conversando com


Confúcio, e começaram a falar de música,
Confúcio indagou: - “Por que é que, no início desta
Dança de Wu, os dançarinos ficam uma porção de
tempo contendo-se, prontos, antes de atacarem,
enquanto soam os tambores?"

- "Porque isto simboliza o fato de que o Imperador


W u esperou muito tempo para lançar-se à
conquista dos domínios do Imperador Shang
(Chou, a quem ele depôs), até estar seguro da
solidariedade dos demais governos" - respondeu
Pinmou Chia,

- “E qual o sentido disso que os dançarinos cantam


e suspiram, enquanto seus movimentos vão
gradualmente ganhando intensidade?"

- "É que o Imperador Wu teve de suspirar pela


solidariedade dos outros chefes."

- “E que sentido tem o bailado e o sapateado que


iniciam a dança?"

- "Assinalam o começo da campanha,"

- “E por que é que os dançarinos principiam então a


agachar-se, a pôr-se de cócoras, com o joelho
esquerdo erguido?"

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- "Eles não deviam mesmo agachar-se durante a
Dança de Wu."

- “E por que é que se faz ouvir a melodia


característica dos Shangs (o inimigo)?"

- "Essa melodia também não pertence à música de


Wu."

- “Pois que melodia é essa, sé não faz parte da


música de Wu?"

- "Os mestres de música esqueceram sua


significação primitiva...Se não se tratasse de uma
interpolação (se fosse realmente música de Wu), o
Imperador Wu teria sido um rei cruel”.

- "Ouvi de Ch'ang Hung (oficial da cidade de


Chou) uma explicação em tudo semelhante à que
me acabais de dar" - falou Confúcio.

Pinmou Chia ergueu-se do seu assento e disse: -


"Todos nós compreendemos o sentido dessa longa
espera preliminar; mas pergunto eu; por que a
demora e lentidão dos dançarinos ao começarem, e
por que dura tanto isso?”

Confúcio: "Sentai-vos, e eu vos direi. Esta música é


uma interpretação simbólica dos acontecimentos
históricos. Isso de os dançarinos ficarem em longas
fileiras, com seus escudos, como sólida muralha
(literalmente: "como uma montanha”) simboliza a
atividade do Imperador Wu. Os dançarinos ao

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começarem a bater com os pés no chão, no inicio
da dança, simbolizam o ânimo irrequieto e as
ambições do Rei Tai, bisavó do Imperador. Pondo-
se de cócoras ou agachados, os dançarinos
simbolizam o governo pacífico dos Duques Chou e
Shao (irmãos do Imperador Wu) que mais tarde
auxiliaram seu filho a pacificar a nação e a
instaurar o sistema governativo da Dinastia Chou,
após a deposição da casa então reinante. Por outro
lado, os dançarinos de Wu executam o primeiro
movimento do sul para o norte (avançando rumo à
segunda posição e assim representando a
preparação do exército, segundo os comentaristas).
No segundo movimento, os Shangs são derrotados
(passagem para a terceira posição, segundo os
comentaristas). No terceiro movimento, os
dançarinos voltam para o sul (assumindo a quarta
posição). No quarto movimento é simbolizado o
governo do Imperador Wu sobre as regiões
meridionais (tomando à segunda posição). No
quinto movimento separam-se os dançarinos
representando os da esquerda a atuação do Duque
Chou, os da direita a atuação do Duque Shao
(voltando à terceira posição). No sexto movimento
os dançarinos retomam as posições iniciais,
simbolizando assim a homenagem de toda a nação
ao seu novo Imperador.[xix] O avanço dos
dançarinos em linha, com os tocadores de caixa de
madeira ao lado deles, e sua eclosão na dança das
lanças em quatro direções (ou "repetindo quatro
vezes a dança das lanças", segundo outra
interpretação), representam a expansão do poderio

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militar do Imperador Wu sobre a China. O avanço
em duas colunas paralelas, com os tocadores de
caixas de madeira ao lado, exprime a vitória
facilmente obtida. Sua longa espera, em formação,
simboliza a espera pela chegada dos exércitos
aliados.

Não ouvistes, além disso, a narração do que o


Imperador Wu fez nos arredores da capital
derrotada? Quando o Imperador Wu derrotou os
Shangs e chegou à capital deles, nomeou os
descendentes de Huangti (o Imperador Amarelo)
governantes de Chi, nomeou os descendentes do
Imperador Yao governantes de Chu, e nomeou
governantes de Ch’ei os descendentes do
Imperador Shun. Isto foi feito antes de terminar a
campanha, e depois de acabada esta ele fez
governantes da outra Chi os descendentes do
Imperador Yu, destituiu os descendentes dos
Imperadores Shang e pô-los em Sung. Também
concedeu nobreza póstuma ao Príncipe Pikan, tirou
Chitse da prisão e permitiu-lhe continuar vivendo
segundo os hábitos dos Shangs, tendo-lhe antes
restituído o grau nobiliárquico. Os cidadãos foram
isentados do serviço militar e os cavaleiros tiveram
duplicado o soldo. Após cruzar o Rio Amarelo,
para oeste, o Imperador Wu mandou soltar no pasto
as alimárias do exército, ao sul dos Montes Hua, e
não as fez encilhar de novo, soltou os búfalos em
liberdade, nas campinas de Pessegueiros, e não os
prendeu mais; recolheu ao Arsenal do Império as
carretas e armaduras manchadas de sangue e não as
repôs em uso; os escudos e as lanças levaram-se
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com as pontas para trás, sendo tudo enrolado em
couros de tigre, e os generais foram feitos
administradores de cidades. A isto se deu o nome
de desarmamento (literalmente: "fechar aljavas”), e
a todo o mundo se fez saber que o Imperador Wu
não voltaria a empregar as armas de guerra. O
exército foi dispersado e os soldados foram
dedicar-se aos jogos de armas, pelos arredores. No
subúrbio oriental, o cerimonial dos certames de
arco e flecha era acompanhado com a canção
Lishou, e no subúrbio ocidental com a canção
Tsouyu (contida no Livro dos Cantares). A praxe
de atirar trespassando o alvo foi eliminada. Os
trajes cerimoniais e os bastões de audiência (que os
ministros traziam nas mãos enquanto avistavam-se
com o imperador) passaram a ser observados, e os
cavaleiros deixaram de usar espadas. Sacrifícios
tiveram lugar no Grande Templo (o Ming-tang ou
“Pátio da Clara Virtude"), para que o povo pudesse
compreender a piedade filial; as etiquetas de
audiência na corte foram instituídas, para que os
vassalos soubessem como render suas homenagens;
criou-se também a cerimônia do Imperador
lavrando ele próprio a terra, para que o povo
aprendesse a respeitar a natureza. Essas
instituições, em número de cinco, constituíam os
cinco grandes princípios culturais do país.

No Colégio Imperial, os Três Mais Velhos e os


Cinco Superiores foram mantidos. O Imperador
desnudava seu braço direito para sangrar os
animais sacrificados e entregava-os então aos Mais
Velhos; tomava em suas mãos a vasilha de
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condimentos e punha-a diante deles; segurava a
taça de vinho e dava-lhes de beber (literalmente:
“gargarejar"). Enquanto isto, o Imperador ostentava
a sua coroa e o seu escudo. Tudo era feito para que
os cidadãos se imbuíssem do senso de humildade e
respeito. Deste modo a cultura dos Chous
expandiu-se por toda a China, e a música e os
rituais prevaleceram no país inteiro. Não se
compreende melhor, agora, por que é que no
princípio da Dança de Wu os dançarinos ficam por
tanto tempo em linha, esperando (o tempo
simbólico até os demais governantes seguirem) o
Imperador Wu?"

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Documento Eletrônico produzido pelo Projeto
Orientalismo/UERJ, Brasil. Formato A5; Extensão
PDF; Fontes utilizadas: Adobe Garamond Pro,
Times New Roman, Ms Gothic e Sun Yat-Sen
Hsingshu.
Textos da China Antiga apresenta uma
seleção de fragmentos traduzidos dos mais
antigos clássicos dessa civilização, desde
suas origens até o período da dinastia Han.
Nosso objetivo é ajudar na difusão desse
conhecimento, e familiarizar o leitor com
fontes pouco conhecidas em língua
portuguesa. Todos os textos aqui publicados
estão disponíveis no sítio Textos da China
Antiga, que integra as publicações do
Projeto Orientalismo.

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