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NOVOS ESTUDOS

EM ORIENTALISMOS
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.blogspot.com

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Novos Estudos em Orientalismos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2022. 100 p.
ISBN: 978-65-00-54418-3
História da Ásia; Oriente; Orientalismo; Diálogos Interculturais.

Novos Estudos em Orientalismos


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Sumário
APRESENTAÇÃO, por André Bueno ............................................................................................... 5
DE QUE ORIENTE FALAMOS NO BRASIL? por André Bueno .......................................................... 9
OS SONS DOS DHARMA OS RITOS SONOROS DO BUDISMO TAIWANÊS NO TEMPLO TZONG EM
SÃO PAULO por André Ribeiro .................................................................................................... 17
QUESTÕES SOBRE A IMAGEM DA IGREJA DE SANTA SOPHIA NO MANUSCRITO TCHECO ADD.
24189 (c. 1410) DE VIAGENS DE JEAN DE MANDEVILLE por Jorge Luiz Voloski e Giovanni Bruno
Alves ............................................................................................................................................ 25
APONTAMENTOS SOBRE A HISTÓRIA JAPONESA NO ROMANCE ENSINA-ME A VOAR SOBRE OS
TELHADOS, DE JOÃO TORDO por José Carvalho Vanzelli ............................................................ 32
O MÉTODO CONTRAPONTUAL SAIDIANO E O ESTUDO DA MEMÓRIA NA QUESTÃO DA
PALESTINA por Nina Galvão ........................................................................................................ 40
O ESTAMENTO DOS LETRADOS CHINESES: RELIGIOSIDADE E EDUCAÇÃO NAS CONSIDERAÇÕES
DE MAX WEBER por Rafael Egidio Leal e Silva ............................................................................ 47
FASCISMO JAPONÊS: DISPUTAS EM TORNO DE UM CONCEITO por Ricardo Sorgon Pires ........ 55
VOLTAIRE E A CHINA: DA ESTABILIDADE POLÍTICA A MODELO PARA A EUROPA DO SÉCULO XVIII
por Ricardo Hiroyuki Shibata....................................................................................................... 64
MONTESQUIEU E O DESPOTISMO ORIENTAL NA CHINA por Ricardo Hiroyuki Shibata ............. 70
ENTRE OCIDENTE E ORIENTE: SHAKESPEARE E MONZAEMON por Rodrigo de Sousa Barreto .. 76
DIPLOMACIA, IMAGEM e GUERRA COMO ANTEPAROS HISTÓRICOS E IMAGÉTICOS AOS
OLHARES ORIENTALISTAS SOBRE O JAPÃO (1871-1910) por Rogério Akiti Dezem .................... 83
ANTES DO RECIFE, O PARÁ: A BREVE PASSAGEM DE HEIJI E IKU GEMBA EM UMA
CAMBALEANTE ACARÁ E A POSTERIOR PROSPERIDADE DA PIMENTA-DO-REINO por Ronaldo
Sobreira de Lima Júnior ............................................................................................................... 93

Novos Estudos em Orientalismos


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Novos Estudos em Orientalismos
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APRESENTAÇÃO
por André Bueno
Nunca é excessivo dizer que ‘oriente’ e ‘orientalismo’ são termos em disputa,
constantemente sequestrados pelas mais diversas agendas políticas e
intelectuais. Surgido ao longo do século 18, ele tornou-se sinônimo de
admiração, depois de estereotipização e preconceito, até desdobrar-se numa
possibilidade conceitual polissêmica. Não é possível falar de ‘orientalismo’ sem
lembrar de Edward Said, bem como de seus críticos como Robert Irwin. No
meio desse caminho, o ‘orientalismo’ ainda conheceu vertentes alternativas,
como aquela expressa pelo autor brasileiro Antonio Henriques em seu livro
‘Introdução ao Orientalismo’ [2000]:

É orientalista quem acredita que a filosofia surgiu no Oriente, antes


dos filósofos gregos, É orientalista quem pensa que o pensamento
oriental traz propostas válidas mesmo para o homem ocidental e
contemporâneo. É orientalista quem estuda o Extremo Oriente, quer
do ponto de vista religioso, filosófico, histórico, psicológico,
econômico-social ou político. É orientalista quem crê e cultiva a
relação mestre-discípulo dentro de uma determinada filosofia
oriental, quer tal relação institucionalizada. E, finalmente, é quem
pratica alguma técnica, método ou segue alguma religião ou filosofia
oriunda do Oriente.

Essa definição é assaz interessante para pensarmos que tipos de filiações


defendemos quando estudamos os muitos orientes possíveis. Oscilando entre
o preconceito e a admiração, os brasileiros ainda percorrem visualmente um
panorama de indefinição e estranhamento. Ausentes de seus currículos, as
muitas teorias orientalistas fazem uma falta tremenda na formação
universitária, criando o abismo no qual escorregamos quando nos propomos a
falar sobre tais temas. Ainda que presente, o recurso das redes carece ainda
de trabalhos técnicos mais sofisticados e acessíveis, disponibilizando materiais
superficiais ou pouco abertos a não-especialistas. É nessa brecha, buscando
encontrar a ressonância necessária ao despertar, que Novos Estudos em
Orientalismos surge como uma alternativa a quem busca conhecimento efetivo
e de qualidade numa linguagem acessível e provocante.

Iniciamos então essa apresentação temática com os ensaios sobre o problema


ainda não resolvido em tentar definir um ‘oriente’ acadêmico ou conceitual que
nos sirva de baliza para discussões profícuas e verdadeiramente

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enriquecedoras. Em ‘De que oriente falamos no Brasil?’, o presente autor tenta
delinear algumas contribuições críticas ao debate do termo, envolvendo
autores, linhas e as perspectivas encontradas em nosso país. Em ‘Diplomacia,
imagem e guerra como anteparos históricos e imagéticos aos olhares
orientalistas sobre o Japão (1871-1910)’ o destacado historiador Rogério Akiti
Dezem [autor do referencial livro ‘Matizes do Amarelo’ (2005)] abrilhanta o
presente volume com seu texto sobre a iconografia fotográfica no Japão na
entrada do século 20, e os debates em curso sobre a ocidentalização - ou não -
do país. Já ‘o método contrapontual saidiano e o estudo da memória na
questão da Palestina’ por Nina Galvão, retoma o problema de examinar a
questão palestina sob a ótica conceitual de Edward Said, autor decisivo na
ressignificação da ideia de orientalismo a partir dos anos 1980; ‘O estamento
dos letrados chineses: religiosidade e educação nas considerações de Max
Weber’ por Rafael Egidio Leal e Silva retoma igualmente a interpretação
weberiana sobre a sociedade chinesa, que durante bom tempo influenciou os
paradigmas sinológicos ocidentais; fechando esse bloco, ‘Fascismo japonês:
disputas em torno de um conceito’ por Ricardo Sorgon Pires, analisa a
transplantação possível desse conceito político ocidental para a análise do
caso nipônico, pensando as possíveis interconexões em seu processo
constitutivo.

Em um segundo bloco, os orientalismos são explorados nas relações de


diálogo intercultural na arte e na literatura, como surge no texto ‘Questões
sobre a imagem da igreja de Santa Sophia no manuscrito tcheco add. 24189 (c.
1410) de viagens de Jean de Mandeville por Jorge Luiz Voloski e Giovanni
Bruno Alves, ou no sensível e delicado ensaio ‘Os sons dos dharma os ritos
sonoros do budismo taiwanês no templo Tzong em São Paulo’ por André
Ribeiro, que nos transporta ao mundo musico-meditativo do budismo sino-
brasileiro; ‘Apontamentos sobre a história japonesa no romance Ensina-me a
voar sobre os telhados, de João Tordo’ por José Carvalho Vanzelli é um
instigante estudo sobre a literatura orientalista, que se encontra com o ensaio
‘Entre ocidente e oriente: Shakespeare e Monzaemon’ por Rodrigo de Sousa
Barreto, um trabalho que atiça nossas curiosidades e percepções sobre as
possibilidades de uma interpretação comparativa. Em seguida, o destacado
estudioso Ricardo Hiroyuki Shibata nos brinda com dois ensaios sobre as
relações entre iluministas e o mundo asiático em ‘Voltaire e a China: da
estabilidade política a modelo para a Europa do século XVIII’ e ‘Montesquieu e
o despotismo oriental na China’ revelam-nos duas perspectivas bastante
diferentes sobre a China, e fundamentais para entendermos a formação da
sinologia moderna.

Ao fim, ‘Antes do Recife, o Pará: a breve passagem de Heiji e Iku Gemba em


uma cambaleante Acará e a posterior prosperidade da pimenta-do-reino’ por
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior, nos traz uma passagem histórica importante
sobre os japoneses no Brasil, explorando sua multifacetada presença em
nosso país.

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Para fecharmos essa nossa breve apresentação, desejamos ponderar sobre
uma das raras concessões que Francisco Antônio de Almeida Júnior, cientista,
astrônomo e viajante do Brasil imperial fez em seu livro ‘Da França ao Japão’
[1879], ao passar pelo Egito e considerar, de fato, a importância oriental na
gênese das civilizações:

[...] Ficará a satisfação da nossa curiosidade para quando


voltarmos do Oriente, já habituados com os costumes orientais e as
emoções de viagem; e, como dizem que a civilização partiu do
Oriente, não será sem interesse procurarmos seus vestígios d’este
extremo ao ocidente; e sendo o método indispensável a todos os
projetos que o espírito humano pode conceber, aproveitaremos da
viagem de ida para desprevenidos recebermos as impressões, e
durante a volta coordenaremos os fatos e deduziremos as nossas
observações sobre o grão de desenvolvimento de cada povo, sob o
ponto de vista da moderna civilização. Assim, esta segunda visita
pelos mesmos países servirá para corrigirmos os nossos primeiros
juízos, com o único fim de restabelecermos a verdade, muitas
vezes adulterada peia imaginação ardente e entusiástica de alguns
viajantes, ou pela exageração de outros, que julgam assim, tornar
mais interessante a descrição viciada de suas viagens.

Ele nunca faria a segunda viagem, e nunca aproveitou a oportunidade de


construir melhores opiniões; mas podemos superar esse orientalismo de
‘melhores intenções’ e sermos realmente conhecedores da irmandade humana
que se espalha pelo mundo. Desejamos uma ótima leitura!

André Bueno
Primavera, 2022

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TEXTOS

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DE QUE ORIENTE FALAMOS NO BRASIL?
por André Bueno

Gostaria de começar esse texto contando uma anedota que vivenciei ao longo
dos meus anos como professor e sinólogo. Uma vez, participei de um evento
de história no qual tive oportunidade de discutir algumas das questões
relacionadas ao ensino das culturais ‘orientais’. No final, um dos professores
que estava neste encontro disse que também se interessava muito pelo estudo
do ‘Oriente’. Quando perguntei o que ele gostava de estudar, ele respondeu
prontamente: ‘Uruguai’. Visto assim, parecia apenas um chiste; mas ele falava
sério, e seu comentário foi uma abertura importante para refletir sobre o que
chamamos de ‘Oriente’, e o que isso poderia vir a significar.

Afinal, ‘Oriente’ já foi mais do que um espaço geográfico, esta palavra já foi
usada como um conceito denominador. A República Oriental do Uruguai tem
esse nome pois era a ‘banda oriental’, ‘o outro lado do Rio Prata’ em relação a
Argentina – aliás, os argentinos denominaram suas províncias nordestinas,
localizadas entre o rio Paraná e o rio Uruguay como ‘Mesopotâmia Argentina’.
Ou seja, o uso de ‘Oriente’, nesses casos, não tem a ver com o espaço
geográfico ou cultural da parte ‘Oriental’ do mundo, mas com a ideia de ser ‘um
outro lado’. Na geografia do Brasil, já existiu a denominação ‘Amazônia
Oriental’, bem como no mesmo século 19, o Barão de Marajó não tinha receio
de comparar o rio Amazonas ao Nilo [Abreu, 1874-1876]. Essa noção parece
ser ainda mais ampla. Indo a outro extremo, Konrad Adenauer, chanceler da
Alemanha Ocidental entre 1949-1963, ficou famoso por murmurar a palavra
‘Ásia’ sempre que atravessava o rio Elba em direção ao ‘Oriente’ [Buruma,
2006, 56] – Alemanha, inclusive, que seria dividida entre ‘Ocidental’ e ‘Oriental’
[assim chamadas em português e espanhol] até 1989. Quero comentar ainda
mais um último deslocamento: em um dos cursos em que lecionei história do
Extremo Oriente na graduação, tive que lidar com a argumentação de um aluno
que, não bastasse a tentativa de querer reaproveitar um trabalho já feito,
insistia igualmente que seu texto era sobre ‘Oriente’. O tema? Austrália...

Essas breves considerações servem para que possamos ponderar sobre o que
significa ‘Oriente’ para um estudante brasileiro. A palavra representa um
horizonte abstrato e impreciso, que inclui qualquer país do norte da África até o
Japão. Mário Sproviero [1998] propôs, em um breve texto, que a demarcação
Ocidente-Oriente passa por várias etapas, que incluem critérios culturais,
etimológicos e geográficos, entre outros. O autor encerra seu texto afirmando:
‘Para o mundo globalizado de hoje é premente um conhecimento recíproco

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profundo entre Oriente e Ocidente. O ponto de partida deve ser uma
demarcação clara do que sejam os três Orientes e o Ocidente em suas
unidades e oposições’. Contudo, quem define essas demarcações e
oposições? O próprio ‘Oriente’ é uma entidade móvel, em seus vários
aspectos, no imaginário dos brasileiros. Cláudio Pinheiro [2015] nos mostrou
que, para os latino-americanos, a cartografia imaginária da Ásia se transforma
ao longo das décadas, e a definição desse ‘outro oriental’ varia segunda a
época e o contexto geopolítico.

Por essa razão, e de forma que consideramos acertada, Boaventura de Sousa


Santos nos diz que

‘Do ponto de vista do Ocidente, o Oriente é a descoberta primordial


do segundo milénio. O Ocidente não existe fora do contraste com o
não-Ocidente. O Oriente é o primeiro espelho da diferença neste
milénio. É o lugar cuja descoberta descobre o lugar do Ocidente: o
centro da história que começa a ser entendida como universal. É
uma descoberta imperial que em tempos diferentes assume
conteúdos diferentes. O Oriente é, antes de mais, a civilização
alternativa ao Ocidente’ [Santos, 2002]

O ‘Oriente’ precisa, então, ser definido, ou redefinido. Mas como fazê-lo, de


modo a não ser excludente, preconceituoso ou racista? E não será a própria
tentativa de definir ‘Oriente’ uma estratégia de distinção? Afinal, existem
movimentos de impacto mundial que tem o ‘Oriente’ como berço: o
Cristianismo, por exemplo, nasce em Israel, mas poucos lembram-se dele
como uma religiosidade oriental. O ‘Oriente’ continua a ser, portanto, uma
definição móvel, aplicada ao que ser pretende antitético a uma noção de
‘Ocidente’. Em 1979, Edward Said [1998] lançou as bases para uma
desconstrução crítica da noção de ‘oriente’, como parte de um esquema
narrativo colonialista de subjugação e desvalorização cultural, ponto mais
recentemente retomando por Gayatri Spivak [2018]. Como exemplos, Cheik A.
Diop [1989] demonstrou de que maneira a Egiptologia serviu durante muito
tempo a agenda imperialista europeia, e a civilização egípcia foi subtraída de
suas origens africanas. As Culturas antigas do Egito e da Mesopotâmia foram
inseridas numa cronologia histórica em que serviam de suporte a ascensão do
mundo Greco-romano e da religiosidade monoteísta de Israel. Autores como
George James [2022], Martin Bernal [1991] e Jacky Goody [2008 e 2011]
propuseram que as influências afro-asiáticas no mundo antigo clássico do
Mediterrâneo são muito mais profundas e decisivas do que usualmente é
apresentado, e isso implica numa necessária revisão na maneira como
estamos escrevendo a história global. Ainda assim, o termo ‘oriente’ foi
continuamente sequestrado nas dimensões do debate acadêmico [Costa,
2022], discutido como uma concepção conceitual europeirizante [Siary, 2001;
Markovits, 2013] e extensamente utilizado dentro de uma agenda colonial,
como evidenciaram Pierre Gourou [1953] e Phillipe Pelletier [2011]. No mesmo
sentido, autores como Samuel Huntington [1997] e Niall Ferguson [2017]
propuseram que as diferenças entre um ‘ocidente’ e o ‘oriente’ passam desde

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elementos civilizacionais até questões de cunho epistêmico e cognitivo, o que
implica em conflitos culturais, sociais e na existência de abismos para o diálogo
intercultural.

Contudo, a redescoberta das relações comerciais e culturais entre ‘Ocidente’ e


‘Oriente’ – como analisadas em André Bueno [2002], Raul Mclauglhin [2012] e
Peter Frankopan [2019] – demolem a ideia da compartimentação histórica das
civilizações na antiguidade, e forçam a reescrita de uma história global. Se a
integração entre os povos é mais ampla do que aprendemos, então, quando
falamos de ‘Oriente’, de que ideia estamos realmente falando? Quem, ou o
que, representa o nosso ‘Oriente’?

Nesse breve texto, eu gostaria de discutir algumas questões sobre como esse
termo – e outros conexos, como ‘Ásia’ – têm sido utilizados no ambiente
acadêmico brasileiro, muitas vezes dificultando o nosso entendimento sobre o
que é ou não ‘oriental’. Gostaria ainda de discutir a sua validade como
referência geográfica, cultural e epistemológica, no que diz respeito ao
problema do ensino universitário. Afinal, um dos problemas cruciais nos
estudos da antiguidade no Brasil é compreender as nossas heranças orientais,
das quais os acadêmicos muitas vezes se sentem afastados. A tensão
existente entre as leituras universitárias e as dimensões do ‘Oriente’ no
imaginário popular dão azo a uma importante discussão sobre como
precisamos – e devemos, urgentemente – trazer os muitos ‘Orientes’ antigos
para a sala de aula.

Um ponto de partida: um ‘Orientalismo’ brasileiro?


Para começarmos nossa discussão precisamos, portanto, pensar em como os
brasileiros conceberam a ideia de um ‘Oriente’ em algum momento da nossa
história. Esse ponto é bastante importante: segundo Mafra e Stallaert [2016] o
Brasil desenvolveu, ao longo do século 19, formas próprias de olhar para os
‘orientais’. Vivíamos com a presunção de sermos uma sociedade
europeurizada, e ao mesmo tempo, resultante da mestiçagem de portugueses,
africanos e indígenas. Nosso olhar sobre o ‘Oriente’ oscilava entre o fascínio e
a repulsa pelo outro, entre a admiração por essas culturas milenares e a
concordância com o projeto imperialista europeu, que impunha aos asiáticos
um degrau inferior na hierarquia imaginária das culturas. Essa indecisão se
reproduziu nas imagens sobre os ‘orientais’ em nossa sociedade.

Para citarmos alguns exemplos: Pedro II, imperador do Brasil, foi um


respeitado orientalista, que viajou ao Egito e realizava traduções do hebraico,
do árabe e do sânscrito [Bediaga, 1999 e Pedro II, 2020], e autorizou a primeira
missão brasileira na China em 1880 [descrita no livro iniciador da Sinologia
brasileira, A China e os chins de Henrique Lisboa [1888]]; ao longo do século
XIX e início do XX, monumentos como Pavilhão Mourisco na praia de Botafogo
ou o mirante da Vista Chinesa [ambos no Rio de Janeiro] revelavam a
admiração pelo ‘exotismo oriental’, que se estendeu ao longo de décadas, com
a tradução de várias obras literárias como de Lin Yutang, Rabindranath Tagore
ou a Coleção Rubayat [Bueno, 2019]. Uma das expressões máximas desse

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fascínio foi o surgimento de Malba Tahan [pseudônimo do professor de
matemática Julio Cesar de Mello e Souza, 1895-1974], que produziu uma vasta
e riquíssima literatura de inspiração ‘orientalizada’ [confira o sítio com as obras
desse autor ao final, nas referências].

Por outro lado, uma parte da sociedade brasileira refutou enfaticamente a


presença ‘oriental’ no país. A partir da segunda metade do século XIX, o
projeto de trazer chineses para trabalhar no Brasil foi sistematicamente
combatido, pelo medo do ‘contágio racial e cultural’. Expoentes intelectuais do
país, como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Machado de Assis se
puseram firmemente contra essas iniciativas, usando argumentos dos mais
variados gêneros – incluso, afirmações de cunho racista e preconceituoso
contra os ‘orientais’ [como apontando por Lesser, 2001, Dezem 2005 e
Czepula, 2020]. No início do século 20, as leis de imigração eram
discricionárias, e se tornaram especialmente discriminatórias no período pré e
pós segunda guerra mundial [Carneiro, 2018]. Não houve a abertura de um
espaço específico para o ensino das histórias orientais nas universidades
[salvo alguns poucos cursos de árabe ou japonês], e as tradições culturais
dessas mesmas civilizações seguiram como o objeto de estudo de
especialistas solitários. Aos personagens asiáticos, bem como aos seus
descendentes, coube um difícil e complexo entre-lugar no panorama social
brasileiro, que continuamente oscila entre a assimilação e a exclusão exógena,
aos quais se imputam caracteres racialistas que já deveriam estar superados –
mas movimentos no sentido de combater essas ideias tem surgido, como
mostram Daniel Veras [2021] e o Coletivo Outra Coluna [2022].

Orientes ausentes
Essa dicotomia surgiu em meio ao próprio problema de formação da identidade
cultural brasileira. Autores como Gilberto Freyre [2003], José Roberto Leite
[1999], José Amaral Lapa [1968], Philomena Antony [2013] e Ana Paulina Lee
[2018] já demonstraram cabalmente o quanto o Brasil era afro-asiático antes da
vinda de Dom João VI e da família real para o país em 1812, e o subsequente
projeto de europeurizar os trópicos. Isso se refletiu diretamente na formação de
nossos currículos escolares e universitários. A disciplina de História ficou
fortemente vinculada ao currículo francês, incorporando no estudo da
antiguidade o mundo clássico Greco-romano. A ‘Antiguidade Oriental’
permaneceu subjacente a esse quadro, tornando-se uma especialidade de
poucos estudiosos como Emanuel Bouzon [nos estudos mesopotâmicos] e Ciro
Flamarion Cardoso [Egito]. Note-se que a dimensão dada o ‘Oriente’, nesse
sentido, delimitava-se geograficamente ao norte da África e a região do
Levante, excluindo as demais civilizações do leste. Outro elemento importante
é que, temporalmente, esses núcleos eram analisados somente no período da
antiguidade; a estrutura universitária não demonstrava qualquer interesse ou
preocupação em questões de continuidade histórica, como se as civilizações
de Grécia e Roma ‘encerrassem’ a participação ‘oriental’. Nesse meio tempo,
apenas Mário Curtis Giordani publicou, em 1963, o livro História da Antiguidade
Oriental, no qual eram feitas apresentações gerais das civilizações orientais,
incluindo aí Índia e China; para além disso, a literatura sobre essas civilizações

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era escassa, e obras como a de Ricardo Joppert [sobre China antiga], José
Yamashiro [Japão] ou de Carlos Alberto da Fonseca [Índia] eram praticamente
exceções. Com isso, a negação do outro asiático tornou-se paradigma de um
projeto de identidade nacional eurocentrado e excludente.

Conclusões
O que esse quadro significa para nós? Numa visão tradicional da cultura
brasileira [e ainda vigente em vários setores de nossa sociedade], o ‘Oriente’
segue como um conjunto indistinto de povos e línguas, arrumados em troncos
mais ou menos genéricos [tais como ‘árabes’ ou ‘japonês], sobre os quais paira
um interesse superficial e relativamente oportunista. As produções literárias
surgidas ao longo do século 20 destinavam-se a um público aberto a diálogos
culturais mais amplos, mas sem preocupações de especialização – o que fez
com que não houvesse a formação de uma base escolar de interesse nesses
temas. Nas universidades, um grupo restrito de especialistas dedicou-se a um
aprofundamento nesses estudos, mas as dificuldades de difusão de
conhecimento próprias de nossa sociedade criaram um hiato entre o trabalho
dos pesquisadores e o público geral. Essa situação acaba criando questões
contraditórias. Por exemplo, o sucesso de novelas televisivas como O Clone,
Caminho das Índias ou Dez Mandamentos mostra um público avidamente
interessado em história ‘orientais’; mas qualquer telespectador que se decida a
entrar na universidade para aprofundar seus conhecimentos enfrentará
dificuldades em achar um curso que responda a sua demanda. Essa é apenas
um dos muitos pontos de atrito que poderíamos elencar; há diversos aspectos
que atraem o público ao estudo do ‘Oriente’, ainda que de modo superficial,
mas que não encontram ressonância no ambiente acadêmico. De certa forma,
pois, a ideia de ‘Oriente’ continua sem um aprofundamento, sem uma distinção
clara no âmbito do imaginário e das tradições brasileiras. As manifestações
xenofóbicas, resultantes do contexto da Pandemia em 2020, testemunharam
um aumento expressivo de ataques aos descendentes de asiáticos no país –
simplesmente porque os agressores não conseguem distinguir chineses de
outros povos do Extremo Oriente, e ainda convivem com ideias arcaicas,
racistas e preconceituosas em relação aos ‘orientais’ [Raff, 2021 e Sayuri,
2021]. Da parte do Orientalismo brasileiro, portanto, parece que o trabalho está
feito, com todas as péssimas consequências que o desconhecimento e o
interesse superficial têm promovido. Por essa razão, é preciso pensar que
‘outros orientes’ são possíveis de serem discutidos e analisados em nosso
contexto cultural.

Referências
André Bueno e Prof. Adj. De História Oriental da UERJ.

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Novos Estudos em Orientalismos


16
OS SONS DOS DHARMA OS RITOS SONOROS DO
BUDISMO TAIWANÊS NO TEMPLO TZONG EM SÃO
PAULO por André Ribeiro

Música e budismo: o caminho sonoro da iluminação


Todos os dias, às 5 horas da manhã, no coração do bairro da Vila Mariana, em
São Paulo, vê-se um vulto percorrer as laterais de um edifício oriental. Vestindo
um robe marrom com uma manta laranja sobre o ombro direito, ele sobe dois
lances de uma escadaria espiralada e chega num amplo terraço, às portas de
um grande salão, e lá desperta o dia com seis badaladas numa pesada placa
de madeira, apontando-a em todas as direções.

Após repetir três vezes este ritual ele entra pelas portas do templo e dá início à
cerimônia: batidas de sinos e tambores em pulso lento, solene, e um canto leve
feminino suave projeta-se sobre as casas. É o início da cerimônia budista que
abre todas as manhãs e desperta a vizinhança a volta do templo Tzong Kwan.

Os ritos sonoros representam a parte intangível na história da humanidade. No


budismo são chamados “Sons do Dharma”. Eles servem para organizar e
traduzir os múltiplos sentidos do pertencimento em comunidade em vista de um
objetivo comum: a iluminação espiritual. Pertencer a uma comunidade budista,
em busca de um caminho espiritual, significa aderir ao conjunto de práticas e
rituais que a sustentam, sendo uma delas a música, ou mais especificamente,
o canto devocional.

Nos usos dados à voz cantada encontra-se uma ciência ancestral dos sons,
que envolve de um lado a vocalização de textos sagrados e, de outro, o uso de
ambiências sonoras providas por instrumentos de percussão, tais como sinos,
gongos e tambores. Via de regra, é dessa combinação entre voz e percussão
que os ritos e cerimônias budistas cumprem a função de conectar as pessoas à
prática espiritual.

Monges na antiguidade conheciam perfeitamente bem o poder de


harmonização que a música vocal oferece à prática religiosa. Do ponto de vista
dos ritos, eles sabiam que, assim como a música conduz os praticantes por
sucessivos estados emocionais, ela também organiza o espaço de modo
harmônico. Não é a toa que as tradições budistas fazem uso conjugado da
música com caminhadas pelo salão, entoando mantras e orações — e que hoje
ainda assistimos nos templos paulistanos de tradição chinesa, como Templo
Tzong Kwan e Templo Zu Lai (Cotia).

Novos Estudos em Orientalismos


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Cada corpo se movimentando e cantando no salão é uma fonte de energia
vocal — e do conjunto resulta uma enorme potência sonora. Combinada aos
toques esparsos e percutidos dos sinos e tambores, o espaço musical ganha
uma aura mágica extraordinária. E por isso mesmo de grande envolvimento
psicológico.

Grande parte dos ritos e cerimônias budistas envolvem a espacialização


sonora a partir dos instrumentos de percussão, às vezes, incluindo até mesmo
sopros (flautas e oboés), como no caso das tradições tibetanas, repercutindo
no espaço arquitetônico e criando um ambiente sonoro todo envolvente. Um
exemplo muito famoso vem do “Templo da Sabedoria Alcançada” — em chinês
Zhìhuà Sì 智化寺 — que fica em Beijing. Há décadas, pesquisadores europeus
e norte-americanos vêm estudando a mística em torno da música feita neste
templo ancestral.

Dessa ambiência construída surge uma imagem sonora rica e precisa na


coordenação ativa das vozes, flutuando entre incensos, pelo que cada
indivíduo se conecta com o todo. Ao menos essa concepção é bastante
marcada nas caminhadas meditativas, no uso das vestimentas, no gestual
mínimo produzido para obter o máximo de efeito ritualístico.

Os sons e a música
Muito em virtude desse uso canalizado da música, por razões ligadas à
doutrina budista, que, em geral, os textos distinguem a música mundana da
espiritual, conferindo a esta última um status sonoro único. A música mundana
entretém, é um tanto passiva; ao passo que a música espiritual cria uma
realidade ativa e benéfica para a prática espiritual.

Da música espiritual diz-se “Sons do Dharma”. Trata-se de uma expressão que


significa também o ‘coração da prática musical budista’ — de um lado o
aspecto devocional expresso em melodias sinuosas como os incensos
pairando no ar, de outro a rítmica precisa e coordenada das vocalizações de
mantras e sutras, que no geral são recitações que fazem uso particular da voz
num misto de fala e canto.

Fruto de uma época em que o homem deveria buscar harmonia com o cosmos
por meio da prática religiosa, a música budista também é vista como
pertencendo à categoria das manifestações celestiais. No budismo Terra Pura
de tradição chinesa, por exemplo, o paraíso budista é descrito como um lugar
profundamente musical no qual o Dharma (a lei budista) assume a forma de
melodias deslumbrantes:

“Naquela terra, existem milhares de variedades de música


espontânea, que são todas, sem exceção, sons do Dharma. São
claros e serenos, cheios de profundidade e ressonância, delicados
e harmoniosos; eles são os sons mais excelentes em todos os
mundos das dez direções.” (Sutra da Vida Infinita)

Novos Estudos em Orientalismos


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Prática de imersão
Em termos da realidade vivenciada por nós seres humanos, na tradição
intelectual budista a música é vista como um fenômeno mental flutuante, fruto
de nossa percepção. Sendo algo intangível, ela existe tão somente em nossa
percepção interna, por assim dizer, em nosso campo sensorial. Por isso alguns
mestres dizem que a nossa percepção atrelada aos sentidos (tato, visão, olfato,
paladar e audição) produz a nossa realidade a cada instante.

Isso porque no Budismo tudo inicia e termina na mente. Todas as coisas e


fenômenos são impermanentes, e sua durabilidade é apenas aparente. E
assim, elas dependem de causas e condições que em última instância são
sempre transitórias. Logo, nossas impressões incompletas e fugazes são as
únicas bases de nossa experiência perceptiva, e por extensão, ilusórias.

Mas isso não significa que tudo seja fruto de um grande fenômeno ilusório. O
monge gaúcho Lama Padma Santem ilustra bem essa visão — para ele: “Tudo
o que é visto, é visto pela mente, e tudo o que é visto pela mente é, na
verdade, a mente vendo a si própria, vendo as imagens e objetos por ela
mesma geradas”.

Neste contexto, pelas lentes do budismo, a música é um fenômeno intangível e


transitório — não existe por si só. Ela depende inteiramente de nossa
percepção para existir. A maneira como a apreciamos e nos portamos diante
dela vem de nossa projeção mental a respeito da realidade à volta.

Nem por isso a música deixa de ter grande efeito sobre o nosso organismo. Na
verdade, ela é uma potência genuinamente humana (e paradoxal) de buscar
por meio dos fenômenos intangíveis um contato duradouro com a realidade,
como também aproximar pessoas e beneficiar a coletividade de um senso de
pertencimento forte e constante.

O silêncio e a mente
Devido a essa prevalência do signo mental, que a doutrina budista imputa a
toda experiência humana, os ritos sonoros budistas, acredita-se, contém
propriedades salutogênicas. Isso porque eles são produzidos por meio do
esforço autêntico e coletivo das mentes budistas (monges) reunidas em ato
cerimonial. Entretanto ― e eis a singularidade que distingue os ritos sonoros
budistas de outras práticas religiosas ― o que define, produz e condiciona o
rito sonoro é o exercício de uma mente ativa orientada aos sons produzidos no
silêncio da concentração mental.

No início das cerimônias, os monges da tradição chinesa Ch’an do Templo


Tzong Kwan, mentalizam sons com a finalidade de condicionar suas mentes e
corpos ao exercício religioso. Cada som particular, internalizado mentalmente,
renasce em intenção como produto livre dos carmas existenciais anteriores;
vale dizer, livres dos sentimentos danosos que impedem o caminho da
liberação. É o canto silencioso que anima ritmicamente as batidas percussivas

Novos Estudos em Orientalismos


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em sinos e tambores. Portanto, é a paisagem sonora que realmente surge da
mente silenciosa como criação da mente.

Via de regra, todos os dias antes da cerimônia, os monges cantam


silenciosamente essas quatro linhas do Avatamsaka Sutra 華嚴經 “Se alguém
deseja entender tudo sobre todos os Budas dos Três Reinos, deve contemplar
a natureza do Domínio do Dharma. Tudo é criação da mente.” Para além de
suas implicações conceituais concernentes à doutrina budista, a prática tem
uma função biológica que liga o som ao silêncio.

O canto silencioso visa ajustar o ritmo biológico dos monges e participantes ao


pulso espiritual da cerimônia materializado através da percussão. A vibração da
percussão, realizada por um monge experiente, transmite calma reduzindo os
batimentos cardíacos de acordo com as crenças budistas sobre as
propriedades salutogênicas dos sons do Dharma. Os golpes de percussão
seguem a pronúncia silenciosa daquelas quatro linhas (do Avatamsaka Sutra).
Precisamente os acentos rítmicos prosódicos.

Em termos simples, esta prática reflete uma ligação espiritual entre som e
silêncio (fenômenos) feita por um conjunto de mentes orientadas para o rito. E
no contexto do budismo chinês, ambos dão origem ao que é
convencionalmente chamado de Sons do Dharma – sons livres de intenções
mundanas. Este conceito da mente produzindo sons puros e espirituais na
cerimônia se estende além do indivíduo, monge ou leigo.

Corpos, sons e espaço


Entre os membros da comunidade, há uma forte crença de que força sonora
das escrituras cantadas se estende para além do Salão do Buddha para ajudar
a aliviar todos os seres vivos em sofrimento — por meio de uma projeção
geográfica imaginativa. A vizinhança, cidade, estado, nação, mundo são
visualizados por cada participante, enquanto eles se tornam corpos de som
transmitindo as boas qualidades próprias do Dharma.

Como ambos são sagrados, o corpo (transmitindo os sons do Dharma) e a sala


(espaço que proporciona ressonância), acredita-se que a força de sua aura
salutogênica se propaga além dos limites físicos da realidade. Inclusive
alcançando e beneficiando os mundos espirituais, cheios de almas perdidas e
sofredoras:

“Se ele [monge] desejar: 'Que eu exerça os vários tipos de poder


espiritual: tendo sido um, possa me tornar muitos; tendo sido
muitos, que eu possa me tornar um; que eu apareça e desapareça.
passar sem obstáculos através de uma parede; através de uma
muralha; através de uma montanha, como se atravessasse o
espaço; mergulhar dentro e fora da terra como se fosse água;
andar sobre a água sem afundar como se fosse terra; viajar pelo
céu como um pássaro sentado de pernas cruzadas; tocar e
acariciar com minha mão a lua e o sol, tão poderosos e poderosos;

Novos Estudos em Orientalismos


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exercer domínio com meu corpo até o mundo brahma' (...) Se ele
[monge] desejar: 'Com o elemento ouvido divino, que é purificado e
supera o humano, que eu possa ouvir os dois tipos de som, o
divino e o humano, esses são tão distantes quanto próximos' - ele
alcança a capacidade de realizar esse estado pelo conhecimento
direto, sempre que as condições necessárias se reúnem”.
(Anguttara Nikaya 3:100 §§-10; I 253-56).

Pertence à crença budista a noção de que a mente em harmonia com o corpo


ressoa no ambiente a volta. Um monge cuja formação espiritual é elevada, em
geral, manifesta uma relação cultivada no espaço cerimonial, na forma de
sentar, prostrar, andar e carregar instrumentos musicais, além de manter o
salão em ordem. A conduta virtuosa decorre do esforço espiritual de cada
monge para alcançar a serenidade e assim fazê-la ressoar no ambiente, o que
por sua vez amplifica as boas qualidades em outros monges durante o
exercício adequado. Desse modo, a qualidade da energia colocada no
ambiente influencia positivamente o ritual em ação.

Para conseguir isso, nas cerimônias diárias, a prática comum entre os monges
define que as vozes devem moldar um único corpo sonoro que reflita a mente
como um fenômeno orientado ao desdobramento da energia espiritual através
do tempo e do espaço.

Assim, a mente precisa estar ciente das influências externas sem ser
permeada por estas. Ao mesmo tempo, deve-se convergir a leitura de textos, e
seus diferentes significados, conteúdo emocional, à projeção vocal em uma
concentração sonora equilibrada, mas dinâmica.

Isso significa que no ato preliminar de se preparar espiritual e mentalmente


(através da recitação silenciosa), cada monge e atendente visa fixar sua mente
em um único ponto convergente para a realização da cerimônia. Para resumir,
uma quantidade extraordinária de energia mental concentrada (em harmonia
com as qualidades de resposta do corpo) é colocada no salão do templo.

Com efeito, os ritos instauram uma diferença ontológica, importante no


processo de subjetivação efetuado pelos praticantes ao distinguir dois os tipos
de música (ou sons), como consequência de uma mente coletiva: uma música
que nasce da experiência mundana, marcada por sofrimentos, de um corpo
afligido pela experiência do viver, e outra produzida por uma mente coletiva
espiritualizada como imaterial, por definição, livre das angústias da vida.

A mente musical
Havendo uma música mundana e outra espiritual, a nós inacessível, é justo ao
meio, conectando ambas, que a música budista se localiza. Ele é a ponte entre
duas realidades, também chamadas “duas verdades”: a realidade
‘convencional’ do homem comum, não-iluminado, e a realidade última
alcançada somente pelos Budas.

Novos Estudos em Orientalismos


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De certa maneira a música é um elemento de passagem de um estado de
percepção a outro. E assim, somente aquele que ‘desperta da ignorância’
(sentido literal da palavra Buddha) é capaz de ouvir as melodias maravilhosas
do Dharma e com elas se deslumbrar.

Seguindo a leitura das mitologias budistas fica claro que a nossa mente
comum, presa às condições mundanas de existência, é incapaz de perceber, e
até mesmo conceber, os sons do Dharma expresso nos sutras. Com isso,
torna-se claro também que a música é uma interpretação, se bem que
sofisticada, de nossos sentidos. Apreciá-la é uma habilidade conquistada pelo
exercício subjetivo da escuta e prática do canto.

Vai daí também o sentido de pertencimento que ela suscita, pois, em último
caso, é pelo exercício, recitando sutras e mantras, que o praticante poderá
auxiliar o seu próprio processo de iluminação e nele encontrar o sentido de sua
existência:

“Todos os seres, sejam do céu ou dos reinos humanos, homens ou


mulheres, do presente ou do futuro, que cantarem o nome de um
dos Budas, ganharão méritos imensuráveis. Eles obterão grandes
benefícios durante a vida ou mesmo após a morte. Eles nunca
serão lançados no estado maligno dos sofrimentos.” (Sutra de
Ksitigarbha)

É neste exercício de busca por um sentido para a nossa existência que a


música budista se torna uma ferramenta de prática, ao mesmo tempo em que
traz aos praticantes a convicção íntima de que eles não são os primeiros a
cantar, recitar, ouvirem tocar os sinos, tambores e gongos. Muitos outros antes
deles desempenharam os mesmos ritos e se envolveram de maneiras
semelhantes com as cerimônias.

A beleza dessa visão, que convida a contemplar toda uma linhagem ancestral,
está no momento em que cada um se conecta musical e sonoramente, uns
com os outros, e assim ficando um pouquinho mais perto — e quem sabe
desperto — para a celebração de uma vida conjunta que pulsa, existe e canta a
si própria buscando algo de melhor. Afinal, os Sons do Dharma, estão por aí,
despertando, celebrando e encerrando todos dias.

Ao cair da tarde o véu arroxeado se estende do horizonte, e mais uma vez


vemos aquele robe marrom com a manta laranja derramada sobre o ombro
direito; ele sobe as escadas espiraladas para encerrar o dia, dessa vez,
percutindo o sino invertido, justo ao altar, com uma pesada clava de madeira
encapada com um couro estofado rígido, ele percute uma vez, e duas no
tambor, e mais uma vez, e três no tambor, e tem início o canto leve e
meditativo anunciando o véu anoitecido que cai no horizonte das casas da Vila
Mariana. Entra na noite com halo sonoro de recolhimento até o nascer do sol
de todas as manhãs do mundo.

Novos Estudos em Orientalismos


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Os instrumentos do templo
Das três pesadas portas entramos pela da esquerda, e nos encontramos diante
de um piso de madeira reluzente com almofadas e estantes pequenas de livros
para apoiar os livros sagrados distribuídos pelo assoalho. Olhando para cima
encontramos um grande tambor vermelho suspenso no teto, este também
vermelho, feito de uma grande treliça de 480 quadrados, cada um com o
símbolo da Roda do Dharma em alto relevo.

Agora, se entramos pela porta da direita, a mesma cena: no lugar do tambor


um pesado sino de metal suspenso — o “Sino da Essência”, assim chamado
por causa das inscrições em ferro fundido do “Sutra ou Discurso da Essência”,
também chamado “Sutra do Coração”.

Ambos instrumentos musicais são tocados apenas duas vezes ao ano: durante
a Cerimônia de Nascimento, Nirvana e Morte de Buda (o Vesak) e durante a
Cerimônia dos Antepassados — 108 badaladas estremecem o salão nessas
ocasiões.

A grande porta central (uma porta dupla) é reservada apenas aos monges e
alguns discípulos treinados nas cerimônias. Quando abertas aos domingos
temos uma vista ampla do salão com o altar ao fundo, tendo do lado direito um
sino grande, depositado em cima de uma mesa alta, que dá a impressão de
estar de cabeça para baixo (um sino invertido), e do lado esquerdo um
instrumento de percussão esculpido em madeira na forma de um peixe gordo e
arredondado, e que se assemelha muito a um tamborzão oco de madeira.
Quando tocado produz um som grave e calmante — serve para marcar o ritmo
dos cânticos, ao passo que o sino invertido é tocado para delimitar as sessões
dos textos e dizer quando começa e acaba a recitação.

Há ainda os pequenos instrumentos de percussão de mão: um sininho que um


dos monges segura rente ao peito, e toca nos momentos de prostração diante
do altar. Há também um modelo menor do peixe de madeira, e que serve para
marcar os passos das caminhadas meditativas no salão. Todos esses
instrumentos são ricos em simbologia e sua posição espacial no salão, não
raro, corresponde aos antigos princípios do Feng Shui.

Porém, os instrumentos do Dharma não se restringem ao Salão do Buda. No


refeitório, no subsolo, há um gongo consideravelmente grande, pendendo do
teto justo a porta de entrada, e que muito se assemelha a um penduricalho no
formato de âncora, que é tocado cinco minutos antes das refeições. Serve para
convidar os praticantes a sentarem-se na mesa, como também observarem o
silêncio para os agradecimentos aos cozinheiros do dia.

Referências
André Ribeiro é professor de musicologia da Universidade de Brasília (UnB),
músico, compositor e etnomusicólogo pela Universidade de São Paulo (USP).
Instrumentista de guqin, sob a orientação de Peiyou Chang 張培 幼 e tem como
mentor o Mestre Yuan Jung-Ping 袁 中平 da Taipei Qinhall). Coordenador do

Novos Estudos em Orientalismos


23
grupo POEM Poéticas Orientais em Música, vinculado ao programa de pós-
doutorado do Departamento de Música da Universidade de São Paulo. É
pesquisador do LINE (Laboratório Interdisciplinar de Estudos do Som) na
Universidade de Brasília. Co-fundador e diretor da Guqin Brazil Association
巴西古琴協會 (2019), e diretor musical do Gaoshan Liushui Ensemble 高山流水
de música chinesa desde 2012 e membro da New York Qin Society. É ainda
pesquisador na comunidade chinesa em São Paulo, onde conduz pesquisas
etnográficas sobre música budista, seus ritos e cerimônias, na comunidade do
Templo 中觀寺 de Tzong Kwan.

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Music: From Ritual to Rock Mantra. Ethnomusicology, Vol. 49, No. 2
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Pi-yen Chen. The Chant of the Pure and the Music of the Popular: Conceptual
Transformations in Contemporary Chinese Buddhist Chants. Asian Music, Vol.
35, No. 2 (Spring - Summer, 2004), pp. 79-97

Novos Estudos em Orientalismos


24
QUESTÕES SOBRE A IMAGEM DA IGREJA DE SANTA
SOPHIA NO MANUSCRITO TCHECO ADD. 24189 (c.
1410) DE VIAGENS DE JEAN DE MANDEVILLE por
Jorge Luiz Voloski e Giovanni Bruno Alves

Introdução
No começo do livro Viagens de Jean de Mandeville, o autor se apresenta como
cavaleiro, nascido na Inglaterra, na cidade de St. Albans, que viajou para o
além-mar no ano de 1322. Enquanto no final do texto, afirma que regressou à
Cristandade a contragosto “(...) por causa de uma artrite gotosa. Sendo
obrigado a descansar, recordei o passado, compilei essas coisas e as coloquei
por escrito, do modo como pude lembrar-me, no ano da graça de 1356, 34
anos depois de deixar nossas terras” (MANDEVILLE, 2007, p. 256).

As informações presentes na obra a respeito de sua autoria foram tidas por


séculos como verídicas, contudo, em consequência da grande importância
oferecida aos autores pelos pesquisadores do século XIX, ocorreram
problemas na percepção e recepção do livro, levando ao descrédito da
existência de Jean de Mandeville. E. B. Nicholson e Sir Henry Yule foram os
primeiros a possuírem referido posicionamento. Segundo Susani Silveira
Lemos França, esses se empenharam em desmentir a natureza testemunhal
do relato haja vista a grande dependência de outros textos, fato observado
mediante o mapeamento das fontes utilizadas para a escrita de Viagens de
Jean de Mandeville. Porém:

“Em se tratando do trabalho de um autor medieval, contudo, tais


pressupostos se mostram obsoletos. Mandeville é, sem dúvida, um
compilador -e cultivador-, mas sua miscelânea de apropriações
pode ser vista se levarmos em conta o mundo em que escreveu,
mais como mérito do que como infração” (FRANÇA, 2007, p. 17).

Situação semelhante sucede com os manuscritos de Viagens de Jean de


Mandeville. Assim, Iain Higgins defende a não necessidade da autoria do livro,
o qual constitui produto de mais de uma pessoa, sobretudo no que toca aos
intermediários, ou seja, aos copistas, quem atuava, muitas vezes, na posição
de autor, realizando mudanças e raramente as assinalando (HIGGINS, 1997, p.
17-18).

Nesta direção, objetivamos no presente escrito analisar as mudanças


realizadas no livro Viagens de Jean de Mandeville mediante o manuscrito

Novos Estudos em Orientalismos


25
tcheco Add. 24189, o qual foi redigido em 1410. Sobretudo, observaremos a
imagem de Santa Sophia, cujas características arquitetônicas mais se
assemelha à arquitetura gótica.

O livro Viagens de Jean de Mandeville e o manuscrito Add. 24189


A obra Viagens de Jean de Mandeville apresenta uma estrutura diferente de
outros escritos de viagens redigidos durante os séculos XIII, XIV e XV em
razão de seu conteúdo possibilitar a separação em duas partes. Malcolm Letts,
expõe uma síntese de ambas ao colocar que:

“A parte 1 pretende ser um guia da Terra Santa, que todos os


homens devem amar e exaltar, e que todos têm como dever
reconquistar. Todas as rotas possíveis são descritas, incluindo uma
que passa pelo Turquestão. As menções de santos e relíquias
servem para introduzir um número de histórias bíblicas e não-
bíblicas, e após a descrição do Monte Sinai e do Egito, a segunda
parte do livro leva o leitor ao Extremo Oriente, em que a
imaginação do autor assume o protagonismo total” (LETTS, 1949,
p. 41, tradução nossa).

Assim, mesclando a descrição do Oriente próximo e longínquo, Jean de


Mandeville objetiva apresentar uma descrição de todo o mundo conhecido no
período, pois, em suas palavras, “(...) a todo mundo agrada ouvir falar de
coisas novas” (MANDEVILLE, 2007, p. 255). Tal busca, junto às diversas
descrições maravilhosas, colabora na compreensão do deleite causado nos
leitores e, consequentemente, no entendimento da ampla propagação da obra,
sendo redigidos somente durante o século XV mais de 250 manuscritos.

Perdido o primeiro manuscrito do livro Viagens de Jean de Mandeville, pouca


certeza temos a respeito da exata data de sua escrita. Entre as divergências
dos pesquisadores, os anos entre 1351 e 1371 recebem especial ênfase, uma
vez que, como esclarece Michael C. Seymour, 1351 foi finalizado o texto de
Jean Le Long, o qual Jean de Mandeville possui grande dependência na
segunda parte da obra, enquanto 1371constitui a data do manuscrito mais
antigo (SEYMOUR, 1994).

Escrito em Paris em 1371 por Raoulet d’Orléans, para Charles V, o primeiro


manuscrito recebeu a denominação de Fons. fr. nouv. ac. 4515, sob o qual
foram elaboradas 26 versões subsequentes, que agrupados recebem o nome
de “Versão Continental”, todos datadas dos séculos XIV e XV. Porém, como
destaca Josephine W. Bennett, mesmo mais antiga, trata-se de uma cópia
pobre da original, isso porque há duas adições: a primeira na narração do “Vale
Perigoso”, enquanto a segunda se encontra no momento aonde o autor
defende a circunferência da terra (BENNETT, 1953, p. 139).

Paralelo aos manuscritos da “Versão Continental” surge os pertencentes à


“Versão Insular”, cujo primeiro manuscrito, também baseado no original, foi
perdido. Difundidos sobretudo na Inglaterra, estes, além de não possuírem as

Novos Estudos em Orientalismos


26
substituições da tradição Continental, se caracterizam pela adição de uma
passagem sobre Jó.

Por fim, distinta da tradição “Continental” e “Insular” há a “Versão de Liége”.


Esta possui como principal característica uma adição do herói Carolingio
Holger Danske, resultado da reescrita da “Versão Continental” por Jean
d’Outremeuse (BENNETT, 1953).

No que toca ao manuscrito Add. 24189, objeto de estudo no presente texto, de


acordo com Michael C. Seymour, provavelmente foi redigido com base em uma
copia da Versão Latina Vulgar (SEYMOUR, 1994, p. 52). Esta, por sua vez,
conforme esclarece Rosemary Tzanaki, teve origem na “Versão de Liége”, a
qual:

“Constitui uma severa revisão da obra Viagens de Jean de


Mandeville, com cortes acerca de um terço. Seu autor é intolerante
ao extremo, condenando tudo menos o Cristianismo mais
doutrinalmente sólido e rejeitando o sincretismo teológico de Jean
de Mandeville” (TZANAKI, 2017, p. 15, tradução nossa).

Porém, à diferença de outros manuscritos ligados a “Versão de Liége”, a qual


dá origem a tradução Checa, o manuscrito Add. 24189 não possui texto,
somente imagens. Explica-nos Rosemary Tzanaki que:

“O manuscrito consiste de 28 páginas inteiramente pintadas,


correspondendo aos primeiros cinco capítulos da versão Checa,
(...). O artista ilustra as relíquias, tumbas, cidades e paisagens. Ele
também oferece algumas cenas humanas, como três coroações de
Jesus Cristo, Sete no portão do Paraíso e Sansão. A luminosidade
verde subjacente é geralmente retida nas paisagens. Cores são
usadas como fundo para o céu, mar e arvores, com um tom de pele
humano nas figuras. Ouro é usado para decorar” (TZANAKI, 2017,
p. 36, tradução nossa).

No tópico a seguir, das 28 imagens presentes no manuscrito, selecionamos


para a análise a pertinente a igreja de Santa Sophia, cujas características mais
se assemelham com uma arquitetura gótica.

A imagem da catedral de Santa Sophia no manuscrito Add. 24189.


No fólio 9v. do manuscrito Add. 24189 de Viagens de Jean de Mandeville nos
deparamos com uma ilustração da cidade de Constantinopla (Figura 1), com
especial foco ao que seria a estátua dourada do Imperador Justiniano logo a
frente da Catedral de Santa Sofia. O espectador do manuscrito deve logo
reparar nas características formais dessa construção: Notadamente, são
percebidos pináculos, arcobotantes e contrafortes característicos da arquitetura
gótica na Europa Ocidental. Um – não tão pequeno – detalhe ausente é ainda
mais chocante: onde está a famosa cúpula de Santa Sofia? (Figura 2).

Novos Estudos em Orientalismos


27
Figura 1: “Constantinopla” segundo o Mestre Mandeville
Fonte: add MS 24189 (c.1410), fol. 9v. Londres: British Library. Disponível em:
https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_24189_fs001r.
Acesso: 10 set 2022.

Figura 2: Santa Sofia


Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Sofia#/media/Ficheiro:Hagia_Sophia_
Mars_2013.jpg . Acesso: 10 set 2022.

Ainda que tal divergência pareça chocante a uma primeira vista, não devemos
deixá-la nos levar a conclusões precipitadas que tendem a diminuir o

Novos Estudos em Orientalismos


28
conhecimento do iluminador (chamado, por Mojmír Frinta de Mestre
Mandeville), ou remetem à uma falha/erro do mesmo (FRINTA, 2019, p.07).

Antes de nos voltarmos à nossa fonte, cabe uma breve introdução acerca de
seu referencial: a Catedral de Santa Sofia. A Hagia Sofia (“santa sabedoria” foi
construída por volta dos anos 532 – 537 d.C. em Constantinopla, pelo
imperador Justiniano (482 d. C. – 565 d.C.). Logo que foi completa, sua cúpula
se tornou seu maior símbolo, notado por viajantes do período como Procópio,
ainda no século VI. Destruída 20 anos depois após um grave terremoto, foi
prontamente reconstruída novamente sob ordem de Justiniano. Seu objetivo
era claro e foi atingido com sucesso: se tornar um símbolo do poder imperial e
de sua relação com o sagrado, algo que permaneceu verdade até a conquista
de Constantinopla pelos Turcos no século XV (CHING, 2019, p. 280).

Mas e a Santa Sofia do Mestre Mandeville? Para analisarmos a sua imagem e


nos voltarmos a nosso problema central precisamos compreender as
funcionalidades pretendidas por ela. A imagem em questão está inserida em
um manuscrito, um objeto. Portanto, sua dimensão não é apenas visual, mas,
como teoriza Jérôme Baschet (2008), é também material. Classificamos ela
como uma imagem-objeto e, como tal, uma combinação entre aquilo que ela
mostra e aquilo que ela faz. Suas funcionalidades se fazem essenciais para a
compreensão de sua aparência (BASCHET, 2008, p. 48).

Além disso, interpretamos a imagem-objeto de Constantinopla como parte de


uma narrativa maior, que compreende também todo o objeto manuscrito a que
ela se insere. Essa narrativa é completamente imagética e não acompanha o
material escrito ao qual ela se baseia: as viagens de Jean de Mandeville. O que
nos permite primeiras inflexões: possivelmente esse manuscrito teria sido feito
para ser “lido” por um ou mais pessoas letradas, com acesso a outros
manuscritos contendo a seção escrita da história. Além disso, o alto preço de
tais objetos pressupõe a necessidade de recursos para sua confecção e sua
posse, o que o leva às mãos da alta nobreza tcheca do início do século XV.
Tudo isso se confirma pelo grande interesse da realeza no tempo de
Wencesclaus IV (1361-1419) na comitância de manuscritos iluminados e
objetos de arte de forma a se aproximar da arte gótica francesa do mesmo
período (ROYT, 2003, p. 93-94).

Com essas informações, temos uma possível noção do público do manuscrito:


uma nobreza próxima à realeza, culta, letrada e com acesso à informação e à
viagens de peregrinação ou lazer. Ou seja, pessoas que possivelmente já
tiveram acesso ou à Santa Sofia original, ou às suas representações que
percorriam a região da Bohemia.

E como se explica a divergência formal gritante entre o referencial e a imagem?


Não pretendemos, por meio dessa comunicação, oferecer uma resposta final
ou clara, mas apontar possíveis respostas.

Novos Estudos em Orientalismos


29
Voltamos, primeiramente, à ideia de narrativa. O Mestre Mandeville elaborou,
através do conjunto de 27 imagens inseridas no manuscrito em questão, uma
narrativa do “outro”, nos termos de François Hartog (1999). Ao se narrar o
“outro”, ou seja, o diferente, se diz mais sobre o “eu” do que necessariamente
sobre o seu referente. Um dos motivos para isso é base para nossa primeira
hipótese: para tornar as imagens inteligíveis, o iluminador utilizou de um dos
recursos elencados por Hartog: a tradução. Ela basicamente consiste na
utilização de signos comuns ao público da narrativa para contar sobre algo
alheio a sua realidade. Nesse caso, uma catedral nos moldes “góticos” seria
mais rapidamente vista como uma catedral pelo espectador praguense do que
uma catedral “fidedigna” às características de Santa Sofia (HARTOG, 1999, p.
48-49).

Entretanto, mesmo que essa seja uma das explicações plausíveis, ainda há
outras questões. Ao pensarmos em um público que possivelmente
reconheceria as feições da Santa Sofia original, fica a dúvida: por que ainda
seria necessário recorrer à tradução?

Peter Burke (2001) pode nos oferecer uma outra hipótese plausível, não
necessariamente excludente à de Hartog. Em seus termos, podemos pensar tal
imagem como um “estereótipo”, ou seja, uma imagem que segue inteiramente
a visão do “eu” para retratar um “outro”, não como esse “outro” é, mas como
ele o é para o “eu”. Ainda mais importante, o estereótipo não tem como função
necessariamente a de tornar o “outro” compreendido pelo “eu”. Na verdade, se
trata de uma forma de assimilação através da analogia, assim, se ignora ou se
nega a distância cultural e se retrata o outro como um reflexo do “eu”, o modelo
a ser seguido (seja moral, estético, etc.). É a “domesticação” do outro (BURKE,
2001, p. 123).

Referências
Jorge Luiz Voloski é formado em História pela Universidade Estadual de
Maringá. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade Estadual de Maringá. Atualmente cursa o doutorado no Programa
de Pós-Graduação em História na Universidade Estadual de Maringá, sendo
membro do Laboratório de Estudos Medievais [LEM]

Giovanni Bruno Alves possui graduação em História pela Universidade


Estadual de Maringá. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em
História, da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente cursa o doutorado
no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Estadual de
Maringá, sendo membro do Laboratório de Estudos Medievais [LEM]

BASCHET, Jérôme. L’iconographie Médiévale. Paris: Folio Histoire, 2008.

BENNETT, Josephine W. The rediscovery of Sir John Mandeville. New York:


The Modern Language Association of America, 1953.

Novos Estudos em Orientalismos


30
BURKE, Peter. Stereotypes of Others. In: Eyewitnessing: The Uses of Images
as Historical Evidence. London: Reaktion Books Ltd, 2001.

CHING, Francis; JARZOMBEK, Mark; PRAKASH, Vikramaditya. História Global


da Arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2019.

FRINTA, Mojmír. Searching for the sources of inspiration of the master of the
travels of John Mandeville. In: Wiener jahrbuch fûr Kunstgeschichte. Vol. 57, n.
01, 2019. Disponível em: doi.org/10.7767/wjk.2008.57.1.7. Acesso: 20 set
2022.

FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Introdução. In: Viagens de Jean de


Mandeville. Bauru,SP: EDUSC, 2017, p. 13-29.

HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Ensaio sobre a Representação do


Outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

HIGGINS, Iain Macleod. Writing East: the ‘travels’ of Sir John Mandeville.
Philadelphia, Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1997.

LETTS, Malcolm. Sir John Mandeville. The man and his book. London: The
Batchworth Press, 1949.

ROYT, Jan. Medieval Painting in Bohemia. Prague: The Karolinum Press, 2003.

SEYMOUR, Michael C. Sir John Mandeville. In: SEYMOUR, Michael C.;


FOWLER, David C.; [et. al.] (Org.). Author of the Middle Ages. 1-4. New York:
Routledge Taylor & Francis Group, 1994, p. 6-64.

TZANAKI, Rosemary. Mandeville’s Medieval Audiences: a study on the


Reception of the Book of Sir John Mandeville (1372-1550). New York:
Routledge, 2017.

VIAGENS DE Jean de Mandeville. Tradução: Susani Silveira Lemos França.


Bauru, SP: EDUSC, 2007.

Novos Estudos em Orientalismos


31
APONTAMENTOS SOBRE A HISTÓRIA JAPONESA NO
ROMANCE ENSINA-ME A VOAR SOBRE OS
TELHADOS, DE JOÃO TORDO por José Carvalho
Vanzelli

A relação de Portugal com o Japão remonta ao século XVI, quando os


lusitanos foram os primeiros europeus a aportar na ilha de Tanegashima, no sul
do arquipélago nipônico. Como é largamente sabido, a chegada portuguesa ao
Japão em meados do Quinhentos mudou os rumos da história japonesa, já
que, como Boxer [1951] expõe detidamente, o início da missão catequizadora
lusitana, a intermediação portuguesa do comércio japonês com o exterior e a
introdução das armas de fogo foram aspectos fundamentais para as decisões
políticas adotadas no Japão ao longo da segunda metade do XVI e início do
XVII. Foram, assim, aproximadamente sessenta anos de intensa presença
lusitana que marcou fortemente tanto a história japonesa quanto a história e a
memória coletiva portuguesa.

Tal fato faz o Japão, quando surge nas Letras Portuguesas, muito
recorrentemente ser retratado em um momento histórico específico: entre
aproximadamente 1549 a 1614, quando os portugueses e jesuítas circularam
pelo Japão em sua missão religiosa e comercial. De fato, se bem observado, a
literatura portuguesa – ao menos aquela tida como canônica – tem como uma
característica marcante a visitação a temas histórico-políticos nacionais. Ou
seja, os principais autores do cânone lusitano desde o século XV até, pelo
menos, a segunda metade do século XX, são, muitas vezes, assinalados pelo
modo como cada um leu seu país, sua história e sua sociedade.

Entretanto, a literatura portuguesa contemporânea, principalmente aquela feita


nas duas primeiras décadas do século XXI, tem proposto quebras com essa
tradição literária. Miguel Real [2012, p. 23] aponta, por exemplo, que o romance
português contemporâneo deixa de ter como alvo “o público português com
fundamento na realidade regional portuguesa, [...] preso quase em exclusivo a
ambientes nacionais e a um «homem» nacional, [mas,] destinam-se a um
público universal e a um leitor único, mundial, ecuménico”. Gabriela Silva
[2017, p. 6072] defende este mesmo ponto ao argumentar que:

“há na literatura portuguesa contemporânea um nítido rompimento


com a tradição temática que lhe é peculiar. Os romances do final
do século XX e XXI alinham-se [no] afastamento dos temas

Novos Estudos em Orientalismos


32
históricos ou políticos − que a literatura portuguesa tem sustentado
desde muito tempo”.

A partir de tal sugestão interpretativa, vem-nos à mente a seguinte questão:


estariam as representações do Japão na ficção portuguesa contemporânea
seguindo o mesmo rumo, isto é, deixando de falar quase que exclusivamente
da relação quinhentista entre Portugal e o arquipélago nipônico?

Um levantamento de obras em que o Japão é retratado mostra que, ao mesmo


tempo, pode-se ver manutenções e rupturas destes retratos. Por um lado, o
gênero Romance Histórico é bastante popular na produção ficcional portuguesa
atual, o que faz com que alguns desses títulos voltem suas atenções a figuras
nacionais do passado que estiveram em solo japonês. São obras que buscam
histórias com: “«heróis» conhecidos ou anónimos, cuja grandeza e miséria, tão
humanas construíram nosso Passado colectivo, criando os alicerces dos nosso
Presente e, de algum modo, marcando também o Futuro dos portugueses”
[BARROQUEIRO, 2012, p. 13]. Assim, encontram-se obras, por exemplo, como
O Corsário dos Sete Mares [2012], de Deana Barroqueiro; e a trilogia O
Samurai Negro [2016], Xogum, o senhor do Japão [2018] e A Dama do
Quimono Branco [2019], escrita pelo historiador João Paulo Oliveira e Costa.
Por outro lado, nota-se, de fato, um novo olhar ao Japão em alguns textos
contemporâneos. Valter Hugo Mãe, por exemplo, em Homens
Imprudentemente Poéticos [2017], cria um Japão singular, subjetivo, que conta
uma história que transcorre em uma vila em um passado remoto. Embora Mãe
evoque um passado e aspectos da cultura tradicional como elementos
caracterizantes do Japão em seu romance, ele se diferencia dos outros
romances portugueses pelo fato de não alicerçar seu enredo na relação
histórica entre lusitanos e nipônicos. Desta forma, Mãe parece querer falar de
questões universais – como a morte – por meio da criação de um Japão
próprio, “puro”, em que todos os elementos remetem à sua visão particular do
que seria o Japão e sua cultura. Entretanto, a ruptura mais clara com essa
“tradição” literária portuguesa nos parece acontecer no romance Ensina-me a
voar sobre os telhados [2017], de João Tordo.

João Tordo é um autor que vem ganhando destaque no cenário literário


português atual. É autor de catorze romances em dezoito anos de carreira
como romancista. Suas ficções têm como temas centrais, segundo o próprio
autor, a reflexão em torno da solidão humana e da memória [TORDO, 2018, p.
186]; além da morte e das relações familiares e pessoais. Também se destaca
em sua obra a migração de personagens de um romance para outro, fazendo
com que os textos dialoguem entre si e, em certo sentido, se complementem.

Ensina-me... é o décimo primeiro romance do autor e se constitui de uma


narrativa simbólica, fragmentada e labiríntica, que intercala duas histórias que
apenas nos momentos derradeiros do texto se unem. A primeira, narrada em
primeira pessoa pelo protagonista, se passa em Lisboa, a partir do início do
século XXI, e conta o encontro e a relação de amizade desenvolvida entre este
narrador com Henrique Tsukuda, um português de ascendência japonesa. Em

Novos Estudos em Orientalismos


33
determinado momento do romance, Tsukuda cai do telhado da escola em que
o protagonista trabalhava em uma aparente tentativa de suicídio. Com o amigo
inconsciente e hospitalizado, essa linha narrativa se desenvolve por meio da
busca do narrador em conhecer a história e os motivos que levaram Tsukuda
ao hospital. Ou seja, é a busca do protagonista pela memória do amigo
internado. A outra narrativa, narrada em terceira pessoa, se passa mormente
no Japão, tendo início no ano 6 da era Taishō, ou seja, 1917. Essa linha
começa na vila costeira de Hamada, em Shimane, no oeste japonês, e narra,
ao longo de um século, a história da família Tsukuda. Ganham ênfase as
trajetórias do avô de Henrique, Katsuro, e seu pai, Saburo. Ao final do
romance, como mencionado, as linhas narrativas se unem com o protagonista
conhecendo o pai de Henrique e com a história da família Tsukuda se
completando.

Por um lado, o romance pode ser visto como um texto “típico” de Tordo, uma
vez que nele são identificáveis diversas características presentes em outros
romances do escritor: a presença de um personagem que tenta “apropriar-se e
valer-se da memória do outro e da própria memória” [SILVA, 2017, p. 6071]
para entender o mundo ao seu redor; a solidão humana; o isolamento; a morte;
a narrativa fragmentada; entre outros. Assim, como alguns estudos têm
explorado, a psicologia e a psicanálise parecem caminhos bastante ricos de
leitura não apenas desta obra, mas da bibliografia tordiana como um todo.
Também é possível depreender uma leitura da história portuguesa no romance,
principalmente do período da ditadura salazarista e da guerra colonial [1961-
1974], que culminou no 25 de Abril. Pode-se, assim, colocar este romance em
diálogo com outros textos de Tordo, como Anatomia dos mártires [2011].

Entretanto, e este é o ponto que nos interessa, o romance também abre


espaço para uma leitura de como o autor retrata o Japão e as personagens
japonesas do romance. É possível refletir, por exemplo, sobre como as
mulheres nipônicas são desenhadas pelo narrador heterodiegético de parte da
narrativa; como a subjetividade da cultura japonesa tradicional aparece refletida
no romance; a relação do autor com a literatura japonesa; entre outros
aspectos. No entanto, dar cabo desta interpretação nos exigiria um espaço
significativamente superior aos limites determinados deste trabalho. Portanto,
aqui, centraremos nossa atenção em quais aspectos da história japonesa são
avultados no romance e como estes dialogam com a “tradição” de
representação do Japão na literatura portuguesa.

O primeiro aspecto que chama a atenção na criação de Tordo está, como


dissemos, no período histórico a ser retratado. Não há interesse por parte do
autor em ir ao encontro das relações do passado entre seu país e o povo
asiático. A história a ser contada é da família Tsukuda que, em determinado
momento, foi a Portugal. O enredo dessa família se inicia no ano de 1917, se
estendendo até o ano de 2017. Neste ínterim chega ao leitor uma interpretação
de momentos-chave da história japonesa do século XX, como a sociedade do
país após 1945.

Novos Estudos em Orientalismos


34
No que tange este ponto, o capítulo 13, intitulado “Showa 44”, é significativo,
pois é ali que se retrata uma Tóquio entre os anos de 1947 e 1969.

Em momento anterior do romance, Saburo fora jogado do telhado por seu


insano pai, pouco antes da morte deste. Este episódio fere permanentemente
as pernas de Saburo, que passa, a partir de então, a andar de muletas. Após
este episódio Saburo foge, em 1947, com sua mãe, de Hamada para Tóquio,
onde passam a viver. Assim, a sociedade japonesa descrita pelo narrador
desta parte do romance é um Japão urbano e em transformação no pós-guerra.
Eis a descrição da Tóquio dessa época:

“A guerra terminara, mas o Japão permanecia em conflito interno,


uma guerra ainda pior do que a anterior, tempos ainda mais difíceis
do que os anos de atrocidades. Havia muita pobreza: gente a
dormir ao relento, homens, mulheres e crianças transformados em
pedintes, desapossados de tudo. Saburo nunca vira degradação
daquela estirpe em Shimane; nem semelhante fome ou
decadência, pessoas a viver nas ruas, sem um tecto. [...] Nunca
vivera no epicentro de uma tempestade que acabara de amainar.
Havia vergonha no rosto dos Japoneses. A humilhação da
rendição, anunciada por Hirohito dois anos antes, fora a primeira
vez que a maioria dos Japoneses escutara a voz do soberano, que
ainda ressoava, desgostando-lhes o orgulho. Os líderes passaram
a ser os Aliados, os Americanos; o novo imperador era Douglas
MacArthur” [TORDO, 2017, p. 435].

Portanto, o Japão que emerge no livro do Tordo é um país em reconstrução,


que não remete a nada que seja português ou a elementos tradicionais
nipônicos. Vale ressaltar que imagens de Tóquio enquanto centro de um
mundo moderno e tecnológico são comuns na literatura ocidental. Entretanto,
aqui, Tóquio ainda não é a metrópole superpopulosa ou altamente tecnológica.
É um local degradado em que as pessoas estão vazias, tristes e solitárias
[TORDO, 2017, p. 421].

O mesmo clima impregna a casa em que Saburo vive com a mãe no bairro de
Tateishi. A natureza de Hamada é substituída por um espaço apertado, em que
se ouvia apenas o som “[d]os comboios [a] passarem pela linha férrea e o
locutor da rádio” [p. 421].

Em 1969, já adulto e sem a mãe, Saburo segue em Tóquio. Trabalha na IBM,


enquanto cursa a universidade no período noturno. Assim, a rotina de um
kaishain [funcionário de empresa] também é representada. Ali, são vistas
questões hierárquicas das quais Saburo deseja, mas não consegue fugir.
Ainda, sua condição de pessoa com deficiência o faz ser constante vítima de
ijime [bullying] por parte dos outros funcionários. Embora quisesse externar sua
raiva, desejasse “ser mais parecido com o pai” e “matar Watanabe” – o
principal colega que lhe faz bullying –, Saburo apenas consegue esboçar “uma
carantonha de diversão [e] sente a ferida por dentro a crescer, alastrando-se”

Novos Estudos em Orientalismos


35
[p. 421]. Logo, a cultura japonesa que se vê no romance não é a antiga ou
tradicional, mas uma cultura corporativa que se fortaleceu nessa época e, em
alguns pontos, ainda é vista.

Desta forma, o principal retrato histórico da sociedade japonesa no romance


lembra pouquíssimo o que largamente se encontra na literatura portuguesa.
Em primeiro lugar, não há espaço para tradições. Embora tais elementos
existam no texto, não se vê em abundância símbolos nacionais japoneses, que
não raramente estão a criar uma “atmosfera nipônica” em textos ocidentais.
Tampouco recua séculos no tempo e advoga por uma relevância de seus
antepassados na formação da sociedade japonesa contemporânea. Ainda,
elementos da natureza, sempre tão relacionados à cultura japonesa, são
substituídos por um espaço suburbano de uma cidade em transformação, cuja
população vive, tal como as máquinas que a cercam, mecânica e tristemente.
Por certo, Tordo não é o único a retratar um Japão do pós-guerra desta
maneira. Entretanto, quando comparado com outros textos “japonistas” de seu
país, o autor destaca-se por não recair em temas, imagens e lugares comuns
vistos de forma frequente em outras obras.

É interessante notar que a parte narrativa que se passa no Japão, embora não
resgate o passado histórico português, não se priva de colocar personagens
lusitanas. Entretanto, ao contrário do que se pode pensar num primeiro
momento, a ruptura com a “tradição” de seu país, de fato, se fortalece com a
presença dessas personagens. A atitude e o papel que cada uma assume
reforçam a pouca ligação do romance com o passado histórico quinhentista
português.

Neste cenário, duas personagens se destacam: a primeira é Gaspar, o


português que, no segundo capítulo do romance, é chamado pelo “governador”
de Hamada para ensinar Katsuro – avô de Henrique – a nadar:

“o pai mandou chamar um marinheiro de feições selvagens oriundo


da província contígua, da cidade de Nagato, que era, diziam os
peritos, o melhor nadador do Japão. [...] O homem era muito alto,
tinha cheiro acre, barba cerrada. Falava um japonês rudimentar,
poucas palavras roucas, mas parecia entender tudo. Katsuro nunca
vira um ocidental. O pai explicou-lhe que Gaspar era português,
lacaio e intérprete do Prefeito de Yamaguchi, também falava
espanhol e algum inglês, era um homem útil, mas ainda assim um
selvagem, e ficaria ali o tempo necessário até Katsuro aprender a
nadar” [TORDO, 2017, p. 60].

Gaspar pouco participa do enredo, não fazendo mais do que ensinar Katsuro a
nadar, sem outras ações ou falas significativas. É submisso aos desmandos de
seu aluno, que é salvo vez ou outra da correnteza e de sua arrogância pelo
professor de natação. O par de páginas em que Gaspar surge no início do
romance e seu papel coadjuvante, de certa forma, já anuncia ao leitor que

Novos Estudos em Orientalismos


36
aquele não é um livro sobre a presença portuguesa no Japão e que este
passado não será ali exaltado.

Graça, outra personagem lusitana do romance, é filha de um imigrante


português que fora ao Japão para escapar da ditadura salazarista. É futura
esposa de Saburo e mãe de Henrique Tsukuda. Esta personagem é uma das
poucas a se aproximar de Saburo, cuja timidez – e as “pernas de espaguete”
[TORDO, 2017, p. 424] – o deixa com uma vida social exígua. Durante algumas
conversas entre Saburo e Graça, quando ainda estão se conhecendo, vem à
tona assuntos sobre as relações nipo-portuguesas, como palavras japonesas
oriundas do português, tratadas apenas como “curiosidade” [TORDO, 2017, p.
425], ou a presença portuguesa no Japão quinhentista. Eis um relevante
trecho:

“conversam numa língua estrangeira que Saburo adivinha ser


português. Conta-lhe que, na infância, ouviu falar algumas vezes
de um homem chamado Gaspar, que foi professor de natação do
seu pai, e que era português. Graça sorri, é uma história curiosa,
nós sempre fomos grandes marinheiros, os primeiros europeus a
chegarem ao Japão, mas o que trouxemos foi a religião, as
palavras, a tempura, o açúcar refinado, os doces dos bárbaros do
Sul, bisukauto e karumera, não trouxemos propriamente o desporto
e muito menos a natação, onde os atletas japoneses são
claramente superiores, sobretudo no pólo aquático” [TORDO, 2017,
p. 440].

A pouca relevância dada à presença portuguesa no Japão pelas personagens,


a redução desse momento histórico à esfera de curiosidade, o
desconhecimento real de Saburo sobre as coisas de Portugal apenas reforçam
a imagem de independência do Japão de Tordo à “tradição” literária de seu
país. Ainda, Graça falece quando Henrique, nascido já em solo português,
tinha 10 anos, o que faz, mais uma vez, com que as personagens portuguesas
no “núcleo” japonês do romance tenham papéis diminutos. Tratamento
semelhante recebem os elementos tradicionais da cultura japonesa, quando
surgem. Ao invés de usá-los para caracterizar o Japão do romance, Tordo
coloca na boca de suas personagens indiferença e até certo lamento pela
mercantilização da história e da cultura:

“Passam por uma loja de antiguidades. Ela detém-se um momento


junto da montra e fica a observar o que ali está exposto, artefactos
sem cronologia, de tempos tão distintos. Aponta para isto e aquilo,
um antigo quimono, um leque dourado, o vaso de uma dinastia há
muito esquecida, pratos e pires e chávenas decoradas com
caracteres chineses e pássaros, carrinhos de brincar em latão,
cigarreiras, estátuas do Buda, um par de sapatos de ballet. É aqui
que a História se perde, diz ela” [TORDO, 2007, p. 438].

Novos Estudos em Orientalismos


37
Igualmente, em momento avançado do romance, quando o narrador-
protagonista vai ao Museu do Oriente em Lisboa, em uma recepção com altos
dignitários do Japão na tentativa de encontrar Saburo para, enfim, entender o
passado de seu amigo Henrique, ele se depara com uma exposição de objetos
tradicionais japoneses. É com certa inércia que o narrador observa “atrás de
vitrinas, roupas e artefactos japoneses, gravuras, sombrinhas, indumentárias
de samurai.” [TORDO,2017, p. 455]. Portanto, reforça-se que o Japão de Tordo
pouco evoca o tradicional. Antes, são artefatos antigos mercantilizados ou
expostos de uma sociedade cosmopolita, porém com ares lânguidos,
mecânicos e introspectivos, como costumam ser os espaços tordianos.

Sinteticamente, nota-se como a sociedade japonesa descrita pelo romance


preza por uma visão mais distanciada das relações nacionais com Portugal e
se pauta não só criticamente no que tange ao passado quinhentista, como
também em relação aos símbolos que, normalmente, remetem ao Japão.
Assim, embora o romance dialogue fortemente com a subjetividade e assuma
contornos fantásticos – fato que aqui não pudemos destacar –, o Japão de
Tordo não caminha por um fascínio encantado e místico das tradições
japonesas, como muitas vezes encontramos nas Letras ocidentais. Antes, a
leitura tordiana desse país asiático aponta para um espaço pouco diferente de
outros ambientes urbanos, em que os sentimentos universais de solidão e
recolhimento vêm à tona, no passado e no presente.

Ainda resta muito a dizer e a desenvolver no que tange ao Japão em Ensina-


me a voar sobre os telhados. Nesta curta intervenção, objetivamos apenas
pontuar como o jovem romancista português logra apresentar uma faceta
original, dentro da literatura de seu país, do Japão e sua cultura que, de forma
diferentes, há séculos, tem chamado a atenção e inspirado tantos escritores
que o observam à distância.

Referências
José Carvalho Vanzelli realiza pós-doutorado [Estudos Literários] na
Universidade Federal do Paraná [UFPR]. É mestre e doutor em Letras [Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa] pela USP. Graduado em
Letras [Português-Japonês] pela USP. Autor do livro Portugal e o Oriente:
Antero de Quental – Camilo Castelo Branco – Eça de Queirós - Pinheiro
Chagas [2021]. Organizador do livro Literatura Portuguesa Contemporânea:
entre ficções e poéticas [2020]. Suas pesquisas centram-se principalmente nos
temas: Orientalismo; representações do Japão nas literaturas de língua
portuguesa; literatura japonesa; e diálogos da literatura com outras artes e
outras ciências humanas.

BOXER, C. R. The Christian Century in Japan. Berkeley e Los Angeles:


University of California Press, 1951.

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Novos Estudos em Orientalismos


39
O MÉTODO CONTRAPONTUAL SAIDIANO E O ESTUDO
DA MEMÓRIA NA QUESTÃO DA PALESTINA por Nina
Galvão

Neste breve artigo, apresento um dos referenciais teóricos centrais para a


pesquisa de doutorado que desenvolvo em torno da construção de uma
temporalidade palestina que tem na Nakba- a Catástrofe- o marco
fundamental do seu campo de experiências e no Retorno- dos refugiados e
deslocados internos expulsos de suas casas na fundação de Israel- um
horizonte de expectativas comum.

Edward Said tornou-se um referencial indispensável para pesquisadores do


campo dos estudos do mundo oriental a partir da conceituação que elaborou
do orientalismo [Said, 2007] e das suas reflexões sobre as representações do
“Oriente” construídas por escritores, autoridades, viajantes e pensadores
ocidentais. No entanto, gostaria de destacar aqui o método contrapontual que
o autor delineia em Cultura e Imperialismo [2011] como um imperativo
metodológico para o estudo da questão da Palestina em particular- um tema
ao qual o autor, palestino, dedicou-se extensamente. Seus fundamentos
derivam da firme recusa a qualquer tipo de distinção e, principalmente,
hierarquizacão teórica entre aspectos “materiais” ou “objetivos” e as
dimensões ditas “simbólicas” ou “subjetivas” da realidade. Tal discriminação,
defende Said, não apenas não existe como tampouco é operacional ou útil do
ponto de vista da reflexão crítica.

Essa recusa perpassa todo o livro publicado pela primeira vez em 1993. O
autor reitera constantemente que “a tendência de disciplinas e
especializações em se subdividir e proliferar é contrária à compreensão do
todo, quando se trata do caráter, da interpretação e direção ou tendência da
experiência cultural” [Said, 2011, p. 48]. Said faz referência e critica de modo
contundente as análises puramente formais da cultura, que acreditam em uma
autonomia ou neutralidade intrínsecas às representações estéticas, e no seu
exame apartado do seu entorno político, social e econômico.

No decorrer de minha pesquisa de mestrado, em que debrucei-me sobre a


memória palestina do processo de fundação de Israel- chamada por eles de
al-Nakba, a Catástrofe-, o alerta contra o que Said qualifica como um “radical
falseamento” [2011, p. 110] é particularmente relevante, dado que o campo
dos estudos da memória é com frequência dedicado a “etéreas investigações
e especulações teóricas” nas quais “as representações são consideradas

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apenas como imagens apolíticas a ser analisadas e interpretadas como outras
tantas gramáticas intercambiáveis” [Said, 2011, p. 110].

Quero dizer com isso que não raro o estudo desse tema em particular, devido
à singular polissemia e imprecisão teórica que o cerca, termina por operar
uma cooptação normalizadora da memória, tomada e analisada quase como o
lado terno da história, uma questão de “pontos de vista” ou de “sentimentos”
privados. Nessa perspectiva, a memória é não só “exonerada de qualquer
envolvimento com o poder”, conforme afirma Said [2011, p. 110] em relação à
cultura, como é despida de suas camadas políticas. Tal cisão absolutamente
artificial e inócua em suas pretensões a uma suposta neutralidade acadêmica
não é nada mais do que um “ato de cumplicidade” [Said, 2011, p. 110] que
produz, ademais, modalidades requintadas de negacionismo.

É neste sentido que o negacionismo da Nakba palestina adquire hoje


contornos mais sutis do que o franco desprezo pelos fatos. Hoje, vemos como
circula com impressionante facilidade, por exemplo, o curioso fenômeno de se
“reconhecer” a Nakba ao mesmo tempo em que se rejeita a limpeza étnica da
Palestina. Como ressaltaram Norman Filkenstein [1992] e Nur Masalha [1991]
em uma série de artigos publicados no Journal of Palestine Studies, autores
como o historiador israelense Benny Morris são pródigos neste tipo de
manobra retórica, a qual contribui decisivamente para a deturpação do campo
semântico e a sacralização de uma gramática que rege o debate da questão
da Palestina, e que é bem sucedida em seus esforços para banir do debate
termos e conceitos desagradáveis como “limpeza étnica”, “apartheid”,
“etnocracia”, “racismo” e muitos outros.

A memória participa desse esforço ao ser tomada como uma mera questão de
ponto de vista: uns lembram desse modo, outros não. Nessa perspectiva,
reconhecer não significa mais do que admitir que determinadas pessoas ou
grupos partilham de “sentimentos” ou visões subjetivas dos acontecimentos,
diante das quais pouco importa a veracidade dos fatos. Assim, o sentido
negativo da criação de Israel para os palestinos pode ser plenamente admitido
por setores ditos “progressistas” do sionismo, por exemplo, sem que estes
jamais admitam que o caráter judeu do Estado possa ter qualquer coisa a ver
com este “mau sentimento”. O posicionamento que admite os fatos enquanto
nega o evento, para utilizar os termos da análise perspicaz do autor armênio
Marc Nichanian [2009], reduz além disso as possíveis “resoluções” para
conflitos políticos de primeira grandeza à circulação dos diferentes pontos de
vista, quase como se o que faltasse a palestinos e isralenses para pôr suas
“diferenças” de lado fosse nada mais do que uma bem intencionada ciranda
mnemônica.

Ter por vezes que driblar discursos que se aferram a compreensões quase
místicas ou metafísicas da memória é um dos ônus inerentes a um campo
inundado de imprecisões, diante do qual corre-se o risco de mergulhar em um
vazio semântico, seja este um mar de clichês ou um vale-tudo conceitual no
qual certas palavras- tais como “representação”, “narrativa” e o próprio

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41
“reconhecimento”- adquirem vida própria e são brandidas à torto e a direito
sem que digam de fato coisa alguma. A importância de se definir, precisar e
delimitar tanto quanto possível o aparato conceitual mobilizado ao longo do
trabalho não deve entretanto recair em uma setorização artificial da existência
humana, e muito menos deixar implícita uma hierarquização entre as esferas
política, cultural e econômica da existência.

O regime de temporalidade, a forma de viver o e no tempo de uma


comunidade, pode ser tomada como uma das dimensões simbólicas da
experiência colonial, e isso nada têm de transcendental ou intangível, mas diz
respeito à vivência quotidiana da colonialidade, sua imposição diária sobre os
corpos a ela sujeitos. Como ressalta Bruno Huberman [2020, p. 22] em sua
pesquisa a respeito do casamento entre a razão neoliberal e o colonialismo
em Jerusalém, “as práticas dos atores no território são informadas tanto pelas
condições materiais encontradas na realidade como por construções
subjetivas que interferem nos atos cotidianos de colonização e resistência
“que movem lentamente as estruturas históricas das contradições e conflitos
entre israelenses e palestinos”. A violência “simbólica”, como tantas vezes é
chamada, não é menos violenta nem se distingue, na realidade, de uma outra
violência “material” supostamente mais nociva, assim como são indissociáveis
as práticas socioculturais de resistência a essa violência, como o trabalho de
memória e os exercícios de imaginação política. O intelectual palestino Adi
Opher, ao discutir o que chama de processos de “catastrofização”, também
faz um alerta no mesmo sentido:

“A natureza dual da ‘catastrofização governamental’ implica uma


distinção um tanto semelhante entre os processos reais e sua
articulação discursiva. No entanto, o discursivo não é subjetivo nem
necessariamente uma representação distorcida do real; é antes a
condição para a possibilidade de sua aparência observável e
configuração conceitual. Ao mesmo tempo, a catastrofização
discursiva pode se tornar parte dos processos reais que
determinam a maneira como uma catástrofe se desdobra e toma
forma ou é antecipada, mitigada e às vezes até evitada” [Ophir,
2010, p. 43, grifo meu].

As palavras e os discursos articulados através delas não são realidades


abstratas, mas potências concretas; fazem parte dos conflitos sociais, dos
danos políticos impingidos pelas maneiras de escrever, descrever, colocar em
cena ou rechaçar a palavra do outro. O próprio pensamento não é de modo
algum tão imaterial quanto em geral o consideram; exprime-se através das
palavras, dos discursos, das famigeradas narrativas. Todas essas
construções ou condensações da experiência formam blocos sensíveis e
carregam proposições de mundo característicos que afetam as pessoas de
modos muito concretos. Acima de tudo, estão em constante movimento e
negociação umas com as outras, e por isso faz-se necessária uma leitura em
contraponto dessas dinâmicas.

Novos Estudos em Orientalismos


42
É precisamente contra qualquer noção de pureza cultural que Said propõe
como antídoto ao ímpeto classificador excessivamente taxativo um método
que não é linear, e sim nômade. O tratamento contrapontual se abre ao
movimento e à indeterminação das coisas, pois “... todas as culturas estão
mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas,
heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo” [Said,
2011, p. 30]. Realidades complexas e relacionais, que formam conjuntos de
“histórias entrelaçadas e sobrepostas” [Said, 2011, p. 56], poderão ser então
examinadas enquanto uma “rede de histórias interdependentes” [Idem, p. 57].

Said não ignora que essa proposta teórica pode ser sedutoramente genérica e
de difícil aplicação, uma vez que “ninguém é capaz de ter tal mapa inteiro na
cabeça” [Said, 2011, p. 58], e por isso confere foco às suas análises ao
considerar “apenas algumas configurações mais destacadas”. Este
movimento não retorna à compartimentalização artificial e ao particularismo
exacerbado que o método contrapontual busca justamente inverter; aproxima-
se muito mais, na verdade, do exercício genealógico de Foucault- de cujo
pensamento Said é abertamente tributário-, para o qual um único traço basta
como indício a partir do qual articular e sustentar um argumento a respeito de
um conjunto. E, no entanto, vai além ao levar em consideração não apenas o
que veio antes ou o que ocorre simultaneamente, mas também o que virá
depois, em uma análise temporalmente tridimensional.

Ressalto uma vez mais que não se trata de “ver todos os lados” de um
contexto conflituoso, e sim de um exame intelectual que abarca a realidade
em toda a complexidade das suas relações constitutivas. Said não advoga
nenhuma panaceia de tolerância e muito menos ignora diferenciais de poder e
as relações de brutal dominação que costumam se encontrar na raiz da falta
de “diálogo” entre povos e culturas. O que almeja é poder “pensar
experiências divergentes e interpretá-las em conjunto, cada qual com a sua
pauta e ritmo de desenvolvimento, suas formações, sua coerência interna e
seu sistema de relações externas, todas elas coexistindo e interagindo entre
si” [Said, 2011, p. 75]. O embate travado é contra o exclusivismo teórico, e por
isso a centralidade do encontro para o pensamento saidiano, notadamente o
encontro cultural. É provável que a batalha epistemológica contra qualquer
noção de homogeneidade cultural seja aquela na qual o autor mais se
engajou, defendendo reiteradamente que “longe de serem algo unitário,
monolítico ou autônomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos
‘estrangeiros’, alteridades e diferenças do que os excluem conscientemente”
[Said, 2011, p. 51]. É a partir dessa premissa de mobilidade e fortalecimento
mútuo que Said propõe em Cultura e Imperialismo uma relação dialética entre
o romance enquanto forma cultural e a visão de mundo imperialista,
irremediavelmente conectadas.

Daí também depreende-se a ingenuidade de certas propostas de


“descolonização” da cultura que alimentam a pretensão de apagar ou “limpar”
os traços culturais impressos pelas metrópoles em seus antigos domínios-
elementos de tal forma entranhados que são difíceis até mesmo de distinguir,

Novos Estudos em Orientalismos


43
que dirá singularizar e eliminar por decreto ideológico. A fantasia de uma tal
descolonização epistêmica é inclusive incompatível com a perspectiva
saidiana de uma leitura em contraponto, pois inverter os polos de uma
hierarquia faz apenas perpetuá-la. Não é concebível- nem desejável- depurar
completamente o mundo colonizado da influência cultural metropolitana, e
Said destaca como as mais ricas formulações de resistência anticolonial-
como as que brotam das mentes de Franz Fanon e Achile Mbembe, entre
tantos outros- partem do enfrentamento e da ressignificação dessa herança, e
não da sua completa abnegação. A antropofagia é sempre mais interessante
que a purificação impossível, e nenhuma modalidade de maniqueísmo teórico
é, ademais, conciliável à busca do método saidiano por libertar o mundo dos
pacotes intelectuais nos quais foi compartimentalizado.

Ao examinarmos a questão da Palestina a partir de um prisma contrapontual-


mais do que em uma perspectiva decolonial, portanto, ao menos no sentido
do termo apresentado acima-, as interações que se desenrolam ali podem ser
apreendias como uma interação organizada, passível de compreensão e
elucidação, e não como um conflito antiquíssimo, caótico e inexplicável.
Nessa perspectiva, toda política em Israel torna-se indissociável das políticas
do Estado em relação ao território e seus habitante nativos; a análise
contrapontual torna inadmissível, por exemplo, levar em consideração apenas
a Israel tecnológica, “reflorestadora”, “socialista” ou o que quer que seja,
descolando o país das suas políticas coloniais em relação aos palestinos.

No que tange ao problema central da minha pesquisa de doutorado, o método


contrapontual saidiano é o que permitirá o exame conjunto das diferentes
temporalidades palestinas, sincrônicas e diacrônicas, e também seu
cruzamento com as representações sionistas nas quais inevitavelmente se
chocam. Os encontros que mais me interessam não são, no entanto, os que
ocorrem há décadas entre o sionismo e os palestinos, ou entre judeus
israelenses e os palestinos, mas aqueles entre palestinos vivendo em
diferentes circunstâncias. Não tenho qualquer pretensão de abarcar a
totalidade dessas experiências, muito menos esgotar o inventário das
temporalidades palestinas, e sim propor uma análise a partir de alguns traços
de duas dessas configurações, qual seja, os palestinos de 1948, cidadãos de
Israel, e os jovens refugiados dos campos de Aida e Dheisheh, na Cisjordânia
Ocupada.

Tal escolha deixará naturalmente uma série de silêncios e espaços, se não


vazios, pouco iluminados, pois as dinâmicas contrapontuais que se
estabelecem entre diferentes grupos palestinos são inúmeras, e me debruço
apenas sobre dois deles. Existem muitos mundos palestinos, e me interessa
pensar como a vida corre neles em paralelo, simultaneamente, ou
diacronicamente; como a dimensão temporal dessas existências se articula
contrapontualmente umas em relação às outras.

Há uma dimensão comum dessa existência que é marcada por uma


suspensão temporal característica, pois o Retorno é proibido ao mesmo

Novos Estudos em Orientalismos


44
tempo em que a sua permanência palestina onde quer que seja não é pacata.
No entanto, essa característica compartilhada assume feições particulares
entre os diferentes grupos palestinos, que vivem em circunstâncias muito
diferentes entre si e são confrontados como desafios particulares. Assim, os
Palestinos de 1948- como se denominam em larga medida os cidadãos
árabes de Israel- têm, por exemplo, quotidianamente de elaborar o que
significa permanecer como cidadãos de segunda classe em um Estado que
não é o seu, enquanto os habitantes de Aida e Dheisheh se colocam a mesma
pergunta em relação aos campos de refugiados, estes espaços-síntese da
provisoriedade que se tornou permanente.

Da mesma forma, o tempo da espera de que fala Geraldo de Campos em sua


tese de doutorado a respeito dos cineastas palestinos Elia Suleiman e Kamal
Aj-Jafari [2019] é um tempo que se expande como os círculos concêntricos
em torno da pedra atirada num lago, articulando uma coleção de modalidades
de espera maiores e menores. É simultaneamente uma espera palestina
ampliada e a espera particular de cada palestino que, em sua vivência
quotidiana, aguarda coisas específicas. É ao mesmo tempo parecido e
fundamentalmente diferente viver uma vida sob o jugo do colonizador, em
territórios militarmente ocupados, e viver como cidadão- com todas as
reticências implicadas nessa condição no caso dos Palestinos de 1948- do
Estado colonial. Vale dizer, todos os palestinos estão esperando alguma
coisa. O que, há quanto tempo, e o tanto da sua vida que está rendido à
espera, que adquire sentido na própria espera e que depende disso, no
entanto, pode variar muito, e é sobre estes contrapontos que me debruço na
minha pesquisa. Pensando nessa “grande espera” como horizonte e comum e
nas “micro-grandes esperas” como elemento de diferenciação, os Palestinos
de 1948 e os jovens dos campos de refugiados têm traços que os aproximam
e que os afastam: uns são cidadãos, outros vivem em Território Ocupado,
mas ambos carregam consigo o deslocamento e a sua impermanência
característica; existe um elemento de fratura constitutiva que baliza a
existência de ambos- e que talvez não balize a de um jovem nascido e criado
na cidade de Ramallah, por exemplo. Este é, enfim, o fundamento de uma
leitura contrapontual: a busca pelas interconexões e determinações
entrelaçadas que recusa as análises essencializantes de que falei acima.

Referências
Nina Galvão é historiadora e mestra e Humanidades, Direitos e Outras
Legitimidades pela Universidade de São Paulo. Doutoranda do Programa de
Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHIS-UFRJ), desenvolve pesquisa sobre memória política, identidade
nacional e o direito de retorno dos refugiados palestinos.

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o tempo no cinema de Elia Suleiman e Kamal Aljafari. Tese (Doutorao em
Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
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Novos Estudos em Orientalismos


46
O ESTAMENTO DOS LETRADOS CHINESES:
RELIGIOSIDADE E EDUCAÇÃO NAS CONSIDERAÇÕES
DE MAX WEBER por Rafael Egidio Leal e Silva

O objetivo deste artigo é analisar as teses do sociólogo alemão Max Weber


(1864-1920) em relação ao campo da sociologia da religião, especialmente o
confucionismo e seus impactos na China, especialmente em relação aos
“letrados” que também se tornam parte da burocracia estatal sendo também
questionado o papel da educação tanto naquela sociedade como também na
obra deste importante intelectual da modernidade.

O sociólogo Karl Emil Maximiliam Weber possui uma vasta obra, a ponto de ser
considerado o mais erudito dos autores considerados clássicos deste campo
científico (além de Karl Marx, Émile Durkheim e Pierre Bourdieu). De fato, Max
Weber teve sua formação inicial em Direito mas atuando tanto em História e
Economia. A partir de 1904, quando passa a dirigir e a pulicar na revista Archiv
für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik [Arquivos para a Ciência Social e
Política Social] Weber orienta-se cada vez mais para uma obra que não apenas
sedimentasse a nova ciência da sociologia, mas, principalmente, lhe desse
novos direcionamentos e métodos. Assim, pode-se encontrar as temáticas
mais diversas em sua obra, desde questões de metodologia, além de política,
direito, arte, ciência, religião e economia (o capitalismo). Teorizou sobre formas
e processos de poder e dominação e de estratificação social (classes sociais,
estamentos e castas e partidos). Enfim, trata-se de um relevante autor do
século XX, possuindo dois textos que são emblemáticos de sua produção: texto
A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (2004) e os dois volumes de
Economia e Sociedade (2004A). Um aspecto fundamental da obra de Weber é
também sua visão sobre o Oriente especialmente quando questiona dos
grandes sistemas de religião no mundo (confucionismo, taoísmo, hinduísmo e
budismo). Para nossa proposta neste texto, antes de apresentarmos as ideias
weberianas a respeito da religião chinesa, devemos compreender algumas de
suas proposições e conceitos sociológicos.

Primeiramente, é necessário entender a forma que Weber se posiciona em


relação ao método de estudo das ciências humanas ou à cultura. Em seu
período há fortemente a visão metodológica positivista tanto na História, quanto
na sociologia sendo desenvolvida por E. Durkheim na França. Na Alemanha há
uma forte influência do idealismo kantiano sendo retomado como forma de
metodologia histórica e social, até mesmo como contraposição ao positivismo.
Em Weber temos outra visão sociológica: “A originalidade de Weber é não ter

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ele cortado as estruturas e instituições sociais da atividade multiforme do
homem, que é ao mesmo tempo o obreiro e o dono de suas significações.
Encontramos no centro de sua Sociologia a noção de atividade social” (Freund,
1980, p. 68). Em Weber, portanto, a Sociologia deve ir mais a fundo na busca
de seu objeto: a atividade individual, a ação do indivíduo. Por este motivo, ele
inaugura a Sociologia Compreensiva. “Compreender, pode-se dizer, é captar a
evidência ao sentido de uma atividade” (idem, p. 73-74).

Assim, o conhecimento na sociologia deve ser elaborado a partir de tipos


ideais. Weber (2006) considera que são os valores e ideais do cientista que o
inspiram a conhecer. E que tais valores e ideais devam ser incorporados
conscientemente pelo cientista social, para que haja a “objetividade” das
ciências sociais. O cientista é que deve estabelecer o recorte da realidade a
que pretende estudar, as relações de causalidade que pretende estabelecer e
quais valores pretende atingir, e isso de modo consciente e racional. O cientista
social procura definir a singularidade de um determinado fenômeno social. A
tarefa de “entrar na cabeça” das pessoas é impossível, mas a atividade
científica pode, através de sua metodologia, chegar o mais próximo da
intencionalidade do ator social. Para isso, o cientista não pode julgar o ator com
sua própria tábua valorativa, mas pode elaborar uma tipologia de ação
condizente com a relação social (histórica) que pretende compreender, para
que possa ser confrontada com a realidade empírica. O tipo ideal consiste em
um procedimento do sociólogo, e não um fim em si mesmo. Conforme
Quintaneiro et al. (2007) são características do tipo ideal a unilateralidade (pois
é uma elaboração unilateral do sociólogo), a racionalidade (o tipo ideal tem fins
estritamente definidos pelo sociólogo, e deve se referir a um determinado
aspecto da realidade com clareza) e o caráter utópico (pois o tipo ideal, em si,
não corresponde à realidade, mas é o que permite que a realidade possa ser
trazida para a ciência social). O tipo ideal, na feliz comparação de Quintaneiro
et al. (2007), é como o ator no teatro, que exagera determinados aspectos da
personalidade, como a avareza, a sensualidade ou a maldade, para que a
plateia reconheça tais aspectos da individualidade. O sociólogo, através deste
procedimento, visa exagerar os aspectos da realidade que pretende
compreender. O exagero não é a realidade, mas é o que permite reconhecer o
real.

Weber participou ativamente dos debates epistemológicos e metodológicos de


sua época, o que implicou em profundos debates em torno da razão e
racionalidade. Tal debate não é propriamente uma novidade em sua época,
mas desde o Renascimento a racionalidade e a individualidade foram temas
constantes da Filosofia. A obra de Weber é também original por incorporar este
debate no entendimento sociológico. A racionalidade foi aos poucos
incorporada na teoria weberiana, principalmente a partir de sua recuperação
em 1903. A racionalização foi observada por ele como a intelectualização e
aprimoramento técnico e especialização científica peculiar ao Ocidente. Nas
palavras de Freund (1980, p.19):

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“Consiste na organização da vida, por divisão e coordenação das
diversas atividades, com base em um estudo preciso das relações
entre os homens, com seus instrumentos e seu meio, com vistas à
maior eficácia e rendimento. Trata-se, pois, de um puro
desenvolvimento prático operado pelo gênio técnico do homem.
Weber caracteriza ainda esta racionalização como uma
sublimação, quer dizer como um refinamento engenhoso da
conduta da vida e um domínio crescente do mundo exterior.”

A racionalidade não é apenas um traço do espírito humano, como pretende a


Filosofia, mas em Weber é racionalmente quantificável e determinada nas
ações sociais. “O processo de racionalização se estende a todas as formas de
condutas humanas: à religião, ao Direito, à ética, à educação, à ciência, o que
garante a sua ‘superioridade’” (Carvalho, 2004, P. 49). A racionalização é traço
característico da modernidade ocidental, embora possa ser observada no
Oriente, é no Ocidente que ela marcou profundamente esta sociedade. A ação
racional é, portanto, marca fundamental para entendermos a modernidade
ocidental. Importante notarmos que a época de Weber vive uma intensa
descristianização, em toda a Europa, ecoando na intelectualidade alemã: “O
‘Deus morreu’ de Nietzsche é a expressão filosófica de uma crise geral dos
valores religiosos” (Lallement, 2003, p. 278). Weber se ocupa do processo de
racionalização crescente da sociedade, como traço singular da modernidade.

Das infinitas possibilidades de ações que o ser humano pode realizar, a ação
racional é essencial no ocidente, e sua compreensão é base do estudo
sociológico da modernidade. No entendimento de Weber, a tipologia ideal da
ação racional comporta as seguintes formas de ação:

“1) racional com relação a fins: determinada por expectativas no


comportamento tanto de objetos do mundo exterior como de outros
homens, e, utilizando essas expectativas, como “condições” ou
“meios” para o alcance de fins próprios racionalmente avaliados e
perseguidos.
2) racional com relação a valores: determinada pela crença
consciente no valor – interpretável como ético, estético, religioso ou
de qualquer outra forma – próprio e absoluto de um determinado
comportamento, considerado como tal, sem levar em consideração
as possibilidades de êxito.
3) afetiva, especialmente emotiva, determinada por afetos e estados
sentimentais atuais; e
4) tradicional: determinada por costumes arraigados.” (Weber, 2001,
p. 417).

Uma parte fundamental da obra de Weber é sua teoria sobre a dominação. Se


a sociedade é o conjunto de ações sociais e relações sociais, devemos
considerar que ações e relações não são “soltas”, mas estão relacionadas a
poder e obediência. A questão que se impõe é como as ações encontram
legitimidade, ou ainda como perduram no tempo. A sociedade, observada da

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perspectiva individual é um grande sistema de submissões, consentidas ou
não, onde obedecer e ter autoridade estão presentes em praticamente todas
nossas relações: “Em todo caso individual, a dominação (‘autoridade’) assim
definida pode basear-se nos mais diversos motivos de submissão: desde o
hábito inconsciente até considerações puramente racionais, referentes a fins”
(Weber, 2004A, p. 139). Desta forma, a dominação se torna um objeto de
interesse da sociologia weberiana, ao lado da racionalidade e assim como as
ações, a dominação é uma probabilidade de entrega da própria vontade à
vontade de outras pessoas.

No texto “Os três tipos puros de dominação legítima” (2006A) Weber questiona
a respeito da tipologia ideal pura das formas sociais de obediência legítima, ou
seja, na relação onde o dominado tem convicção que a obediência é justa,
correta e até mesmo racional. Nesta base de legitimidade, há inclusive a
presença de uma “base jurídica” (Weber, 2006A) que garante sua existência
interna no dominado. A primeira forma de dominação legítima é a Dominação
legal, cuja ideia básica é “qualquer direito pode ser cria do e modificado
mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma” (p. 129). Esta
dominação acontece em virtude estatutos e normas e seu tipo mais puro é a
dominação burocrática. Esta forma de dominação se relaciona com a ação
racional, e acontece em virtude da crescente racionalidade tanto nas
instituições políticas, como o Estado, como nas empresas capitalistas. A
segunda forma de dominação é a Dominação tradicional, que ocorre “em
virtude da crença na santidade das ordenações e poderes senhoriais” (p. 131),
sendo que seu tipo mais puro é a dominação patriarcal. Se relaciona com a
ação tradicional, e é a repetição do costume e da tradição – familiar – nas
relações individuais. O terceiro tipo é a Dominação carismática, que é “a
devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma)” (p.
134), que implica no reconhecimento, por parte do dominado (apóstolo), em
dotes extraordinários, mágicos, heroicos, de poder (intelectual ou oratória) no
dominador (líder). A teoria da dominação em Weber tem o condão de
compreender o direcionamento de nossas ações, uma vez que a probabilidade
de obedecermos a um desses três tipos legitimamente é uma constante social,
mas também se encaixa em sua teoria da racionalidade, uma vez que a
dominação legal é aquela que cada vez mais se faz onipresente na vida do
sujeito.

Conforme pudemos notar, Weber não foi originariamente um sociólogo, mas


percorreu um caminho científico até chegar nas questões sociais, passando
principalmente pela história e filosofia. Até o momento, parece que sua
contribuição à Sociologia foi essencialmente metodológica, o que é apenas
parte de seu sistema. Os debates e a ponderação metodológica que assumira,
além da visão sobre a racionalidade como traço social, “permitiram-lhe lançar
novas luzes sobre vários problemas sociais e históricos, e fazer contribuições
extremamente importantes para as ciências sociais” (Tragtenberg, 1980, p.
XV). Tais contribuições situam-se especialmente no seu entendimento
sociológico sobre as religiões e as relações econômicas, especialmente o
capitalismo.

Novos Estudos em Orientalismos


50
Parte fundamental de suas teorizações é a implicação que as sociedades são
também grandes sistemas de dominação e, ainda que as ações e relações
sociais impliquem em uma forma difusa de associação entre humanos (sem um
controle ou intencionalidade central) há um sentido em geral que é construído
de forma pessoal ou impessoal pelos atores sociais. A religião possui um peso
simbólico e tradicional fundamental para a ação dos homens e da formação da
cultura. No texto “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo” (2004) Weber
demonstra como a religião dá sentido às transformações do mundo, molda a
racionalidade ocidental e direciona o capitalismo como forma de dominação do
mundo, tendo como consequência o desencantamento do mundo e a jaula de
aço (2004, p. 164). Aqui inclusive se insere os Ensaios de sociologia da religião
que produziu, sobre a “Ética econômica das religiões mundiais” (2016) que em
seu primeiro volume analisa o confucionismo e taoísmo. A expressão “ética
econômica” significa os “estímulos práticos para a ação fundamentada nos
contextos psicológicos e pragmáticos das religiões” (p. 20, grifo no original).

No caso do Oriente, considera ele que “Mais que pela posse, a posição social
na China tem sido determinada há doze séculos pela formação cultural e,
particularmente, pela qualificação para ofícios públicos, constatada por exame”
(Weber, 2016, p. 203, grifo no original). Formação literária chinesa estabelecia
a posição social, e assevera, “até muito mais exclusivo do que na Europa
durante a época humanista” (p. 203). Os letrados chineses foram a camada de
dominância nesta sociedade:

“Os letrados chineses constituem e constituíram, definitivamente há


mais de dois mil anos, a camada dominante na China, embora com
interrupções e frequentes lutas violentas, mas sempre retornando e
sempre em proporções crescentes. (...). Pois bem, foi de
incomensurável importância para o tipo de desenvolvimento
seguido pela cultura chinesa o fato de esta camada dominante de
intelectuais nunca ter assumido o caráter clerical como no
cristianismo ou no islame, nem tampouco o de rabinos judeus,
brâmanes indianos, sacerdotes do antigo Egito ou escritores
egípcios ou indianos. É verdade que ela se desenvolveu a partir de
uma instrução ritual, mas com uma formação distintamente laica.”
(Weber, 2016, p. 204, grifo no original).

Apesar desta formação em paralelo à religiosidade, a camada de letrados


percebia-se como uma espécie de estamento, e enquanto uma unidade, a
condição de única portadora de cultura chinesa, e de forma homogênea. Os
letrados ocupavam a administração política interna, obrigando a orientação da
administração estatal de forma “correta” o que “condicionou o abrangente
racionalismo prático-político na camada de intelectuais na época feudal”
(Weber, 2016, p. 207). Assim, cabia “aos representantes da comunidade
influenciar os espíritos: ao imperador como sumo pontífice em favor da
comunidade política; aos príncipes em favor da família do chefe do clã e do pai
de família” (p. 206).

Novos Estudos em Orientalismos


51
Ao se questionar sobre a formação dos letrados, ou seja, de sua educação,
Weber irá enunciar sua teoria dos tipos ideais de educação que se dividem de
forma bastante próxima da ação racional e dos tipos de dominação (Sell, 2002,
p. 210), o que é bastante interessante entendermos que para este autor a
educação é decorrência lógica da racionalidade e dominação.

Assim, uma primeira forma de educação é carismática onde “A disciplina


carismática da antiga ascese mágica e as provas heroicas executadas por
magos e heróis guerreiros com jovens mancebos tinham por finalidade ajudar o
noviço a adquirir uma ‘nova alma’ em sentido animista, um renascer” (Weber,
2016, p. 218) uma vez que o “carisma não pode ser ensinado” assevera ele.

Uma segunda forma de educação é a técnica, que “procura treinar o educando


a fim de torna-lo útil na prática para objetivos administrativos, por exemplo no
funcionamento de uma repartição pública, de um escritório, de uma oficina, de
um laboratório científico ou industrial, de um exército disciplinado” (Weber,
2016, p. 218). Esta é portanto a educação mais racional e que se encaixa na
dominação legal.

Um terceiro tipo é a educação humanística (Sell, 2002, p. 210), onde ele a


caracteriza como “a pedagogia do cultivo tem por finalidade educar, de forma
variável segundo o ideal cultural da camada social determinante, uma ‘pessoa
de cultura’, o que aqui significa formar uma pessoa com determinada conduta
de vida interior e exterior” (Weber, 2016, p. 218). A título de exemplo, Weber
fala do Japão, onde o estamento dominante era de guerreiros diferenciados, “a
educação procurará fazer do educando um cavalheiro de estilo cortesão que
desprezará atividades de escrevinhação, como o fazia o samurai japonês” (p.
218). Assim, esta é a forma de educação que segue a ação e dominação
tradicional.

Ao analisar a China e seus letrados, considera ele que não se trata nem de
uma educação carismática e nem da educação técnica: “Os exames chineses
não fixavam a qualificação especializada ao modo dos regulamentos e ordens
modernos e racionalmente burocráticos para os exames para os nossos
juristas, médicos, técnicos, etc. Por outro lado, não tampouco determinaram
especificamente a posse de um carisma, como as provas típicas de magos e
associações de homens” (Weber, 2016, p. 219). Assim a formação de letrados
é do tipo do cultivo, ou seja, o humanístico, onde se forma um determinado tipo
de homem, o letrado. O que daí decorre a unidade de classe em tão extenso
território. O que é interessante no caso é que “a camada culta chinesa nunca
foi um estamento autônomo de eruditos, como os brâmanes, mas sim uma
camada de servidores públicos e de candidatos a cargos públicos” (Weber,
2016, p. 221).

Desta forma, embora o Estado chinês tenha se tornado estável por milênios,
justamente por sua camada de intelectuais, que, embora formados em uma
perspectiva religiosa não atuavam de forma religiosa, mas burocrática e

Novos Estudos em Orientalismos


52
administrativa, por conta de uma educação calcada na tradição e na formação
do homem. E isto aconteceu por conta da religião confuciana que manteve
aspectos altamente ritualísticos e inclusive manteve aspectos de magia. Por
conta disso, “as características ritualistas desta religião produziram um
‘racionalismo de acomodação do mundo’” (Sell, 2012, p. 127).

A obra de Weber possui assim imenso potencial para a compreensão da


história e da sociedade. Muito embora seus escritos possuam mais de um
século e que possam ser confrontados com diversos estudos críticos sobre o
orientalismo, os temas levantados pelo autor alemão como a dominação,
racionalidade e educação tanto no oriente como no ocidente são de grande
importância para as ciências humanas de nossos dias.

Referências
Rafael Egidio Leal e Silva é professor Me. de Sociologia do Instituto Federal do
Paraná Campus Umuarama.

CARVALHO, A. Educação e liberdade em Max Weber. Ijuí/RS: Unijuí, 2004.

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1980.

LALLEMENT, M. História da ideias sociológicas: das origens a Max Weber.


Petrópolis: Vozes, 2003.

QUINTANEIRO, T. et al. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber.


2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

SELL, C. Sociologia clássica: Marx, Durkheim e Weber. 3.ed. Petrópolis:


Vozes, 2012.

SELL. C. Max Weber e a sociologia da educação. Contrapontos, ano 2, n. 5. p.


237-250. Itajaí/SC, mai/ago 2002.

TRAGTENBERG, M. Weber (1864-1920) Vida e obra. 2.ed. São Paulo: Abril


Cultural, 1980. Col. Os Pensadores.

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G. (org.). Max Weber. 7.ed. São Paulo: Ática, 2006.

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4.ed. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2004A. Vol. 1. E 2.

WEBER, M. Ética econômica das religiões mundiais: ensaios comparados de


sociologia da religião. Volume 1: Confucionismo e taoísmo. Petrópolis: Vozes,
2016.

Novos Estudos em Orientalismos


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WEBER, M. Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez; Campinas:
Ed. UNICAMP, 2001. Parte 2.

WEBER, M. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, G. (org.).


Max Weber. 7.ed. São Paulo: Ática, 2006ª.

WEBER, M.. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

Novos Estudos em Orientalismos


54
FASCISMO JAPONÊS: DISPUTAS EM TORNO DE UM
CONCEITO por Ricardo Sorgon Pires

Introdução
Um dos temas mais debatidos e controversos na historiografia universal desde
a década de 1920 é a respeito do fascismo em suas múltiplas e possíveis
definições. Com o tempo, novas pesquisas tanto na área de história como na
das ciências sociais passaram a considerar o fascismo a partir de diferentes
enfoques, como regime, ideologia, visão de mundo, cultura, movimento político
ou social, dentre outros.

Outras variáveis são inseridas de acordo com a perspectiva teórica, política e


mesmo ideológica dos pesquisadores dedicados a esse tema. Assim, uma
grande dificuldade, que para alguns autores chega a ser intransponível, é
definir, ainda que de maneira ampla, o que é o fascismo e quais são seus
elementos mínimos a partir dos quais é possível fazer comparações da
experiência pioneira italiana, quando da ascensão de Mussolini nesse país em
1922, com a de outras nações das décadas de 1920 a 1940.

Apesar de alguns teóricos defenderem que o termo fascismo só deve ser


aplicado ao caso italiano, esse artigo parte da premissa de que esse conceito
pode ser utilizado para pensar diversas experiências políticas e sociais levadas
a cabo por alguns países durante a vigência do chamado fascismo histórico
(1921-1945), uma vez que durante esse período fatores como crise econômica,
desemprego, xenofobia, racismo, guerra, extremismo político, expansionismo e
militarismo, se fizeram presentes em diversos países no mundo.

Mesmo com uma incomensurável bibliografia a respeito do fascismo, produzida


em diversos países desde a década de 1920, grande parte dela ainda é pouco
conhecida pela academia brasileira dedicada ao assunto, chegando mesmo a
haver um quase completo silêncio quanto à situação política e social do Império
do Japão na década de 1930 até 1945. Evidentemente, a experiência desse
país é de grande importância haja vista o protagonismo do Japão no cenário
internacional, culminando com sua entrada e posterior derrota ao lado do Eixo
na Segunda Guerra Mundial.

O contexto da Guerra Fria teve uma clara influência nos estudos sobre o
fascismo como um todo, como aponta Francisco Teixeira (2000, p. 114-122).
No caso do Japão, as discussões acerca da natureza do seu regime político
foram fortemente influenciadas pelo governo dos EUA que não tinha interesse

Novos Estudos em Orientalismos


55
em considerar como ex-fascista um atual aliado seu contra a URSS. Ao
contrário, interessava mais enquadrar o Japão como uma democracia
interrompida pelo militarismo e que agora ressurgia (assim como sua
economia) após seu alinhamento com os EUA (WILLESNKY, 2009, p.76).

Considerando que a bibliografia a respeito da possibilidade de denominar o


Japão no período como fascista ou não fascista é imensa, remontando ao início
da década de 1930, esse artigo não pretende defender uma posição a respeito
tão pouco esgotar a discussão. Espera-se apresentar o debate e algumas das
interpretações, tanto as que afirmam que o Japão se tornou um Estado
fascista, quanto as que afirmam o contrário. A intenção, portanto, é demonstrar
alguns dos principais argumentos dessas diferentes perspectivas, procurando
enfatizar a quantidade e a diversidade de abordagens possíveis. Nesse
sentido, esse artigo não irá se dedicar a uma tentativa de definição, ainda que
mínima e provisória, de fascismo, trabalhando, ao invés, com as definições
propostas pelas duas matrizes interpretativas aqui elencadas.

Japão de 1930-1945: Autoritário, militarista e conservador


De maneira geral, é possível afirmar que a maioria dos estudiosos europeus e
norte-americanos rejeita a nomenclatura de fascista ao referirem-se ao regime
político japonês da década de 1930 e 1940, ou então, para evitar complicações
conceituais, se utilizam de termos compostos como fascismo militar, sistema
fascista imperial, dentre outros. Até a década de 1980 esse posicionamento, no
Ocidente, era completamente dominante, sendo desafiada na década de 1990
e principalmente na de 2000.

Os autores Kasza (1984), G. R. Griffin (1993), S. Payne (1995) e R. Paxton


(2004) são alguns dos quais não comungam com a perspectiva fascista. Os
três últimos são autores de obras maiores que buscam elaborar uma teoria
para o fascismo como um todo (como ideia, movimento, regime) e reservam
um espaço para a discussão do caso japonês. Já Gregory Kasza, que segundo
o próprio Payne é o analista ocidental mais perspicaz sobre a temática do
autoritarismo japonês, é uma das principais referências para os críticos do
conceito de fascismo japonês.

O ponto de contato entre quase todos os analistas que recusam do conceito de


fascismo japonês, se concentra na assertiva de que o Japão dos anos 1930 e
1940 não experienciou a ascensão de um movimento fascista ao poder
organizado em um partido único, não teve um líder carismático e onipotente e
não organizou movimentos de massa em torno de grupos fascistas. Ainda que
todos concordem que houve certas analogias com o modelo fascista e
principalmente nazista (militarismo, expansionismo, intensa propaganda,
censura e opressão estatal) as diferenças foram decisivas.

Os quatro autores concordam com o fato de que o movimento japonês


geralmente enquadrado como fascista, o Tôhôkai (Sociedade do Leste),
fundado por Nakano Seigo em 1936, não teve grande espaço na arena política

Novos Estudos em Orientalismos


56
contando com poucos membros, ínfimo apoio popular e tendo sido dissolvido
em 1943 após a prisão e morte de Seigo.

Outro ponto em comum é a noção de que o regime imperial japonês foi menos
radical e revolucionário que a Alemanha nazista ou a Itália fascista. O sistema
parlamentar japonês nunca foi totalmente destruído, não houve uma variante
japonesa para a SS ou para os campos de extermínio (PAYNE, 1995, p.336) e
nenhuma tentativa de modificar radicalmente as estruturas políticas e
econômicas, (KASZA, 1984, p. 614-615). Esse menor radicalismo é explicado
por Paxton pelo fato de o Japão, em comparação com Itália e Alemanha, ter
enfrentado menos problemas críticos. Não sofreu derrotas militares
internacionais, não passou pela intensa mobilização e ação de movimentos
revolucionários de esquerda e nem o risco de desintegração territorial
(PAXTON, 2004, p.200).

Paxton defende que a questão do fascismo japonês pode ser pensada em dois
momentos: fascismo de baixo (from below) e de cima (from above). Sendo que
o fascismo “de baixo” chega ao fim em 1932, após uma série de assassinatos
políticos e das tentativas frustradas de golpes de Estado por parte de jovens
oficiais ultranacionalistas com apoio de alguns grupos civis. É curioso destacar
que a nomenclatura fascismo de baixo (from below) e de cima (from above),
utilizada por Paxton, foi proposta décadas antes por Maruyama Massao, um
dos grandes arquitetos e defensores do conceito de fascismo japonês.

A questão central, para Paxton, é que governo japonês preferiu escolher no


“menu” fascista apenas o que lhe interessava, como as medidas de
organização econômica corporativa, e descartou o que não convinha,
promovendo uma “revolução seletiva” e, portanto, o fascismo “de cima” não
chegou a se concretizar plenamente. Apesar das analogias e do fato de o
regime imperial utilizar também técnicas de mobilização de massa, Paxton
conclui que ‘The Japanese empire of the period 1932-1945 is better understood
as an expansionist military dictatorship with a high degree of state-sponsored
mobilization than as fascist regime’ (PAXTON, 2004, p. 199-200).

Se Paxton destaca o contexto e a conjuntura mais recente como o motivo


central para a fragilidade do fascismo no Japão, Griffin (1993) recorre a um
passado mais distante alegando que as especificidades econômicas, sociais e
culturais do Japão construídas a partir da Restauração Meiji (1867), impediu
que germinassem as condições básicas para a emergência do fascismo. A
formação de uma estrutura social baseada na sujeição do indivíduo à família, à
comunidade, à nação e ao imperador, reforçada por preceitos budistas,
confucionistas e principalmente xintoístas (que defendia as origens divinas do
imperador), além do militarismo e do código de conduta e valores samurais, o
bushidô (caminho do guerreiro), impediu que a ideologia e o movimento
fascista se disseminassem e conseguissem apoio significativo da população
(GRIFFIN, 1993, p. 153-154).

Novos Estudos em Orientalismos


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Um dos grandes analistas sobre o fascismo, Stanley Payne (1995), endossa e
complementa os argumentos de Paxton e Griffin (conjuntura e passado
histórico) ao afirmar que o autoritarismo japonês foi fruto de uma complexa
aliança entre a burocracia estatal, os líderes econômicos conservadores e os
militares “pretorianos” (PAYNE, 1995, p. 335). Nesse sentido, a grande maioria
da direita radical japonesa era por demais elitista, assemelhando-se mais aos
liberais europeus do início do século XIX do que à direita alemã e italiana dos
anos 1930. Em parte, isso se deu porque a política de massas existia
timidamente no Japão, as organizações de trabalhadores eram fracas, a cultura
tradicional autoritária permanecia forte e a ação policial se fazia muito presente
(PAYNE, 1995, p. 333).

Apesar do fascínio e da inspiração que a Alemanha nazista teve para os


burocratas e ideólogos japoneses na formulação de políticas e instituições que
objetivavam conseguir um alto grau de controle e mobilização popular e a
neutralização da maioria das entidades individuais (sucesso que chegou a ser
maior que o da Alemanha), as diferenças com os modelos fascistas ainda são
mais evidentes, uma vez que o autoritarismo japonês não incorporou os
aspectos mais revolucionários do fascismo (PAYNE, 1995, p. 335-336). Desse
modo, o Japão estaria mais próximo da Alemanha do Segundo que a do
Terceiro Reich.

Assim, o Japão não pode ser considerado fascista por ter sido menos
industrializado, não ter desenvolvido plenamente uma democracia de massas e
ter permanecido com instituições elitistas, mesmo levando-se em conta os
assassinatos, a histeria ultranacionalista, a pressão dos radicais e o grande
crescimento do poder estatal nos anos 1930.

Gregory Kasza em seu artigo sobre a direita japonesa nos anos 1931-1936
procura demonstrar uma tipologia onde, a partir de outro trabalho de Payne,
afirma que os grupos da direita predominantes no Japão não eram os fascistas,
mas sim os denominados como direita radical e autoritarismo conservador. Tais
grupos estavam longe do fascismo por serem moderados em termos de
reformas políticas e econômicas e defenderem princípios monárquicos (todos
os grupos reverenciavam o imperador) e, por vezes, religiosos. O crescimento
da direita no pós 1932 se deu devido à guerra com a China e não por crises
internas. Kasza afirma que a direita que se tornou majoritária (a autoritária
conservadora) não usava diretamente a violência política e propunha
manipulação da população pela elite ao invés da mobilização de massa.

O modelo autoritário conservador japonês estaria, desse modo, mais próximo


da realidade política de alguns países da Europa Oriental, onde o fascismo
também foi uma minoria, a política de massa não era tão bem desenvolvida e o
padrão autoritário conservador (moderado, mais ou menos religioso, elitista,
militarizado) foi dominante. Contudo, Kasza afirma a necessidade de se pensar
em uma nova tipologia menos restrita, eurocêntrica e, portanto, mais
apropriada para o caso japonês (KASZA, 1986, p. 624-625).

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Por fim, o autor sugere o conceito de autoritarismo conservador renovacionista,
que seria caracterizado por um programa de reformas que buscaria mudanças,
porém ao mesmo tempo, a conservação da ordem social tradicional,
eliminando os excessos revolucionários (como os fascistas) e promovendo
organizações de massa a partir da burocracia como medida
contrarrevolucionária. Tal conceito não serviria apenas para a realidade
japonesa, mas também para a Polônia, Hungria, Portugal e Romênia do
período (KASZA, 1986, p. 626).

Japão de 1936-1945: A ascensão de um Estado fascista


Nessa segunda parte será discutido o trabalho do polêmico intelectual japonês
Masao Maruyama (1969 [1947, 1952]) e, mais recentemente, o artigo de
Marcus Willensky (2005), ambos defendem a validade do conceito de fascismo
japonês. Pelas datas de publicações é possível perceber que recentemente
houve uma retomada dessa questão, provocando ricos debates, que
certamente ainda prosseguem.

Masao Maruyama foi um grande pensador e cientista politico japonês da


segunda metade do século XX. Seus pressupostos acerca do fascismo
japonês, expostos em uma série de artigos, alguns iniciados ainda durante a
Segunda Guerra Mundial, mas em especial em The Ideology and Dynamics of
Japanese Fascism (1948) tiveram grande repercussão sendo, por décadas, a
única perspectiva analítica não marxista, no Japão, sobre o fascismo japonês.

Procurando compreender as raízes intelectuais e políticas para o surgimento


do fascismo no Japão. Maruyama Masao retorna ao período Tokugawa (1603-
1867) onde teriam surgido, no final do período, formas de pensamento
modernizantes e racionalistas, ao mesmo tempo em que emergiam teorias
irracionalistas ligadas à divindade do imperador, às conexões espirituais do
Japão com as divindades do shintô e a aversão aos estrangeiros. Essa
vertente ultranacionalista permaneceu forte e enraizada em setores do aparato
estatal japonês com a modernização acelerada e patrocinada pelo Estado
desde o Período Meiji (1868-1912). Uma vez que não houve uma revolução
liberal burguesa, essas ideologias ultranacionalistas somadas a uma agressiva
modernização pelo alto, forneceram as bases para o surgimento, nos anos
1930, do chamado sistema imperial e do fascismo japonês (MARCON, 2021, p.
62-63).

No texto The Ideology and Dynamics of Japanese Fascism (1948) Maruyama


argumenta que o fascismo pode se desenvolver de duas formas distintas,
dependendo da estrutura de cada Estado: o chamado fascismo “de cima” (from
above), quando ele vai ganhando espaço a partir de uma estrutura de poder já
existente, como ocorreu no Japão; e o fascismo “de baixo” (from below),
quando ele chega ao poder por meio de um partido fascista com algum tipo de
organização de massa, como ocorreu na Itália e Alemanha.

Para Maruyama, a ascensão do fascismo no Japão tem ligação direta com o


cenário de medo, de crise política, econômica e social e com o crescimento dos

Novos Estudos em Orientalismos


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movimentos esquerdistas (MASSAO, 1969, p. 165). Todavia, foi a situação de
guerra com a China (a partir de 1931) que teria incentivado o desenvolvimento
(ao longo de quase uma década) de um fascismo “de cima”, encabeçado pelo
exército, por setores-chave da burocracia, com apoio dos conglomerados
monopolistas e que aos poucos incorporou a sociedade civil, já às vésperas da
Segunda Guerra Mundial. (MARUYAMA, 1969, p. 172).

Desse modo, entre os anos de 1919 até 1936 o fascismo é, sobretudo,


ideologia e movimento. De 1936 até 1945 ele se apropria, gradativamente, da
estrutura do Estado. As principais peculiaridades da versão japonesa do
fascismo seriam seu caráter mais apegado a um ideal familiar, o qual era
fundamental para um Estado que alegava ser uma nação de famílias cujo
núcleo originário era a casa imperial, seu viés agrarista e por fim, sua ideologia
de “libertação” da Ásia do colonialismo europeu expresso, a partir de 1940, na
ideia propagandística da Grande Esfera de Co-prosperidade Leste Asiática.

A diferença central do fascismo japonês perante os outros foi seu caráter de


desenvolvimento gradativo e prolongado. Sem necessidade de manipular ou
quebrar um forte movimento operário, o fascismo conseguiu de forma “suave”
se consolidar no aparato estatal amalgamando grupos de apoio nacionalistas,
militaristas e conservadores que já existiam (MARUYAMA, 1969, p. 82).

Para Massao uma característica central do fascismo é o seu caráter plástico e


pragmático, pouco importando os meios necessários para atingir seus
objetivos, quer seja a contrarrevolução levada ao extremo, quer seja a criação
de um Estado totalitário capaz de controlar o modo de vida dos seus cidadãos.
Tal imprecisão com relação à definição e às características do fascismo se
mostram presentes desde a o surgimento do movimento fascista na Itália visto
que os próprios Benito Mussolini e Giovanni Gentile (A doutrina do fascismo,
1932) enfatizam mais os fins políticos e “espirituais” do fascismo, dando pouca
importância à definições conceituais, à coerência ideológica ou à congruência
entre teoria e prática. Esse retorno aos textos fundacionais do fascismo italiano
também foi feito por Willensky para enfatizar a plasticidade do fascismo, sua
ênfase aos fins e, portanto, a sua aplicabilidade para o caso do Japão.

Décadas depois de Maruyama e após uma longa predominância, no Ocidente,


de interpretações não-fascista sobre a experiência japonesa, o pesquisador
Marcus Willesnky em um denso e provocante artigo datado de 2005, retoma
essa questão defendendo a validade do conceito de fascismo japonês.
Willensky inicia o texto comentando o fato de que a historiografia e as ciências
sociais japonesas do pré-guerra, em sua maioria, não utilizavam conceito de
‘fascismo japonês’, ao contrário de suas contrapartes ocidentais, ao passo que
no pós-guerra ocorre uma inversão, visto que a maioria dos analistas
japoneses ainda utiliza esse conceito enquanto europeus e norte-americanos o
negam.

Willensky define o Japão como fascista embasado em três prerrogativas: A


primeira, deve-se à crescente influência, no início de 1940, do movimento e

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60
ideologia chamado Kôdô (caminho imperial), que incentivava a ação direta, a
exaltação quase religiosa do Estado e do líder (imperador), a expansão
imperial tida como uma missão e desígnio nacional e uma perspectiva
totalitária que valorizava a disciplina e o racismo.

A segunda prerrogativa refere-se à instauração, em 1940, do Imperial Rule


Assistance Association, que passou a ser o único partido político aceito e a
terceira, pelo fato de o imperador ser de facto o comandante em chefe das
forças armadas e ter autoridade também de instituir ou vetar qualquer lei,
poderes esses que estavam garantidos já pela constituição de Meiji
(WILLENSKY, 2005, p. 64- 71).

Willensky também argumenta que o fascismo no Japão foi instaurado de forma


progressiva. Detalhadamente, o autor enumera os passos que levaram o Japão
a se tornar um Estado fascista, a saber: Sua saída da Liga das Nações (1933);
a assinatura do Pacto Anti-Comitern (1936); a promulgação da National
General Mobilization Law (1938), que concedia plenos poderes ao Estado para
mobilizar a economia, a força de trabalho e o alistamento; a dissolução dos
partidos políticos (1940); a assinatura do Pacto Tripartite com Itália e Alemanha
(1940) e a instauração do Imperial Rule Assistence Association (1940).

Ainda que negado por seus governantes, o autor setencia: ‘operating without
any need for accountability to the masses, an elitist authoritarian and
imperialistic government committed to a denial of basic human equality and a
code of behavior based on lies; in other words, a fascist State’ (WILLENSKY,
2005, p.74).

Tal como Mauyama, Willensky busca demonstrar que o Japão não teve uma
democracia súbita e abruptamente interrompida nos anos 1930 por um
militarismo e sim que a própria configuração da “democracia” do Japão Imperial
foi um pré-requisito para a construção de sua forma particular de fascismo, o
qual pouca coisa fez além de exaltar e elevar a níveis extremos algumas ideias,
concepções e práticas já presentes, ainda que de forma embrionária, no
período Meiji, sendo que Maruyama vai ainda mais além, retornando ao
Período Tokugawa.

Uma das argumentações centrais do texto de Willensky é a de que o [Imperial


Japan was fascist not because it successfully copied what was happening in
Italy and Germany but because that is what the Meiji oligarchs intended it to be
though at the time they lacked the particular word to describe it as such]
(WILLENSKY, 2005, p. 67).

Willensky também considera o caso japonês como o de um fascismo “de cima”,


porém enfatiza, tal como outros estudos mais recentes, que havia uma base de
apoio considerável e que o governo imperial utilizou sofisticados mecanismos
de comunicação e manipulação de massas, alguns dos quais visivelmente
influenciados pelo modelo nazista. Essa questão do forte apoio popular já havia
também sido destacada rapidamente por Maruyama ao enfatizar a sólida base

Novos Estudos em Orientalismos


61
de apoio ao regime por parte da classe média, sobretudo professores
primários, pequenos proprietários, funcionários públicos, sacerdotes budistas e
xintoístas, entre outros (MARUYAMA, 1969, p. 57-58).

Ainda que não fique claro em que momento o Japão poderia ser considerado
fascista, ambos os autores defendem que as semelhanças com a experiência
do nazismo e do fascismo italiano são deveras evidentes. O antiliberalismo, o
anticomunismo, o racismo, o militarismo, o expansionismo, o culto ao Estado e
ao governante, a valorização da disciplina, da família e da autoridade, o ideal
corporativista, as semelhanças na organização da estrutura do Estado e da
economia, justificam o conceito de fascismo, apesar das particularidades
culturais, sociais, políticas e econômicas do Japão.

É notável as referências de Maruyama, Willensky mas também de também


Griffin acerca da importância do modelo da estrutura social, política e cultural
japonesa que foi se consolidando após a Restauração Meiji (1867). Entretanto,
enquanto para Griffin tais pressupostos históricos foram precisamente os
fatores que impediram a propagação e ascensão ao poder do fascismo, para
os outros, esse histórico forneceu precisamente as bases para o modelo do
fascismo japonês.

Considerações finais
Diante da complexidade e amplidão do debate acerca da validade do conceito
de fascismo japonês, a intenção deste artigo foi realizar uma breve
apresentação e um convite à reflexão sobre esse tema, tendo em vista a
escassa produção em língua portuguesa sobre temáticas da história do Japão,
mesmo quando se trata de um tópico de grande relevância para a
compreensão de realidades extra nacionais como o caso do fascismo japonês.
Debater sobre tal conceito é um exercício inevitável e inseparável de retorno à
discussão sobre o que é o fascismo, quais suas formas e características e as
condições para sua emergência no passado, ou reemergência sob novas
roupagens no mundo atual.

A discussão sobre qualquer conceito histórico é relevante porque o historiador


o faz a partir do presente e, como aponta Koselleck, os conceitos históricos
deixaram desde a Revolução francesa de servir apenas para a compreensão
de fatos de outrora, passando também a apontar para o futuro. (KOSELLECK,
2006, p. 102). No caso do fascismo isso é particularmente verdadeiro levando-
se em conta o crescimento nos últimos anos de, por um lado, movimentos
neofascistas e neonazistas e, por outro, de negacionismos e fake history que
buscam negar os crimes e atrocidades cometidas em um passado recente por
regimes ditatoriais de direita. Esses dois fenômenos demonstram a urgência de
se refletir sobre o (neo)fascismo que emerge agora (enquanto teoria e prática)
com pretensões a um novo e sombrio futuro.

Referências
Ricardo Sorgon Pires é graduado em história pela Unesp de Assis e doutor em
História Social pela USP onde desenvolveu uma tese sobre a imigração

Novos Estudos em Orientalismos


62
Okinawana em São Paulo. Desde 2016 é professor de história no IFSP,
atualmente no campus de Registro.

GRIFFIN, Roger. “Non-European and Post-war Fascism”. In: The Nature of


Fascism. New York: Routledge, 1993.

KASZA, Gregory, J. “Fascism from Below? A Comparative Perspective on the


Japanese Right, 1931-1936”. Journal of Contemporary History. Vol. 19, N. 4,
1984, p. 607-629.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

MARCON, Federico. “The quest for Japanese Fascism: a historiographical


overview”. Ca’ Foscari Japanese Studies, vol. 14, Dossiê Religion and Thought,
n. 4, 2022.

MASSAO, Maruyama. “The Ideology and Dynamics of Japanese Fascism”;


“Fascism – Some Problems: A Consideration of its Political Dynamics”. In:
Thought And Behavior In Modern Japanese Politics. London, Oxford, New York:
Oxford University Press, 1969.

PAXTON, Robert, O. “Other Times, Other Places”. In: The Anatomy of Fascism.
New York: Vintage Books, 2004.

PAYNE, Stanley, G. “Fascism Outside Europe?”. In: A History of Fascism,


1914-1945. Madison: The University of Wisconsin Press, 1995.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira. “Os fascismos”. In: FILHO, Daniel Aarão
Reis; FERREIRA, Jorge; ZENHA Celeste. O Século XX Volume II O tempo das
crises Revoluções, fascismos e guerras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.

WILLESNKY, Marcus. “Japanese Fascism Revisited”. Stanford Journal of East


Asian Affairs. Vol. 5. N. 1, 2005, p. 58-77.

Novos Estudos em Orientalismos


63
VOLTAIRE E A CHINA: DA ESTABILIDADE POLÍTICA A
MODELO PARA A EUROPA DO SÉCULO XVIII por
Ricardo Hiroyuki Shibata

A predileção de Voltaire (Jean-Marie Arouet) pela China é particularmente


visível ao se examinar o conjunto de seus escritos de vária ordem. Naqueles de
caráter filosófico, ou nos textos históricos, ou mesmo em sua obra ficcional, a
China e a sua história multimilenar serviu de referência estratégica para a
construção de uma nova civilização européia – justamente aquela que
cumpriria os padrões disseminados pelo pensamento iluminista. Trata-se de
um lugar insuspeitado no interior do pensamento voltairiano e mesmo a fortuna
crítica acerca da filosofia Iluminista pouco percebeu a importância dessa
temática para o pensamento do século XVIII. Mesmo porque a diatribe contra a
ortodoxia católica ou a crítica aos jesuítas da Segunda Escolástica – de fato, os
seus representantes mais exemplares – esteve basicamente no centro das
atenções.

No entanto, para Voltaire, a resposta estratégica para uma civilização, que ele
considerava em decadência e imersa no obscurantismo, era justamente buscar
na história antiga dos povos e nas suas respectivas culturas as matrizes e os
modelos para uma reforma social de grande amplitude. Vale destacar, aqui,
que, a partir disso, Voltaire nunca foi partidário de uma “revolução”, “rebelião”
ou ainda uma “insurgência” política que abalaria os esquemas hierárquicos
estabilizados no âmbito do Antigo regime (BERCÉ, 1987). A China forneceria,
pelo contrário, várias práticas, hábitos e valores que, adaptados ao contexto
coetâneo, reconduziria, de modo satisfatório, o sistema europeu de ordens,
com seus graus diversos de subordinação, à estabilidade, à paz e à harmonia.

De fato, Voltaire tratou a questão da Ásia e seus correlatos a partir da


perspectiva da história cultural da Europa, em seu sentido mais amplo. Para
ele, em vários momentos estratégicos, a filosofia iluminista deveria destacar a
relevância das nações asiáticas, sem levar em conta, em certa medida, a
distância geográfica e as diferenças culturais. Dessa forma, disseminado um
pouco por vários textos, porém com ênfase em certos escritos de matiz cultural,
podemos encontrar o que Voltaire pensava sobre a contribuição asiática para a
história coetânea de um Ocidente que ele votava decadente (em seu aspecto
civilizacional), tirânico (em suas matrizes políticas de base) e obscurantista (por
seu viés de censura ao livre pensamento e à difusão de novas idéias).
(MALBRANCHE, 2021, pp.53-63)

Novos Estudos em Orientalismos


64
No século XVIII, em que vicejava a Ilustração, a Ásia, conforme a imagem
concebida por Voltaire – ou, pelo menos, a representação que tantos filósofos e
letrados assim forjavam –, pouco tinha a ver com o exotismo ou com qualquer
outra imagem de terras distantes, habitadas por povos sem lei, sem sistema
governativo ou sem um vocabulário propriamente sofisticado. Nesse sentido,
se a cultura européia destacou os indígenas americanos como destituídos de
F, L e R, isto é, sem fé, sem lei e sem rei, os asiáticos tiveram muito melhor
sorte. A Pérsia (de fato, o Oriente Médio e terras do Levante), a Índia e a China
eram os opostos simétricos, todavia, em sinal contrário, de uma Europa que
carecia das luzes da razão. Sob o rótulo de Ásia, Voltaire reconhecia uma série
extensa de boas práticas civilizacionais que serviriam perfeitamente para
rechaçar a escuridão que grassava sobre o Ocidente. (MAVERICK, 1946)

Desde muito cedo, é possível reconhecer na obra de Voltaire esse fascínio pelo
Oriente, em que pesava uma mistura explosiva, intelectualmente falando, entre
curiosidade e admiração. Em seu Essai sur le poème épique (primeira versão,
publicada em inglês, datada de 1727), Voltaire destacava que foram os
portugueses os primeiros a trazer à luz o caminho marítimo para as Índias e,
portanto, essa nova abertura europeia em direção ao Oriente, com seus
cobiçados produtos e com seus povos inusitados. De passagem, na Idade
Média, as terras orientais vinham descritas na narrativa de Marco Polo na corte
do grande Cã e nos inúmeros relatos de peregrinação que descreviam os
reinos para além da Terra Santa. Entretanto, esta obra voltariana, cujo
fundamento se destaca por seu pioneirismo, é, como muitas vezes se disse,
um longo ensaio de literatura (e de antropologia) comparada, em que se
avaliam os grandes poemas épicos, desde o grego Homero ao inglês John
Milton. É por isso, justamente, que permitiu um quadro comparativo de mais
ampla gama, concorrendo diferentes costumes e hábitos de nações diversas.
(VOLTAIRE, 1830)

No entanto, é, no Essai sur les mœurs et l’esprit des nations, publicado em


1756, que Voltaire procurou desvelar, em detalhes, a história universal desde
os caldeus aos ameríndios, passando pelos hebreus e os romanos. Aqui, um
pouco de modo surpreendente para o nosso pensamento contemporâneo,
estão presentes elementos de geologia, narração de milagres, conceitos de
imortalidade da alma, e lendas e contos de caráter sobrenatural. O que não
quadraria com um estudo histórico, cuja hermenêutica se fundamenta em
documentação arquivística ou em método analítico de base cientificista. Escrito
em estilo ligeiro e despretensioso, Voltaire analisa este impressionante
conjunto de povos que constituem o gênero humano. No fundo, o objetivo é a
clara defesa de uma tese lapidar: o gênero humano possui práticas, valores e
crenças que são semelhantes em todos os lugares do mundo e que se
estendem por um longo espectro temporal. Desde o início da humanidade, os
homens tiveram superstições primitivas e sonhos premonitórios, além de
padecerem a intervenção divina nas coisas terrenas e mundanas. O que
conduziu Voltaire a formular o seu conceito de “religião natural”, vale dizer, o
esboço de um quadro geral, de cariz moralizante, em que se representa
“l’histoire de l’esprit humain” (VOLTAIRE, 1835, p.i).

Novos Estudos em Orientalismos


65
É estrategicamente neste contexto amplo que as figurações sobre o Oriente – a
China, em particular – ganham enorme relevância. Trata-se, para Voltaire, do
berço da civilização e de todas as artes, em que se podiam encontrar os
costumes em seu estágio de formação, isto é, de uma racionalidade própria
que ordenava os modos e os hábitos a partir de uma teleologia, cuja causa final
era o progresso humano (VOLTAIRE, 1835, p.3).

Mais especificamente ainda, foram os chineses, segundo a periodicidade


instituída por Voltaire, que primeiro criaram os vários usos da escrita e um
sistema governativo regrado, com a acumulação de saberes fundados na
construção de um dado regime de historicidade, compartilhado de modo
coletivo e consuetudinário. Isto, enquanto os povos europeus conviviam com o
iletramento, com a ausência das luzes do saber, com o caos das guerras
tribais, com a fragmentação territorial e o espírito de dissenso.

Uma longevidade impressionante, pois foram quatro mil anos, com leis,
costumes, língua, modo de vestir sem qualquer alteração relevante. A história
chinesa começou em tempos imemoriais, segundo reza a tradição fundada em
relatos orais, com as observações astrológicas, em que o conhecimento acerca
do funcionamento dos eclipses exerceu papel estratégico. E foi justamente a
partir disso, que foi possível o surgimento das dinastias, ligando “l’histoire du
ciel à celle de la terre” (VOLTAIRE, 1835, p. 14). Além disso, foi a enorme
inventividade dos chineses que possibilitou a criação dos tipos móveis para a
imprensa, da artilharia, dos canhões e da pólvora, dos instrumentos
astronômicos (astrolábio, bússola), e a impressionante descoberta das
coordenadas geográficas com seus meridianos e paralelos. O que
demonstrava cabalmente “la supériorité des Chinois sur les autres peuples
d’Asie” (VOLTAIRE, 1835, p.25).

E, para refutar os missionários e aventureiros europeus que descreveram a


China como um sistema despótico, Voltaire esclarece que “dans les plus
anciens temps de la monarchie, Il fut permis d’écrire sur une longue table,
placée dans le palais, ce qu’on trouvait de répréhensible dans le
gouvernement” (VOLTAIRE, 1835, p.28). O que invalidava a tese de
Montesquieu, em seu O espíritos das leis, e as suas “imputations vagues”
(Idem, Ibidem). Mesmo porque, “Tous les vices existent à la Chine comme
ailleurs, mais certainement plus reprimés par le frein des lois, parce que les lois
sont toujours uniformes” (Idem, Ibidem).

De fato, em meados do século XVIII, a proliferação de narrativas de viagens,


descrevendo as peripécias e aventuras dos viajantes na China, fez a balança
pender dessa admiração voltairiana – uma sinofilia – para um desprezo pela
barbárie – uma sinofobia (COUTEL, 2009, pp.47-54). Essas descrições que
desvelavam a sociedade, a cultura, a política e a natureza chinesas acabaram
por contaminar a próprio conceito que os europeus conceberam sobre a Ásia,
de modo geral. Voltaire se manteve fiel à idéia de que a China conseguiu
desenvolver a contento o conceito de liberdade (aquele conceito que era chave

Novos Estudos em Orientalismos


66
no contexto da Ilustração). Para ele, o que ocorreu, em verdade, foi que a
China conseguiu repelir a influência perniciosa do Cristianismo, em particular,
aquele fanatismo propagado pela Igreja Católica em sua versão pós-Concílio
de Trento.

Nesse sentido, é perfeitamente possível afirmar que Voltaire pregava a adoção


do modelo chinês em seus aspectos de administração, de governo e de
aplicação das leis. Isto, porque os vários níveis do Estado deveriam ser
conduzidos por uma elite fundada numa meritocracia intelectual. A China
forneceria, então, as bases e as matrizes fundamentais para a construção de
um regime político que conseguiria cumprir os objetivos da civilização, em seu
pleno sentido. A partir deste ponto, o maior problema para Voltaire não era
convencer o seu público-leitor de que, em algum lugar e em algum momento,
houve sociedades e civilizações mais desenvolvidas que a civilização européia
setecentista. A questão central era pensar que o ápice da civilização fosse
aquela construída pelos chineses. O mais forte argumento para Voltaire – e
também para os partidários iluministas da sinofilia; Quesnay, por exemplo – era
que o sistema chinês se manteve estável por longo tempo. E a manutenção
dessa estabilidade era estrategicamente proporcional à força de uma dada
civilização. (PAGDEN, 2007, p.56s)

Entretanto, as maravilhas e as conquistas do país oriental, que os textos


fartamente informaram, bastavam para provar que se tratava de um exemplo
bem acabado de grandeza econômica e de grandeza cultural. Enquanto, para a
Europa, restava a divisão em diversos poderes concorrentes, o dissenso entre
as facções políticas e a alternância entre tempos de fartura e de declínio, o
Império chinês vicejava, permanecendo imune aos tormentos das várias
sucessões temporais e as suas respectivas mudanças. A história trouxe para a
Europa, a imprevisibilidade e, com isso, a instabilidade, pois nunca houve paz
verdadeira entre a queda do Império romano até o reinado de Carlos Magno.
De fato, segundo Voltaire, a França, por exemplo, seria pacificada apenas no
reinado de Luís XIV; momento, em que atingiria seu ápice civilizacional.
(PAGDEN, 2007)

Em verdade, Voltaire era uma voz dissonante no contexto intelectual do


Iluminismo, que era basicamente dominado pela imagem de uma China
despótica e povoada de exotismos – até culminar, no século XIX, com o
“chinesismo” (as chinoiseries que a burguesia parisiense venerava como traço
de sofisticação). Desse outro lado, pensadores e escritores do quilate de
Montesquieu, Daniel Defoe, Adam Smith, Denis Diderot, marquês de
Condercet, Jacques Turgot – cada um em seu próprio escopo – ajudaram a
consolidar uma visão eurocêntrica do mundo, que relegava a China (e o
Oriente, de maneira geral) como país inferior aos países ocidentais.

Quer dizer, tudo aquilo que Voltaire reconhecia como virtudes e valores que
mantiveram a China como grande império, fora tratado com enorme desprezo.
Dessa forma, a famigerada estabilidade chinesa significava inércia e
consolidação de uma tradição arcaica. As rebeliões locais e as guerras civis

Novos Estudos em Orientalismos


67
eram sinônimo de consciência social e de reivindicação de direitos. O sistema
de mandarinato chinês não era uma forma de pacificação “temperada” ou
“esclarecida” de inúmeras vontades e interesses, mas simplesmente corrupção
desenfreada e arbitrariedade. O poder imperial, com sua aura transcendente e
religiosa, nada possuía de “poder ilustrado”; era apenas outra forma (a forma
mais perversa) de despotismo (TERRÓN BARBOSA, 2010, pp.267-277;
ICHIKAWA, 1979, pp. 69-84)

No limite, foi justamente essa visão sinofóbica que mais tempo permaneceu (e,
de certo feita, ainda permanece) nas representações que tratam da China (DU
PLEISS, 1998, pp.145-160). As obras políticas de Montesquieu, apenas para
referir o mais conhecido dos teóricos políticos do século XVIII, se esforçaram
por refutar o sistema governativo chinês e sua pretensa caracterização, com
seu viés ilustrado, em “despotismo esclarecido”, ou seja, naquilo que
estrategicamente se considerava a perfeição do Estado e a consecução de
uma sociedade igualitária (pelo menos, em termos jurídicos), em que se
mantinha a harmonia, a concórdia e a estabilidade ao longo do tempo
(MONTESQUIEU, 2000, p.211). Por outra, para François Quesnay e os
pensadores da teoria fisiocrata (QUESNAY, 1767), contemporâneos de
Voltaire, o povo chinês entendeu, desde o inicio dos tempos, que a acumulação
de riqueza em grande escala, sobretudo, envolvendo o conjunto da nação, e a
garantia de que a prosperidade era um direito dos cidadãos, era o objetivo mais
importante da sociedade. Aqui, a agricultura desempenhava papel central não
apenas para a sobrevivência da população, em termos de segurança alimentar,
mas também como forma de angariar enriquecimento e engrandecimento do
Estado. O que quadrava perfeitamente com a doutrina antiga da “economia”
(do oikós), conforme as coordenadas centrais do governo da casa, da família, e
da obtenção de sustento e incremento de patrimônio.

Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária (Unicamp) e
Pós-Doutor em História da Cultura e das Mentalidades (UFPR).

BERCÉ, Yves-Marie. Revolt and Revolution in Early Modern Europe.


Manchester: Manchester University Press, 1987.

COUTEL, Charles. Voltaire et la Chine. L’Enseignement philosophique, n.4,


2009, 59e Année, pp.47-54

DU PLEISS, Eric. L’influence de la Chine sur la pensée française au dix-


huitième siècle: état présent des travaux. Dalhousie French Studies, v.43,
Summer 1998, pp.145-160

ICHIKAWA, Shin-Ichi. Les mirages chinois et japonais chez Voltaire. Raison


présente, Année 1979, n.52, pp.69-84.

MALBRANCHE, Benoît. La Chine, modèle de tolérance de Voltaire. In: _____.


Les origines chinoises du libéralisme. Paris: Institut Coppet, 2021, pp.53-63.

Novos Estudos em Orientalismos


68
MAVERICK, Lewis A.. China. A Model for Europe. San Antonio: Paul Anderson
Co., 1946.

MONTESQUIEU. Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.

PAGDEN, Anthony. The Immobility of China: Orientalism and Occidentalism in


the Enlightenment. In: WOLFF, Larry & CIPOLLINI, Marco (Ed.). The
Anthropology of the Enlightenment. Stanford: Stanford University Press, 2007.

QUESNAY, François. On Chinese Despotism. Paris, 1767.

TERRÓN BARBOSA, Lourdes. Images de la Chine dans l’oeuvre de Voltaire.


Thélème. Revista Complutense de Estudios Franceses, 2010, v.25, pp.267-
277.

VOLTAIRE. Essai sur les mœurs et l’esprit des nations. Paris, Treutel et Würtz,
1835.

_____. Essai sur le poème épique. Paris, 1830.

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69
MONTESQUIEU E O DESPOTISMO ORIENTAL NA CHINA
por Ricardo Hiroyuki Shibata

Charles de Secondat, mais conhecido por seu título nobiliárquico, Barão de


Montesquieu (1689-1755), investiu, grande parte de seus esforços intelectuais,
rebatendo o argumento de que a China representaria uma sociedade
governada pelo despotismo esclarecido, quer dizer, pelo tipo mais perfeito de
sistema político, em que a concentração de poderes num topo era devidamente
matizado pelas luzes da razão.

A teoria fisiocrata, no século XVIII, cujo representante mais conhecido foi


François Quesnay, divulgou a idéia (logo esposada por muitos filósofos
iluministas) de que a China era o modelo de uma sociedade ilustrada. O povo
chinês conseguiu reconhecer, desde o seu início, que o pleno desenvolvimento
da sociedade era baseado no acúmulo de riqueza como objetivo final do
Estado. Aqui, a agricultura desempenharia papel fundamental, porque, depois
de assegurar a segurança alimentar da população, a produção excedente
serviria para salvaguardar recursos para momentos estratégicos ou para as
transações comerciais. Além disso, a China investiu na construção de uma
burocracia em larga escala e no incentivo à unidade religiosa. Essas ações
governativas garantiriam a paz e a tranquilidade política, o que manteria a
estabilidade do sistema ao longo do tempo e para além das vicissitudes
temporais.

Em termos gerais, Montesquieu colidia de frente contra esses dois argumentos


centrais do pensamento fisiocrata: primeiro, a agricultura como forma precípua
de formação de riqueza institucional e seu correlato de consecução da
harmonia social; e segundo, o despotismo esclarecido como virtude política,
por excelência, do Estado chinês.

Montesquieu não acreditava no conceito de “despotismo esclarecido” ou


mesmo na possibilidade de se aplicar os princípios do Iluminismo no contexto
político. Para a sua teoria dos sistemas de governo, não existe um poder que
desempenhe sua ação despótica de maneira virtuosa e que o governante
despótico, em seu sentido absoluto, no exercício de seu poder discricionário,
naturalmente, iria ser conduzido a realizar os interesses dos cidadãos.

Dizia ele, em seu O Espírito das Leis (1748), que:

Novos Estudos em Orientalismos


70
“Resulta da natureza do poder despótico que o único homem que o
exerce faça-o da mesma forma ser exercido por um só. Um homem
para o qual seus cinco sentidos dizem incessantemente que ele é
tudo e que os outros não são nada é naturalmente preguiçoso,
ignorante, voluptuoso.” (MONTESQUIEU, 2000, p.28)

Se no regime republicano, todos são iguais, pois perseguem a virtude e o


desenvolvimento de suas capacidades cívicas, isto é, o aperfeiçoamento
integral da sociedade com o objetivo de se empreender a felicidade e a
harmonia geral, do mesmo modo, existiria igualdade também no regime
despótico, porém, em sentido oposto. O despotismo deseja um conjunto social
em que os indivíduos sejam subservientes e dóceis em sua escravidão
voluntária. A legitimidade é dada pelas leis, pela administração estatal e por
todo um aparato de controle das práticas e dos hábitos. Aqui, o despotismo se
diferencia da tirania, que, como forma decaída de monarquia, usa da força e da
arbitrariedade do governante.

Quer dizer:

“como é preciso virtude numa república, e, numa monarquia, honra,


precisa-se de TEMOR num governo despótico: quanto à virtude
não é lhe necessária, e a honra seria perigosa. Nele, o imenso
poder do príncipe passa inteiramente para aqueles aos quais o
confia. Pessoas capazes de estimarem muito a si mesmas seriam
capazes de promover revoluções. Logo, é preciso que o temor
acabe com todas as coragens e apague o menor sentimento de
ambição” (MONTESQUIEU, 2000, p.38)

Um estado de medo, que reforçado de modo constante, é a primeira


característica do despotismo, segundo Montesquieu. Dessa forma, o
despotismo não poderia ser incluído na seara do Iluminismo. Para os
detratores de Montesquieu, os defensores de uma China ilustrada
argumentavam que os mandarins asiáticos não apenas eram exemplo da
existência de um sistema político com governantes esclarecidos de perspectiva
iluminista, mas também que o governo exercido por um príncipe
intelectualmente bem preparado, com seus súditos igualmente ilustrados, seria
a melhor forma de governo.

Montesquieu rebateu a estes argumentos, esclarecendo que o sistema de


governo chinês era fundado em práticas autoritárias e predatórias. Mais ainda:
para ele, a chave para se entender a estrutura de governo e da sociedade
chinesas reside em suas características geográficas, em particular, em seu
clima. Muito mais do que se deter em explicações deterministas e nos seus
efeitos a partir de referências meteorológicas ou da geografia física na
configuração do tipo de governo, o esforço de Montesquieu é ressaltar que a
enorme população chinesa se deve, em larga escala, ao clima do seu território,
que possibilitaria a um rápido incremento dos contingentes humanos. Mesmo

Novos Estudos em Orientalismos


71
porque foi graças ao clima que as plantações de arroz conseguiram vicejar
fortemente, conseguindo assim alimentar uma população tão imensa.

No entanto, é justamente essa dependência em relação a esse cultivo, refém


necessariamente das incertezas climáticas, que se constitui a pedra de toque
que faz a fraqueza da China. A escassez de alimentos é propícia à
criminalidade, ao banditismo e à formação de facções, cujo limite é a
perturbação ou a quebra da ordem social. Nesse sentido, o governo chinês
deve constantemente estar sempre resguardado das quebras de safra,
estiagens, enchentes e outras diversas variações climáticas. A consequência é
um poder que sempre se encontra entre a segurança e a opulência, e a crise e
a derrocada. Vale dizer, a instabilidade é inerente ao sistema político chinês. E
pode-se afirmar perfeitamente que, para Montesquieu, a China não é diferente
de quaisquer outros sistemas despóticos, pois a estratégia de dominação seria
a mesma.

Assim, não faria diferença um soberano ilustrado, uma população com


educação ilustrada ou uma burocracia eficiente, conforme divulgaram Quesnay,
Voltaire e os autores fisiocratas (MAVERICK, 1947). O despotismo fundamenta
sua dominação no medo e na escravidão política e, nunca, em assegurar que
cada cidadão consiga recursos para a própria sobrevivência. A base filosófica,
que estruturou a permanência do mandarinato chinês no poder, era apenas
uma questão de autopreservação. Muito distante, portanto, das ideias
iluministas sobre os preceitos da razão a comandar a civilização e seu
compromisso com o avanço constante. Além disso, tratava-se de acumulação
de poder e soberana institucional num topo, ratificado por um grupo social,
restrito a uma elite, que resguardava o domínio e o progresso de todos os
avanços científicos. Isto, então, conseguiu frear a tão propagada superioridade
tecnológica chinesa, que, em verdade, localizava-se no período inicial de sua
civilização, mas que agora estava estagnado.

No pólo oposto, os países europeus estavam num melhor momento, porque


havia um investimento massivo no progresso da ciência. Esse eurocentrismo
de Montesquieu fazia o Ocidente superior ao Oriente, e, neste caso, à China,
em particular. De fato, Montesquieu tinha predileção pelo tempo presente em
detrimento de uma história repleta de acontecimentos, reviravoltas e inúmeras
incertezas. (ELLIS, 1989)

Noberto Nobbio é particularmente enfático ao concluir que a China nada


possuía de exemplar, pois:

“O protótipo dos regimes despóticos é, para Montesquieu, o


império chinês. Enquanto a monarquia e a república são as formas
de Governo que fomentaram o desenvolvimento civil e intelectual
europeu, o Despotismo é a forma de Governo que manteve o
continente asiático num estado de constante atraso e fez dos
grandes impérios que lá se sucederam, sociedades sem história”.
(BOBBIO, 1991, p.343)

Novos Estudos em Orientalismos


72
De fato, o que parece claro é que o interesse de Montesquieu não está
propriamente em desvelar todos os mecanismos que fazem da China um
Estado de caráter despótico ou mesmo qualquer reino do Oriente, mas em
elaborar mecanismos de prevenção e combate a vontade arbitrária dos
governantes. Não há interesse em estudar, de modo crítico, ou desvelar
explicitamente uma China, em sentido positivista, com seus contornos mais
exatos. Montesquieu adverte que os governos orientais, conquanto possuam
as suas virtudes ou elementos que possam ser aproveitados para os reinos
europeus – conforme descreveram vários relatos de viajantes do período –,
eles não conseguiam garantir a estabilidade de seu poder e, portanto, do
sistema político. A manutenção do poder se deu não pela salvaguarda dos
direitos dos cidadãos, porém, por formas, ora sofisticadas ora explícitas (os
modos doces e violentos), de ameaça, chantagem e pelo emprego da força.

Dessa maneira, o despotismo não é uma exclusividade do Oriente, uma vez


que a arbitrariedade pode existir em qualquer lugar. Então, Montesquieu está
interessado, de fato, em entender o conceito de despotismo, de modo mais
extenso, independente de seu alcance territorial. Os caprichos, as variações de
humor e os interesses aleatórios por parte de qualquer governante são
condutas opressivas e mereceram as fortes críticas da filosofia iluminista,
mesmo porque a defesa da liberdade é condição precípua de todos os regimes
de sucesso.

Montesquieu destacava que a centralidade do poder estatal, seqüestrando os


direitos dos indivíduos e mantendo-os sob o total controle segundo critérios de
arbitrariedade, não era apenas uma particularidade do regime político que
governava a China – embora esta tenha sido o alvo principal de suas críticas
ferrenhas e seu objeto de análise mais detalhada –, mas também um traço
forte da organização comunitária presente em todos os povos asiáticos. O
eurocentrismo de Montesquieu reconhecia que, no continente asiático, essa
servidão dos indivíduos em relação ao poder estatal era parte do caráter
atávico da formação dos Estados naquela parte do mundo. Ou, como disse,
mais uma vez, Norberto Bobbio:

“O despotismo foi considerado politicamente desde a Antiguidade


como a forma de governo característica dos povos não-europeus, e
por isso, para aqueles mesmos povos, julgados naturalmente
servis, perfeitamente legítima, e enquanto legítima, permanente a
ponto de durar ao longo dos séculos sem decisivas correções.”
(BOBBIO, 2000, p.642)

A Europa teve melhor sorte. Embora tenha experimentado períodos de


turbulência e instabilidade, com revoltas civis, revoluções institucionais e
rivalidades entre facções (BERCÉ, 1987), ela se manteve direcionada, em
modo progressivo, para a construção de um ordenamento jurídico capaz de
servir de garantia para o estabelecimento de direitos individuais inalienáveis.
Foi somente dessa forma, com essa proteção civil, que os povos europeus

Novos Estudos em Orientalismos


73
empreenderam o desenvolvimento do Estado em franca oposição ao modo de
operar das dinastias chinesas.

Aliás, conforme explica Bobbio (BOBBIO, 1991, p.343), a obra de Montesquieu


foi a primeira a se deter, com vagar e senso metódico, na análise da questão
do despotismo. Antes disso, a tradição filosófica enfatizou basicamente os
problemas referentes à república (as inúmeras formas de aristocracia, em que
vigora a virtude) e à monarquia (o governo de um príncipe, com o
empreendimento da honra e do pundonor). Aqui, o despotismo seria tão
somente uma forma corrupta e degenerada de monarquia, quer dizer, um tipo
derivado da tirania. O governo despótico é definido como “um só, sem leis nem
freios, arrasta tudo e todos atrás dos seus desejos e caprichos”
(MONTESQUIEU, 2000, p.65).

No entanto, em Montesquieu, o despotismo ganha autonomia e uma relevância


nunca antes vista na historiografia política, distinguindo-se como uma lógica
própria de poder. O déspota se vale do império do medo, que cultiva e alastra a
corrupção de modo generalizado pelo conjunto da sociedade, e se apropria do
espaço público para cumprir objetivos particulares. O regime das trocas nas
relações sociais, então, se dá pelos vícios e, nele, todo o sistema se sustenta e
se reproduz. Esse “novo” regime, que Montesquieu agora destaca em relação a
outros regimes mais conhecidos e analisados pelos teorizadores antigos,
institucionaliza a corrupção e os métodos de se contrafazer a virtude. É, de
fato, a normalização da barbárie e da selvageria. Vários teóricos de política
explicavam que se tratava de uma lógica de exceção, pois estaria restrita a
outros povos – os países asiáticos especificamente e, daí, a enorme relevância
da temática chinesa –, porém, Montesquieu e outros filósofos iluministas
advertiam que, em pleno território europeu, já havia uma experiência
semelhante. O reinado do Luís XIV, na França, seria o melhor exemplo. Antes
de ser a matriz da perfeição do Estado, como queriam alguns iluministas
(Voltaire é o grande apoiador desta tese), foi, antes de tudo, a aplicação
concreta do instinto animalesco (a irracionalidade é o mote condutor) e do
medo constante de punição.

Mesmo porque o despotismo cria um lugar vazio, em que a arbitrariedade do


governante preenche com base em suas inclinações momentâneas. Não há
cronologia ou permanência, uma vez que tudo depende das inconstâncias do
tempo e das urgências do momento presente. Sendo assim, este lugar não tem
compromisso com a tradição, vale dizer, com a memória, com contratos e com
compromissos firmados. Além disso, há o apagamento das fronteiras entre a
virtude, com suas inúmeras derivações (honra, pundonor, coragem,
temperança etc.), e os vícios mais desprezíveis (ira, desfaçatez, cobiça etc.). A
relativização da moral e dos valores está perfeitamente representada na
corrupção das instituições, dos indivíduos e das famílias – da ética (e da
etiqueta), da economia (o governo da casa) e da política. Como não há
estabilidade das leis e do sistema jurídico, tudo depende da força do
governante para organizar, estabilizar e manter o ordenamento comunitário e o
regime de intercâmbios sociais.

Novos Estudos em Orientalismos


74
Em termos de teoria geral do Estado, o objetivo do Iluminismo é atualizar o
conceito de rei-filósofo que foi proposto por Platão em seu famoso livro sobre a
República. Para as Luzes, no século XVIII, esse déspota esclarecido deveria
contar com o auxílio valioso dos filósofos ou dos homens de letras, que, com a
sua razão, inteligência e conhecimento, libertariam os indivíduos das sombras
da ignorância e da mediocridade, em direção ao progresso e à modernização
do Estado (FORTES, 1991, p.33). Montesquieu desprezava todas as formas de
autoritarismo e buscou combater, de modo ferrenho, o despotismo e as suas
diversas manifestações (STAROBINSKI, 1990). E desvelar as artimanhas do
despotismo na China foi o primeiro passo.

No limite, não haveria, no pensamento de Montesquieu, qualquer diferença


entre o despotismo europeu e o oriental. Ambos seriam muito semelhantes, isto
é, seriam regimes de força, seqüestro de direitos, aniquilação da liberdade e
escravização política dos indivíduos. E mesmo a distância geográfica entre
Europa e China, seria apenas uma mera ilusão, porque suas construções
históricas mostrariam a mesma face de um poder único – de um só governante
–, em que a vontade e o arbítrio têm força de lei.

Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária (Unicamp) e
Pós-Doutor em História da Cultura e das Mentalidades (UFPR).

BERCÉ, Yves-Marie. Revolt and Revolution in Early Modern Europe.


Manchester: Manchester University Press, 1987.

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia e as lições dos clássicos.


Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
_____. A teoria das formas de governo na história do pensamento político.
Brasília: Ed.UnB, 1980.

ELLIS, Harold A.. Montesquieu’s Modern Politics. “The Spirit of the Laws” and
the problem of Modern Monarchy in Old Regime France. History of Political
Thought, v.10, n.4, Winter/1989, pp.665-700.

FORTES, Luiz R.. O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense,


1991.

MAVERICK, Lewis A.. China. A Model for Europe. San Antonio: Paul Anderson
Co., 1946.

MONTESQUIEU. Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.

STAROBINSKI, J. Montesquieu. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Novos Estudos em Orientalismos


75
ENTRE OCIDENTE E ORIENTE: SHAKESPEARE E
MONZAEMON por Rodrigo de Sousa Barreto

O presente artigo pretende analisar as semelhanças e divergências entre duas


obras de dois autores há muito referidos como duplos em insinuações
dramatúrgicas, William Shakespeare (1554 – 1616 d.C.) e Chikamatsu
Monzaemon (1653 – 1724 d.C.). A peça Sonezaki Shinjū (曾根崎心中) ou
Suicídio Duplo em Sonezaki é geralmente supradita como a Romeu & Julieta
do Japão, ao passo que Chikamatsu Monzaemon é imputado por muitos como
o “Shakespeare do Oriente”. Mas quais seriam os pormenores e relações
verídicas entre tais alegações?

Sobre Sonezaki Shinjū


Em breve definição, Sonezaki Shinjū é uma peça curta em três cenas,
encenada durante um dia e uma noite. Inspirada na verdadeira plebe de
Osaka, a trama acompanha um casal de amantes desafortunados que
enfrentam a desonra pública: um jovem comerciante órfão chamado Tokubei
(cuja firma lida com venda de óleos) e a cortesã por quem ele está apaixonado,
Ohatsu, com quem acaba realizando um ritual de suicídio após ser depreciado
em praça pública pela mentira e manipulação de seu melhor amigo.

Durante uma viagem a Osaka foi quando Chikamatsu presenciou relatos


recentes de umas das tragédias mais recorrentes de seu tempo. Como um
reflexo de sua época e sociedade, nasce uma de suas obras de maior impacto
cultural. De fato, o significado literal da palavra shinjū seria “dentro do coração”,
um ritual de duplo suicídio para se mostrar o interior do coração, o que não dá
para se ver [KUSANO, 2008]. No período Edo (1603 – 1868), utilizava-se o
termo para expressar o amor fiel entre uma cortesã e seu cliente. A forma de
provar esse amor seria, por exemplo, enviar uma carta especial com um voto
de fidelidade ou alguns fios do próprio cabelo, fazer uma tatuagem em alguma
parte do corpo ou até cortar um dedo mindinho em louvor a pessoa amada. A
forma definitiva de se demonstrar um amor tão ímpar seria através da morte,
quando os caminhos se mostrassem mal augurados ou impossíveis para a
estabilidade do casal. Desta forma, o termo passou a ser utilizado para se
referir a qualquer suicídio grupal de pessoas ligadas pelo amor, tipicamente
amantes, pais e filhos, e até famílias inteiras.

Em uma outra visada, o ato de shinjū entra em acordo com um senso de


sublevação social, principalmente quando tomado por um corpo-propriedade
como o de Ohatsu, uma cortesã. O ato é meticulosamente pensado entre o

Novos Estudos em Orientalismos


76
casal, entretanto, para além da preservação do seu amor e honra, a ação final
romperia com alguns dos paradigmas impostos pela sociedade para, pelo
menos, um dos envolvidos: uma cortesã é um bem material para a Casa que
serve. Controladas rigidamente dentro desses bairros dos prazeres,
estritamente proibidas de saírem dele sem a permissão de seus patrões, o
suicídio de uma funcionária acarretaria na perda do valor pago inicialmente
pela mesma (uma dívida que reflete também nos gastos posteriores de seus
vestuários, aliás muito suntuosos, sua alimentação, criação, entre outros
tópicos), gerando um grande prejuízo para o patrão e sua Casa. A morte do
cliente dessa cortesã também deixaria os donos da Casa defasados. Logo, o
suicídio seria uma forma honrosa de se apartar de um destino cruelmente
controlado, fazendo com que o ninjō (sentimento humanitário) desses
indivíduos se sobreponha aos conceitos de giri (obrigação) da sua sociedade.

É impreciso afirmar que peças shinjūmono (que tratam desses “duplos


suicídios”) celebrassem este ato, quando na verdade essas tragédias
funcionavam como espécies de réquiens, vide que os amantes que cometiam
suicídio duplo acreditavam que seriam unidos novamente no Paraíso. Uma
visão apoiada pelo ensino feudal no Japão do período Edo, que ensinava que o
vínculo entre dois amantes continuaria no “outro mundo” [MORI, 2004]. Há
também no código de honra samurai, o Bushidō, o conceito de seppuku
(切腹 lit. "cortar o ventre”), que se refere ao ritual suicida reservado à classe
guerreira. Conceito esse que está intrinsicamente ligado ao estilo de vida
samurai, que considerava sua vida como uma entrega à honra de morrer
gloriosamente, rejeitando cair nas mãos dos seus inimigos ou como forma
de pena de morte frente ao desabono por um delito ou crime cometido a seu
próprio daimyō (“senhor de terras”).

Deste modo, a formação do “suicídio” como um ato de demonstração


reconhecida de coragem, lealdade, caráter, moral e honra é inerente ao
processo de formação da sociedade moderna japonesa. Por outro lado, foi
chegada à conclusão que muitos casais do século XVIII foram realmente
influenciados pelo gênero a cometer o fatídico ato; o que inclusive leva, em
1723, a proibição da produção de peças shinjūmono pelo xogunato.

O “Monzaemon do Ocidente”
Atuante do fim do século XVI até o início do século XVII, William Shakespeare
é dono de um legado cultural que o coloca ainda na contemporaneidade como
o maior dramaturgo da história. Com um total de 37 peças teatrais, e uma
significativa produção de poesia, o inglês se esgueira, em termos quantitativos,
atrás da produção cênica de Chikamatsu Monzaemon, atuante a partir somente
do fim do século XVII, que conta com cerca de cento e dez peças teatrais.

O período Edo fora um período de total reclusão social do Japão. O contato


com o Ocidente, se não inexistente, era estritamente limitado. Com alguma
influência chinesa e holandesa em maior número (e mesmo assim restrita à
sua região portuária), o Japão não teve acesso a nenhuma forma dramática ou
literária de ícones do continente europeu operantes em seu mesmo período. Ao

Novos Estudos em Orientalismos


77
menos nenhuma que fosse oficialmente relatada, pois segundo Yasuko Senda
(2018, p. 202) “dizem que ele (Monzaemon) teria sido um seguidor de
Shakespeare”, seja pelas temáticas muito convergentes ou senso lírico de suas
produções. Contudo, não há provas que confirmem a especulação desses
estudiosos. Para dizer a verdade, apenas no fim do século XIX, durante o
desenrolar da Restauração Meiji, que o território nipônico passou a reconhecer
as maravilhas da dramaturgia ocidental. A partir de então, o próprio povo
japonês se sentiu impelido a descobrir o “Shakespeare Japonês”, sendo
Monzaemon o escolhido para receber tal honra [KEENE, 1998].

A alcunha reverberou enormemente em território ocidental, tomando o sentido


japonês de identificação paralela em busca de uma “ocidentalização” de sua
sociedade, graças a identificação de países do Ocidente como Hegemonia
mundial, muito recorrente no período Meiji (1868 – 1912) como um parâmetro
definitivo para o que seria a produção de Chikamatsu Monzaemon. Entretanto,
mesmo com temas e conclusões semelhantes, ambos artistas estabeleceram
trabalhos muito distintos, em cerne e motivação.

Para citar apenas algumas das divergências entre a produção de Shakespeare


e Monzaemon, podemos citar: primeiramente, o fato de que a escrita de
Chikamatsu se desenvolveu sem influência externas provindas de outros
países devido a situação de reclusão social do período Edo. Sobre seu notável
desenvolvimento como dramaturgo com o passar dos anos, Donald Keene
afirma que:

“Porque, ao contrário da maioria dos dramaturgos europeus, ele


não compartilhava tradições com escritores no exterior, suas peças
às vezes nos surpreendem por uma modernidade não encontrada
no Ocidente por mais de um século ou mais, e, às vezes,
igualmente por uma violência ou uma fantasia descontrolada que
associamos a um teatro mais primitivo. Mas essa aparente
modernidade ou primitividade é enganosa, e realmente significa
apenas que o pensamento de Chikamatsu desenvolvido
isoladamente não seguiu o curso do drama na Europa.” [KEENE,
1998, p. 1]

O que nos leva a mais um ponto: a maior parte do teatro escrito na vida de
Chikamatsu foram peças para o Ningyō Jōruri (人形浄瑠璃) (ningyō que
significa “bonecos” ou “semelhante ao humano” e jōruri que se refere a um
estilo particular de narrativa cantada, que significa literalmente “lápis-lazúli”, ou
ainda “bela joia”), uma das maiores referências nipônicas dentre as formas de
Teatro de Bonecos, também conhecido como Bunraku. Tal arte pode ser
definida como uma espécie de narrativa cantada, onde o texto prevalece como
componente mais importante; contudo, a formação de unidade de seu
espetáculo deriva de três elementos, básicos e essenciais, que devem ser
apreciados por igual e consistem na manipulação silenciosa dos bonecos pelos
manipuladores (três, ao todo, para cada boneco); o tocador de shamisen,
instrumento de três cordas derivado de um formato semelhante da cultura

Novos Estudos em Orientalismos


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chinesa, que acompanha a narração jōruri da dramaturgia e o propriamente
dito narrador (tayu) são os pilares que definem o Bunraku ainda hoje na
atualidade.

Muito diferente do teatro de bonecos europeu, em seu cerne voltado para o


gosto infanto-juvenil, as temáticas do teatro de bonecos japonês eram muito
abrangentes e se destinavam, sobretudo, à classe adulta. É claro que a
construção dessas cenas, em termos cenográficos e dramatúrgicos, também
se diferenciava do teatro de atores de Shakespeare. O próprio ningyō jōruri
sendo um tipo de teatro de bonecos com uma interpretação única que preza
pela narração e descrição de cenas, sobretudo, e depois a réplica de suas
afirmativas pelos manipuladores de boneco. A construção da dramaturgia do
teatro de bonecos, seja em qual continente for, mas principalmente nas
porções orientais do globo, parte para uma interpretação bastante lúdica.

Há também o consenso de que, enquanto em Shakespeare os dramas são


encabeçados por nobres e aristocratas, na obra de Monzaemon a maior parte
dos protagonistas fazem coro a parte mais desprovida da sociedade japonesa.
Temos vendedores ambulantes e prostitutas como heróis de suas histórias. E
mesmo que nada falte ao autor em lírica e estilo, não há como traçar um
paralelo definitivo entre os personagens de Shakespeare e os seus. Muitos dos
personagens do dramaturgo inglês traçam seu destino com enorme pompa,
cientes de suas afirmações (sempre atos muito verbalizados) e das conclusões
de seus atos ou esses últimos quando remediados por terceiros. No mestre
nipônico, muitos personagens se apresentam como “criaturas das
circunstâncias” [KEENE, 1998]. Seus destinos os surpreendem, e muitas das
ações tomadas levam em conta um viés social estabelecido pela época.
Questões como honra e dever superam seus ideais sentimentalistas e
individualistas, mesmo que esses entrem em voga a todo momento. Como
mais uma questão de formação da sociedade japonesa, o tópico do “coletivo
acima do indivíduo” reverbera monumentalmente em suas obras. Logo, muitas
decisões são tomadas em razão de romper, ao mesmo tempo que respeitar,
esses paradigmas. O que deixe, talvez, a obra de Monzaemon bastante
complexa a primeira interação, levando em consideração a moralidade muito
definida de Shakespeare em nós, ocidentais.

Entre Excelentíssimas e Lamentáveis Tragédias: Romeo & Juliet


Anterior ao próprio Shakespeare, o poema de Arthur Brooke publicado em
1562, The Tragical History of Romeus and Juliet, é apontado por muitos
estudiosos como principal fonte de inspiração do que viria a ser uma das peças
mais icônicas da dramaturgia ocidental.

Mas anterior a versão de Brooke, que por si só já se categoriza como uma


adaptação, a história de Romeu e Julieta se esgueira em uma tradição de
romances trágicos que atravessam nossa História. De Píramo e Tisbe, de
Ovídio, apelidados de “Romeu e Julieta da Antiguidade”, até o conto Mariotto e
Gianozza, do poeta italiano Masuccio Salernitano publicado em 1476,
posteriormente adaptado pelo historiador e escritor italiano Luigi da Porto já

Novos Estudos em Orientalismos


79
como “Giulietta e Romeo” em 1530. Dentre todas as semelhanças encontradas
no que foi anterior a de da Porto, no historiador notamos uma maior concepção
do que viria se tornar a obra de Shakespeare como, por exemplo, os nomes
dados as famílias rivais que são essenciais para o panorama de “briga
ancestral” e o passar da história em Verona [HOSLEY, 1965].

Desse modo, não podendo ter sua originalidade atrelada a história de Romeu e
Julieta, Shakespeare se destaca na construção deste mundo a partir de
múltiplas referências (ele estando ciente do histórico de todas ou não). Aqui
não importam as semelhanças com poemas e dramaturgias passadas e sim o
novo caminho para qual o dramaturgo os leva em sua abordagem muito
moderna.

Alguns dos atributos essenciais relacionados a serem destacados na sua


Romeu e Julieta (escrita entre 1591 e 1595) são lamentavelmente deixados de
lado em análises não tão apuradas de sua obra, principalmente um dos
principais pontos que nos ajudam a fazer a ligação entre o clássico de
Shakespeare e o de Monzaemon abordado neste trabalho: a construção de
uma tragédia lírica. Segundo Barbara Heliodora (1997), Romeu e Julieta
apresenta o maior percentual de rima entre suas tragédias, uma porcentagem
de 15,5% em uma média geral de 5,1%. Como visto anteriormente, o teatro
Bunraku é um teatro nascido de uma tradição de representação tanto visual
como oral. O estilo de narração jōruri possui uma musicalidade particularmente
única, essencial para a construção de seus espetáculos, sobretudo em
momentos chave de sua história, como o michiyuki (“cena de viagem”). Assim
sendo, nada mais justo que a analogia inicial feita entre essas duas peças
aborde o fato de suas sonoridades serem primordiais para a construção de
suas tramas.

Em um segundo momento, o tema do Amor jamais poderia ser deixado de


lado. O conflito da peça de Shakespeare parte de um estigma criado por pais
de famílias rivais sobre o amor de seus filhos. E para além do Amor,
presenciamos no texto de Shakespeare constantes abordagens sobre os
efeitos do Ódio e certa crítica social as inclinações de Guerra Civil e modo de
lidar com copiosas definições sociais (muitas mancomunadas dentro dos
próprios âmbitos familiares sem nenhuma piedade), temas muito recorrentes
no teatro do período Elisabetano. Contudo, de certa forma, em Romeu e Julieta
há uma inclinação geral ao conceito de Amor Cortês, tradição do medievo
tardio que seguia atitudes, mitos e etiquetas que enalteciam exacerbadamente
o amor romântico. Em outra adição, nesse sistema o amor seria ilícito (para
novos amantes, e não marido e mulher) e traria grande sofrimento emocional
[HACHT, 2007]. O que acaba por produzir boa parte do que temos hoje (e
ainda nos dias atuais sendo produzido) no cânone ocidental. O Amor que
temos em Sonezaki Shinjū é o que se aproximaria mais de uma visão “realista”
e amadurecida de Amor, onde os personagens não são adolescentes como em
Romeu e Julieta, tendo Tokubei 25 anos e Ohatsu 19 anos. Sua forma de amar
se mostra como um compromisso mais firmado e sóbrio, que se abstém do que

Novos Estudos em Orientalismos


80
seria a Paixão inerente a fugacidade do encontro tão recente entre Julieta e
seu Romeu.

O Ódio que temos em Sonezaki Shinjū, por sua vez, é representado de


maneira mais fugaz. Aparece em momento específicos, entrando em sintonia
com os embates civis presentes na peça de Shakespeare, mas se esvai aos
poucos a cada passo que se aproxima de sua conclusão; o que entra em
congruência com a atmosfera de ânimos suspensos presentes no fim da peça,
muito em razão da vertente religiosa carregada ao fim da trama.

A questão da Religiosidade também é um tópico efervescente em ambas


histórias: enquanto em Romeu e Julieta temos o personagem do Frei Lourenço
como uma entidade física representante do Cristianismo, que traça um
caminho não muito virtuoso para nossos amantes desafortunados (em uma
ação que vai totalmente contra os princípios éticos de sua religião), em
Sonezaki Shinjū (e em toda dramaturgia de Monzaemon, basicamente) temos o
Budismo, sobretudo o Budismo Amida (O Buda da Luz Infinita, da família
Lótus), como uma espécie de “aura”, principalmente durante o ato final da
peça, assim como o Confucionismo que forma a base moral e ética de sua
época [KEENE, 1998]. Em contrapartida, as fundações entre ambas religiões
são muito distintas: enquanto o Cristianismo prega pela existência de um único
Deus que subsiste em três formas ou pessoas, a Santíssima Trindade, e nossa
adoração deve se voltar exclusivamente a ela, o Budismo prega pelo fim do
sofrimento humano e o alcance da “Iluminação”, baseado em um estilo de vida
não-partidário e exclusivista, não tendo um “deus” a ser seguido, mas sim
adeptos de ensinamentos ancestrais que alcançaram o caminho de
“Iluminação” pregado por sua filosofia. Outro ponto primordial para sua
disparidade toca no destino final de nossos amantes desafortunados: enquanto
uma virá a apoiar a decisão final de nossos heróis como uma última forma de
redenção nesta vida, recebendo-os em um caminho de compaixão na próxima
vida, a outra irá totalmente contra a posição dos mesmos, onde, até o século
XX, as exéquias sequer seriam celebradas aos cristões que cometessem
suicídio (mesmo que tal sentença jamais seja proferida durante a peça em
questão de Shakespeare).

O que nos leva a analisar outro ponto paralelo entre essas duas obras: o
suicídio. Como anteriormente observado, o ato do shinjū não se atinha apenas
a uma comprovação de amor final, mas servia também como forma de
contracultura às jovens fadadas a um destino cruel dentro das Casas dos
bairros dos prazeres e outros indivíduos marcados para um fim desonroso.
Mitsuya Mori (2004) afirma encarecidamente que o suicídio em Romeu e
Julieta não seria propriamente um shinjū no verdadeiro sentido da palavra. O
que entra em muita concordância ao levarmos em conta as disparidades
sociais dos japoneses do período Edo e dos ingleses do período Elisabetano,
assim como as disparidades das classes sociais retratadas por Shakespeare e
Monzaemon em suas peças. Entretanto, não obstante, no suicídio presente em
Romeu e Julieta há um consenso de rebelião contra o que lhes foi estabelecido
pelos seus pais e sua sociedade. Mesmo que não para se livrar das amarras

Novos Estudos em Orientalismos


81
da prostituição, Julieta enfrenta uma batalha para não ter seu corpo tratado
como um bem material de sua família. Ambos preferem ir contra sua religião,
que abomina obstinadamente o suicídio, e seus entes queridos a viver em um
mundo onde suas vontades e senso de individualidade não são respeitados,
onde o amor de ambos não possa permanecer.

Em suma, ao analisar os pormenores de ambas as obras, nota-se um


involuntário repertório de temas muito similares. Todavia, mesmo em seus
encontros mais marcados, há um claro distanciamento entre as duas
dramaturgias; seja pelo ritmo mais vertiginoso de uma ou o tom mais brando de
outra ou pelas sociedades e classes socias que as duas representam e se
originam. Outrossim, a interlocução entre Shakespeare e Monzaemon, de
maneira pontuada, mostra-se muito pertinente.

Referências
Rodrigo de Sousa Barreto é graduando em Artes Cênicas – Indumentária pela
EBA/UFRJ, artista visual e atual coordenador do GEAA (Grupo de Estudos em
Arte Asiática/UFRJ). [https://linktr.ee/roba_iam]

HACHT, Anne Marie. Shakespeare for Students: 3 Volume Set. Detroit: Gale
Cengage, 2007.

HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva,


1997.

HOSLEY, Richard. Romeo and Juliet. New Haven: Yale University Press, 1965.
[livro]

KEENE, Donald. Four Major Plays by Chikamatsu. New York: Columbia


University Press, 1998.

KUSANO, D. Bunraku, Teatro do futuro. No centenário da Imigração Japonesa


no Brasil (1908-2008). In: Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de
Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 05, p. 069-090, 2018. Acesso em 6
mai. 2022. DOI: 10.5965/2595034701052008069. Disponível em:
<https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701
052008069>

MORI, Mitsuya. Double Suicide at Rosmersholm. In: The Seijo Bungei: The
Seijo University Arts na Literature Quarterly vol. 186 (78 – 65). Seijo University,
2014.

Novos Estudos em Orientalismos


82
DIPLOMACIA, IMAGEM e GUERRA COMO ANTEPAROS
HISTÓRICOS E IMAGÉTICOS AOS OLHARES
ORIENTALISTAS SOBRE O JAPÃO (1871-1910) por
Rogério Akiti Dezem

Uma parcela significativa dos discursos ocidentais sobre o Japão moderno se


alicerçou a partir de narrativas de cunho turístico, literário, estético e militar que
vão do estranhamento (do grego atopia) ao maravilhamento, confrontando
aspectos do olhar anglo-francês sob a ótica de “dominação/civilização”
naturalizada em outras regiões como no Oriente Médio, Índia e China. A priori a
localização geográfica, o fim do isolamento voluntário (do jap. sakoku) e a
escassez de narrativas atualizadas sobre o país, criaram expectativas e
questionamentos sobre o que viria a ser aquele diminuto arquipélago em
meados do século XIX. A(s) resposta(s) foi(ram) se construindo pari pasu à
(re)abertura do país a partir de fatos históricos singulares, entre eles um
processo de ocidentalização “esquizofrênico” que acabou por influenciar a
maneira como interpretamos o Japão até os dias de hoje. Dessa forma,
aspectos pontuais (diplomacia, fotografia e guerra) do processo de
modernização e ocidentalização japonesa podem ser considerados como
importantes anteparos históricos e imagéticos na produção e veiculação de
discursos de caráter Orientalista (visto sob um viés de dominação). Nesse
contexto cultural e geopolítico, a afirmação do intelectual palestino E. Said
(1935-2003) de que o Orientalismo como narrativa “essencialista” [Ver
MacKenzie, 1996] sobre o “outro” asiático se encontra “(...) na diferença
absoluta e sistemática entre o ocidente racional, desenvolvido, humano,
superior e o Oriente que é aberrante, não desenvolvido, inferior” [Said, 2007, p.
401] deixa de ser uma tentadora chave para decifrar a relação da jovem nação
japonesa em meados do século XIX junto as potências imperialistas europeias.
Acreditamos que, especificamente no caso japonês, a tentativa de aplicação do
conceito crítico de Said ao Orientalismo é no mínimo insatisfatória como uma
representação das relações entre o Japão e as nações não-ocidentais. Ao
nosso ver essa relação foi pautada por um transculturalismo [Codell, 2016, 1-
17] desde os primeiros e efetivos contatos com o ocidente na década de 1850.
Ação não-passiva, o processo de transculturação ocorre quando povos
subalternos ou subjugados tem espaços para liberdade de escolha daquilo que
irão absorver e como irão usar este conhecimento sobre o “outro”, apropriando-
se e reinventando-se a partir de seus próprios termos e necessidades [ver
Ortiz, 2003; Pratt, 1991, 1992; Archibald, 2007 Apud: Codell, 2016, p.5].

Novos Estudos em Orientalismos


83
Nossa hipótese aqui é que podemos considerar três momentos da história
moderna japonesa como produtores de anteparos históricos e imagéticos -
discursos que dialogam com às narrativas de cunho orientalista - como: 1) a
Missão Iwakura (1871-1873); 2) a Fotografia (1870-1890) como instrumento
visual da modernidade japonesa e 3) a Guerra Russo-Japonesa (1904-05).
Entre 1870 e 1910 o processo de modernização do Japão acaba por
desestabilizar a influência europeia na Ásia ao desafiar política e militarmente o
paradigma de dominação anglo-francesa na região. Por conta disto, o Japão
torna-se não apenas a nação objeto do Japonismo, mas um espelho
estilhaçado no qual uma parcela significativa dos discursos ocidentais não
poderia mais enxergá-lo a partir de relações assimétricas de hierarquização e
dominação.

O Orientalismo e o Japão
A Japonologia (ou os Estudos Japoneses) foi a “filha mais nova” no hall dos
estudos orientalistas em meados do século XIX. Ela começou a tomar corpo no
espaço acadêmico nas décadas de 1850-1870 em um contexto no qual o
Japão como representação estética, histórica e política começa a dialogar com
o ocidente. Mas ainda visto como um coadjuvante nos estudos orientalistas
[Krämer, 2019, p. 144] se comparado a longevidade e representatividade
asiática das civilizações axiais hindu e chinesa [Eisenstadt, 2011].

No início o interesse pelo “novo” Japão perpassava pelas áreas linguística,


arqueológica, religiosa, história antiga, cerâmica e do universo estético do
ukiyo-e. Espaços dominados inicialmente pelo orientalismo francês e o seu
maior rival nos estudos sobre a Ásia, o orientalismo britânico. Por outro lado, a
influência francesa vinha perdendo espaço a partir da década de 1870 no
âmbito comercial e diplomático junto aos oligarcas Meiji, por isso os espaços
acadêmicos dos debates orientalistas sobre o país eram vistos como um
caminho para se reaproximar efetivamente dos “franceses dos Ásia” (i.e.
Japão). [Conant, 1984, p. 111]. Desse modo, o pioneiro japonólogo francês,
Léon de Rosny (1837-1914) – que nunca visitou o Japão - foi indicado como
chairman do Primeiro Congresso Internacional de Orientalistas sediado em
Paris no início de setembro de 1873. Na abertura da primeira sessão de
trabalhos, o ministro japonês na França, Samejima Naonobu (1845-1880)
discursou ressaltando a importância das relações diplomáticas e culturais entre
o Japão e os acadêmicos ocidentais:

“As pesquisas realizadas pelos senhores, terão ecos no Japão; não


apenas para serem conhecidas, mas estou convencido de que,
direta ou indiretamente, isto propiciará o desenvolvimento nacional
que o meu governo está promovendo entusiasticamente... A
presença dos senhores hoje aqui, marca o primeiro
reconhecimento público na Europa da entrada do Japão no comitê
das nações ocidentais e a consonância dos nossos objetivos e
futuras aspirações. Nós já estabelecemos laços políticos e
comerciais, mas hoje, pela primeira vez, nós iniciamos laços
culturais.” [Conant, 1984, p. 119] (Tradução nossa)

Novos Estudos em Orientalismos


84
No entanto, não foi na esfera acadêmica - ainda dominada pelos “japonólogos
de gabinete” - que efetivamente os olhares sobre o Japão e os japoneses
tomaram corpo construindo as primeiras narrativas paradigmáticas sobre o
país. Podemos afirmar que além da literatura, o turismo e a fotografia
possibilitaram ao mesmo tempo olhares e opiniões de “não especialistas”
produzindo ab initio discursos que vão do estereótipo tradicional (“o Japão é o
país dos opostos se comparado a Europa/América”) até um ufanismo (“O
Japão e os japoneses são os gregos e/ou britânicos da Ásia”). Ao longo das
décadas de 1870-1900 os discursos sobre o Japão e os japoneses tornaram-se
cada vez mais multifacetados, distanciando-se cada vez mais de um olhar
dominador e exotista - associado ao cânone orientalista - para construir um
mosaico de narrativas e expectativas sobre o “outro” japonês. Segundo o
historiador Jean-Pierre Lehmann:

“Haviam aqueles que sentiam que praticamente era impossível que


o Japão se modernizasse, alcançando os níveis econômicos,
militares e políticos ocidentais. Haviam aqueles que desejariam que
as potências ocidentais deveriam se unir para auxiliar o Japão
alcançar estes níveis. Outros acreditavam que o Japão poderia se
tornar um “estado civilizado”, mas apenas se estivesse preparado
para se ocidentalizar completamente não apenas suas instituições,
mas também sua cultura, em particular abandonando sua antiga
forma de escrita e sua religião em favor do Cristianismo.
Finalmente haviam aqueles, em número significativo e influentes,
que afirmavam categoricamente que o Japão não deveria se
modernizar; eles viam o Japão como um paraíso pré-industrial na
terra que deveria ser preservado dos demônios da modernidade”.
[Lehmann, 1978, p.14] (Tradução nossa)

Ao desenvolver canais de diálogo junto às potências ocidentais que


possibilitaram a construção, e até o controle da(s) própria(s) narrativas(s), o
Japão redireciona os discursos de caráter colonizador, civilizador e assimétrico
sobre si a partir da década de 1880. No entanto, neste contexto de
relativização do orientalismo, Said (2007) alerta para um paradoxo: a
possibilidade do oriental acreditar na imagem que é criada pelo orientalista. No
projeto vertical de modernização e ocidentalização levada a cabo por
intelectuais e oligarcas do governo Meiji nas décadas de 1870-1880, ocorreu a
apropriação em muitos momentos de narrativas europeias e norte-americanas
de viés positivo sobre o Japão e os japoneses, formatando discursos
legitimadores da modernidade e servindo de anteparo histórico e imagético as
narrativas de cunho racista e exotista que rondariam a jovem nação japonesa
no contexto geopolítico ao menos até o epílogo trágico da Guerra do Pacífico
(1941-1945).

A Missão Iwakura (1871-1910)


Nas décadas anteriores ao fim da política de isolamento voluntário (1854), uma
parcela da elite japonesa tinha informações mais recentes e fidedignas sobre a

Novos Estudos em Orientalismos


85
Europa e a América do Norte do que os ocidentais sabiam sobre o misterioso
arquipélago japonês [Buruma, 2004, p. 11] Boa parte desse conhecimento
adveio dos estudos do “saber holandês” ou “estrangeiro” (jap. rangaku)
desenvolvidos pela elite samurai a partir da província de Nagasaki, onde se
encontrava a ilha artificial de Dejima ocupada por representantes do governo
holandês. Tratava-se do único entreposto comercial e intelectual com o
Ocidente desde a década de 1640. Com a reabertura do arquipélago japonês e
a necessidade da retomada do contato com os “Bárbaros do Sul” a partir da
década de 1850, um dos nobres mais influentes junto ao xogunato, o daymiô
de Mito, Tokugawa Noriaki (1800-1860) afirmava que seria necessário se
aproximar dos ocidentais e adotar os seus métodos, agregando-os ao que os
japoneses tinham de melhor (i.e. “moral japonesa”), e dessa maneira resistir as
suas investidas e se necessário expulsá-los (jap. jôi). Pensamento aprimorado
desta mentalidade, foi a adaptação de uma frase tradicional de origem chinesa
no slogan “Enriquecer o país, fortalecer o exército” (jap. Fukoku-kyôhei), ou
seja, só uma nação rica e desenvolvida economicamente poderia criar uma
máquina militar moderna, tornando-se respeitável aos olhos das potências
ocidentais e refreando os desejos imperialistas. [Beasley, 1995, p. 200-201].
Foi nesse contexto agonizante do regime do xogunato (jap. bakumatsu), que
uma série de missões japonesas com caráter diplomático (algumas com caráter
mais “pragmático”) a partir da década de 1860 são enviadas aos Estados
Unidos da América (1860), Europa (1862, 1864-67) como também o envio de
estudantes japoneses, inicialmente para Holanda (1862), e depois para realizar
observações e estudos na área militar para Rússia, França, Inglaterra entre os
anos de 1862-1868. [Beasley, 1995, p. 119]. No entanto, nenhuma dessas
iniciativas japonesas perante algumas das potências ocidentais teve tanta
importância histórica e impacto imediato como a missão Iwakura (1871-1873)
efetivada nos primeiros anos pós-Restauração Meiji (1867-68).

Com mais de cem membros, a maioria na faixa etária dos 30 anos - muito dos
quais nunca haviam saído do Japão - a primeira missão diplomática do novo
governo foi liderada pelo ministro Iwakura Tomomi (1825-1883) e percorreu em
dezoito meses os Estados Unidos, Inglaterra, Escócia, França, Bélgica,
Holanda, Alemanha, Rússia, Dinamarca, Suécia, Itália, Áustria e Suíça. Nas
palavras do próprio Iwakura, o principal intuito era “descobrir os grandes
princípios (ocidentais) que nos servirão de guia para o futuro”. [Pyle, 1996, p.
95]. O relatório final de cinco volumes e quase duas mil páginas compiladas
pelo secretário da missão Kunitake Kume (1839-1931) foi publicado em 1878 e
tornou-se um importante documento primário sobre o impacto da visita de
emissários, políticos e estudantes japoneses aos Estados Unidos e a Europa.
Base para muitas das diretrizes tomadas pelos oligarcas Meiji a partir de
observações da indústria, marinha, exército, sistemas de transporte, político e
educacional e de hábitos ocidentais. Observações que possibilitaram uma
hierarquização geopolítica, econômica e cultural das nações europeias
visitadas (França e Inglaterra na liderança, seguida pela recém unificada
Alemanha e por último a Rússia); o início de um processo de mimesis da
tecnologia e de hábitos ocidentais até meados da década de 1880 e da
percepção in loco da primeira participação efetiva do Japão em uma exposição

Novos Estudos em Orientalismos


86
universal realizada em Viena (1873), nas observações coligidas pelo secretário
Kume:

“A exibição do Japão na exposição recebeu aclamação


diferenciada dos visitantes. A primeira razão, foi que os produtos
japoneses exibidos eram diferentes dos europeus em gosto e
design, para os visitantes eles possuíam um charme exótico. A
segunda razão, foi que haviam poucas exibições notáveis de
países vizinhos ao Japão. E a terceira razão foi o crescimento da
admiração entre os europeus pelo Japão nos anos recentes. (...) O
estilo de pintura japonesa é diferente do ocidental. A elegância e o
bom gosto das nossas imagens de flores e pássaros são muito
admirados, mas a inépcia dos nossos retratos e pinturas de atores
com maquiagem são francamente embaraçosas”. [Kume, 2019, p.
437-438] (Tradução nossa)

Outro momento importante a ser ressaltado como fator de apreciação do Japão


pelo “outro” ocidental foi impacto positivo do discurso do ministro de assuntos
estrangeiros prussiano Oto Von Bismarck durante um jantar de recepção de
parte da missão diplomática japonesa em Berlim em março de 1873:

“Nações hoje em dia parecem todas conduzir relações de amizade


e cortesia, mas isto é totalmente artificial, por trás disso espreita o
desprezo mútuo e a luta pela supremacia. (...) Nós temos ouvido
sobre a angústia causada por britânicos e franceses a outras
nações pelo abuso de poder, a cobiça por colônias no exterior para
explorar os seus recursos. Esse dia não chegará se pudermos ter
relações amigáveis na Europa. Por isso nunca relaxem a sua
vigilância, por ter nascido em uma nação pequena eu sei como é
essa realidade intimamente (...). Portanto enquanto o Japão não
puder ter relações diplomáticas amigáveis com um maior número
de nações, a amizade com a Alemanha deve ser a mais próxima
possível devido ao verdadeiro respeito pelo qual nós temos pelo
direito do autogoverno. ” [Kume, 1999, p306-307] (Tradução nossa]

Em pouco mais de vinte anos o amistoso discurso acima se dissolve, o Kaiser


alemão Guilherme II cunharia a expressão “Perigo Amarelo” (ale. Gelbe
Gefhar) citando os povos do Oriente – o Japão mais especificamente - como
uma ameaça geopolítica e militar e em 1902 Japão e Inglaterra assinavam a
primeira Aliança Anglo-Japonesa de auxílio mútuo.

As fotografias produzidas em Yokohama


Foi a partir das fotografias de Yokohama (jap.Yokohama shashin), retratos e
séries fotográficas temáticas encadernadas em belos álbuns, produzidos pelos
pioneiros estúdios estrangeiros na crescente cidade portuária homônima e da
literatura de viagem, produzida por escritores viajantes a partir de 1860, que as
bases do que denomino “desejo do olhar” sobre o Japão, seus habitantes e
costumes se conformaram. A aproximação dessas diferentes formas de

Novos Estudos em Orientalismos


87
narrativa contribuiu para consolidação de um imaginário sobre o país perante a
Europa e América do Norte, ao mesmo tempo em que uma nova intelligentsia
japonesa se apropriava deste discurso literário-imagético para ora reforçar a
própria imagem divulgada a partir dos olhares não-japoneses, ora negá-la,
influenciando a produção literária e imagética autóctone para consolidar um
ideal de nação moderna não só perante o olhar estrangeiro, mas doméstico
também. Desse modo, como um dos instrumentos da modernidade japonesa
[ver Dezem, 2021]a nascente fotografia em meados do século XIX foi uma hábil
ferramenta para enxergar o mundo e ser enxergado por ele, expondo no campo
da cultura visual a incompletude de um imaginário orientalista binário como
representação e dominação sob a perspectiva saidiana, pois como afirma o
historiador Ali Behdad: “A fotografia orientalista (...) é um imaginário em
construção a partir de contingências históricas e estéticas; marcada por
fraturas icônicas e fissuras ideológicas. Mas ainda assim regulada por um
regime visual que naturaliza a sua particular maneira de representação”.
[Behdad, 2013, p. 11] (Tradução nossa)

Para Behdad o Orientalismo não deve ser entendido apenas como um discurso
ideológico de dominação e poder ou como um termo neutro na História da Arte,
mas como uma rede de relações estéticas, políticas e econômicas que
atravessam as fronteiras nacionais e históricas [Behdad, 2013, p. 13] em
narrativas transculturais.

Se apenas nos atermos a produção de imagens sobre o Japão por seus


aspectos exóticos e relacionadas como mais uma peça do conceito de “Oriente
como uma criação do Ocidente”, perdemos de vista aspectos importantes da
maneira como as culturas visuais sobre o Japão estão inseridas no processo
de modernização japonesa. Segundo o historiador Luke Gartland, a
modernização ocorrida no Japão possibilitou um aprendizado mútuo sobre
“outro” como resultado de um processo de alta competitividade em uma
indústria fotográfica transcultural [Gartland, 2016, p. 93] em zonas de contato
[ver Pratt, 1991;1992] como as cidades portuárias de Yokohama e Nagasaki
abertas aos estrangeiros. Além disso: “Yokohama foi o maior ponto de trocas
culturais de tecnologia, práticas visuais e sistemas de conhecimento, vindo a
testemunhar também o crescimento de uma indústria fotográfica formatada por
interesses tanto de japoneses quanto não-japoneses”. [Gartland, 2016, p. 93]
(Tradução nossa)

A produção e comercialização de álbuns temáticos, fotos avulsas e cartões de


visita direcionada para os mercados interno e externo tinham como temática
aspectos da modernização japonesa como também situações pitorescas,
paisagens e tipos humanos, neste contexto uma parcela significativa dessas
imagens foi produzida em estúdios nas décadas de 1860-1890. Segundo
Gartland, os estúdios fotográficos funcionavam de certo modo como espaços
de transculturalidade e de negociação entre operadores (japoneses ou
estrangeiros) e clientela (geralmente estrangeira), desse modo: “As fotografias
produzidas em Yokohama como souvenirs eram multifacetadas, produtos de

Novos Estudos em Orientalismos


88
uma indústria cosmopolita capaz de afirmar ou contestar os estereótipos
culturais japoneses.” [Gartland, 2016, p. 102] (Tradução nossa).

A Guerra Russo-Japonesa (1904-05)


Considerada a “última guerra do século XIX , e a primeira guerra do século XX
“ o conflito foi um verdadeiro turning-point na geopolítica asiática e também nos
estudos orientalistas da época. [Marchand, 2009, p. 214] A vitória japonesa
sobre os russos dissolveu parte das narrativas anti-nipônicas que associavam a
“raça amarela” como feminina, fraca, atrasada, representando os japoneses
como “macaquinhos amarelos” citando o próprio Czar russo Nicolau II. Dessa
forma os discursos acerca do Japão se tornam mais difusos. O “Perigo
amarelo” se consolidaria na época a partir de uma ameaça racial, militar e
geopolítica dependendo da perspectiva do interlocutor, contrapondo-se ao
olhar ‘exotista’ que atingia o seu ápice com na ópera Madame Butterfly de
Puccini (1904) representada pelos palcos europeus e americanos. A rápida
modernização japonesa aos olhos ocidentais desloca o Japão do espaço
imaginado asiático pelos ocidentais para um novo “espaço” ainda indefinido,
onde intelectuais, diplomatas e opinião pública passam a ver a jovem nação
Japonesa como uma possível líder asiática com a missão de modernizar (i.e
civilizar) a região. Nesse contexto ocorre uma rearticulação dos discursos na
Europa sobre a Ásia: a China derrotada em 1895 pelos japoneses é vista como
um estado “decadente e arcaico”, fazendo contraponto ao “moderno e
misterioso” Japão. O império russo se torna um reflexo dessa transitoriedade
como podemos notar nos comentários de membros da assembleia nacional
polonesa em 1904:

“O uso da terminologia “uma guerra entre as raças branca e


amarela” ou “entre a civilização europeia e a barbárie asiática” nos
deixa perplexos, porque nós sabemos que a Rússia é bárbara e
asiática. Nós sabemos a proporção da coragem e da diligência
japonesa na causa da civilização do Extremo Oriente; enquanto
que ao mesmo tempo, nós testemunhamos diariamente o que a
Rússia tem feito para erradicara civilização europeia de seu
território. O Japão não está lutando contra um campeão da causa
europeia – Não! Ele luta contra a raça de bárbaros asiáticos que
tentam destruir os frutos de séculos de civilização e progresso na
Polônia e na Finlândia”. [Nihon gaikô monjo: Taiheyô sensô 2
Apud: Ogura, 2015, p. 44] (Tradução nossa).

O historiador Jean-Pierre Lehmann sugere que as leituras das nações


europeias durante a guerra russo-japonesa transitavam a entre duas
perspectivas: a perspectiva do “perigo amarelo” ou da “esperança amarela”
[Wells & Wilson, 1999, p. 15]. O missionário norte-americano Sidney Gulick
(1860-1904) – indo na contramão dos discursos atrelados ao “perigo amarelo”
na época - previa que a vitória japonesa não produziria uma nova potência
imperialista na Ásia, mas tornaria o Japão “um mediador entre as raças branca
e amarela” assegurando os interesses mútuos de todos [Wells & Wilson; 1999,
p. 17]. Posição que inicialmente será a aventada por alguns intelectuais e

Novos Estudos em Orientalismos


89
diplomatas japoneses na época (“Pan-Asianismo como uma forma de
Ocidentalismo”), mas que ao longo da era Taishô (1912-1926) e início de
Showa (1926-1937) será desfigurada pelo nacionalismo japonês. [Ver Ogura,
2015] O conflito russo-japonês propiciou informações (militares) e lições
(diplomáticas) importantes para a reflexão imediata e a posteriori (1910-1930)
ao redimensionar a questão da dominação ocidental no Leste Asiático.

Considerações finais
Para dar sentido a realidade vivenciada a partir de fenômenos transculturais no
campo textual e visual, a intersecção de sistemas codificados ou semiosferas
[Lotman, 1990, p. 123-142] se torna uma importante forma de representação da
maneira como cada sociedade constrói as narrativas sobre si e sobre os
outros. Ao privilegiar o processo dialético como operação fluída e complexa
entre diferentes espaços culturais [ver Ortiz, 2003] e seus produtos (“textos de
cultura”) não-binários, as semiosferas possibilitam a averiguação dos desvios,
das complexidades e dos ecos dos discursos orientalistas. Portanto a análise
da nascente diplomacia Meiji e o seu diálogo com as nações europeias, do uso
da fotografia como decodificadora de si e do outro não-japonês e dos discursos
acerca do conflito russo-japonês que transitam entre “ameaças” e
“esperanças”, contribuem para ressignificação do(s) olhar(es) orientalista(s)
sobre o Japão. Semiose que ressalta as nuances discursivas sobre o “outro”
japonês e dessa forma problematiza à afirmação de Said de que o Orientalismo
é um discurso binário de domínio sobre os povos e culturas orientais.

Referências
Rogério Akiti Dezem é Historiador e Professor de Cultura e História do Brasil no
Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Osaka (Japão).
Autor das obras Shindô-Renmei: Terrorismo e Repressão (AESP, 2000),
Matizes do Amarelo. A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil 1878-
1908 (Humanitas-USP/FAPESP, 2005) e de mais de duas dezenas de artigos
relacionados à História da Imigração Japonesa no Brasil. Desde 2015 se
dedica a pesquisar aspectos culturais e sociais da História Contemporânea
Japonesa (1868-1968) a partir da iconografia e fotografia sobre o
Japão/japoneses produzida por olhares nativos e estrangeiros.

*Agradeço a leitura atenta da primeira versão deste paper e as sugestões


pertinentes do Prof. Dr. Richard Gonçalves André (Depto. de História da
Universidade Estadual de Londrina/Paraná - Brasil)

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92
ANTES DO RECIFE, O PARÁ: A BREVE PASSAGEM DE
HEIJI E IKU GEMBA EM UMA CAMBALEANTE ACARÁ E A
POSTERIOR PROSPERIDADE DA PIMENTA-DO-REINO
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior

Passada a fase inicial do fenômeno imigratório japonês no Brasil (que se


desenvolveu nas regiões Sudeste e Sul deste país), as empresas nipônicas
responsáveis pelo recrutamento e transporte de trabalhadores de seu território
para os dos seus parceiros econômicos agora voltaram seu foco para a Região
Norte, com destaque para o estado do Pará. A que tomou a frente deste
processo foi a Nambei Takushoku Kabushiki Kaisha (Em português,
Companhia Colonizadora América do Sul [KUREMATSU, 1996, p. 29], ou
Companhia de Exploração da América do Sul Ltda [A EXPLORAÇÃO da
Amazônia, 2009, on-line]. Foi criada em 11 de agosto de 1928 e tinha como
presidente Hachiro Fukuhara, um de seus fundadores e diretor da KANEBO
[DE CASTRO, 1979, p. 41], também conhecida pela sigla NANTAKU), que era
subordinada à Kanegafuchi Bosseki Kabushiki Kaisha (Em português,
Companhia de Fiação Kanegafuchi, uma produtora japonesa de tecidos
[KUREMATSU, 1996, p. 29], ou simplesmente KANEBO).

Esta empresa se instalou em tal região com os propósitos de fomentar a


organização de colônias em áreas fornecidas pelo governo paraense, criar a
Companhia Nipônica de Plantação do Brasil (Fundada em janeiro de 1929 pela
NANTAKU para assumir o contrato de doação das terras no estado do Pará,
principalmente na região de Acará [A EXPLORAÇÃO da Amazônia, 2009, on-
line]) e preparar os 600 mil hectares de terra em Acará (atual Tomé-Açu) para a
ida dos imigrantes japoneses, além de 400 mil hectares em Monte Alegre (DE
CASTRO, 1979, p. 41).

Os trabalhadores nipônicos partiram do porto de Kobe no navio Montevidéu


Maru em 24 de julho de 1929. Eram ao todo 43 famílias, que totalizavam 189
pessoas, e foram os primeiros trabalhadores japoneses que se instalaram na
região (In: CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 48). Alguns
destes já adentraram o norte do país de maneira independente, oriundos de
outros polos de imigração, mas estes imigrantes de Acará eram os primeiros
que chegavam para o formato de colônia na região (A EXPLORAÇÃO da
Amazônia, 2009, on-line). Chegaram ao porto da cidade do Rio de Janeiro em
7 de setembro do mesmo ano. Este se encontrava decorado para as
comemorações relacionadas à Independência do Brasil, mas alguns imigrantes
acreditavam que as festividades diziam respeito a sua chegada. De lá, partiram

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no dia seguinte a bordo de outro navio, o Manila Maru, com destino à cidade de
Belém, no estado do Pará, onde atracaram no dia 16 de setembro. No dia 22
do mesmo mês, chegaram ao município de Acará, onde puderam se instalar na
colônia em formação, que seria a sua moradia daí em diante (DE CASTRO,
1979, p. 42).

Esta colônia em Acará era administrada da mesma forma que as gerenciadas


pela Bratac (Brasil Takushoku Kumiai, ou Sociedade Colonizadora do Brasil
Ltda.), pois “contava com assistência médica e educacional, além de
benfeitorias que possibilitassem o desenvolvimento da produção dos colonos
japoneses” (In: CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 48),
porém, o início do trabalho dos imigrantes foi extremamente conturbado
principalmente por conta da adaptação ao clima (muito úmido e bastante
diferente daquele que os japoneses estavam acostumados) e das doenças da
região.

Para tentar atender às necessidades deste momento inicial atribulado, foi


criada a Cooperativa dos Horticultores de Acará (Também conhecida como
Cooperativa de Hortaliças [DE CASTRO, 1979, p. 42]) em 1931 (In:
CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 48). Nela, os
trabalhadores poderiam negociar os seus produtos de forma conjunta, o que
seria uma forma de garantir a sobrevivência da própria colônia. Como as
dificuldades só aumentavam, e também se mostrou necessário comprar os
bens de consumo para a subsistência de todos em condições mais favoráveis,
a cooperativa passou a ser administrada diretamente pelos colonos e foi
rebatizada para Cooperativa Agrícola de Acará em 19 de novembro de 1935 (A
EXPLORAÇÃO da Amazônia, 2009, on-line) de acordo com uma
recomendação da Companhia Nipônica de Plantação do Brasil.

Ao longo deste processo inicial de estabelecimento dos imigrantes japoneses


em Acará, chegaram outras levas de trabalhadores nipônicos. Dentre estes,
estava Iku Gemba (A grafia de seu nome aparece como “Ikuo Gemba” na
dissertação da pesquisadora Reiko Muto [MUTO, 2010, p. 334], porém, na
base de dados “Ashiato”, feita com informações de alguns imigrantes
japoneses que vieram ao Brasil, é registrada como “Iku Gemba”, assim como
na obra de Shiro Kurematsu [ASHIATO – SISTEMA DE BUSCA (Brasil)]),
recém-casada com o imigrante Heiji Gemba, um dos japoneses mais
conhecidos dentro do fenômeno imigratório nipônico no Recife. De acordo com
Shiro Kurematsu, autor do livro “Pré-História da Imigração Japonesa em
Pernambuco”, “em 1927, com a volta de seu pai ao Japão, Heiji mudou-se para
Belém do Pará, juntando-se ao irmão Matsuichi, com quem aprendeu a
fabricação de sorvetes.” (KUREMATSU, 1996, p. 19). De acordo com
Kurematsu, Heiji mudou-se de Recife para Belém antes do início da colônia de
Acará, mas não cita exatamente onde ele ficou até a chegada da sua futura
esposa Iku. Sobre o casamento dos dois, Kurematsu somente cita que:
“Enquanto isso, o pai, no Japão, arranjou o casamento de seus filhos no Brasil
e tratou do embarque das duas moças, sendo uma, sobrinha dele, para

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Matsuichi e a outra, chamada Iku, sobrinha da falecida esposa dele, para Heiji.
Ambas chegaram a Belém sem novidades.” (KUREMATSU, 1996, p. 19)

Outro detalhe que Kurematsu não menciona é se Heiji, seu irmão e as suas
respectivas esposas mantêm-se em Belém ou se participam do novo
empreendimento colonial japonês em Acará. A base de dados Ashiato (esta
base de dados só contém registros dos imigrantes japoneses que vieram
diretamente de seu país natal ao Brasil, não disponibilizando informações
daqueles que fizeram migrações internas ou vieram de outros países após
imigrarem do Japão), por sua vez, só reforça que Iku partiu diretamente do
Japão para Belém. Porém, na dissertação da pesquisadora Reiko Muto,
podemos encontrar uma clara referência à chegada de Iku Gemba, no navio
Montevidéu Maru (o mesmo utilizado na viagem dos primeiros colonos de
Acará no percurso Kobe - Rio de Janeiro em 1929), à colônia de Acará no dia 2
de julho de 1932 (MUTO, 2010, p. 334), mesma data de chegada
disponibilizada na base Ashiato. Ou seja, podemos entender que Iku Gemba
chegou diretamente da cidade de Okayama, no Japão, para a colônia de Acará,
no Pará, onde lá estava esperando o seu futuro marido, Heiji Gemba. Sendo
assim, Heiji passou alguns anos com a sua esposa, irmão e cunhada neste
empreendimento colonial recente do império japonês (Shiro Kurematsu diz, em
sua obra, que Heiji e Iku viajaram ao Recife definitivamente em 1931 para criar
uma sorveteria [KUREMATSU, 1996, p. 19], a futuramente conhecida
“Sorveteria Gemba”. Esta data bate de frente com a encontrada na base de
dados Ashiato e na dissertação de Reiko Muto, que cravam a chegada de Iku
em Tomé-Açu, na cidade de Acará, em 1932, gerando dúvidas a respeito da
veracidade da data informada por Kurematsu).

Retomando a discussão a respeito das dificuldades iniciais da colônia de


Acará, a cultura do cacau, vista no momento como a principal produção da
colônia, não prosperou como o imaginado, afetando as atividades da
Companhia Nipônica. Este fracasso levou o presidente Hachiro Fukuhara a
pagar parte do prejuízo com recursos próprios e voltar frustrado ao Japão.
Somado a este fato, veio a piora do quadro das doenças endêmicas que
assolavam a região, através das quais muitas vidas foram perdidas. Com isso,
vários colonos abandonaram Acará (DE CASTRO, 1979, p. 44).

Como dito, a colônia de Acará tentava sem sucesso o cultivo do cacau. A


alternativa encontrada foi dar início à cultura da pimenta de uma variedade
nativa da região amazônica, também sem sucesso. Após anos de tentativas, os
japoneses trocaram a variedade amazônica pela indiana e finalmente a
produção da pimenta começou a ser feita de forma satisfatória. Porém, a
Companhia Nipônica, que vinha em baixa desde a época do cultivo do cacau,
se viu obrigada a reduzir as suas atividades. Mesmo com o apoio financeiro
feito pela NANTAKU neste momento, a situação não se reverteu. Por conta
disso, o sistema de colonato foi abolido em 3 de abril de 1935 (DE CASTRO,
1979, p. 45).

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Essa escalada na crise em Acará continua com a piora, mais uma vez, nas
doenças endêmicas, principalmente a malária. A saída de várias famílias da
colônia é retomada como única solução possível para aqueles com algum
recurso que possibilitasse esta alternativa. Os imigrantes que não possuíam
meios para tal ação, fixavam-se definitivamente na colônia, criando as bases
para o atual município de Tomé-Açu (DE CASTRO, 1979, p. 44). De acordo
com Fernando Moreira de Castro, “o êxodo está patente nos seguintes dados:
de 1935 a 1942 abandonaram a Colônia nada menos de 276 famílias,
permanecendo ali, em 1942, apenas 98 famílias.” (DE CASTRO, 1979, p. 45).

A colônia de Acará passa a ter novos líderes neste momento, que decidem,
dentre outras mudanças, transformar a Cooperativa de Hortaliças em
Cooperativa Agrícola do Acará para centralizar a venda dos produtos e fornecer
gêneros de subsistência aos cooperados. Nesta época, o cultivo da pimenta-
do-reino já vinha sendo praticado de maneira experimental. Esta variação foi
inserida por Makinosuke Ussui. Este, que partiu de Tóquio para o Brasil a
bordo do navio Hawai-Maru, parou em Cingapura para realizar o enterro de
outro imigrante japonês que havia falecido na viagem. É nesta ocasião que
Ussui adquire vinte mudas da pimenta-do-reino e leva-as à Belém (DE
CASTRO, 1979, p. 46). Destas vinte, somente três sobreviveram ao serem
cultivadas na fazenda Açaizal, de propriedade do imigrante Kozo Yoshida.
Quando esta fazenda foi fechada em 1935, os colonos Tomoji Kato e Enji Sato
levaram estas mudas para a sua fazenda, mesmo sendo praticamente os
únicos interessados nelas (DE CASTRO, 1979, p. 46).

As dificuldades financeiras na colônia de Acará se estenderam até o ano de


1943, quando, no dia 28 de janeiro, houve “o rompimento das relações
diplomáticas nipo-brasileiras, passando os colonos japoneses do Acará a
serem tratados como súditos de país inimigo.” (DE CASTRO, 1979, p. 47)
devido ao acirramento da Segunda Guerra Mundial e a configuração do Brasil
como adversário do Japão. A partir daí, a colônia de Acará passou a ser um
“local de refúgio para os imigrantes nipônicos no norte” e a administração
passou às mãos da CETA (Colônia Estadual de Tomé-Açu). Com isso, as
atividades da Cooperativa foram reduzidas devido a obrigação dos colonos se
dirigirem à CETA para a entrega de seus produtos, pelo fato deste órgão
representar o Governo do Estado do Pará (DE CASTRO, 1979, p. 47) e servir
como órgão de controle e vigilância.

Com o final da Segunda Guerra em 1945, havia a necessidade, por parte dos
colonos de Acará, que a situação fosse normalizada. Para tanto, solicitaram o
reestabelecimento das atividades da Cooperativa. Enquanto a autorização por
parte do Governo do Estado não vinha, os colonos se organizaram através da
União dos Lavradores, criada por aproximadamente 20 colonos (DE CASTRO,
1979, p. 47). Esta organização durou até 1949 e exerceu as funções realizadas
pela Cooperativa no período antes do conflito mundial. Ao perceber a
necessidade cada vez maior de normalizar a situação, finalmente o Governo do
Estado autorizou a reorganização da Cooperativa (DE CASTRO, 1979, p. 48).

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É principalmente a partir deste momento que esta situação de adversidades
começa a ser revertida (In: CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010,
p. 48). A pimenta-do-reino já estava sendo produzida em pequena quantidade,
porém, com a reestruturação da Cooperativa, há um aumento na cultura deste
gênero, que gerou um “surto desenvolvimentista que culminou com a
organização legal da sociedade em 30 de setembro de 1949, que passou a
denominar-se Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu” (DE CASTRO, 1979,
p. 48).

A cultura da pimenta do reino teve um salto na sua valorização no mercado


interno em 1953 devido à chegada da primeira leva de imigrantes no período
pós-Segunda Guerra, formada por 23 famílias que viajaram a bordo do navio
América-Maru, restaurando o povoado de Tomé-Açu (DE CASTRO, 1979, p.
48). Este cresce de tal forma que, em setembro de 1959, foi elevado “a
categoria de Município, o 60º Município do Estado do Pará, desligando-se do
Município do Acará” (DE CASTRO, 1979, p. 62). Com a consolidação da
colônia em Tomé-Açu, o fenômeno imigratório japonês no Brasil dá sinais de
ampla transformação neste cenário no pós-Segunda Guerra.

Referências
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior é professor efetivo de História e História da
Cultura na Rede Municipal de Ensino da Vitória de Santo Antão-PE, graduado
em Licenciatura e em Bacharelado em História (UFPE), especialista em
História do Nordeste do Brasil (UNICAP) e mestrando em História Social da
Cultura Regional (UFRPE), além de membro da Rede de Pesquisadores
Visões da Ásia.

A EXPLORAÇÃO da Amazônia. 100 anos de imigração japonesa no Brasil.


National Diet Library, Japão, capítulo 4 – A emigração vista como solução para
as questões internas, parte 2, 2009. Disponível em:
https://www.ndl.go.jp/brasil/pt/s4/s4_2.html. Acesso em: 26 mai. 2021.

ASHIATO – SISTEMA DE BUSCA (Brasil). Imigração Japonesa no Brasil.


Disponível em: http://imigrantes.ubik.com.br/. Acesso em: 27 mai. 2021.

CARNEIRO, M. L. T. & TAKEUCHI, M. Y. (orgs.). Imigrantes Japoneses no


Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2010.

DE CASTRO, F. M. 50 Anos da Imigração Japonesa na Amazônia. Belém:


Falangola Offset, 1979.

KUREMATSU, S. Pré-História da Imigração Japonesa em Pernambuco. 2. ed.


Recife: Associação Cultural Brasil Japão, 1996.

MUTO, R. O Japão na Amazônia: condicionantes para a fixação e mobilidade


dos imigrantes japoneses (1929-2009). 2010. Dissertação (Mestrado em

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Planejamento do Desenvolvimento) – Núcleo de Altos Estudos Amazônicos,
Universidade Federal do Pará, Belém, 2010.

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Ausentes de seus currículos, as muitas teorias orientalistas
fazem uma falta tremenda na formação universitária, criando o
abismo no qual escorregamos quando nos propomos a falar
sobre tais temas. Ainda que presente, o recurso das redes
carece ainda de trabalhos técnicos mais sofisticados e
acessíveis, disponibilizando materiais superficiais ou pouco
abertos a não-especialistas. É nessa brecha, buscando
encontrar a ressonância necessária ao despertar, que Novos
Estudos em Orientalismos surge como uma alternativa a quem
busca conhecimento efetivo e de qualidade numa linguagem
acessível e provocante.

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