Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1 INTRODUÇÃO
2 O FATO
As diversas movimentações e repercussões
1
Ferreira; Castilho (2022) denunciam que a tragédia causou danos à Biodiversidade
da região, à sua fauna e à sua flora; à Bacia do Rio Paraopeba, com o comprometimento da
qualidade de suas águas e de seus solos agricultáveis, e acrescentam o risco do
abastecimento de água para muitas cidades. De forma aviltante, sobressaem-se as 272
(duzentos e setenta e duas) mortes com o consequente luto persistente. Segundo os autores,
as causas e os responsáveis pela tragédia são evidentes e decorrem da atividade da
mineração, que ao buscar o lucro e a acumulação de riquezas viola direitos à vida e se vale
muitas vezes de uma justiça lenta e ineficaz. Quanto às estratégias de reparação dos danos,
os autores argumentam que os caminhos são equivocados, pois persistem as violações de
territórios, de grupos e de pessoas. A abundância de recursos financeiros alocados para
projetos e planos segue as regras do causador da tragédia e constituem peças de um
marketing agressivo, que faz a maquiagem de um equilíbrio sócio-ambiental.
As repercussões e os fenômenos naturais, humanos e sociais desencadeados pelo
desastre ambiental de Brumadinho – MG evidenciam a necessidade de se aprofundar as
reflexões por meio dos diálogos interdisciplinares das Ciências. Afinal, o que deu errado?
(ROITMAN, 2016)
2
Mineraloceno (ARÁOZ, 2022) e Chthuluceno (HARAWAY, 2016). No entanto, é de
grande relevância a constatação do geógrafo e historiador Jason Moore Moore “de que a
natureza ‘barata’ está chegando ao seu fim... pois, as reservas da terra têm sido drenadas,
queimadas, esgotadas, envenenadas, exterminadas e de diversas formas extenuadas”.
(HARAWAY, 2016, p.12).
Assim, nesse contexto Universal de transformações, na primeira década do milênio
(2000-2010) ocorreu o boom das commodities, com a alta na demanda por matérias-primas
e elevações de seus preços, que incentivaram a intensificação das explorações. Se por um
lado houve crescimento econômico e vantagens comparativas; por outro, foram
intensificadas as assimetrias e os conflitos sociais, as lutas reivindicatórias, a deterioração
da qualidade da vida humana e ambiental. (SVAMPA, 2013). Os “efeitos derrame’
(GUDYNAS, 2014) dos novos modos de produção reafirmam a primarização das
economias da América Latina, que são marcadas, desde os seus períodos coloniais, pelas
subordinações às diretivas externas de dominação dos países centrais revelando “o caráter
ecológico e geopoliticamente do extrativismo”, que cria “um problema endêmico nas
economias latino-americanas”. (ARÁOZ, 2015, p. 22-24).
No contexto brasileiro e diante da expansão do neo-extrativismo da mineração as
estruturas dos sistemas ambientais, tanto governamentais quanto empresariais, são
comparáveis ao coronelismo da República Velha (1889-1930). A almejada justiça
ambiental fica comprometida, pois ela desafia uma visão hegemônica de desenvolvimento e
crescimento econômico; acirra e demarca cada vez mais as assimetrias políticas, de poder e
sociais, verificável tanto nas estruturas dos sistemas de licenciamentos e operações dos
empreendimentos, nas consultorias técnicas, nas auditorias e nas certificações quanto no
relacionamento com as populações atingidas. (LASCHEFSKI, 2021)
O cenário acima exposto de questões geofísicas e relacionais humanas: sociais e
ambientais produzem historicamente vulnerabilidades e aumentam o risco das falhas,
tornando os desastres “inevitáveis”. (OLIVER-SMITH, 1999). Os efeitos de um desastre
vão muito além do momento agudo da ocorrência e são frutos de processos políticos,
institucionais e econômicos. As legislações flexibilizadas, os controles desconstruídos, à
submissão às premissas do lucro tem aumentado os desastres e diminuído o intervalo de
3
tempo entre eles 1. (ZHOURI, 2019). A ocorrência de desastres desvela a precariedade
estatal preventiva diante de uma situação de vulnerabilidade e após as suas ocorrências os
despreparos nas ações de socorro mantêm distâncias sociais, preconceitos de classes e
provocam injustiças ambientais. (VALENCIO, 2009).
Os desastres desencadeiam crises de amplitudes e espectros diversos, tais como:
crise ambiental, humana e social. As crises instauram processos de “violência lenta e
invisível”, pois silenciosamente, ela corrói as resistências, provocam “deslocamentos no
lugar” e aumentam a população de “descartáveis”. (NIXON, 2011). A raiz etimológica de
crise aponta para uma condição que exige uma tomada de decisão, podendo ser momento
de verdade, objeto de conhecimento e ponto de virada histórica. A crise é um “ponto cego”,
de irrupção do “real”, que desnuda o valor falso e revela o valor verdadeiro. Portanto, trata-
se de um “problema axiológico ou o questionamento dos fundamentos epistemológicos ou
éticos de certos domínios da vida e do pensamento”. A crise “evoca uma demanda moral
por uma diferença entre o passado e o futuro de tal forma que o prognóstico e a própria
apreensão da história são definidos pela ocupação negativa de um mundo imanente: o que
deu errado?”. (ROITMAN, 2016).
4
novos e diversos. [...] Para a ‘gente critica’ 2 a crise é a vida normal”. (CRIA, 2009, nota
nossa)
As análises, avaliações e recomendações de intervenções em desastres podem ir de
complexas “viradas civilizatórias” com a necessidade de período de transição (LANDER,
2017) até as que contemplem ações mais diretas e objetivas em busca de uma ecologia
integral junto às comunidades atingidas (FERREIRA; CASTILHO, 2022).
Um caminho para uma migração civilizatória, que nasce de/ou de “baixo”
(ESCOBAR, 2017) é reconhecer os movimentos do “Bem Viver” 3
“[...] que nascem
literalmente da luta pela sobrevivência: da luta contra a fome, contra a expropriação e a
intoxicação [...] o Bem Viver evoca e convida a essa troca radical, uma autêntica migração
civilizatória [...]. Bem Viver é, em definitivo, um caminho e uma aposta a produzir,
inventar uma nova Era na história da humanidade, a Era da Justiça e Fraternidade como
condição para a Liberdade plena”. (ARÁOZ, 2015, p. 41, 45, negrito e itálico nosso)
Assim, os desastres contêm processos sociais que desencadeiam resistências, as
quais “tem como centro o tema da justiça social e dos direitos humanos [...] não se
desvinculam dos problemas ambientais e suscitam discussões em torno de questões éticas,
morais, políticas e distributivas relacionadas, dentre outros, a certas práticas institucionais
do Estado”. (VALENCIO, 2014, p.3640). Desta forma, a interdisciplinaridade da Ecologia
Política se apresenta como possibilidade de aplicação. (OLIVER-SMITH, 1999) e
ZHOURI (2019).
2
Gente crítica: refere-se àqueles submetidos ao estado de Crise. Por exemplo, os migrantes, os refugiados, os
pobres, os trabalhadores, os consumidores, e muitos outros.
3
“Bem Viver” é um nome novo usado para conceitualizar a cosmovisão de comunidades tradicionais que se
organizavam a partir do coletivo. É um modo de vida que abarca a relação entre as pessoas, a natureza e o
modelo econômico em sociedades que não tinham no capitalismo o modo possível de se organizar.
Disponível em: https://usinadevalores.org.br/o-bem-viver-e-a-radicalidade-de-sonhar-outros-mundos/. Acesso
em: 26 nov. 2011.
5
saberes e conhecimentos das comunidades. É preciso revitalizar a vertente do “pensamento
da esquerda” do pensamento crítico latino americano (PCL), pois “até as emoções, os
sentimentos e o espiritual tem lugar como forças ativas que produzem a realidade”.
Também se faz necessário agregar a vertente do “pensamento de/ou de baixo”, sustentado
na autonomia, na comunidade e na territorialidade; e enlaçar o PCL com a vertente do
“pensamento da Terra”, que sintoniza as dinâmicas da Terra. (ESCOBAR, 2017).
Por sua vez, a Ecologia Política (EP) através das resistências poderá influir na forma
de desenvolvimento e governança e enfrentar à nova expansão capitalista da mineração
com as suas profundas transformações. A EP é espaço de reflexão, análise histórica e
crítica, no qual se abrigam várias tradições e linhas intelectuais, políticas e éticas. Todavia,
três convergências se destacam: 1) a precedência da Economia Política em relação à
Ecologia Política, pois naquela residem as relações de poder, as desigualdades de acesso e
uso dos recursos naturais. Portanto, demandam análise crítica para proporcionar justiça
ambiental aos vulneráveis; 2) a resistência e os movimentos sociais (MS) que construíram a
Ecologia Política do 3º mundo e as Ecologias da Libertação e o giro pós-estrutural nas
Ciências Sociais de como os atores “subalternizados” 4
resistem às múltiplas formas de
dominação; 3) os conceitos de localidade, território e glocalização 5
integrados pela
geografia humana e a antropologia cultural. Na realidade, o conflito é na glocalização do
espaço co-produzido pelas empresas, Estado, Governo, MS e outras organizações sociais,
com interação econômica e política, pela articulação de processos de diferentes escalas e
pela interação entre desenvolvimento e meio ambiente. A EP é sustentada por quatro
conceitos: 1) as estratégias de vida e resistências individual, familiar e comunitária, que se
realizam nas rotinas de sobrevivência; 2) os movimentos sociais (MS), as redes sociais (RS)
e as organizações sociais (OS), cada um com as suas características, que não se confundem,
mas que se imbricam para pensar a sociedade e o desenvolvimento, buscar alternativas de
algo melhor e diferente, com justiça e legitimidade; 3) o discurso dos projetos de
desenvolvimento territorial rural que se apresentam como redutores da pobreza rural, mas
4
Termo utilizado pela Professora Andréa Zhouri para enfatizar a condição que se encontram os atores das
resistências, diferenciando do termo rotineiramente usado de ‘subalternos’.
Aula ministrada na Disciplina Tópicos Especiais em Antropologia do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. 2º semestre de 2022.
5
Conceito desenvolvido pelo geógrafo Eric Swyungedown, que recorreu à lingüística e concluiu que os
processos de construção dos territórios não são nem globais e nem locais, são glocais (globais e locais),
respeitando diferentes escala. (BEBBIGTON, 2007).
6
que na verdade são premeditados como formas de expropriação e de dominação; 4) a
governança ambiental, que define, regula e implanta regras de controle do acesso e uso dos
recursos naturais. Os MS participam das raríssimas governanças visíveis e inclusivas e
buscam tornar os processos públicos e não privados; enquanto, as governanças reais
permanecem com seus espaços e atores privados, com legislações flexibilizadas,
alinhamentos oportunistas e falta de transparência das decisões, que ocorrem longe do
território expropriado, nos escritórios das empresas, nas instituições financeiras e nas bolsas
de valores. (BEBBINGTON, 2007). Destaque deve ser dado ao primeiro conceito acima
elencado. A pesquisadora Kate Jenkins ao considerar as rotinas diárias das mulheres
ativistas reconhece aquilo que está “abaixo do radar” dos ativismos costumeiros, pois a
“sedimentação” ao longo do tempo permite que latências, às vezes contraditórias, se
manifestem. Assim, a resistência é a prática de “todos os dias” da “política silenciosa”, que
não elimina os confrontos diretos com as autoridades e atores externos. Desta forma, as
rotinas diárias de subsistência – ocupar a terra, semear, cuidar do gado e colher - tornam-se
práticas menos evidentes de ativismos, porém são estratégias de resistência de longo prazo
e se justifica, pois contraria a ideia difundida pelos dominadores de que a expansão
exploratória se dá em “terras vazias” ou “terras ociosas”. Em última instância, “ficar
parado” em seus lugares de identidades construídas é “continuar” a resistir à expropriação.
Desta forma, pequenos atos de resistências tornam-se “luta prosaica, mas contundente”. É a
“política silenciosa” e o exercício da “cidadania comum”, que fermentam valores morais.
(JENKINS, 2017).
Dentre as diversas correntes da Ecologia Política e diante do paradigma atual da
relação humana com a natureza e a evidência do protagonismo das mulheres nas lutas
sociais, a socióloga argentina Maristella Svampa propõe o Ecofeminismo da sobrevivência.
A pesquisadora diferencia o conceito de feminização dos movimentos feministas e do
feminismo clássico liberal (FCL) e enfatiza as relações dos modos de produção e as
repercussões sociais; a defesa da saúde, da sobrevivência e do território; ressalta vínculos
entre gênero-ambiente, mulheres-ambientalismo; feminismo-ecologia. O Ecofeminismo da
sobrevivência busca superar os feminismos da igualdade-diferença pela interdependência
coletiva e indica a cultura do cuidado como caminho para a construção de um novo ethos
humano, com valores de reciprocidade, cooperação e complementaridade. (SVAMPA,
7
2015). Na mesma linha de pensamento, o relato da resistência de organizações de mulheres
da “zona de sacrifício” do extrativismo chileno da Bahia de Quinteros, o qual tem causado
derrames persistentes de contaminações, comprometendo a saúde da população em geral,
em especial, das crianças, configura a violação do princípio da justiça ambiental, que
garante os direitos de vida livre de contaminações, da saúde e o de desfrutar um ambiente
limpo e saudável. Para essas mulheres, que se inscrevem em uma Ecologia Política
Feminista é fundamental resgatar a consciência da biosfera degradada imposta pelo
desenvolvimento econômico e compreender que a ética do cuidado é o caminho para a
sobrevivência de mulheres, homens e ecossistemas, pois possuímos recursos ambientais
finitos e corpos vulneráveis. (BOLADOS GARCIA; SÁNCHEZ CUEVAS, 2017, 2018)
Por fim, os movimentos pela justiça ambiental trazem que as injustiças sociais
possibilitam que as injustiças ambientais atinjam as populações mais vulneráveis. Esses
movimentos são possuidores de saberes não acadêmicos, de alta consciência do bem
comum, e estão presentes em todo mundo. Em especial, na América Latina tais
movimentos lutam contra os modelos de desenvolvimento, que descarregam seus resíduos
tóxicos nos locais que vivem os mais pobres, em um evidente “racismo ambiental”. A
pesquisadora argentina Gabriela Merlinsky indica cinco teses presentes na construção das
reivindicações da justiça ambiental por esses movimentos: 1) a inscrição do território nas
lutas ambientais, que possibilita uma linguagem de valoração do ambiente, de suas marcas
e pegadas, que contrapõe a valoração racional dos projetos desenvolvimentistas; 2) a
resistência em defesa do bem comum, que como catalisador estimula mudanças e acelera
processos, estabelece vínculos, protege e recria espaços e ambientes; 3) a produção do
conhecimento coletivo, que elabora uma epidemiologia popular, uma “ciência de rua”, que
contrapõe à epidemiologia dos especialistas, construída fora do contexto do local; 4) o
processo deliberativo como espaço de experimentação em grupos heterogêneos é
enriquecimento democrático e forma de controle social das decisões; 5) a demanda por
reconhecimento é o grito de libertação da opressão. (MERLINSKY, 2017).
6 BIOÉTICA
8
Em 1970, diante do contexto desenvolvimentista de uso inadequado dos recursos
naturais com ameaças de exaustões, Van Rensselaer Potter (1911-2001) alerta para os
riscos que a humanidade corria e anuncia a necessidade de uma Ciência da Sobrevivência,
para garantir a continuidade da espécie humana. Após muitos anos pesquisando a cura do
câncer, Potter concluiu que havia problemas globais mais importantes para a humanidade,
os quais estão circunscritos nas Ciências Sociais e inferiu que os cientistas deveriam ter
formação no campo da moralidade. Em 1971, Potter publicou seu livro: “Bioética: ponte
para o futuro”, no qual criou o neologismo Bioética, resultante da junção da Ciência da vida
(biologia: bios, vida) com a sabedoria prática da filosofia, da ética e dos valores. Em 1988,
escreveu seu segundo livro: “Bioética Global: Construindo a partir do legado de Leopold”,
em que se mostrou decepcionado com a não repercussão de suas proposições. Pelo
contrário, a Bioética se tornara hegemônica a partir da conceituação médica estabelecida
pelo Instituto Kennedy. Por fim, próximo ao seu falecimento, o bioeticista norte-americano
avançou para uma Bioética Global e Profunda ao acolher elementos espirituais de seu
discípulo Peter Whitehouse, que, por sua vez, se inspirou em Arne Naess (1912-2009),
filósofo e ecologista norueguês, que cunhou o termo “deep ecology”. Potter denunciou uma
natureza depredada, apontou que as intervenções ambientais são desmedidas, criticou o
desenvolvimento vigente como acelerado e perigoso e enumerou seis problemas (6 P’s) a
serem objetos de atenção e cuidado: População, Paz, Poluição, Pobreza, Política e
Progresso. Quanto à ética potteriana ela é: “[...] i) aquela que é invocada nas relações
normais entre as pessoas; ii) aquela que se preocupa com as relações entre os indivíduos e a
sociedade; iii) a fase atual [aquela que] deve regular as relações do homem com os animais
e com as plantas”. (SGANZERLA; ZANELLA; GRAESER, 2021, p. 5). Mesmo não
conseguindo superar totalmente a tradicional visão antropocêntrica da ética, o cientista
norte-americano provocou deslocamentos e instigou reflexões, que continuam lançando
suas sementes até os nossos dias.
Portanto, o objeto constitutivo da Bioética é a prevenção e a promoção da Vida em
seu sentido mais amplo no Universo. Não obstante estar restrita aos dispositivos legais ela é
de livre reflexão e se caracteriza por aspectos interdisciplinares e interculturais, pela
consideração dos valores, da moral e da ética. Como não há consenso universal entre o que
9
é bom e o que é mau, para uma consideração equilibrada é preciso analisar o impacto
causado na Vida. Deste modo, a Bioética em suas múltiplas abordagens se apresenta como
área de reflexão, análise e intervenção em situações de conflitos. Neste trabalho
destacaremos brevemente a Bioética Ambiental Global e, mais especificamente, a Bioética
Latino Americana com as suas Escolas da Bioética de Intervenção e da Bioética e Proteção.
É de grande relevância para a Bioética a Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos divulgada em 2005, sob a organização da UNESCO – Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Nesse documento, UNESCO (2006, p.
9) foi dedicado o artigo 17º para as questões ambientais de proteção do meio ambiente, da
biosfera e da biodiversidade. A Bioética Ambiental Global vem se consolidando como
ferramenta para subsidiar a resolução de conflitos éticos complexos, composto por
inúmeros atores, que ora assumem papel de agentes morais e ora são sujeitos morais
vulneráveis a decisões de agentes detentores de maior poder. Para entender a crise climática
que atravessamos o antropólogo, sociólogo e filósofo francês Bruno Latour apontou os
conceitos de Antropoceno (Paul Crutzen-2000) e Gaia (James Lovelock-1979). Em seu
artigo, Junges (2021, p. 734-742) concluiu que os conceitos considerados pelo autor francês
fornecem bases ontológicas e pressupostos para a Bioética Ambiental.
No ano de 1990, a Bioética chega à América Latina, e se desdobra em várias
Escolas, entre as quais destacamos a Bioética de Intervenção, a Bioética e Proteção, a
Bioética da Teologia da Libertação, a Bioética Feminista, a Bioética Antirracista, a Bioética
e Direitos Humanos, a Bioética Crítica e a Bioética Ambiental. A Bioética Latino
Americana se colocou criticamente em relação à Bioética Principialista, até então a corrente
que se apresentava hegemônica. Diversos autores latinos americanos argumentam que o
Principialismo é um “dialeto” e não o “idioma” da Bioética. Como desdobramento da
Bioética Latino Americana, a Bioética de Intervenção se estrutura em quatro categorias: 1)
as situações emergentes (decorrentes do desenvolvimento técnico e científico); 2) as
situações persistentes (conflitos morais históricos e com localização geográfica específica);
3) os países centrais (países colonizadores, detentores de poder tecnológico e econômico);
4) os países periféricos (países colonizados e subordinados política e economicamente).
Essas categorias se entrecruzam e constituem o substrato de desenvolvimento dessa
corrente. Nesse substrato das relações, a Bioética de Intervenção tem como seu princípio
10
orientador a Corporeidade. Esse princípio é concreto, material e invariável no tempo e no
espaço, diferentemente de outros princípios tais como a dignidade e o amor, que são
discursos abstratos. Assim, a Corporeidade (humana, não humana, da Terra) é o objeto
ético, que tem seu valor máximo, e constitui os “lugares” das experiências de vida. Desta
forma, é na Corporeidade atingida ou ameaçada pela dor e/ ou sofrimento, que se pode
identificar a necessidade de intervenção Bioética. A Bioética de Intervenção ao buscar
reduzir a dor e aumentar o prazer (no sentido do Corpo se realizar) tem como objetivo
atingir o seu fim, que é a equidade e a justiça social. Assim, temos dois referenciais na
Bioética de Intervenção: de um lado o Corpo e de outro a Justiça Social. Esses referenciais
se encontram articulados pelos Direitos Humanos em todos os seus âmbitos: sociais,
econômicos, políticos, civis, ambientais. A Bioética de Intervenção atua em dois planos de
intervenção. O plano coletivo em que se adota uma perspectiva utilitarista, que privilegia o
maior número de pessoas pelo maior tempo possível, mesmo em detrimento de certas
situações individuais; e a consideração de que os recursos naturais são finitos. Desta forma,
é imperioso buscar a equidade, que trata de aumentar aquilo que está insuficiente e reduzir
aquilo que está em excesso. Por sua vez, no plano individual, as intervenções se orientam
pelos princípios da libertação (tomada de consciência, conscientização, processo
educacional), do empoderamento (organização) e da emancipação (exercício da cidadania)
e que dessa forma se atinja a coletividade. Também, há que se ressaltar o importante papel
do Estado, que está inserido nesses processos através das políticas públicas, as quais devem
observar a prudência (frente aos avanços científicos), a precaução (frente ao desconhecido),
a prevenção (aos possíveis danos) e a proteção (dos mais vulneráveis). (CUNHA, 2022).
Sobre o conceito de vulnerabilidade a semelhança que há nas diversas regiões geográficas
do planeta se restringe tão somente à etimologia dessa palavra, que remete ao termo latino
‘vulnus’, que significa ‘ferida’. A vulnerabilidade nos Estados Unidos da América se
relaciona com o princípio da autonomia, de maneira que se é vulnerável o indivíduo não
autônomo. Por sua vez, na Europa, a vulnerabilidade é uma condição humana existencial
insuperável, pois todo ser vivo está a ela submetido. (CUNHA, 2020).
A Bioética Latino-Americana divide a sua história em três momentos: a) recepção
(1970 – ‘importação’ dos EUA); b) assimilação (1980 – institucionalizações na região); c)
identidade própria (atual). Ela está intimamente relacionada com as questões políticas da
11
região. Assim, “a chamada “bioética crítica latino-americana” é reconhecida precisamente
porque têm em conta nas análises de conflitos bioéticos, os processos históricos e as
relações de poder que tem repercussões nas desigualdades sociais e coletivas, como
pobreza, não equidade, exploração social e/ou ambiental, etc.” (TEALDI, 2008 apud
CUNHA, 2020, p. 105). Nesta linha de pensamento a Bioética Latino-Americana apresenta
a corrente da Bioética e Proteção, que traz em sua sustentação três importantes conceitos:
1) o conceito de vulnerabilidade, aplicável aos organismos vivos, pois se encontram
sujeitos aos danos/dor/sofrimentos; 2) o conceito de vulneração, que caracteriza o processo
causador dos danos/dor/sofrimento; 3) o conceito de vulnerados, aplicável aos organismos
que se encontram feridos. Em paralelo, podemos identificar três terminologias para a
vulnerabilidade humana: a vulnerabilidade existencial (todos estão a ela submetidos), a
vulnerabilidade social (aqueles feridos socialmente – os doentes, os que passam fome, os
expulsos de suas terras, a Terra degradada, etc.) e a vulnerabilidade moral (aqueles que
independentemente de suas condições sociais são feridos em seus Corpos, estigmatizados e
excluídos – os negros, os homossexuais, as mulheres, os indígenas, etc.). As raízes das
vulnerabilidades, social e moral, presentes na América Latina se encontram na história
imperialista e colonizadora, que foi imposta a esses povos. Desta forma, fica evidente que a
vulnerabilidade local, dos países periféricos, deve ser analisada com suas próprias
perspectivas de realidades, tendo como objetivo as suas situações persistentes de forma a
erradicá-las ou minimizá-las. Os quadros abaixo sintetizam as características para que um
tema seja do âmbito da Bioética e os critérios e itinerários de um processo deliberativo.
12
Geografia, História, Sociologia, Antropologia e Bioética
BRUMADINHO – MG
13
O quadro apresentado no tópico anterior demonstra a evidência da
interdisciplinaridade científica, que Potter conclamava no nascedouro da Bioética.
Percorremos, com autores da Geografia, História, Sociologia, Antropologia e Bioética uma
trajetória de conceitos e fluxos relacionais de nossa vivência em uma nova Era Geológica
com seus modelos de desenvolvimentos tecnológicos e econômicos, que propiciam a
inevitável ocorrência de desastres e crises com agressões vilipendiantes de princípios e
valores morais e éticos, sobretudo da inalienável dignidade da Vida: humana, não humana e
da Terra.
Nesse contexto, encontra-se o trágico desastre ambiental de Brumadinho – MG.
Diante da desproporcionalidade dos atores envolvidos somos instigados pelo poeta Raul
Seixas que cantou “Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca cheia de
dentes esperando a morte chegar” 6 e pelo antropólogo Darcy Ribeiro que ensinou: “Só há
duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca.”? 7
Assim, parafraseando Nixon (2011), cabe-nos perguntar é possível uma “resistência lenta e
invisível”?
REFERÊNCIAS
6
Disponível em: https://www.vagalume.com.br/raul-seixas/ouro-de-tolo.html. Acesso em: 28 nov. 2022.
7
Disponível em: https://noticias.unb.br/67-ensino/3074-pensamento-de-darcy-ribeiro-em-evidencia-na-unb.
Acesso em: 28 nov. 2022.
14
ARÁOZ, Horacio Machado. Ecología Política de los regímenes extractivistas. De
reconfiguraciones imperiales y re-ex-sistencias decoloniales en nuestra América. Bajo
el Volcán, vol. 15, núm. 23, septiembre-febrero, 2015, pp. 11-51. 2015.
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Critical Inquiry, 35. 2009.
Disponível em: https://www.culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf. Acesso em: set.2022.
15
crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémico. Orgs: Héctor Alimonda,
Catalina Toro Pérez y Facundu Martín. Volumen: 1. Buenos Aires: AR. GLACSO:
Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais. 2017
FERREIRA, Dom Vicente; CASTILHO, William Cesar. Live do Programa Café com Fé:
Sofrimento Psíquico e Tragédias Sócioambientais. Disponível em:
https://youtu.be/xucfRA0Iuuc. Acesso em: ago. 2022.
JUNGES, José Roque. O novo regime climático do Antropoceno e de Gaia. Rev. bioét.
(Impr) 2021; 29 (4): 734-742. 2021.
LATOUR, Bruno. Agengy at the time of the Anthropocene. New Library History. Vol.
45, p. 1-18. 2014.
16
OLIVER-SMITH, Anthony. What is a disaster?: Anthropological Perpectives on a
Persistent Question. In: The Angry Earth. Ed. by Oliver-Smith and Susanna Hofman. 1999.
PATEL, Raj; MOORE, Jason W. Natureza Barata: Uma história do mundo em sete
coisas baratas. Disponível em:
https://jasonwmoore.com/wp-content/uploads/2021/04/Patel-Moore-Natureza-barata-
capitulo-1-Uma-historia-do-mundo-em-sete-coisas-baratas-2020.pdf. Acesso em: set. 2022.
POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. Tradução: Diego Carlos
Zanella. São Paulo, SP. Edições Loyola, 2016.
17
Barcarena: Análise crítica de políticas e práticas empresariais da mineração no Pará,
Maranhão e Minas Gerais, desregulamentação, violação de direitos e crimes
socioambientais. Org: Edna Castro Eunápio do Carmo. NAEA Editora. Belém: PA. 2019.
18