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Da construção social do corpo

feminino à irreverência do
corpo livre

Docente: Alexandre Melo


Discente: Daniela Teixeira nº93899
UC: Sociologia da Cultura
Índice
1. Introdução...........................................................................................................................2
2. Revisão da literatura...........................................................................................................2
2.1. Género e Sexo..............................................................................................................2
2.2. Os condicionamentos históricos e socioculturais........................................................3
2.3. A emancipação feminina.............................................................................................5
2.4. A globalização e a questão da identidade feminina.....................................................6
3. Metodologia........................................................................................................................8
3.1. Artistas e as suas perspetivas em relação ao corpo.....................................................9
4. Conclusão..........................................................................................................................12
Bibliografia..............................................................................................................................13

Índice de figuras
Figura 1 - Mother and thr child in the Conservatory...............................................................10
Figura 2 - O berço....................................................................................................................11
Figura 3 - Hospital Henry Ford................................................................................................11
Figura 4 - O aborto, tríptico.....................................................................................................12

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1. Introdução
Apesar dos conspícuos avanços consideráveis concernentes ao reconhecimento de direitos
aos atores sociais, as mulheres, dada a sua trajetória social, marcada por lutas, abnegação e
desigualdades, continuam a ser alvos de discriminação dos mais variados tipos. Contudo, e de
acordo com Bauman, numa entrevista a Giron (2014) as conexões herdadas já não
funcionam, é tempo de abertura de espaço para que se efetivem novas.

Neste contexto, e com recurso a uma variada análise bibliográfica, pautada pelo método
de abordagem dedutivo, o presente estudo, ao carregar como premissa a influência dos
condicionantes históricos, sociais, culturais e religiosos, enquanto formadores de uma
herança intergeracional de noções incorporadas e (re)produzidas no imaginário coletivo, que
se tornam um obstáculo ao exercício da população feminina, retratará as condicionantes que
medeiam as relações socias na contemporaneidade, nomeando as empreitadas até o corte com
os círculos de dominação, ou seja, a passagem da subjugação, nomeadamente, do corpo
feminino, ao poder masculino, à sua libertação.

Dada a fraca presença de mulheres na cultura, em especial, na arte, recorremos a algumas


pintoras, contextualizadas na História da Arte, que mostram, a partir da sua perspetiva, o
tratamento do corpo feminino, em diversos momentos quotidianos, como em interação com
outros ou outras, a maternidade, e, inclusive, num espetro mais onírico.

Pretende-se articular as ideologias, as culturas e as emoções atinentes à diversidade dos


corpos femininos, e, para além disso, compreender como ocorreram a rutura social, nas
sociedades democráticas. Seguindo o pensamento de Michelle Perrot, em 2019, “É a
diferença dos sexos que marca os corpos que ocupa uma posição central nessa história”, ou
seja, a emoção compreendia sexo, considerada compleição feminina, enquanto que a razão
faria parte do poder masculino. Não obstante, coloca-se a questão: Como se sentem as
mulheres com os corpos normalizados pela ideologia e pela cultura masculina dominante?
Subsequente a esta questão, que por si só arrecada afirmações verosímeis, desenvolver-se-á o
nosso trabalho.

2. Revisão da literatura
2.1. Género e Sexo
Um ponto fulcral da identidade – conceito desenvolvido posteriormente – é a
apresentação do género. O facto de nascermos de um sexo ou de outro torna-nos suscetíveis à

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desenvoltura de comportamentos e atitudes que, ao longo da vida, sofrem mutações. Porém,
será que essas diferenças dependem, única e exclusivamente, da biologia e da natureza? Ou
também são socialmente contruídas? Assim sendo, é imprescindível distinguir dois conceitos
– sexo e género – que à partida, não parecem antitéticos, não obstante, tratam-se de variáveis
de ordem natural-biológica, e construções simbólico-culturais, que, comumente, se
entrelaçam, sendo que os aspetos de uma não correspondem ou representam os aspetos de
outra.

Das primeiras pessoas a colocar a questão do género, foi a escritora e feminista francesa,
Simone de Beauvoir, ao referir, em 1949, na obra Le Deuxième Sexe “on ne nait pas femme,
on le devient”, conferindo, assim, a importância aos papéis apreendidos pelos atores sociais.

Desde a década de 70 que estas duas dimensões de categorização penetram o discurso


académico, dado a sua conspicuidade propalada pelos movimentos emancipatórios.
Compreende-se por género a masculinidade ou feminilidade, socialmente construídas, e,
tradicionalmente, inculcadas pela socialização, mutáveis ao longo do tempo e apresentam
grande variação entre e intraculturas. Inclui as características culturais específicas que
permitem identificar o comportamento de homens e mulheres. Enquanto que o sexo pode ser
descrito como as diferenças biológicas e fisiológicas entre homens e mulheres.

Ar relações entre estas variáveis devem ser compreendidas à luz de uma época própria e
de uma sociedade, em que a sua matriz social e cultural tipifica o masculino e o feminino.
Sendo que, indubitavelmente, comprovado por vários estudos, e explorados nesta
investigação, há uma relação hegemónica entre os sexos, que se estratificam de modo
desigual, num quadro de associações partilhadas, de certos valor, atitudes e comportamentos,
como resultado de uma díspar divisão dos papéis sociais. Note-se que, dessa desigual
repartição de papéis, resultam em sistemas de dominação em que “o dominado tende a
assumir sobre si próprio o ponto de vista dominante” (Bourdieu, 2007: 102).

2.2. Os condicionamentos históricos e socioculturais


"Quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impor à
outra a sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se
entre elas, […] uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a
outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se, pois, que o homem tenha tido
vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu realizar essa vontade?"
(Simone Beauvoir, 1983: 97)

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Seguindo a linha de pensamento de Simone Beauvoir, note-se que, desde as
sociedades ancestrais, o privilégio biológico permitiu aos homens poderem afirmar-se
enquanto sujeitos soberanos, pelo contrário, as mulheres foram “condenadas a desempenhar o
papel do outro” – de escrava ou ídolo, ou seja, não tiveram hipótese de escolher o seu próprio
destino.

Paulatinamente, assistiu-se a um deslocamento do sistema de caça, onde ambos os


sexos contribuíam com bens económicos, para um sistema agrícola, mais uma vez, houve
uma benesse em prol do sexo masculino, dado que, a existência desta nova base económica,
promoveu a estratificação de géneros, ficando os homens encarregues de uma função
profissional, enquanto que as mulheres se ocuparam da maternidade.

A forma como este tema sido abordado remete para a cultura grega, em que a esta
estratificação de géneros é análoga ao modelo androcêntrico, porquanto, no meio do universo
se encontra o homem, sendo as mulheres reduzidas à sai insignificância. Por sua vez,
continuando nesta pejorativa, infeliz, maneira de descrever as mulheres, os romanos
legitimaram a discriminação às mesmas, por meio do “pater famílias” – instituição de cariz
jurídico que conferia ao homem poder sobre as mulheres, os filhos e os escravos (note-se que,
a maneira como estão expostos os indivíduos, corresponde à sua importância), legitimando a
posição social de inferioridade, característica das mulheres. Inclusive, nos regimes
ditatoriais, no século XX, os corpos das mulheres foram, duramente, observados e criticados,
subjugados no próprio espaço público, “requerendo-se a discrição no vestuário, as atitudes
reservadas e as vozes submissas. Sendo que muitos corpos, também foram encarcerados,
torturados e assassinados.” (Alves & Baptista,2019:799)

Esta objetificação1 e servilismo por parte da mulher, como se de uma propriedade se


tratasse, ou de um elemento sexual, desprovida de identidade própria, advém de
condicionantes socioculturais, à medida que, a ação ordena a aceitação e o seu silêncio,
compleição da estrutura patriarcal.

Os condicionamentos socias, as representações e discursos referentes à mulher,


tratam-se de legados históricos, a partir dos quais herdou-se o imaginário social concernente a
uma “natureza feminina”. Sob este enquadramento, as representações sociais sobre as
mulheres, cristalizadas, estabeleceram o pensamento simbólico da diferença: a mãe, a esposa,

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A utilização do vocabulário objetificação é propositado, dado revelar o modo de tratar uma pessoa como um
objeto de prazer sexual – a mulher – e, em alguns casos, tratar como mercadoria, desconsiderando, por
completo, a sua personalidade e dignidade.

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a ‘fada do lar’, e, firmavam, por oposição a figura de Eva, enquanto mulher sensual e
vergonha da sociedade, dado ser a culpada pela queda da humanidade do paraíso. Espelhando
essa simbologia, as mulheres eram “obrigadas” a continuar o desempenho das suas funções
de caseira e materna, não deviam transgredir natureza que lhes era incumbida.

De acordo com a visão bourdieusiana, a dominação masculina, bem como as


subsequentes clivagens sexuais, surge como consequência da trilogia das instâncias sociais
principais: a família, a igreja e a escola. A família surge enquanto percursora da experiência
de legitimidade da representação da divisão sexual do trabalho. Já no que toca aos
condicionantes religiosos, e especial, nas religiões monoteístas, tem havido uma contribuição,
vincada, por parte destas, para a naturalização das mais variadas conceções. A pregação da
Igreja Católica, ao focar-se na criação de Adão e Eva, impele as mulheres à humildade, para
além disso, ao derivarem da costela de Adão a “hierarquia do masculino e do feminino lhes
parece da ordem de uma natureza criada por Deus” (Perrot, 2013: 83). Daí que, quase como
se se tratasse de uma segunda oportunidade, surge a Virgem Maria, paradoxal e antídoto à
pecadora – Eva. No que tange à escola, aparece como a principal transmissora das premissas
da representação patriarcal e sendo a sua estrutura hierárquica, conotada a nível sexual,
contribui, marcadamente, para o traçado dos destinos sociais.

Desta maneira, fomos ressalvados sobre como as recorrentes desigualdades e


opressões arruinaram as relações de género, para além disto, têm funcionado, negativamente,
como um eficiente instrumento de contenção para o acesso das mulheres à vida norma, e,
consequentemente, a uma vida normal. É importante não esquecer que sobre elas recaem
várias responsabilidades, circunscrevendo a vida e trabalho ao nível privado.

Apesar da eliminação de algumas iniquidades, umas mais propalares que outras, ainda
se mantêm, de forma bastante visível, as clivagens sexuais, ou seja, as mulheres ainda
embatem em desiguais entraves para uma melhoria do seu estatuto, da sua emancipação.

2.3. A emancipação feminina


Dada a tentativa para recuperar a presença feminina na história, devido à sua
invisibilidade, causada pela dominação infligida pelas estruturas sociais, foi exigida a
“construção de um novo mapa, de uma nova metáfora, desconfiando das categorias dadas
como universais e, ao mesmo tempo, privilegiando as singularidades, as pluralidades e
diferenças” (Colling, 2004: 14).

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No século XIX, a luta feminina pela igualdade entre sexos, centrada entre o direito e o
social, viu a sua genesis nos movimentos emancipatórios, na Europa, pondo em causa o
arquétipo tradicional, atingindo o seu paroxismo com a Revolução Francesa, cujo o lema
tinha por base a “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

Desde a Revolução Francesa, até aos anos 60, os corpos femininos – um dos enfoques
principais do nosso trabalho –, a nível social e político, devido ao Código Civil Napoleónico,
foram considerados elementos passíveis de manipulação e exploração, a mulher não era um
ser soberano, pelo contrário, era vista como objeto de consumo, e o seu corpo como algo a ser
dominado. O seu desiderato passava por “dar à luz”, dada a ignomínia da “degenerescência”
da raça, patente numa época em que o colonialismo persistia em determinados países, como é
o caso de Portugal. Com o intuito de proteger a maternidade, são elaboradas leis e surgem
instituições médicas, praticantes da puericultura e pediatria. Concomitantemente, coíbe-se, as
mulheres, de usarem métodos contracetivos e de interromperem, voluntariamente, a gravidez.

Assim, os feministas da primeira vaga têm reivindicado, nomeadamente, igualdade


política e de educação, entre os sexos. O conceito de igualdade pressupões uma única
humanidade, excluindo, deste modo, todo e qualquer tipo de segregação e hierarquização,
tratando-se de um princípio de caráter normativo, cujos seus mais encómios se devem à
tentativa de aniquilar as injustiças sociais. Enquanto que, tanto os feministas da segunda vaga
como os da atualidade, deram particular atenção ao direito, à liberdade dos corpos e da
conceção das identidades de género. Passando por uma importante referência é a teoria
“queer”, desenvolvida pela socióloga Judith Butler, na obra Troubles dans le genre, que teve
como fim a origem das “irreverências conquistadas pelos corpos femininos.

Note-se que, a emancipação feminina, sem olvidar o movimento feminista, revestidos de


extrema importância, dado o avanço do protagonismo das mulheres enquanto sujeitos,
organizaram-se com o objetivo de evidenciar as suas próprias condições de vida, lutando pela
transformação das desigualdades entre sexos, ao ingressarem numa árdua labuta pelo
reconhecimento dos seus direitos, e ao confrontarem os paradigmas opressivos e
discriminatórios vigentes.

2.4. A globalização e a questão da identidade feminina


Nas palavras de Giddens “para o bem ou para o mal, somos impelidos rumo a uma nova
ordem global, que ninguém compreende plenamente, mas cujos efeitos se fazem sentir sobre
todos nós: a globalização” (Giddens, 2000:5). Alguns desses efeitos são extrínsecos,

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enquanto que outros se encontram intimamente conectados ao sujeito, provocando mudanças
no quotidiano e compleição de cada pessoa, assim sendo, as relações sociais sofrem uma
metamorfose na sua essência.

Assim, numa época tipificada pela interdependência global das pessoas, fica ao alcance,
de cada um dos indivíduos, a permeabilidade à construção de novas identidades. Esta é cada
vez menos controlada por aspetos tradicionais ou geográficos, dada a constante mutação,
sendo, pelo contrário, procurada, construída e partilhada, por natureza é hibrida e inconstante.
Contudo, procurar definir a aceção de identidade assemelha-se a uma tarefa pouco profícua,
nas palavras declaradas por Reid e apropriadas por Onésimo Teotónio Almeida, encontramos
o seguinte testemunho:

“Se me pedirem uma definição de identidade, confesso não poder dar nenhuma; é uma
definição demasiado simples para admitir uma definição lógica; posso dizer que é
uma relação, mas não consigo encontrar palavras para expressar a diferença específica
entre esta e outras relações, embora eu não corra qualquer risco de confundi-las com
quaisquer outras.” (Reid apud Almeida, 2019: 49)

Independentemente de as identidades estarem em permanente construção, e da velocidade


a que se vão metamorfoseando, existe um descompasso no que concerne a essa relação e à
evolução global, o que dificultará a construção identitária da mulher. Sendo cada época uma
influencia ao individuo, na forma como este pensa e age, no fim do século XX, já integradas
no mercado de trabalho, as mulheres começaram a dar enfoque à busca de identidade, em que
o basilar desiderato é a construção de si e o desenvolvimento pessoal. Contudo, a identidade
social da mulher não se trata de algo unitário, mas, antes, resulta de diferenças, podemos
concebê-la como um produto da negociação externa da diferença com outros sujeitos,
estabelecendo um continuo nessa negociação, cujo propósito permanente é a constituição do
self.” (Vieira,2005:211).

Não obstante, a alocação de naturalizar os valores e discursos hegemónicos nem sempre é


feita de modo conspícuo, talvez porque se encontra de par em par com a conceção que afirma
que o papel social dos géneros é traçado previamente, contribuindo para solidificar
identidades culturalmente contruídas que, no entanto, geram condicionamentos que
dificilmente são desconstruídos. Não se trata de uma tarefa impossível, depende de uma
atuação consciente, coletiva e preventiva, adquiridos por meio de uma educação esmerada,
políticas públicas, acesso a informação. Estes elementos coletivos, favorecem livres escolhas

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por parte dos indivíduos, munidos de capacidades hábeis para despertar uma nova
consciência cidadã, antevendo uma sociedade passível de viver em igualdade de condições e
oportunidades.

Bourdieu (1994: 3) declara que a linguagem deve ser tida em conta como parte integrante
da dimensão cultural, em que a relação global das pessoas com o mundo social se expressa.
Seguindo esta dimensão, Gibson e Graham (1996:116) analisaram o conhecimento feminino
do corpo, construído pelos movimentos feministas, ou seja, a linguagem feminista coloca a
violação como uma realidade presente na vida das mulheres, e vai completando o seu
discurso baseando-se na capacidade assumida pelo violador – neste caso, masculino – para
dominar o seu alvo, assim, uma ativista defende que o desiderato dos projetos contra a
violação é a criação de um conhecimento público detalhado a respeito do tema, de modo a
fortalecer a política feminina – o corpo é basilar, abre novas perspetivas para os estudos da
formação identitária. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, o discurso sobre o sexo começa a
estar mais tácito em diversas áreas, dando-se uma construção de novos conceitos e imagens
sobre a mulher. Posto isto, a mulher atual passa a definir sexo, na sua identidade, como algo
que deve ser prazeroso.

Como já supracitado, a diferença sexual depende de se ter nascido rapaz ou rapariga, ou


seja, das diferenças biológicas, trata-se de um acontecimento casuístico, tal como a cor da
pele ou dos olhos. A partir do nascimento começa um longo processo de construção da
identidade, independentemente dos elementos culturais referenciais ao sexo ou à
nacionalidade serem ou não inatos. Deste modo, a socialização vai reproduzindo o universo
ideológico que estipula os modelos de comportamento e as características que as pessoas do
sexo masculino e do sexo feminino devem ter. A sociedade constrói uma identidade social e
uma identidade de género, sendo esta ultima decorrente desse universo simbólico, que se
caracteriza, não só por diferencias estes dois polos como, também, para os valorar
assimetricamente – o indivíduo do sexo masculino surge como referente universal, pois
quando se menciona a Humanidade utiliza-se o termo homem ou o Homem, também o plural
é sempre feito no masculino, por sua vez, a pessoa do sexo masculino é apenas referente para
as mulheres. Nas palavras de Lígia Amâncio, no livro Masculino e Feminino, escrito em
1994, “a pessoa do sexo masculino apresenta uma diversidade de competências que a
constitui em referente universal, em ideal de individualidade, aparentemente liberta de
contextos, enquanto a pessoa do sexo feminino se constitui como referente exclusivo das

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próprias mulheres, como ideal coletivo dessa categoria, e só tem sentido dentro das fronteiras
contextuais em que é definida.”

Contemplando as difíceis e morosas mudanças, que pugnam contra a hidra dos sexos, os
efeitos, paulatinamente, se fazem notar, porquanto cada alteração desconstrói processos
históricos de séculos marcados veemente por preconceitos e crenças, impregnados na
sociedade.

3. Metodologia
Quando nos referimos à metodologia da pesquisa empírica referimo-nos aos
“processos e instrumentos de trabalho, dos procedimentos teóricos à implementação dos
dispositivos técnicos, a que recorrem os sociólogos para dar a conhecer a realidade social.”
(Almeida, 1995: 194). Vários relatórios de investigadores têm revelado que a investigação
social não se trata de um conjunto de procedimentos simples e claros, mas antes um processo
social onde a interação existente entre o investigador e o investigado condiciona
manifestamente a direção em que a investigação decorre. Logo, “o facto científico é
conquistado, contruído e verificado.” (Quivy & Campenhoudt 1998: 25)

Em Sociologia utilizam-se, basicamente, dois processos para obter informação sobre


os fenómenos em estudo e para produzir nova informação, sendo que a obtenção da
informação pode ser obtida a partir da documentação já existente sobre a problemática em
questão, ou a partir da observação dos fenómenos a estudar.

Tendo em conta o principal interesse da investigação, optámos por realizar uma


análise de conteúdo. Este método, sob o olhar de Bruno Reis (2017), extravasa a perspetiva
da tecnicidade investigativa, trata-se de um instrumento que visa interpretar de modo
sistemático o sentido de qualquer mensagem – neste caso, gráfica – produzida num dado
contexto. É um instrumento heurístico que dispõe de uma aproximação metódica para
resolver problemas aquando do tratamento de dados. Sendo uma técnica hibrida, que flutua
entre os formalismos estatístico e a análise qualitativa dos materiais, a análise de conteúdo
pode remediar a “improdutiva discussão sobre virtudes e métodos”. (Bauer, 2002: 190)

Dado constituir num “conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando


obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às

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condições de produção destas mensagens” (Bardin,2004), a escolha da análise de conteúdo,
fez todo o sentido dado permitir o tratamento de um grande caudal informativo…

Através de obras de arte - fontes de informação secundária - realizadas por artistas


femininas, que, nas palavras de Heidegger (2009), no livro A Origem da Obra de Arte “A
obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa; ela é alegoria. À coisa
fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. (...) A obra é símbolo.” Ao longo da
análise de conteúdo iremos procurar dar conta do incessante domínio, controlo e apropriação
das mulheres em relação ao seu próprio corpo, o qual passou por diversos momentos
marcantes, tais como: controlo da natalidade, adoção dos métodos contracetivos,
reivindicação da interrupção voluntária da gravidez, até, por fim, à liberdade da exposição
dos corpos.

3.1. Artistas e as suas perspetivas em relação ao corpo


Mesmo nas metrópoles europeias, apenas no século XX, foi dada a hipótese às mulheres
de entrarem na Escola de Arte e nas Academias, período também marcada pela exposição aos
modelos do nu masculino. Em consequência, muitas artistas femininas, que produziram nas
suas épocas foram, injustamente, consideradas “ajudantes” dos artistas masculinos, acabando,
por isso, a serem invisíveis no universo das artes. Paralelamente, muitas mulheres artistas
ainda continuam desconhecidas.

Focalizando a contemporaneidade, período histórico iniciado em 1789 com a Revolução


Francesa, analisamos telas de artistas (só mais recentemente descobertas) e a sua visão
concernente ao corpo feminino, bem como as relações que desempenham no dia-a-dia.

A artista Mary Cassat (1843 – 1926), foi uma pitora impressionista americana e uma
fervorosa defensora dos direitos das mulheres, tendo, inclusive, participado na campanha a
favor do sufrágio feminino. Não obstante, as suas obras não fazem, diretamente, nenhuma
declaração política, pelo contrário, encontra-se patente uma alusão à vida íntima mais
profunda, retratada nos seus temas predominantemente marcados pela figura feminina.

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Figura 1 - Mother and thr child in the Conservatory
Com este quadro, a artista capta um momento do foro privado, entre uma mãe e a sua
criança, num espírito de espontaneidade. Ao pincelar com recurso a técnicas de estilos
moderno, o que parece um tema banalmente normal, coloca a nu a representação radical das
mulheres no mundo, enquanto esposa idílica e mãe devota, engajadas no seu universo
quotidiano.

Nesta obra de arte, vemos retratada uma mãe elegantemente vestida segurando a sua
filha no colo, estando de frente a uma grande janela aberta. A mãe e a criança não estão
envolvidas em nenhuma atividade específica, contudo a artista optou por as colocar dentro de
um conservatório, o que lhe permite, dedicar mais tempo ao ar livre, um espaço que é
considerado exuberante e impressionista.

A pintura é formada por pinceladas destacadas, restringindo-se a alguns tons em


pastel, nomeadamente o espaço verde ao ar livre, o vestido lilás da mãe e os tons em castanho
que compõem a parede. Embora a progenitora pareça muito gentil com a sua criança,
nenhuma das expressões das figuras são excessivamente sentimentais, Mary Cassatt capturou
um momento espontâneo entre uma mãe e um filho.

O século XX, também marcado pela preocupação para com a natalidade, altura em
que o parto passou a ser medicalizado e, paralelamente, assistiu-se ao desenvolver de
especialidades como a puericultura e a pediatria. Enquanto a maternidade passou a exigir um
maior tempo e dedicação, as mulheres foram estimuladas a prestarem mais atenção aos filhos.
A pintora Berth Morisot, inserida, tal como Mary Cassat, na corrente impressionista, onde,
através das suas pinceladas rápidas e soltar, ficou mais conhecida por retratar, nos seus

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quadros, mulheres. As suas obras orbitavam em volta da ternura e da melancolia, onde, a
artista, ao refletir sobre a sociedade, captava o espírito da classe média francesa.

Figura 2 - O berço
Na pintura “O berço”, de 1972, transparece uma exaltação à intimidade da
maternidade, nela é contemplada a irmã da artista, Edma Pontillon, em frente ao berço de sua
filha. Esta foi a primeira obra em que a artista abordou o tema da maternidade, tornando-se
mais tarde um dos seus temas favoritos.

Sentimentos de afetividade maternal e, ao mesmo tempo, de cuidados são captados,


enquanto a figura maternal olha docemente para a filha a dormir. Enaltecendo este carinho,
através da delicadeza dos gestos e da harmonia entre as cores. Morisot optou por trabalhar em
tons pastéis, incorporando abundantemente o branco na sua composição, esta pintura baseia-
se em dois triângulos entrelaçados, um deles abrange a parte em que é visível o corpo de
Edma e o outro, é formado a partir do dossel, criando deste modo, uma composição
equilibrada que implica uma harmonia assim como, um vínculo subconsciente entre uma mãe
e um filho. O rosto do bebé não tem traços definidos, uma vez que é observado através do filó
do dossel.

Berthe Morisot, apresentou esta pintura na exposição impressionista de 1874,


inicialmente foi pouco notada, embora alguns críticos importantes destacaram nesta obra, a
sua elegância e delicadeza. Depois de várias tentativas frustrantes de vendê-la, a artista
retirou-a da exposição e a obra manteve-se na sua família até ser comprada pelo museu do
Louvre em 1930.

A artista, com raízes mexicanas, Frida Kahlo (1907 – 1954), ao longo da sua carreira,
fez vários autorretratos com alusões: ao papel da mulher, à sua vulnerabilidade física, à sua
identidade mexicana, entre outros, estando sempre patente a sua incógnita quanto ao seu

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lugar no mundo. Frida tinha o sonho, nunca realizado, de um dia ser mãe, sofrendo, inclusive,
diversos abortos.

Figura 3 - Hospital Henry Ford


A pintura, retratadora de um espectro completamente pessoal, contempla um período
dolorosa da vida de Frida Kahlo, nomeadamente, uma das gravidezes que não conseguiu
concluir. O aborto teve inicio em casa, mas só foi concretizado no Hospital Henry Ford
(nome do quadro). Já profundamente deprimida, a artista pediu, em vão, aos médicos, que a
deixam levar o feto para casa, assim sendo, a partir de desenhos do marido e da descrição da
equipa médica, conseguiu eternizar o filho morto, pintando-o na tela. Compraze-nos a
observar, ao redor da pintora, encolhida na cama, enquanto sangra, gravitam seis elementos.
Para além do feto morto, no centro do quadro, e, subsequentemente, também no centro de sua
via, um caracol, que segunda a artista simboliza o processo moroso do aborto, e, o gesso
ortopédico. Na parte inferior da cama, encontra-se uma máquina, como que um esterilizador a
vapor, um osso da bacia e, por fim, uma orquídea lilás, oferta de Diego Rivera, o seu marido.

A artista mexicana acabou com todos os tabus do seu tempo através da exposição de
imagens altamente pessoais, nomeadamente as que se dizem respeito ao corpo e à
sexualidade feminina.

Na maioria das vezes em que aparece vestida nos seus autorretratos, as roupas que
utiliza são bastante simples. Por vezes, a pintora apresenta-se com vestes indianas,
exprimindo assim, a sua identificação com a população indígena assim como a sua própria
identidade nacional. Grande parte dos seus quadros são autorretratos feitos durante a
separação do seu ex-marido.

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Sem nos olvidarmos das pintoras portuguesas, exaltemos o nome Paula Rego (1935-)
uma artista que, dificilmente, não deixa ninguém indiferente. Defensora dos direitos das
mulheres e feminista, conseguiu, no seu quadro, “O aborto, tríptico”, desestruturar a “beleza”
do corpo feminino da perspetiva patriarcal. Coloca a mulher numa ambivalência entre uma
dimensão mais pessoal e outra mais social, sendo que esta última tenta reprimir a primeira, ou
seja, a mulher, socialmente, é admoestada. Todos estes temas são gesticulados pelas
personagens, que são agraciadas por um toque sinistro e degenerado, surgindo como
consequência indubitável do ambiente em que vivem. O primeiro referendo, em Portugal, no
ano de 1998, trato o aborto como uma criminalização, sendo esta a crítica patente no quadro.

Figura 4 - O aborto, tríptico


Nesta série de quadros, é exposta uma realidade pouco visível ao observador,
nomeadamente do sexo masculino. A figura feminina é colocada numa situação de enorme
vulnerabilidade, com posturas pouco cómodas e agradáveis.

As pinturas desta artista caracterizam-se por serem muito realistas, estando inscritas
no naturalismo, onde sempre existe conflito. No ano em que foi pintado esta obra, em
Portugal, o aborto ainda era uma prática clandestina e só vinte anos depois, se deu a
legalização. Portanto, pintar este tipo de cenas no final do séc. XX, representava uma
audácia.

A artista de 86 anos, afirmou recentemente que, “além do drama terrível, sinto que há
beleza.” A aparência mostra mulheres que, por um instante, superaram o medo.

No que diz respeito aos quadros expostos por Paula Rego, Catherine Millet, diretora e
fundadora da Art Press, uma das mais influentes revistas de arte francesa, refere que estas
obras “fazem-nos entender toda a solidão que uma mulher passa quando é obrigada a fazer
um aborto clandestino”. Esta continua e afirma que, “todas as mulheres representadas são

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diferentes e muito individualizadas; são nos mostradas em posições dolorosas, mas quando
vemos os seus olhos, embora a expressão varie um pouco, todas têm aquele olhar direto.”

Paula Rego, disse que se inspirou na sua própria experiência e na de mulheres que
conheceu, e declarou assumir plenamente o naturalismo nas suas obras, tal como foi
anteriormente referido. Por fim, ainda remata dizendo que a luta pelo direito ao aborto é uma
luta coletiva, mas cada mulher vive a escolha de abortar de uma forma absolutamente única.

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4. Conclusão
De maneira flagrante, foram expostas a vicissitudes e idiossincrasias do sujeito do sexo
feminino, sendo invisível até recentemente, penalizado pela sua herança intergeracional,
calcada em conceitos incorporados e (re)produzidos no imaginário coletivo, através de
condicionantes discriminatórios que atuam numa espécie de vórtice, resultando na
perpetuação das clivagens sexuais, nos diversos espectros sociais.

Entre os grandes desafios colados neste século, encontra-se a contumaz emancipação


feminina, frente à elaboração de estratégias capazes de pugnar a cultura de dominação e
tolerância face às desigualdades, e, paradoxalmente, promover ações pautadas pela igualdade,
em que as diferenças sejam reconhecidas e refletidas, coexistindo libertas de estereótipos e
preconceitos.

A consecução da emancipação feminina tem como máxima a possibilidade de


participação de todas e todos na construção e conquista das condições de protagonismo
indispensáveis à concretização de uma cidadania ativa, nomeadamente, por parte das agentes
femininas. Este desafio não se revela pequeno. Desse modo, ainda hoje é conspícuo os corpos
subjugados e violentados a par da dominação masculina, quer por assédio sexual, apropriação
do corpo, e por motivos políticos, culturais e religiosos.

Com a entrada, paulatina, das artistas, nos alvores do século XX, na Escola de Belas
Artes, assiste-se a um mutar da realidade, a um progresso positivo na defesa dos direitos das
mulheres, sendo que estas, ao retratarem as suas visões dos corpos, neste caso através de
quadros, pintados de forma emocional e racional, assumem-se, finalmente, como sujeitos
“fazendo a arte”, e, ainda, desempenhando o papel de ativistas femininas, tal como os grandes
nomes enunciados.

16
5. Bibliografia
1. Almeida, João Ferreira de (1995), Introdução à Sociologia, Lisboa, Universidade
Aberta, pp. 193-222;
2. Almeida, Onésimo Teotónio (), A Obsessão da Portugalidade, Liboa, Quetzal
Editores;
3. Alves, Paulo Marques & Virgínia Baptista (2019), “Da construção normativa do
corpo feminino à irreverência dos corpos livres – as turbulências das vivências”,
comunicação apresentada ao Congresso Internacional Hacia un nuevo horizonte de
sentido histórico de una civilización de vida, Perú 2019;
4. Amâncio, Lígia (1994), Masculino e Feminino, Porto, Edições Afrontamentos;
5. Bardin, L. (2011), Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70;
6. Bauer, M. (2002). Análise de conteúdo clássica: uma revisão, em: M. Bauer e G.
Gaskell (org.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático.
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7. Beauvoir, Simone de (2017), O Segundo Sexo, Lisboa, Quetzal Editores;
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9. Bourdieu, Pierre (1994), Raisons pratiques. Sur la théorie de l’action, Paris, Éditions
du Seuil;
10. Butler, J. (2005), Troubles dans le genre, Paris, La Découverte.
11. Colling, Ana (2004), A construção histórica do feminino e do masculino, em:
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questões contemporâneas, Porto Alegre: EDIPUC;
12. Gibson, K. & J. Graham (1996), O fim do capitalismo como o conhecemos, Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira;
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Gulbenkian;
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um parque de diversões, Em: Revista Época: Entrevista.

17
a. Disponível em: http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmunt-
baumanbcultura-e-um-campo-de-batalha-e-um-parque-de-diversoes.html
15. Heidegger, Martin (2009), A origem da obra de arte, Lisboa, Edições 70;
16. Perrot, M. (2019), Minha história das mulheres, São Paulo, Editora Contexto;
17. Vieira, J. Antunes (2005), A Identidade da Mulher na Modernidade, SCIELO, São
Paulo, DELTA, v. 21, pp. 207-238;
18. Quivy, Raymond & Luc Campenhoudt (1998), Manual de Investigação em Ciências
Sociais, Lisboa, Gradiva;
19. Reis, Bruno (2017), “Os conteúdos em análise – teorias e práticas da análise de
conteúdo”, Metodologia de Investigação, pp. 205 – 235;

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