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INTRODUÇÃO
BIOGRAFIA
Introdução
1) A longa vida de Kant foi isenta de lances emocionantes ou de envolvimento ativo em eventos
políticos de sua época. Sua vida exterior foi monótona e, quase sempre, metódica. O filósofo
jamais se afastou dos arredores de Konigsberg, hoje chamada Kaliningrado, cidade que se
encontra em um enclave russo entre a Polônia e a Lituânia. Segundo Hoffe, “Kant não possui
outra biografia senão a história de seu filosofar” (p. 2).
2) Talvez Kant seja o primeiro filósofo que garantiu seu sustento da atividade docente (aulas
particulares e Universidade de Konigsberg).
3) Sabemos muito do desenvolvimento filosófico de Kant através de sua extensa correspondência, na
qual ele relata em detalhes seus questionamentos e conclusões, e também através das biografias
escritas por seus contemporâneos.
Vida
I) Fase pré-crítica
1) Nasceu o quarto de nove filhos em uma família de modestos recursos. A partir dos oito anos,
frequenta um dos melhores colégios da Prússia, o Friedrichskollegium. Sua família segue o
pietismo protestante, de rigorosa observância moral. Aos 16 anos, inicia seus estudos na
Universidade Albertina (Konigsberg). A partir de 1746, trabalha como preceptor na casa de
famílias ricas.
2) Começa a escrever seus primeiros textos, quase todos na área de ciências naturais, muitas vezes
em alemão, o que então era raro (a língua franca era o latim). Em 1755 publica anonimamente o
texto História Geral da Natureza e Teoria do Céu que, seguindo a mecânica celeste
newtoniana, explica a formação do universo unicamente a partir de razões mecânicas. Junto com
as observações do astrônomo francês Laplace (1796), a hipótese Kant-Laplace da formação
mecânica do universo tornou-se muito importante em astronomia. Torna-se mestre em filosofia
em 1755 (nunca defenderia tese de doutoramento) com uma tese escrita em latim sobre o fogo: De
Igne. Passa a ter o cargo equivalente ao atual Privatdozent, vivendo dos ganhos de livre-docência
e de aulas particulares.
3) Na Nova Dilucidatio, Kant ataca a metafísica wolffiana, que acredita poder derivar de um único
princípio lógico (da contradição) o princípio leibniziano da razão suficiente. Kant então já
questionava o argumento wolffiano de que todos os princípios do conhecimento podem ser
reduzidos a um único princípio comum.
4) A partir do início da década de 1761, influenciado pelo pensamento de Hume (na filosofia teórica)
e de Rousseau (filosofia prática), fica cada vez mais claro para Kant que as grandes questões da
metafísica não podem ser solucionadas com os instrumentos tradicionais da filosofia. É necessário
afastar-se da metafísica para realizar sua propedêutica. Assim, já no texto O Único Argumento
Possível para uma Demonstração da Existência de Deus, publicado em 1762, Kant afirma que
“existência não é predicado” ao refutar quatro importantes provas, entre elas a chamada
“ontológica”, mobilizada por Descartes. Em outro tratado, Sonhos de um Visionário esclarecidos
pelos Sonhos da Metafísica, de 1766, uma crítica ao místico sueco Swedenborg, como o abandono
do fundamento empírico pode levar a conclusões estranhas, mesmo seguindo-se estritamente a
lógica. Pela primeira vez Kant afasta-se explicitamente da metafísica como sistema racional e a
define como uma “ciência dos limites da razão humana”. Kant preocupa-se a partir de então a
determinar esses limites. É o momento em que Kant concorda com a crítica humeana à metafísica
sistemática, embora discorde de suas conclusões empiristas e céticas.
5) É apenas em 1770 que Kant conquista a cátedra de lógica e metafísica com a dissertação Sobre a
Forma e Princípios do Mundo Sensível e Inteligível, também conhecida por Dissertação
Inaugural de 1770, seu último texto publicado na fase pré-crítica. Com a conquista da cátedra,
Kant dá aulas sobre os temas mais variados na Universidade, tornando-se mesmo reitor nos anos
de 1786 e 1788. Na Dissertação, já surge a tarefa de elaborar uma propedêutica à metafísica. É
necessário, para o sucesso dessa propedêutica, fazer um recorte entre radical entre o conhecimento
sensível das coisas tais com o elas aparecem (fenômenos) e o conhecimento inteligível das coisas
tais como elas são (númenos): “É preciso ter muita cautela com que os princípios próprios do
conhecimento sensível não ultrapassem os seus limites nem afetem o intelectual” (#24). Kant tenta
escapar do ceticismo kantiano, que colocaria em risco toda a metafísica, afirmando que a
metafísica não deve tentar entender as coisas elas mesmas, mas sim as relações entre as coisas (cf.
Lebrun, primeiro texto de Sobre Kant). Vários pontos importantes de sua crítica transcendental à
razão já aparecem: a) O conhecimento dos fenômenos pode ser inteiramente válido (respeitados
certos limites), b) as representações de tempo e espaço não se originam nos sentidos, c) tempo e
espaço são intuições puras que constituem as condições gerais – e subjetivas – de coordenação de
todo material sensível, d) os conceitos morais só podem ser conhecidos pelo entendimento puro
(de qualquer experiência).
O objetivo inicial de revisar e ampliar em algumas páginas a Dissertação de 1770 acaba tornando-se um
movimento de reflexão que levaria onze anos, período no qual Kant nada publicou. É o caminho da
filosofia pré-crítica à filosofia crítica, que implica a elaboração não de uma ciência dos fenômenos da
consciência, como aparece na Fenomenologia do Espírito hegeliana, mas uma ciência da consciência
dos fenômenos. Kant conclui que o entendimento puro (as categorias) não pode conhecer as coisas, mas
apenas apresenta as condições de toda experiência possível. Além disso, Kant percebe que as antinomias
da Razão não surgem devido à confusão entre os campos da sensibilidade e do entendimento, mas sim por
causa da confusão entre as coisas elas mesmas e os fenômenos. Finalmente, se é possível descobrir as
antinomias, não é possível eliminá-las. Assim, a partir de textos extensos escritos durante esse longo
período, Kant, “em poucos meses” redigiu e publicou a Crítica da Razão Pura, que inaugura sua fase
crítica.
1) As primeiras recepções à obra não foram muito favoráveis, sobretudo devido à obscuridade do
texto e à dificuldade dos temas apresentados. No entanto, com o passar do tempo, ficou claro
aos leitores – primeiro da Alemanha, depois do restante da Europa - a imensa importância da
Crítica.
2) Logo depois da primeira Crítica, muitos escritos surgem:
1783 – Prolegômenos a toda Metafísica Futura que possa apresentar-se como Ciência,
texto no qual Kant resume a Crítica e expõe a crítica transcendental da Razão usando o
método analítico, e não o sintético;
1784 – Resposta à Pergunta: Que é Iluminismo?; Ideia de uma História Universal de um
Ponto de Vista Cosmopolita;
1785 – Fundamentação da Metafísica dos Costumes [Sitten], seu primeiro texto sobre moral
na fase crítica;
1786 – Princípios Metafísicos da Ciência Natural, no qual Kant apresenta os princípios a
priori da Física;
1787 – segunda edição da Crítica da Razão Pura, com poucas mudanças na primeira, todas
referentes à redação;
1788 – Crítica da Razão Prática, a segunda crítica;
1790 – Crítica do Juízo;
1793 – A Religião nos Limites da Simples Razão, obra que foi censurada pelo próprio rei
Frederico Guilherme II, mesmo tendo obtido o imprimatur da Faculdade de Filosofia de Jena,
onde foi impresso. A obra não é uma análise do cristianismo, mas sim da religião natural;
1794 – O Fim de todas as Coisas, texto no qual Kant, com ironia, critica o modo autoritário
como o cristianismo é entendido;
1795 – À Paz Perpétua, texto que discute filosofia do Direito e da História;
1797 – Metafísica dos Costumes, texto que apresenta a Filosofia kantiana do Direito,
sobretudo em sua primeira parte, “Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito”. A segunda
parte chama-se “Princípios Metafísicos da Virtude”, na qual se encontra a filosofia kantiana da
moral;
1798 – Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático; O Conflito das Faculdades.
3) Kant para de lecionar em 1796. A partir de 1799, surgem os primeiros sinais de senilidade.
Kant pretende escrever uma obra, mais tarde chamada de Opus Postumum, na qual se passa do
pensar apriorístico ao empírico, mais precisamente, dos princípios apriorísticos da ciência
natural à física. Com esse intuito, Kant começa a desenvolver uma teoria apriorística da
corporeidade, segunda a qual o corpo é visto não apenas como objeto empírico, mas também
como subjetividade na qual se desenvolve a Razão. Kant cai seriamente doente em outubro de
1803 e morre em fevereiro de 1804, sendo enterrado com pompa no jazigo dos professores da
Universidade. Anos mais tarde, é colocada uma placa sobre seu túmulo onde se lê a célebre
frase da Crítica da Razão Prática (V 161): “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e
veneração sempre novas e crescentes quanto mais frequente e mais persistentemente delas se
ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.
4) Alguns de seus cursos são transformados em obras a partir de 1800: Lógica (1800), Geografia
Física (1802), Sobre Pedagogia (1803).
Textos
Kant discute espaço e tempo na Estética a partir de dois pontos – a exposição metafísica e
a exposição transcendental. No primeiro caso, Kant busca entender o significado conceitual de tempo e
espaço, inserindo-se em uma vastíssima tradição de discussão filosófica que se inicia com Platão e
Aristóteles. Para Platão, espaço é receptáculo (chora); Para Aristóteles, “a fronteira do corpo continente,
no qual ele está em contato com o corpo contido”. O problema filosófico aqui é que se espaço contém
todos os seres, não é matéria, se é separável dos seres, não é forma. A partir da modernidade, espaço foi
visto sucessivamente como substância (extensão em Descartes), ordem racional das formas substanciais
(Leibniz), ideia derivada das sensações da visão e tato (Locke) e, finalmente, distinção entre espaço
absoluto (divino, sempre semelhante e imutável) e relativo (medida/dimensão móvel obtida através dos
sentidos a partir do espaço absoluto). Tal é a posição de Newton (1687). Na fase pré-crítica, Kant adota a
concepção leibniziana, mas passa a aderir à newtoniana. No entanto, já na Dissertação Inaugural (1770),
Kant passa a ver o espaço e o tempo como uma intuição subjetiva. Foi apenas na Crítica que a concepção
kantiana de espaço e tempo atingiu a radicalização subjetiva.
Na exposição metafísica, Kant busca revelar espaço e tempo como representações originárias –
em primeiro lugar, como representações a priori, o que lhes concede o caráter de objetividade e
universalidade; em segundo lugar, como intuições, não como conceitos. Tais representações são
encontradas quando retiramos das sensações tudo o que foi obtido pelos sentidos – odores, cores,
formatos, ruídos, texturas. O que resta é independente da experiência. Resumindo: tempo e espaço são
intuições a priori puras. Puras porque não podem ser derivadas nem da sensibilidade nem do
entendimento (ou seja, da experiência, o que destrói as bases do empirismo); a priori porque são
pressupostas pela percepção sensível (a percepção de um banco ao lado de uma parede pressupõe o fora e
as relações de distância entre esses objetos); intuições porque coordenam a multiplicidade das sensações
sem subsumi-las na forma de um conceito (tarefa do entendimento). Ou seja, espaço e tempo são
intuições puras a priori do sujeito transcendental – são condições necessárias para toda a experiência de
objetos.
A distinção entre espaço e tempo é que enquanto espaço é a forma intuitiva do sentido externo, o
tempo é do sentido interno (psíquico, portanto). O tempo tem primazia porque toda a representação dos
sentidos externos é também uma representação do sentido interno – mas nunca o inverso. Logo, o tempo é
visto por Kant como a forma de toda a intuição – imediatamente da interna e mediatamente da externa.
A exposição transcendental do tempo e do espaço tem como objetivo mostrá-los como formas
constitutivas de objetos, os quais, por sua vez, são objetos de um conhecimento sintético a priori. Assim,
a forma pura da intuição do espaço torna possível a Geometria, ou melhor, as geometrias, mesmo as não-
euclidianas; a do tempo, a parte da priori da Mecânica, a Física do movimento dos corpos (nos
Prolegômenos, devido à numeração, também a Aritmética). Kant afirma em B40 que, através da
exposição transcendental do espaço, a geometria é possível enquanto ciência que “determina
sinteticamente e mesmo assim a priori as propriedades do espaço”.
Assim, Kant parece ter colocado as controvérsias modernas acerca do tempo e do espaço em novo
patamar. Espaço e tempo em Kant não representam substâncias (Descartes), nem são atributos de
substância (Espinosa), nem relação das substâncias finitas, as mônadas (Leibniz).
Segundo Hoffe, uma conclusão se impõe na Estética Transcendental – a espacialidade, como
forma da intuição pura a priori do nosso sentido externo, tem caráter sintético, mas não pode ser
entendida como premissa de nenhuma ciência matemática – nem mesmo da geometria pura. A
espacialidade deve ser entendida como fundamento transcendental de qualquer geometria.
SEGUNDA PARTE – LÓGICA TRANSCENDENTAL
A Lógica Transcendental é uma descoberta kantiana. Até Kant, a única lógica existente era a
Formal (cujos fundamentos foram colocados por Aristóteles), que só se ocupa, como seu próprio nome
diz, com a forma dos pensamentos. A Lógica Transcendental kantiana lida com os conteúdos dos
pensamentos, sua matéria, portanto, ainda que a priori. Assim, ela procura descobrir como os
pensamentos (juízos) referem-se aos objetos. Como ela é transcendental, ela não busca conhecimento
desses conteúdos, o que as diversas ciências particulares fazem. Desse modo, ela pode mostrar quais são a
origem e os limites do conhecimento empírico. Ela tem duas partes, a Analítica e a Dialética.
A Analítica é uma “lógica da verdade”, através da qual são descobertos os fundamentos subjetivos
e apriorísticos que possibilitam a referência a objetos e o conhecimento objetivo (a partir do conteúdo
fornecido pelas intuições da sensibilidade).
Antes de tudo, é preciso entender que os conceitos estruturam, dão forma, aos conteúdos das
intuições (sensações) – eles são as regras através das quais os objetos se constituem a partir de uma massa
desconexa de sensações. Os conceitos operam a síntese das sensações e as determinam enquanto objetos.
As regras dessa síntese e dessa determinação não são dadas empiricamente. As sensações se transformam
em uma unidade (objeto). Sem os conceitos, ainda não há mundo, mas apenas um aglomerado desconexo
de sensações. É necessário, no entanto, distinguir conceitos empíricos de conceitos puros.
Os conteúdos dos conceitos empíricos fundamentam-se na experiência e seu caráter de
generalidade é obtido através da comparação, reflexão e abstração da experiência, como o conceito
empírico de mesa, rio ou macieira. Só entendo este objeto na minha frente como mesa porque trago em
mim o conceito empírico de mesa ao qual acoplo os materiais das sensações provenientes desta mesa na
minha frente. Já os conceitos puros são originados, também quanto ao conteúdo, apenas no entendimento.
Kant os chama de categorias porque eles não derivam de nenhum conceito mais geral.
Temos aqui o confronto tanto com o racionalismo quanto com o empirismo. A confrontação com
o empirismo se dá porque Kant descobre conceitos puros, que não são formados a partir da experiência –
sem as categorias não é possível ter conhecimento objetivo. O conflito com o racionalismo se dá porque
as categorias precisam do material fornecido pela experiência. Assim, não é possível haver conhecimento
além dos limites da experiência.
As intuições puras a priori e as categorias puras a priori mostram que o conhecimento dos objetos
só pode ser fenomênico – o acesso às coisas em si mesmas é radicalmente bloqueado. A verdade é sempre
a verdade dos fenômenos, ou seja, dos objetos tais como eles se apresentam ao sujeito transcendental, e
não a verdade das coisas-em-si. Assim como na Estética Transcendental, Kant também adota dois passos
de exposição das categorias, sendo a segunda proveniente da primeira. Primeiro, vem a dedução
metafísica, que mostra como as categorias são encontradas e em que eles consistem, em segundo, vem a
dedução transcendental, que afirma que, mesmo sendo subjetivas (pois nascem da espontaneidade do
sujeito), as categorias são imprescindíveis para a constituição dos objetos, logo, são objetivamente
válidas.
Kant busca derivar as categorias de um princípio em comum – as formas do juízo. A cada forma
corresponde uma categoria. A lista completa das formas do juízo é dada pela lógica formal.
É no juízo que o entendimento efetua a ligação (síntese) entre multiplicidades desconexas. A
expressão linguística do juízo é a frase composta por sujeito e predicado: “Todos os corpos são
divisíveis”, em que corpo e divisível são representações. Essa ligação (juízo) constitui a experiência mas
não é fundado nela. O que importa não são, portanto, os conteúdos dos conceitos mas sim a forma da
ligação. Kant busca a lisa completa de todas as formas do juízo – a tábua de juízos. Essa tábua é retirada
da lógica formal, configurando quatro aspectos (classes) de juízos. Cada uma dessas classes contempla 3
três formas de juízo, totalizando 12 formas.
O primeiro aspecto é o da quantidade, ou seja, a magnitude do conhecimento. São os juízos
universais, particulares e os singulares. Em seguida, a qualidade dos juízos – afirmativos, negativos e,
novidade kantiana, os infinitos (que são restritivos). Nos parâmetros de uma lógica transcendental (mas
não nos da lógica formal), deve-se distinguir a forma de um juízo afirmativo da de um infinito. Kant
apresenta o seguinte exemplo: “A alma é imortal”. Tal juízo é infinito porque a alma pertence ao conjunto
infinito de todos os seres que não pertencem ao conjunto (também infinito) de seres que são mortais, mas
sem que com isso o conceito do sujeito (a alma) cresça minimamente e seja determinado afirmativamente.
O terceiro critério é a relação. Há juízos categóricos, hipotéticos (“Se ..., então...”), disjuntivos
(“ou... ou...”). Finalmente, o quarto e último critério, a modalidade, não contribui para o conteúdo do
juízo. Segundo esse aspecto, o juízo pode afirmar a certeza do fato (juízo “assertórico”), a possibilidade
(juízo “problemático”) e a necessidade (juízo “apodítico”).
Finalmente, de cada forma de juízo Kant extrai a correspondente categoria. Como há 12 formas de
juízo, há também 12 categorias correspondentes:
1. Quantidade
2. Qualidade
4. Modalidade
A dedução transcendental é a explicação do modo como esses conceitos podem referir-se a priori
(independentemente de qualquer experiência) aos objetos [B117]. A dificuldade que encontramos é saber
como poderão ter validade objetiva as condições subjetivas de pensamento (devemos notar que tal
dificuldade não surge para as formas puras da sensibilidade, visto que “espaço e tempo são intuições
puras que contêm a priori a condição de possibilidade dos objetos enquanto fenômenos, e a sua síntese
possui validade objetiva” [B122], isto é, sem espaço e tempo, não há representações de objetos).
Kant desenvolve a dedução transcendental em dois passos, sendo que o primeiro deles têm duas
etapas. No primeiro passo, Kant tenta mostrar que a síntese do múltiplo das representações – tanto as
intuitivas quanto as conceituais – em uma unidade está na autoconsciência transcendental, que necessita
das categorias do entendimento para essa tarefa. O segundo passo mostra que o conhecimento por
categorias não pode ir além da experiência possível.
O primeiro passo demonstra que apenas com a concorrência das categorias que o conhecimento é
possível.
Para isso, Kant mostra que conhecer é justamente efetuar a síntese das representações (intuições
ou conceitos) em uma unidade – no entendimento. Tal conexão não nasce do objeto mas sim do sujeito.
Essa síntese origina-se não da sensibilidade, que é apenas receptiva, mas do entendimento, que age
espontaneamente, logo, ativamente. Em outras palavras, a fonte da síntese subjaz previamente a toda
conexão determinada e não depende de nenhuma outra conexão superior. No entanto, essa conexão não
opera diretamente sobre o múltiplo das representações pois isso ocorre pelos conceitos empíricos e puros.
A conexão é sim a condição de possibilidade de toda a síntese empírica e categorial.
Tudo ocorre do seguinte modo: o material da intuição obtém primeiro a unidade de um conceito,
por exemplo, corpo e peso. Em seguida, os conceitos são conectados com o auxílio das categorias para a
unidade do juízo – O corpo é pesado. Finalmente, o juízo é sintetizado pela unidade transcendental da
apercepção (da autoconsciência). Para que tal síntese ocorra, é necessária a ajuda das categorias. Assim,
as categorias são a condição de possibilidade de toda objetividade, ou seja, de toda realidade objetiva. Ao
mesmo tempo, como vimos pela dedução metafísica das categorias, é o pensamento puro (subjetivo
transcendental) que possibilita a unidade. Conclusão: A autoconsciência transcendental origina tanto a
subjetividade como a objetividade do conhecimento – ambos se identificam.
Essa unidade de apercepção é chamada por Kant de Eu penso, que deve acompanhar todas as
representações do sujeito. O Eu penso é também chamado de unidade objetiva por ser condição de
possibilidade dos objetos. Obviamente, o Eu penso não tem de modo algum o sentido substancialista da
res cogitans cartesiana. Assim, o Eu penso não pode ser conhecido mas apenas pensado. Devemos nos
lembrar que o Eu penso não pode ser confundido com o eu empírico-psicológico, que está imerso no
mundo fenomênico, enquanto a apercepção transcendental é prévia a qualquer experiência e, portanto,
não se modifica com as representações e é idêntica em toda consciência (e autoconsciência).
Nesse momento, Kant busca acrescentar mais um passo e mostrar que as categorias não podem
ultrapassar o domínio da experiência possível – além dos objetos da experiência possível não há nenhum
uso das categorias. Uma possível objeção seria a matemática, que é uma ciência apriorística, mas não
conhecimento de experiência. No entanto, afirma Kant, embora a matemática cumpra com o primeiro
passo demonstrativo da dedução (afinal, existe a conexão necessária entre os múltiplos conceitos
geométricos mediante categorias, ela não cumpre com a segunda, pois não lida com a matéria, ou seja,
com experiência, mas sim apenas com as formas – a matemática em si representa apenas um saber formal.
Como para Kant conhecimento implica conhecimento da realidade objetiva, a matemática pura é apenas
um saber formal, ela por si só nada diz sobre a realidade. A matemática fornece a forma do conhecimento
empírico, não temos como saber se ela constitui a natureza.
Os Esquemas
Na Analítica dos Princípios, Kant investiga uma terceira faculdade de conhecimento, o Juízo, que
expõe as representações conhecidas como esquemas. Esses são produzidos pela imaginação e têm função
mediadora entre a sensibilidade e o entendimento. Na primeira parte da Analítica dos Princípios, Kant
expõe os esquemas dos conceitos puros do entendimento; na segunda, os juízos sintéticos que se seguem
dos conceitos puros do entendimento sob a condição dos esquemas: são os princípios do entendimento
puro.
Mas por que haveria a necessidade de postular uma representação mediadora entre o material da
sensibilidade e os conceitos e as categorias do entendimento? Simplesmente porque um conhecimento
que pretende compreender a realidade não pode recorrer a um conceito qualquer – ele deve empregar os
conceitos corretos, ou seja, os conceitos que combinam com o material fornecido pela sensibilidade. É a
faculdade do juízo, ao se servir dos esquemas, que permite tal adequação. Com o juízo, podemos dizer
que um determinado material pertence a este conceito e a nenhum outro – isto é um gato e não um cão, é
uma mesa e não uma cadeira etc (neste caso, temos conceitos empíricos). É a faculdade do juízo que
possibilita a um médico aplicar a casos concretos as regras que ele aprendeu em seus estudos, resultando
em diagnóstico e prescrição de tratamento ao paciente.
O esquema (“forma” ou “figura” em grego) é uma representação mas não é uma imagem, pois são
universais (as imagens são sempre singulares). Kant vê três tipos de esquemas: 1) esquemas para
conceitos empíricos (conceito de idoso, coelho, rosa, pedra), 2) esquemas para os conceitos sensíveis
puros da álgebra e geometria (conceitos de triângulo, reta, esfera, equação), 3) esquemas dos conceitos
puros do entendimento – que permitem a aplicação correta das categorias aos fenômenos. É por isso que
sem o Esquematismo Transcendental a Analítica estaria irremediavelmente comprometida em sua
integridade e completude.
Finalmente, assim como os esquemas de conceitos empíricos são representações que pertencem
tanto ao âmbito do conceitual (racional) como ao âmbito do intuitivo, os esquemas transcendentais são
conceitos intuitivos puros (ou intuições conceituais puras). Mas o decisivo é que Kant os entende como
determinações transcendentais do tempo: a forma da intuição do múltiplo do sentido interno está situada
no tempo (o espaço está excluído). A fundamentação dessa concepção é tríplice: 1) a categoria é uma
unidade sintética pura do múltiplo; 2) a unidade é efetuada pelo sentido interno – não pelo externo; 3) a
forma da intuição do múltiplo do sentido interno está situada no tempo.
Como vimos, Kant havia dividido as categorias seguindo quatro critérios. Logo, a concepção pura
a priori do tempo terá também quatro possibilidades: 1) a série do tempo em relação com a quantidade; 2)
o conteúdo do tempo em relação a qualidade; 3) a ordem do tempo para a relação; 4) o conjunto do tempo
em relação com a modalidade. Os conceitos de número, por exemplo (1, 2, 3, 4...), surgem relacionando a
categoria da quantidade à forma da intuição do tempo. Nesse caso, temos a pura sucessão (e não o tempo
empírico mensurável com o relógio) – primeiro um, então mais um, somando dois, então ainda mais um,
que soma três etc. Já o esquema da substância é a permanência do real no tempo; o esquema da
causalidade é a sucessão de fenômenos submetida a uma regra.
1. Princípios Matemáticos
a) Axiomas da Intuição
Kant afirma que a matemática é a ciência que constrói magnitudes, tanto extensivas quanto
intensivas. Conceber algo como magnitude é o mesmo que entendê-lo, a priori, como múltiplo de uma
unidade. Há dois modos de conceber a magnitude – como extensiva para a intuição e como intensiva para
a percepção. No primeiro momento do saber, a intuição, os fenômenos aparecem dispersos no espaço e no
tempo, pois possuem magnitude extensiva. Assim, a ciência das formas da intuição é a matemática, e seus
princípios são os axiomas, como na geometria euclidiana. Logo, o princípio para toda intuição é um
princípio para todos os princípios (axiomas) da matemática: “Todas as intuições são quantidades
extensivas”. Os princípios dos axiomas da intuição presidem diretamente a matemática e, indiretamente,
as ciências naturais. Segundo Kant, toda ciência natural deve poder ser colocada na forma matemática.
Assim, todos os objetos das ciências naturais são extensos no espaço e no tempo e, por isso,
quantificáveis (podem ser apresentados matematicamente). Portanto, tudo o que escapa, por princípio,
dessa quantificação matemática, como o mero coletar, descrever ou até mesmo o mero explicar fatos, é
parte apenas de um conhecimento pré-científico e não pode tornar-se objeto de uma ciência natural
rigorosa.
b) Antecipações da Percepção
2. Princípios Dinâmicos
A) Analogias da Experiência
Analogia significa “relação” em grego. São as analogias que permitem a ligação necessária entre
distintas percepções (cuja possibilidade a priori é dada pelos princípios matemáticos já analisados). O
fundamento para as analogias da experiência é a ligação temporal entre eventos, que são três:
permanência, sucessão e simultaneidade. Logo, existem, respectivamente, três analogias: a) princípio da
permanência da substância; b) princípio da sucessão temporal conforme à lei da causalidade; c) princípio
da simultaneidade conforme à lei da reciprocidade (ou comunidade). Essas três analogias têm em comum
o princípio de que a experiência só é possível através da representação da conexão necessária das
percepções. Diferentemente dos princípios matemáticos, que são constitutivos da experiência, as
analogias da experiência são apenas regulativos, ou seja, apenas indicam uma regra segundo a qual se
procura algo nos fenômenos.
a) Princípio da permanência da substância
Esse princípio afirma, segundo Kant, que subjaz a todos os fenômenos algo de permanente. Para
provar essa afirmação, Kant parte de um pressuposto e utiliza cinco argumentos. O pressuposto é que
existem fenômenos que variam, e a primeira afirmação é que não é possível representar a mudança sem
um marco fixo de referência. Segunda e terceira afirmações: o tempo uno, no qual se representa toda
mudança, e que é o permanente por excelência, não pode ser a substância procurada porque não é
percebido por si mesmo. Finalmente, pelos dois últimos argumentos, é nas percepções que o substrato de
todas as percepções deve ser procurado. Esse substrato é a substância, pois ela permanece em toda
mudança dos fenômenos. Resumindo: o princípio diz que é impossível experimentar a mudança em si
mesma, mas apenas em relação a uma substância. Exemplo: as roupas podem estar molhadas ou secas;
nesse caso, os acidentes “estar molhadas” e “estar secas” só podem ser percebidos em relação às roupas
(substâncias).
Conclusão: O princípio da permanência da substância é só regulativo porque ele obriga a
investigação empírica a mostrar na natureza o que tem caráter de acidente e o que tem caráter de
substância (Kant inspira-se aqui em Lavoisier, que encontrou na matéria a substância última. No entanto,
Kant acredita que apenas as ciências naturais poderiam determinar como deve ser representada essa
substância – o pensador não pergunta nas duas edições da Crítica da Razão Pura em que consiste a
substância. O passo a mais só será dado na obra Os Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, na
qual Kant apresenta a matéria como conceito e a coloca como fundamento da primeira lei da mecânica,
segundo a qual em todas as mudanças da natureza corpórea a quantidade da matéria permanece em seu
todo a mesma).
b) Princípio de Causalidade
Esse segundo princípio decorre do primeiro. Ele afirma que as mudanças de estado da substância
em sua sucessão temporal ocorrem conforme à lei da conexão de causa e efeito. Segundo Kant, o
princípio de causalidade nos permite representar a sequência dos fenômenos como uma sucessão temporal
na qual a ordem não pode ser invertida, já que 1) o estado posterior resulta do estado anterior segundo
uma regra de causa-efeito (exemplo: se troveja, há relâmpago). 2) Além disso, o princípio também
apresenta a mudança do que é percebido – e não de quem percebe. Isso garante a objetividade do evento.
Importante: I) Com esse princípio, Kant não afirma a previsibilidade (“probabilidade”) de eventos, mas
sua explicabilidade. II) Como a objetividade da experiência é constituída por meio de relações de causa-
efeito, no âmbito da experiência natural possível não pode haver milagres, isto é, intervenções
sobrenaturais em processos da natureza. III) Como o princípio da causalidade também é regulativo, quem
quer conhecer a natureza tem que contemplar todos os eventos como efeitos – e procurar-lhes as causas.
No entanto, essas causas só podem ser encontradas empiricamente, e essa é a tarefa das ciências naturais.
As antinomias da Razão surgem quando a razão busca formular discursos objetivos sobre a
totalidade de todos os fenômenos – tarefa da cosmologia especulativa (transcendental). O mundo,
entendido justamente como a totalidade de todos os fenômenos, é o Incondicionado.
As ideias cosmológicas do Incondicionado podem ser concebidas de dois modos, que são as
antinomias (conflito entre duas leis, B434):
I) como o último elemento da sequência de fenômenos (racionalismo dogmático, que Kant chama
de tese);
II) como o todo da sequência infinita, de modo que cada elemento da sequência seja condicionado
e somente a própria sequência infinita é incondicionada (empirismo, antítese).
Dessa dupla interpretação do Incondicionado, surgem os quatro grupos nos quais se encontram
duas afirmações que se contrapõem – as antinomias. São quatro grupos porque Kant faz analogia com os
quatro grupos de categorias – quantidade, qualidade, relação e modalidade.
TESE ANTÍTESE
1. Quantidade
2. Qualidade
Toda substância composta no mundo consta de Nenhuma coisa composta no mundo consta
partes simples, e não existe nada a não ser o de partes simples, e não existe em parte
simples ou o que é composto do simples. alguma algo simples no mundo.
3. Relação
Além da causalidade segundo leis da natureza, é Não há liberdade alguma, mas tudo no
necessário admitir ainda uma causalidade por mundo acontece meramente segundo
liberdade para a explicação dos fenômenos. Leis da natureza.
4. Modalidade
Ao mundo pertence algo que, ou como sua parte ou Não existe nenhum ente absolutamente
sua causa, é um ente absolutamente necessário. necessário, nem no mundo nem fora
do mundo, como sua causa.
Cada tese e sua respectiva antítese constituem juntas uma alternativa concludente: ou o mundo
tem um começo no tempo ou existe desde sempre. No entanto, é errado concluir que uma das duas
afirmações é correta, pois com a ajuda da crítica transcendental da razão descobrimos uma terceira
possibilidade, dada pelo idealismo transcendental (ou formal) – o Incondicionado pode ser pensado mas
não conhecido. Isso é o mesmo que afirmar que as ideias da razão pura são transcendentais mas não
transcendentes, pois, na forma de princípios (meramente) regulativos, referem-se à experiência, e não são
objetos existentes em si mesmos (ou seja, não constituem objeto algum). Com essa conclusão, Kant refuta
tanto o empirismo quanto o racionalismo, além de escapar do ceticismo.
Mas a crítica da cosmologia racional não tem aspectos apenas negativos. Afinal, a consequência
prática é que as ciências naturais aparecem como um processo de investigação nunca terminado, já que a
totalidade dos fenômenos não se deixa medir em toda sua extensão: não pode haver um objeto empírico
que seja absolutamente último na investigação científica.
I) Rejeição de toda teologia natural, que a partir de Kant se torna ilegítima em suas pretensões
seja de conhecer Deus objetivamente, seja de demonstrar sua existência;
II) Deus não é uma ideia transcendente mas sim um Ideal Transcendental da Razão (teórica), ou
seja, a Ideia de Deus é a conclusão da completude do conhecimento;
III) A questão sobre Deus é transferida da teologia racional, que perde seu espaço de legitimidade,
para a razão pura prática – a moral;
IV) Como consequência do item anterior, Kant reinterpreta, em sua Filosofia da Religião, os
enunciados da revelação judaico-cristã em termos de sua crença moral em Deus.
Em suma, podemos afirmar o que se configura para Kant desde o início dos anos 1760: “Deus é o
ideal racionalmente necessário do conhecimento objetivo, mas não uma ideia objetivamente conhecida”
(Hoffe, 161). Kant busca minar os fundamentos da teologia natural através de uma vigorosa crítica das
pretensas provas racionais da existência de Deus. No entanto, Kant não conclui que Deus não exista, pois
tal prova é tão inviável como a que afirma seu contrário. Assim, tanto o ateísmo como a teologia natural
carecem de fundamento. Na verdade, a questão da existência (ou não) de Deus já nasce equivocada, pois
“existência” é conceito puro do entendimento, que só pode ser mobilizado por um objeto dado nas
intuições puras a priori, o que, obviamente, não pode jamais ser o caso de Deus.
Kant dá um “passo atrás” (pela via reductionis). No contexto da razão teórica, Deus é uma
representação a priori aquém da experiência, ou seja, Deus é um ideal transcendental “necessário para
possibilitar as ciências em termos de uma experiência global e sistemática” (Hoffe, 165). Mesmo assim,
em Kant Deus continua sendo a totalidade de todos os predicados possíveis, como essência (ens
perfectissimum) e como origem de todas as possibilidades (ens realissimum). Tal ideia de totalidade é
absolutamente necessária para a Razão, visto que esta sempre procura a completude absoluta do
conhecimento (o personagem Fausto de Goethe é justamente o erudito que busca na realidade, em sua
vida, atingir essa completude; tal empreendimento está necessariamente fadado ao fracasso, pois se trata
de um horizonte de conhecimento que é, por definição, inatingível na prática). A ilusão dialética surge
aqui quando a Razão faz do ideal transcendental de todos os predicados possíveis um princípio
constitutivo do conhecimento dos objetos, ou seja, faz desse ideal um objeto. Em seguida, a Razão o
afirma como objeto que existe fora do sujeito pensante (hipóstase que tem similaridade com a “alienação”
de Feuerbach), para então o transformar em Pessoa (individual) e, por último, determinar tal Pessoa de
acordo com as categorias de realidade, substância, causalidade e de necessidade na existência.
Os argumentos que Kant encontra no fundamento da Teologia Natural são basicamente de dois
tipos, sendo que o primeiro tipo se divide em duas possibilidades:
Ontológica é a demonstração de Deus que acredita provar sua existência partindo apenas de Seu
conceito, sem recorrer à percepção. Tal demonstração se encontra nos capítulos 2 – 4 do Proslogion, de
Santo Anselmo de Canterbury. Basicamente, Anselmo afirma que é contraditório conceber Deus como
absolutamente supremo e ao mesmo tempo negar sua existência, pois o que existe é superior àquilo que
não existe.
Kant ataca o argumento não na ideia (transcendental) de Deus, que ele admite, mas na suposição que
existência é uma espécie de perfeição, portanto, uma qualidade positiva e desejável. Haveria uma
ambiguidade no juízo “Deus é”: a palavra “é” só pode ser entendida como predicado gramatical,
meramente lógico, mas não real – que é o que a teologia natural pretende. Esse juízo, se significa que
Deus existe, é sintético, e não analítico, logo, não pode ser dito verdadeiro apenas nos limites do conceito.
Na Lógica Transcendental kantiana, “realidade” é categoria da qualidade e significa coisidade, quididade
da coisa. Quando o argumento ontológico afirma que não falta ao conceito (ideia transcendental) de Deus
nenhuma qualidade positiva, desejável, não há como Kant discordar. O problema é que existência não
designa nenhuma qualidade possível, a existência não pode ser jamais uma qualidade a ser colocada junto
às qualidades de onipotência, onisciência etc. Não tenho condições de responder se existe, na natureza,
um objeto que tenha essas qualidades mencionadas. Em conclusão: só a experiência nos permite afirmar a
existência de objetos: a existência de Deus não pode ser nem provada nem refutada através apenas de
razões especulativas. Mais uma vez, temos uma ilusão dialética.
O argumento cosmológico parte da constatação de que existe algo no tempo e no espaço, que é
contingente. Se é contingente, tem uma causa. Se essa causa for contingente, então começamos uma série
de causas contingentes, subordinadas umas às outras, até que a uma causa absolutamente necessária, sem
a qual seria impossível fundamentar suficientemente o contingente em sua existência efetiva. Temos
então o ser necessário. Em um segundo passo da demonstração, esse ser necessário é chamado de ser
realíssimo – Deus.
Para Kant, a categoria causalidade só pode ser aplicada a objetos sensíveis. Além disso, e chegamos a um
contra-argumento decisivo, a demonstração cosmológica da existência de Deus ocorre precisamente
quando se infere do conceito do ser absolutamente necessário o conceito do ser realíssimo. Finalmente, os
dois conceitos têm a mesma extensão, ou seja, significam o mesmo, o que nos faz voltar ao argumento
ontológico.
Aqui, partimos da ordem e da finalidade da natureza para uma causa sublime que possui todo o poder e
sabedoria para fazer o mundo tal como ele é. Esse ser com plenitude de poder e sabedoria é perfeito, logo,
Deus.
O primeiro problema da demonstração é que ela começa com uma inferência analógica indevida ao
comparar as relações existentes entre os seres da natureza e os artefatos criados pelo homem tais como
pontes, relógios e edifícios. Não podemos inferir que, assim como um relógio só pode ter sido o produto
de um artífice que tem sabedoria, a natureza também o seria. Além disso, os artefatos são fabricados a
partir de matéria pré-existente, o que faria de Deus um Artífice-Demiurgo nos moldes do encontrado no
diálogo Timeu de Platão.
Outro problema: Não podemos afirmar que a sabedoria e poder subjacentes ao mundo sejam
infinitos, pois a experiência do mundo não tem condições de sair do âmbito do finito e condicionado.
Nesse ponto, a demonstração remonta ao argumento cosmológico, que, como vimos, articula o argumento
ontológico – que não tem força demonstrativa.
Conclusão: não há legitimidade na proposta da teologia natural, pois nem por argumentos
empíricos, nem por argumentos conceituais, nem por uma mistura de ambos é possível provar a existência
de Deus – e nem refutar essa existência. No entanto, a ideia de Deus (apenas como ideal transcendental)
não só não é contraditória como também é um conceito necessário para a Razão – Pura Prática, apenas,
nunca a Teórica. A teologia, nesse caso, é filosófica e tem como fundamento as leis morais.
Em poucas palavras, podemos afirmar que a metafísica fracassa quando procura um conhecimento que
transcende toda a experiência. Quando isso ocorre, ideias transcendentais são tomadas por ideias
transcendentes; princípios regulativos da Razão por princípios constitutivos de objetos. As ideias da razão
alma, mundo, Deus, liberdade não são objetos mas sim princípios de investigação – necessários, sem
dúvida - do conhecimento científico. Afinal, são as ideias que os conceitos e enunciados obtidos na
experiência são conduzidos para a completude. Tal orientação segue duas direções opostas e, ao mesmo
tempo, complementares: “a máxima unidade de um todo composto segundo leis necessárias e a máxima
expansão na multiplicidade dos objetos” (HOFFE, 175). Para Kant, cada uma dessas tendências segue um
princípio fundamental: a busca da unidade se fundamenta na lei transcendental da homogeneidade do
múltiplo; a busca da máxima extensão possível, na lei da especificação (heterogeneidade).
As ciências, segundo Kant, não buscam apenas a verdade mas também a unidade sistemática e a maior
multiplicidade possível do conhecimento. Toda a soma da experiência é limitada, mas nas ideias pensa-se
numa completude absoluta, ilimitada. Logo, as ideias surgem a partir de uma faculdade que transcende o
entendimento – a Razão. As ideias da Razão dão impulsos ao entendimento para o progresso das ciências:
“Assim, todo o conhecimento humano começa por intuições, daí passa a conceitos e termina com ideias”
(KANT, 2010, B730, 570), embora as ciências jamais possam alcançar um conhecimento absoluto. As
ilusões ou aparências dialéticas surgem quando os princípios do progresso científico são entendidos como
fundamentos de uma ciência objetiva – a metafísica especulativa: “As ideias da razão são como o
horizonte que retrocede à medida que se avança, de modo que nunca se alcança o seu limite, nunca se
pára em definitivo” (HOFFE, 179).
Na verdade, o que Kant afirma é que a tentativa da ciência de reunir diversos conhecimentos
fragmentários em uma unidade e ordem sistemáticas deve conceber a natureza de tal modo que que ela
permita alcançar este objetivo, ou seja, deve concebê-la como sendo dotada de ordem sistemática.
CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA
1) Tanto no âmbito teórico (conhecimento - ciência) quanto no âmbito prático (ação - moralidade) é
necessário haver validade objetiva e racional.
2) Para Kant é necessária uma nova fundamentação da moral. Kant rejeita todas as fundamentações
anteriores: moral fundada na ordem da natureza criada por Deus (tomismo aristotélico), ordem da
comunidade, aspiração à felicidade (aristotelismo), vontade de Deus ou sentimento moral (escola
inglesa). Kant se opõe ao dogmatismo, ao ceticismo e ao relativismo antropológico no campo da
moral. Ele certamente discordaria da moral utilitarista. Segundo Kant, a objetividade da moral se
encontra na subjetividade. Mais especificamente, na vontade autolegisladora, que dá a si mesma
a lei moral. Só assim o sujeito pode ser autônomo, isto é, livre. Na concepção kantiana, na
natureza, na causalidade, existe a necessidade, portanto, não há liberdade. A liberdade só se
introduz no mundo a partir do homem.
3) A doutrina ética kantiana tem duas vertentes: 1) Doutrina do Direito (que vê a fundamentação
teórica do direito positivo). Tal doutrina lida com a moralidade das instituições humanas sociais:
Direito e Estado e 2) Doutrina da Virtude trata da moralidade do sujeito agente nas condutas de
caráter: as virtudes.
4) A Razão é única, podendo ser teórica ou prática, e sempre lida com aquilo que ultrapassa os dados
empíricos dos sentidos. Assim, a razão prática busca determinar a moralidade da ação sem levar
em conta fundamentos sensíveis, tais como as paixões, o interesse, os impulsos e as sensações de
agradável e desagradável. Para Kant, a faculdade de determinar uma ação de acordo com
representações de leis dadas a nós por nós mesmos (relação meios-fins, por exemplo) que são
vistas como princípios. Tal faculdade de agir seguindo a representação de leis chama-se a vontade
ou o querer. Para Kant, a vontade é o órgão executor dos ditames da razão prática: “Todos os
conceitos morais possuem a sua sede e origem totalmente a priori na razão [Vernunft]”, FMC, IV
411. Os animais são incapazes de agir de acordo com leis representadas. Na vontade não pode
haver coerção externa – e nem mesmo interna, como ocorre com os animais. Assim, ocorre uma
inversão frente aos ditames da razão teórica, pois nesta as pretensões de a razão ir além dos
conteúdos possíveis da experiência conduz a paralogismos e antinomias da Razão (suas Ideias),
enquanto na razão prática Kant rejeita a fundamentação da ação em dados sensíveis (empíricos),
contrapondo-se, portanto, às ideias empiristas. Kant se propõe quatro problemas fundamentais
para a Moralidade:
a) Determinação dom conceito mesmo de Moralidade;
b) Aplicação de tal conceito aos entes racionais finitos (homens), o que o leva ao imperativo
categórico;
c) Relação entre moral e autonomia da vontade (liberdade);
d) Tenta mostrar a efetividade da moralidade a partir do fato de que a razão lhe impõe
imperativos. Finalmente, propõe a teoria dos postulados, que podem levar á filosofia da
religião.
VONTADE BOA
“Ilimitadamente bom é apenas a Vontade boa”, afirma Kant logo no início da GMS. Ou seja,
aquilo que é ilimitadamente bom não é de modo algum relativo, mas absolutamente bom. O
absolutamente bom vale tanto para o indivíduo como para o Direito e o Estado. Não se trata, portanto,
apenas de aceitar os costumes e hábitos de uma sociedade, nem mesmo de ver-se obrigado a cumprir
tarefas impostas pelas tradições sociais. Nesse caso, ser bom significa apenas agir a partir de
circunstâncias favoráveis. No entanto, o simplesmente bom deve ser isento de qualquer condicionamento,
sendo incondicionado. O fundamento do absolutamente bom é a própria vontade boa – o que se contrapõe
à ética aristotélica que vê o bom em um objeto supremo, no caso, a eudaimonia. Vinculado à moralidade,
surge o conceito de dever, que é sempre um mandamento, um imperativo. Tal forma só tem sentido para
os indivíduos cuja vontade NÃO É de antemão necessariamente boa. Assim, só se pode falar de dever
quando há impulsos concorrentes das inclinações naturais. Tais impulsos só podem existir no homem, que
é um ser racional e finito, ou seja, ser que tem impulsos sensíveis – ao contrário de Deus, cuja natureza é
constantemente boa. Há três formas de cumprir o dever: a) Por interesse (não prejudicar um freguês
inexperiente); b) por inclinação benevolente; c) por puro dever.
A simples conformidade ao dever é chamada por Kant de legalidade. A vontade boa só é exercida
na terceira forma de dever. Logo, temos aqui uma ética de intenções. Temos aqui um dever-ser, cuja
forma é o imperativo categórico (Lei Universal).