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O Neoplatonismo renascentista
e o nascimento da ópera
Chanceler
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Reitor
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Conselho Editorial
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Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
A sombra de Orfeu
O Neoplatonismo renascentista
e o nascimento da ópera
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
ISBN: 978-85-7430-990-3
CDD 186.4
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Este livro é dedicado ao meu professor de grego,
Reinholdo Ullmann, que ensinou a mim e a todos nós o
entusiasmo pela pesquisa e pela filosofia antiga.
Sumário
Os precursores
1
Academia dos Apaixonados.
2
Expressão cunhada por Benedetto Ferrara (1604-1681).
antigo à nova estética musical do baixo Renascimento e produzindo uma fusão que vai
potencializar a carga dramática de texto e de música, respondendo afirmativamente à
pergunta tão amplamente discutida pela Camerata Fiorentina desde 1573: sim, a música
tinha ainda o poder de mover os afetos humanos.
O Orfeo foi precedido por experimentos notáveis, mas todos pendendo
excessivamente para um ou outro lado. Nenhum atingiu o equilíbrio que Monteverdi,
graças ao libretto de Striggio, conseguiu conquistar para o novo gênero de drama musical.
Entre os precursores, três gêneros mais se aproximaram do resultado desejado: a favola
pastorale, a commedia madrigalesca e o intermezzo, ricos em contribuições, mas
incompletos para assegurar uma solução definitiva.
Vejamos, primeiro, a Favola di Orfeo, de Angelo Poliziano (1483): como todas
as outras fábulas pastorais, a obra de Poliziano tinha muito pouca música, apenas três
canções e um coro final. Não havia como deduzir uma unidade musical a partir de material
tão escasso: as poucas intervenções eram peças musicais breves que não possuíam um
estilo homogêneo. Na França, mesmo obras de espírito análogo muito mais antigas, como
o Jeu de Robin et Marion (1283), de Adam de la Halle, apresentavam bem mais números
cantados e possuíam mais unidade musical, obtida esta unidade a partir da regularidade
de suas fórmulas rítmicas e de padrões de repetições3. Na poesia, Poliziano foi mais
exitoso: o seu Rusticus (1483) em hexâmetros latinos, sem calcar-se no modelo de Virgilio,
faz uma descrição do ano do camponês italiano, ao longo das estações, que chega às
raias do realismo no tratamento do tema.
Porém, enquanto espetáculo teatral, a favola pastorale italiana estava ainda ligada
em demasia à tradição da poesia latina clássica. Já desde Petrarca a emulação do estilo
bucólico de Virgílio, porém carente de autenticidade, tentava os poetas italianos menores,
e não importava se essas reconstruções se escreviam em italiano ou latim4. Os Idílios do
grego Teócrito, criador do gênero bucólico, revividos em obras como as Metamorfoses
de Ovídio e as Bucólicas de Virgílio, não se prestavam para um enredo com conflito
dramático. Eram adequados, sim, para a descrição da vida no campo e de sentimentos
pastoris. Partes cantadas eram requisitadas quando a metrificação dos versos e as rimas
assim o exigiam. Mais que isso, não5.
Outro gênero pioneiro, a commedia madrigalesca, apresentava um problema
diferente: apesar de ser quase toda cantada, o que garantia também a unidade dramática,
o estilo de composição dos madrigais era francamente polifônico, o que de per si impedia
a compreensão, por parte do público, do texto e, consequentemente, de qualquer enredo
3
Ver exemplos musicais em DELLA CORTE-PANAIN, I, 167-170.
4
O romance pastoral de Boccaccio e a Arcadia de Sanazzaro surgiram paralelamente a essa atividade,
até chegar-se à comédia pastoral de Tasso e Guarino. Aqui, aponta Burckhardt, a vida dos pastores não
passa de um invólucro ideal a revestir um universo de sentimentos oriundos de meios culturais os mais
diversos (ver BURCKHARDT, 320).
5
Outros exemplos de favola pastorale são: Il Paradiso, de Bernardo Belloccini (1483), Il Cefalo
(1486), de Nicolò da Corregio, Il Timone (1492), de Matteo Maria Boiardo (MACHADO COELHO,
34) e Rappresentazione di Febo e Pitone (1486), de autor desconhecido (ver DELLA CORTE e PANAIN,
339).
6
Algumas comédias madrigalescas são: Il Cicalamento delle Donne al Bucato (1567) [Os mexericos
das mulheres lavando roupa], com texto de Alessandro Striggio e música de autor desconhecido, Selva
di Varia Ricreatione (1590), Le Veglie di Sienna (1604), La Barca di Venezia per Padova (1605) e
L’Amfiparnasso ossia Li Disperati Contenti (1594), de Orazio Vecchi (MACHADO COELHO, 34), e
a Comedia e farse carnevalesche nei dialetti astigiano, milanese e francese (1490?), de Giovan Giorgio
Alione (DELLA CORTE e PANAIN, 339), estas duas últimas com elementos claramente emprestados
da Commedia dell’Arte.
7
A pomposidade das celebrações andava pari passu com o luxo das montagens destinadas a entreter os
convidados. Burckhardt escreve que, nas bodas do príncipe Alfonso de Ferrara com Lucrécia Borgia, o
duque Ercole mostrou pessoalmente a seus ilustres convidados os 110 figurinos que seriam usados na
encenação de cinco comédias de Plauto. Isso para que se visse que nenhum deles seria usado duas
vezes. Apud BURKHARDT, 292.
8
BURKHARDT, 368-9.
9
Trata-se aqui do músico Alessandro Striggio (1537-1595), pai do librettista do Orfeo.
10
La Cofanaria se distinguia por apresentar, para um intermezzo, uma trama dramática bastante
trabalhada. O tema era o mito de Eros e Psiquê, transposto para a Itália de então, com casais de jovens
apaixonados, encontros e desencontros amorosos, um criado astucioso e tudo isso em meio ao cerco de
Florença de 1530.
11
Striggio teve textos musicados para intermezzi de Francesco Corteccia, Alfonso della Viola, Claudio
Merulo e Andrea Gabrieli (ver MACHADO COELHO, 32).
Renascimento ou Barroco?
12
Cada intermezzo da Pellegrina foi musicado por um compositor diferente, entre eles Cristofano
Malvezzi, Luca Marenzio, Emilio de Cavalieri, Giulio Caccini e Jacopo Peri (Cf. MACHADO COELHO,
33), procedimento que tinha se tornado quase tradição nesse gênero. O resultado foi, como
frequentemente, que a comédia amorosa de dois casais trocados recebeu interlúdios musicais que nada
tinham a ver com a representação. Os intermezzi abordavam temas extremamente variados: a Harmonia
das esferas, o combate entre as Piérides e as Musas, a luta de Apolo com a serpente Píton etc. (ver
DELLA CORTE-PANAIN, I, 347-8) Do primeiro intermezzo conserva-se um desenho de Agostino
Carracci representando a Harmonia das Esferas. Todo o final da República de Platão, com o mito de Er
e a visão da transmigração das almas, juntamente com os planetas, as irmãs Cloto, Láquesis e Átropos
(deusas do destino) e muito mais desfilaram nesse espetáculo. Conserva-se o diário de um nobre que
assistiu à representação e afirmou que estava muito bonita, mas ninguém conseguiu entender o que
significava aquilo tudo (PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 87, 91).
13
No século XIX, a declaração de Ranke, de que “cada estilo responde imediatamente perante Deus”,
deu o golpe de misericórdia no sistema classicista de valoração, invalidando qualquer tentativa de
avaliar um estilo comparando-o com algum outro (ver PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 36).
14
“The period of the Renaissance brought about many important changes in the social and cultural
position of the various arts and thus prepared the ground for the later development of aesthetic theory.
But, contrary to a widespread opinion, the Renaissance did not formulate a system of the fine arts or
a comprehensive theory of aesthetics” (KRISTELLER, 509).
15
“Yet the claim of Renaissance writers on painting to have their art recognized as liberal, however
weakly supported by classical authority, was significant as an attempt to enhance the social and
cultural position of painting and of the other visual arts, and to obtain for them the same prestige that
music, rhetoric, and poetry had long enjoyed. And since it was still apparent that the liberal arts were
primarily sciences or teachable knowledge, we may well understand why Leonardo tried to define
painting as a science and to emphasize its close relationship with mathematics” (KRISTELLER,
512).
16
“It does not seem that Plotinus’ view that beauty resides in the objects of sight, hearing, and thought
exercised any particular influence at that time” (KRISTELLER, 516).
17
“Die Forderungen, die vom Material ans Subjekt ergehen, rühren vielmehr davon her, dab das
‘Material’ selber sedimentierter Geist, ein gesellschaftich, durchs Bewubtsein von Menschen hindurch
Präformiertes ist” (ADORNO: Philosophie der neuen Musik, 39).
18
“Manifestiert sich im Kunstwerk [...] nichts bloß Sinnliches, sondern der Geist als im Sinnlichen
erscheinend” (HEGEL, G.W.F. Ästhetik. Bd. II., 255).
19
Ver REALI-ANTISERI, III, 7.
20
GARIN apud REALE-ANTISERI, III, 7.
Striggio – o texto
Os versos de Striggio atestam a mesma busca por clareza que orientou Monteverdi
na parte musical. A variada metrificação que reuniu no Orfeo é superior a de seus
predecessores na forma e no material. Comparando com algumas passagens do texto de
Rinuccini para a Dafne (1597) de Gagliano, veremos como, ali, em vários pontos, o
discurso dos personagens se alonga desnecessariamente. Como Striggio tinha podido
estudar antes o libretto do La Pellegrina, aparentemente percebeu esse defeito no plano
geral do poema. Na Dafne, por exemplo, Rinuccini sacrifica o equilíbrio formal e até a
lógica dramatúrgica em prol das belas sonoridades e das rimas:
21
Ver PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 107.
Somados, esses poucos exemplos concentram em si uma parcela por demais extensa
do poema, prejudicando o dinamismo da ação: são 155 versos de um total de escassos
440. Em Striggio, os monólogos, mais enxutos, não cedem à tentação do exercício puro
da sonoridade: o Orfeo tem 678 versos, e não há personagem que tenha recebido alguma
fala que ocupe um espaço proporcionalmente tão grande quanto os apontados na Dafne
de Rinuccinni.
Toda a atenção de Striggio estava voltada para o propósito de comover a plateia –
isso era o que Caccini tinha exposto no Prólogo das suas Nuove Musiche (1602), ao
afirmar que “dagli affetti nascono gli effetti”: os efeitos nascem dos afetos. Isto é, o
efeito pretendido, que era o de emocionar – velha aspiração de ressuscitar o vigor mágico
da tragédia grega – seria obtido através da expressão, pelo poema e pela música em
conjunto, da comunhão de verbo e voz humana cantada. E, convencido de que esse efeito
só se efetivaria plenamente se a obra obedecesse a um plano equilibrado de distribuição
das ações nos diversos atos e de correspondências internas entre o tamanho dos versos,
Striggio impôs freios à proverbial verborragia florentina. E ele não apenas arquitetou
toda a sua obra obedecendo a um esquema de proporcionalidade: aproveitando-se do
tema mitológico, semeou ao longo da obra boa quantidade de figuras neoplatônicas. O
Apolo de Striggio não é meramente o deus Sol que aparece no final para consolar seu
filho dileto: ele é o próprio espírito que move o universo, é o intelecto divino que anima
a razão humana, o patrono da linguagem lógica e da consciência, e tudo isso ainda recebe
contornos cristianizados, já que Apolo é apresentado como um deus que tudo vê e tudo
sabe: “Sol, que tudo abarca e tudo vês”22. E esse deus está, efetivamente, em tudo o que
é claro e luminoso, em todas as coisas boas e belas: ele está no dia claro, nos olhos de
Eurídice, na tocha do Himeneu. Ele abençoa tudo o que toca, e até a noite transforma em
dia. Sob a égide de Apolo, até a ignorância cede ao conhecimento, até o sofrimento (dos
que creem apenas na matéria) dá lugar à felicidade (dos que conhecem as coisas eternas
e divinas): “...beatificados pelo sol, / pelo sol que transforma minhas noites em dia”23. O
Apolo de Striggio é quase um Platão ou um Plotino cantante, ao exortar à moderação e
ao controle das emoções. Ele frisa que felicidade verdadeira não perdura aqui no mundo
físico dos fenômenos (“Ainda não sabes / que nada embaixo é alegre e perene?”)24, mas
assegura que ela é eterna lá no céu, onde não existe dor. Como Deus Pai enviou Cristo
para convidar os fiéis a partilharem da beatitude celeste, assim Apolo oferece a Orfeu:
“Se queres gozar vida imortal, / vem comigo ao céu, eu te convido”25.
22
“Sol, ch’il tutto circondi e ‘l tutto miri” (ORFEO, ATTO I).
23
“...da quel sol fatte beate / per cui sol mie notti han giorno” (ORFEO, ATTO II).
24
“Ancor non sai come nulla qua giù diletta e dura?” (ORFEO, ATTO V).
25
“...se goder brami immortal vita / vientene meco al ciel ch’a sé t’invita” (ORFEO, ATTO V).
26
“... lunge omai disgombre / de gli affanni e del duol le nebbie e l’ombre” (ORFEO, ATTO I).
27
“...poiché nembo rio gravido il seno / d’atra tempesta inorridito ha il mondo...” (ORFEO, ATTO I).
28
“Nottola infausta,/ il sole fuggirò sempre...” (ORFEO, ATTO II).
29
“...regni tenebrosi e mesti / ove raggio di sol giammai non giunse” (ORFEO, ATTO III).
30
“...è dal ciel ciò che qua giù s’incontra” (ORFEO, ATTO II).
31
“...di tempo oltraggio / non teme, anzi maggiore / divien se più s’attempa il suo splendore” (ORFEO,
ATTO IV).
32
“Saliam, cantando al cielo, / dove há virtù verace / digno premio di sé...” (ORFEO, ATTO V).
Rinuccini Striggio
Pastores Proserpina
33
BURCKHARDT, 180.
34
“Olhem para o céu, ah, olhem: / agora, estes pequenos arbustos têm as frontes nuas, / as campinas
estão pálidas e tórridos os riachos; / olhem para o céu, ah, olhem: / entre lágrimas e lamentos, / estendam
as palmas [das mãos] ao céu, / desconsolados pastores, / ninfas inocentes” (RINUCCINI: Dafne, Scena
I).
35
“Vê: se alguma vez tu destes olhos meus / provaste doçura amorosa, / se a ti agrada a serenidade desta
fronte / que chamas de teu céu, e me juras / não invejar a sorte de Júpiter, / peço-te pelo amor a esta
chama / com a qual o Amor inflamou tua grande alma: / consola o pranto dolente de Orfeu, / e faz com
que sua mulher retorne, viva, / à felicidade serena dos saudosos dias” (ORFEO, ATTO IV).
36
O italiano versi sciolti corresponde, em português, a versos brancos, como explicado no texto. Verso
solto, em português, refere-se ao verso branco inserido entre versos rimados.
Monteverdi – a música
37
“Hoje, foi feita piedosa / a alma outrora tão desdenhosa / da bela Eurídice;/ hoje foi feito feliz / Orfeu
em seu regaço, pelo qual já tanto / havia suspirado e chorado nestes bosques” (ORFEO, ATTO I).
38
“Bisweilen sehen wir den besonderen Ausdruck einer Stelle in eine einzige Stimme gelegt. Im ruhigen
Qui tollis der Missa De beata Virgine beginnt die dritte Stimme auf einmal (mit Aufwärtssprung!) eine
steigende Viertelbewegung, deren Quint-Oktav-Zickzack in der ganzen Messe nicht seinesgleichen
hat. Miserere nobis als leidenschaftlicher Aufschrei” (DE LA MOTTE, 122).
39
Ver HAUSER, Arnold. Maneirismo – a crise da Renascença e o surgimento da arte moderna.
40
Uma comparação análoga, feita entre o trono de São Pedro, de Bernini (Basílica de S. Pedro, Roma),
e a tumba do cardeal Sforza, de Andrea Sansovino (Sta. Maria del Popolo, Roma), pode ser lida no
artigo ¿Que es el Barroco?, 37-41, de Erwin Panofski.
41
O tema da tensão interna na arte do Renascimento foi desenvolvido por Panofski, no seu ¿Que es el
Barroco?
42
Isso vale especialmente para as numerosas e apreciadas missas cantus firmus, como as Da Pacem,
De beata Virgine e Pange lingua (Josquin) e as Sanctorum meritis, Viri Galilaei e O Rex gloriae
(Palestrina), para citar alguns poucos exemplos.
43
Outros mestres flamengos da mesma escola e que lograram um equilíbrio como o de Josquin foram
Jacob Obrecht (1430-1505), Johannes Ockeghem (1430-1495) e Jean Mouton (1470-1522).
Esses dois momentos, os mais dramáticos da obra, também são precedidos por
episódios musicais análogos: nos dois casos, uma ária de Orfeu, estrófica e em forma de
canzonetta, de caráter rítmico, em que a tônica – do ponto de vista dramático – é a
alegria e o sucesso. Antes da Mensageira, Orfeu canta a alegria de não precisar mais
lamentar-se por amor, já que conseguiu conquistar o amor da ninfa Eurídice. Antes de
perder Eurídice pela segunda vez, no Hades, Orfeu canta o triunfo de sua música sobre
os poderes infernais.
Entrada da
Mensageira Catástrofe Perda definitiva de
Eurídice
44
PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 67.
45
República, III, 398c-399a.
ATO I: EXPOSIÇÃO
FESTA DE CASAMENTO
Dal mio Permesso amato
Introdução: reino terrestre e mortal Nível de ação zero
Louvor aos governantes deste mundo Introdução: explicação da situação
Desenvolvimento: cena pastoril
Conclusão: coro Ecco Orfeo
Ponto Culminante
Io su cetera d’or Mais além do drama terrestre, o império da
Referência à harmonia do Universo harmonia do Universo.
Cerne Formal: o máximo da arte do canto,
a ária de Orfeu – Possente spirto
Conclusão: Coro – Nulla impresa per uom
46
Apud JACOBS, 41.
47
Cf. JACOBS, 44-5.
48
Cf. JACOBS, 46.
49
Panofski faz essa comparação aplicada à escultura renascentista, contrapondo o Rapto das Sabinas,
de Giovanni Giambologna (Loggia dei Lanzi, Florença) ao São Longinus, de Bernini (Basílica de S.
Pedro, Roma). Para Benvenutto Cellini, “Uma boa escultura deve poder ser vista de cem ângulos
diferentes” (ver ¿Que es el Barroco?, 64-75).
L’Orfeo – a fusão
Intermezzo
Tema mitológico
Uma vez que o teatro musical do Renascimento ansiava reviver a tragédia grega,
era natural que se buscasse inspiração na temática mitológica clássica. A Genealogia
Deorum Gentilii (1374) de Boccaccio continuava sendo a fonte principal onde o imaginário
dos autores dos séculos XV e XVI buscava informação e inspiração para tratar dos temas
desejados.
Figuras alegóricas
Apresentar versões moralizadas, isto é, cristianizadas, dos mitos antigos, foi uma
prática comum na Idade Média. No Renascimento, de certa forma, o caminho se inverte:
a alegoria cristã era apenas um dos aspectos da filosofia renascentista. A mitologia da
Antiguidade tinha se tornado o tema predileto dos intermezzi, e esta propiciava aos autores
50
MACHADO COELHO, 59.
Efeitos cênicos
Máquinas de voar, jogos de espelho e outros não foram invenção do teatro
renascentista – já estavam presentes na Grécia clássica. Mas o caráter lúdico e
descompromissado dos intermezzi fez com que os efeitos especiais se transformassem
em um dos quesitos mais aguardados e valorizados nas apresentações. No Orfeo, a descida
ao Hades, a travessia na barca de Caronte, o coro dos espíritos infernais, a descida de
Apolo em uma nuvem e a subida apoteótica de Orfeu e Apolo ao céu, no final, são
momentos que oferecem régia oportunidade para exibição das máquinas de teatro.
Valorização do instrumental
Monteverdi não deixa a instrumentação à escolha dos intérpretes, como era ainda
de praxe, na época; o diretor musical era quem, antes, decidia por qual instrumento seria
executada uma linha que pudesse ser tocada por um instrumento de arco ou de sopro, por
exemplo. A fanfarra inicial, que era habitualmente improvisada pelos instrumentistas,
também foi toda escrita. A partitura prevê uma orquestra excepcionalmente grande para
a época: 38 instrumentos52.
Tragédia
51
Ver nota 12: “Cada intermezzo da Pellegrina...”.
52
Da lista impressa na partitura de 1609 constam 14 instrumentos de corda, 11 instrumentos de sopro
e 13 para fazer o Baixo Contínuo. Ei-la, como foi impressa, com os erros de tipografia: “Duoi
Gravicembani, duoi Contrabassi de Viola, Dieci Viole da brazzo, Un Arpa doppia, Duoi Violini piccoli
alla Francese, Duoi Chitarroni, Duoi Organi de legno, Tre bassi da gamba, Quattro Tromboni, Un
Regale, Duoi Cornetti, Un Flautino alla Vigesima seconda, Un Clarino com tre trombe sordine” (Cf.
WHENHAM, 140).
53
Várias dessas tragédias tinham música incidental e também cantada pelo coro ou até por solistas: a
Sofonisba (1514 ou 1515) de Trissino possuiu um coro das mulheres cartaginesas, na Orazia (1546) de
Aretino, o coro da Virtude intervém cantando breves números. Também a Aminta (1573) de Torquato
Tasso tinha fragmentos musicais. Ver DELLA CORTE – PANAIN, I, 327-331.
Mensageiro
Expediente dramático comum na tragédia clássica. Em Ifigênia em Áulis
[Eurípedes], chega o Mensageiro e comunica que Clitemnestra, Ifigênia e Orestes estão
chegando, no Édipo Rei [Sófocles] há dois, o mensageiro de Corinto e o criado do palácio.
A mensageira de Striggio, ao anunciar que vai retirar-se para uma caverna, aplica a si
mesma o castigo por trazer uma má notícia, seguindo a antiga tradição de sacrificar-se a
vida do mensageiro de desgraças.
Deus ex machina
O expediente de introduzir na trama um deus que, baixado ao palco por uma
espécie de guindaste, viesse dar a solução final e completar as partes obscuras do drama,
tornou-se mais comum a partir das tragédias de Eurípedes. O Apolo de Striggio/Monteverdi
tem a função de garantir um final feliz e uma alternativa ao final trágico com as Bacantes,
como na primeira versão prevista por Striggio. A favola pastorale, como era geralmente
apresentada em ocasiões de celebração festiva, passou a exigir um lieto finale, e a solução
foi compor a tragicommedia: um espetáculo com forma de tragédia, mas com final feliz.
Coro
Os renascentistas sabiam que, na tragédia clássica, era muito estreita a ligação
entre o coro e a ação que por ele era comentada. Originalmente, a própria tragédia tinha
sido uma encenação religiosa em honra de Dioniso, nas quais homens com peles de bode
entoavam, em coro, lamentos pelo deus morto. Conserva-se hoje um fragmento do coro
cantado de Ifigênia em Áulis54.
Madrigal
Polifonia
Todo o arcabouço teórico do drama musical florentino é baseado na vantagem da
homofonia sobre a polifonia. Ainda assim, Monteverdi mistura no Orfeo elementos da
prima pratica, a polifonia empregada nos madrigais de Luca Marenzio, de Rore e
54
“Nem a mim, nem aos filhos de meus filhos / a expectativa de tais coisas sobrevenha algum dia, /
como a que as Lídias com / muito ouro e as esposas dos Frígios / terão, junto aos teares, / falando assim
umas com as outras...”. Fragmento do papiro 510, 785-95, da Biblioteca de Leyden, conforme tradução
de Wilson A. Ribeiro Jr.
Melodrama florentino
Monodia
Obras como La Dafne e La Flora, de Gagliano, e a Euridice, de Peri, atestam em
que grau o ideal da melodia acompanhada triunfou em Florença, graças ao arcabouço
filosófico e teórico que tinha sido formulado pela Camerata Fiorentina. O grande objetivo
era mover os afetos tal como na tragédia antiga. Vincenzo Galilei, muito influenciado
pelo humanista Girolamo Mei, constatava que a polifonia não apresentava efeito algum,
já que, superpondo linhas melódicas diferentes, acabava gerando um caos de sentimentos
contraditórios: “... se a contralto canta em modo hipermixolídio, e o baixo em hipodórico,
como lógica consequência, os sentimentos correspondentes se anularão entre si.”55
Monteverdi emprega a monodia declamada nos recitativos, mas faz dela um uso bem
próprio, com ornamentos e diminutiones tão ao gosto dos polifonistas e, antes dele, mais
empregadas em instrumentos de corda ou de sopro.
55
Apud COTELLO, 1.
56
BURKHARDT, 290-1.
57
Significativa a divisão do drama da cruz em 5 atos, próprio da tragédia clássica. A música, de Luca
Batti, foi perdida (Cf. DELLA CORTE – PANAIN, I, 343).
58
DELLA CORTE – PANAIN, I, 345.
59
Ver moteto In exitu Israel, para coro duplo a 8 vozes.
60
O termo Barroco enquanto denominação pejorativa de uma Renascença decaída, obscura, irregular
não é caso isolado. O mesmo aconteceu, por outras razões, com os termos Gótico e Rococó.
61
Ver PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?
Se há uma imagem que pode bem ilustrar a surpreendente síntese que veio a se
constituir no pensamento renascentista, esse é o caso do mosaico do pavimento da catedral
de Santa Maria Assunta, em Siena. Em 1488, foi inaugurado, com grande ocorrência de
público e toda a pompa devida, um baixo-relevo representando o mago Hermes
Trismegisto, em uma cornija emoldurada por uma borla de cruzes suásticas entretecidas.
Trata-se do mesmo deus Hermes dos gregos – o Mercúrio dos romanos –, uma personagem
mítica que era considerada o inventor da escrita, da alquimia e da ciência da interpretação
(que até hoje carrega seu nome: a hermenêutica). Esse Hermes seria a reencarnação do
deus egípcio Thot, e o artista sienense Giovanni Di Stefano, que realizou a obra por
encomenda, representou-o como um venerável ancião envolto em longo manto e usando
um chapéu oriental. Com a mão esquerda, ele aponta para uma placa de mármore
sustentada por duas esfinges de caudas entrelaçadas, onde se leem trechos esotéricos da
sua obra. Mais surpreendente ainda é o escrito aos seus pés: HERMES MERCURIUS
TRISMEGISTUS – CONTEMPORANEUS MOYSE (Hermes Mercúrio Trismegisto62,
contemporâneo de Moisés)!
O pensamento do homem renascentista é este grande cadinho de influências, do
qual não podemos excluir os componentes helenísticos tardios (que os italianos dos séculos
XV e XVI não diferenciavam em absoluto dos da Grécia clássica de Platão e Aristóteles)
com influências orientais (estas já presentes em neoplatônicos como Proclo ou Jâmblico,
mais devotados à astrologia babilônica que a estudar os textos originais dos filósofos
atenienses), somados a práticas mágico-teúrgicas, estudos da cabala e de numerologia, e
tudo isso integrado e conforme a teologia cristã.
Também não se pode minimizar a influência que tiveram os textos hermético-
mágicos na formação desse imaginário tão peculiar, especialmente as três fontes que
Cosimo de Medici repassou, no início da década de 1460, aos estudiosos da Academia
Platônica com a ordem de traduzir e comentar: os Oráculos Caldeus, supostamente da
autoria de Zaratustra, os Hinos Órficos, escritos presumivelmente por Orfeu em pessoa,
e o Corpus Hermeticum, um conjunto de manuscritos esotéricos cujo autor teria sido o
mago Hermes, o mesmo imortal Thot dos egípcios. Esses manuscritos, sabe-se hoje, não
tinham nem de longe a procedência nem a antiguidade que lhes eram atribuídas: tratava-
se de falsificações de teólogos romanos pagãos do fim do Império, redigidas no intuito
62
Τρισμεγιστος, o três vezes grande.
de tentar desestabilizar a crescente influência do cristianismo em Roma63. Como a falsidade
dos documentos não foi percebida, os textos, que impressionaram os padres da Igreja
pela similitude de algumas passagens com o Evangelho, ingressaram na corrente filosófica
neoplatônica, influenciando também a teologia e as artes.
Visto assim, é natural que a cidade de Siena entronizasse em sua catedral um
sábio tão antigo, quase um profeta pagão, que, acreditava-se, tinha vivido na época de
Moisés e que já sabia coisas que, mais tarde, foram confirmadas nas escrituras, crença
que se solidificou graças a passagens dúbias como esta, extraída do Livro XII do Pimandro,
e que falam de Pai, filho e do Logos:
A parte mágica, astrológica e teúrgica desses manuscritos foi, por assim dizer,
aceita como verdadeira em vista da “autenticidade” da parte teológica e metafísica. O
próprio Platão, no Fedro65, narra um episódio da vida do deus Thot, o que confirmou, na
perspectiva dos crédulos florentinos, que essa personagem já existia em eras antiquíssimas.
A partir daí, filósofos da Renascença passaram a se ocupar com a confecção de talismãs
(Giordano Bruno), a interpretação do simbolismo da Cabala judaica (Pico della Mirandola)
e a entoação de hinos astrológicos (Ficino). O trecho a seguir, extraído do De vita de
Ficino, leva o subtítulo de “Como fazer tua vida concordar com os astros”:
63
O Corpus Hermeticum não constituiu, de forma alguma, um episódio isolado: uma verdadeira indústria
de produção de relíquias antigas, destinada a saciar o afã pela sabedoria clássica, estabeleceu-se a
partir do século XV. Não meramente os campos da filosofia ou teologia foram invadidos por tais
engenhosas recriações; cite-se apenas o caso do erudito Maffeo Veggio, que compôs um décimo terceiro
livro para a Eneida de Virgílio! Apenas em 1614, o filólogo suíço Isaac Casaubon conseguiu determinar
a real datação dos documentos herméticos (séc. II-III d.C.), o que representou um golpe mortal para a
magia renascentista e o pensamento hermético-cabalístico. Porém, mesmo depois disso, hermetistas
reacionários, como Robert Fludd e Athanasius Kircher, continuaram a trabalhar e a publicar obras
fundamentadas nos escritos dos “profetas gentios”.
64
Pimandro, XII, 13.
65
“Pelo menos, posso te narrar uma tradição dos antigos. Eles conheciam a verdade. [...] viveu perto de
Eucrates, no Egito, um dos antigos deuses daquele país [...] ele próprio era chamado Thot. Foi ele que
inventou os números com o cálculo, a geometria, a astronomia e também o jogo de damas, os dados e,
enfim, e, sobretudo, a escrita” (Fedro, 274c-d).
O que está acima é como o que está abaixo, e o que está abaixo é
como o que está acima, para que se realize o mistério da coisa
única. Assim como todas as coisas vieram do UNO, através do
UNO todas as coisas para o UNO retornam68.
Um pensamento análogo a esse já tinha sido, de certa forma, trabalhado por Nicolau
de Cusa (1401-1464). Para aquele pioneiro do pensamento renascentista, não existia um
“acima” ou “abaixo” em termos absolutos; assim, a influência entre as esferas de existência
teria de ser recíproca, tudo agindo e interagindo de forma interconexa. A nova cosmologia
de Nicolau de Cusa retomou e aperfeiçoou o princípio de Anaxágoras, segundo o qual
“tudo está em tudo” – o Universo está presente, de forma contraída, em cada coisa ou ser
vivo existente no mundo:
66
FICINO: De vita, II.
67
MATEUS, 16, 19.
68
Tabla de Esmeralda, 13.
69
DE CUSA.
70
Ver REALE – ANTISERI, III, 22.
71
“...et eunt homines admirari alta montium et ingentes fluctus maris et latissimos lapsus fluminum et
oceani ambitum et giros siderum, et relinquunt se ipsos” (AUGUSTINUS, Conf. 10, 8, 15).
72
“...qui iampridem ab ipsis gentium philosophis discere debuissem nihil praeter animum esse mirabile,
cui magno nihil est magnum” (PETRARCA, Epistola, 28).
73
Apoio-me, aqui, em linhas básicas, da exposição de Erwin Panofski, em seu ensaio Die neoplatonische
Bewegung in Florenz und Oberitalien.
74
Ressalte-se que a geração de exilados gregos oriundos de Constantinopla, a que pertencia Pletone,
acabou se extinguindo com a vida de seus integrantes. Já por volta da segunda década do século XVI,
não havia mais professores gregos originários do Leste. A partir daí, todo o estudo e as traduções
tiveram que contar apenas com a habilidade dos europeus setentrionais que tinham aprendido a lingua
enquanto ainda havia professores.
75
Discurso sobre a dignidade do homem.
76
Novecentas teses inspiradas na filosofia, na cabala e na teologia.
77
O único membro da Accademia que tentou incluir o pensamento de Aristóteles na síntese que estava
sendo gestada foi Pico della Mirandola, que tinha estudado seus escritos em Pádua e defendia algumas
conquistas da Escolástica, o que lhe rendeu atritos com Ficino, o diretor dos trabalhos de seleção e
tradução.
78
Galeotto escreveu, referindo-se à questão do livre-arbítrio, que quem procedesse corretamente e
agisse de acordo com a sua lei interior, inata, iria para o céu, qualquer que fosse o povo a que pertencesse.
Giorgio da Novara não teve a mesma sorte – cujo caso, provavelmente, tenha sido o de negar a divindade
de Cristo – e foi queimado em Bolonha em 1500. BURKHARDT, 445-7.
79
Heller observa com propriedade que o esforço de Ficino estava todo ele concentrado em criar um
sistema filosófico que, na verdade, deveria funcionar em um plano externo à ciência da Teologia. Mais
que isso, sua aspiração era substituir a religião. Se fizermos uma comparação, veremos que, além da
Theologia Platonica, não há lugar para nenhuma outra religião, nem mesmo para a cristã. Isso como
consequência do fato de o Cristianismo estar sendo tratado como um problema secular filosófico. Daí
que a Teologia também foi transformada em Filosofia. Ver HELLER, 65.
80
“... divinus influxus, ex Deo manans, per coelos penetrans, descendens per elementa, in inferiorem
materiam desinens...” Apud PANOFSKI: Die neoplatonische Bewegung..., 227.
81
O Comentário surgiu a partir da amizade que unia Pico a Girolamo Benivieni e Pico della Mirandola.
Benivieni desenvolve literariamente, em forma de poema, os comentários de Ficino sobre O Banquete
de Platão. Isso vai inspirar Pico a escrever um ensaio filosófico sobre o poema do amigo, ensaio este
que é uma tentativa de aprofundar o exame da filosofia platônica.
82
Daí, aponta Panofski, vem essa expressão hoje em dia tão trivial, mas que, originalmente, se tratava
de um conceito cosmológico.
83
No Comentário sobre Dionisio Areopagita de Ficino, lemos que a matéria não é má nem boa, é
simplesmente necessária: “Materia neque malum est, neque proprium bonum, sed aliquid necessarium”.
Apud Panofski, 228.
84
Não suscetíveis de pathos, isto é, de paixões e afetos.
85
Ficino abordou essa temática com detalhe nos seus comentários às Enéadas I, 8 (Περί του τίνα και
πόφεν τά κακά – De onde vem o mal) e II, 4 (Περί των δύο ύλω – Sobre as duas matérias).
86
“Est autem homo anima rationalis, mentis particeps, corpore utens” (Theologia Platonica VII, 6,
apud Panofski, Die neoplatonische Bewegung..., 228 N23).
87
Theologia Platonica, II, 2, apud Panofski.
88
A alma humana fica como que atordoada pela sua queda, até que encontre alguma lembrança, ainda
que vaga, de seu estado anterior. Essa lembrança vai lhe causar um desejo de conhecer coisas divinas,
desejo este que ela tentará satisfazer dentro dos limites de sua existência corporal. Porém, só após a
morte esse desejo poderá ser plenamente satisfeito (ver Panofski, Die neoplatonische Bewegung...,
228, N29).
89
Em Concordia Mosis et Platonis. Cf. Panofski: Die neoplatonische Bewegung..., 229, N38.
Todos sabemos que, sem amor, não há Afrodite. Se, portanto, uma
só fosse esta, um só seria o amor; como, porém, são duas, é forçoso
que dois sejam também os amores. E como não são duas deusas?
Uma, a mais velha, sem dúvida, não tem mãe e é filha de Urano, e
a ela é que chamamos de Urânia, a celestial. A mais nova, filha de
Zeus e de Dione, chamamo-la de Pandêmia, a vulgar. É forçoso
então que também o amor, coadjuvante de uma, se chame
corretamente Pandêmio, o vulgar, e o outro Urânio, o celestial90.
A Afrodite Urânia (Venus Coelestis) não tem mãe porque pertence a uma esfera
imaterial – considere-se a relação da palavra mãe, mater, com a palavra materia. Ela
habita a zona mais elevada do Universo e a beleza que por ela é simbolizada é a glória
primeva e universal do divino. Ela pode, assim, ser comparada a caritas enquanto
mediadora entre o espírito humano e Deus.
A outra Afrodite, a vulgar (Venus Vulgaris), é filha de Zeus com Dione (de Júpiter
com Juno). Ela habita a zona entre o Espírito do Mundo e o mundo sublunar, isto é, o
âmbito da Alma do Mundo. A beleza por ela simbolizada é, por isso, uma imagem da
beleza primeira, agora não mais separada do mundo corpóreo, e sim nele concretizada.
Enquanto a Venus Coelestis é uma intelligentia pura, a outra é uma vis generandi, uma
força geradora. Ela dá forma e vida às coisas da Natureza, fazendo com que nossa
percepção possa apreendê-la.
Cada uma dessas Afrodites é acompanhada por um Eros (Amor) respectivo. Esse
é considerado, com razão, seu filho, pois cada forma de beleza suscita uma forma de
amor. O amor divinus apodera-se das aptidões mais elevadas do homem, isto é, a
imaginação e a percepção sensorial, fazendo com que essas produzam uma alegoria da
beleza divina no mundo material.
Para Ficino, ambas as Afrodites – ambas as Vênus – são honestas e dignas de
louvor, pois aspiram à criação de beleza, ainda que cada uma a seu modo91. Há, contudo,
uma diferença de valor entre a forma “contemplativa” de amor – que se eleva acima do
90
PLATÃO. Banquete, 180d.
91
“... immo vero utraque ferur ad pulchritudinem geberandam, sed suo utraque modo” (FICINO:
Convivium apud Panofski: PANOFSKI: Die neoplatonische Bewegung..., 230, N48).
2
Idealização da visão desta
IMAGINAÇÃO beleza individual
1
SENTIDO
Prazer na beleza visível de um indivíduo
92
Para os neoplatônicos renascentistas, o episódio da escada de Jacó, narrada no Gênesis, confirma a
ligação existente entre micro e macrocosmos, entre o céu e a terra: “Jacó deixou Bersabéia e partiu
para Harã. Coincidiu de ele chegar a certo lugar e nele passar a noite, pois o sol havia-se posto. Tomou
uma das pedras do lugar, colocou-a sob a cabeça e dermiu nesse lugar. Teve um sonho: Eis que uma
escada se erguia sobre a terra e o seu topo atingia o céu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela! Eis
que Iahweh estava de pé diante dele e lhe disse: Eu sou Iahweh, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de
Isaac. A terra sobre a qual dormiste, e a dou a ti e à tua descendência. [...] Jacó acordou de seu sonho e
disse: “Na verdade Iahweh está neste lugar e eu não o sabia! Teve medo e disse: “Este lugar é terrível!
Não é nada menos que uma casa de Deus e a porta do céu!” (GÊNESIS 28, 10-17).
93
FULGÊNCIO, Mitologiae, apud WIND.
94
LORENZO DE MEDICI, Opera, apud WIND.
APTIDÕES APTIDÕES
ESPÉCIES DE AMOR95 CORRESPONDENTES VÊNUS CORRESPONDENTES VÊNUS
DA ALMA HUMANA CORRESPONDENTE DA ALMA HUMANA CORRESPONDENTE
Pessoalmente, Ficino levava uma vida casta e de abstinência que, como ele pensava,
era adequada à virtude e à saúde dos estudiosos. Seu comentário ao Banquete de Platão,
porém, está longe de ser um código de moral. Ele rejeita imposições morais com o mesmo
vigor com que rejeitou, para sua filosofia, alternativas excludentes tais como otimismo
ou pessimismo, imanência ou transcendência, sensualismo ou intelectualismo.
Podemos agora entender por que esta filosofia excitou os ânimos daqueles que,
em uma época de crescente tensão espiritual, buscavam novas formas de expressão para
os terríveis porém fecundos conflitos do século XVI: os conflitos entre liberdade e
opressão, entre fé e razão. De toda forma, as obras chave para o entendimento da teoria
neoplatônica do amor tiveram poucos seguidores: o Comentário de Ficino sobre o
Banquete platônico e o Comentário de Pico sobre o longo poema de Girolamo Benivieni
que, por sua vez, é uma apresentação em versos da doutrina de Ficino. E os Tre libri
d’amore do aluno mais fiel de Ficino na Accademia Platonica, Francesco Cattani di
Diacceto, não passam de um “guia introdutório” à doutrina ortodoxa florentina. Os
Dialoghi d’Amore de Leão Hebreu seriam a única obra em todo o Cinquecento que, fora
da Accademia, pode ser considerada fruto de um pensador criativo.
Todas essas ideias, porém, exerceram uma forte influência, seja direta ou indireta,
sobre artistas italianos e estrangeiros, de Michelangelo a Giordano Bruno, passando por
Torquato Tasso, Spenser, Donne e mesmo Shaftesbury. Ao mesmo tempo, deram início a
uma verdadeira avalanche de “diálogos sobre o amor”, principalmente na Itália do Norte,
gênero esse que parece ter desempenhado um papel na sociedade de então que poderíamos
comparar com a atual psicanálise. O que tinha sido uma filosofia esotérica transformou-
se numa espécie de brincadeira de salão, na qual os cortesãos consideravam uma parte
imprescindível de suas habilidades conseguir enumerar quantos e quais tipos de amor
existiam.
95
Ver PANOFSKI, Die neoplatonische Bewegung..., 231.
96
Bembo e Castiglione não eram pensadores especulativos – eles queriam encantar o leitor. Bembo
com objetivos puramente poéticos e Castiglione com proposições suavemente educativas. Foi dito com
justiça (Cf. PANOFSKI, Die neoplatonische Bewegung..., 214) que a sequência da filosofia neoplatônica
tinha sido ‘francamente estética’.
97
A ação dos Asolani de Bembo se passa nos jardins de Caterina Cornaro, ex-Rainha de Chipre, onde as
bodas de três de suas damas de companhia são precedidas por três dias de jogos e nobres conversações
acerca do valor do amor. No primeiro livro, o amor é desvalorizado. No segundo, é louvado. E, no
terceiro, o problema é solucionado graças à teoria platônica dos dois tipos de amor (ver Panofski, Die
neoplatonische Bewegung..., 232, N 62).
98
Uma delas, Tullia d’Aragona, escreveu também um diálogo, “Sobre a infinitude do amor”. Cf.
PANOFSKI, Die neoplatonische Bewegung..., 214.
Mais adiante, em uma outra versão dessa personificação no mesmo verbete, Ripa
escreve que a Música se deve representar como uma “mulher que segura a lira de Apolo
entre as mãos, enquanto tem, aos pés, outros diversos instrumentos musicais”102.
A obra de Ripa representou a culminância de um trabalho de arqueologia semiótica
que deve muito à redescoberta da Hieroglyphica de Horapolo. Esse tratado, obra
supostamente antiga, mas, de fato, proveniente da Alexandria do século IV, é o único
trabalho do mundo clássico que chegou até nós tendo por objeto a escrita egípcia. Os
“Hieróglifos de Horapolo do Nilo que escreveu em egípcio e que depois Filipe traduziu
para o grego” chegaram a Florença em 1422, trazidos pelo viajante Cristóforo
Bondelmuonte, que o comprou em 1419 na ilha de Andros, na Grécia. Sua primeira
edição (ainda sem ilustrações) foi em 1505. Nela, os hieróglifos são explicados com base
em seu suposto significado religioso oculto, o que, hoje sabemos, é um grande mal-
entendido sobre sua verdadeira natureza, uma grafia fonética do idioma egípcio. Ficino,
99
“Doversi le cose divine, quando pure si scrivano, sotto enigmatici velamenti e poetica dissimulazione
coprire”. Apud WIND.
100
Iconologia, ovvero descrittione dell’Imagini cavate dall’Antiquitá et da altri luoghi, da Cesare
Ripa Perugino. Opera non meno utile che necessaria à Poeti, Pittori et Scultori, per rappresenrtare
le Virtù, Vitii, Affeti, et Passioni humane. In Roma, Per gli Heredi di Gio. Gigliotti. MDXCIII.
101
RIPA, II, 119
102
Ver RIPA, II, 120.
103
Apud GONZÁLEZ DE ZÁRATE, 22.
104
Apud WIND.
105
PICO: Da dignidade do homem.
106
PICO: Commento III.
Recém dos romanos recebemos uma narrativa mais minuciosa. Virgílio elaborou
a narrativa do mito de Orfeu como parte de um longo epyllion – uma digressão – ao fim
da Geórgica IV (29 a.C.). Nela, as personagens apresentam-se muito bem construídas e,
não raro, discursam seus sentimentos com versos tocantes, como na despedida derradeira
de Eurídice:
107
Alceste, 357.
108
Banquete, 179d.
109
Geórgicas, IV, 495-502.
110
Metamorfoses, X, 1-5.
111
Metamorphosis Ovidiana moraliter explanata.
112
Contra Faust, XVII, 15.
113
Cf. KERN, Orphicorum fragmenta, apud DI BERARDINO, 1040.
114
As Nuptiae Mercurii et Philologiae, de Marciano Capella (séc. V), o Mitologiarum, de Fulgêncio
(séc. V-VI) e o Comentário sobre Virgílio (Vergilii Ainedos Librum primum commentarius), de Sérvio
(séc. IV-V).
115
Ver BURCKHARDT, 190.
116
Ver PANOFSKI: Significado nas artes visuais, 72.
117
Petrarca consultou o Mytographus III, da autoria provavelmente do monge inglês Alexander Neckham
(†1217), a obra mais abrangente de compilação de toda a informação referente à mitologia antiga
disponível ao fim da Idade Média.
118
Genealogia dos deuses dos gentios.
119
Todas as coisas notáveis e dignas de memória que estão contidas na obra.
120
Eleição, por todos os deuses, do Deus principal dos gentios.
121
A razão pela qual o autor não incluiu entre os deuses Alexandre [Magno] e Cipião [o Africano].
122
Opinião de Vitrúvio sobre a invenção do fogo.
123
O que teria sido a Atlântida, segundo S. Agostinho.
124
Opinião de Dante a respeito do Aqueronte.
125
Por que a família dos Césares assistia aos sacrifícios de Apolo.
126
O senso histórico de Tito.
127
“Non me carminibus vincat nec Thracius Orpheus, / nec Linus, huic mater quamuis atque huic
pater adsit, / Orphei Calliopea, Lino formosus Apollo” VIRGILIO: Ecloga IV, 55-7.
128
“Orfeo poi, ilquale fu antichissimo di quasi tutti i Poeti (come Latantio scrive nel libro delle Divine
Institutioni)” [...]. Genealogia Deorum, 48.
129
“Con questa Orfeo muove le selve, c’hanno le radici fermissime, & fisse nella terra, cioè muove gli
huomini d’ostinata openione; i quali non si ponno rimovere dalla sua ostinatione eccetto per le forze
dell’eloquenza. Ferma i fiumi, cioè li scorretti, & lascivi huomini, i quali se non sono stabiliti in
ferma fortezza con salde dimostrationi d’eloquenza scorrono fino nel mare, cioè nell’eterna amarezza.
Fa benigne le fiere, cioè gli huomini ingordi di sangue; i quali spessissime volte dalla eloquenza d el
sapiente sono ridotti in mansuetudine, & humanità” (Genealogia Deorum, 166).
130
Instituições Divinas.
131
Orfeo fu figliuolo della Musa Caliope, & d’Apollo, sì come dice Lattantio.
132
Das coisas da natureza.
133
Vuole Rabano che Mercurio a lui desse la lira poco inanzi da se ritrovata [...]La lira poi (come
dice Rabano) fu assunta in Cielo, & tra le imagini celesti locata.
134
Di costui Virgilio recita tal favola, cioè ch’egli amò Euridice ninfa.
Para reconstruir o seu Orfeo, Striggio se atém, na maior parte do poema, à versão
de Boccaccio, descartando outras variantes adotadas pelos eruditos da Camerata Bardi.
Ainda assim, é proveitosa uma comparação direta de alguns trechos da ópera com outras
fontes, mesmo que sejam citadas por Boccaccio. A mais importante é a Teogonia de
Hesíodo, que já estava disponível na tradução latina de Ficino desde meados do século
135
Et perciò (come dice Ovidio) havendo rifiutato le nozze di molte donne, et persuadendo ad altri
huomini, che facessero vita casta, cadde in odio delle donne [...].
136
Fulgentio poi ha altra openione. Dice che l’amata perduta, & di nuovo acquistata, Euridice, è la
figuratione della musica, interpretandosi Orfeo quasi Oreafogni, cioè ottima voce [...].
137
[...] come dice Theodontio, che Orfeo fu il primo che trovò i sacrifici di Bacco, & commandò a’
Thracesi che quelli fossero fatti dai Chori delle Menadi [...].
138
Quelli sacrifici ancho hora sono detti Orfici [...]. Che poi il suo capo, & la Cithara fossero trasportati
in Lesbo, Leontio diceva questo non esser favola [...].
139
[...] Plinio nel libro dell’historia naturale, di costui esser stata inventione il pigliar auguri dagli
altri animali, che solamente dagli uccelli si pigliavano prima.
140
Teogonia, 95-103.
141
Teogonia, 811-2.
A alusão de Plutão aos seus “ministros” tem certamente relação com a crença de
que as penas no mundo das sombras eram distribuídas por três juízes imparciais, Minos,
Eaco e Radamanto. Platão, no Górgias, dá uma descrição da origem deste costume, e
Dante, na Divina Comédia (Inferno), fala apenas de um juiz, Minos: “Ali está o horrível
Minos, que, rangendo os dentes, examina as culpas na entrada, julga e assinala o lugar
segundo as voltas que dá com a cauda (em torno de si mesmo)”145.
Mas não apenas o librettista Striggio se preocupava com um escrupuloso
conhecimento dos mitologemas. Também Monteverdi estava muito consciente do grande
peso que a correta interpretação da mitologia clássica tinha, ao ser transposta para a
música dramática do seu tempo. O libretto de uma outra ópera com temática mitológica,
As bodas de Tétis, da autoria também de Striggio, foi veementemente recusado em 1616
por Monteverdi, que não viu nele possibilidade de expressar o que, hoje compreendemos
muito bem, era o escopo do Humanismo musical: a dimensão humana. O fato de os
ventos não serem humanos, e daí não poderem cantar como o fazem os humanos, era um
obstáculo a que Monteverdi não estava disposto a fechar os olhos.
142
Teogonia, 767-9.
143
Teogonia, 777-9.
144
Eneida VI, 298-304.
145
“Stavvi Minos orribilmente, e ringhia: esamina le colpe ne l’entrata; giudica e manda secondo
ch’avinghia” (Divina Comédia, V, 3-5).
146
MONTEVERDI, Claudio. Carta a Alessandro Striggio em 9/12/1616, em MEIEROTT SCHMITZ:
Materialien zur Musikgeschichte.
147
Com o propósito de melhor compreender as relações entre os órgãos humanos, as trajetórias dos
astros e a arte (ciência) da música, os governantes de Alexandria autorizaram a prática de vivissecção
de condenados à morte, a fim de que suas vísceras fossem estudadas em pleno funcionamento.
148
Nos tetracordes cromáticos e enarmônicos da música grega, o pyknon é a soma de dois intervalos
mínimos, e o apyknon é o intervalo maior, comparáveis ao semitom e ao tom inteiro do atual sistema
temperado.
149
O sistema musical teleion, da Grécia clássica, evoluiu a partir de um sistema pentatônico, tendo se
consolidado inteiramente apenas no século VIII a.C. Nesse processo, foram sendo adicionadas mais e
mais notas às originais quatro notas da forminx, a espécie mais primitiva de lira. Finalmente, para
completar-se o que hoje reconhecemos como um sistema escalar de duas oitavas, adicionaram-se uma
nota inferior – a proslambanomenos – e uma superior – a hyperboleion – ao sistema, que passou a
chamar-se teleion.
150
Apud GODWIN, 27-8.
151
Musica mundana ou musica universalis são outras denominações para música das esferas, conceito
tradicionalmente creditado a Pitágoras, expressão não audível das proporções harmônicas e matemáticas
das trajetórias dos corpos celestes.
A obra de Glareanus, com marcas tão distintivas de uma Antiguidade prestes a ser
superada, se revelará, em outro aspecto, profética: o Dodechordon do título se refere aos
modos eclesiásticos – herdados dos modos gregos antigos –, aos quais ele acrescentará
outros quatro, sendo que dois deles, o jônico e o eólio, ganharão a preferência dos
compositores do baixo Renascimento e terminarão por dominar toda a música dos
próximos séculos, sob os nomes de modo maior e modo menor.
Dodechordon também procurava atestar a importância de retornar-se à música
“como os antigos gregos a praticavam”, quer seja, à música monódica. Esse foi um dos
maiores acertos dos teóricos da Camerata Fiorentina e dos renascentistas de um modo
geral: a música dos antigos não possuía nenhuma polifonia. Tal constatação tornou-se o
argumento mais forte dos partidários da seconda pratica monteverdiana contra seus
detratores: se os antigos, cuja perfeição nas artes e na nobreza moral cumpria admirar e
imitar, cantavam a uma só voz, era porque tinham relevantes motivos para tal. Cumpria
aos modernos descobrir esses motivos e imitá-los na virtude.
Em um tratado anterior ao de Glareanus, Franchino Gafori (1451-1522) se reporta
às autoridades de Platão e de Pitágoras para provar que a música homofônica já era
recomendada pelos antigos como a mais acertada. No livro XV do seu Harmonia
Musicorum Instrumentorum Opus (1518)153, encontramos alguns elementos constitutivos
da teoria dos florentinos:
152
Apud GODWIN, 197-8.
153
Gafori concluiu o seu tratado em 1500, mas este circulou quase duas décadas apenas em forma de
cópias manuscritas, antes de ser publicado em Milão em 1518.
154
Apud GODWIN, 184.
155
Apud GODWIN, 186.
156
Procedimentos que ofendem a audição. Apud CRESTI, 3.
157
A perfeição da música moderna consiste em seguir a oração. Prefazione al Quinto Libro di Madrigali,
apud CRESTI, 3.
158
ARTUSI: L’Artusi, ovvero, Delle imperfezioni della moderna musica, em MEIROTT/SCHMITZ, 35.
159
Aristoxenos foi aluno de Sócrates e também de Aristóteles, e seus tratados sobre teoria musical
continuaram a ter influência até o fim da Idade Média.
160
Publicado em Veneza em 1586.
161
República, 520d.
162
República, 100.
163
ARISTÓTELES: Política, 281, 592-3.
A partir dessas teses, duas serão as consequências mais importantes para a música:
1. O texto assumirá a primazia sobre a melodia; e 2. A concorrência simultânea de várias
melodias terá de ceder lugar a uma única melodia acompanhada. A prevalência da palavra
será uma das pedras fundamentais da estética da Camerata Fiorentina. Giulio Cesare
Monteverdi, irmão do compositor, na declaração que fez publicar como Prólogo ao seu
V Livro de Madrigais, explica o que o autor do Orfeo não pôde ou não quis, escrevendo
que “à velha [técnica composicional], ele [Claudio Monteverdi] deu o nome de “prima
pratica”, pois ela foi praticada primeiro, e, à música moderna, ele chamou de “seconda
pratica”, porque ela foi a segunda a ser praticada. Por prima pratica ele entende [...]
aquela que considera a harmonia não a parte dominada, mas a dominante, não a serva,
mas a senhora [...].” E abordando, finalmente, a música homofônica, Giulio Cesare conclui
explica que “ele [Monteverdi] entende [por seconda pratica] aquela que aspira à perfeição
da melodia, isto é, que vê a harmonia [o contraponto] não como a parte dominada, mas
164
Apud GODWIN, 171.
165
MONTEVERDI, Giulio Cesare. Dichiaratione della lettera stampata nel quinto libro de’ suoi
madrigali, em MEIEROTT – SCHMITZ: Materialien zur Musikgeschichte, 38.
166
Para Leonardo, a pintura mostra-se superior não apenas à escultura, mas a todas as outras artes. No
capítulo “Que a música deve ser chamada de irmã caçula da pintura”, lemos: “...ela [a música] compõe
harmonias pela conjunção de elementos proporcionais produzidos ao mesmo tempo e forçados a nascer
e morrer em um único ou vários acordes harmônicos. [...] Mas a pintura sobressai à música e a domina,
pois ela não morre logo após a sua criação, como a desafortunada música, pelo contrário, ela subsiste
e mostra-se a ti dotada de vida” (DA VINCI, 23).
167
“Wann immer ein isolierter Materialbereich im geschichtlichen Zuge entwickelt wurde, stets sind
andere Materialbereiche zurückgeblieben” (ADORNO: Philosophie der neuen Musik, 55-6).
168
ARISTÓTELES: Poética, 74.
169
Nos Hippocratis Epidemiarum de Hipócrates, também é abordada essa visão científica da catarse
como tratamento médico.
170
ARISTÓTELES: Política, VIII, 7.
171
ARISTÓTELES: Poética, 1450a8.
172
Apud PÖHLMANN, 165.
173
PATRICI, Francesco. Della poetica (1586), apud PÖHLMANN, 166.
174
GALILEI, apud Pöhlmann, 166.
175
Apud REIS PEREIRA, 44.
176
Ver PÖHLMANN, 166-8.
177
PÖHLMANN, 168.
178
“Harmonia, la musical consonanza di piu voci non unisone, chiamando gli antichi Greci com tal
nome, l’arie & Canzoni loro; & quali fussero di già si è dimostrato, intesero adunque per Harmonia
gli antichi Musici Greci, il bello & gratioso procedere dell’aria della Cantilena; le parole della quale
s’intendevano tutte, & così il verso del Poeta, & conseguentemente i concetti loro; senza essere
interrotti da accidente alcuno che sviasse l’animo dalla virtù di quelli” (GALILEI, 105).
179
“Quello che Platone ne avvertice, & parimente Aristotile: dicendo egli che quella musica la quale
non serve al costume dell’animo, è veramente da disprezzarsi” (GALILEI, 84).
180
Expressão de conceitos.
181
Ver Tatarkiewicz, 257.
185
Esta assertiva é especialmente válida para Leonardo Bruni, Marsilio Ficino e Cristoforo Landino.
186
A saga do poeta e cantor Arione é narrada por Heródoto (I, 24): quando piratas tomam o navio em
que viajava ele se atira ao mar, onde é recolhido por um delfim e levado em segurança até a costa.
187
“Di gratia attendete, perche da esse conoscerete la sua perfettione, & l’imperfettione di questa
nostra; quantunque il Zarlino nel capo primo, & 49 della seconda parte delle sue institutioni dica il
contrario, che questa è perfettissima, & imperfetta quella. Conservava la pudicitia; faceva mansueti
i feroci i inanimiva i pusillanimi; quietava gli spiriti perturbati, inscutiva gli ingegni; impieva gli
animi di divino furore, racchetava le discordie nate tra i popoli, generava negli huomini un’ habito di
buon costumi, restituiva l’udito a’ sordi, ravvivava gli spiriti smarriti, scacciava la pestilenza i rendeva
gli animi oppressi lieti & giocondi, faceva casti i lussuriosi, racchetava i maligni spiriti, curava i
morsi de’ serpenti; mitigava gli infuriati & ebbri; scacciava la noia presa per le gravi cure, & fatiche
& con l’essempio d’Arione possiamo ultimamente dire (lasciandone da parte molti altri simili) che
ella liberava gli huomini dalla morte; oltre alle altre ammirabili sue operationi di che son pleni i libri
d’autorità” (GALILEI, 86).
188
Cores retóricas, significando aqui as figuras de linguagem empregadas pelo poeta para descrever
estados de ânimo. Apud Cresti, 1.
189
Melismas, trinados e outros ornamentos semelhantes que, ocasionalmente, podem ser empregados
em toda emoção (a ser expressa musicalmente). Apud CRESTI, 1.
190
Política, 1341-15.
191
As palavras não se entendem porque cada voz canta em seu próprio ritmo. Erasmo de Rotterdam já
se queixava em 1560: “Introduzimos na igreja uma música teatral e artificial, uma gritaria e uma
bagunça de várias vozes como, ao que me consta, nunca se ouviu nos teatros da Grécia e de Roma”
(ERASMO DE ROTTERDAM, cit. em NESTLER, Gerhard, p. 187. [Eine verkünstelte und theatralische
Musik haben wir eingeführt in die Kirche, ein Geschrei und Getümmel verschiedener Stimmen, wie es
meines Erachtens wohl niemals in den Theatern der Griechen und Römer gehört worden ist]).
192
O concetto, isto é, o significado conceitual do que o texto expressava, era o mandamento supremo
das Nuove Musiche.
193
Em vez de adaptar as sílabas e as palavras à linha musical, o que distorcia as durações inteligíveis
dos conceitos, as Nuove Musiche exigiam que as palavras fossem cantadas em uma forma declamatória,
como em um recitado.
194
As teses de Platão acerca da supremacia da palavra já eram, em 1601, de domínio público: a primeira
edição em latim, com a tradução de Marsilio Ficino, foi publicada em 1483, e, a partir de 1513, os
eruditos italianos já podiam contar com a primeira edição em grego dos tempos modernos.
195
A palavra, quando inteligível, age sobre o intelecto, enquanto o contraponto, por tornar ininteligível
o texto, faz com que apenas o corpo – a sensualidade – reaja à música ouvida.
196
Os efeitos notáveis são aqueles listados por Galilei no seu Dialogo, e que vão da correção moral dos
irrequietos à vitória sobre a morte.
197
Os melismas são as criticadas passagens rápidas da voz sobre uma única vogal, o que estendia a
sílaba até ela se tornar irreconhecível. Segundo o concetto de Caccini, a música deve ser silábica (cada
sílaba recebe uma nota), e não melismática.
198
CACCINI, 4.
A ideia, porém, não era totalmente original: o descuido para com a perfeita
proporção enquanto gerador do belo em uma obra de arte já estava presente nos dois
autores que melhor trabalharam as ideias da Accademia de Ficino, Pietro Bembo e
Baldassare Castiglione. Bembo, no seu escrito dedicado à categoria da imitação e sua
relevância para a estética, o De imitatione libellus (1556), tenta fazer uma transposição
da mímesis platônica para o contexto da arte renascentista – a mímesis, condenada por
Platão por constituir uma perda da substância ôntica original das ideias, seria doravante
empregada em um sentido diverso, quer seja, o da imitação dos antigos autores. Portanto,
uma imitação benéfica para as artes. No que concerne à imitação da Natureza, Bembo
encontrou o caminho de escapar à sentença reprovatória de Platão: imitar a Natureza,
sim, mas sempre incluindo alguma imperfeição (em última análise, a contribuição pessoal
do artista). Daí o autor alegar que, “como o rosto não maquiado de uma mulher, também
a negligência pode ser agradável em um escritor”200. Castiglione, no seu Cortegiano
(1528), segue um caminho similar, justificando a sprezzatura como recurso do artista
contra a rigidez excessiva dos cânones de criação.
Esta nova classe – a graça – é expressão da busca pela verdade na obra de arte. O
belo, pouco a pouco, começa a abandonar o seu caráter supra-humano e começa a ser
reconhecido por aquilo que ele tem de real, de próximo à vida e aos sentimentos humanos.
Em pouco mais de um século, haverá uma inversão da atitude para com a beleza: como
resultado da expressão das emoções, ela estará ligada à não proporção, à vitalidade, à
plenitude e ao pitoresco. Tanto mais importante faz-se paulatinamente a expressão da
verdade do que as palavras querem significar.
Em Caccini, para a imitação do concetto das palavras, este deve ser primeiramente
compreendido e extraído, para depois ser imitado artisticamente no mundo; nisto consistia
o dever do bom compositor e do bom intérprete de música vocal, tendo como resultado
199
CACCINI, 4.
200
BEMBO, P. De imitatione libellus (Basel, 1556) apud TATARKIEWICZ, III, 143.
201
CASTIGLIONE, B: Il libro del Cortegiano, I, 26 apud TATARKIEWICZ, III, 142.
202
CACCINI, 5.
203
GALILEI, 83.
204
CACCINI, 5.
205
Apud Henahan, 1.
206
JACOBS: Interview, 1.
207
“Even in speaking, the human voice tends to waver in pitch and intensity when put under emotional
pressure, and singing is simply an enhanced form of speech. However, with the rising popularity of
the historical-authenticity movement has come an aversion on the part of interpreters to any hint of
impurity” (HENAHAN, 1).
208
“For years, we had to suffer through early-music concerts and recordings in which bloodless
instruments and disembodied voices piped away boringly while erudite program notes assured us we
were having an authentically good time” (HENAHAN, 1).
209
JACOBS: Interview, 1.
210
CACCINI, 4.
211
CACCINI, 4.
que escolha para si mesmo um tom no qual possa cantar com voz
plena e natural, para fugir à voz fingida (falsete), na qual, por
fingir – ou, ao menos, por forçar – ocorrendo valer-se da respiração
para não descobrir-se muito (porque freqüentemente costumam
ofender o ouvido), e desta [voz plena e natural] é necessário valer-
se para dar mais espírito ao crescendo e diminuendo da voz, às
exclamações e a todos os outros efeitos que abordamos213.
A última stanza no “Possente spirto” (“Sol tu, nobil Dio”), acompanhada pela
lira de Orfeu (ou seria do próprio Apolo?) pede esse estilo de canto sereno e comovente214.
Para encerrar, podemos resumir os elementos do pensamento estético da
Antiguidade que foram recuperados no Renascimento. Primeiramente, que a arte imita a
natureza, como Aristóteles ensinou. Em segundo lugar, que a forma é um elemento
essencial da arte, como exposto pelos eruditos do Helenismo tardio. Em terceiro lugar,
que o valor de uma obra de arte é determinado pela inspiração e pela criatividade, assim
como valia na Antiguidade para a poesia e, finalmente, que a arte pode apresentar diferentes
estilos, como consta na retórica clássica215. Em seu diálogo com os gregos, os teóricos da
música deram sequência aos fundamentos estéticos que os primeiros humanistas, desde
Petrarca, já tinham começado a deduzir dos textos clássicos a que tiveram acesso. Desses
fundamentos216, três são devidos a Platão:
212
Monteverdi também emprega este tipo de sugestão musical quando faz a orquestra tocar uma sinfonia
de caráter mágico, logo antes de Orfeu dar início ao canto do “Possente spirto”, diretamente inspirada
por Apolo. O mesmo trecho aparecerá novamente quando da descida de Apolo, no início do Ato V.
213
CACCINI, 11.
214
Ver JACOBS: La Maniere, le style et l’execution.
215
TATARKIEWICZ, III, 33.
216
Idem, III, 93-4.
PROLOGO
LA MUSICA
Dal mio Permesso amato a voi ne vegno,
incliti eroi, sangue gentil di regi,
di cui narra la fama eccelsi pregi,
né giugne al ver perch’è troppo alto il segno.
PRÓLOGO218
217
“Fábula em música” era uma das denominações genéricas que os italianos dos séculos XVI-XVII
davam às experiências reconstitutivas do que se presumia havia sido a tragédia grega. Também eram
comuns os nomes de Dramma in musica e Opera in musica. Esta última, a “obra em música” acabou
firmando-se definitivamente. Todas elas aludem à supremacia da palavra: são dramas postos em música.
Mesmo no século XIX ainda encontraremos esta hierarquia, por exemplo, no Rigoletto, “uma obra
(ópera) de Arrigo Boito (o librettista) com música de Giuseppe Verdi”.
218
O Prólogo enquanto elemento didático no início do drama foi introduzido por Eurípedes (480-406
a.C.). O fato de uma personagem apresentar-se à plateia explicando a trama que se desenrolaria a
seguir granjeou-lhe muitas críticas, em especial de Aristófanes, para quem Eurípedes escreveria Prólogos
muito longos, com explicações intermináveis e desnecessárias. Os renascentistas acolheram essa versão
euripidiana da divisão interna da tragédia por razões práticas – a tragédia, depois de adormecer quase
2 mil anos, estava sendo trazida de volta à luz, e o público italiano, desacostumado, teria necessidade
de explicações adicionais acerca da trama. Cada drama recebia apresentação de uma personagem que
dissesse intimamente respeito ao seu significado maior. O prólogo da L’Oratia (1546) de Pietro Aretino
é conduzido pela Fama. Em três tragédias de Rinuccini vemos personagens diferentes: na Dafne (1587),
o Prólogo é apresentado pelo poeta romano Ovídio, na Arianna (1608), pelo deus Apolo, e na Euridice
(1600) pela própria Tragédia [uma antropomorfização da Musa da Tragédia, Melpômene]. No Orfeo
de Striggio é a Música que apresenta o Prólogo, o que já indica que o tema central da obra que vai se
desenrolar é o poder da música.
219
O antropônimo Música encarna em si os poderes da arte dos sons. Esse tratamento foi, a partir do
Renascimento, substituindo aos poucos a denominação mitológica clássica. Na Grécia, a Musa Euterpe,
filha de Zeus com Mnemosine, presidia à arte musical. Existe (Cf. J. BRANDÃO) uma versão que faz
das Musas filhas de Zeus com Harmonia. Tal genealogia remete à concepção filosófica renascentista
da primazia da música no universo, o que é confirmado pelo verbete Música da Iconologia de Cesare
Ripa: “Mulher jovem, sentada em uma esfera de cor celeste, com a pena em uma mão e olhando
atentamente para uma partitura aberta sobre uma estante. [...] Aparece sentada, por servir de repouso
ao ânimo cansado [...]. A esfera nos indica que a harmonia sensível da música se funda na harmonia
dos céus, antigamente descoberta pelo pitagóricos... [...] Muitos dos antigos pagãos eram da opinião
que, sem consonâncias, não seria possível compreendermos nem a perfeição da luz, nem tampouco
descobrir os mútuos e profundos reflexos da alma e a simetria, como diziam os gregos falando das
virtudes” (RIPA, II, 119). Em outra descrição do mesmo verbete, Ripa escreve que a Música se deve
representar como uma “mulher que segura a lira de Apolo entre as mãos, enquanto tem, aos pés, outros
diversos instrumentos musicais” (ver RIPA, II, 120).
220
O Permesso era um rio da Beócia cujo curso d’água circundava o monte Hélicon. A denominação
Permesso veio do pai da ninfa Aganipe, cujo nome foi dado a esta fonte que brota na encosta do
Hélicon. Rio e fonte, Permesso e Aganipe, eram consagrados às Musas.
221
O primeiro degrau do Prólogo se dá no âmbito do material (Dal mio Permesso amato) – a nascente
de um rio indica a fonte de inspiração da Musa e, por conseguinte do poeta. Aqui ainda nos encontramos
em um nível de não ação, da Natureza e do mundo dos homens. Os heróis e reis nomeados são, para o
poeta humanista, dignos de elogio, mas não têm valor perene; são meramente terrestres e mortais, por
isso dividem com o mundo da Natureza o status de fundamento, de primeiro degrau na escala ascensional
do conhecimento que a Música permite a seus cultuadores.
222
A Fama, da mesma forma que as qualidades e excelências morais, receberá um tratamento de
antroponímia, com as adjetivações do que é famoso aderindo a um ser, neste caso feminino, que recebe
o nome de Fama. Na Iconologia, de Cesare Ripa, ela é representada como uma mulher vestida com um
véu sutil e singelo, atravessado sobre o corpo e recolhido na metade das pernas, que aparece correndo
com ligeireza. Tem duas grandes asas totalmente emplumadas, tendo por todos os lados tantos olhos
quanto penas, e junto a estesoutras tantas bocas e muitas orelhas. Segura na mão direita uma trompa,
tal como descreve Virgílio: “La Fama è un mal, di cui non più veloce / e nessun altro, è di volubilezza
sol vive [...]” (RIPA, I, 395-6).
223
A 2ª estrofe (Io son la Musica) assinala uma ascensão à esfera do espiritual, referindo-se à concepção
helênica das virtudes éticas da música. Esta concepção subjaz à canção florentina e ao recitativo
operístico (teoria dos afetos e seconda pratica). A união íntima de palavra e som musical atesta o poder
da música de permear espiritual e material, com ingerência sobre os destinos humanos: pode mover as
pedras, acalmar as feras e até vencer a morte.
224
Da mesma forma que a Filosofia, o conhecimento atingido através da Música leva a um apaziguamento
das paixões terrenas, aguçando o desejo de conhecimento de coisas perenes. Na versão cristianizada do
Neoplatonismo de S. Agostinho, a alma não encontra descanso enquanto não repousar nos seio de
Deus.
225
A “nobre ira” de Striggio remete aos Eroici furori (1585) de Giordano Bruno, um interessante exemplo
de como um valor – no caso um valor moral negativo, a ira, um pecado mortal – pode sofrer um
processo de dignificação a partir da sua dimensão humana. O furor heróico de Bruno é a ânsia de unir-
se à coisa mais ansiada – Deus –, o que culmina na assimilação pela divindade. Talvez por influência
do De ira de Sêneca, e mesmo conservando ainda a velha classificação medieval, alguns humanistas
florentinos, em particular Bruni, Palmieri, Poliziano e Landino distinguem do vício comum uma “fúria
nobre”, com qualidade de virtude. A ira, um pecado capital, torna-se heróica e nobre. Mas a ira não foi
o único caso: baseados na autoridade de Plotino e apoiados por Epicuro, os neoplatônicos introduziram
até mesmo uma voluptas nobre, isto é, uma luxúria nobre (WIND, 86). Pico della Mirandola argumentava,
por exemplo, que a ira, o orgulho, a concupiscência e outras paixões baixas, longe de serem condenáveis
em si, só se tornaram assim pelo uso que o homem faz delas, sendo esses dotes intrinsecamente divinos,
adaptados à condição singular do homem: “Devemos experimentar a ira, mas com parcimônia, e mesmo
a vingança é obra de justiça, e cada um deve defender sua dignidade, não se devem desprezar as honras
adquiridas com meios honestos” (PICO DELLA MIRANDOLA, Heptaplus, IV, v). Ver O Epicurismo
de Marsilio Ficino, em WIND, 86.
226
A terceira estrofe corresponde ao grau mais elevado de conhecimento a que a Música conduz. A
cítara de ouro (Io su cetera d’or) é alusão à harmonia que rege o Universo. O poder cósmico da música
corrobora a crença de que as dimensões, sejam elas do mundo físico como do mundo espiritual, sejam
do mundo terreno como dos astros, encontram-se interligadas. Ao contrário de Platão, que concebia
uma separação irreconciliável entre ideia e cópia, entre o mundo das Ideias [real] e o das aparências
[ilusório], o Neoplatonismo, já desde Plotino, caracteriza-se por uma diferença de gradação entre as
esferas do material, intelectual e do espiritual. Essas não são estanques, sendo que Eros, o Amor, é a
força que pode mediar entre o mundo físico e o que não vemos. Daí a força que a Música possui, pois
reproduz, neste mundo, as proporções das órbitas dos corpos celestes, com o poder de ingerência sobre
as constelações do Zodíaco e o destino dos homens por elas regidos.
227
O “desejo de ouvir a harmonia sonora da lira dos céus” é o despertar do desejo de transcender o
mundo da matéria e conhecer o mundo das coisas perenes e verdadeiras. O mundo físico pode ser
experimentado pelos nossos sentidos, mas para chegar a entender a harmonia que rege o Universo é
preciso fechar os olhos do corpo e abrir os olhos e ouvidos da alma.
228
O antropônimo Harmonia está ligado a uma abstração que simboliza a harmonia, a concórdia, o
consenso e o equilíbrio. Etimologicamente significa “o acordo, a junção das partes” (Cf. BRANDÃO),
não raro antagônicas, mas que, unidas, passam a formar um todo harmônico. Harmonia é filha de pais
antagônicos, Ares e Afrodite. Casando-se com Cadmo, de origem bárbara, realizará, ela que é grega, na
coniunctio oppositorum, na “conjunção dos opostos”, a coincidentia oppositorum, a “harmonia dos
opostos”. A categoria Harmonia (afinação) referia-se na Grécia à beleza musical. Algumas categorias
do belo foram classificadas já na Antiguidade clássica. Essas categorias são o que podemos chamar de
tipos diversos de beleza. Na Grécia Antiga, falava-se de 1) SYMMETRÍA (proporcionalidade), referente
à beleza geométrica das formas, e que correspondia à beleza objetiva; 2) EURITMÍA, como era designada
a beleza subjetiva (ver TATARKIEWICZ, Geschichte der Aesthetik).
229
A lira dos céus é a lira de Apolo, que todo dia faz o percurso em seu carro de fogo do Oriente até se
pôr no Ocidente. Os Hinos Órficos datam do período de decadência da Grécia, nos primeiros séculos
de nossa era, marcados pelo sincretismo religioso e pelo ressurgimento dos antigos cultos de mistérios.
Marsilio Ficino recebeu de Cosimo de Medici a incumbência de traduzi-los, interrompendo o trabalho
que lhe tinha sido encomendado anteriormente, da tradução da obra completa de Platão. Aqui um
trecho do Hino XXXIV a Apolo (Athanassakis Apostolos: The Orphic Hymns. Missoula, Mont.: Scholars
Press, 1977): “A ti, ó Titã e deus pítio, pertencem a lira, as sementes e o arado. [...] Tu lanças tuas setas
de longe, tu conduzes as Musas a dançar, e, ó sagrado, tu és também Baco, Didymeus e Loxias. Senhor
de Delos, olho que tudo vê e que traz luz aos mortais, dourados são teus cabelos e claras são tuas
sentenças oraculares. Na quieta escuridão da noite coberta de estrelas, tu olhas para baixo, para as
raízes da terra, e sustentas os laços do mundo inteiro. Tu fazes tudo florir e, com tua versátil lira,
harmonizas os pólos, ora alcançando as tessituras mais agudas, ora as mais graves, sempre repetindo,
com o modo Dórico balanceando os poderes harmonicamente...”.
230
Na 4ª e na 5ª estrofe, a Música conduz os ouvintes gradualmente pelo caminho de volta até chegar
novamente à natureza. Este caminho de volta passa por um intercâmbio de destinos, ou caminhos
cruzados – “Quinci a dirvi d’Orfeo” – o retorno à esfera do espírito. As virtudes éticas apontadas pela
Música na 2ª estrofe são aqui substituídas pelo poder mítico de Orfeu, numa referência à ária Possente
spirto (Ato IV). Assim como ele desce ao Hades e, depois da segunda perda de Eurídice, retorna mais
sábio, o caminho pelo qual a Música conduz os ouvintes, depois de desvelar a relação mais íntima entre
o micro e o macrocosmo, entre a música e o caminho dos astros no firmamento – e, por conseguinte, a
chave para os destinos humanos – o retorno às esferas inferiores é acompanhado da sabedoria lá
adquirida. Há um paralelo com a metempsicose socrático-platônica e o destino das almas que, ao se
livrarem do corpo físico, podem contemplar, no mundo das ideias, as coisas mais verdadeiras e eternas
(a Justiça, o Amor, o Belo, o Bem). A diferença é que, em Platão, as almas esquecem tudo o que viram
e aprenderam, cada vez que encarnam em um novo corpo. Na República (Livro X), o mito de Er relata
como um soldado que morreu, de nome Er, narra o porquê do esquecimento dos reencarnados: “...
tendo chegado todas [as almas] ao outro lado, encaminhavam-se para o Campo do Esquecimento [...].
[...] Rio da Despreocupação [...] de cuja água eram todos obrigados a beber certa quantidade [...] e, ao
beber, cada qual se esquecia de todas as coisas” (República, 236).
231
Orfeu tem por instrumento a lira, presente de seu pai Apolo, com originalmente 7 cordas, às quais
acrescentou outras 2 para honrar o número 9, das Musas. Ainda assim, seu poder se manifesta
primeiramente através do canto. A voz cantada é, na Grécia antiga, o instrumento humano por excelência.
A maior parte da música grega foi concebida como melodia cantada, sendo que os instrumentos
meramente acompanham a voz, dobrando as mesmas notas ou ritmando um pedal com poucos sons.
Em Aristóteles (Problemata XIX, 9), encontramos que o acompanhamento dos instrumentos apenas
enfraquece o vigor das palavras cantadas: “O conjunto formado por muitos auletas (flautistas, executantes
de aulos) não torna agradável o canto, pelo contrário, obscurece a parte cantada.” Um acompanhamento
discreto, porém, pode realçar e aumentar o alcance do canto, combinando algo que o canto não possui,
um ataque preciso: “O som vocalizado pela voz humana é agradável em si mesmo, mas os instrumentos
prestam-se melhor ao ataque do som”. O discurso musical cantado, portanto, além de não ser mediado
por nenhum instrumento – ele passa direto de homem a homem, da boca para os ouvidos – possui uma
mensagem verbal cognoscível, o texto, e concentra em si o poder do Logos.
232
O tema predileto das discussões dos participantes da Camerata Bardi era como restaurar o poder
mágico original da música – leia-se música dos antigos gregos. Havia uma verdadeira obsessão pelo
tema de Orfeu, vencendo, com seu canto, os poderes do Inferno e da morte.
233
Pindo, Parnaso e Hélicon são os montes frequentados pelas Musas. O Hélicon, especialmente, é uma
montanha da Beócia consagrada a Apolo e às Musas – entende-se que Orfeu, protegido de Apolo e
favorito das Musas, participe da sua glória. O proêmio da Teogonia de Hesíodo conclama: “Pelas
Musas heliconíades [de Hélicon] comecemos a cantar. Elas têm grande e divino o monte Hélicon [...]”.
O verbo ter em grego [ékhousin] conserva a dupla acepção de ter-ocupar-habitar e a de ter-manter-
suster (Cf. TORRANO). Como as Deusas o têm por habitação, elas o mantêm na grandeza e sacralidade
em que ele se mostra. É pela presença delas que ele, o Hélicon, se dá em sua presença, imponente e
sagrada. Mantendo o Hélicon como sua habitação, elas o mantêm como uma hierofania – como mantêm
no encanto do canto o poder de presentificar o que, sem elas, seria ausente. Na encosta do lado Norte,
encontra-se a fonte Hipocrene [fonte do cavalo], nascida de uma patada do corcel alado Pégaso. O
episódio é como segue: (Cf. Brandão) no grande concurso de canto entre as Piérides e as Musas, o
monte Hélicon, sede do certame, se envaideceu e se enfunou tanto de prazer que ameaçou o Olimpo.
Poseidon ordenou a Pégaso que desse uma patada no monte, a fim de que ele voltasse às dimensões
normais e “guardasse seus imites”. O monte realmente obedeceu e voltou ao seu tamanho, mas no local
atingido por Pégaso brotou uma fonte, a Hipocrene.
Agora pois234, enquanto alterno meu canto, ora alegre ora triste235,
que não se mova nem um pássaro nas folhagens,
e nenhuma onda rebente nestas praias
e toda brisa interrompa seu caminho236.
ATTO I
PASTORE (I)
In questo lieto e fortunato giorno
ch’ha posto fine a gli amorosi affanni
del nostro semideo, cantiam, pastori,
in sì soavi accenti
che sian degni d’Orfeo nostri concenti.
234
A alternância das polaridades corresponde à visão dialética e complementar do mundo na estética
pitagórica. Alegria e tristeza são componentes do homem mortal, e não se pode viver sem os dois.
Apenas os deuses podem ser sempre felizes.
235
Sentir-se protagonista de uma catarse (purificação) nos moldes descritos por Aristóteles é o grande
ensejo do ouvinte e dos teóricos da Camerata. Da mesma forma que, entre os astros, as emoções
também fazem vibrar por simpatia as cordas dos corações. Por isso, a fábula em música alterna momentos
alegres e tristes, para que essas emoções possam também ser experimentadas por aqueles que a escutarem.
236
Striggio retira a Natureza do mundo físico, paralisando-a à espera da narrativa. Ondas não quebram
na praia, os pássaros não cantam e os ventos não sopram: esse mundo foi arrancado ao fluxo do tempo
e elevado, momentaneamente, à esfera do Metafísico. Lá, na eternidade atemporal, os ouvintes
conhecerão coisas verdadeiras e perenes, tal como a fábula de Orfeu.
PASTOR238 I
Neste dia239 alegre e feliz
que põe termo aos sofrimentos amorosos240
do nosso semideus241, cantemos, pastores,
nos mais suaves tons242;
que sejam dignos de Orfeu nossos concertos.
237
O Ato I corresponde à primeira estrofe do Prólogo apresentado pela Música. Aqui, encontramos um
mundo natural de pastores e amantes. Cada uma das cinco estrofes da Música estará relacionada a um
dos atos do drama, evidenciando a relação do mundo supraterrestre da Música com os acontecimentos
terrenos que afetam homens e semideuses. Especificamente, o Orfeo é o único dos dramas de Striggio
em que a ação se divide em cinco atos. Nenhuma ópera do Norte da Itália, em especial Florença e
Mântua, apresenta essa subdivisão. Os libretti de Rinuccini para a Dafne, a Euridice e a Arianna estão
divididos em episódios, mas não em seções estanques, como no Orfeo.
238
Os pastores são os personagens por excelência da Arcádia, aquela região inóspita da Grécia,
posteriormente idealizada por Virgílio. O conceito renascentista de uma Arcádia paradisíaca, e que
persiste até hoje, vem de Virgílio, que a descreveu como uma Utopia; transformando uma região árida
e gélida da Grécia em um reino de completa beatitude. O imaginário arcadiano que Virgílio legou à
posteridade é uma evocação de ventura indescritível, desfrutada no passado, não mais atingível, mas
viva na memória – uma felicidade passada terminada pela morte. A ambiência da Arcádia tem ligação
com uma concepção do passado longínquo do homem enquanto era do ouro, um primitivismo suave,
cheio de inocência e de felicidade de uma vida civilizada, porém sem os seus vícios e distorções da
sociedade. A Arcádia da realidade, a Arcádia dos gregos, era o oposto dessa idealização latina. Era o
domínio de Pã (“O monte Menalus era consagrado especialmente a Pã, e o povo afirmava que ali se
podia ouvi-lo tocando sua flauta” – PAUSANIAS: Perigesis, VIII, 36, 8 apud PANOFSKI). Seus
habitantes provinham de uma linhagem antiga, cultivavam uma hospitalidade rústica e uma virtude
inflexível, mas eram também famosos por sua ignorância e baixo padrão de vida. Virgílio é o poeta que
a idealiza, não apenas enfatizando as suas verdadeiras virtudes, como a musicalidade, mas acrescentando
outros dons inexistentes: vegetação luxuriante, primavera eterna e tempo inesgotável para o amor.
239
A oposição dual de dia e noite, bem como de morte e vida, está presente em todo o poema de Striggio,
sublinhando igualmente os limites de conhecimento e não conhecimento. Onde Apolo – ou seu filho
Orfeu – está presente, há luz e bem-aventurança. Seu inverso é o reino escuro e triste de Plutão.
240
O Amor, como força mediadora entre o terreno e o celeste, também é poderosa fonte de privação da
alegria e de turbamento dos sentidos – por “tanto amar” Eurídice, Orfeu a perde definitivamente (Ato
IV), ao voltar-se para olhá-la, apesar do interdito infernal.
241
Na versão mais difundida do mito, Orfeu é mortal, filho da Musa Calíope (que presidia à poesia
épica e era, como tal, considerada a mais importante entre as nove irmãs) e do Rei Eagro. Uma variante,
seguida por Striggio, apresenta Orfeu como semideus, filho do próprio Apolo com a Musa Calíope.
Orfeu recebia o epíteto de “o fiel por excelência a Apolo” (Cf. BRANDÃO, II, 202), de quem teria
recebido sua lira.
242
Seguindo as instruções da Música no Prólogo, o dia alegre e feliz deve ser saudado com canções
correspondentemente alegres e felizes, ou seja, suaves.
243
A piedade é uma força poderosa, a qual pode ser movida com vigor pela música.
244
Eurídice, a esposa de Orfeu, é uma ninfa, mais precisamente uma dríada, uma habitante dos troncos
de árvores, em especial dos carvalhos. No poema As Geórgicas de Virgílio (Canto IV, 314-558),
encontramos uma versão um pouco diferente da sua morte unindo a história conhecida com o mitologema
de Aristeu: este apicultor, apaixonado pela esposa de Orfeu, perseguiu-a pelos campos da Trácia com
a intenção de violentá-la. Ao fugir de Aristeu, Eurídice pisou na serpente que lhe desfere a picada
mortal.
245
Striggio intercala aos versos de seu poema a repetição de algumas estrofes que, por razões de simetria,
ora cantadas/recitadas pelo mesmo personagem, como aqui, ora pelo coro, qual em uma tragédia teatral
clássica.
NINFA
Muse, onor di Parnaso, amor del cielo
gentil conforto a sconsolato core,
vostre cetre sonore
squarcino d’ogni nube il fosco velo;
e mentre oggi propizio al vostro Orfeo
invochiamo Imeneo
su ben temprate corde
co’l vostro suon, nostra armonia s’accorde.
NINFA247
Musas248, honra do Parnaso249, amadas do céu,
246
Himeneu, filho de Apolo com uma das Musas (Calíope, Clio ou Urânia), ou, em outra versão, de
Afrodite com Dioniso, era o deus que encabeçava a procissão nupcial. Era invocado, em altos brados,
em socorro do noivo na difícil tarefa de deflorar a jovem esposa. A tocha conduzida à frente da procissão
do Himeneu é a primeira metáfora do deus sol, Apolo, no texto de Striggio. Sua luz traz dias de serenidade
para os noivos e dissipa as trevas do sofrimento. Nas Troianas de Eurípedes (320-4), lemos: “...
levantando bem alto a chama, / faz brilhar e resplandece / em tua honra, ó Himeneu, / em tua honra, ó
Hécate, a luz que deve brilhar no casamento de uma virgem, como exige o rito” (apud REIS PEREIRA,
137).
247
Ninfa significa, por um lado, moça, jovem em idade de se casar, jovem casada; de outro, divindade
menor, que habita em particular os campos, junto às nascentes. Com o nome genérico de ninfas são
chamadas as divindades femininas secundárias, que não habitam o monte Olimpo. Essencialmente
ligadas a terra e à água, simbolizam a força geradora. Segundo Johann Jakob Bachofen (Das
Mutterrecht), as ninfas seriam reminiscências da era matrilinear, cuja divindade primordial era a Terra
Mãe, com a mulher enquanto figura religiosa central. Nesse caso as ninfas, divindades secundárias,
poderiam ser consideradas uma extensão da própria energia telúrica, isto é, divindade menores que
representam a Mãe Gea em sua união com a água, elemento úmido e fecundante. Da união desses dois
elementos, água e terra, surge a força geradora que preside à reprodução e à fecundidade da natureza
(ver JUNITO BRANDÃO, II, 172-3).
248
As Musas são filhas de Zeus e de Mnemosine, a Memória. Depois de vencer os Titãs rebelados, os
deuses pediram a Zeus que gerasse divindades capazes de cantar condignamente a vitória dos olímpicos,
que atendeu ao pedido deitando-se nove noites seguidas com Mnemosine, de quem nasceram as nove
irmãs. Havia dois grupos principais, as da Trácia (vizinhas do Monte Olimpo, chamadas de piérides) e
as da Beócia (habitantes do Monte Hélicon, mais ligadas a Apolo, que lhes dirigia os cantos junto à
fonte Hipocrene, cujas águas favoreciam a inspiração poética).
249
O Monte Parnaso, junto a Delfos, era mais uma das elevações do maciço central da península grega
votada a Apolo e às Musas. Foi ali que Apolo venceu a serpente Píton.
250
Striggio apresenta Orfeu, Apolo e as Musas tocando “cetra”, a cítara, em vez de lira. Temos que
considerar, contudo, que o instrumento “lira” é um segundo significado da denominação “cítara”. A
cítara é um instrumento de cordas soltas pinçadas, e, no Renascimento, foi desenvolvido um instrumento,
chamado “ceterone” [citarona, ou grande cítara], para acompanhar recitativos. Nas instruções para o
emprego de instrumentos no Ritornello musical escrito por Monteverdi para separar o Ato IV do V do
Orfeo, há menção a ceteroni, no plural. Há outra questão a ser considerada: na época de Striggio, a
palavra lira era geralmente ligada ao instrumento lira da braccio, que era um instrumento de arco,
aparentado com o atual violino ou viola, e, portanto, tocado com um arco. É comum encontrarmos, na
iconografia do século XVI, imagens que representam Orfeu, Apolo e as Musas acompanhando-se ao
som de uma lira da braccio. É de crer-se, portanto, que o emprego do termo cetra visasse, para o autor,
evitar a ambiguidade da denominação lira. Quanto às suas origens, na Grécia, a lira é dos instrumentos
mais antigos de cordas pinçadas. Sua invenção é atribuída ao deus Hermes e desfrutou, durante séculos,
na Grécia antiga, de uma predileção imbatível. Originalmente era feita com a carapaça dorsal de uma
tartaruga, coberta por um couro esticado, que fazia de tábua de ressonância. De cada lado era fixado
um corno de antílope ou de cabra, suportando uma transversal de madeira à qual eram fixadas as
cordas de tripa em número variável. A cítara, derivada da lira, é um verdadeiro instrumento de lutaria,
lembrando seu antepassado apenas de forma geral. Toda escavada em madeira, os braços se prolongam
para formar a caixa de ressonância, Com sonoridade bastante pronunciada, tinha também número
variável de cordas, fixadas estas atrás da caixa.
251
A ideia do conhecimento como algo que não é possível ao intelecto humano apreender sem que
esteja envolto em nuvens de mistérios é recorrente no Neoplatonismo florentino. “As coisas divinas,
quando são escritas, devem ser cobertas por véus enigmáticos e dissimulação poética” (PICO: Heptatlus,
apud WIND). Esses véus, contudo, são benéficos, pois só através deles o esplendor da verdade
transcendente pode atingir o espectador sem destruí-lo. Nessa concepção, sobretudo para os humanistas,
o deus Hermes era a divindade dissolvedora das nuvens, o mediador entre mortais e deuses; deus
engenhoso, do intelecto que indaga, sagrado aos gramáticos e metafísicos, patrono do questionamento
erudito e da interpretação (Hermenêutica – ερμηνεια), revelador do conhecimento secreto (Hermético),
do qual um símbolo era seu caduceu mágico – o KERYKEION – era o divino mistagogo. No quadro
Alegoria da Primavera, de Botticelli, Hermes, postado à extrema-esquerda, afasta com seu caduceu as
nuvens que impedem o sol de penetrar na paisagem (ver WIND). “A mente [o pensamento] dirige-se
subitamente em direção à luz da beleza intelectual, sendo expulsas para longe, como nuvens, as paixões
que a atraem em direção à matéria” (FICINO: Comentário para a Enéada I de PLOTINO, apud WIND).
252
O canto sagrado do Himeneu, entoado durante a procissão nupcial, tem por referência a repetição
cíclica do refrão “Himeneu, ó Himeneu!”. Nas Aves de Aristófanes lemos (1720-1765): “Himeneu, ó
Himeneu! Eros coberto de flores, de asas douradas, conduzia, de rédea na mão, o carro, como pagem
no casamento de Zeus com a bem-aventurada Hera. Himeneu, ó Himeneu!”
253
Striggio ilustra este verso (“...com estas cordas bem afinadas...”) a partir da ideia de que os
instrumentos de corda, lira ou cítara, por serem votados às Musas, a Apolo e a Orfeu, seriam os
acompanhantes ideais para o canto. Para os gregos, porém, predominava a concepção de que o aulos,
espécie de flauta, é que combinaria melhor com o canto, já que ambos, som do canto e som da flauta,
têm origem comum no sopro. O acompanhamento era feito meramente dobrando-se a melodia, isto é,
repetindo as mesmas notas cantadas nos instrumentos. A concepção helênica de Harmonia não era,
como a atual, decorrente de uma boa combinação entre os vários sons que participam em uma execução,
e sim na fusão destes sons em, se possível, um único timbre. Esta fusão – Harmonia – era considerada
como revelação de uma harmonia mais profunda, como expressão da ordem inerente às coisas (ver
TATARKIEWICZ, I, 106). Em um dos problemas pseudoaristotélicos (Problemata XIX, 43) lemos:
“O aulos é mais suave que a lyra, de modo que o canto, quando combinado com ele, é mais agradável
do que quando acompanhado pela lyra. [...] Ao mesmo tempo, o canto e o som do aulos misturam-se
[combinam-se] devido à sua afinidade, resultante de serem ambos sons originados pelo sopro. O som
da lyra não resulta do sopro, por isso impressiona menos que o timbre do aulos, isolando-se assim da
voz” (Cf. REIS PEREIRA, 220).
254
Montes como o Parnaso, O Pindo e o Hélicon, e fontes de água como a Hipocrene e o Permesso são
lugares consagrados às Musas e à inspiração poética. A exortação para que ninfas e pastores baixem à
planície e entreguem-se à dança remete à necessidade de abandonar o celeste e metafísico e ligar-se ao
material e carnal, em especial à dança, para festejar o casamento de Orfeu.
255
Ninfas e pastores dançando harmoniosamente, a união do supraterreno e do humano expressa o alto
conceito que a vida camponesa goza entre os poetas italianos. Os habitantes do campo dividem com
seres sobrenaturais como as ninfas – que santificam a natureza – o seu espaço, e a contemplação
poética da vida fora dos muros do burgo foi possível, aponta Burkhardt, graças a que os colonos
“gozavam de dignidade humana, liberdade pessoal e do direito de fixar-se onde bem entendesse, por
mais dura que fosse, às vezes, a sua sorte” (BURKHARDT, 320).
PASTORE (I)
Ma tu, gentil cantor, s’a’ tuoi lamenti
già festi lagrimar queste campagne,
perch’or al suon de la famosa cetra
non fai teco gioir le valli e i poggi?
Sia testimon del core
qualche lieta canzon che detti amore.
PASTOR I
Mas tu, gentil cantor, que com teus lamentos
já fizeste chorar estes campos,
por que não fazes, ao som de tua famosa cítara,
256
O Apolo renascentista de Striggio é um deus praticamente onisciente e onipresente, quase uma
versão cristianizada do deus grego: “Sol, que tudo abarca e tudo vês...” (Ato I). Do alto do seu carro,
Apolo vê e sabe tudo, contempla e se compraz com a dança das ninfas e pastores.
257
Todo o poema de Striggio é um grande elogio ao humanismo enquanto herdeiro legítimo dos valores
clássicos greco-romanos. Neste sentido, o deus Apolo recebe honrarias não só por ser o pai de Orfeu,
mas também por representar a racionalidade, a ciência e as artes. A noite e a lua quase não são
mencionadas, aqui. Contudo, o verso que assegura que as cirandas dos pastores e ninfas são mais belas
que “aquela das estrelas, em noite escura, dançando em volta da lua...” recorda a noite poética arcadiana,
uma imagem do poeta romano Virgílio, e que muita influência teve no pensamento poético renascentista.
Virgílio é, segundo Panofski (Significado nas artes visuais, 382-3) o “descobridor” da noite poética,
que cai sobre o mundo com um manto de poesia. Na Iconologia de Ripa, ela é representada como uma
mulher vestida com um manto azul, todo adornado de estrelas. Nas costas, tem duas grandes asas,
estando a ponto de voar: a fantasia do poeta se alça junto com a noite (ver RIPA, II, 133).
ORFEO
Rosa del ciel, gemme del giorno, e degna
prole di lui che l’universo affrena,
sol, ch’il tutto circondi e ‘l tutto miri,
da gli stellanti giri,
dimmi: vedesti mai
alcun di me più fortunato amante?
ORFEU
Rosa do céu259, jóia do dia e digna
prole daquele que rege o Universo260,
Sol, que abarcas o todo e tudo vês261,
quando entre os astros fazes tua gira,
diz-me: já viste um amante mais
afortunado que eu?262
258
A celebração da alegria liga-se diretamente com a dança; quando Orfeu cantar, os vales se alegrarão
com ele, e as ninfas e os pastores farão eco iniciando uma dança para festejá-lo. Na Iconologia de
Cesare Ripa, a Alegria aparece como uma moça com uma guirlanda de flores nos cabelos, vestes
brancas, que segura, em uma mão um recipiente de cristal com vinho tinto e, na outra, uma taça de
ouro. É representada na atitude de dançar agilmente sobre um prado florido (RIPA, 75).
259
Na primeira evocação de Orfeu a Apolo, este é chamado de rosa do céu, pedra preciosa do mundo
(ou vida do mundo, segundo outra edição do texto de Striggio). O sol é a joia maior do firmamento,
assim como a inteligência, é o bem maior que Apolo, deus da racionalidade e do engenho humano,
pode conceder aos seus acólitos.
260
A imagem do sol regendo o Universo não significa que este tenha lugar no centro do cosmos. As
teorias de Galileu e Copérnico estão nesta época desautorizando a versão que vigorou por 14 séculos,
aceita oficialmente pela Igreja Católica, o modelo astronômico de Ptolomeu, em que a Terra é que
ocupa o centro do Universo. Striggio pretende aqui uma metáfora da regência de Apolo, isto é, da
inteligência humana, sobre os afetos humanos, mesmo que esta não ocupe o centro de seu coração,
reservado à fé.
261
Apolo, o intelecto, vê tudo porque não olha com os olhos físicos, e sim com os olhos da mente
raciocinante.
262
Orfeu é o mais afortunado dos amantes: sabe das coisas verdadeiras, porque enxerga com os olhos
da mente. Enquanto esta dirigir seus afetos, será vencedor. No momento em que for vencido por eles,
ao voltar-se para olhar de Eurídice, na saída do Hades, perderá tudo.
EURIDICE
Io non dirò qual sia
nel tuo gioire, Orfeo, la gioia mia,
che non ho meco il core,
ma teco stassi in compagnia d’Amore;
chiedilo dunque a lui s’intender brami
quanto lieta i’ gioisca e quanto t’ami.
263
A magia de Orfeu se revela nas relações simpáticas: ao cantar, faz com que as pedras se comovam e
os animais selvagens se amansem. Ao suspirar, fez com que a ninfa Eurídice respondesse com suspiros,
provocando-lhe resposta ao seu amor.
264
O céu eterno tem muitos olhos, e as colinas têm muitas folhas: a consciência que tudo vê e tudo
permeia e a vitalidade geradora da Natureza encontram correspondência no amor transbordante de
Orfeu por Eurídice. Ele conjuga mundo supralunar e terreno.
265
Eurídice tem a confiança perfeita em seu amante: o coração não lhe bate dentro do peito, entregou-
o a Orfeu, que dele cuida. Quem quiser saber dela deve a Orfeu perguntar. Eurídice é a discípula
perfeita; na saída do Hades seguirá obediente seu amado, que trairá sua confiança, ao olhar para trás.
PASTORE (I)
Ma s’il nostro gioir dal ciel deriva,
com’è dal ciel ciò che qua giù s’incontra,
giusto è ben che divoti
gli offriam incensi e voti.
266
A felicidade a ser encontrada depois de uma série de sofrimentos e privações é uma herança da moral
estoica romana. Depois do vale de lágrimas da vida terrena, o céu acolherá os seguidores da doutrina
órfica, assim como Orfeu que, depois de experimentar o Inferno, subiu com Apolo aos céus. O sofrer
dignifica a bem-aventurança, neste que pode ser considerado um dos ensinamentos principais do texto
de Striggio, que se encerra com os versos: “Quem semeia com dor, colhe o fruto de toda graça” (Ato
V).
PASTOR I
Mas se nossa alegria267 vem do céu,
como é do céu268 tudo que aqui embaixo se encontra,
é justo então que, com devoção,
ofereçamos incenso e sacrifícios269.
Por isso, que cada um dirija seus passos
ao templo, rezar àquele que tem o mundo na sua destra270,
para que preserve sempre o nosso bem.
PASTORI
Alcun non sia che disperato in preda
si doni al duol, benché talor n’assaglia
possente sì che la nostra vita inforsa.
267
A alegria do devoto não provém do prazer da matéria, e sim do conhecimento de coisas perenes. Para
tal, será necessário trilhar um longo caminho, rumo ao autoconhecimento.
268
Todas as coisas que se encontram no mundo são pálidos reflexos das coisas verdadeiras, que se
encontram no mundo ideal, fora do alcance dos humanos. Nesta passagem, Striggio se refere à doutrina
platônica original, como exposta no Livro VII da República, na Parábola da Caverna. No Heptatlus, de
Pico, encontramos uma variação desse tema: “Na verdade, tudo o que existe no baixo mundo existe
também no alto, mas em uma forma melhor; correspondentemente, tudo o que existe no alto pode ser
visto também embaixo, mas em uma condição degenerada e com uma natureza que se poderia chamar
de adulterada. [...] Entre nós existe o fogo, que é um elemento; o sol é o fogo do céu. Na região
ultramundana, o fogo é o intelecto seráfico. Contudo, notemos como eles são diferentes: o fogo elemental
queima, o [fogo] celestial dá vida, e o [fogo] hipercelestial ama” (apud HANEGRAAFF).
269
Incenso e sacrifícios são, para o humanista, o estudo e a busca do conhecimento, bem como a
privação dos prazeres dos sentidos.
270
Esta referência à destra enquanto o lugar direito, correto, certo das coisas é uma indicação da hierarquia
que as coisas “direitas” devem ocupar na vida do estudioso. Assim como o mundo está à direita de
Apolo, da mesma forma que Cristo está sentado à direita de Deus Pai, o amor ao conhecimento deve
ocupar o lugar preferencial na vida do sábio.
PASTORI
E dopo l’aspro gel del verno ignudo
veste di fior la primavera i campi.
271
No original de Striggio, os oito versos que seguem não eram divididos em estrofes e levavam
simplesmente a indicação CORO (Cf. WHENHAM, 53). Trata-se do ensinamento final do Ato I, dirigido
aos espectadores e ressaltando o que devia ser guardado do que sucedeu e foi dito (cantado) até aqui.
Monteverdi, contudo, musicou os versos da forma como eles aparecem aqui, dividindo-os em 3, 3 e 2
linhas, cantadas respectivamente por pastores, ninfas e pastores com ninfas.
272
Os primeiros versos destacam o que, no final da ópera, Apolo vai censurar em Orfeu, isto é, o ter-se
entregue à tristeza e à depressão. Vale lembrar que também a acédia, a prostração, um pecado mortal,
sofreu um processo de enobrecimento a partir da segunda década do século XVI, transformando-se na
poética melancolia. Na xilogravura Melancolia I (1514), de Albrecht Dürer, um anjo de rosto escurecido
(acreditava-se que os melancólicos tinham a face escura) está sentado entre instrumentos geométricos,
olhando para o nada, enquanto um cometa cruza o céu, marcando o tempo que, aparentemente, não
quer passar. Será Orfeu um depressivo? A doutrina dos temperamentos, esquecida desde o fim da
Antigüidade, foi trazida novamente à baila pelos humanistas do século XVI. Segundo esta, corpo e
caráter – o temperamento – eram determinados por quatro diferentes fluidos. No homem ideal, eles
estão equilibrados, mas no homem natural encontram-se em estado de desequilíbrio (ver HAGEN,
132). Quem tem sangue, sanguis, em excesso, é um sanguíneo. Quem tem excesso de muco, phlegma,
é um fleumático. Uma quantidade exagerada de bilis amarela, cholé, faz do homem um colérico. E
quem tem muita bilis negra, melaina cholé, será um melancólico.
273
A moral estoica apresenta-se com imagens diferentes: o recorrente tema da recompensa depois do
sofrimento insiste uma vez mais, desta feita com o sol, Apolo, enquanto metáfora para a distribuição
das graças que poderão ser colhidas pelo homem que perseverar na trilha da virtude, sem se deixar
assustar ou desviar pelas tempestades trazidas pelos afetos. Esses afetos podem seduzir para um desvio
tanto na direção da cólera e da prepotência quanto da acédia e da melancolia. O estudo das coisas
verdadeiras é o remédio que vai equilibrar os humores no corpo e na alma do sábio.
274
Não apenas fluidos corporais e temperamentos tinham relação entre si, como também as quatro
partes do dia, as quatro idades do homem, os quatro elementos e as quatro estações. A melancolia do
inverno, quando o tempo parece que não quer passar, se relaciona com a terra, mais especificamente
com a terra seca. Depois do inverno, a umidade e o sol fazem com que brotem as flores nos campos. A
monotonia do branco dará lugar à primavera multicolorida, assim como a dureza do gelo também será
trocada pela suavidade das águas. A oposição verão-inverno também está presente no poema de Striggio
através da dualidade Apolo-Plutão. Plutão raptou Proserpina, filha de Gea, a terra. O crime teve como
consequência que a terra se cobrisse de luto, trazendo o inverno para o mundo. O canto de Orfeu
Possente spirto, no Ato IV, só despertará piedade no coração de Proserpina porque fará eco, soando
por simpatia, na porção solar do seu temperamento.
275
Aquele que persegue as coisas materiais acaba sempre insatisfeito, se alimentando de suspiros e de
lágrimas. Se conseguir dirigir-se às coisas realmente valiosas, será tão plenamente feliz que nada mais
de material o atrairá.
ATTO II
ORFEO
Ecco pur ch’a voi ritorno
care selve e piaggie amate,
da quel sol fatte beate
per cui sol mie notti han giorno.
276
A descrição do mundo terreno como passageiro, enganoso e mera passagem para uma existência
plena no além é um tema recorrente nos poetas italianos neoplatônicos. Lorenzo de Medici expressou
nos versos que abrem o Trionfo di Bacco e Arianna um misto desse sentimento e de um epicurismo
tardio modificado pela cultura italiana cristianizada do Carpe diem de Horácio: “Quanto è bella
giovinezza, che si fugge tuttavia! Chi vuol esser lieto, sai: di doman non c’è certezza” [Como é bela
a juventude, que não para de fugir! Quem quer ser alegre, que seja: do amanhã não há certeza] (Apud
BURKHARDT, 379).
ORFEU
Eis que retorno a vós278,
caros bosques e amados prados,
beatificados pelo sol,
pelo sol que transforma minhas noites em dia279.
PASTORE (I)
Mira, ch’a sé n’alletta
l’ombra Orfeo di que’ faggi
or ch’infocati raggi
Febo dal ciel saetta.
PASTOR I
Vê, Orfeu, como a sombra
Daquelas faias nos convida,
Enquanto Febo280 dispara do céu
Seus raios ardentes.
PASTORE (II)
Su quelle erbose sponde
posiamci e ‘n vari modi
ciascun sua voce snodi
al mormorio de l’onde.
277
No Ato II, o desenvolvimento vai levar a ação até a primeira perda de Eurídice. A estrutura é
palindrômica: se inicia com o nascer do dia, com dança e a comemoração da perpetuação da vida
através do casamento de Orfeu e Eurídice. Vai terminar com a notícia da morte da noiva e o
obscurecimento dos temperamentos e da paisagem. A tocha do Himeneu torna-se, aqui, uma chama
invertida, o antigo símbolo da vida que termina. Como conclusão, também Orfeu vai deixar seus amigos
pastores e as paisagens felizes da Trácia, pois está determinado a descer ao Hades para buscar sua
esposa.
278
Striggio teve que enfrentar, aqui, um problema dramatúrgico. Orfeu e Eurídice acabaram de se casar.
Como fazer que Eurídice seja picada por uma serpente estando fora da cena, e Orfeu, em cena, receba
o relato de uma mensageira contando da morte de sua amada? Não seria normal esperar-se que os
recém-casados se separem, praticamente em seguida às núpcias. A solução foi fazer com que o casal
saísse de cena no final do Ato I, acompanhado pelo canto dos pastores e com Orfeu retornando sozinho,
no início do Ato II, para cantar e festejar com os outros habitantes da Trácia. Eurídice ficou com suas
amigas, supõe-se, em outra parte do campo, onde, ao colher flores para enfeitar seus cabelos, será
surpreendida pela víbora venenosa.
279
Só o controle das emoções, guiadas pela razão, é que pode transformar a treva do sofrimento e da
ignorância em claridade e bem-aventurança. Assim como o bosque é sombrio, mas se alegra com a luz
do sol, o próprio dia, símbolo para a duração de toda uma vida humana, é conquistado à escuridão da
noite.
280
Febo, “o brilhante, o puro”, é um dos epítetos de Apolo.
PASTORI
In questo prato adorno
ogni selvaggio nume
sovente ha per costume
di far lieto soggiorno.
PASTORES
Nesta formosa campina,
todos os deuses da floresta
têm amiúde o costume de fazerem
alegres encontros.
PASTORI
Qui Pan, dio de i pastori,
s’udì talor dolente
rimembrar dolcemente
suoi sventurati amori.
PASTORES
Aqui ouve-se, às vezes, Pã282,
o deus dos pastores,
recordando docemente
seus infelizes amores283.
281
O tema predominante nas discussões da Camerata Bardi era, como descrito, a busca de uma forma
de recuperar o mítico poder órfico da música, a comoção dos afetos e da matéria inerme. Uma chave
para tal, acreditavam os florentinos, tinha sido fornecida pelos documentos que Lorenzo de Medici
entregou, ainda no século XV, para a tradução de Marsilio Ficino. A partir de passagens da Tabula
Smaragdina (Tábua de Esmeralda) de Hermes Trismegisto, e dos Hinos Órficos, supostamente
compostos pelo próprio Orfeu, a antiga teoria da vibração simpática do universo foi atualizada, sempre
buscando imitar a vibração dos corpos para com esses entrar em sintonia. Para comandar os riachos,
seria, então, necessário imitar os murmúrios das suas ondas.
282
Pã era o deus dos pastores e dos rebanhos. Filho de Hermes e de Dríope, foi rejeitado pela mãe,
quando nasceu, devido à sua monstruosidade. Pã tinha o corpo coberto de pelos e, em vez de pés, tinha
cascos de bode, além de chifres na cabeça. Hermes o envolveu num couro de cabra e levou-o para o
Olimpo, onde se fez a alegria dos deuses, em especial de Dioniso, que depois o incluiu nos seus cortejos.
A filosofia neoplatônica viu em Pã a própria síntese personificada do paganismo, com seu aspecto
zoomorfo e sua sexualidade irrefreável.
283
Pã amou em especial a deusa Selene e a ninfa Eco. Uniu-se à primeira dando-lhe como presente uma
junta de bois brancos. Ambas as amadas de Pã são personagens ligadas às forças telúricas e à vida
natural, Selene como a lua e Eco como o reflexo do primitivo no humano.
284
As napeias são as ninfas telúricas propriamente ditas (Cf. BRANDÃO, II, 173). Habitam os vales e
as selvas.
285
A rosa é a flor consagrada a Afrodite enquanto símbolo das forças irrefreáveis da fecundidade. Sua
cor vermelha evoca o sangue derramado no Himeneu. O fato de Striggio descrever em seu poema
ninfas colhendo rosas acentua a ligação desses seres com a atividade telúrica geradora, como
representantes da própria Gea enquanto matriz criadora de todos os seres e coisas (ver BRANDÃO, II,
172).
286
O adjetivo sabeo do original italiano se refere à terra de Sabá (literalmente: sabeu), atestando uma
ligação da imagem utópica de um país do Oriente, distante e maravilhoso citado no Antigo Testamento
com o afã de, através da música, recuperar aquela bem-aventurança originária. Preferimos, para melhor
compreensão, traduzir por doces perfumes.
ORFEU
Recordais, ó bosques sombreados,
meus longos e ásperos tormentos287,
quando as pedras, tomadas de piedade,
respondiam meus lamentos?288
287
Orfeu dá início, aqui, a uma canção em quatro estrofes que resume e concentra os sentimentos
ambivalentes apresentados até agora nos Atos I e II, a tristeza passada e a alegria do presente. A
primeira estrofe é toda focada na melancolia e no sofrimento passados, porém, a partir da próxima
estrofe, serão sempre apresentados passado e presente de forma contrastante.
288
As respostas das pedras aos lamentos de Orfeu remetem à ninfa Eco e ao desencontro que sua
aparição desvela: Orfeu chora de dor, mas a resposta, naturalmente, chega sempre depois do seu pranto,
sendo que esse que nunca consegue presentificar-se como o semideus anseia. Conforme Brandão (I,
302), o pranteador e seu eco se encontram, mas não se resolvem; mais ainda, se separam. Desse encontro/
desencontro resta a imagem de uma discórdia e de uma tragédia: a realidade do movimento psicológico
da personalidade individual e da cultura.
289
O sincretismo cultural de Striggio coloca lado a lado personagens da mitologia grega, romana e
antroponímios residuais da Idade Média, como a Fortuna controladora dos destinos humanos: um
problema teológico, sem dúvida, pois como imaginar que Deus e a Divina Providência deixariam a
criação à mercê de um demônio que confunde, embaralha os destinos e tortura os homens sem ter deles
a mínima piedade? A figura da Fortuna, assim, vai contra um dos dogmas católicos mais importantes,
que é o do livre-arbítrio. Pico já tinha se expressado, no seu Discurso sobre a dignidade do homem que
este foi justamente assim criado para que pudesse, de acordo com seus atos, ascender aos astros ou
afundar na animalidade. Dante, no Purgatório, faz uma espécie de compromisso, conciliando a vontade
humana com as eternas e perfeitas leis que regem o universo criado por um Deus infinitamente bondoso.
No Canto XVI, o personagem Marco Lombardo diz que “Os astros dão o primeiro impulso à vossa
ação, mas também a luz vos é dada, iluminando o bem e o mal, e o livre-arbítrio, que, após batalha
inicial com os astros, tudo vence, se alimentado corretamente”.
PASTORE (I)
Mira, deh mira, Orfeo, che d’ogni intorno
ride il bosco e ride il prato,
segui pur col plettro aurato
d’addolcir l’aria in sì beato giorno.
PASTOR I
Olha, ah olha, Orfeu, em volta de ti,
Ri o bosque e ri o campo292,
Segue pois [tocando] com o plectro dourado293,
Adoçando o ar deste dia tão feliz.
290
A quarta e última stanza justifica o porquê do cantar as dores passadas: o prêmio, a mão da amada
Eurídice, é tão grande que Orfeu chega a bendizer o sofrimento pelo qual passou. Ao mesmo tempo,
esse momento de maior alegria carrega com mais vigor o momento imediatamente posterior, que é o
anúncio da morte de Eurídice.
291
O ensinamento do verso, de que “vivemos mais felizes depois de experimentar o mal”, se inverterá
dolorosamente a partir da morte de Eurídice, pois a forçosa conclusão é que também se sofre mais
depois de ter-se experimentado a felicidade.
292
O poder mágico de Orfeu transmite sua alegria à natureza, que vibra por simpatia. De forma
correspondente, a dor que o atingirá derrubará o ânimo de todos os seres vivos; até a noite cairá de
repente, acusando o golpe da repentina morte da jovem esposa do cantor.
293
A lira podia ser tocada apenas com os dedos, com a ajuda de um plectro (aqui um plectro de ouro, já
que o ouro é um atributo de Apolo, por sua cor e pelo seu brilho) ou com os dedos de uma mão e com
o plectro em outra (REIS PEREIRA).
MENSAGEIRA294
Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel!
Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro!
PASTORE (I)
Qual suon dolente il lieto dì perturba?
PASTOR I
Que som dolente perturba o alegre dia?
MESSAGGIERA
Lassa, dunque debb’io,
mentre Orfeo con sue note il ciel consola
con le parole mie passargli il core?
MENSAGEIRA
Infeliz de mim, enquanto Orfeu
alegra o céu com sua música, devo
trespassar-lhe o coração com minhas palavras?
PASTORE (I)
Questa è Silvia gentile,
dolcissima compagna
de la bella Euridice; o quanto è in vista
dolorosa! or che fia? Deh, sommi dèi,
non torcete da noi benigni il guardo.
PASTOR I
Esta é a delicada Silvia295,
dulcíssima companheira
da bela Eurídice; oh, quanto é dolorido
seu olhar! O que aconteceu? Ai, deuses poderosos,
não afasteis vosso olhar bondoso de nós.
294
A entrada da Mensageira é um dos momentos mais expressivos de toda a história da ópera. Seus
primeiros dois versos vão se transformar em um refrão que se repetirá por toda a cena, cantado por
várias personagens e culminando no comentário do coro. Nas Istitutioni Harmoniche de Zarlino, que
tinha sido professor de Vincenzo Galileu antes de frequentar a Camerata Fiorentina, anota que o modo
hipoeólio, no qual Monteverdi escreve a narrativa da Mensageira, é “adequado para expressar tristeza,
lágrimas, solidão, calamidades e todo tipo de desgraça” (apud WHENHAM, 55).
295
Ninfa da linhagem de Hércules.
MENSAGEIRA
Pastor, interrompe o canto,
pois toda nossa alegria se transformou em dor.
ORFEO
Donde vieni? Ove vai? Ninfa, che porti?
ORFEU
De onde vens? Para onde vais? Ninfa, que [notícia] trazes?
MESSAGGIERA
A te ne vengo, Orfeo,
messaggiera infelice
di caso più infelice e più funesto!
La tua bella Euridice...
La tua diletta sposa è morta.
MENSAGEIRA
A ti venho, Orfeu,
mensageira infeliz
da mais infeliz e funesta notícia!
A tua bela Eurídice...
a tua amada esposa está morta.
ORFEO
Ohimè che odo? Ohimè.
ORFEU
Ai de mim, que ouço? Ai de mim.
MESSAGGIERA
In un fiorito prato
con l’altre sue compagne,
giva cogliendo fiori
per farne una ghirlanda a le tue chiome,
quando angue insidioso,
ch’era fra l’erbe ascoso,
le punse un piè con velenoso dente:
ed ecco immantinente
MENSAGEIRA
Em um prado florido,
com suas outras amigas,
ia colhendo flores
para fazer uma grinalda em seus cabelos;
foi quando uma serpente insidiosa,
que estava escondida entre a folhagem,
mordeu-lhe o pé com a presa envenenada296:
no mesmo instante
empalideceu o belo rosto, e de seus olhos
desapareceu o brilho que rivalizava com o sol297.
296
A questão do mal enquanto categoria merece, neste ponto, atenção: para os gregos antigos, não havia
um mal absoluto. A Moira, o destino, escolhia aleatoriamente os que haveriam de perecer ou triunfar.
Assim o é nas tragédias do período ático: elas são tragédias justamente por não haver vilões malvados
e culpados. Não há culpa, há meramente a tragédia de existir e estar à mercê das Parcas, que tecem,
medem e cortam o fio da humana existência. Desde o início do processo de dissolução da comunidade
primitiva, porém, a morte passou cada vez mais a ser vista como a experiência de máxima dor, já que
a dissolução da consciência individual não encontrava mais conforto na continuidade da existência
comunitária. Uma serpente aparece aqui como o vetor da morte prematura e sem significado algum da
jovem ninfa Eurídice. Mas a serpente também é um ser natural, ainda que, aos nossos olhos, possua
reminiscências bíblicas. Ela cumpre sua natureza de picar quem pisa sobre ela, não tem mérito nem
culpa. Na teoria neoplatonista do mal de Sto. Agostinho, o mal não existe, ele não passa de uma
diminuição do infinito amor de Deus, que perpassa todas as coisas. O homem é que sente e vivencia
essa diminuição como algo real. Mas, se Sto. Agostinho viveu na Idade Média, Baruch Espinoza, em
pleno século XVII, ainda vai defender, na primeira parte da sua Ética, a relatividade do mal.
Argumentando quase como um sofista grego, Espinoza explica como surgiu o humano preconceito de
que existam bem e mal no mundo: é a sua condição humana que faz como que ele vivencie as coisas
desta forma.
297
A graça de Apolo resplandece no rosto dos seus prediletos; a morte faz com que se apague o brilho
do deus.
PASTORE (I)
Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele!
ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro!
PASTOR I
Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel!
Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro!
PASTORE (II)
A l’amara novella
rassembra l’infelice un muto sasso,
che per troppo dolor non può dolersi.
PASTOR II
Depois desta amarga notícia,
o infeliz parece uma pedra muda
que, de tanta dor, não consegue lamentar-se.
PASTORE (I)
Ahi, ben avrebbe un cor di tigre o d’orsa
chi non sentisse del tuo mal pietate.
Privo d’ogni tuo ben, misero amante.
PASTOR I
Ai, só se tiver um coração de tigre ou de urso
para não sentir pena do teu mal.
Mísero amante, privado de toda sua felicidade.
ORFEO
Tu se’ morta, mia vita, ed io respiro?
tu se’, tu se’ pur ita
per mai più non tornare, ed io rimango?
298
Para Orfeu, Eurídice só vive enquanto vive no mundo junto com ele. A continuação da existência em
uma dimensão do além, nas trevas, não conta, não é consolo algum. A morte, aqui, é equivalente à
aniquilação. Agnes Heller aponta que, já no Estoicismo e no Epicurismo antigo, o problema da
inevitabilidade da morte do indivíduo tornou-se um problema central. Eis o início da morte dolorosa:
enquanto o indivíduo continuava a viver na comunidade, essa dor não foi sentida. No processo de
desagregação da comunidade primitiva, não há um sentimento de pertença nem de continuação da vida
no todo, e a morte é cada vez mais sentida como um castigo e um sofrimento. Porém, mesmo na
comunidade intacta, a morte dos outros era sentida, pois era algo que influía no significado da vida de
quem ficava. Uma morte prematura, como a de Eurídice, tornava impossível viver inteiramente a vida,
uma morte sem sentido significava a conclusão de uma vida sem sentido (HELLER, 90).
299
O desespero de Orfeu parece não se coadunar com a crença cristã de uma vida mais perfeita após a
morte, na companhia dos santos e anjos e em bem-aventurança. Observem-se aqui sinais de um certo
desvanecimento de dogmas cristãos muito centrais da doutrina. O processo de substituição, no imaginário
popular, do céu dos bem-aventurados por um além-túmulo calcado na mitologia clássica, principiou
com as reflexões sobre um texto clássico, o chamado “Sonho de Cipião”, do Livro VI da República de
Cícero. Ali, a descrição de um céu pagão, povoado de filósofos e heróis começou a substituir o paraíso
do cristianismo. O humanista Giovanni Pontano descreve em uma de suas obras como o amigo Sanazzaro
recebe a visita de um morto conhecido seu. Pergunta-lhe se é verdade que são terríveis as penas do
Inferno. Depois de longo silêncio, aquele responde: “O que posso dizer-te e afirmar é que nós, os
apartados da vida terrena, carregamos dentro de nós o mais intenso desejo de retornar a ela” (ver
BURKHARDT, 485).
300
Não apenas o amor move o intento de Orfeu, de ir ao Hades atrás da sua consorte. A categoria da
lealdade, um valor importado da Idade Média, compromete-o para a vida e para a morte com o destino
de Eurídice. No Renascimento, esta recebe ênfase máxima, como lemos em Heller (p. 239-40): a
lealdade era sempre incondicional, e “só podia conduzir a um conflito no caso de um choque entre duas
exigências de lealdade igualmente vinculativas”.
301
Striggio escreve aqui um eco para as linhas finais do Inferno de Dante. Depois de visitarem o
Inferno, Dante e Virgílio saem em direção ao Purgatório e ao Céu, para “rever as estrelas”. No Inferno,
na morte eterna, não há estrelas, símbolo da esperança: “Salimmo su, el primo e io secondo / tanto
ch’i’ vidi de le cose belle / che porta ‘l ciel, per un pertugio tondo. / E quindi uscimmo a riveder le
stelle” (DANTE: XXXIV, 136-9).
MESSAGGIERA
Ma io ch’in questa lingua
ho portato il coltello
ch’ha svenata d’Orfeo l’anima amante,
odiosa a i Pastori et a le Ninfe,
odiosa a me stessa, ove m’ascondo?
Nottola infausta, il sole
fuggirò sempre e in solitario speco
menerò vita al mio dolor conforme.
302
Como observa Whenham (65), essas estrofes não são o lamento de Orfeu por Eurídice; este virá
ainda, depois de perdê-la pela segunda vez, no Ato V. Aqui, Orfeu junta toda a determinação de que é
capaz e jura ou resgatá-la ou com ela ficar “na companhia da morte”.
303
Aqui, mais uma vez o coro assume o papel de comentador, resumindo o ensinamento do quadro
apresentado. A exortação é para que o homem não confie nas coisas passageiras deste mundo, riquezas,
amores. Tudo passa. Só as coisas perenes dão satisfação perene, e essas coisas não estão ao alcance
daquele que se ilude com as aparências. Da mesma forma que a acédia é um pecado, a alegria exagerada
também deve ser combatida – a ataraxia é a opção do sábio.
PASTORI
Chi ne consola, ahi lassi?
O pur chi ne concede
negl’occhi un vivo fonte
da poter lagrimar come conviensi
in questo mesto giorno,
quanto più lieto già, tant’or più mesto?
PASTORES
Quem nos consolará, infelizes de nós?
Ou então, quem nos fará brotar
nos olhos uma fonte viva,
para que possamos chorar como convém
neste dia infeliz,
que tão feliz já era, e tanto mais triste agora é?306
304
Em poucas linhas, Striggio consegue esboçar uma personalidade própria para a ninfa Silvia. Ela
sofre por ser portadora da nova, encontra-se dividida entre a urgência da notícia que trouxe e o efeito
que ela terá sobre Orfeu e sobre ela mesma, já que passará a ser “odiada por ninfas e pastores”.
305
A Moira, o destino, fez com que a Mensageira ferisse o ânimo do filho de Apolo. Para expiar o
episódio, ela se retirará do convívio solar, passando a viver como as aves da noite.
306
Da mesma forma que Orfeu, os pastores também se alegravam desmedidamente – eles desrespeitaram
a justa medida, o mesotes, o meio-termo propugnado por Aristóteles na sua Ética. Em consequência
disso, tanto mais profundo será o seu pesar.
PASTORI
Ma dove, ah, dove or sono
de la misera Ninfa
le belle e fredde membra,
che per suo degno albergo
quella bell’alma elesse
ch’oggi è partita in su ‘l fiorir de’ giorni?
PASTORES
Mas onde, ai, onde estão agora
os belos e frios membros
da mísera ninfa?
Onde foi buscar morada digna309
aquela bela alma
que hoje partiu, na flor dos seus dias?
307
Orfeu e Eurídice são benquistos por Apolo; nessa condição, iluminam o bosque, as campinas e os
que com eles convivem. Os amados do deus Sol são uma extensão da sua luminosidade.
308
Assim frágeis são matéria e ânimo, quando não guiados pelo intelecto: a matéria perece, como
Eurídice picada pela víbora. E o ânimo se abate, como Orfeu, que se alegrava sem meditar na efemeridade
das coisas.
309
O fato de os pastores perguntarem pela morada da alma de Eurídice é reminiscência da cultura
órfica, quando as almas desencarnadas passam a habitar os Campos Elíseos ou o Hades. A transposição
para o âmbito do Renascimento cristão é direta, quando as almas vão para o Inferno, para o Purgatório
ou diretamente ao Paraíso.
PASTORI
Ma qual funebre pompa
degna fia d’Euridice?
Portino il gran feretro
le Grazie in veste nera,
e con le lor chiome sparse
le Muse sconsolate
l’accompagnin cantando
con flebil voce i suoi passati pregi.
310
O cumprimento dos rituais fúnebres era condição indispensável para que o morto pudesse viajar na
barca de Caronte e chegar ao seu destino, no mundo das sombras. Daí o terrível anátema em que
consistia a proibição do tirano Creonte, na Antígona de Sófocles, de deixar insepultos, sem que se
cumprissem as “cerimônias prescritas” (Antígona, 247), os cadáveres dos traidores de Tebas.
311
A imagem das Graças carregando o féretro atesta o encerramento do ciclo vital. Na versão neoplatônica
renascentista, as três Graças Voluptas, Pulchritudo e Castitas (Luxúria, Beleza e Castidade) são uma
manifestação trinitária da deusa Afrodite. Pico della Mirandola escreve “L’unità di Venere si manifesta
nella trinità delle Grazie”: “A unidade de Vênus se manifesta na trindade das Graças” (apud WIND).
312
O fato de as Graças se apresentarem em trajes negros também é relevante. Nos Fasti de Ovídio
lemos que as Graças é que são responsáveis pela chegada das cores, na forma das flores que brotam na
primavera. “Fino allora la terra era stata di un solo colore”: “Até então, a terra havia sido de uma só
cor”. Como representantes tripartidas da deusa Afrodite, as Graças agem junto à mãe Terra, Gea, para
fecundar, na primavera, o mundo adormecido. Ao se apresentarem enlutadas e vestidas de preto, é
iminente que o ciclo da vida corre perigo de se interromper.
313
São numerosos os exemplos em que Striggio quer deixar claro que a Natureza participa da sorte dos
mortais, dividindo com eles as emoções. Imagens como a chuva para o pranto das nuvens ou uma
tormenta cruel que apagou a vida da Eurídice e a alegria de Orfeu são características do sincretismo
Neoplatônico renascentista, em que a natureza não aparece mais excluída das virtudes que levam ao
conhecimento.
314
Depois de afirmar que a chama da vida se apagou, Striggio volta atrás e descreve a tumba de Eurídice
como uma lâmpada esmaecida e funesta. Para os vivos, o sol verdadeiro; para os mortos, apenas um
reflexo baço – na religião órfica, a alma não morre, fica à espera de uma nova encarnação, no ciclo de
existências. Porém, o Orfismo, enquanto religião soteriológica, isto é, que visava a salvação da parcela
imortal do homem, que é a alma, buscava uma libertação a mais rápida possível dos sofrimentos do
mundo.
ATTO III
ORFEO
Scorto da te, mio nume,
Speranza unico bene
de gli afflitti mortali, omai son giunto
a questi regni tenebrosi e mesti
ove raggio di sol giammai non giunse.
Tu, mia compagna e duce,
in così strane e sconosciute vie
reggesti il passo debile e tremante,
ond’oggi ancora spero
di riveder quelle beate luci
che sol a gli occhi miei portano il giorno.
TERCEIRO ATO315
ORFEU
Escoltado316 por ti, minha deusa
315
O Ato III assinala o clímax da obra. Em correspondência com a 3ª estrofe do Prólogo, que alude à
harmonia que rege o Universo, esse ato vai assinalar a exibição máxima do poder de Orfeu. Muito além
do drama terrestre, trava-se aqui uma batalha pelo império da Harmonia. O poder da música entra em
disputa contra as leis que regem o Hades. O Ato III está construído por Striggio a partir de uma série de
“affetti”, de forma a ressaltar o seu cerne, que é a ária Possente spirto, onde Orfeu lança os seus
poderes mágicos para que ajam no mundo dos mortos. São sete (o número de Apolo) os degraus de
“affetti” atravessados, que podem ser assim assinalados: 1) Esperança; => 2) Desespero; => 3)
Insensibilidade; => 4) Poder mágico; 5) Insensibilidade; 6) Desespero; 7) Esperança. Toda a construção
converge para a demonstração do poder mágico de Orfeu, na verdade uma manifestação da divindade
de Apolo.
316
O primeiro degrau é dedicado ao afeto esperança. Nesse momento, depois de um número instrumental
escrito por Monteverdi, a Sinfonia III, Orfeu se apresenta chegando ao limiar do mundo dos mortos, e
acompanhado pela deusa Esperança. Entenda-se aqui “sinfonia” não no sentido que recebeu no período
clássico vienense, de obra musical com dois temas contrastantes, desenvolvimento, modulações e
conclusão, mas na acepção originária, de conjunto de sons que combiam (bem), portanto uma peça
instrumental eufônica e harmoniosa.
SPERANZA
Ecco l’atra palude, ecco il nocchiero
che trae gli spirti ignudi a l’altra sponda,
dov’ha Pluton de l’ombre il vasto impero.
Oltra quel nero stagno, oltra quel fiume,
in quei campi di pianto e di dolore,
destin crudele ogni tuo ben t’asconde.
Or d’uopo è d’un gran core e d’un bel canto:
io fin qui t’ho condotto, or più non lice
teco venir, ch’amara legge il vieta,
legge scritta co ‘l ferro in duro sasso
de l’ima reggia in su l’orribil soglia,
che in queste note il fiero senso esprime:
«Lasciate ogni speranza o voi ch’entrate.»
Dunque, se stabilito hai pur nel core
di porre il piè ne la città dolente,
da te me n’ fuggo e torno
a l’usato soggiorno.
317
Na Iconologia de Ripa (I, 353), a Esperança é descrita da seguinte forma: “Mulher vestida de verde
que leva um lírio na mão. A flor simboliza a Esperança, pois vem a ser como a aspiração a algum bem,
como, ao contrário, o temor consiste em uma comoção do ânimo por suspeitar de algum mal. Assim,
nós, vendo as flores, costumamos esperar pelos frutos, os quais, passados alguns dias, nos concede a
natureza, se não defraudar nossa esperança. Leve-se em consideração, além disso, que, se todas as
flores alentam a esperança em nossos corações, ainda mais o faz o lírio, pois é a flor mais suave de
todas [...]”.
318
Variando os versos de Dante, Striggio descreve Orfeu como alguém para o qual as únicas estrelas –
os únicos luzeiros – que indicam estar saindo do Inferno são os olhos da sua amada Eurídice. Dante
saúda as estrelas ao, efetivamente, sair do Inferno, e as estrelas indicam-lhe estar de volta ao universo
beato criado por Deus. Já Orfeu está prestes a penetrar no Hades, e as estrelas – os luzeiros – a que se
refere são os olhos de Eurídice.
319
Quando Striggio fala de pântano escuro, está se referindo a apenas um rio infernal, o Aqueronte, que,
possivelmente, é o único rio original que os mortos deviam cruzar. Na Grécia clássica, dependendo da
época, havia menção a um número diverso de rios a serem atravessados pelas almas. Como assinala
Brandão (I, 364), os quatro rios infernais Estige, Cócito, Aqueronte e Piriflegetonte já estão presentes
em Homero: “Circe, quem nos piloteará nesse caminho? [...] Odisseu, [...] não te preocupes com piloto.
[...] Teus próprios pés te levarão ao negro paço de Hades. Lá o Rio de Fogo (Piriflegetonte) e o Cocito,
um braço das águas do Estige, deságuam no Aqueronte” (Odisséia, X, 501-514). Porém, até o séc. V
a.C. com Ésquilo, não exercem influência sobre o imaginário helênico acerca do Hades (ver a descrição
de Virgílio, na Eneida, VI, 438-9).
320
O barqueiro é Caronte, um espírito do mundo infernal cuja sua função era transportar as almas que
tivessem recebido sepultura até a outra margem, ao Hades propriamente dito. Isto mediante o pagamento
de uma moeda, ou óbolo. Segundo Brandão (I, 364), a pouca freqüência com que se fala na travessia
dos rios infernais relaciona-se, provavelmente, com a ausência do “barqueiro do inferno”. Caronte e
sua barca aparecem pela primeira vez na segunda metade do séc. V a.C., e o óbolo com que se pagava
a travessia é citado pela primeira vez na comédia As rãs de Aristófanes.
321
Ao que parece (ver BRANDÃO, I, 364), Caronte não rema, ele apenas dirige a barca. Quem rema
são as almas.
322
Plutão, “o rico”, era um duplo eufemístico de Hades, o deus dos mortos, que designa tanto os infernos
quanto seu rei. Plutão significa “o rico”, tanto com referência a seus incontáveis hóspedes, quanto às
intermináveis riquezas que se encontram no seio da terra. Filho de Cronos e de Réia, foi devorado pelo
seu pai Cronos junto com os seus irmãos, excetuando-se apenas Zeus. Salvo por este último, participou
da luta contra os Titãs. Terminados os combates, o cosmos foi dividido em três grandes impérios,
cabendo a Zeus o Olimpo, a Poseidon os mares e a Hades, ou Plutão, o imenso império situado nas
entranhas da terra.
323
O reino de Plutão é tão grande que as almas e as divindades que o habitavam cobriam uma porção do
mundo tão vasta quanto as outras duas em que residiam, respectivamente, os vivos e os deuses imortais
(Cf. BRANDÃO, I, 363). Em Hesíodo: “Vasto abismo, nem ao termo de um ano atingiria o solo quem
por suas portas entrasse...” (Teogonia, 740-1).
324
O Hades encontra-se abaixo da superfície da terra, mas em uma grande profundidade. Hesíodo, na
Teogonia (721-5) dá uma descrição da distância em que se localiza o Tártaro: “Nove noites e dias uma
bigorna de bronze cai do céu e só no décimo atinge a terra e, caindo da terra, o Tártaro nevoento. E
nove noites e dias uma bigorna de bronze cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro”.
325
Para os órficos, isto é, os gregos que festejavam os mistérios de Orfeu, o Hades foi subdividido em
três regiões diferentes entre si: Tártaro era a mais profunda, abissal e trevosa; Érebo a do meio e os
Campos Elíseos a mais alta e nobre. Como assinala Brandão (I, 375), os dois níveis mais profundos
eram destinados aos castigos que se infringiam às almas, que lá nas profundezas purgavam suas penas.
Os Campos Elíseos eram destinados àqueles que, tendo passado já pelos horrores dos outros dois
estágios, aguardavam o retorno.
326
Os castigos para as almas faltosas são descritos por Platão: “Mergulhados no lodaçal imundo, ser-
lhes-á infligido um suplício apropriado à poluição moral” (República, I, 363d); e por Aristófanes:
“Verás, depois, um lodaçal imundo e submersos nele todos os que faltaram ao dever da hospitalidade
[...] os que espancaram a própria mãe, os que esbofetearam o próprio pai ou proferiram um falso
juramento” (As rãs, 145ss) e pelas pinturas de Polignoto (V a.C.) em Delfos: um parricida estrangulado
pelo próprio pai, um ladrão sacrílego obrigado a tomar veneno e um demônio sentado sobre um abutre
roendo a carne dos mortos (BRANDÃO, I, 378).
ORFEO
Dove, ah, dove te n’ vai,
unico del mio cor dolce conforto?
Poiché non lunge omai
del mio lungo cammin si scopre il porto,
perché ti parti e m’abbandoni, ahi lasso,
su ‘l periglioso passo?
Qual bene or più m’avanza
se fuggi tu, dolcissima Speranza?
327
O grande coração a que se refere a Esperança é a categoria da coragem, um conceito grego clássico,
que nasce do enfrentamento com as adversidades. Orfeu, para suplantar a máxima injúria que representa
a morte prematura e sem sentido da esposa amada, terá que reunir também o máximo de coragem. Já no
estoicismo e no epicurismo helenísticos, a coragem é tudo o que se opõe à injustiça – às tiranias – à
doença, a pobreza e o desamparo (ver HELLER, 244). Na época clássica, porém, Aristóteles, com a
sua norma do mesotes, o meio-termo, não teria considerado Orfeu corajoso, e sim um louco. Corajoso
é apenas aquele que enfrenta o que sabe que tem condições de vencer. É um louco quem enfrenta
desarmado um leão e também quem vai tentar dobrar os desígnios do Hades, as leis que separam os
vivos dos mortos, sem estar para isso armado – Orfeu não estava, pois vimos que suas emoções o
traíram no momento decisivo. A coragem vinha já da Idade Média enquanto categoria essencial para o
espírito da cavalaria, e instalou-se no imaginário popular – mesmo dos que não eram cavaleiros –, pois
adequava-se muito à situação do homem italiano no tempo de Striggio e Monteverdi (e mesmo antes,
desde Maquiavel), na condição de fortaleza contra as injustiças do mundo.
328
O belo canto confirmará Orfeu como digno filho de Apolo. Esse consiste no emprego de todas as
técnicas de que dispõe a música, tanto a antiga quanto a moderna. Só juntas essas três maneiras de
cantar (o cantar parsaggiato, o cantar sodo e o cantar d’affetto) comporão a grande arte de sedução
pela música que é o dom de Orfeu. Com essa, como diz-lhe a Esperança, ele talvez terá condições de
convencer Caronte. Striggio concede, aqui, a chance para Monteverdi promover a grande síntese dos
estilos, transcendendo a polêmica do tratamento da dissonância.
329
Em Hesíodo: “Aí resplendentes portas e umbral de bronze inabalável...” (Teogonia, 811-2).
330
Mais uma citação de Dante, a inscrição na porta do Inferno: Divina Comédia, Inferno, III, 51-3.
331
A Esperança não pode entrar na cidade dos mortos. Orfeu, que ainda vive, quer retê-la como
companheira, mas não lhe é permitido. Ele tem que entrar sem esperança no Hades. Há um paralelo
com Virgílio, que, na Divina Comédia, acompanha Dante ao Inferno e ao Purgatório, mas não pode ser
seu guia no Paraíso, pois é um romano, portanto um pagão não batizado.
CARONTE
O tu ch’innanzi morte a queste rive
temerato te n’ vieni, arresta i passi;
solcar quest’onde ad uom mortal non dassi,
né può coi morti albergo aver chi vive.
CARONTE334
Ó tu, atrevido, que, antes de morrer,
destas margens te aproximas, detém teus passos;
a nenhum homem mortal é dado sulcar estas ondas335,
e nem pode quem vive habitar entre os mortos.
332
O Orfeu de Striggio desespera cedo demais, e não parece dar fé à análise de Maquiavel sobre a
esperança. No Livro II dos Discorsi, Maquiavel expressa a proporção que deve formar a aliança de
uma compreensão objetiva da realidade do mundo e a esperança em uma virada do destino: “Afirmo
mais uma vez como uma verdade de que toda a história é testemunha que os homens podem apoiar o se
destino mas não se lhe podem opor; que podem atuar de acordo com os ditames deste mas não os
podem infringir. Nunca devem, porém, desistir, porque há sempre esperança, embora não conheçam o
fim e se desloquem em direção a este ao longo de caminhos que se cruzam e ainda não estão explorados;
e dado que existe a esperança, não devem desesperar, seja o que for que o destino lhes traga ou em que
situações se encontrem” (MACHIAVELLI, II, 29).
333
O segundo afeto proposto por Striggio para o Ato III: o desespero, quando a Esperança abandona
Orfeu.
334
Caronte é o portador do próximo afeto, a insensibilidade. Dramaturgicamente, a aparição deste
personagem aqui confirma a linha dantesca que Striggio vinha seguindo em seu roteiro e interpõe um
elemento de oposição à entrada de Orfeu no Hades.
335
Os únicos homens vivos que conseguiram andar na barca de Caronte foram o troiano Enéias, que
trouxe-lhe um ramo de ouro colhido da árvore sagrada de Core (Proserpina), e o semideus Hércules,
que o forçou a transportá-lo à força de golpes de sua clava. Virgílio também alude à proibição de
Caronte transportar quem não tenha recebido as unções fúnebres em sua barca: “Toda esta gente que
vês ficou desassistida e insepulta. Aquele barqueiro é Caronte. Os que ele leva, são os que receberam
sepultura. Não é dado transportá-los destas horríveis margens e através destas enlouquecidas correntes,
antes que seus ossos tenham conhecido o descanso de uma morada” (Eneida VI, 326).
336
Cérbero é o cão guardião da entrada do Hades, com três cabeças, cauda de dragão e pescoço e corpo
eriçado de serpentes. Postado no portão, não permitia que nenhum vivo entrasse e, principalmente, que
os mortos saíssem. Em Hesíodo: “Terrível cão guarda-lhe a frente não piedoso, tem maligna arte: aos
que entram faz festa com o rabo e ambas as orelhas, sair de novo não deixa: à espreita devora que
surpreende a sair das portas” (Teogonia, 769-773). Cérbero (Cf. BRANDÃO, 202) representa o terror
da morte, simboliza o próprio Hades e o inferno interior de cada um. Observe-se que Hércules, em seu
12º trabalho, venceu-o usando apenas a força dos seus braços (Plutão, naquela ocasião, concordou que
o levasse se, para o vencer, não usasse nenhuma arma) e Orfeu, no mito original, adormeceu-o com o
som da sua lira mágica. Tal parece confirmar a interpretação neoplatônica que via em Cérbero a
encarnação do demônio interior de cada homem. Para vencê-lo, cada um só pode contar consigo mesmo.
337
Alusão a Hércules, que, para executar o seu 12º e último trabalho, raptou Cérbero no Hades para
levá-lo ao rei Euristeu.
338
O verso reporta-se à tentativa de Pirítoo e Teseu, que penetraram no Hades para tentar raptar
Proserpina, a esposa de Plutão. Teseu, graças à amizade de Hércules, conseguiu escapar, mas Pirítoo lá
ficou, eternamente sentado em uma cadeira – quem desfruta da hospitalidade no Hades nunca mais
pode deixá-lo.
339
Ainda que tenha sido obrigado por Hércules a transportá-lo à força, Caronte não escapou ao castigo de
Plutão, tendo que passar um ano inteiro acorrentado, de onde sua desconfiança e ira para com todo vivente
que mais uma vez tente passar para a outra margem. É interessante, aqui, comparar o trecho com a Eneida
VI, em que Caronte interpela Enéias, quando este desceu ao Hades: “Quem quer que sejas, tu que, armado,
a nossas correntes te diriges, fala! Diz, daí de onde estás, a que vens, e teu passo detém. Esta é a morada das
sombras, do sonho, da letárgica noite. É proibido transportar sobre a quilha estígia os corpos viventes. Não
saí eu sem castigo por ter acolhido nesta lagoa, quando aqui vieram, Alcides [Hércules], Teseu e Pirítoo,
ainda que fossem filhos de deuses e invictos” (Eneida VI, 387).
ORFEU340
Poderoso espírito341 e terrível divindade,
sem a qual, as almas libertas do corpo
em vão presumem passar à outra margem:
eu não estou vivo não, pois, desde que perdeu a vida
minha querida esposa, o coração já não o tenho comigo342;
e, sem coração, como pode ser que eu ainda viva?
340
Antes de Orfeu começar a cantar, o ambiente é preparado pela aura musical de Apolo: a orquestra
toca um número puramente instrumental, a Sinfonia IV, que reaparecerá sempre que o poder do deus
Sol se manifestar através da lira de Orfeu (na realidade, de Apolo), e, também, quando da descida do
deus em uma nuvem, no início do Ato V. Monteverdi confiou-a aos instrumentos de arco com
acompanhamento de um organo di legno, um órgão positivo com registro de flautas de madeira. Segundo
as instruções do compositor, é para ser tocada muito suavemente: “Questa Sinfo[nia] si sonò pian
piano [...].” (apud Whenham, 183).
341
Os versos que Orfeu começa a cantar agora constituem o centro de todo o poema de Striggio.
Monteverdi, consequentemente, cercou-o de números instrumentais e de acompanhamento que
ressaltaram ainda mais seu caráter simbólico como centro simétrico da organização dos afetos no Ato
III, enquanto expressão do poder mágico de Orfeu e, por extensão, da ópera inteira. Para convencer
Caronte, Orfeu terá que conjurar todos os poderes da música – esta será a sua maior prova. Aqui, a
música de Monteverdi sintetiza o que tinha de técnica de canto ao dispor em sua época.
342
Para argumentar com Caronte, Orfeu faz eco, aqui, aos versos proferidos por Eurídice na festa do
Himeneu, “meu coração já não o guardo comigo, está sempre contigo, em companhia do Amor”: ele
também não tem consigo o coração, diz, pois Eurídice é que era o seu coração, e, tendo partido, ele é
um homem que não pode ser considerado vivo. Portanto, tem direito a ser transportado à outra margem.
CARONTE
Ben mi lusinga alquanto
dilettandomi il core,
sconsolato cantore,
il tuo pianto e ‘l tuo canto.
343
Virgílio descreve, na Eneida, como o Aqueronte vomita água turva misturada com areia: “Hinc via
Tartarei quae fert Acherontis ad undas. / Turbidas hinc caeno, vastaque voragine gurges / Aestuat,
atque omnem Cocyti eructat harenam”: “Daqui começa o caminho que leva às ondas do tartáreo
Aqueronte. / Aqui ferve um escuro turbilhão de lodaçal e impetuoso redemoinho, / e vomita toda a areia
do Cocito” (Eneida VI).
344
A cítara dourada a que Striggio alude é, por extensão, metáfora de todos os instrumentos musicais.
Assim também o entendeu Monteverdi, ao musicar estes versos: nas estrofes 1 e 4, o canto de Orfeu é
acompanhado por 2 violinos (a lira da braccia renascentista, muito comum na iconografia dos séculos
XVI e XVII); na estrofe 2, por 2 cornetti, e na estrofe 3 pela harpa (também própria de Orfeu, por ser
aparentada com a cítara e a lira gregas, enquanto instrumento de cordas suspensas pinçadas). Como
observa Whenham (p. 68 e ss.), os violinos e a harpa podem ser relacionados com a iconografia de
Orfeu e sua lira. Já os cornetti não. Seria possível, contudo, ver a lira de Orfeu no chitarrone que
acompanha todos esses versos, sendo que os instrumentos obligatos, ou solistas (os violinos, os cornetti
e a harpa), representando as três classes principais de instrumentos do Renascimento tardio (arcos,
sopros e cordas pinçadas) sugeririam que Orfeu faz um chamamento a todas as forças da música para
que estejam ao seu lado, neste momento. Nesta última stanza, os instrumentos de arco sustentam com
notas longas o canto, como que formando um halo em torno de Orfeu.
ORFEO
Ahi, sventurato amante,
sperar dunque non lice
ch’odan miei prieghi i cittadin d’Averno?
Onde qual ombra errante
d’insepolto cadavero infelice,
privo sarò del cielo e de l’inferno?
ORFEU
Ai de mim, amante infeliz,
não me é mais permitido esperar
que os cidadãos do Averno346 ouçam minhas súplicas?
Onde ficarei, qual sombra errante
de infeliz cadáver insepulto347,
privado do céu e do inferno?348
345
Quarta etapa do ordenamento dos afetos no Ato III: retorno à insensibilidade de Caronte, que considera
a piedade indigna de si.
346
O Averno, lago localizado na cratera de um vulcão extinto, na Itália, era uma entrada mítica alternativa
para o Hades. O termo acabou por denominar o próprio mundo dos mortos com seus habitantes. Seu
nome, Averno, significa “sem pássaros”, pois sobre ele os pássaros não voam, em consequência dos
gases tóxicos que exala. Na época de Homero, praticamente não se encontra menção a entradas desse
tipo. Homero menciona meramente a existência de “tétricos caminhos” (Odisséia XXIV, 10). Mais
tarde, a mitologia cria entradas misteriosas através de lagos, cavernas e florestas, através das quais os
deuses conseguem descer ao Hades, como Hércules, para buscar o cão Cérbero.
347
Somente os mortos a quem se prestaram as honras fúnebres podem viajar na barca de Caronte.
Orfeu, nas suas próprias palavras, não vive mais, pois não tem mais seu coração consigo, mas não é
reconhecido como morto por Caronte, que se recusa a transportá-lo. Dessa forma, está condenado a
errar pelo limbo, sem estar entre os vivos e sem ser admitido no Hades.
348
Quinta etapa – já em movimento retrógrado – da sequência dos afetos: novamente o desespero de
Orfeu, que não esperava uma negativa de Caronte.
349
A exclamação “Devolvam-me o meu bem, deuses do Tártaro” vai se repetir adiante, como que
emoldurando a vitória obtida por meio do sono sobre Caronte entre o momento de maior desespero e o
de maior esperança do herói. O “Devolvam-me o meu bem [...]” faz eco e responde à lei escrita na
porta do Hades: “Vós que aqui entrais, deixai toda esperança”; ambas destacadas por Monteverdi
através de uma repetição imediata da frase, nas duas únicas exceções deste tipo de tratamento em toda
a ópera. Orfeu não aceita os limites impostos pelos deuses, ele exige de volta a sua metade humana, sua
esposa.
350
O Tártaro era a região mais profunda do mundo dos mortos, na época de Homero ainda indiferenciada,
“Tártaro escuro, voragem profunda de soleira de bronze e portas de ferro” (Ilíada, VIII, 5-29, apud
BRANDÃO, II, 402). Mais tarde, quando o mundo subterrâneo foi tripartido, o Tártaro se converteu no
lugar de suplício permanente e eterno dos grandes criminosos mortais e imortais (ver NR 303).
351
Depois de tentar com o canto, aparentemente em vão, Orfeu experimenta comover Caronte com o
som da sua lira, desta feita com sucesso, daí a constatação “Ele dorme”, logo no início do verso: a
Sinfonia IV novamente anuncia a presença de Apolo e seus poderes divinos (ver NR 317).
352
No verbete Piedade, lemos em Ripa: “Jovem de tez muito branca e de aspecto muito belo, com olhos
muito grandes e nariz aquilino, com asas nas costas, vestida de vermelho e com uma chama acima da
cabeça. Terá a mão esquerda sobre o coração, enquanto que, com a direita, vai esvaziando uma grande
cornucópia cheia de coisas úteis para a vida humana. [...] Veste-se de vermelho por ser companheira e
irmã da caridade, com a qual lhe convém esta cor (ver Caridade). É representada com asas porque,
entre todas as virtudes, esta principalmente pode-se dizer que seja a que voa, intercedendo prontamente
ante Deus e a pátria [...]. A chama que sobre a cabeça lhe arde simboliza o entendimento da mente com
o amor de Deus mediante o exercício da Piedade, que sempre aspira, de maneira natural, às coisas do
céu” (RIPA, II, 207).
353
Sétima e última etapa: esperança – o Ato III vai se encerrar presidido pelo mesmo afeto com que
havia iniciado.
354
Na Iconologia de Ripa, a Audácia é representada como “uma mulher vestida de vermelho e verde,
com a fronte acesa, que aparece tentando derrubar uma grande coluna de mármore sobre a qual se
apóia um edifício. A Audácia é contrária ao apequenamento e é vício daqueles que, menosprezando as
dificuldades que acompanham as grandes ações, e superestimando as forças de que dispõe, empenham-
se em levá-las a cabo com toda a diligência. Por isso, representa-se pela figura de uma jovem que tenta
com todas as suas forças jogar por terra uma coluna bem fundada. A roupa verde e vermelha simboliza
a Audácia, da mesma forma que sua fronte acesa, tudo isso de acordo com o que diz Aristóteles no
capítulo IX de sua Phisiognomia” (ver RIPA, I, 117-8).
355
Na Iconologia de Ripa, no verbete Ocasião consta: “Fídias, antigo e nobilíssimo escultor, idealizou
a Ocasião na imagem de uma mulher nua com um véu trançado atravessado, que lhe cobria as partes
pudendas, tendo soltos os cabelos e colocados sobre a fronte, de modo que, na nuca, aparecia toda
calva e descoberta. Tinha, ademais, asas nos pés, e ia equilibrando-se sobre uma roda e tendo, na
destra, uma adaga. Os cabelos postos para a frente nos avisam, sem dúvida, que a ocasião deve ser
esperada com prevenção, não adiantando querer segui-la quando já nos deu as costas, pois passa
velozmente, com os pés alados e equilibrando-se sobre uma roda que não pára nunca de girar. Leva
uma adaga na mão porque deve estar preparada para cortar e desfaz qualquer impedimento que encontre”
(RIPA, II, 142).
SPIRITI INFERNALI
Nulla impresa per uom si tenta in vano,
né contra lui più sa natura armarse,
e de l’instabil piano
arò gli ondosi campi, e ‘l seme sparse
di sue fatiche, ond’aurea messe accolse.
Quinci perché memoria
vivesse di sua gloria,
la fama a dir di lui sua lingua sciolse,
che pose freno al mar con fragil legno,
che sprezzò d’austro e d’aquilon lo sdegno.
ESPÍRITOS INFERNAIS357
Não há empreitada que o homem358 arrisque em vão,
nem contra ele pode a natureza armar-se.
Da terra instável359, fez, arando,
os campos ondulados, e espalhou as sementes
do seu trabalho, do qual recebe dourada colheita360.
Para que a lembrança
da sua glória viva sempre,
e a saga possa dele contar, sua lingua desprendeu-se361;
356
A repetição deste grito encerra as exigências de Orfeu aos deuses do Tártaro, e é sua resposta à lei
que proíbe esperança no Inferno. A vitória é do semideus, e os versos “Não há empreitada que o homem
arrisque em vão, nem contra ele pode a natureza armar-se”, cantado a seguir pelo coro, comentam sua
vitória e a entrada efetiva no Hades.
357
O coro dos espíritos, presumivelmente em cena, para recriar a visão de Dante, estava em silêncio até
aqui, mas assume agora o papel de comentador. Sua mensagem é em tom inequivocamente humanista,
com ecos do Discurso sobre a dignidade do homem de Pico della Mirandola: “Diz o criador a Adão:
coloquei-te no meio do mundo para que mais facilmente possas olhar à tua volta e ver tudo que te
cerca. Criei-te como um ser nem celestial nem terreno, nem mortal nem imortal apenas, para que sejas
tu a moldar e superar livremente a ti próprio. [...] Somente a ti foi dado crescer e desenvolver-se
conforme tua vontado: tens em ti os germes de toda espécie de vida”.
358
Entenda-se aqui o homem como o intelecto, o homem racional – contra ele, de nada adianta os
instintos, a Natureza, querer forçar passagem.
359
Não só a terra a ser arada é instável: todo o mundo físico é instável e passageiro, e o homem o doma
para moldá-lo de acordo com sua vontade. Esta dá forma ao cosmos a partir de ideias que o homem foi
buscar no mundo apenas acessível àqueles que estudam as coisas perenes.
360
A colheita é dourada não apenas pela cor do trigo, mas por ser produto do trabalho físico comandado
pelo intelecto, que é atributo de Apolo.
361
Consoante o Prólogo, o homem foi tocado pela Música – e pelas outras Musas, quer seja, inventou
a linguagem – e esta agora é que narra os feitos dos homens.
362
A imagem do homem em um barco, ou canoa, já está presente no Hino Homérico VII, o Hino a
Dioniso (estes hinos, a Batraquiomaquia, como se sabe, não são de Homero nem de sua época: foram
escritos dois a três séculos mais tarde), simbolizando a individuação do homem, protegido do mar do
inconsciente primitivo pelo casco do navio ou canoa. Graças à subjetividade, o homem cria ciência e
civilização, mas tem que abandonar a fusão primitiva com o mundo natural, o qual vê agora como algo
para ser domado e conquistado: “... venceu o mar [...] desprezando a ira dos ventos...”. No hino homérico,
os piratas atirados por Dioniso ao mar são levados pelos delfins para as profundezas, isto é, perdem
sua condição de sujeito ao mergulharem seu ego na força irresistível e regressora da Natureza. Odisseu
advertiu o mesmo perigo ao passar pelo rochedo das sereias, mas conseguiu controlar o desejo de
atirar-se ao mar por estar atado ao mastro do seu barco (ver Odisséia, XII, 143-200).
363
Ventos Sul e Norte. Muitos são os ventos que recebem nome, desde a Antigüidade, costume este
estimulado pelas grandes navegações a partir do século XV. Os principais, contudo, são aqueles que
sopram das quatro partes do mundo, e que remontam a Ovídio (Ver Ripa, II, 415). A divisão do mundo
em quatro partes corresponde à sua natureza física, formada por quatro elementos (fogo, água, terra e
ar) e traduz-se na figura geométrica do quadrado. Os ventos pertencem à estirpe dos titãs, e representam
forças indomáveis da Natureza. Os nomes dos quatro correspondentes aos pontos cardeais são: Euro
(Leste), Favonio (Oeste), Aquilão ou Bóreas (Norte) e Austro (Sul). Em Virgílio lemos: “Euro, em
direção à Aurora, toma o reino / que se opõe ao raio matutino./ Favonio rege a moradia do Ocaso,/
oposto ao rico albergue de Tritão. / Toma assento perto da fria e cruel Escitia / o horrível Bóreas
[Aquilão], nas Setentrionais./ E o Austro tem a terra que lhe é contrária,/ que de nuvens e chuva enche
os ares” (Metamorfoses, I).
364
Dédalo, arquiteto e inventor ateniense, preso no Labirinto pelo rei Minos, de Creta, fabricou para si
e para seu filho Ícaro pares de asas de ganso colados com cera, com os quais fugiram voando.
365
A referência é à recomendação de Dédalo ao seu filho, durante a fuga pelo ar, para que não voasse
muito alto, pois o sol derreteria a cera que une as penas, e nem baixo demais, porque a umidade
tornaria as penas muito pesadas. Ícaro, porém, desobedeceu a Dédalo e aproximou-se demais do sol,
que derreteu a cera que unia as penas das asas que vestia, provocando sua queda e morte no mar Egeu,
que passou a chamar-se mar de Ícaro (Ver Metamorfoses, VIII, 183-205).
366
Todo o trecho lembra uma refinada paráfrase do famoso Primeiro estásimo (Coro) da Antígona de
Sófocles, provavelmente a primeira expressão poética da capacidade humana de superar-se a si próprio
na busca de seus objetivos. É difícil crer que Striggio não tenha tido em mente estes versos, com os
elementos que utilizou – homem como maravilha do universo, mar espumante e ventos furiosos, os
arados que cultivam a terra, a captura das aves selvagens e a domesticação das feras: “De tantas
maravilhas, mais maravilhosa de todas é o homem. O espumante mar nos ímpetos dos ventos austrais
sulca, bramantes ondas fende, e cultiva a dos deuses mãe, a Terra imortal, incansável, revolvendo-a
ano após ano com arados movidos por força eqüina”. Na Estrofe 2, o tema é a invenção da linguagem
e das leis: “A voz, o pensar volátil e as urbanas leis das assembléias ele as ensinou a si mesmo...”. Só
na morte encontra ele seu limite: “Aparelhado, desaparelhado não acata nada do que lhe advém: só da
morte fuga não lhe acena” (SÓFOCLES, Antígona, p. 332-362).
PROSERPINA
Signor, quell’infelice
che per queste di morte ampie campagne
va chiamando Euridice,
ch’udito hai tu pur dianzi
così soavemente lamentarsi,
mess’ha tanta pietà dentro al mio core
ch’io torno un’altra volta a porger preghi
perch’il tuo nume al suo pregar si pieghi.
QUARTO ATO367
PROSÉRPINA368
Senhor, aquele infeliz
que por estes vastos campos da morte
vai chamando por Eurídice,
e que recém ouviste369
lamentar-se tão suavemente,
despertou tanta piedade em meu coração,
que uma vez mais venho a ti e peço
para que tua divindade se dobre ao seu suplicar.
367
O Ato IV, que assinala um retorno à esfera do espírito, traz a desobediência de Orfeu e a segunda
perda, agora definitiva, de Eurídice. Orfeu exibiu sem sucesso o máximo virtuosismo do seu canto para
Caronte e foi a lira dourada que fez com que o barqueiro caísse no sono. O semideus não pode esperar,
agora, que seu canto, que aparentemente fracassou, surta efeito justamente no poderoso senhor do
Hades. A solução, aponta Whenham (70-1), está na continuidade que Striggio planejou para a passagem
do Ato III para o IV. Tendo roubado a barca de Caronte e atravessado o rio, Orfeu entra imediatamente
no Hades, e as primeiras palavras de Proserpina deixam claro que o seu canto foi ouvido, sim, e que ele
surtiu efeito no coração daquela que é a senhora do mundo dos mortos. Ela, diferentemente de Caronte,
foi comovida à piedade.
368
Proserpina, em grego Perséfone, ou Core, era filha de Zeus com Deméter. Estando um dia a colher
flores no campo, a terra se abriu e Hades, que por ela estava apaixonado, raptou-a para o fundo da
terra. Sua mãe, Deméter, abdicou a retornar ao Olimpo e negou-se a continuar a desempenhar suas
funções divinas de deusa das colheitas, enquanto sua filha não fosse restituída. O mundo, com isso,
tornou-se árido e triste, vivendo um inverno sem fim. Com a mediação de Zeus e auxílio de Hermes, foi
feito então um compromisso: Proserpina retornaria à superfície, onde viveria em companhia de sua
mãe e dos demais deuses por seis meses – aí a terra se alegra cobrindo-se de flores e frutos. Os outros
seis, porém, viveria no Hades, como esposa de Plutão – o inverno cai sobre o mundo, à espera do
retorno de Proserpina. É nesta condição, de rainha do mundo subterrâneo, que ela vai ouvir e se comover
com o canto de Orfeu.
369
Plutão escutou também o canto de Orfeu e, ao que tudo indica, comoveu-se da mesma forma que sua
esposa. Tanto que, quando Proserpina faz o pedido pela liberdade de Eurídice, ele apenas refere-se
muito brevemente à “lei imutável” e logo acede ao pedido de clemência.
370
No original italiano, luci, luzes para olhos: Proserpina é um ser solar, filha de Zeus com Deméter,
deusa das colheitas, que, por sua vez, depende de Apolo, o sol, para fertilizar os campos. Nos seus
olhos, portanto, carrega um reflexo do sol, algo que os habitantes do Hades não possuem, e que Plutão
identifica com a doçura do amor.
371
A alusão aqui é à partilha do cosmos, depois da vitória dos deuses sobre os titãs. Hades ficou com o
mundo subterrâneo, supostamente desprivilegiado. Mas, pela boca de Proserpina ficamos sabendo que
não inveja a sorte de Zeus – aqui Júpiter, Giove, seu nome romano – que ficou com o Olimpo (e nem a
de Poseidon, que ficou com os mares), pois tem para sua rainha a mulher que mais ama, tanto que a
chama de “meu céu”, em substituição ao céu olímpico, que não possui.
372
O Amor, Eros, ou Cupido, é, como Apolo, um deus gerador de vida (não de morte), e seu sinal é incendiar,
atear fogo, “dar luz” aos corações, através das setas que dispara aleatoriamente. Daí o apelo de Proserpina
a Plutão ser um chamado a uma sabedoria divina, mais elevada que a do intelecto. Na Itália, a partir do
século XIV, a figuro do Eros grego passa por um processo de pseudomorfose: encolhe, perde suas roupagens
e toma a forma de um putto, garzone, ou puer alatus, o cupido de incontáveis representações. Na doutrina
neoplatônica renascentista, o Amor é cego, porque pode ver desta forma mais longe do que com os olhos.
Pico della Mirandola define a cegueira do amor supremo como órfico por causa de um comentário de Proclo
ao Timeu (33c) de Platão, e escreve: “O Amor une o intelecto inteligível à beleza primeira e secreta mediante
uma certa vitalidade que é melhor que a inteligência. Por isso, o próprio teólogo dos gregos (Orfeu) chama
de cego este amor. E parece-me que mesmo Platão havia identificado este Deus com Orfeu, onde ele é
chamado ora de Amor (Eros) ora de um grande demônio.”
PLUTÃO
Ainda que uma lei severa e imutável
contraste, amada esposa, com teu desejo,
por razão alguma negue-se algo
a tal beleza aliada a tantas súplicas373.
373
Tocado pelo Amor, Plutão fica cego para as antigas leis. Esta cegueira, na doutrina pseudoórfica
renascentista, é mais valiosa que a visão e que o intelecto, podendo ver mais longe que os olhos físicos.
Ele consegue encontrar justificativas que o eximem de seguir à risca as antigas e imutáveis leis do
Tártaro, estipuladas quando da divisão do cosmos entre os três irmãos, Hades, Zeus e Poseidon.
SPIRITI INFERNALI
O de gli abitator de l’ombre eterne
possente re, legge ne sia tuo cenno,
ché ricercar altre cagioni interne
di tuo voler nostri pensier non denno;
374
O Hades enquanto reino possuía juízes e ministros. Dos três juízes máximos, Minos, Éaco e
Radamanto, apenas Radamanto é citado por Homero. Segundo Brandão (I, 300), Platão certamente foi
o responsável pela investidura de Éaco ao lado de Minos e Radamanto como magistrados supremos do
reino do Hades. No Górgias (253e), Zeus fala: “Constituí como juízes meus próprio filhos, dois da
Ásia, Minos e Radamanto, um da Europa, Éaco. Quando estiverem mortos darão suas sentenças na
pradaria, na encruzilhada de onde partem os dois caminhos que levam, um, às Ilhas Afortunadas, o
outro, ao Tártaro.” (Ver Dante, Inferno, segundo círculo)
375
Plutão distribui justiça à sua maneira. Ele interpõe uma prova de autocontrole ao infeliz Orfeu, uma
prova que – saberá disso de antemão o senhor do Hades? – não conseguirá superar. O problema da
categoria da justiça é que ela, depois de Maquiavel, sofre uma modificação em seu caráter. Em Maquiavel,
Ética e Política separam-se, pela primeira vez, desde Aristóteles. Não que a justiça arbitrária do
governante não fosse conhecida na Grécia clássica. É só lembrarmos Trasímaco que, na República
338c, define a Justiça como sendo “a conveniência do mais forte”. Mas esta é a cultura vigente nas
tiranias da Ática, e contra ela se levanta a voz de Sócrates e de Platão. Podemos considerar que o
julgamento de Creonte, na Antígona de Sófocles, é conforme à lei, mas não é justo.
376
O primeiro dos espíritos infernais nesta cena responde a Plutão, confirmando o entendimento das
ordens recebidas: para ele, imprescrutáveis e indiscutíveis, já que, pertencendo a uma categoria social
– infernal – inferior –, não está em condições de julgar o que os mais fortes consideram justiça, quer
seja seus próprios interesses.
PROSERPINA
Quali grazie ti rendo
or che sì nobil dono
concedi a’ prieghi miei signor cortese?
PROSÉRPINA
Como te agradecer
agora, que um presente tão nobre
concedes ao meu pedido, cortês senhor?
PLUTONE
Tue soavi parole
d’amor l’antica piaga
rinfrescan nel mio core,
così l’anima tua non sia più vaga
di celeste diletto,
sì ch’abbandoni il marital tuo letto.
377
O segundo espírito dirige-se diretamente ao público, e pontua a interrogação que agora a todos
aflige, se Orfeu conseguirá atender às condições impostas por Plutão para resgatar Eurídice, isto é,
fazer com que a razão comande suas emoções.
378
O breve intermezzo amoroso que se desenrola neste ponto entre Plutão e Proserpina é uma metáfora
invertida da própria história de Orfeu e Eurídice. Enquanto Orfeu está descendo ao Hades para buscar
Eurídice, Plutão, há tempos, subiu à superfície para raptar Proserpina. Ela recorda e bendiz o rapto de
que foi vítima, alegrando-se com a recompensa por ter perdido o sol, que foi o amor de Plutão. Para o
rapto de Proserpina, ver Ovídio, Metamorfoses, V.
SPIRITI INFERNALI
Pietate oggi e Amore
trionfan ne l’inferno.
ESPÍRITOS INFERNAIS
Hoje, no Inferno,
triunfam a Piedade e o Amor.
ORFEO
Qual onor di te fia degno,
mia cetra onnipotente,
s’hai nel tartareo regno
piegar potuto ogn’indurata mente?
ORFEU
De que honra te fizeste digna,
minha cítara onipotente379,
tu que, no tartáreo reino,
pudeste vencer as mentes380 mais duras?
379
Nestes versos, Orfeu se apresenta já conduzindo Eurídice para fora do Hades. Neles, celebra o poder
da sua cítara, digna de um lugar entre as constelações, conforme a estrofe 3 do Prólogo.
380
O vocábulo mente significando o intelecto humano foi estabelecido no italiano pelo uso que dele fez
Dante Alighieri. Em Dante, mente é intelecto, e o intelecto é partícula de Deus que existe na alma
humana. No Convivio, III, II, lemos: “Onde se pode ver já agora o que é a mente: que é aquela fina e
preciosíssima parte da alma que é a divindade. E este é o lugar onde digo eu que Amor me fala” (“Onde
si puote omai vedere che è mente: che è quella fine e preziosissima parte de l’anima che è deitade. E
questo è il luogo dove dico che Amore mi ragiona”).
UNO SPIRITO
Rott’hai la legge, e se’ di grazia indegno.
UM ESPÍRITO
Quebraste a lei, e és indigno de mercê.
381
O Amor neoplatônico dos renascentistas, como Pico e Ficino, segue a concepção medieval de Lucrécio
e Opiano, segundo os quais o Amor é força todo poderosa e onipresente, mas é um poder natural, não
metafísico, que perpassa todo o Universo material, mas não o transcende (Cf. WIND, 67ss.).
382
As Fúrias, ou Erínias, eram deusas violentas, encarnando forças primitivas como guardiãs das leis
da Natureza e da ordem das coisas, no sentido físico e moral. A partir dessa perspectiva, é natural que
Orfeu temesse estar sendo perseguido por elas, já que, resgatando sua esposa do Hades, estava
contrariando a ordem natural das coisas. Tal corresponderia bem à ideia que se tinha, na Antiguidade,
das Fúrias enquanto consciência que atormentava os criminosos. Na Iconologia, Ripa escreve que
“Dante, no seu Inferno, descreveu as Fúrias como mulheres de aspecto feíssimo, vestidas com túnicas
de cor negra e todas manchadas de sangue, enroladas em cobras e com cabelos de serpentes. A isto,
acrescentaremos que levavam em uma mão um ramo de cipreste e, na outra, uma trompa de onde saíam
muitas chamas e uma fumaceira negra” (RIPA, I, 451).
EURÍDICE
Ai, visão por demais doce e por demais amarga!
Então, por me amares demasiado é que me perdes?
E eu, mísera, perdo
de poder jamais desfrutar novamente
da luz e da vida, e, contigo,
perco meu mais caro tesouro, ó meu companheiro!
SPIRITI INFERNALI
Torna a l’ombre di morte,
infelice Euridice,
né più sperar di riveder il sole,
ch’omai fia sordo a’ prieghi altrui l’inferno.
ESPÍRITOS INFERNAIS
Volta às sombras da morte,
infeliz Eurídice,
nunca mais esperes rever o sol,
pois o Inferno, doravante, estará surdo a qualquer outra súplica.
ORFEO
Dove te n’ vai, mia vita? ecco i’ ti seguo.
Ma chi me ‘l vieta, ohimè, sogno o vaneggio?
Qual poter, qual furor da questi orrori,
da questi amati orrori
mal mio grado mi tragge e mi conduce
a l’odiosa luce?
ORFEU
Para onde vais, vida minha? Olha, vou contigo...
Mas... quem me impede, ai de mim... É sonho ou deliro?
Que força, que poder me arrasta, contra a vontade,
SPIRITI INFERNALI
È la virtute un raggio
di celeste bellezza,
fregio dell’alma ond’ella sol s’apprezza:
questa di tempo oltraggio
non teme, anzi maggiore
divien se più s’attempa il suo splendore.
ESPÍRITOS INFERNAIS384
A virtude é um raio
de celestial beleza;
é o enfeite da alma onde a si mesma louva.
Não teme o ultraje
do tempo, pelo contrário: ainda maior
se torna, ao envelhecer, seu esplendor.
383
Ocorre aqui uma inversão da ordem natural das coisas: para Orfeu, o Hades, agora, torna-se um
lugar de horrores amados, e até as sombras são amadas, porque nelas habita Eurídice. Também a luz é
odiosa para Orfeu, porque retornar à vida significar perder definitivamente sua esposa. Para a segunda
morte de Eurídice, ver Virgílio: Éclogas, Geórgicas, Eneida I-VI, 231-3 (WHENHAM 73, 189, NR 9).
384
Este número completa o comentário do coral no fim do Ato III: “Não há empreitada que o homem
arrisque em vão, nem contra ele pode a natureza armar-se”. A diferença é que, agora, os espíritos
advertem que, apesar de ter condições de vencer a natureza, voando até através dos ares, o homem,
para ser verdadeiramente vencedor, precisa domar suas emoções, isto é, ser vencedor de si mesmo. Os
versos insistem no elogio do imaterial, do virtuoso e do ideal, desprezando o temor da morte e comparando
o homem guiado pelos afetos a um cego.
ATTO V
ORFEO
Questi i campi di Tracia, e questo è il loco
dove passommi il core
per l’amara novella il mio dolore.
ORFEU
Eis os campos da Trácia, e este é o lugar
onde a dor pela amarga notícia
trespassou-me o coração.
Já que não tenho mais esperança
de recobrar, pedindo, chorando e suspirando,
a perda do meu bem,
que posso eu mais fazer se não dirigir-me a vós,
bosques amados, que uma vez fostes
conforto para meu martírio, quando Deus, por piedade,
vos fazia comigo definhar,
quando eu definhava?386
ECO
Ahi pianto.
ECO387
Ai, pranto.
ORFEO
Cortese Eco amorosa,
che sconsolata sei,
e consolar mi vuoi ne’ dolor miei,
benché queste mie luci
385
O quinto e último ato assinala o retorno à dimensão do mundo natural. Orfeu desperta nos campos da
Trácia (terá sido sua viagem ao mundo subterrâneo apenas um sonho?), abatido e incapaz de recompor-
se. Para fazer o contraponto à Música, que apresenta o Prólogo, vem agora o deus Apolo, que fecha o
ciclo encerrando o poema na dimensão cósmica do poder da música.
386
A primeira e a segunda estrofes são uma digressão poética sobre a primeira estrofe da canção “Vi
ricorda, o boschi ombrosi”, no início do Ato II.
387
Eco é uma ninfa dos bosques e das fontes. Perseguida pelo deus Pã, a quem não amava, mas apaixonada
por um sátiro que a evitava, acabou sendo despedaçada pelos pastores como punição a esta afronta
contra seu protetor, o grande Pã. Foi apaixonada pelo jovem Narciso, a quem seguia onde quer que ele
fosse. Depois de ter sido friamente repelida por Narciso, retirou-se, encerrando-se em dolorosa solidão.
Deixou de se alimentar e definhou, transformando-se num rochedo, capaz apenas de repetir as últimas
sílabas do que se fala.
ORFEU
Gentil e amorosa Eco,
que desconsolada estás,
queres consolar-me em minha dor,
ainda que estes meus olhos,
de tanto lacrimar, tenham virado duas fontes
e eu, em desventura assim profunda e cruel,
não tenho pranto que baste.
ECO
Basti.
ECO
Baste.
ORFEO
Se gli occhi d’Argo avessi
e spandessero tutti un mar di pianto,
non fora il duol conforme a tanti guai.
ORFEU
Tivesse eu os olhos de Argos388
e um mar de pranto eles todos derramassem,
ainda não faria jus à minha dor.
ECO
Ahi.
ECO
Dor.
388
Uma centena de olhos possuía Argos, um gigante de força descomunal a quem Hera, a esposa de
Zeus, encarregou de vigiar a vaca Io, de quem tinha ciúmes. Graças aos seus cem olhos, podia vigiar a
amante de Zeus sem problema, pois adormecia fechando apenas cinquenta de cada vez.
ORFEU
Se tens piedade do meu mal, eu te agradeço
por tua bondade.
Porém, quando me lamento,
ai, porque respondes
só com as últimas sílabas?389
Devolve inteiros os meus lamentos.
389
A repetição apenas das últimas sílabas é a própria condição de incompletude da ninfa Eco. Em vida,
ela seguia Narciso por toda parte sem ser jamais amada por ele, isto é, nunca pode fundir-se com o
objeto desejado. Agora, a sílaba que responde não só é uma parte apenas da palavra pronunciada, como
chega sempre tarde, sempre depois do som original.
390
A partir daqui cessam as intervenções da ninfa Eco, e Orfeu tece, nas três estrofes finais, um
apaixonado elogio de amor à sua esposa.
391
Nas Metamorfoses, de Ovídio, encontramos explicitado o que no poema de Striggio é sugerido
apenas muito vagamente: a conversão de Orfeu à homossexualidade: “E Orfeu se tornou indiferente a
todas as seduções das mulheres, seja por ter sido funesto o seu amor, seja por ter perdido a esperança.
Muitas quiseram ardentemente unir-se ao poeta, e muitas sofreram vendo-se rejeitadas. E é assim que
os cantos narram à gente da Trácia o amor de Orfeu pelos jovens rapazes e por colher-lhes, antes do
desabrochar da juventude, a curta primavera e a primeira flor da tenra idade” (Metamorfoses, X, 78-
87).
392
Existem dois finais para o Orfeo: um preservado no libretto de 1607, e outro, completamente diferente,
foi impresso na partitura de Monteverdi de 1609. Depois do Mito de Orfeo (1498), de Angelo Poliziano,
em que o final trágico do mito foi preservado, concluiu-se que a tragédia era um afeto inapropriado
para as récitas de ocasiões festivas. A partir do início do século XVII começou a ser, então, incluído um
final feliz, um lieto finale: a tragicommedia, como passaram a chamar-se as encenações, não tinham
nada de cômico, era tragédias, mas tinham o final alterado para terminar bem. O final de 1607 reproduz
o mito de Orfeu em sua forma mais conhecida: ao regressar à Trácia, Orfeu, inconsolável e sem poder
esquecer a esposa, passa a repelir todas as mulheres. Estas, ultrajadas por sua fidelidade à memória da
esposa, fizeram-no em pedaços. O poema de Striggio termina, correspondentemente, com um coro de
Bacantes.
CORO DI BACCANTI
Evohè, padre Lieo,
Bassareo,
te chiamiam con chiari accenti.
CORO DE BACANTES
Evoé396, pai Lieu397,
Bessaréu,
te chamamos com fortes gritos.
BACCANTE
Fuggito è pur da questa destra ultrice
l’empio nostro avversario, il trace Orfeo,
disprezzator de’ nostri pregi alteri.
393
É um tropel inimigo porque Orfeu, depois da segunda perda de Eurídice, quer distância de tudo o que
festeje as forças vitais.
394
O ébrio deus é Baco, ou Dioniso, a quem as Bacantes se entregam. Historicamente (Cf. Brandão, I,
290), por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano, em Atenas e em toda Ática, a festa do vinho
novo, em que os participantes, como outrora os companheiros de Baco, se embriagavam e começavam
a cantar e a dançar freneticamente até caírem desfalecidos.
395
Orfeu, fechado em sua reclusão, não quer ouvir nem ver os ritos de Dioniso, que qualifica de odiosa
visão. Do ponto de vista histórico (Cf. BRANDÃO, I, 290), as Bacantes, ou Mênades, tomadas pelo
delírio sagrado, imitavam as Mênades dionisíacas, percorrendo montes e campos, despedaçando animais
e comendo-lhes as carnes cruas ainda palpitantes.
396
O grito Evoi era a saudação a Evan, uma das alcunhas de Baco, durante as festas de celebração do
deus.
397
Lieu, Bessaréu, Leneu, Baco, Iaco, Evan e muitos outros são todos nomes para Dioniso.
UN’ALTRA BACCANTE
Non fuggirà, ché grave
suol esser più quanto più tarda scende
sovra nocente capo ira celeste.
OUTRA BACANTE
Não fugirá, pois, quanto mais tarda,
mais severa desce
sobre a cabeça culpada a ira celeste.
DUE BACCANTI
Cantiam di Bacco in tanto, e in vari modi
sua deità si benedica e lodi.
DUAS BACANTES
Cantemos a Baco, muito e de vários modos
seja bendita e louvada sua divindade.
CORO DI BACCANTI
Evohè, padre Lieo,
Bassareo,
te chiamiam con chiari accenti.
CORO DE BACANTES
Evoé, pai Lieu,
Bessaréu,
te chamamos com fortes gritos.
398
A origem do ódio das mulheres da Trácia, que se consideravam desprezadas por Orfeu, e que culminará
com seu despedaçamento, tem duas versões: primeiramente, conta-se que, ao retornar do Hades, Orfeu
instituiu cultos de mistérios que eram inteiramente vedados às mulheres. No segundo, Afrodite, deusa
do amor, querendo vingar-se da ninfa Calíope, mãe de Orfeu, e não podendo, vingou-se do filho, instilando
uma paixão tão violenta e incontrolável por ele nas mulheres da Trácia que cada uma queria o cantor só
para si (ver BRANDÃO, II, 197).
BACCANTE
Tu pria trovasti la felice pianta
onde nasce il licore
che sgombra ogni dolore,
ed a gli egri mortali
del sonno è padre e dolce oblio de i mali.
BACANTE
Foste o primeiro a encontrar a planta feliz399
de onde nasce o licor
que afasta toda dor,
e, dos enfermos mortais,
és pai do sono e do doce esquecimento dos males400.
CORO DI BACCANTI
Evohè, padre Lieo,
Bassareo,
te chiamiam con chiari accenti.
CORO DE BACANTES
Evoé, pai Lieu,
Bessaréu,
te chamamos com fortes gritos.
399
Foi no monte Nisa, entregue aos cuidados das ninfas e dos sátiros, que o jovem Dioniso descobriu o
suco da vinha. Vivendo em uma gruta onde pendiam cachos de uva, certa vez colheu alguns cachos,
espremeu os bagos em taças de ouro e bebeu o suco na companhia de sua corte. Bebendo-o repetidas
vezes, sátiros, ninfas e o próprio Baco começaram a dançar vertiginosamente ao som de címbalos (ver
BRANDÃO, I, 290).
400
O esquecimento dos males se dava na esteira da comunhão com o deus. Conforme descreve Junito
Brandão, o ékstasis, o sair de si, implicava num mergulho em Dioniso e do seu adorador no processo do
entusiasmo, de éntheos, isto é, “animado de um transporte divino” (ver BRANDÃO, Mitologia II,
136).
BACCANTE
Te domator del lucido oriente
vide di spoglie alteramente adorno
sopr’aureo carro il portator del giorno.
BACANTE
A ti, domador do brilhante Oriente,
finamente adornado de espólios, vemos,
sobre um carro de ouro, o portador do dia401.
UN’ALTRA BACCANTE
Tu, qual leon possente,
con forte destra e con invitto core
spargesti e abbattesti
le gigantee falangi, ed al furore
de lor braccia ferreo fren ponesti
allor che l’empia guerra
mosse co’ suoi gran figli al ciel la terra.
OUTRA BACANTE
Tu, qual leão poderoso,
braço forte e coração invicto402,
retalhaste e abateste
as falanges dos gigantes403, dando fim
401
Uma dos feitos de Dioniso foi ter atravessado a Mesopotâmia e chegado até a Índia; daí os versos o
celebrarem como “conquistador do brilhante Oriente”: brilhante porque de lá é que parte o carro
fulgurante de Apolo a percorrer os céus. Retornando à Trácia, em triunfo, fez-se adorar sobre um carro
de ouro puxado por panteras.
402
O coração de Dioniso é invicto porque, sendo deus e imortal, renasce a partir do próprio coração.
403
Os versos escritos por Striggio para as Bacantes recontam os episódios mais importantes do mito de
Dioniso, mas os recriando fantasiosamente. A tradição ensina o contrário: é Dioniso que é morto e
retalhado pelos gigantes: para proteger seu filho ilegítimo do ciúme da esposa Hera, Zeus entrega-o
aos cuidados de Apolo e dos Curetes (gênios encarregados de encobrir o choro dos bebês), que o
esconderam nas florestas do monte Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o esconderijo do deus e
encarregou os Titãs – os gigantes – de matá-lo. Com o rosto polvilhado de gesso para não serem
reconhecidos, os gigantes atraíram o pequeno Dioniso com brinquedos, e, ao apanhá-lo, fizeram-no em
pedaços, cozinharam sua carne em um caldeirão e devoraram. Zeus fulminou os Titãs, e de suas cinzas
nasceram os homens. Por isso o ser humano possui as duas naturezas: má, da parte dos Titãs, e boa, da
parte do deus (ver BRANDÃO, I, 286).
CORO DI BACCANTI
Evohè, padre Lieo,
Bassareo,
te chiamiam con chiari accenti.
CORO DE BACANTES
Evoé, pai Lieu,
Bessaréu,
te chamamos com fortes gritos.
BACCANTE
Senza te l’alma dèa che Cipro onora
fredda e insipida fora,
o d’ogni uman piacer gran condimento
e d’ogni afflitto cor dolce contento.
BACANTE
Sem ti, a grande deusa que honra Chipre
seria fria e insípida;
ela, o tempero de todo prazer humano
e doce alegria de todo coração aflito405.
404
Os grandes filhos são os gigantes, e o “céu que se arma em ímpia guerra” significa aqui a perseguição
movida pela enciumada Hera, esposa de Zeus, portanto uma deusa olímpica e representante do céu.
Dioniso, mesmo sendo também olímpico, é apresentado como ligado a terra, devido à sua mãe Semele,
cujo próprio nome significa “terra” (ver BRANDÃO, I, 288).
405
A grande deusa que honra Chipre é Afrodite, que nasceu da espuma do mar em uma praia desta ilha.
Ali, foi acolhida pelas Horas (personificações do ano e das estações), recebeu um manto, foi enfeitada
e conduzida ao palácio dos deuses olímpicos.
CORO DE BACANTES
Evoé, pai Lieu,
Bessaréu,
te chamamos com fortes gritos.
ATTO V – VARIANTE
406
Uma hipótese citada por Sternfeld (ver WHENHAM, 30-3) para a existência de dois finais é que o
original seria o lieto finale, o final feliz, com Apolo resgatando Orfeu. Porém, a Galleria delle Specchi,
a Galeria dos Espelhos (ou teria sido a estréia na Galleria dei Fiumi – Galeria dos Rios?), no Palácio
dos Duques de Gonzaga, em Mântua (Cf. JACOBS, 13), não tinha dimensões capazes de acomodar
uma máquina de teatro que erguesse Orfeu e Apolo para o céu. Por essa razão, Striggio teria escrito o
final alternativo, com o coro das Bacantes.
APOLO407
Por que, ó filho, te entregas presa
da dor e do desdém?
Nunca é bom conselho
de um coração sábio
render-se ao próprio afeto408.
407
Apolo, filho de Zeus e de Leto, era deus das artes, da música e da poesia. O deus Sol tem tantos
atributos que, como observa Brandão (I, 89), tem-se a impressão de que Apolo é um amálgama de
várias divindades, sintetizando em um só deus um amplo leque de oposições. No neoplatonismo
renascentista são bem evidenciadas suas qualidades de deus pai onisciente e gerador de toda vida. Sua
lira tinha sete cordas (lira a cujas cordas Orfeu acrescentará mais duas, em honra às Musas, que eram
nove), e o número sete é paradigmático para esta divindade: nasceu no dia sete do mês délfico Bísio
(início da primavera), e tão logo nasceu, cisnes brancos deram sete voltas em torno de Delos. Sua
doutrina possuía sete máximas, atribuídas a sete sábios. Ésquilo o chamava augusto deus sétimo, o
deus da sétima porta.
408
A categoria renascentista da moderação é, na verdade, uma velada oposição ao ascetismo cristão.
Pouco antes do ano santo de 1600, um terremoto em Roma fez com que se redescobrissem as antigas
catacumbas onde tinham se refugiado os perseguidos na época heróica do cristianismo ilegal e
subterrâneo. Este fato veio a calhar para a propaganda da Contrarreforma, que, com isso, aproveitou ao
máximo para reacender o culto e a tradição dos antigos mártires e ascetas (atualizando a questão,
também seriam gloriosos mártires cristãos os que resistissem à reforma luterana ao Norte dos Alpes).
Ora, o homem moderado é o homem da mesotes aristotélica, o meio termo, a justa medida. “Render-se
ao próprio afeto” é, claramente, transbordar os limites da passionalidade. Por sua parte, o homem
moderado – o homem que não se entrega aos excessos do ascetismo e da mortificação da carne – torna-
se sinônimo de homem autônomo e livre. A moderação aconselhada por Apolo a Orfeu perde sua
categoria de norma, tornando-se doravante uma conseqüência do comportamento humano (ver HELLER,
234-5).
ORFEO
Padre cortese, al maggio uopo arrivi,
ch’a disperato fine
con estremo dolore
m’avean condotto già sdegno et amore.
ORFEU
Pai bondoso, chegas na hora mais urgente,
pois amor e desdém
me levaram a um fim desesperado
em meio a dores extremas.
APOLLO
Troppo, troppo gioisti
di tua lieta ventura,
or troppo piagni
tua sorte acerba e dura. Ancor non sai
come nulla qua giù diletta e dura?
409
A vida e glória oferecida por Apolo é a mesma vida eterna do Cristo solar: o processo de fusão dos
mitos – os clássicos e os da tradição cristã – deu-se não apenas na esfera artística. Toda a cultura
italiana dos séculos XVI e XVII se encontrava fundida com os modelos antigos. O cardeal Bessarion,
aponta Heller, encontrou um paralelo entre Homero e Moisés; em Florença, o Cônsul romano [Décimo
Júnio] Bruto e o Davi do Antigo Testamento eram igualmente considerados símbolos da cidade e, entre
os eruditos e no imaginário popular, as figuras de Cristo e de Sócrates encontravam-se cada vez mais
fundidas em uma só. Se observarmos a obra de Michelangelo, não há como não convencer-se de que
ele pintou Jesus criança sempre como um putto, um daqueles alados Eros greco-romanos; também a
Madonna que pintou para os Medici é, na verdade, uma Sibila, olhando de cima como um símbolo
antigo do Destino. Finalmente, o Cristo do seu Juízo final da Capella Sistina é idêntico a Apolo: um
poderoso e vingativo deus Sol (ver HELLER, 53).
ORFEO
Sì non vedrò più mai
de l’amata Euridice i dolci rai?
APOLLO
Nel sole e ne le stelle
veggherai le sue sembianze belle.
APOLO
No sol e nas estrelas
descobrirás o seu belo semblante.
ORFEO
Ben di cotanto padre
sarei non degno figlio
se non seguissi il tuo fedel consiglio.
410
Apolo, ligado à inteligência e à racionalidade, dá a Orfeu a lição: a mesma que se encontrava inscrita
sobre a soleira do oráculo de Delfos: Nada em demasia. Orfeu sofre agora porque exagerou em suas
emoções, tanto na alegria, antes, como agora, na tristeza. Na Itália do Renascimento, a categoria da
sabedoria também sofreu uma transformação. Desde o matemático Bovillus, a sabedoria se identifica
cada vez mais com o conhecimento científico: “O homem sábio, que conhece os segredos da natureza,
é ele próprio misterioso e espiritual. Vive sozinho, longe da multidão vulgar. Basta-se a si próprio, não
necessita de ninguém, possui todos os bens em abundância. É perfeito, completo e feliz” (apud HELLER,
237).
411
O convite para a imortalidade é também uma exortação para abandonar as paixões e sofrimentos
terrenos.
APOLLO, ORFEO
Saliam cantando al cielo,
dove ha virtù verace
degno premio di sé, diletto e pace.
APOLO E ORFEU
Subamos, cantando, ao céu,
onde a virtude verdadeira
recebe seu digno prêmio: alegria e paz412.
CORO
Vanne, Orfeo, felice e pieno
a goder celeste onore,
là ‘ve ben non vien mai meno,
là ‘ve mai non fu dolore,
mentr’altari, incensi e voti
noi t’offriam lieti e devoti.
CORO413
Vai, Orfeu, feliz de todo,
gozar honrarias celestes,
lá onde o bem nunca tem fim,
lá onde nunca existiu a dor,
enquanto nós, alegres e devotos
te oferecemos altar, incenso e votos.
412
Orfeu receberá o prêmio pela virtude verdadeira quando abandonar a expectativa material e passar
a desejar coisas imutáveis e que lhe concederão alegria e paz eternas.
413
O coro final recapitula e sintetiza toda a moral do poema: em uma região acessível apenas aos que se
dedicam às coisas espirituais, existe um bem que nunca termina – a ideia do Bem, diria Platão. Para
chegar até lá, é preciso ter coragem e, às vezes passar por provações (vide a parábola da caverna, na
República VII): não é fácil transcender o mundo das aparências.
414
Os últimos versos são explicitamente bíblicos, parafraseando o Salmo 126, 5: “Os que semeiam com
lágrimas ceifarão em meio a canções”.
ADORNO, Theodor. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt (Main): Suhrkamp, 1985.
ALIGHIERI, Dante. Obras Completas. Madrid: BAC, 1973.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Souza.
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