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Belém - PA
2019
HUARLEY MATEUS DO VALE MONTEIRO
Belém - PA
2019
HUARLEY MATEUS DO VALE MONTEIRO
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja
UFPA – Orientadora
_______________________________________
Prof. Dr. Carlos Augusto Nascimento Sarmento-Pantoja
UFPA – Avaliador Interno
_______________________________________
Prof. Dr. Carlos Henrique Lopes de Almeida
UFPA – Avaliador Interno
_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana Helena de Oliveira Albano
UFRR – Avaliadora Externa
_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Valéria Crístian Soares Ramos da Silva
UEPA – Avaliadora Externa
Ao Heitor e Sophia, mostrando-me
exemplos de tolerância e amizade;
Ao Pedro e a necessidade que tenho de
um abraço seu;
Ao Manduca e Vitalina, Evandro e Jairo,
tio Horácio;
Aos sobrinhos e sobrinhas, primos e
primas, tios e tias.
AGRADECIMENTOS
This thesis proposes the description, interpretation and analysis of four novels
published by Nenê Macaggi from the 1970s in the region known today as the state of
Roraima. The purpose is to investigate evidence that allows reflections on the
understanding of Biopolitics, its effects and resistance processes. Our search is based
on the body category as the writing of historiographic material, so the notion of
biopolitics becomes the analytical and dialogical key. The research problem was
configured from the notion of biopolitics as a theoretical understanding applied to works
produced by Macaggi (2012a, 1980, 1984, 2012b), according to interdisciplinary
theoretical dialogue. The working hypothesis is that the category under analysis brings
historiographical writings regarding the process of representation of ethnic encounters.
The theoretical and methodological basis finds space in Literary Theory and
Philosophy, articulated by the Textual Analysis of Foucaultian Discourses. The
theoretical and descriptive assumptions dialogues between different areas of practice:
in the field of philosophy (Foucault, 1997, 2010, 2014; Agamben, 2002, 2007; Esposito,
2010; Mbembe, 2006; in Anthropology (Le Breton, 2006; Viveiro de Castro, 2006;
Munanga, 2019) and also in Literature (Sarmento-Pantoja, 2011; Seligmann-Silva,
2003; Silva, 2016). As for the methodology, it is the genealogical approach, aiming at
the description and interpretation of the novels. Considering the state of the art, it
became apparent recurrence of mixed race characters and disguised subordinated.
The results revealed that the mestizo indigenous bodies analyzed in the novels
represent a genealogy of processes of violations and prejudice against vulnerable
bodies; as well as the narrative space like marginal. Finally, we believe that the results
of this research contribute both to the understanding of the effects of biopolitics and
their representations in the artistic field produced in the circum-Roraima region, as to
the understanding about the dynamics undertaken by (In)Docile mestizo indigenous
bodies as emerging represented in the novels.
AM Amazonas
BR Brasil
MIRR Museu Integrado de Roraima
RJ Rio de Janeiro
SECD-RR Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Desporto de Roraima
SPI Sistema de Proteção ao Índio
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 8
2 ESCRITURAS HISTORIOGRÁFICAS ....................................................... 17
2.1.3 1984: Exaltação ao Verde (Terra – Água – Pesca): o romance do Baixo Rio
Branco ........................................................................................................ 48
1 INTRODUÇÃO
1 A primeira edição desta obra é do ano de 1976. Para nossas análises será utilizada a segunda edição,
referente ao ano de 2012.
9
2 Os Waimiri Atroari, durante muito tempo, estiveram presentes no imaginário do povo brasileiro como
um povo guerreiro, que enfrentava e matava a todos que tentavam entrar em seu território. Essa
imagem contribuiu para que autoridades governamentais transferissem a incumbência das obras da
rodovia BR 174 (Manaus-Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou de forças militares repressivas
para conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo kinja
(autodenominação waimiri atroari). A interferência em suas terras ainda foi agravada devido a
instalação de uma empresa mineradora e o alagamento de parte de seu território pela construção de
uma hidrelétrica. Mas os Waimiri Atroari enfrentaram a situação, negociaram com os brancos e hoje
têm assegurados os limites de sua terra, o vigor de sua cultura e o crescimento de sua gente.
A língua Waimiri Atroari, o kinja iara (língua de gente), pertence à família lingüística karib. O kinja iara
é falado por todos os Waimiri Atroari, sendo essa a língua referência na comunicação entre eles e
para a alfabetização.
No início do século XX (1911), Alípio Bandeira, representante do Serviço de Proteção ao Índio (SPI,
extinto em dezembro de 1967) percorreu a região onde se localiza o rio Jauaperi, quando ocorreram
novos contatos amistosos com esses indígenas, agora denominados de Uaimirys. Os planos
desenvolvimentistas do governo federal para a Amazônia continuaram a atingir as terras Waimiri
Atroari. Na década de 1970 o Projeto Radam constata a existência de cassiterita na área indígena.
No início da década de 1980 a empresa Paranapanema demonstra interesse em explorar esse
minério. Com o auxílio da Funai e do Ministério das Minas e Energia, através do Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM), consegue articular um processo que veio a culminar na
extinção da Reserva Indígena Waimiri Atroari (criada em 13/07/71), transformando-a em Área
Interditada Temporariamente para Fins de Atração e Pacificação dos Índios Waimiri Atroari (23/11/81)
e excluindo, no novo decreto presidencial, a região da terra indígena onde se encontravam as jazidas.
Ainda na década de 80, outro grande projeto atingiu as terras Waimiri Atroari. Tratava-se da
11
construção da usina hidrelétrica de Balbina, pela Eletronorte, cujo lago atingiu 30 mil habitantes na
área indígena.
Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Waimiri_Atroari>. Acesso em 12/10/2019
3ROCHA, Ana Lilia Carvalho DO CORPO TORTURADOR AO CORPO TORTURADO:
REPRESENTAÇÕES DA MÁQUINA DITATORIAL NA LITERATURA BRASILEIRA. —
UFPA/PPGL, Belém, 2018, 140 f. Tese (Doutorado).
12
revelar uma complexa relação e estratégias de poder com fortes escritos e indícios,
então é possível que a categoria aponte elos dialógicos entre Biopolítica e literatura.
A construção da metodologia instaurada para este trabalho pautou-se em
marcadores interdisciplinares, dialoga com a historiografia literária, análise do
discurso, antropologia e filosofia da linguagem. Esse procedimento, dinamicamente
aberto, é uma tentativa contundente de verificar como se faz representar a Biopolítica
e as formas de resistência através dos textos literários. A forma de desenvolvimento
dessa proposta foi visualizada nos trabalhos de Foucault (1999), quando da condução
de suas próprias investigações. Nesse sentido, basear nossa condução metodológica
na genealogia foucaultiana é buscar fundamentos de modo perceber que a
genealogia, pode sim agir como:
docilização de corpos submetidos ao poder soberano. Desta forma, ela atua na linha
tênue de aniquilamento e/ou permanência da vida.
Frente ao exposto defendemos a hipótese desta tese de que o projeto de
Romances do Circum-Roraima configura, de maneira pontual, a formação social do
mestiço na Amazônia setentrional. Corroborando para tal, além da mobilidade humana
causadora de encontros interétnicos, a própria condição marginal atribuída ao espaço.
Esta condicionante progride para a constituição de um sujeito profundamente marcado
pela subalternidade. E, em última instância, imerso nesse espaço marginal, esse
sujeito – esse corpo – se faz sujeito à barbárie que é regra, não é exceção.
Para tanto, formulamos três hipóteses. A primeira baseia-se no resultante da
dinâmica movimentação humana possibilitadora de encontros culturais e suas devidas
ressignificações, no âmbito da escrita literária. A segunda, é contingenciada pelo
projeto artístico e estético da escritora e funda-se no trânsito dialógico estabelecido
por ele, na medida em que se alimenta de um entrelugar do movimento literário
brasileiro produzido a partir da década de 1930, o que corrobora para a produção de
um estilo artístico pautado nas mesclas, enquanto ressonâncias da própria
dinamização sociocultural de então. A terceira, concentrada na constituição das
personagens, em especial aqueles que são figurações do mestiço, além do próprio
espaço georreferenciado na construção dos romances; visto que reverberam a
condicionante de marginalidade construída na chave da existência periférica de
encontros socioculturais nele estabelecidos, o que contribui para a formulação do
entendimento de espaço, também enquanto (In)Dócil.
Quanto a estrutura, esta tese apresenta-se em cinco capítulos que
interrelacionam-se. O primeiro, caracterizado por “Introdução” à proposta da tese
articula-se a apresentação deste estudo, referenda a estrutura e problematização das
análises realizada. Já o segundo capítulo, intitulado “Escrituras Historiográfica”, dá
conta da sistematização dos romances que compõem a obra literária de Nenê
Macaggi, visto que entendemos ser necessário elencar pontos entrelaçados entre eles
que serão fundamentais para a proposta aqui apresentada. O terceiro, “O pensar
Biopolítico sobre o corpo mestiço”, transcorre a partir de entendimentos sobre
Biopolítica, problematiza as reflexões de pensadores de linhagem foucaultiana, e não
só. Nesse sentido, as discursões giram em torno dos acontecimentos históricos que
atuam como efeitos dos processos biopolíticos. Neste caso, a Amazônia setentrional
16
2 ESCRITURAS HISTORIOGRÁFICAS
Uma história “a contrapelo”: não aquela dos vencedores, mas aquela que
poderia ter sido outra, que foi sufocada, mas deixou interrogações, lacunas,
brancos que são tantos sinais de alteridade e resistência; esses sinais, cabe
ao presente, justamente, reconhecê-los e, quem sabe, retomá-los e assumir
suas promessas de alteridade e de resistência na luta histórica e política
atual. Essa relação do presente ao passado não pode, então, seguir os
moldes da identificação afetiva ou empatia (Einfühlung) com os grandes
heróis do passado, tais quais são descritos pela história oficial; pelo contrário,
deve desconstruir a narrativa ronronante da “história dos vencedores” e
indicar outras possibilidades narrativas e históricas, silenciadas, esquecidas
ou recalcadas (GAGNEBIN, 2009, p.52).
4 A obra Nará-Sue Uarená – o romance dos Xamatautheres do Parima que, apesar de ser resultado de
experiências em décadas anteriores ainda em sua atuação no SPI, só recentemente, em 2012, foi
editada. Além deste, há outras produções da autora nesta região do país, A mulher do Garimpo: o
romance no extremo sertão do norte do Amazonas (1976/2012), Dadá Gemada, doçura e amargura:
romance do fazendeiro de Roraima (1980), Exaltação ao Verde (1980). Nossa proposta contempla
apenas os romances já os livros de contos serão alvo de estudos posteriores: Conto de Amor e Conto
de Dor (ambos de 1970) Contos de Amor Sentimentais e trágicos (1988).
18
Neste sentido o recorte feito por nós a ser analisado é a Matéria Nortista: ‘A
mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão norte do Amazonas’ (2012a)8, ‘Dadá
Gemada, doçura e amargura: romance do fazendeiro de Roraima’ (1980), ‘Exaltação
ao verde: Terra – Água - Pesca’ (1984) e ‘Nará-Sue Uarená: o romance dos
Xamatautheres do Parima’ (2012b). Os romances ocupam este espaço da tese com
o propósito de dar conhecimento à configuração de seus enredos. Para tal
procedimento, seguiremos a leitura dos romances em conformidade com o sequencia
temporal de suas publicações.
Esclarecemos ainda que se tornou recorrente nos escritos de estudiosos das
obras de Macaggi (SILVA, 2016; ALMADA, 2015; MIBIELI, 2016) a condição de
invisibilidade em que a escritora se encontrava até o ano de 2002, quando a exposição
“Força, graça e magia de mulher” realizada pela Casa da Cultura ‘Madre Leotávia
Zoller’ (SECD-RR) e o Museu Integrado de Roraima (MIRR) evidencia a presença da
autora no meio artístico de então. No ano de 2012 outro impulso foi dado a sua
produção, a saber ‘A mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão norte do
Amazonas’ (2012a) tornou-se uma das obras exigidas como leitura obrigatória ao
exame vestibular para ingresso nos cursos da Universidade Federal de Roraima.
Entendemos que esse acontecimento foi um divisor de águas quanto à circulação das
obras da autora, de modo geral, e, especificamente, no meio acadêmico.
Em 2016 com a circulação do documentário "Nenê Macaggi - Roraima
entrelinhas", de Elena Fioretti, contemplado pelo Ministério da Cultura, foi momento
de grande importância para maior visibilidade das obras da autora. Nesse
documentário são abordadas configurações biográficas de Nenê Macaggi, sua
vivência com pecuaristas e garimpeiros, o ativismo e atuação junto aos indígenas,
agregado a atividades como jornalista, contista e romancista.
Nesse viés, diferentes estudos têm buscado nas obras de Nenê Macaggi
espaço para questões relativas à identidade, ao regionalismo e tantas outras
interpretações que vêm, cada vez mais, afirmar a relevância de suas obras para
diferentes áreas de entendimento. Tornou-se habitual certa economia quanto ao uso
do título dos romances de Nenê Macaggi publicados na Região Norte do país; aqui,
8 A primeira publicação desta obra é de 1976, porem neste trabalho será utilizada a segunda edição
publicada em 2012.
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por uma questão didática também será recorrente. Optamos por esta forma de uso,
frente aos longos títulos atribuídos as obras pela autora.
É através da Imprensa Oficial do Estado do Amazonas que em 1976 surge a
primeira edição de ‘A mulher do garimpo’, consta que circulou em poucos espaços e
exemplares dessa edição podem ser encontrados apenas entre colecionadores. A
segunda edição, feita trinta e seis anos mais tarde, é de mais fácil acesso e será
adotada nesta análise9.
Ressalvamos que a partir das leituras efetuadas nas obras pudemos observar
que os romances em questão foram configurados em uma estrutura própria, nominado
pela autora de ‘Roteiro’. Este recurso talvez apresentem indícios quanto à própria
mobilidade do gênero romanesco, tendo em vista que alinhara-se à confluência de
diferentes formas literárias. Percebemos que o Roteiro adotado por Macaggi configura
certa noção a ser seguida pela autora considerando que são atestados nos
respectivos romances. É valido Sousa (2017, p. 113) quando comenta que essa
mobilidade do gênero pode fazer alusão ainda a estrutura do estilo de Roteiro
cinematográfico, cujo objetivo seria o de o aproximar a ficção cinematográfica daquilo
que é ficcionalizado no livro. Neste caso, Macaggi aparenta fazer a linha inversa e
aproxima a escrita, o mais detalhada possível, na tentativa de descrever cenas que
aproximem-se da dinâmica do cotidiano em uma espécie de cartografia etnográfica
ficcionalizada do Circum-Roraima.
Neste sentido, é possível considerarmos que a dinamicidade do “fenômeno
pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” definido por M. Bakhtin (1999, p. 73) pode nos
levar ao entendimento de que tais indícios apontam para diálogos entre a historiografia
literária alinhada a própria dinamicidade do gênero. É possível que isto possa
coadunar com à própria constituição do herói, posto que rompe com a dinâmica
instaurada nas movimentações e deslocamentos dos personagens mestiço(a)s a
reafirmar a assimilação, pelo gênero, de entendimento cultural como processo de
encontros.
A propósito do gênero romanesco é bom lembrar que Georg Lukács (2000, p.
72) afirma que “o romance é a forma da virilidade madura: isso significa que a
9 A edição que será adotada neta analise corresponde a de 2012. Segundo o editor a referida obra
levou cerca de seis meses para ser concluída. Em conversa realizada em 02/08/2018, ele nos informou
que o fato se deu em virtude do filho da autora, que detém os direitos autorais, imprimir constantes
“correções” no texto da primeira edição de 1976.
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Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração
tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara,
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco
palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias
entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e
do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do
casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao
contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as
ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas
das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um
entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda
amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de
lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da
estalagem ou no recanto das hortas (AZEVEDO 1987, p. 27).
recurso de colagem em que personagens, como Pe. Câmara, narram façanhas dos
“irmãos Pizarro’, de ‘Orelhana’, das ‘Icamiabas’, da geografia dos rios e morfologia do
ambiente.
Há de ser destacado, ainda no fragmento, a expressão “viagem foi
maravilhosa”. A pergunta que nos provoca é como uma síntese de uma longa viaje de
Barco saindo do Rio de Janeiro perpassando por “Vitória... Salvador... Recife...
Maceió... Fortaleza... São Luiz...” até a cidade de Belém do Pará pode ser considerada
tão “maravilhosa”? quais acontecimentos sucederam-se nesse espaço/tempo?
Indagamos dessa maneira visto que a atuação da autora, ao que consta, deu-
se principalmente pelo viés jornalístico. Em 1940, publica em São Luiz o artigo
“Pescando tubarão ... e me adorando” (O Malho, novembro de 1940)10 ou a viajem
feita à Macapá, Santarém, e São Joaquim (Revista Beira Mar-RJ, em 1940)11.
Também do mesmo ano e provavelmente resultado da viagem ao norte do país é o
texto “Retorna ao Rio (O Malho 1939)”12. Embora publicado somente em 23 de abril
de 1941 na Revista da Semana-RJ, mas as informações constam da coleta de dados
em fins de 1940 é o artigo “Instituto de patologia experimenta Evandro Chagas” 13. Em
todos eles há certa receptividade de alguém que está a serviço do Estado. Isto é fato
frente as descrições realizadas pela jornalista sobre a paisagem e os diferentes
espaços por onde esteve em viagem.
Consideremos ainda que em outro momento da narrativa, durante a viagem
entre Belém e Amazonas, o narrador também acrescenta, na íntegra, longo poema
intitulado ‘Criação do Mundo’ (MACAGGI, 2012a, p. 75), constituído de trinta e uma
estrofes, em sextilhas, atribuído ao poeta Esaú, viajante rio-branquense, que segue
com José Otávio até Boa Vista. As sucessivas passagens mais parecem adaptações
de manuais históricos e relatórios14 (MIBIELI, 2016).
No Amazonas, a permanência de José Otávio é repleta de percalços. Para
manter seus gastos financeiros aceita trabalhar como mecânico e vendedor de frutas
na feira de Manaus. Mas é a atividade de motorista do carro funerário da Santa Casa
que se torna determinante para que ele abandone aquela cidade e decida partir em
direção ao ‘extremo Sertão Norte do Amazonas’. Boa Vista do Rio Branco, nesse
período, é apenas uma pequena cidade vinculada ao estado do Amazonas que, além
da produção de gado, funciona como ponto de apoio para os que se aventuram pelos
garimpos do Circum-Roraima.
Na abertura do ‘Livro segundo: o Norte’ a autora abre o texto com um fragmento
da obra Inferno Verde, de Alberto Rangel (1927).
século XX; não sendo, portanto, absurdo tratar Rangel como um ‘euclidiano’, tendo
em vista que Euclides da Cunha prefacia a obra de Alberto Rangel (Inferno Verde,
1927). Parece-nos que a premissa pode ser alongada também a Macaggi, pois além
de leitora de Rangel, ela o cita diretamente em A Mulher do Garimpo. Desse modo,
podemos também consider certo espelhamento em relação a obra ‘euclidiana’, não
apenas por ser leitora de Euclides e Rangel, mas também por apropriar-se,
literalmente, de suas práticas jornalísticas, de pesquisa e registro escritural. Além
disso, Leandro bem delineia essa proximidade entre ambos:
Não é por acaso, então, que ambos se manifestam como vozes genuínas da
realidade amazônica da primeira década do século passado. Além disso,
percebe-se que os dois compartilham uma visão menos paradisíaca do
complexo amazônico. Em À margem da história (1909), por exemplo,
Euclides retira o falso véu que encobre a realidade da Amazônia. Por sua vez,
Alberto apresenta um ponto de vista semelhante nos onze contos de seu
Inferno (LEANDRO 2009, p. 1).
Boa Vista do Rio Branco, pouco acima da linha do Equador ladeava a formosa
Serra Grande, perto de Santa Maria do Boiaçu, ficava na margem direita do
Alto Rio Branco e era cercada pelas Serras Pelada, Grande, Malacacheta,
Moça e Murupú. Distava de Manaus quinhentas e quarenta milhas. Vilarejo
até 1926, pequenino e triste, possuía, na ocasião, regular número de
habitantes. (MACAGGI, 2012a, p. 109)
José Otávio ficou num quartinho em cima do bar do Moura. No dia seguinte
fez amizade com José Manteiga. [...] E com o correr dos dias andaram os
dois Josés visitando famílias e lugares.
- Você parece aborrecido, José Otávio. O que há?
- Nada. É que me enerva estas moças me olharem tanto, como se quisessem
me conquistar. Eu não gosto de namoro. Nunca namorei em minha vida. Não
tenho jeito.
- Mas como você é esquisito, rapaz! Onde já se viu moço de sua idade não
namorar? Podia até arranjar uma noiva por aqui (MACAGGI 2012a, p.112).
Já foi pedida em casamento várias vezes [...]. Tem boa instrução, apesar de
engolir os rr finais. Cursou o Colégio das Dorotéias em Manaus e é muito
prendada. Além disso é herdeira de quase oitocentos quilates de bons
diamantes (MACAGGI 2012a, p.201).
- Seu Vicente, eu não sou assassino! Eu não sou porco, não perdi a vergonha,
não! Era por isto, só por isto que eu não podia amar sua filha! E as lágrimas
escorriam-lhe em fio pelo rosto abatido. Vicente-Pitó, vendo o pequenino seio
16Rio da região fronteiriça Brasil-Venezuela, conhecido por ter sido local de exploração de garimpo
durante a décadas de 1930 e 1940.
33
De repente Pedro Rocha levantou a cabeça e deu com José Otávio. Sorriu,
fez-lhe um aceno com a mão e continuou gigando. E o rapaz, ao sentir aquele
olhar franco e amigo, perturbou-se. Era sempre assim. Vinham-lhe pudores,
avermelhava e empalidecia, numa emoção que o agitava todo, quando via
Pedro. E não atinava com o porquê daquele tumulto interior (MACAGGI
2012a, p. 278).
O sentimento entre ambos é cada vez mais forte e permanece assim durante
todo restante da narrativa, porém, a permanência de José Otávio no Tepequém não
será nada amistosa. América do Norte, ex-marinheiro, arrogante e charlatão, o tirara
34
Não sou Mocinha, Ruiva ou Mulher do Garimpo. Sou é muito macho como
acabaram de ver (MACAGGI, 2012a, p. 274).
Meu Deus! Meu Deus! Estarei sonhando ou endoideci? Mas então era
verdade meu pressentimento! (MACAGGI 2012a, p. 380).
Entendemos que neste ponto a narrativa ganha seu ápice, visto que José Otávio
35
anuncia sua feminilidade. É então realizada uma grande festa para celebrar e oficializar
a união do casal, quando José Otávio é apresentado a todos do garimpo como Ádria.
A narrativa chega ao fim com o jovem casal seguindo viagem em direção ao Ceará,
onde Ádria seria apresentada à família de João Rocha. Porém, uma promessa é
firmada antes da partida: retornar ao Rio Branco com a missão de ter filhos e ajudar a
Amazônia a prosperar.
17Esclarecemos que, por uma questão didática, na tentativa de evitar certa confusão no trato dos nomes
das personagens, tendo em vista que o adjetivo, Dadá Gemada Doçura Amargura, é atribuído no
romance tanto a mãe quanto a filha, usaremos após cada um deste a expressão entre parentes,
(mãe) ou (filha) para referenciar e diferenciá-las durante a narrativa.
36
18Autodenomidados Makuxi é termo que contrasta com os outros povos Karib próximos, os Taurepang
(Arekuna e Kamarakoto) que usam o autodenominação Pemon ('nós', 'gente'). Os Makuxi usam
também Pemon como parte do grupo mais amplo (Andrello 2004). Recebem ainda outros nomes:
Macuxi, Macushi, Pemon, Teweya. Formam parte do grupo de povos Pemon, que os distingue dos
Kapon, que consistem nos Ingarikó (Arakaio) e nos Patamona.
Históricamente a área que é hoje o Estado da Roraima era disputada e invadida por muitos países
desde o descobrimento. A fronteira do Brasil não foi determinada até 1904 que dividiu as terras dos
Makuxi. Portugal não entrou a região pelo rio Branco até o princípio do século XVIII e os índios do rio
Branco sofreram expedições para os levar a Belém como escravos.
Os portugueses conseguiram atrair mil indígenas, que incluíram os Makuxi, a viver em aldeias perto
do rio Branco, mas não tinham sucesso com os Yanomami. Estes índios aceitaram os presentes de
ferramentas, etc. e o batismo católica. Entretanto os indígenas reconheceram em pouco tempo que
seus mestres quiseram mudar sua cultura e forçá-los trabalhar. Duas comunidades fugiram e o
portugueses tomaram represália contra os outros. Mas uma mudança de política atraiu os índios de
novo e em 1789 seis aldeias, uma no lugar de Boa Vista, tinham uma população de 1.051 indígenas,
mas no ano seguinte alguns Makuxi se rebelaram, fugiram e foram capturados depois. De novo as
autoridades castigaram todos os chefes das aldeias que se rebelaram com exílio (Hemming 1995,37).
Depois os portugueses consideram missionários ser a única solução para 'amansar' os índios mas
somente dois padres responderam à vocação em toda a região amazônica. Um deles foi viver em
São Joaquim e formou uma missão no rio Rupununi entre os Wapixana e os Makuxi. Assim ele entrou
em conflito com o missionário protestante Thomas Youd e seu ministério entre os Makuxi.
A criação de gado nos campos desenvolveu no fim do século XIX com 20.000 cabeça e 4.000 cavalos
na região do rio Branco, e os Makuxi trabalharam como peões e remadores nos barcos grandes
levando o gado para Manaus. Os Makuxi eram considerados bons trabalhadores nas fazendas do
governo (Hemming 1995.335). Mas fazendeiros e regatões abusaram sua liberdade para forçar os
37
índios à mão de obra e os punir severamente neste serviço (Santilli 2004). No início do século XX os
Makuxi eram bem aculturados, trabalhando nas fazendas e nos barcos, falavam português mas
tornaram-se presos em escravidão por dívida. Os Makuxi sofreram uma epidemia de sarampo em
1910, fome devido a uma seca em 1911, e malária em 1912 e milhares morreram (Hemming
2003.474). Em 1927 Coronel Rondon começou sete anos de mapeamento das fronteiras nacionais,
indo primeiro ao norte e ajudou em resolver os conflitos entre os Makuxi e Wapixana e os fazendeiros
e colonos (Hemming 2003.209). Rondon descobriu que o maior problema que enfrentou os brasileiros
foi os índios travessando a fronteira para a Guiana Britânica devido ao mau tratamento pelos patrões
no Brasil. Esta situação continuava no anos 40, porque missionários britânicos deu a assistência
médica e prática quando os missionários foram proibidos pelo SPI no lado brasileiro.
No Brasil o líder do SPI, Vasconcelles, argumentou que a conversão dos índios em católicos e
protestantes lhes causou perder interesse na suas identidade étnica e entre 1942 e 1955 proibiu os
missionários trabalhar ente as tribos. Os Makuxi não podiam se subsistir nos pequenos terrenos que
tinham entre as fazendas (Hemming 2004.476). Em 1950 os Makuxi e Wapixana começaram a ser
mais militante em defender seus direitos. Cada aldeia apoiaram um tuxana (chefes) politicamente
ativos, liderado a comunidade Raposa como chefes Gabriel, Odalício e Abel. Tuxana Abel visitou
Brasília e a Roma em 1975, os padres italianos della Consolata sendo ativos entre os Yanomami e
os Makuxi.
Disponível em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-m/123-185-makuxi.html>
Acesso em: 01/10/2019).
38
O romance tem início com a apresentação das duas fazendas coirmãs. Ambas
se localizam no norte do estado de Roraima e pertencem a migrantes nordestinos. A
primeira é a ‘Alvorada’, de propriedade de Vovô Hilário Viana, piauiense, idoso, viúvo.
A descrição da dinâmica entre as personagens nas fazendas é feita por Nenê em
diferentes passagens, a exemplo do fragmento a seguir:
Então vovô Hilário ficou trabalhando em sua fazenda em companhia das crias
e dos empregados, cuidando de seus animais e de suas plantações.
O tempo passou, algumas crias, algumas crias cresceram, casaram e tiveram
filhos e ele também cuidava das novas ninhadas de curumins, brancos e
mestiços, cujos pais nunca quiseram sair da Alvorada por terem bom
tratamento e grande amizade a vovô Hilário. [...] Dentre as novas crias o
preferido era Naldo-Macuxi (MACAGGI 1980. p. 21).
“Rosada como uma atã19 perfumada” (MACAGGI, 1980, p. 23), ‘Dalvina Soares
Gomes’ é o nome verdadeiro de Dadá-Gemada Doçura Amargura e, junto com Naldo-
Macuxi, irá protagonizar os conflitos da narrativa. Dadá, assim como sua filha, recebem
o mesmo nome de batismo bem como lhes é atribuído o mesmo adjetivo. Indígenas mestiças,
ambas passarão por constantes violações durante a narrativa. Serão elas as
protagonistas de passagens em que o espaço se confunde com os dilemas
delineadores da vida das personagens, sejam eles entre o campo e a cidade ou entre
os vícios e as virtudes que se desdobram na narrativa. É como se o corpo das
personagens metaforizasse a violações praticadas nas fazendas.
O sentido dialético se configura principalmente no personagem Naldo-Macuxi,
pois ainda na infância é enviado ao Rio de Janeiro para estudar. É obrigado a
interromper sua relação com o meio em que nasceu e foi criado. O efeito disso é
significativo em sua trajetória, pois os conflitos pelos quais passará o deixarão
vulnerável às seduções propiciados pela metrópole, e o conduzirão ao uso de
entorpecentes.
Apesar de o romance apresentar as outras ‘mestiças’ como ponto central da
narrativa, é Naldo-Macuxi que domina a cena em grande parte do romance. O
coadjuvante assume, assim, o papel de protagonista e conduzirá a narrativa para o
desfecho causado pela união conjugal com Doçura-Amargura, filha de Dadá-Gemada,
representação da união entre as duas fazendas, ao final do romance.
A narrativa nos conduz à hipótese de que é o mestiço, oriundo dos processos de
encontros étnicos entre os povos originários da região e o imigrante vindo do Sul e
Nordeste, o personagem principal do romance. É ele que representará as intempéries
trazidas, ou melhor dizendo, ofertadas pelo projeto desenvolvimentista. Há de ser
recordado que o discurso proferido por Getúlio Vargas em Manaus (1940) já
profetizava essa relação:
Então foi quando Carlos, tendo casado com uma branca no Maú, que lhe deu
dois filhos, resolveu voltar para o Paraná e não querendo misturar seus filhos
de raça branca com Dadá-Gemada, filha e neta de índio, trouxe-a para a
Nuvem Branca e a entregou definitivamente a vovó Geroma (MACAGGI
1980, p. 36).
20Autodenominados de Ye'kuana que significa 'povo da canoa' ou 'povo do tronco na água'. Quando
se referem como so'to que quer dizer 'gente' (Moreira-Lauriola 2003). São também conhecidos como
Makiritare é nome dado pelos Arawak, e adotados pelos Espanhóis. Maiongong é outro nome usado
no Brasil.
Há alguns séculos os Ye'kuana migraram para norte dos rios do Amazonas no Brasil, entrando no sul
da atual Venezuela, deslocando os povos Arawak que estavam na região. Devido à inacessibilidade
do seu território o contato com os espanhóis e os portugueses houve somente na segunda metade
do século XVIII. Mas no século antes viajavam pelo território brasileiro para caçar e chegaram no rio
Branco. Entre 1701 e 1781 os espanhóis penetraram a região para contrariar o avanço dos
Portugueses. Os Ye'kuana dividiram os conquistadores em dois grupos conforme duas experiências
com eles. Os da primeira experiencia era os de Wanadi, o supremo ser, que é representado por a
garça branca, e mestre de metais, ferro e as armas de fogo, com quem se aliaram. Assim o primeiro
contato com os espanhóis eram satisfatório, e os índios prometeram se converter ao catolicismo e
aceitaram a proteção espanhola dos outros indígenas. Porém seis anos depois os espanhóis voltaram
com uma força militar e os sacerdotes proibiram a religião dos índios, diziam que tinham capturado o
Wanadi. Os outros do segundo encontro são de fañuru que fazem o mal, conquistando o território e
escravizando o povo. Estes espanhóis incluiriam militares que obrigaram os índios trabalhar nas
construções dos fortes. Também chegaram missionários capuchinhos e franciscanos, mandados pela
Coroa espanhola, para converter os indígenas. Mas o povo acreditaram que Wanadi escapasse dos
padres e fosse para o céu, e um dos seus pajés liderou a resistência dos Ye'kuana em uma revolta
em 1776 e em consequência os espanhóis abandonaram a região (Mekler 2001). [...]
Nos anos 90 o Exército Brasileiro instalou uma base em Auaris com uma represa hidroelétrica.
Também veio um invasão de garimpeiros que dizimou a população com violência e doenças. Depois
muitos anos de campanha afinal as autoridades no Brasil e na Venezuela reconheceram o Território
Yanomami em 1992. Em janeiro 2009 mineiros de ouro mataram um chefe Ye'kuana e feriram seu
filho em Roraima, porque eles recusaram os levar para cima das cachoeiras no rio Urarioera e
penetrar no Território dos Yanomami. Apesar dos protestos dos Yanomami as invasões estão
aumentando (Survival International).
(Informações disponíveis em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-p/213-
yecuana.html> Acesso em 01/10/2019).
42
configuração política das personagens, visto que seu pertencimento irá acompanhá-
lo nos desdobramentos da narrativa. Observa-se nesse ponto que o ‘estar no mundo’
tem mais significado e sentido no acolhimento entre os pares da mesma condição de
pertencimento.
Da condução do romance infere-se a metáfora do mestiço ‘Macuxi’, ao final da
saga, unindo-se à mestiça Dadá-Gemada Doçura Amargura (filha) possibilitando
entendermos a dinâmica de encontros culturais outros entre povos no ‘extremo sertão
norte do Amazonas’. Dizemos metáfora, pois o enredo levará nossos três
personagens a lugares distintos, até que seu retorno aconteça, levando-nos a
perceber o quão dolorido foi o distanciamento entre eles. O conforto desse tormento
é sanado apenas quando retornam ao local de onde partiram.
No início do romance, ainda na fazenda de Vovó Geroma, Dadá-Gemada
Doçura Amargura (mãe) se apaixona por Alberto Gomes, jovem nordestino de Natal,
casa-se com ele e dá à luz uma menina: Dalvina Soares Gomes (Dadá-Gemada
Doçura Amargura, filha):
companheira. Além das constantes agressões que sofria, pois para manter os gastos
de Carlos era obrigada a prostituir-se, ainda que grávida.
A morte de Carlos, após ser perseguido pela polícia, traz alívio ao sofrimento
de Dadá. Envergonhada por ter abandonado a filha e a fazenda e acreditado num amor
ilusório, Dadá-Gemada, agora com outro filho, migra para a cidade de Maués. A
chegada a Maués não é simples, mas consegue abrigo, para ela e o filho Noni, e
trabalho através da amizade feita com dona Alice, moradora da cidade. Apesar de
iniciar uma nova vida em Maués, Dadá-Gemada vive atormentada com a lembrança
do abandono do lar/fazenda, da família e da filha, mas nutre a esperança de poder
retornar de maneira honrada.
Conflitos similares ao de Dadá-Gemada serão os que Naldo-Macuxi viverá.
Ocupando parte central na narrativa, antes de ser enviado para estudar no Rio de
Janeiro, é ele que protagoniza cenas de traquinagem com Doçura-Amargura. A
liberdade de infância e adolescência mostrará um jovem ‘belo e forte’ em peraltices
pela fazenda.
A partida do Macuxi para o Rio de Janeiro não inviabiliza o sentimento
correspondido que ele nutre por Doçura-Amargura, tanto é que durante o transcorrer
das cenas a relação deles constantemente volta à tona. Agregadas a saudade da
liberdade que havia na fazenda, vieram-lhe as primeiras agressões, e se repetiram
durante sua estada no Colégio: “No começo, já uniformizado, o pobre Macuxi serviu
de chacota. Chamavam-no de Índio comedor de gafanhoto, de Macaco-sem-pêlo,
Olho-de-boto e ele, que era tão violento, aguentava tudo aquilo sem dizer nada, para
evitar briga (MACAGGI 1980, p. 46).
Além da forma depreciativa como era tratado no Colégio, a maneira como é
caracterizado esse “índio” agora ‘uniformizado’ simbolicamente dócil à vida escolar de
então e aos auspícios da vida urbanizada, nos mostra como os processos biopolíticos
de docilização atingem fortemente os sujeitos. Naldo-Macuxi representa bem essa
passagem pela qual passaram os povos originários do Circum-Roraima. O antes
traquino curumim que corria solto pelos campos das fazendas, agora será ‘Dr., Dr.
Arnaldo’.
O percurso de Macuxi torna-se ainda mais doloroso quando de seu
envolvimento com uma prostituta que o inicia no sexo e no uso de maconha. Os
agravantes serão cada vez mais intensos, visto que chega a criar dependência
44
- Naldo? O Naldo-Macuxi? Mas meu Deus, como veio parar nestes ermos?
O que aconteceu a você? Fale, Naldo, fale.
- Minha boa amiga, por favor me dê tempo para relembrar todas as minhas
desventuras. E você vai também me contar as suas, pois tenho certeza de
que não foi feliz com aquele homem antipático com quem fugiu, por quem
abandonou tudo e os que a amavam e que confiavam em você; até sua
própria filha, aquela adorável Dadá-Gemada Doçura Amargura!
Ah, me dê tempo, Dadá-Gemada, me dê tempo para lhe contar todas as
minhas desgraças! São muitas, muitas! (MACAGGI 1980, p. 151).
No dia seguinte, bem cedo, foi conhecer o lado de cima da BR 174, até Santa
Elena e ficou encantado e ao mesmo tempo triste por ver tanta clareira, sinal
de morte para as maravilhosas árvores amazônicas. Mas era o progresso...
(MACAGGI, 1980, p. 174).
Foi até o quintal, onde ela regava umas plantas e pediu-lhe que lhe fizesse
um café. Sem desconfiar de nada, a pobre criança entrou na cozinha. E
imediatamente Gastão pulou sobre ela, tapando sua boca e arrastando-a
para o quarto dele. Dadá defendia sua honra, enlouquecida, mas não era
mais a Dadá-Gemada cheia de vida e saúde que chegara ali e por isso
predominou a lei do mais forte e ele jogou-a brutalmente sobre a cama,
rasgou-lhe a roupa e possuiu- a como um animal sem entranhas, deixando-
a ferida, machucada e completamente exaurida. Depois saiu do quarto para
tomar agua e logo voltou. Dadá estava num canto da cama, jogada,
soluçando estremecidamente. [...] Então chegou perto dela e disse-lhe: - É
melhor ir para o seu quarto. Eu não disse, gata amarela, que você havia de
ser minha?! E saiu assobiando. (MACAGGI 1980, p.75).
Dadá nem se pode defender... Afinal ele achou o que procurava e veio
segurando um enorme pedaço de pau, aproximando-se dela, meio indeciso.
47
Dadá olhou nos olhos dele, que tinham um brilho sinistro e ali viu a morte.
Quis gritar e sua voz não saiu. Dona Cintia ficara a uns dois metros de
distância, olhando, fascinada, o que o filho fazia. De repente Dadá-Gemada
ergueu-se depressa, com a força dobrada pelo instinto de defesa e de
maternidade: era a loba dormida que ia morrer pela cria...
- Anda, Gastão, acaba! Olha a chuva! – gritou dona Cintia...
Criou mais ânimo, suspirou forte e quando ergueu o pedaço de pau, para
descarregá-lo, um raio caiu ali perto, derrubando um galho de árvore que veio
ao chão com estrondo. O maldito levou um grande susto, deu um pulo enorme
e soltou a arma assassina (MACAGGI 1980, p.79).
Como por “um ato divino”, recurso muito comum nos romances de Nenê,
Doçura-Amargura consegue sobreviver e é resgatada por um casal que a encontra às
margens da estrada. Sob seus cuidados ela se recupera e conta-lhes sua história. O
casal se compadece de sua narrativa, interfere na tentativa de assassinato praticado
por seus parentes e, só depois desse episódio é que ela decide retornar ao lugar onde
vivera os melhores momentos de sua vida, a Fazenda.
A recorrência de soluções inesperada para situações que demandam extrema
violência é algo constantemente utilizado nos romances de Macaggi. Tecnicamente,
poderíamos até aproximar do uso do deus ex machina, quando a narrativa apresenta
uma dificuldade ou obstáculo aparentemente sem solução ou de grande dificuldade
que, su r p re e n d e n t e m e n t e , s e r e s o l ve o u p r o g r i d e e m ra zã o d e um fato
inesperado, improvável ou mirabolante, que em geral foge à racionalização (DIAS;
NASCIMENTO, 2014). A expressão originária do grego seria o recurso utilizado no
teatro quando do aparecimento de uma solução divina que, de maneira inesperada,
tem por função solucionar algo que supostamente não seria possível pelas ações
humanas. O aparecimento da divindade geralmente se dava pela ocorrência de
trovões e luzes dando certo ar sobrenatural à cena. Como podemos observar no
fragmento citado acima, em que um raio frustra o assassinato, esta condição ficcional
parece que coaduna com o projeto literário de Macaggi.
Ao que podemos perceber a trajetória das três personagens principais ganha
direções distintas, cujas tramas apresentam recorrências adversas. Isso estaria
explícito nas cenas de violência, que se traduzem em agressões, estupros e sedução
ao sexo e a uso de entorpecentes. O elo unificador entre as personagens aparenta ser a
fio condutor da fazenda no ‘extremo sertão norte do Amazonas’, lugar dos
reencontros. Os desdobramentos desse retorno, nos traz, além de Dadá-Gemada
Doçura Amargura (mãe), a união conjugal entre as personagens Naldo-Macuxi e
48
2.1.3 1984: Exaltação ao Verde (Terra – Água – Pesca): o romance do Baixo Rio
Branco
O fragmento que inicia este ponto da tese nos conduz a pensarmos a pequena
cidade de Boa Vista enquanto embrião do que veio a ser a Capital do Estado de
Roraima através da Constituição de 1988. Contudo, ele também nos traz indícios de
alguns elementos que nos levam a uma breve recuo temporal quanto ao processo
formador da cidade em questão. O fluxo migratório ocasionado pela atividade
garimpeira trouxe consigo outra dinâmica a pequena cidade. A explosão demográfica
e o aumento considerável de índices de violência foram pontos que modificaram
significativamente a relações sociais estabelecidas.
As mudanças pelas quais vai passar a região do extremo norte da Amazônia
parece deixar nos romances indícios dos efeitos da Biopolítica nas formas como os
personagens atuam nas tramas. Entendemos desta maneira ao considerarmos que
se em A mulher do Garimpo (20012), Dadá-Gemada (1980) as relações apresentam
tais efeitos e imprimem no corpo dos personagens suas marcas, este romance
também reafirma a dinâmica dos encontros e suas ressignificações.
O terceiro romance do Circum-Roraima não foge à regra e dialoga com a
matéria nortista historiográfica dos que o antecederam. Inicialmente ambientado na
região do Baixo Rio Branco. Traz como enredo o ideal da ocupação dos espaços
‘vazios’, ainda não colonizados na Amazônia e os processos de grilagem de terra, em
meio a uma trama conflitante em que a violação do corpo feminino é recorrente.
49
21Autodenominados de Ye'pã-masa, Dasea. Sáo também conhecidos como Tucano, Daxsea, Takuna,
Tukána. Segundo o Ins. Antropos tem uma população de 10.934 indivíduos (Brasil: 4.604; Colômbia:
6.330). SIL 1986: 4,630.(2,630 in Brazil). 46 falantes de Wasona, 16 deles casad os com outros grupos
(González de Pérez 2000). Dsei/FOIRN (2006): 10.000 total (Colômbia: 6.330; Brasil: 3.670 (2006);
6.241 (2005) 6330 (1988). Conforme ISA o total populacional é de 11.130 no Brasil (em 2001) e
18.705 na Colômbia (em 2000). Localizam-se próximos aos rios Tiquié, Papui e Uaupés e no rio Negro
a jusante da foz do Uaupés. Na Colômbia: no alto rio Papuri e seus afluentes. São falantes da Língua
Tukano Oriental e português. Gramatica e Novo Testamento Tucano foi publicado em 1988 (SIL).
Historicamente os petróglifos nas pedras de muitas cachoeiras é evidência da ocupação humana da
região do Alto Rio Negro 1200 anos aC. Uma história dos Tariana, que moram na região há séculos,
conta que tiveram que guerrear contra os Tukano e Wanana quando vindo do rio Arai chegaram à
região, em Iauareté, provavelmente no século XIV. Então os Tukano já estava na região antes de
1500 e a invasão dos europeus (Cabalzar 2006.57). Os Tukano no Tiquié dizem que seu antigo
território era no rio Papuri. O primeiro contato do alto rio Negro com os brancos eram objetos, como
ferramentas, comerciados por outros indígenas, seguidos pelas expedições portuguesas à busca de
escravos, acompanhadas de jesuítas acerca 1650 (Cabalzar 2006.73). Escravos tukano entre outros
foram levados para Belém entre 1739-1755 e epidemias de varíola e sarampo arrasaram a região
entre 1740 e 1763, e com a derrota dos Manao pelos portugueses o alto rio Negro ficou despovoado.
Os índios se dividiram entre os que cooperavam com os branco e serviram os carmelitas com a coleta
de produto do mato e os outros que continuaram a resistir. Pombal terminou o trabalho dos
missionários e quis trocar a escravidão pela assimilação dos índios, mas os coloniais continuaram
explorá-los (Cabalzar 2006.80).
No século XIX os missionários católicos participaram na repressão dos índios, aumentada pelos
regatões na exploração do extrativismo (Cabalzar 2006.84). Alguns Tukano podem ter participado
dos movimentos dos profetas indígenas, Kamiko e Alexandre, vistos como perigosos pelos brasileiros,
que provocou mais conflito por 'pegar' crianças tukano e levá-las para Manaus. Os Tukano
enxergaram estes movimentos proféticos como uma vitória indígena sobre os brancos.
Com a estabelecimento da Província do Amazonas em 1850 índios foram enviados a Manaus para a
construção das casas. 60.000 indígenas eram compelidos a trabalhar na extração da borracha. Os
franciscanos estabeleceram missões entre 1880-1888 e provocaram uma revolta por ridiculizar as
crenças tucano, da festa de Jurupi, mas foram expulsos, deixando os índios sofrerem patronagem por
um sistema de escravidão de dívidas no começo do século XX (Cabalzar 2006.90).
A época dos salesianos começou em 1914 e durou até 1952, instalando missões em São Gabriel,
Taracuá, Iauareté, Pari-Cachoeira, Santa Isabel e Assunção do Içana. Reduziram a exploração dos
patrões, mas destruíram a cultura e as línguas indígenas por levar as crianças para serem educados
nos seus internatos, nos quais reinava só a fala portuguesa e uma disciplina rigorosa. Mandaram a
destruição das malocas para substituí-las com casas de famílias nucleares e abandonar o ritual do
Jurupari (Cabalzar 2006.95). Os salesianos só tinha influência no rio Içana depois 1950 e na época
muitos Baniwa se converteram ao protestantismo, mas isso tinham pouco contato com os Tukano.
Em 1979 o governo cortou os verbos e os salesianos terminaram o regime dos internatos.
O Plano de Integração Nacional (1970) incluiu a tentativa de construir a estrada BR-307 do Acre,
lingando Benjamim Constante e São Gabriel da Cachoeira com Cucuí, na fronteira com a Venezuela.
Só este último trecho foi construído. Em 1988 a nova Constituição deu direitos aos indígenas, mas
levou uma década de luta, com a formação das Associações indígenas do rios para conseguir a
demarcação e homologação das Terras Indígenas do Médio rio Negro, Téa e Apapóris em abril 1998.
A Escola Indígena Tukano Yupuri em São José II foi estabelecida em 2009 com ensino médio e forma
segunda turma do ensino fundamental. Oficinas em astronomia eram realizadas em 2006 (Cardoso
2007). O ensino inclui atividades relacionadas a técnicas alternativas de produção e sustentabilidade
51
como piscicultura e manejo agroflorestal e por meio delas são abordados de outras matérias
tradicionais.
Disponível em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-t/175-282-tukano.html>. Acesso
em 01/10/2019).
52
alvo de grileiros até os dias de hoje. Outro ponto a ser evidenciado neste romance, e
que segue a proposta literária de Macaggi, refere-se à abordagem da representação
da violência. A paisagem, o pitoresco, são apenas elementos iniciais que nos levariam
a questões mais complexas da dinâmica social amazônica e suas configurações. A
mulher e o corpo violado são recorrentes no romance, seja no ambiente doméstico ou
nos espaços públicos de convivência, é fortemente marcada pela luta por manter-se
viva, poderíamos até inferir que a resistência estaria presente no corpo enquanto
escrituração da luta pela vida.
A violação do corpo da ‘mestiça’ Luana encontra-se no Capítulo III, nominado
de ‘Livro Terceiro’, é prenunciado no subtópico ‘Pressentimento’. O acontecimento
ocorre em uma das vezes que Luana acompanha o pai, Lúcio, até a cidade de Boa
Vista. A narrativa segue a descrever o espaço por onde as personagens passam, a
bordo da pequena embarcação.
Há um ponto na narrativa em que aparenta haver certa interferência da voz
autoral, quando narra a aproximação dos personagens de Boa Vista. Nessa fala, a
cidade é depreciada pelo modo como foi construída. Nessa passagem destoa, assim
como em outros momentos da narrativa, do enredo do romance, visto que nela há a
clara emissão de juízo de valor quanto à forma de ‘cidade de trânsito’ em que se
constituiu, servindo apenas como ponto de apoio para os exploradores do ouro. O
narrador compara a maneira calma e ordeira que existia com estilo “sem lei”, do
garimpo em que ela se tornou. Podemos inferir que aquele garimpeiro, desbravador e
colonizador da região do Circum-Roraima, agora protagonizam uma outra fase, a do
embrutecimento das relações sociais, a intensificação do desordenado ciclo migratório
dos anos 1980, além das implicações dos agravantes ambientais pelos quais passam
os locais onde ocorre a exploração do ouro e diamante.
Dois monstros meio trôpegos e barbados, pularam sobre ela, com os olhos
cuspindo volúpia e um deles, como um raio, lhe tapou a boca com as mãos.
E também como um raio, ela mordeu-a e ele largou um gemido de dor.
Furioso, deu-lhe uma bofetada tão grande que ela caiu sobre o capim e,
xingando-a, amarrou-lhe um pedaço de pano imundo que tirou do bolso. E
ela os reconheceu! Eram os dois bêbados do botequim! A cena foi horrível!
Luana se defendeu como pode, num esforço doloroso, sentindo aquelas
quatro mãos ásperas como lixa percorrendo seu corpo, desnudando-a e
aquele hálito horrível sobre seu rosto. Suas esperanças logo se
desvaneceram, pois frágil como era, de que jeito poderia vencer aqueles
tarados tão fortes? (MACAGGI 1984, p. 251).
22 Subgrupo Yanomami.
23 Subgrupo Yanomami.
59
Com muita concordância por parte dos que ouviam Dr. Geraldo e nenhum
questionamento quanto a proposta apresentada, o personagem atua como político
61
24
O povo Yanomami é divido em quatro ou cinco grupos linguísticos.
Historicamente os Yanomami provavelmente são descendentes de um povo que ficou isolado nas
cabeceiras do rio Orinoco, e começaram sua diferenciação interna há sete séculos. Conforme suas
tradições sua antiga terra era a terra firme da Serra Parima, entre o Orinoco, atualmente na Venezuela
e os afluentes do rio Branco que desce para o rio Negro no Brasil (Albert 1999). Os espanhóis
penetraram a região procurando o El Dourado. Os Portugueses construíram uma fortificação perto
das desembocaduras dos rios Uraicuera e Tacutu no rio Branco e tentaram atrair os índios e mais de
mil eram estabelecidos em aldeias no Branco. Não conseguiram a ganhar os Waiká (Yanomami) sair
das colinas entre os rios Branco e Orinoco. Por isso este povo e a maioria dos Atorí têm sobrevividos
dos perigos de contato. Os primeiros contatos com os Yanomami foram por Cel Manoel da Gama
Lobo d' Almada que foi acompanhado por alguns Yanomami (Hemming 1995.32,36), e pela expedição
de Bodadilla em 1789. Eles sobreviveram as epidemias e escravidão por viver na terra firme
interfluvial até o século XX (Chernela et. al. 2002.13). Os Carmelitas montaram uma Missão com
outras etnias no rio Branco em 1846, mas esta tentativa perdeu os seus índios e o frade Pereira tentou
persuadir os Yanomami tomar o lugar deles, mas recusaram (Hemming 1995.326).
O SPI montou postos entre 1940 e 1960 que eram fontes de objetos manufaturados e providenciou
um pouco de assistência de saúde e também de epidemias de sarampo, gripe e coqueluche (Albert
1999). A tentativa de converter os índios falhou muitas vezes, mas trouxeram tratamento médico e
educação em português. Depois 1973 os brancos invadiram a região com a construção da Rodovia
Perimetral Norte. Este projeto chamado 'Calha Norte' tinha o alvo de colonizar uma faixa perto da
fronteira que pretendia opor a possibilidade de invasão por estrangeiros (Rabben 2004.98). Somente
250 km de estrada dos 1.500 km projetados, 200 no território Yanomami, foram construídos porém o
contato trouxe degradação social, doenças e conflitos. Em 1975 o governo brasileiro fez um
mapeamento dos recursos minerais da região (RADAM).
Projetos de colonização principalmente no oeste de Roraima resultou em: estradas, fazendas,
serrarias, canteiros de obras e os primeiros garimpos (Albert 1999). 1.500 Yanomami morreram sob
a investida da 'civilização' entre 1987 e 1990 pela água contaminada e as doenças, inclusive a malária,
introduzidas pelos garimpeiros. Em muitos lugares os indígenas deixaram de construir os xabono para
viver em cabanas cobertas de plástico e ficaram tão doente que não mais cultivavam suas roças.
Disponível em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-y/104-329-yanomam.html>.
Acesso em: 01/10/2019).
acende a fogueira por todos os lados, com aquela pilha de cadáveres que ele
besunta com mais maim. [...] Os dois se afastam e ficam olhando o braseiro
[...] O ritual do Iapa dos Uaicás é parte de seus “costumes religiosos” e eles
comem o peicamuns aos poucos, nas refeições, para ficarem fortes,
corajosos e bons guerreiros... (MACAGGI, 2012b, p. 34).
[...] Parte dos Xirianas subiu o Mucajaí com perione (tuxaua) Concha Velha e
no xobono ainda estão Chico e Macaco, que vivem de Vender peixe para os
napês ou auaus (brancos).
Eis os nomes de maior parte das “famílias” da nação uaicá:
Xamatautheres - Povo do Xamatá
Motomatautheres - Povo da Cotia
Uratoritheres - Povo do Fogo
Tootobitheres - Povo de David
Uniotitheres - Povo Preto
Opititheres - Povo da Mãe Anta
Uatotiquitheres - Povo da Serra do Vento
Maxorinxinotheres - Povo da Serra do Porroabiuxi (MACAGGI, 2012b, p. 19).
É possível verificarmos nos fragmentos citados, que esse exercício será uma
constante no decorrer da obra. Essa movimentação na escrita nos aponta que, assim
como nos romances anteriores, a escrituração parece ajustar-se a própria dinâmica
por que passa o corpo das personagens. Os encontros culturais traduzem-se também
na ressignificação dos nomes, a exemplo de “Tootebitheres - Povo de David”, o que
destoa por completo dos outros nomes relacionados anteriormente que fazem alusão
a animais, cores e serras.
O encontro ocasionado entre culturas, subverte e opera na língua dominante,
mesclagens linguísticas entre a Língua Portuguesa e as diferentes Línguas indígenas
presentes na região do Circum-Roraima. Essa condição pela qual constrói
especificidades nos romances permite que as personagens apresentem elementos de
uma variante híbrida.
Há de ser recordado que Deleuze e Guattari fazem considerações quanto a isto
afirmando que essa dinamicidade reinventaria a linguagem a partir de línguas
socialmente menores:
Quantos é que vivem hoje numa língua que não é sua? Ou então nem sequer
a sua conhecem, ou ainda não a conhecem, e conhecem mal a língua maior
67
que são obrigados a utilizar? Problema dos imigrantes e, sobretudo, dos filhos
deles. Problema das minorias. Problema de uma literatura menor, mas
também de nós todos: como é que se extrai da sua própria língua uma
literatura menor, capaz de pensar a linguagem e fazê-la tecer conforme uma
linha revolucionária sóbria? Como devir o nómada, o imigrante e o cigano da
sua própria língua? (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 43).
A saber que as tarefas agora desenvolvidas pelos Uaicá na fazenda vão aos
poucos lhes ajustando aos moldes do processo pelos quais os indígenas da região do
Circum-Roraima estão passando. Talvez o estado de soberania apontado nos
romances macaggianos reverberam os influxos da docilização e controle como reflexo
dos desdobramentos da Biopolítica que incidem sobre os corpos vulnerabilizados.
Recordemos ainda que, a proposta de estado nação do século XX está para
além da ampliação do território. Implicaria mais em referendar sua força, riqueza e
poderio a fazer-se presente no espaço já conquistado tomando-o produtivo. Para que
isto se afirme é necessário zelar pela saúde, educa-lo nas habilidades necessárias
para o estado capitalista desenvolvimentista e, principalmente, discipliná-lo.
Adestrar os corpos aos ritmos de vida agenciadas pela Biopolítica que permite
extrair dele tempo e produção, tornando-o útil e economicamente eficaz. Para tanto,
além dos mecanismos de poder como escolas e a noção de família aos moldes
capitalista, os dispositivos ideológicos agem como desvirtuados dos questionamentos
possíveis frente aos efeitos causados. Vejamos a passagem:
para que assim ela pudesse fazer parte das atividades domésticas, cotidianas da
fazenda, e portar-se em presença dos não índios. Essa mediação será exercida pelo
paranaense Manoel, o capataz, que atua como protetor dos trabalhadores da fazenda,
em muitos casos evita os desmandos e agressões praticadas pelos proprietários.
Ressaltemos que as relações de poder que são exercidas na fazenda seguem
a linha da estrutura do patriarcado. Isto mostra que o senhor das terras exerce controle
sobre aqueles que estão dentro do espaço. Em se tratando do romance em questão,
as relações que se estabelecem ali, frequentemente apontam para violações e
agressividade contra os que nela estejam, principalmente aqueles que não façam
parte da genealogia da família.
Os processos de resistência que irão se desdobrar na narrativa representam os
acontecimentos ocasionados pelos processos de contato, colonização e docilização
dos indígenas na dinâmica das fazendas do Vale do Rio Parima. A violação, neste
caso, estaria para além do que se diz enquanto identidade, mas aponta para questões
muito mais amplas, se alojam nos processos de Biopolítica cujas cintilações
apontadas nos romances de Nenê Macaggi nos conduziriam para a construção do
sujeito a partir dos influxos da sociedade contemporânea.
Lembremos que a voz narrativa nos levam a observar não um empoderamento
tácito sobre o indígena, mas certo ajustamento aos moldes da sociedade que se
instaura na região. As manifestações da resistência a tal processo se dão na
imanência corporal, da repulsa no ato da fala ou mesmo na maneira de agir
abandonando a fazenda. Vale lembrar que a voz que ressoa na narrativa é que define
a percepção da personagem indígena na sociedade descrita no romance.
No comum o índio caça e pesca para comer e não derruba senão árvores de
que precisa para o espaço do xaboono do pororó e da ricare. Nará-Sué não
é exceção e sim uma espécie de ecologista natural sem estudo, que ama o
arvoredo, adora os animais, sacrificando-os por que precisa comer, e respeita
a Mãe-Natureza, certa de que em seu corpo corre, misturada ao sangue, a
seiva dos troncos que são a aorta vegetal e também a clorofila das folhas
(MACAGGI, 2012b, p. 57).
alojados, após longa explicação do capataz Manoel, a relação que lhe é direcionada
corresponde a de patrão e ‘empregado’ (p. 84), pois os trabalhos que lhes atribuem
serão gratificados em forma de ‘pagamento’. Contudo, o trato direcionado a eles é
depreciativo e intolerante: ‘bocós’, ‘lesmas’, ‘bugres’.
O tom pejorativo aparenta afirmar que as políticas de controle vinculadas ao
expansionismo na Amazônia. A representação dessa dinâmica é exercida pela
presença do perpetrador, aquele que tem o poder de vida e morte sobre seus
subjugados. Neste caso, Dona Francisca e, posteriormente, seu filho Lauro,
representariam esse perfil.
A dinâmica implementada na fazenda pode ser entendida em duas articuladas
linhas de entendimento: inicialmente vinculadas às atrocidades praticadas por Lauro;
a outra, ligada as violações e barbáries realizadas e/ou autorizadas pela ‘Fera-mãe’.
Lauro é o típico perpetrador e tem, nos aceites da mãe, soberana, todo o apoio que
deseja para suas malvadezas:
Lauro cursou boa escola em Boa Vista, sem aproveitamento nenhum, sempre
péssimo aluno, valentão, soqueando os colegas e dando enorme trabalho às
mestras, levantando a saia das colegas, além de grande desgosto ao pai por
recusar a se alistar e sempre apoiado pela mãe. Em casa cospe nas criadas,
bolina as meninas, apedreja os animais e os telhados, degolando as galinhas,
balando os pássaros, furando os gatos e cachorros, eternamente defendido
pela megera-mãe, dona absoluta dos Três Amores desde que falecera o
marido (MACAGGI 2012b, p. 87).
Depois pulou na cama, tal qual um sapo, ergueu a enferma, ajeitou-se a seu
modo, e abriu-lhe as pernas cobertas de sangue; empunhando então uma
pequena faca enferrujada, de seu uso, meteu logo o punho inteiro no útero
da infeliz criatura, cortando... cortando...e logo o sangue escurecido escorreu
junto com os pedacinhos do couro cabeludo e da carne do inocentinho que
não teve a ventura de ver, sequer, a luz do dia ou receber um beijo materno
(MACAGGI, 2012b, p. 101).
Relativo ao que nos afirma o filósofo francês o corpo é resultante dos efeitos
de instituições, de discursos construídos social, cultural e historicamente. Ao longo
dos tempos, os vínculos resultariam do exercício do poder sobre o corpo dos sujeitos
e populações. Verifica-se ainda na citação, que o século XVIII trouxe à luz formas de
poder adotadas pelas sociedades ocidentais cuja vida humana torna-se o centro das
estratégias de controle. Historicamente, a figura do “soberano” é substituída pela
presença do Estado enquanto detentor de poder e controle. Nesse momento,
assistimos a uma mudança considerável quanto a ação do poder sobre a vida. O
entendimento do Soberano de “fazer morrer e deixar viver” é substituído pelo poder
75
do Estado em “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT 2002, p. 287). O Estado passa
a investir na vida humana enquanto força necessária a manutenção econômica e
produtiva. É o corpo adestrado e docilizado que está em construção para atender a
proposta de mercado.
Para que esse procedimento seja efetivado, o controle da vida da população
perpassa agora a ser formulado através de dispositivos. As estratégias adotadas para
que isso dar-se-ão justamente no surgimento de instituições de caráter clínico,
pedagógico, sexual e jurídico. Os dados produzidos pelas diferentes instituições que
foram criadas, possibilitam ao estado a justificativa legal para intervir na forma de vida
da população.
Ainda sobre a citação de abertura, percebemos que a mudança de paradigma
revela a atuação de grupos privados de esferas sociais ligadas as ideologias
capitalistas. Segundo G. Agamben (2004, p. 37) dispositivos vinculados
principalmente a saúde das pessoas são estabelecidos para agrupar os corpos,
principalmente ligados a reformulação física deste para que assim possa pertencer ao
grupo e melhor atender a demanda econômica.
Nessa miríade os delineamentos pensados por M. Foucault relativos ao
entendimento de Biopolítica tornaram-se fundamentais para reflexões quanto aos
desdobramentos a respeito da mudança de paradigma do poder soberano para o
biopoder. Isto aparece na obra Em defesa da sociedade, onde M. Foucault afirma que:
socialmente, teríamos por conseguinte a vida sobre os efeitos de contato pelos quais
as populações humanas tem passado ao longo dos tempos. Pensando por este viés
é possível que os efeitos demandados através dos encontros étnicos sejam respostas
à própria dinamicidade da Biopolítica.
Neste caso, os Romances do Circum-Roraima bem representam essa
movimentação humana em favor do capital, cujos diferentes meios artísticos o tem
representado de diferentes formas; a título de exemplo são os trabalhos de Eliakim
Rufino e o Movimento Roraimera que apropriam-se dos encontros étnicos
demandados na região do Circum-Roraima, resignificam-no a partir da poesia e
música; também podemos citar o escritor Davi Kopenawa através da narrativa de
testemunho. E mais recente, o escritor, músico e poeta Cristino Waipichana indicado
ao prêmio Jabuti 2019 na categoria Literatura juvenil. Em se tratando dos escritos
deixados por Nenê Macaggi, acreditamos nos conduzirem a entendimentos referentes
aos dispositivos que atuaram com eficácia das biopolíticas na referida região.
Dessa maneira, o narrador do romance A Mulher do Garimpo, afirma que:
Pensando por este viés, podemos aproximar a citação quanto a reflexão dos
pensadores italianos, de linhagem foucaultiana, aos processos de ressignificação
pelos quais passam as populações humanas. Acreditamos que para o entendimento
da Biopolítica, alinhar ela apenas relacionada à relações de poder, é perder de vista
elementos outros que incidem no corpo, efeitos exercidos pela Biopolítica.
Seguindo essa linha interpretativa, Giorgio Agamben, em Imanência absoluta
(2005b, p. 1) retoma as reflexões sobre o conceito de Biopolítica formulados por M.
Foucault (2013) ao indagar-se sobre a noção de “vivente” (AGAMBEN, 2005b, p. 14).
O filosofo italiano parte do quesito da exclusão do ser vivente da pólis grega, ainda
que a ela continuasse a pertencer. Melhor dizendo, o vivente é um ser que
desprovido de todos seus direitos jurídicos de cidadão da pólis, permanece vivendo
77
nela, mas submisso e subordinado a tudo e a todos que decidirem sobre sua
existência, politicamente desqualificada.
Partindo das noções gregas de bíos (vida politicamente qualificada) e zoé (vida
nua, desqualificada), o filósofo italiano passa a refletir que essa condicionante seria o
traço distintivo para o entendimento sociopolítico ocidental moderno e/ou
contemporâneo, mais precisamente a vida nua como provocativa na dinâmica social
contemporânea. Agamben (2004, p.12) defende a ideia que o ingresso da zoé na
esfera da pólis, a politização da vida nua como tal, constitui o evento decisivo da
modernidade. Este acontecimento assinala uma transformação radical das categorias
político-filosóficas do pensamento clássico. Nesse viés, entendemos que o corpo é
retomado como ponto central de discussão empreendida pelo filosofo italiano a partir
da noção política ocidental contemporâneo de inclusão/exclusão social.
A saber, se a zoé está retirada da norma que rege a pólis, teríamos um Estado
de Exceção (AGAMBEM, 2004) para geri-la, inclusão por exclusão, tendo este,
segundo o autor, tornando-se regra para qualificar e/ou desqualificar a vida/corpo em
sociedade. Quanto a isto, Agamben afirma que “na idade da Biopolítica este poder
[soberano] tende a emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder
de decidir sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante”
(AGAMBEN, 2002, p. 150). Lembremos que o poder a que o filosofo se refere
corresponde ao Soberano, o que gerencia, determina e ordena a vida/corpo
contemporânea; a zoé estaria, por assim dizer, em constante dinâmica social e
artística. Pensando por este viés, se o corpo metaforiza a vida, narrada nos romances
do Circum-Roraima, neste caso a ‘vida nua’ subalternizada, em sociedades
contemporâneas estaria ele como ponto de referência deste paradigma.
Pensando por este ângulo, em conformidade com G. Agamben (2013, p. 153),
acreditamos que a Biopolítica pode assim ser entendida não somente enquanto
disciplinadora do corpo, mas que atua no sentido de qualificar ou aniquilar a vida/corpo
em sociedade, incidindo nele sua condição de ser vivente, explorável ou não,
transitando entre a natureza e a humanidade, assegurado apenas por condicionantes
biológicas de subordinação às decisões do poder soberano.
A esta questão, a categoria corpo mestiço que iremos discutir mais a frente,
como mencionado no fragmento textual do romance A Mulher do Garimpo (MACAGGI,
2012a), aparenta representar essa condicionante de desqualificação, pois a jovem
78
Desde a relevância cada vez maior assumida pelo elemento étnico nas
relações internacionais ao impacto das biotecnologias sobre o corpo humano,
desde a centralidade da questão sanitária como índice privilegiado do
funcionamento do sistema econômico produtivo até a prioridade da exigência
de segurança em todos os programas de governo, a política aparece cada
vez mais esmagada contra a nua capa biológica, se não sobre o corpo mesmo
dos cidadãos em todas as partes do mundo. A progressiva indistinção entre
norma e exceção determinada pela extensão indiscriminada das legislações
de emergência, junto ao fluxo crescente de imigrantes privados de toda
identidade jurídica e submetidos ao controle direto da polícia, tudo isso indica
um ulterior deslizamento da política mundial em direção à biopolítica
(ESPOSITO, 2006a, p.15).
Não é [...] fundamentalmente contra o poder que nascem as lutas, mas contra
certos efeitos de poder, contra certos estados de dominação, num espaço
que foi, paradoxalmente, aberto pelas relações de poder. E inversamente: se
não houvesse resistência, não haveria efeitos de poder, mas simplesmente
problemas de obediência (FOUCAULT, 1999, p.76).
27Disponívelem:
<https://www.researchgate.net/publication/297608717_A_formacao_humana_no_contexto_da_consu
macao_metafisica_do_sujeito_etica_da_potencia_de_Agamben> Acesso em 11 de agosto de 2019
84
zoe aionos (vida eterna). E o uso dessa noção não teria nada de inocente. O
Filósofo não hesita em classificá-la como uma vida a ser governada (nesse
caso, pela vontade e da educação que lhe é correlata pela delimitação de
outra experiência de pensamento). (FREITAS, 2015, p. 419).
A categoria corpo mestiço a ser abordado nesta sessão da tese, melhor alinha
quando o foco de nosso olhar visualiza a categoria dos corpos (In)Dóceis. Alongamos
nossa mirada para além do olhar acercado de exotismo que, em certa medida é
atribuída aos corpos étnicos da Amazônia. Contudo, percebemos que ainda nesse
obscurantismo criado quanto aos sujeitos étnicos, efeitos da Biopolítica sobre este,
tonalizados de preconceito, violações e subjugo nos faz perceber certo receio quanto
ao assumir-se como tal.
Dizemos dessa maneira, visto que até mesmo nos espaços institucionalizados,
e seus dispositivos de preenchimento cadastral a nós é omitido a opção de sujeito
mestiço. Institucionalmente, assumir-se mestiço é algo ainda incomum e muito menos
passivo de aceite ao convívio social cotidiano. É possível que nessa postura estejam
justamente os lastros biopolíticos de preconceito em assumir-se como tal na dinâmica
étnica amazônica, retratada nos romances do Circum-Roraima. Ao longo desta tese,
temos verificado ressonâncias desse ato alojando-se nos atravessamentos
discursivos das falas das personagens, representações nas escrituras e
acontecimentos historiográficos deixadas nos rastros narrativos produzidos por N.
Macaggi.
Este projeto artístico registra, com recursos da ficção, um período de formação
social da Amazônia fronteiriça, tempo cuja preocupação apontada pelas falas das
personagens era, em muitos casos, manter-se vivo. Um hiato que ficcionalizava a
existência de grupos humanos em dinamicidade constante nos garimpos, nas
fazendas e savanas, cuja memória atuaria no campo ficcional a demonstrar as tensas
85
E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma
do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela
deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não
mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos (FOUCAULT,
2010, p. 347).
o filosofo francês “não aceitar como verdade o que uma autoridade nos diz que é
verdade” (Foucault, 2013, p. 385).
A posição que tomamos quanto as dúvidas e desconfianças frente a docilização
do corpo como algo dado é um ganho ao propósito aqui construído enquanto corpo
(In)-Dócil, visto que se desdobra-se como ação afirmativa, resultante da enfática
maneira de posicionamento contrário a naturalização das estratégias de controle.
Segundo Foucault,
mas que ao mesmo tempo renega à todas, típico da Biopolítica engendrada na versão
mais recente do capitalismo, o neoliberal. Poderíamos inferir a existência de certa
“higienização” de identidades. Existiriam aquelas já capturadas pelo poder ordenador,
dando-lhes, com certa ressalva, acesso à vida politicamente qualificada, e as
identidades ainda negadas, as que padecem na vida desqualificada (AGAMBEM,
2002).
A questão levantada não difere quando nos referimos ao ‘ser intermediário’
(MATTA, 1986), ‘inominável’ (BUTLER, 2018). Nos damos conta que os paradigmas
excludentes ainda permanecem agindo, capturam e tentam o anulamento de maneiras
distintas. É necessário indagarmo-nos constantemente quanto a isto, principalmente
ao trazemos a luz questões tão delicadas e provocadoras, entre estas a mestiçagem
como processos de encontros étnicos. Talvez seja o momento de reivindicarmos
termos que desestruturem classificações e rotulagens, descolonizadores baseados no
‘per-vertimento’, conforme apontado por Sarmento-Pantoja (2012). Mais que uma
identidade, necessitamos de identificações que sejam pertinentes e relativas com
aquilo que nos é significativamente singular. Talvez estejam nessas provocações a
recorrência de personagens mestiços dos romances do Circum-Roraima.
O velado processo de agenciamento que tenta anular corpos (In)Dóceis ao
longo da história é notório. Contudo, não podemos negar que, entre outros tantos, os
indígenas, os negros, os gays, transsex afirmam-se entre tantas outras vozes
insubmissas contemporâneas. Apagar a memória sobre/destes corpos (In)Dóceis nos
remete ao estudo feito por Neves e Cardoso (2017) quanto ao ensaio fotográfico
efetuado por Cláudia Adujar:
que era, é devolvido ao uso dos homens. ‘Profano’” (AGAMBEN 2007, p 65), então
asseveramos que a potência do corpo mestiço, flutuante, ‘Profano’, mesmo nos
processos de exclusão em que é constantemente submetida atua provocador ao
poder soberano. Em O uso dos corpos (2017), Agamben novamente retoma este
debate. Segundo ele:
Uma vida, que não pode ser separada de sua forma, é uma vida para a qual,
em seu modo de viver, está em questão o próprio viver e, em seu viver, está
em jogo sobretudo, seu modo de viver. O que significa essa expressão? Ela
define uma vida – a vida humana – na qual cada um dos modos, dos atos e
dos processos do viver nunca são simplesmente fatos, mas sempre e
sobretudo são possibilidades de vida, sempre sobretudo potência
(AGAMBEN 2017, p.233).
negados. O corpo (In)Dócil, entendido como processo, não apenas das dores
traumáticas causados pelos violentos encontros representados nos romances, mas
também dos gracejos e amores incondicionais que não reconhecem fronteiras de
gênero e raça.
O corpo indígena mestiço, para além dos encontros que antecedem a moderna
civilização, encontraria na dinâmica sociedade amazônica setentrional forte
representação do trânsito entre o sagrado da ancestralidade dos povos originários e
as mudanças na paisagem trazidas pelas formações arquitetônicas das metrópoles, a
exemplo de Belém, Manaus, Maués, Boa Vista e Santa Elena de Uairém-VE
(MACAGGI 2012a, 2012b; 1980; 1984). Carrega consigo os constantes conflitos das
incertezas oriundas das Biopolítica desenvolvimentistas instaurada na Amazônia.
Construir um pensamento do corpo indígena mestiço como categoria (In)Dócil
perpassa não apenas por sua presença e forma singular provocativa de insubmisso,
mas também reconhecer nele vozes outras como os negros, prostitutas, gays e
transsex pobres, os indígenas e suas constantes lutas em romper com estereótipos
historicamente inscritos, a ferro e fogo, em seus corpos. Além disto, ver neste corpo
as reverberações da biopoder que elimina áreas de florestas, rios, lagos, em alusão a
necropolítica que aniquila pequenos agricultores, ambientalistas e indígenas
instaurando situações de Exceção enquanto regra no espaço Amazônico, narrado nos
romances.
Desta feita acreditamos que o corpo indígena mestiço atua nos romances como
categoria (In)Dócil, escape e alternativa transgressora, atuando enquanto fronteira,
possibilidade provocativa aos limites ordinários dos processos de governabilidade.
Demonstra ainda que haveria um campo de força que atua na própria dinâmica da
Biopolítica agindo para impedir que sejamos governados por completo, possibilitando
práticas de insubmissão, de questionamento, de rebeldia, de (In)Docilidade. É o corpo
atuante na movimentação de ‘per-vertimento’ (SARMENTO-PANTOJA 2012, p. 130).
Verter a regra no sentido de entender a dinâmica ressignificação efetuada por
Macaggi a partir dos encontros, mas não aceitar a forma violadora como este é
implementado, posto que naturalizar a violência e a banalização da vida humana,
frente ao interesse do poder soberano deve ser entendido como condicionantes de
Exceção, a vista do que é narrado nos romances do Circum-Roraima. Na tentativa de
alinhaves que possam fortalecer nossa busca, o tópico a seguir apresentará
95
Quanto a esta questão, Achille Mbembe, a partir dos referenciais dos estudos
de M. Foucault cunha o termo Necropolítica, que bem problematiza os acontecimentos
historiográficos violadores e aniquiladores. Vejamos,
Considerando que Agamben nos traz a categoria corpo como escritura das
relações de poder, poderíamos então, partir do entendimento de Biopolítica aplicada
ao uso do corpo nas propostas desenvolvimentistas que instituíram o Estado-nação
ao logo do século 19 e que, a partir das reverberações também no século 20, é
possível verificar as recorrências quanto ao corpo mestiço como ponto de ocupação
principalmente nas então colônias que passam pelo processo de criação do Estado-
nação na América Latina.
Emanuel Mariano Tadei (2002), ao tratar desse assunto, localiza a experiência
brasileira quanto à formação do Estado-nação e seus desdobramentos em razão do
corpo mestiço. Afirma ele que o corpo mestiço seria no Brasil o efeito de ‘dispositivo de
poder’ usados para a substituição dos escravos negros.
Em certa medida o pensamento de Tadei é coerente, uma vez que se apoia na
reflexão foucaultiana em que relações de poder exercidas a partir da referência de
raça são marcantes na construção do que se chamou de ‘identidade nacional
brasileira’. Segundo ele, o antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, em Casa grande e
senzala (2006), teria contribuído fortemente para naturalização desse entendimento
de mestiçagem, visto que a postura do escritor foi a de aceitar o fenômeno como ato
sumariamente consumado, sem apontar indícios outros, neste caso os efeitos do que
discutimos enquanto Biopolítica. Tadei provoca ainda mais ao comentar o sistema de
colonização portuguesa:
99
[...] essa tendência atribuída por Freyre aos portugueses não se aplica aos
casos da colonização portuguesa da Índia e da África. Nessas regiões, que
apresentaram outras formas de colonização, não ocorreu a mestiçagem como
aqui. Se ela fosse uma marca registrada dos colonizadores portugueses, por
que não ocorreu também em outras colônias mantidas por Portugal? Isso nos
faz pensar que a mestiçagem que ocorreu em larga escala no Brasil deve ser
analisada tendo em vista o projeto de colonização aqui desenvolvido pelos
portugueses. (TADEI 2002, p. 03)
presença do corpo mestiço, a partir do dispositivo que o rotulou como ‘pardo’ no Brasil,
enquanto mais uma categoria a figurar nos grupos marginalizados, hierarquizados
socialmente.
Há de ser reconhecida a reflexão que põe em xeque a mestiçagem como uma
proposta Biopolítica, assim como pensada por Kabengele Munanga (2008) quando
afirma que a mestiçagem seriam a política de branqueamento das etnias outras. O
antropólogo afirma isto fundamentando que o processo de dominação implementado
no sistema colonial brasileiro não contaria apenas com a força bruta do negro e todo
o aparato ideológico que representou para afirmar e justificar o pensamento
‘desenvolvimentista’, mas também nas estratégias que garantiram sua permanência
e eficácia no cunho administrativo, político, social excludente e preconceituoso.
Em entrevista prestada à revista Estudos Avançados, fevereiro de 2004, o
antropólogo da USP, Kabengele Munanga, discute a dificuldade de identificação do
“negro” no Brasil. Ao nosso ver esta mesma problematização pode ser aplicada o
quanto hoje no Brasil é difícil se assumir e identificar-se como Mestiço, talvez pelo
próprio estigma construído quanto ao sujeito desprovido de identidade própria, fora
das categorias de etnias socialmente valoradas, ou mesmo pertencente a uma
categoria, por assim dizer, de ‘vida politicamente desqualificada’ (AGAMBEN 2002, p.
11).
Mas, retomemos a questão da ‘identificação do ser negro’ discutidos por
Munanga, para que a partir do que ele aponta possamos alongar nossa reflexão. A
saber:
A reflexão que o autor nos traz é relevância para o que propomos, porém
delimita o ideal do binarismo: primeiro por nos apontar que a delimitação do corpo do
indivíduo apenas pela aparência da pele é extremamente frágil; segundo, por afirmar
que a construção ideológica que o conceito de raça traz é, também, excludente. Nesse
101
Em Boa Vista muitos sabem ler e escrever, porque foram criados por branco.
E fora têm mostrado que bugre não é tão burro como dizem. Veja Dorval de
Magalhaes, filho de uma índia, Maria Jaime, flôr de bondade. Veja Rondon,
grande general, corajoso, também, dos Borôros de Mato Grosso. E muitos
outros em todo Brasil. Aqui é que não se dá valor aos índios. (MACAGGI
2012a, p. 142).
propõe a temática do texto base. O que nos chama a atenção é a mescla, colagens
que se juntam em um conjunto de linguagens. Para além disto, a pergunta é quem seria
o autor e se isto importaria, visto que resulta de texto assinado por diferentes mãos?
Esta alusão à plataforma idealizada por Viveiros de Castro apresenta a tese
sobre o quanto nossas vidas estariam entrelaçadas por metáforas como esta, que
apontam ainda para as relações estabelecidas no campo das artes. No mesmo texto
da entrevista, Viveiros de Castro discute a questão identitária de maneira provocativa.
No tópico ‘Identidade, isso pega?’ ele nos chama à reflexão:
30Disponível
em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/107/161> Acessado em: 13 de
maio de 2019.
110
As cores verdes invadiam toda a minha vista. Era como se eu abrisse os olhos
no fundo da água limpa. Nuvens e ondas se misturavam. E folhas, folhas
verdes, vertendo cores de todas as cores, reverdeciam na água. E a água e
as nuvens na minha mente. Eu mesmo não sei quando se deu o meu primeiro
encantamento. Não sei se foi quando abri os olhos no fundo, bem dentro
d’água, ou quando comecei a sentir a minha vida também por dentro. Só sei
que, daí por diante, fazer um filho, para mim, era grande necessidade
(MONTEIRO, 1995, p. 9,).
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A
origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos
meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal
de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio
deserto, até que uma das margens a acolhe (HATOUM, 2006. p. 54).
O fragmento nos conduz a inferências que nos mostram indícios de que o corpo
mestiço errante, aparenta buscar um lugar de raiz. Contudo, esse espaço de
pertencimento é algo que lhe escapa constantemente tendo em vista sua condição de
corpo insubmisso ao ordenamento dos diferentes lugares por onde passa. É
justamente, este sujeito de emergência nos romances literários produzidos na
Amazônia, um corpo que se movimenta, estrangeiro e pertencente, ao seu espaço de
origem e ao mundo moderno das cidades que surgem.
Nessa mesma linhagem romanesca dos encontros étnicos, podemos encontra
o personagem Tapuio, de José Verissimo (1886), em que pese sua longa referência
sobre a dinâmica dos encontros que se sucedem no espaço a amazônico de então. O
processo de hibridização apontado por Verissimo, bem como por romancistas como
Monteiro, Hatoum, ressignifica a noção do caboclo como aquele sujeito vivente
(AGAMBEN 2002, p. 12) na área rural dos espaços amazônicos. É justamente o
sujeito que atuará nas ressignificações dos espaços sociais, cultural da Amazônia.
A essa população que habita as margens do grande rio e dos seus numerosos
affluentes, vivendo a nossa vida, contribuindo para a nossa receita,
trabalhando nas nossas industrias, e que não é nem índio puro, o brazilio-
guarani, nem o seu descendente e, cruzamento com o branco, o mameluco,
é que parece-me, cabe o nome tapuia (VERRISSIMO, 1886, p.12).
de afirmar que a tez não define o corpo caboclo, tão pouco define, em consonância
com o fragmento da obra, a classe social.
Assim também em Dadá-Gemada,
O excerto mostra o que estaria para além do que ficou conhecido enquanto
branqueamento da raça. Vincular-se-ia mais ainda aos dispositivos instituídos
enquanto politicas desenvolvimentistas propostas por G. Vargas, que forçou fluxo
intenso de migrações na Amazônia, do que propriamente a higienização racial.
Pensamos assim, pois se os fluxos migratórios não reconhecem fronteiras e devem
ser entendido as enquanto desdobramentos da Biopolítica empreendida na Amazônia.
A parteri dessa dinâmica, os processos de encontros étnicos tornaram-se inevitáveis
frente as movimentações humanas evidenciada por Macaggi. Essa relação também
aparece no romance Nará-Sué Werená (2012):
faça praticar um desatino. Mas me diga, criatura, de onde vem essa coragem, esse
ardor que a toma toda e faz você me enfrentar com tanta altivez como se fosse um
homem?” (MACAGGI 1980, 53). O que podemos observar na citação é que o corpo
que provoca desconfiança ao poder soberano, reverberado na voz do personagem
Clovis, ou que não atende ao forma de conduta socialmente estipulada para atender
ao pensamento heteronormativo seria passivo de violações.
Nessa linha de entendimento, defendemos a recorrência de uma identidade
historicamente negada representada pelos corpos mestiços nos romances do Circum-
Roraima. Dizemos dessa maneira por acreditar que eles dão indícios que podem atuar
como redimensionadores de leituras sobre as obras a partir de discussões sobre
relações etnia e de gênero à luz das discussões pós-coloniais. Afirmamos ainda, por
termos em vista que os romances apontam para questões pertinentes a representação
do corpo travestido na obra, o que fortalece a recorrência de subalternidade.
Segundo Tadei (2002, p.3) o discurso que harmoniza a democracia das raças,
e neste caso alongamos às questões de gêneros, invisibiliza as tensas e violentas
relações nos processos migratórios. Ao considerarmos os corpos mestiços como
construídos nesses processos, passamos a entende-lo não enquanto ocupante de um
lugar de possibilidades e encontros, engendrados frente a dinamicidade das relações
geradas nos ciclos migratórios evidenciados nos romances. Acreditamos que o projeto
romanesco desenvolvido por Nenê Macaggi aparenta haver certa preocupação com
os processos de mestiçagem, no sentido de vislumbrar o corpo mestiço como aquele
que traria prosperidade para os espaços que estão sobre os efeitos do
desenvolvimentismo varguista, podendo ser constatado na matéria nortista, produzida
por Macaggi. Acreditamos que para além desse discurso desenvolvimentista, haveria
algo a mais que emerge das fissuras entrediscursivas.
A saber, podemos inferir que as vozes mestiças presentes nos romances nos
apontam indícios quanto a reinvindicação da condição de mestiços alinhados as
reinvindicações das minorias subalternizadas. Por esta maneira, partimos do
entendimento que as obras romanescas de Macaggi não ocorre negação ao o corpo
mestiço; entendemos que o projeto literário faz uma afirmativa da presença corporal
dos mestiços. Dessa maneira, pensemos na categoria corpo enquanto ato
provocador, corpo mestiço indígena e (In)Dócil, reivindicando sua existência na biós.
É justamente nessa perspectiva que os tópicos seguintes foram construídos, no
122
33Apassagem de Hamilton Rice, reaparece na obra ‘Exaltação ao Verde’ (MACAGGI 1984, p. 230). Há
de ser destacado o estudo sobre esta questão feito por Carla Monteiro de Souza, em ‘Uma visão da
Guiana brasileira: a expedição de Hamilton Rice pela Amazônia’. Segundo ela: “Alexander Hamilton
Rice Jr (1875-1956) pela região do Rio Branco, atual estado Roraima. Esta viagem, realizada entre
1924-25, que tinha objetivos geográficos, produziu um material significativo para o estudo da região,
pois além de produzir um relatório rico em informações e comentários produziu um importante registro
fotográfico e fílmico, de seus lugares e sua gente. Aqui se aborda a obra que reproduz parte do
relatório, intitulada “Exploração na Guiana Brasileira”, publicada pela Editora Itatiaia e pela
Universidade de São Paulo, em 1978, na Coleção Reconquista do Brasil.”. (Disponível
em:<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=134652599003> Acesso em: 20 de junho de 2019)
123
Roraima, isto também pode ser aplicado, tendo em vista que reverberam tais
construções sociais.
O conjunto de dispositivos de controle, usados com a intenção de anular os
manifestos contrários a essa forma Biopolítica de captura dos corpos serão fortes
indícios das diferentes formas de violações pelas quais passarão os corpos
vulnerabilizados socialmente, nos romances.
Nesse desdobramento, acreditamos que a mobilidade instituída pelo sistema
capitalista neoliberal possibilitou à Biopolítica agir não apenas vinculada ao poder do
estado, mas em diferentes formas de ação a interesse do capital financeiro como
agenciamento do social, político, econômico e cultural. Nessa miríade, as práticas de
resistência têm se reinventado, justamente na dinâmica da vida cotidiana em
sociedade. Quanto a isto Peter Pál Pelbart (2003, p. 13) afirmar que “a vida tornou-se
o alvo supremo do capital. As práticas violentas para permanência das propostas
biopolíticas pautadas no modelo político-econômico, marcam experimentos
traumáticos, indícios deixados no corpo de sucessivas violações”.
O espaço das narrativas, Circum-Roraima, atua enquanto conjunto ordinário da
Biopolítica justamente no “populismo desenvolvimentista” cujos corpos mestiços
experimentam os diferentes desdobramentos dessa proposta. Os efeitos da
Biopolítica do aniquilamento, expropriação e apropriação do território imprime no
corpo das personagens, rastros de violações.
Podemos considerar que a própria existência do (In)Dócil demonstra os
registros de experiências de violações agenciadas durante todo processo de
ocupação do território amazônico brasileiro. Indícios desses embates podem ser
vistos nas formas de silenciar das personagens Dadá-Gemada e, Naldo-Macuxi e
Luana, resultante das sucessivas práticas de submissão à continuas violações.
O processo ideológico construído e reverberado nas narrativa primou pela
‘desqualificação’ não apenas dos corpos mestiço, mais ainda o próprio espaço é
narrado com certo teor de marginalidade, tendo por prática o ordinário discurso de
progresso para “o bem da nação”. Tudo o que nela está padeceria da intervenção do
poder “salvador” do estado para retirá-la da condição primitiva em que supostamente
se encontra. A citação a seguir, assevera a reflexão e dialoga com a fala de Varga, a
seguir:
124
Desejo trabalhar muito, fazer progredir essa fazenda e conto com vocês, os
empregados daqui.
Nada de criação bovina, equina ou caprina, anão ser o necessário à
manutenção da fazenda. Quero viver da agricultura, arroz, milho, cana, e soja
plantadas, da produção de pomares, tentar plantar alguns pinheiro e
guaperuvus, como lembranças do meu estado. Galinha, pato, peru, porco, só
para o nosso gasto.
Quero flor, muita flor. Vou encher de girassóis este lugar e mudar o nome de
Três Amores. (MACAGGI 2012b, p. 109)
Nada nos deterá nesta arrancada que é, no século XX, a mais alta tarefa do
homem civilizado conquistar e dominar os vales das grandes torrentes
equatoriais, transformando a sua fôrça cega e a sua fertilidade extraordinária
em energia disciplinada. O Amazonas, sob o impulso fecundo da nossa
vontade e do nosso trabalho, deixará de ser, afinal, um simples capítulo da
história da terra e, equiparado aos outros grandes rios, tornaserá um capítulo
da história da civilização. (VARGAS, 1940).
Ádria. A vida nua evidenciada através do travestimento, para ser melhor entendida
nesta cena da narrativa deve levar em consideração que o corpo da criança
representa as condições de vulnerabilidade e fragilidade do ser humano frente as
diferentes práticas abusivas. O corpo vulnerável às violação, agora travestido de
homem, passaria a pertencer a sociedade construída para aceitar o discurso
masculino como representação da voz soberana.
Após diferentes tentativas de fixar morada no Sul, José Otavio decide migrar
para o norte do Brasil. A investidas violadora não cessão e alimentam ainda mais os
conflitos e sentimento de desamparo da personagem. Na fase adulta, José Otávio já
na dinâmica embrutecida do garimpo terá sua sexualidade desafiada pelos outros
garimpeiros.
A Ruivinha [...] A Mulher do Garimpo vai se haver comigo. Vou dar em cima,
vocês vão ver. E vamos nos divertir! Prometo! [...] Vou lhe dar dois beijos na
boca e quero ver o que ele faz.[...] Não sou Mocinha, Ruiva ou Mulher do
Garimpo. Sou é muito macho como acabaram de ver (MACAGGI 2012a, p.
274).
Depois pulou na cama, tal qual um sapo, ergueu a enferma, ajeitou-se a seu
modo, e abriu-lhe as pernas cobertas de sangue; empunhando então uma
pequena faca enferrujada, de seu uso, meteu logo o punho inteiro no útero
da infeliz criatura, cortando... cortando...e logo o sangue escurecido escorreu
junto com os pedacinhos do couro cabeludo e da carne do inocentinho que
não teve a ventura de ver, sequer, a luz do dia ou receber um beijo materno
(MACAGGI 2012b, p. 101).
Foi até o quintal, onde ela regava umas plantas e pediu-lhe que lhe fizesse
um café. Sem desconfiar de nada, a pobre criança entrou na cozinha. E
imediatamente Gastão pulou sobre ela, tapando sua boca e arrastando-a
para o quarto dele. Dadá defendia sua honra, enlouquecida, mas não era
mais a Dadá-Gemada cheia de vida e saúde que chegara ali e por isso
predominou a lei do mais forte e ele jogou-a brutalmente sobre a cama,
rasgou-lhe a roupa e possuiu-a como um animal sem entranhas, deixando-a
ferida, machucada e completamente exaurida. Depois saiu do quarto para
tomar agua e logo voltou. Dadá estava num canto da cama, jogada,
soluçando estremecidamente. [...] Então chegou perto dela e disse-lhe: - É
melhor ir para o seu quarto. Eu não disse, gata amarela, que você havia de
ser minha?! E saiu assobiando (MACAGGI 1980, p. 75).
Dois monstros meio trôpegos e barbados, pularam sobre ela, com os olhos
cuspindo volúpia e um deles, como um raio, lhe tapou a boca com as mãos.
E também como um raio, ela mordeu-a e ele largou um gemido de dor.
Furioso, deu-lhe uma bofetada tão grande que ela caiu sobre o capim e,
xingando-a, amarrou-lhe um pedaço de pano imundo que tirou do bolso. E
ela os reconheceu! Eram os dois bêbados do botequim! A cena foi horrível!
Luana se defendeu como pode, num esforço doloroso, sentindo aquelas
quatro mãos ásperas como lixa percorrendo seu corpo, desnudando-a e
aquele hálito horrível sobre seu rosto. Suas esperanças logo se
desvaneceram, pois frágil como era, de que jeito poderia vencer aqueles
tarados tão fortes? Arrastaram-na, rasgaram-lhe as roupas, arranharam-na,
morderam-na, um deles esculpiu-lhe no seio, com uma navalha, de leve, uma
cruz e a possuíram-na bestialmente (MACAGGI 1984, p. 251).
Até agora o clima caluniado impediu que de outras regiões com excesso
demográfico viessem os contingentes humanos de que carece a Amazônia.
Vulgarizou-se a noção, hoje desautorizada, de que as terras equatoriais são
impróprias à civilização. Os fatos e as conquistas da técnica provam o
contrário e mostram, com o nosso próprio exemplo, como é possível, às
margens do grande rio, implantar uma civilização única e peculiar, rica de
elementos vitais e apta a crescer e prosperar (VARGAS, 1940).
Essa reflexão, além de nos dar indícios sobre o teor subjetivo do texto, pode
conduzir-nos a uma crítica à perpetuação de práticas que se naturalizam em nossa
sociedade contemporânea. Revelar essa “ocultação” é, também, olhar o fenômeno
por outro viés, possibilitando maior visibilidade aos escritos deixados por Macaggi.
A naturalização de costumes patriarcais, como reverberações do poder
soberano, suas decisões sobre as verdades que sustentaram sua permanência no
centro das ações chegam a invisibilizar a produção artística de diferentes autoras e
autores. Sobre este ponto de vista:
a história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje
na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e
anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da
genealogia nas sociedades patriarcais do passado: primeiro, a sucessão
cronológica de guerreiros heroicos; o outro, a sucessão de escritores
brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com
heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como
casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço
para mulheres ‘normais’ (LEMAIRE,1994, p. 58).
E o próprio Vicente Pitó veio servi-lo. Olhou para a filha muito vermelha e
disse:
- O senhor num arrepare neste meu diabinho que só está ocupado quando o
senhor vem aqui (MACAGGI 2012a, p. 193).
Já foi pedida em casamento várias vezes [...]. Tem boa instrução, apesar de
engolir os rr finais. Cursou o Colégio das Dorotéias em Manaus e é muito
prendada. Além disso é herdeira de quase oitocentos quilates de bons
diamantes (MACAGGI 2012a, p. 201).
35Currutelaé o nome dado ao lugar onde os garimpeiros da beira do rio Madeira, Amazonas, vão ao
encontro de prostitutas, bebidas, músicas ao fim do dia, podendo ser até mesmo em barracas de lona.
Zona, casa de prostituição, boates também são chamados de currutela.
139
afirmação da vida se dá pela maneira resistente de ser mulher, para além das
fronteiras dos territórios que definem gênero e sexualidade. Porém, a noção de vida
nua, marcada em A Mulher do Garimpo, em referência ao travestimeto pode nos
apontar constante situações de Exceção tornando-se regra a ser narrada. Dessa
maneira, a narrativa sobre Ádria as cenas de barbárie presentes na narrativa em torna
o ponto culminante do romance. Em ‘A mulher do garimpo’ o que temos poderia ser
interpretado como uma provocação à sociedade patriarcal que se instaurou na Região
do Circum-Roraima, representado nos romance em análise. É possível perceber
ainda, o travestimento enquanto dispositivo operando como salvaguarda do corpo
feminino. Dessa maneira, entendemos que o travestimento não aparece nas referidas
obras de maneira ocasional pode, sim, demonstrar-nos clamores outros omitidos e
silenciados ao longo dos tempos.
É possível concluir que, conforme Candido (2016)36, só é franqueado a mulher
atuar no garimpo em condições inferiores; na obra de Macaggi, a afirmação de Ádria
como mulher em meio aos garimpeiros demonstra que José Otávio, travestido, além
de representar o dispositivo de resguardo do corpo é também a maneira inventiva de
provocação ao poder soberano e patriarcal. Nesse contexto, em ‘A mulher do
garimpo’, o corpo de Ádria demonstra não a ‘mera vida’, mas o corpo que elege a vida
como ato político. Ressaltemos que Candido (2016) aborda a figura emblemática de
Marina Meu Caso – ‘a goiana ‘38’, que para atuar no garimpo da em Itaituba-Pará,
travestiu-se de homem e assim tentar fortuna.
Não chegou o rapaz a andar uns metros, quando Carne gritou por ele: - José,
venha aqui! Grande novidade! Depressa, rapaz!
O futuro garimpeiro aproximou-se rapidamente e prestou atenção. e ouviu,
três, quatro vezes, a sensacional notícia da declaração de guerra do Brasil a
Alemanha e à Itália. Quatorze nações, entre as quais a Inglaterra, os Estados
Unidos, a Rússia, a França, a Holanda, a Bélgica, a Tchecoslováquia, a
Grécia, a Polônia e a Yugoslávia cantaram hinos nacionais em homenagem
ao Brasil. Os Estados Unidos leram uma homenagem de Rousevelt a Getúlio
Varga, muito bonita. (MACAGGI 2012a, 144)
37Reigota,M. A devastação ecológica em cinzas do norte de Milton Hatoum. Psicologia & Sociedade,
26(3), 707-715, 2014.
142
38 MONTEIRO, Benedicto. Verde Vagomundo. 2 ed. Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. 257 p
39 JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Belém: EDUFPA, 2004.
40 _______. Chove nos Campos de Cachoeira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.
143
“Luana estava na proa, atenta e de repente gritou: - Pai, uh, pai, olhe, lá está
ela! Lá está ela!
Era de fato Boa Vista, a bela cidade-leque bordada de mangueiras, antiga
Freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Boa Vista, outrora uma cila e hoje
cidade cheia de gente boa e hospitaleira[...]” (MACAGGI 2012ª, p. 233)
42Disponívelem: <http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/72-
resenha/2265-makunaima-obra-re%C3%BAne-antigas-hist%C3%B3rias-de-ind%C3%ADgenas-de-
roraima.html> Acessado em 07/08/2019.
146
cujo rasgo na floresta amazônica aberto expôs a forma mais cruel e inumana dos
efeitos da Biopolítica. Se o etnocídio praticado contra os Yanomami recebeu grande
repercução a interdição de boa parte da BR 210, isto não ocorreu com a 174, pois o
objetivo de interligar o estado do amazonas ao caribe venezuelano foi cumprido e os
danos causados ao Waimiri-Atroari, talvez até mais agravante que os Yanomami,
omitidos pela “História Oficial” sobre o estado integracionista na Amazônia. Na ação,
os Waimiri Atroari beiraram o extermínio por completo de seu povo. O violento
processo desenvolvimentista tem nas estradas seu maior símbolo de intervenção e
impacto na transformação do espaço. Quanto a isto, Macaggi, em Dadá Gemada
(1980), narra que:
“Mas eis que invade o amazonas uma benemérita onda de nacionalidade que,
fortificando a mentalidade moça na consciência e no valor de si mesma,
prepara e solidifica um futuro brilhante para o nosso Brasil.
Estamos na época da Agricultura e do fundamento, o difícil, mas realizável é
a organização técnica, social, comercial e agrícola das propriedades rurais
ajustando o homem, já conhecedor do que planta à terra, para saneá-la,
debelando as epidemias e as endemias, fazendo arrefecer, portanto, o
maldito impaludismo que tanto aquebranta a resistência humana. É preciso
desbravá-la, civilizá-la e habitá-la, a fim de subjulgar-lhe a feroz e natura
agressividade.” (MACAGGI 2012a, p. 54)
43Disponívelem:
<https://www.google.com/search?q=BV+9+RODOVIA+BRASILIA+CARACAS&source=lnms&tbm=isc
h&sa=X&ved=0ahUKEwiu5fvWwoDkAhVSHLkGHVtrBmgQ_AUIEygD&biw=1366&bih=608#imgrc=Xp
8YoU8CuJewqM:> Acesso em 29/07/2019.
150
“Em viagem perguntou Rondom: - Eh, Parente Alberto, de que era feita
aquela damorida tão esquisita?
- Camarão-do-campo, Chefe. Cousa muito boa, melhor do que sapinho
moqueado.
- Mas o que é camarão-do-campo, homem?
- Gafanhoto, Chefe, gafanhoto dos grandão, de perna cor de jerimum...
Rondom sorriu meio amarelo e calou-se.
Com Rice, em 1925, foi à cachoeira do Tucujimã, no Alto Parima Ali viu os
porquinhos, na cabeceira do Mucajaí, bravios, que tinham esse nome por
andarem pelo mato, tanto os homens como as mulheres e crianças, fungando
hum! hum! hum! para imitar porco do mato e espantar onça e sucuriju.”
(MACAGGI 2012ª, p. 147)
Em outra passagem:
Haveria no fragmento citado algo a mais a ser observado que estaria para além
apenas do espaço enquanto efeito do explorável, em analogia ao ‘matável’
(AGAMBEM 2002, p. 12), mas que delineara-se ao processo de exclusão que institui
zonas periféricas. Dizemos dessa maneira, tendo em vista o próprio processo de
colonização na Amazônia que manteve a região do Circum-Roraima no “isolamento”.
Justamente nessa zona de exclusão que potencializou-se a dinâmica dos encontros
étnicos culturais narrados nos romances do Circum-Roraima. Dessa maneira os
rasgos feitos pelas construções das estradas transnacionais, traduzem as práticas
violadoras do poder soberano que deixou marcas profundas nos corpo/espaço. As
152
formas como isto é resignificado trazem iluminações quanto a dinâmica das relações
fronteiriças apontadas nos enredos narrativos em análise. Esta dinâmica relação
Nestor Garcia Canclini (2008) nomeia de Culturas Híbridas, tensionamentos de
complexas relações estabelecidas no plano narrativo, como vistas no Capítulo I desta
tese.
A forma como os indícios da reformulação dos espaço, desprovido e carente
de desenvolvimento para atender o mercado, antes mesmo da interligação efetuada
pela construção da BR 174 nos traz indícios dos encontros e violações.
A passagem nos faz perceber o estilo ainda interiorano que o pequeno povoado
ainda detém, contudo o efeito causado pela construção da BR 174 foi preponderante
para mudanças sistemática na região. Exemplo significativo é disposição de como foi
pensada a moderna cidade de Boa Vista, conforme a narrativa de Macaggi descreve
“Era de fato Boa Vista, a bela cidade-leque bordada de mangueiras, antiga freguesia
de Nossa Senhora do Carmo de Boa Vista, outrora uma vila e hoje cidade [...]” (1980,
p. 233).
A moderna cidade de Boa Vista é representativa a forma como ela foi
“implantada” em obediência a arquitetura dos prédios Estatais, bancos em diálogo
com o capital. As escolas apontam que o espaço rudimentar, passava por
transformações e afirmava mais ainda a presença do Estado como forma de demarcar
sua presença docilizadora e soberana na região. A pequena vila de Boca Vista da
infância de Arnaldo Macuxi modificou-se:
“[...] muito admirado com o progresso. Ele estava sofrendo de uma doença
chamada ‘vontade de ver tudo’.
A Catedral, os Bancos, a Fazenda, o Forum, o INPS, o Parque de Exposições,
o Estádio do Canarinho, o Ginásio coberto Hélio Campos, os Bairros da
Aparecida, da Mecejana, São Vicente, 13 de Setembro, 31 de Março e o
melhor deles, o São Francisco, passaram por sua inspeção.
Atravessou a Bela ponte do Macuxis e do Caumé, pisou nas ruas e avenidas
asfaltadas, olhou os prédios públicos de construção moderna, a quantidade
de boas residências particulares, a corrida barulhenta dos taxis, motocicletas
e carros particulares.
153
Tanta, tanta coisa nova que não se cansava de admiras, de devorar com os
olhos.” (MACAGGI 1980, p. 173)
“Desde a noite Tuxaua Ernesto, com sua família e seus convidados Macuxis,
Uaipixanas e Ingaricós, esses de rabo de pano vermelhonescondido dentro
da calça, tomavam acento ao redor da mesa reservada para eles, conversado
em sua gíria e rindo muito.
Várias cunhãs tomavam conta de seus curumins, de cócoras e enfiadas em
vestidos feios e esquisitos, feitos a mão por elas mesmas e com colares e
enfeites de miçanga.
Outras davam de mamar e era engraçado olhar os gulosinhos, tão bonitinhos
alguns! Agarrados aos peitos compridos e bicudos das mães, peitos que se
fossem jogados para tras iam brigar por um lugarzinho na oitava vertebra, a
partir do pescoço.
Havia também várias cunhatãs cheirosas e pintadas, de roupas coloridas e
brincos pendurados, que aguardavam a hora do rebolado com bastante
ansiedade.” (MACAGGI 1980, p. 219)
“O Apiaú [...]
Seus habitantes eram uns poucos Aicás. Que plantavam pimenta mas não a
usavam na damorida e possuíam castanhais, balatais e seringais e em suas
águas passavam jandiás e muito pacamão.
A floresta que abrigava esse rio tão formoso, também filho da selva bruta,
estava sendo indiscriminadamente varrida por madeireiros que lhe
exploravam o cedro, tombando-o às centenas e abrindo claros na obra-prima
da Natureza, claros que pareciam dolorosas feridas escalvadas manchando
o verde maravilhoso daquela vela e rica região.” (MACAGGI 1984, p.224)
“Carne-Assada, meu amigo, nesta hora grave e séria, perante Deus e minha
consciência juro que me é humanamente impossível casar com essa moça.
Entre nós há uma barreira intransponível. Desgraçadamente não lhe posso
explicar a causa, porque equivale a lhe revelar um segredo que só a mim e
a Deus pertence.” (MACAGGI 2012a, p. 226)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo que nos ocupou ao longo desta tese foi o de efetuar leitura analítica
nos romances do Circum-Roraima com a intenção de verificar como Nenê Macaggi
reescreve os processos biopolíticos no interior de uma economia social e política de
viés desenvolvimentista, na Amazônia setentrional. Ao lermos a obras por esse ângulo
interpretativo acreditamos que o conjunto romanesco possibilitam uma discussão,
atravessada pela reflexão que nasce da Biopolítica, cujos efeitos deixam marcas nos
corpos das personagens.
Essa possibilidade de leitura se desdobra em duas linhas de observação: a
intertextuadade entre elementos jornalísticos e literários quanto à escrita
historiográfica e a ressignificação dos arquivos de pesquisa da escritora; aspectos
materializados na escrita dos romances faz frente a presença dos indícios
historiográficos, diluídos em rastros de uma época e modo de pensar a Amazônia
setentrional. Em outro giro, as inferências intertextuais justificariam uma série de
colagens estilísticas, igualmente distribuídas pelo conjunto narrativo; um corpus de
personagens, que se constituem de corpos mestiços e travestidos, violentamente
acuados no viés desenvolvimentista, figurando na subalternidade.
Nesse processo, observamos que os romances trazem diferentes
acontecimentos ocorrido no país a partir da década de 1960, cujos efeitos apontam
tensionamentos históricos direcionados à Amazônia setentrional. Frente a esses
redimensionamentos trazidos pelas obras, verificamos que as estratégias utilizadas
por N. Macaggi para ficcionalizar os dados históricos e encontros culturais também
permitem que a escriturações traga à luz o corpo enquanto principal categoria a
sustentar a reflexão sobre a vida politicamente desqualificada e os mecanismos de
sobrevivência. Mecanismos esses que a “História Oficial” brasileira marginalizou, ao
silenciar a dinâmica dos encontros étnicos no espaço amazônico.
É explícita nos romances a condicionante marginal, principalmente quando
tomamos por base o título da obra que inicia a produção romanesca de Macaggi no
norte do país, A mulher do garimpo: o romance no extremo sertão norte do amazonas.
O grifo em destaque, aponta para algo longínquo denotando aspectos de extremos e
exoticidade. Denota, inda, uma fratura no espaço narrado. Entendemos dessa
maneira, frente aos desdobramentos dos enredos das narrativas ocasionados através
161
teor higienista é justamente a partir dele que emergem o corpo transgressor do ‘per-
vertimento’ denunciando possibilidades outras de entender a dinâmica dos encontros
étnicos e sexuais. É possível que a pouca fortuna crítica nos aponte não o
desinteresse pela produção artística da autora, mas o auto re-conhecimento de lastros
históricos de violações sobre corpos indígenas mestiços (In)Dóceis como categoria
emergente.
167
REFERÊNCIAS
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COSTA, R. Sem pena nem cocar: configurações do índio em Nenê Macaggi. 2018.
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Roraima,
Boa Vista, 2018.
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______. A literatura e a vida. In Crítica e clínica (pp. 11-17). São Paulo: Ed. 34,
2011.
______. Immunitas: the protection and negation of life. Cambridge: Polity Press,
2011.
______. A vida dos homens infames. In:______. O que é um autor? Lisboa: Nova
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______. Microfísica do poder. 28. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco,
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______. Exaltação ao Verde: Terra – Água – Pesca. Boa Vista: S/I, 1984.
PELBART, P.P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. 29. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
ANEXOS
ANEXO 1
175
ANEXO 2
176
ANEXO 3