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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS - ESTUDOS LITERÁRIOS

HUARLEY MATEUS DO VALE MONTEIRO

BIOPOLÍTICA E LITERATURA: Corpos Indígenas Mestiços e (In)Dóceis em


Romances de Nenê Macaggi.

Belém - PA
2019
HUARLEY MATEUS DO VALE MONTEIRO

BIOPOLÍTICA E LITERATURA: Corpos Indígenas Mestiços e (In)Dóceis em


Romances de Nenê Macaggi.

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da
Universidade Federal do Pará, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Letras.
Áreas de Concentração: Literatura, Memórias e
Identidades.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Tânia Maria Pereira


Sarmento-Pantoja.

Belém - PA
2019
HUARLEY MATEUS DO VALE MONTEIRO

BIOPOLÍTICA E LITERATURA: Corpos Indígenas Mestiços e (In)Dóceis em


Romances de Nenê Macaggi.

Tese apresentada ao programa de pós-graduação


em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da
Universidade Federal do Pará, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Letras.
Áreas de Concentração: Literatura, Memórias e
Identidades.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Tânia Maria Pereira


Sarmento-Pantoja.

Data da avaliação: ____/____/_____


Conceito: ______________

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja
UFPA – Orientadora

_______________________________________
Prof. Dr. Carlos Augusto Nascimento Sarmento-Pantoja
UFPA – Avaliador Interno

_______________________________________
Prof. Dr. Carlos Henrique Lopes de Almeida
UFPA – Avaliador Interno

_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana Helena de Oliveira Albano
UFRR – Avaliadora Externa

_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Valéria Crístian Soares Ramos da Silva
UEPA – Avaliadora Externa
Ao Heitor e Sophia, mostrando-me
exemplos de tolerância e amizade;
Ao Pedro e a necessidade que tenho de
um abraço seu;
Ao Manduca e Vitalina, Evandro e Jairo,
tio Horácio;
Aos sobrinhos e sobrinhas, primos e
primas, tios e tias.
AGRADECIMENTOS

Gratidão é o que tenho a oferecer... sobretudo, quando a memória se coloca


confessional diante do passado e do/as companheiro/as do presente. Eu, imerso na
angustiante dinâmica de tratar o verbo, busco dar sentido a todos/as, tentando evitar
que o esquecimento ganhe outra dimensão. Dessa maneira, sintam-se representados,
todos e todas, por estes e estas que aqui aparecem:
À Dra. Tania Sarmento-Pantoja, ‘per-vertimento’ de regras;
À UERR (Universidade Estadual de Roraima) por fomentar esta pesquisa;
Ao Colegiado de Letras da UERR, pelo apoio e solidariedade;
Aos coordenadores, à secretaria, docentes e discentes do PPGL/UFPA;
Às amiga(o)s do Grupo de pesquisa Narrares-PPGL/UFPA, provocativos;
Aos professores que compuseram a Banca de Qualificação desta Tese;
Ao amigo/irmão Antônio Inácio,
Aos sujeitos, mestras e mestres, do movimento Carimbó Patrimônio Imaterial;
À minha família, sem eles e elas minhas vivências, ensinar-aprender cotidiano,
entre “avuados”, goles de café e porções de farinha seca na boca não teriam o mesmo
gosto.
RESUMO

Esta tese propõe a descrição, a interpretação e análise de quatro romances


publicados por Nenê Macaggi, a partir da década de 1970, na região conhecida hoje
como estado de Roraima. O propósito consiste em averiguar indícios que possibilitem
reflexões sobre o entendimento de Biopolítica, seus efeitos e processos de resistência.
Nossa busca pauta-se na categoria corpo enquanto escrituração da matéria
historiográfica, para tanto a noção de Biopolítica torna-se chave analítica e dialógica.
O problema de pesquisa configurou-se a partir da noção de Biopolítica como
entendimento teórico aplicado às obras produzidas por Macaggi (2012a, 1980, 1984,
2012b), conforme diálogo teórico interdisciplinar. A hipótese de trabalho é a de que a
categoria em análise traz escriturações historiográficas quanto ao processo de
representação dos encontros étnicos. A base teórica e metodológica encontra espaço
na Teoria Literária e na Filosofia, articulados pela Análise Textual dos Discursos de
base foucaultiana. Os pressupostos teóricos e descritivos dialoga entre diferentes
áreas de atuação: no campo da filosofia (Foucault, 1997, 2010, 2014; Agamben, 2002,
2007; Esposito, 2010; Mbembe, 2006; na Antropologia (Le Breton, 2006; Viveiro de
Castro, 2006; Munanga, 2019) e, ainda, na Literatura (Sarmento-Pantoja, 2011;
Seligmann-Silva, 2003; Silva, 2016). Quanto à metodologia, trata-se da abordagem
genealógica, visando a descrição e interpretação dos romances. Considerando o
estado da arte, tornou-se evidente a recorrência de personagens mestiços e travestido
subalternizados. Os resultados revelaram que os corpos indígenas mestiços
analisados nos romances, representam uma genealogia de processos de violações e
preconceito sobre os corpos vulnerabilizados; bem como, o espaço narrativo como
marginal. Por fim, acreditamos que os resultados desta pesquisa tragam contribuições
tanto para a compreensão dos efeitos da Biopolítica e suas representações no campo
artístico produzidos na região do Circum-Roraima como para o entendimento sobre a
dinâmica empreendida pelos corpos indígenas mestiços (In)Dóceis enquanto
emergentes representados nos romances.

Palavras-chave: Biopolítica. Literatura. Corpo Indígena. Indócil. Nenê Macaggi.


RESUMEN

Esta tesis propone la descripción, interpretación y análisis de cuatro novelas


publicadas por Nenê Macaggi, a partir de los años de 1970, en la región ahora
conocida como Estado de Roraima. El propósito es averiguar indicios que permiten
reflexiones sobre el entendimiento de Biopolítica, sus efectos y proceso de resistencia.
Nuestra búsqueda sigue la categoría cuerpo en cuanto escrituración de la materia
historiográfica, para eso la noción de Biopolítica se convierte clave analítica
y dialógica. El problema de investigación se configura a partir de la noción
de Biopolítica como entendimiento teórico aplicado a las obras producidas
por Macaggi (2012a, 1980, 1984, 2012b), conforme diálogo teórico interdisciplinar. La
hipótesis de este estudio es que la categoría en análisis trae escrituraciónes
historiográficas en cuanto al proceso de representación de los encuentros étnicos. La
base teórica y metodológica encuentra espacio en la teoría Literaria y en la filosofía,
articulados por el análisis textual de los discursos de base foucaultiana. Los
presupuestos teóricos y descriptivo a lo dialogismo entre diferentes zonas de
actuación: en el campo de la filosofía (Foucault, 1997, 2010, 2014; Agamben, 2002,
2007; Esposito, 2010; Mbembe, 2006; en la Antropología (Le Breton, 2006; Viveiro de
Castro, 2006; Munanga, 2019) y, aún, en la Literatura (Sarmento-Pantoja, 2011;
Seligmann-Silva, 2003; Silva, 2016). En cuanto a la metodología, se trata del enfoque
genealógico, con vista a la descripción e interpretación de las novelas. Considerando
el estado del arte, se puso evidente la recurrencia de personajes mestizos y
travestidos subordinados. Los resultados revelaron que los cuerpos indígenas
mestizos analizados en las novelas, representan una genealogía de procesos de
violaciones y prejuicio sobre los cuerpos subordinados; así cómo, el espacio narrativo
como marginal. Por fin, creemos que los resultados de esta investigación traigan
contribuciones tanto para la compresión de los efectos de la Biopolítica en el campo
artístico producidos en la región del la Circum-Roraima como para el entendimiento
sobre la dinámica emprendida por los cuerpos indígenas mestizos (In)Dóciles em
cuanto emergencia representados en las novelas.

Palabras clave: Biopolítica. Literatura. Cuerpo Indígena. Indócile. Nenê Macaggi.


ABSTRACT

This thesis proposes the description, interpretation and analysis of four novels
published by Nenê Macaggi from the 1970s in the region known today as the state of
Roraima. The purpose is to investigate evidence that allows reflections on the
understanding of Biopolitics, its effects and resistance processes. Our search is based
on the body category as the writing of historiographic material, so the notion of
biopolitics becomes the analytical and dialogical key. The research problem was
configured from the notion of biopolitics as a theoretical understanding applied to works
produced by Macaggi (2012a, 1980, 1984, 2012b), according to interdisciplinary
theoretical dialogue. The working hypothesis is that the category under analysis brings
historiographical writings regarding the process of representation of ethnic encounters.
The theoretical and methodological basis finds space in Literary Theory and
Philosophy, articulated by the Textual Analysis of Foucaultian Discourses. The
theoretical and descriptive assumptions dialogues between different areas of practice:
in the field of philosophy (Foucault, 1997, 2010, 2014; Agamben, 2002, 2007; Esposito,
2010; Mbembe, 2006; in Anthropology (Le Breton, 2006; Viveiro de Castro, 2006;
Munanga, 2019) and also in Literature (Sarmento-Pantoja, 2011; Seligmann-Silva,
2003; Silva, 2016). As for the methodology, it is the genealogical approach, aiming at
the description and interpretation of the novels. Considering the state of the art, it
became apparent recurrence of mixed race characters and disguised subordinated.
The results revealed that the mestizo indigenous bodies analyzed in the novels
represent a genealogy of processes of violations and prejudice against vulnerable
bodies; as well as the narrative space like marginal. Finally, we believe that the results
of this research contribute both to the understanding of the effects of biopolitics and
their representations in the artistic field produced in the circum-Roraima region, as to
the understanding about the dynamics undertaken by (In)Docile mestizo indigenous
bodies as emerging represented in the novels.

Keywords: Biopolitics. Literature. Indigenous body. Indocile. Nenê Macaggi.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - BV-8: Brasília - Caracas.......................................................................... 149


LISTA DE SIGLAS

AM Amazonas
BR Brasil
MIRR Museu Integrado de Roraima
RJ Rio de Janeiro
SECD-RR Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Desporto de Roraima
SPI Sistema de Proteção ao Índio
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 8
2 ESCRITURAS HISTORIOGRÁFICAS ....................................................... 17

2.1 D'Os Romances do Circum-Roraima ...................................................... 20

2.1.1 2012a: A Mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão norte do


Amazonas ................................................................................................... 23

2.1.2 1980: Dadá Gemada, Doçura Amargura – o romance do fazendeiro


roraimense .................................................................................................. 35

2.1.3 1984: Exaltação ao Verde (Terra – Água – Pesca): o romance do Baixo Rio
Branco ........................................................................................................ 48

2.1.4 2012b: Nará-Sué Uarená (O romance dos Xamatautheres do Parima) ..... 61


3 O PENSAR BIOPOLÍTICO SOBRE O CORPO MESTIÇO ........................ 74

3.1 A Forma Transgressora dos Corpos (In)Dóceis .................................... 84

3.2 Sobre Corpos Mestiços............................................................................ 95

3.2.1 O Emergente Corpo Caboclo ................................................................... 108


4 OS CORPOS INDIGENAS MESTIÇOS E (IN)DÓCEIS NOS ROMANCES
DO CIRCUM-RORAIMA........................................................................... 118

4.1 As Violações dos Corpos Indígenas Mestiços (In)Dóceis .................. 122

4.2 O Corpo Travestido em ‘A Mulher do Garimpo’, de Nenê Macaggi ... 131

4.3 A BR 174 e a Profanação no Espaço Narrativo .................................... 141

4.4 A Poética do Corpo Mestiço Profanador nas Narrativas .................... 155


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 160
REFERÊNCIAS ........................................................................................ 167
ANEXOS .................................................................................................. 174
8

1 INTRODUÇÃO

A natureza desta pesquisa ganha consistência em quatro romances publicados


por Nenê Macaggi, a partir da década de 1970, na região conhecida hoje como estado
de Roraima. O propósito consiste em, a partir do projeto literário da autora, averiguar
indícios que possibilitem reflexões sobre o entendimento de Biopolítica, seus efeitos
e os processos de resistência. Enfatizamos que nossa busca pauta-se na categoria
corpo enquanto escrituração da matéria historiográfica, para tanto a noção de
Biopolítica torna-se ponto chave para averiguações no campo artísticos literário.
É notório que a década de 1960, para a literatura brasileira, é momento chave
desta abordagem, tendo em vista as provocações que o período traz aos estudos
sócio-históricos e culturais. Parto desta linha de entendimento, e opto por observar o
corpus - A mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão do amazonas (2012a)1,
Dadá Gemada, Doçura e Amargura - romance do fazendeiro de Roraima (1980),
Exaltação ao Verde: Terra – Água - Pesca (1984) e Nara-Sue Uarená – o romance
dos Xamatautheres do Parima (2012b) -, como objetos a serem estudados nesta
pesquisa. As obras compõem o que nominamos de Romances do Circum-Roraima,
tendo em vista ambientarem-se na espacialidade da Amazônia setentrional.
Por conseguinte, os diferentes desdobramentos que esta tese ganha, buscam
averiguar o que nos indiciar as representações da violência no referido projeto literário,
visto que transitava por entre as chaves de entendimento a categoria corpo em
circunstanciais violações. E mais pontual ainda, corpos indígenas mestiços,
principalmente femininos. A partir destas constatações, recorrentes abordagens nos
possibilitaram a percepção de que a categoria Corpo agia representativamente
enquanto escritura da movimentação Biopolítica. Dessa maneira, passamos a
entender que a dinâmica dos corpos atua nos romances como provocação às práticas
do poder soberano. Partimos desta especificidade, defendemos a recorrência do
Corpo Indígena Mestiço enquanto (In)Dócil, presentificado nos romances de Nenê
Macaggi.
É relevante lembrar, em conformidade com o que nos orienta Neiva Santos
(2013, p.193) e Adair Santos (2010, p. 295), que o período apontado nas obras foi de

1 A primeira edição desta obra é do ano de 1976. Para nossas análises será utilizada a segunda edição,
referente ao ano de 2012.
9

grande efervescência na região do Circum-Roraima, acometido de grilagem de terras,


garimpagem, pistolagem, expansionismo desenvolvimentista do Estado Novo e
migrações aspectos que pontualmente serão explorados ao longo desta tese.
Corrobora com esta intensa movimentação o regime civil militar, iniciado na década
de 1930 cujos desdobramentos se afirmam em 1964 - que atingiu a nação brasileira
deixando efeitos na vida das pessoas do lugar (MANDAGARÁ, 2019).
As tensões contextuais as quais representam-se nas obras da autora, muito
nos auxiliaram pensadores que tiveram como ponto de análise e referência a
Biopolítica. Nesse sentido, o percurso histórico da humanidade, mostra que o poder
sobre a vida, ‘fazer viver’ – o corpo produtivo e docilizado (FOUCAULT, 2002, p. 287)
–, passou a ser o referente das sociedades modernas ocidentais, marcadas pelo
desenvolvimento da medicina enquanto sustentação de modelo ideológico. Dados
estatísticos serão um entre os tantos dispositivos usados para institucionalização do
controle sobre atuações pedagógicas, sexuais, de saúde e jurídicas, como formas
agenciadoras da vida (FOUCAULT, 2002, p. 285). O conjunto de dispositivos de
controle, usados com a intenção de anular os manifestos contrários à atuação
Biopolítica de captura dos corpos será forte indício das diferentes formas de violações
pelas quais passam os corpos vulnerabilizados socialmente.
Nesse desdobramento, a mobilidade instituída pelo sistema capitalista
possibilitou à Biopolítica agir não apenas vinculada ao poder do estado, mas em
diferentes formas de ação a interesse do capital financeiro como agenciamento do
social, político, econômico e cultural. Na proposta ideológica marcada pelo
tensionamento Biopolítica, as práticas de resistência têm se reinventado, justamente
na dinâmica dos encontro étnicos estabelecidos.
Quanto a esta questão, M. Foucault (2013, p.8) afirma que “em todo caso, uma
coisa é certa, o corpo humano é o ator principal de todas as utopias”, já Le Breton
(2006, p. 7) considera que “nossa existência humana é corporal”. Entre ambos, marca-
se a busca interpretativa do corpo enquanto ato político em diferentes linhas de
atuações científicas contemporâneas.
As tensões sociais ao longo de nossa história apontam ainda que os corpos
dos sujeitos étnicos são historicamente “desqualificados” de diferentes maneiras. A
forma depreciativa, violenta e bárbara de atuar e se referir a esses corpos, também
historicamente insubmissos, demonstram ações da Biopolítica e reverberam o estado
10

de exceção pensado por G. Agamben (2010). Associamos esta desqualificação a


grupos subalternizados e historicamente subjugados frente a sua condição de
provocadores às formas de poder. Os indígenas e tantos outras ‘vozes corporais’
ressoam enquanto corpos provocativos, insubmissos, representados no corpus desta
tese pela própria condição de existência. Esse extermínio nem sempre é físico, é
também simbólico e, nesse caso, observo que a miscigenação – tão bem acomodada
ao mito do povo cordial e resultado do amalgama das três raças – é um dos principais
dispositivos do extermínio simbólico.
Os corpos (In)Dóceis representados ao longo desta Tese passam a ser
entendidos como o ato provocativo em movência às práticas opressoras,
naturalizadas em favor da “honra”, dos “bons costumes” e da “nação”, visto que se
apropriam da movimentação do sistema capitalista para reagir. Quando passamos a
atuar na construção desta chave interpretativa, agimos diretamente na desconfiança
em terminologias como a noção ordenada de gênero e raça, transpondo os limites do
estético e do fronteiriço, clausuras do corpo docilizado (FOUCAULT, 1987, p.27). O
desenho da exclusão do outro se faz representado, por sucessivas vezes nas obras
romanescas de Macaggi, através do etnocídio de grupos étnicos, a exemplo dos
indígenas Waimiri-Atroari2.

2 Os Waimiri Atroari, durante muito tempo, estiveram presentes no imaginário do povo brasileiro como
um povo guerreiro, que enfrentava e matava a todos que tentavam entrar em seu território. Essa
imagem contribuiu para que autoridades governamentais transferissem a incumbência das obras da
rodovia BR 174 (Manaus-Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou de forças militares repressivas
para conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo kinja
(autodenominação waimiri atroari). A interferência em suas terras ainda foi agravada devido a
instalação de uma empresa mineradora e o alagamento de parte de seu território pela construção de
uma hidrelétrica. Mas os Waimiri Atroari enfrentaram a situação, negociaram com os brancos e hoje
têm assegurados os limites de sua terra, o vigor de sua cultura e o crescimento de sua gente.
A língua Waimiri Atroari, o kinja iara (língua de gente), pertence à família lingüística karib. O kinja iara
é falado por todos os Waimiri Atroari, sendo essa a língua referência na comunicação entre eles e
para a alfabetização.
No início do século XX (1911), Alípio Bandeira, representante do Serviço de Proteção ao Índio (SPI,
extinto em dezembro de 1967) percorreu a região onde se localiza o rio Jauaperi, quando ocorreram
novos contatos amistosos com esses indígenas, agora denominados de Uaimirys. Os planos
desenvolvimentistas do governo federal para a Amazônia continuaram a atingir as terras Waimiri
Atroari. Na década de 1970 o Projeto Radam constata a existência de cassiterita na área indígena.
No início da década de 1980 a empresa Paranapanema demonstra interesse em explorar esse
minério. Com o auxílio da Funai e do Ministério das Minas e Energia, através do Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM), consegue articular um processo que veio a culminar na
extinção da Reserva Indígena Waimiri Atroari (criada em 13/07/71), transformando-a em Área
Interditada Temporariamente para Fins de Atração e Pacificação dos Índios Waimiri Atroari (23/11/81)
e excluindo, no novo decreto presidencial, a região da terra indígena onde se encontravam as jazidas.
Ainda na década de 80, outro grande projeto atingiu as terras Waimiri Atroari. Tratava-se da
11

Os dispositivos de anulamento do corpo vivente provocador podem confirmar


as constantes tentativas de ajustá-los aos moldes da ordinária capitalista. A vida
politicamente provocativa e (In)Dócil (corpo transgressor, profanador da “honra”, da
“ordem” e dos “bons costumes”) aparenta ser o processo dos encontros interétnicos
no espaço georreferenciado nos romances.
A Amazônia brasileira inclui-se em um dos desdobramentos biopolíticos que
ficou conhecido como “populismo desenvolvimentista” (SANTOS 2013, p. 46), cujos
corpos dos sujeitos que experimentaram os diferentes efeitos dessa proposta foram
fortemente atingidos. O modelo político econômico agiu enquanto Biopolítica do
aniquilamento, expropriação e apropriação do território imprimindo no corpo do vivente
atingido por ela, rastros de violações. Podemos considerar que a própria existência
do (In)Dócil demonstra os registros de experiências de violações agenciadas durante
todo processo de ocupação do território amazônico brasileiro naquele período.
Indícios dessas tensões podem ser vistos nas formas de silenciar, resultante das
sucessivas práticas de submeter o outro à continuas violações, como apontado por
Rocha (2018, p. 19)3.
O processo ideológico construído para esta região primou pela ‘desqualificação’
não apenas do sujeito que nela dinamiza sua vida, mais ainda o próprio espaço é,
ainda na contemporaneidade, construído tendo por prática o ordenamento discursivo
de progresso para “o bem da nação”. Tudo o que nele está padeceria da intervenção
do poder soberano “salvador” para retirá-lo da condição “primitiva” em que
supostamente se encontra. É neste tom que o discurso do então presidente da
República, Getúlio Vargas proferido 1940, em Manaus, se constrói.
Nessa miríade, o recurso artístico produzido por N. Macaggi nos aponta a
dinâmica do encontros étnicos ocorridos na Amazônia setentrional, pontualmente
região do Circum-Roraima (MACAGGI 2012a, 1980, 1984, 2012b). A movimentação
corroborada nas obras propiciaram visualizar corpos representativos da provocação e
do desconforto ao próprio processo de encontros culturais. O corpo indígena mestiço,
representado nos romances, aparenta ser a metáfora da “vida politicamente

construção da usina hidrelétrica de Balbina, pela Eletronorte, cujo lago atingiu 30 mil habitantes na
área indígena.
Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Waimiri_Atroari>. Acesso em 12/10/2019
3ROCHA, Ana Lilia Carvalho DO CORPO TORTURADOR AO CORPO TORTURADO:
REPRESENTAÇÕES DA MÁQUINA DITATORIAL NA LITERATURA BRASILEIRA. —
UFPA/PPGL, Belém, 2018, 140 f. Tese (Doutorado).
12

desqualificada” (AGAMBEN, 2002, p. 14), também metaforiza o “espaço politicamente


desqualificado”, carente e necessitando passar por modernas transformações.
Justamente nessas cintilações históricas, o campo artístico literário construído
por N. Macaggi, nas obras citadas, nos conduzirá a indícios do efeito violento da
Biopolítica na região. Um dos indícios dessa dinamicidade é o corpo mestiço,
transitando entre o “indígena” e o “não indígena”. Nessa movimentação é ele a
metáfora da ‘vida politicamente desqualificada’ (AGAMBEN, 2002, p. 14). Um corpo
surgido dos diferentes encontros étnicos, presentes nas situações re-apresentadas
nas obras, cuja identidade lhe é negada em dobro, seja pelo colonizador ou pelo laço
parentesco de ancestralidade.
Acreditamos que o projeto literário de N. Macaggi muito contribui para estes
apontamentos, quanto à formação social, cultural e literária da Amazônia setentrional.
Nesse sentido, faz-se necessário elencar aspectos sobre a autora, cujas articulações,
no espaço conhecido como amazônico, assim o representa. Contextualmente: Maria
Macaggi (nasceu em 24 de abril de 1913, em Paranaguá, Paraná, falecida em março
de 2003, em Boa Vista, Roraima). É conhecida no meio artístico, literário e jornalística
do estado de Roraima como Nenê Macaggi. A autora chega à região norte do país na
década de 1940. Havia sido enviada, pelo governo federal, para desenvolver
atividades jornalísticas descritivas sobre os territórios federais da região vinculada ao
Sistema de Proteção ao Índio (SPI). Inicialmente, fixou residência no estado do
Amazonas (1941). Tempos depois, segue para a região onde hoje é o Estado de
Roraima, e assim continua suas atividades. Contudo, deve ser ressaltado que antes
de sua chegada a esta região, Nenê já exercia intensa atividade literária e jornalística,
como se constata a partir de vários romances, crônicas (Água Parada e Chica Banana,
1930) e contos (Contos de Dor e Sangue, 1940) dessa época. Ressalto que, o objeto
a ser estudado é a matéria nortista produzida pela autora, nos quatro romances aqui
elencados.
Os deslocamentos efetuados pela autora aparentam construir uma escritura do
corpo das personagens dos romances e traduzem o que tanto Foucault (2010) quanto
Agamben (2002), respectivamente, ressaltaram sobre a captura dos corpos pela
dinâmica implementada na sociedade contemporânea e como desdobramentos da
Biopolítica. Esta ‘linha de força’ parece-nos mais eficaz no que tange à construção
central desta proposta. Se entendemos o corpo enquanto ‘detentor de histórias’, a
13

revelar uma complexa relação e estratégias de poder com fortes escritos e indícios,
então é possível que a categoria aponte elos dialógicos entre Biopolítica e literatura.
A construção da metodologia instaurada para este trabalho pautou-se em
marcadores interdisciplinares, dialoga com a historiografia literária, análise do
discurso, antropologia e filosofia da linguagem. Esse procedimento, dinamicamente
aberto, é uma tentativa contundente de verificar como se faz representar a Biopolítica
e as formas de resistência através dos textos literários. A forma de desenvolvimento
dessa proposta foi visualizada nos trabalhos de Foucault (1999), quando da condução
de suas próprias investigações. Nesse sentido, basear nossa condução metodológica
na genealogia foucaultiana é buscar fundamentos de modo perceber que a
genealogia, pode sim agir como:

insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos, os métodos e os


conceitos de uma ciência, mais de uma insurreição sobretudo e acima de tudo
contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e
ao funcionamento de um discurso cientifico organizado no interior de uma
sociedade como a nossa. E se essa institucionalização do discurso cientifico
toma corpo numa universidade ou, de um modo geral, num aparelho
pedagógico, [...]? no fundo pouco importa. E exatamente contra os efeitos de
poder próprios de um discurso considerado cientifico que a genealogia deve
travar o combate (FOUCAULT, 1999, p. 14).

A partir do que nos afirma o autor podemos pensar a genealogia como um


conjunto de procedimentos úteis, não só para conhecer o passado, como também
para questionarmos o presente. Seguir por este campo analítico é também a adoção
de uma postura provocativa e dialógica, cuja desconfiança nos agenciamentos de
poder, bem como no que pode surgir dos efeitos a partir deles, pode nos conduzir a
reconhecer, nos resíduos deixados, aberturas para o que ainda não foi posto à tona.
As vozes que emergem dos romances do Circum-Roraima nos provocam a
desconfiar da naturalização do discurso violador. “Mas, o que há, enfim, de tão
perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (Foucault, 1987, p. 8). É justamente no
ato de desconfiar do discurso naturalizado que as formas de verdade nele
engendradas tornam-se reveladoras. Assumimos que nesta tese nosso entendimento
sobre o discurso pauta-se no que Foucault entende por:
14

Práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente


os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses
signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e
ao ato da fala. E esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso
descrever (FOUCALT 1987, p. 55)

O fragmento textual, nos conduz a observar que os indícios deixados no dizer


nos levam a entendimentos de como os dispositivos atuam nos capturando em favor
do capital. É justamente o algo a ‘mais’ que presentifica-se no discurso que precisaria
ser questionado, nos permitindo trazer revelações ocultadas justamente na forma
naturalizadora de verdades absolutas.
Uma outra chave de entendimento necessária para os desdobramentos que
esta tese ganhará refere-se a Biopolítica. É bem verdade que Foucault (2010, p. 30)
aponta os modernos referenciais quanto a esta questão. É na conferência no Rio de
Janeiro em 1974, em que as técnicas de controle da vida da espécie humana foram
posta como capturadas em favor do estado capitalista. Após a premissa de Foucault,
diferentes analistas tem buscado entendimentos sobre Biopolítica. Nesta lista inclui-
se Giorgio Agamben, em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I (2002), que
problematiza a chave de entendimento foucaultiana enriquecendo a discussão ao
retomar conceitos gregos sobre bios e zoé. O italiano evidencia a noção de ‘vida nua’,
cuja dinâmica de inclusão e exclusão, movimenta-se em um só tempo na pólis grega.
Pensando por este ângulo, acreditamos ser fecunda para esta tese, optar pela
reflexão do analista italiano, posto afirmar que:

O poder soberano é, pois, a instância capaz de determinar e traçar o tênue


limite entre a vida protegida e vida exposta à morte, politizando o fenômeno
da vida ao incluí-la e excluí-la simultaneamente da esfera jurídica, motivo pelo
qual um regime biopolítico é simultaneamente uma tanatopolítica, visto que
tanto garante o incentivo quanto o massacre da vida (AGAMBEN 2008, p.
11).

Ao expor a articulada movimentação fronteiriça entre a ‘vida politicamente


qualifica’ e a ‘vida nua’, constantemente exposta à morte, Agamben delineia o
entendimento de Biopolítica em proximidade com a tanatopolítica foucaultiana, tendo
em vista que a movimentação em favor da vida possibilita efeitos de massacre e
morte. Podemos dizer que os efeitos da Biopolítica nos trazem rastros historiográficos,
em favor do estado, cujas políticas de higienização e preconceito buscam a
15

docilização de corpos submetidos ao poder soberano. Desta forma, ela atua na linha
tênue de aniquilamento e/ou permanência da vida.
Frente ao exposto defendemos a hipótese desta tese de que o projeto de
Romances do Circum-Roraima configura, de maneira pontual, a formação social do
mestiço na Amazônia setentrional. Corroborando para tal, além da mobilidade humana
causadora de encontros interétnicos, a própria condição marginal atribuída ao espaço.
Esta condicionante progride para a constituição de um sujeito profundamente marcado
pela subalternidade. E, em última instância, imerso nesse espaço marginal, esse
sujeito – esse corpo – se faz sujeito à barbárie que é regra, não é exceção.
Para tanto, formulamos três hipóteses. A primeira baseia-se no resultante da
dinâmica movimentação humana possibilitadora de encontros culturais e suas devidas
ressignificações, no âmbito da escrita literária. A segunda, é contingenciada pelo
projeto artístico e estético da escritora e funda-se no trânsito dialógico estabelecido
por ele, na medida em que se alimenta de um entrelugar do movimento literário
brasileiro produzido a partir da década de 1930, o que corrobora para a produção de
um estilo artístico pautado nas mesclas, enquanto ressonâncias da própria
dinamização sociocultural de então. A terceira, concentrada na constituição das
personagens, em especial aqueles que são figurações do mestiço, além do próprio
espaço georreferenciado na construção dos romances; visto que reverberam a
condicionante de marginalidade construída na chave da existência periférica de
encontros socioculturais nele estabelecidos, o que contribui para a formulação do
entendimento de espaço, também enquanto (In)Dócil.
Quanto a estrutura, esta tese apresenta-se em cinco capítulos que
interrelacionam-se. O primeiro, caracterizado por “Introdução” à proposta da tese
articula-se a apresentação deste estudo, referenda a estrutura e problematização das
análises realizada. Já o segundo capítulo, intitulado “Escrituras Historiográfica”, dá
conta da sistematização dos romances que compõem a obra literária de Nenê
Macaggi, visto que entendemos ser necessário elencar pontos entrelaçados entre eles
que serão fundamentais para a proposta aqui apresentada. O terceiro, “O pensar
Biopolítico sobre o corpo mestiço”, transcorre a partir de entendimentos sobre
Biopolítica, problematiza as reflexões de pensadores de linhagem foucaultiana, e não
só. Nesse sentido, as discursões giram em torno dos acontecimentos históricos que
atuam como efeitos dos processos biopolíticos. Neste caso, a Amazônia setentrional
16

representa-se nos romances tendo em vista os encontro étnicos. Havemos de


reconhecer que este ângulo delineia a busca mais pontual de nossa proposta, o Corpo
Indígena Mestiço. Enveredamos ainda pela construção e verificação do referencial de
Corpo (in)Dócil, frente a abertura que os encontros étnicos nos trazem como uma das
possibilidades para tal. É valido ressaltar que nosso entendimento de corpo (In)Dócil
perpassa pela forma provocativa, incômoda e/ou desajustadora do ordenamento
pensado para a sociedade pautada para conceitos de raça e gênero como algo
inquestionável. Partimos desse entendimento, termos provocativos como ‘ser
intermediário’, ‘inclassificáveis’ e ‘inominável’ podem nos trazer contribuições quanto
à leitura apontada por N. Canclini (2008), nomeada de ‘Culturas Híbridas”. O quarto
Capítulo, “Os copos indígenas mestiços e (In)Dóceis nos romances do Circum-
Roraima”, assevera a discussão quanto a categoria “Corpo Indígena Mestiço e
(In)Dócil” e as diferentes formas que se fazem representar no projeto narrativo de
Nenê Macaggi, Romances do Circum-Roraima. Frente a isto, apontamentos
conceitual sobre formas de ‘profanar’ (AGAMBEN, 2007) nos conduzem a iluminações
outras no que se refere ao entendimento de corpo indígena mestiço como ato de
resistência. Ao nosso ver, pensar o corpo (In)Dócil enquanto categoria provocativa,
profanadora, nos auxilia na possibilidade da resistência pautada na configuração dos
Corpos Indígenas Mestiços.
Por fim, o quinto capítulo delineia as “Considerações finais”, aborda reflexões
contidas frente aos indícios visualizados no corpus em análise, de que eles aponta
para a categoria corpo indígena mestiço e (In)Dócil como recorrente nas tramas
narrativas produzidas por N. Macaggi; bem como, os romances do Circum-Roraima
emergem enquanto re-escriturações historiográficas da Amazônia setentrional. Por
este viés, frente a conjuntura que se afirma nestes tempos contemporâneos em nossa
região, quisás no país como um todo, acreditamos que a arte literária reverbera
tempos de opressão e violações, mas também atua ao indiciar re-fluxos ativamente
políticos. É justamente nesta que nossa esperança se fortalece no sentido de que esta
tese venha contribuir para a efetivação de debates mais profundos sobre as
escriturações historiográfica alojadas no campo artístico, em que pese a violação de
direitos, maquiados frente a ideologia discursiva de desenvolvimento econômico à
revelia de grupos subalternizados, esteticamente representados nos romances do
Circum-Roraima, que compõem o corpo desta tese.
17

2 ESCRITURAS HISTORIOGRÁFICAS

Uma história “a contrapelo”: não aquela dos vencedores, mas aquela que
poderia ter sido outra, que foi sufocada, mas deixou interrogações, lacunas,
brancos que são tantos sinais de alteridade e resistência; esses sinais, cabe
ao presente, justamente, reconhecê-los e, quem sabe, retomá-los e assumir
suas promessas de alteridade e de resistência na luta histórica e política
atual. Essa relação do presente ao passado não pode, então, seguir os
moldes da identificação afetiva ou empatia (Einfühlung) com os grandes
heróis do passado, tais quais são descritos pela história oficial; pelo contrário,
deve desconstruir a narrativa ronronante da “história dos vencedores” e
indicar outras possibilidades narrativas e históricas, silenciadas, esquecidas
ou recalcadas (GAGNEBIN, 2009, p.52).

É justamente no silêncio do ‘recalque’ mencionado por Gagnebin que


acreditamos que as construções discursivas que articulam-se nas narrativas podem
nos apontar indícios do muito da exclusão, da expropriação, do extermínio, das
violações engendradas nas articulações narradas. Nessas construções é que
encontraremos os rastros inscritos nos corpos enquanto escriturações de eventos
historicamente negligenciados. A construção deste capítulo parte, inicialmente, da
sistematização dos romances que compõem a obra literária de Nenê Macaggi no
sentido de construir cintilações quanto as escriturações historiográficas que serão
aprofundadas ao longo da tese. Para tanto, entendemos ser necessário elencar
pontos que se revelam fundamentais para a proposta que aqui trazemos.
É na matéria nortista4 de Nenê Macaggi, conjunto de obras produzidas pela
autora a partir do momento em que a mesma chega na região amazônica, cujo recorte
feito para este tese atenta para sua produção literária na região norte brasileira, tendo
em vista que a matéria nortista afirma a escritora no meio literário. É a partir disto que
buscamos entendimentos para provocações que se desdobram em relações de poder,
opressoras e violadoras do corpo, a delinear silenciamentos historicamente
constituídos. Nesse viés, é o corpo das personagens que apresentam a escrita da
história, pois entendemos tratar-se de uma espécie de gramática do corpo, cuja
linguagem usada nos romances apontaria a imanente resistência.

4 A obra Nará-Sue Uarená – o romance dos Xamatautheres do Parima que, apesar de ser resultado de
experiências em décadas anteriores ainda em sua atuação no SPI, só recentemente, em 2012, foi
editada. Além deste, há outras produções da autora nesta região do país, A mulher do Garimpo: o
romance no extremo sertão do norte do Amazonas (1976/2012), Dadá Gemada, doçura e amargura:
romance do fazendeiro de Roraima (1980), Exaltação ao Verde (1980). Nossa proposta contempla
apenas os romances já os livros de contos serão alvo de estudos posteriores: Conto de Amor e Conto
de Dor (ambos de 1970) Contos de Amor Sentimentais e trágicos (1988).
18

Nessa linha interpretativa, em muitos momentos os constituintes de nossa


história literária têm entendido que o delineamento geográfico definiria determinada
produção artística como regional. Isto tem provocado inúmeros debates5, porém,
acreditamos que o referencial de regionalismo literário traz questões profundas e
complexas poucas vezes exploradas em seu todo. Apesar de críticas bem formuladas
sobre esta questão, notamos que o estilo permanece reinventando-se e presente em
romances contemporâneos. No conjunto dessas tensões faz-se necessário tomar por
referência o que Germana Sales e Roberto de Sousa comentam sobre a importância
do retorno desta chave para a literatura contemporânea. A saber:

Além disso, no entanto, revela-se mais ainda oportuno esse retorno, se


tivermos em conta a crescente redução do mundo a padrões cada vez mais
uniformes, sobretudo nos planos econômicos, políticos e social (não
obstante, é claro, persistentes assimetrias entre os países), mas também
como decisiva repressões no campo da cultura, processo de feição
verdadeiramente revolucionária a que por certo não pode a literatura viver
alheia (SALES; SOUZA, 2013, p. 9).

Como bem asseveram os autores é justamente nessa movimentação


sociocultural presentificada na dinâmica contemporânea que a chave regionalista
ganha força e universaliza-se, firmando-se cada vez mais enquanto desdobramento
de uma literatura em constante estado de (re)volução. Nesta miríade, a literatura
brasileira contemporânea parece alinhar-se em cuja perspectivas e problematizações
tem elegido o regionalismo para dar tom universalista aos dramas humanos
historicamente silenciadas. Desse modo, esta literatura pode nos trazer indícios de
questões mais amplas merecedoras de reflexões e, em seus desdobramentos, pode
abarcar os romances produzidos por Nenê Macaggi.
No conjunto de romances produzidos pela autora, acreditamos que para além
dos efeitos de regionalismo haja algo a mais, aparenta que os enredos reconstroem
efeitos memorialistas, subverte o silenciamento através do que emerge das fissuras
entre discursos autoritários, a tensionar a “memória silenciada” em confronto a
“Memória Oficial”. Recordemos que nessa dinamicidade produzida por ela nos conduz
a entendimentos quanto a uma Literatura configurada a partir da ideia de afirmação

5 Há de ser mencionado a relevante coletânea de ensaios “Literatura Brasileira: Região, nação,


globalização”, publicados em 2013, organizados pelo Dra. Germana Sales e Roberto Souza que traz
grande contribuição para a literatura contemporânea no que se refere a temática regionalismo.
19

do território fronteiriço da nação e tentativa de empreender a força uma identidade aos


que vivenciam a dinâmica do Circum-Roraima. Pensando por este ângulo, H. Bhabha
nos leva a observar que:

O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as


culturas se reconhecem através de suas projeções da “alteridade”. Talvez
possamos agora sugerir que histórias transnacionais de migrantes,
colonizados ou refugiados políticos ̶ essas condições de fronteiras e divisas ̶
possam ter o terreno da literatura mundial, em lugar da transmissão de
tradições nacionais, antes o tema central da literatura mundial. (BHABHA,
2002, p33)

É justamente nos tensionamentos gerados nas relações de fronteira que


buscamos entendimentos quanto ao corpos que representam essa relação de
acontecimentos deixados às escuras pela História Oficial em que o corpos
subalternizados, representados nos romances, podem trazer-nos
redimensionamentos outros a respeito de identidades essencialistas (BHABHA 2002,
p. 211).
Neste sentido, acreditamos que os romances do Circum-Roraima, produzidos
por N. Macaggi, alinham-se ao entendimento de Romance Histórico, quando Lukács
diz ser “o romance histórico, como poderosa arma artística da defesa do progresso
humano, tem aqui a grande tarefa de restabelecer as forças motrizes da história
humana e despertá-las para o presente” (LUKÁCS, 2010, p. 385). Justamente na
dinamicidade do capitalismo em vigência que ele afirma potencializar a dialética da
produção artística permeada pelo fazer histórico.
Recordemos que conforme sugerido por Lukács (2010) os elementos que
definiriam o romance em contrapartida do romance histórico são: a) o abarcamento
de grandes e sucessivos acontecimentos históricos; efetua relevada cartografia de
costumes em circunstancia desses acontecimentos históricos; o teor de dramaticidade
nos enredos faz com que o enredo narrado ganhe preponderância na narrativa. No
campo dos heróis narrativos, ganha protagonismo os secundários frente a medíocre
participação dos personagens principais (LUKATS 2010)6.
É possível observar que a matéria nortista produzida por Macaggi, demarca
acontecimentos que não foram realizados pela Historicismo. Contudo, isto lhe serve

6 LUKÁCS, G. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2010.


20

de recurso criativo ao cunho ficcional, a exemplo de Os Sertões (CUNHA, 1984),


Grande Sertão Veredas (ROSA, 1986). Considerando os acontecimentos
historiográficos que se diluem nos romances do Circum-Roraima, passemos a dar
conta dos desdobramentos da Biopolítica na configuração das tramas narrativas.

2.1 D'Os Romances do Circum-Roraima

O conjunto de obras que compõem o corpus desta tese é constituído de quatro


romances que cartografam a região do ‘extremo sertão norte’ da Amazônia
setentrional. Deve ser destacado na expressão anteriormente mencionada aponta
para o lócus de ambientação dos romances, a região da tríplice fronteira Brasil-
Venezuela-Guiana Inglesa que, por localizar-se na parte setentrional da Amazônia
brasileira, Fábio de Carvalho (2012, p. 400), no ensaio Makunaima: um herói a serviço
da ordem social7, afirma que sua posição no extremo norte da Amazônia, região
etnograficamente designada de “Circum-Roraima” como espaço do enredo das
narrativas.
Quanto a expressão “sertão” utilizado no título do romance inaugural do projeto
Circum-Roraima, embora faça alusão ao vínculo com o ambiente das narrativas,
também aponta certo espelhamento. Ainda quanto a conceituação do termo ‘sertão’,
Belináso Guimarães (2006, p. 97) faz longa análise e alega não haver consenso
quanto a origem do termo; porém, a terminologia tornou-se frequente nos movimentos
de renovação literária brasileira e aparece em uma das obras de Euclides da Cunha
(Os Sertões, 1984), bem como em um dos romances de grande significância de
Guimarães Rosa (1986). Quanto à presença dessa terminologia no romance A Mulher
do Garimpo (2012a), há de ser entendido que este estaria muito mais vinculado a
linhagem de pensamento da obra de Euclides da Cunha, Os Sertões. Evidenciemos
ainda que a proposta desenvolvimentista pensada para a Amazônia assumiu a
posição de que esse espaço era inóspito e desabitado, necessitando ser desenvolvido
e integrado à nação.

7 Disponível em: < https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5571104> Acesso em: 13 de


agosto de 2019.
21

Neste sentido o recorte feito por nós a ser analisado é a Matéria Nortista: ‘A
mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão norte do Amazonas’ (2012a)8, ‘Dadá
Gemada, doçura e amargura: romance do fazendeiro de Roraima’ (1980), ‘Exaltação
ao verde: Terra – Água - Pesca’ (1984) e ‘Nará-Sue Uarená: o romance dos
Xamatautheres do Parima’ (2012b). Os romances ocupam este espaço da tese com
o propósito de dar conhecimento à configuração de seus enredos. Para tal
procedimento, seguiremos a leitura dos romances em conformidade com o sequencia
temporal de suas publicações.
Esclarecemos ainda que se tornou recorrente nos escritos de estudiosos das
obras de Macaggi (SILVA, 2016; ALMADA, 2015; MIBIELI, 2016) a condição de
invisibilidade em que a escritora se encontrava até o ano de 2002, quando a exposição
“Força, graça e magia de mulher” realizada pela Casa da Cultura ‘Madre Leotávia
Zoller’ (SECD-RR) e o Museu Integrado de Roraima (MIRR) evidencia a presença da
autora no meio artístico de então. No ano de 2012 outro impulso foi dado a sua
produção, a saber ‘A mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão norte do
Amazonas’ (2012a) tornou-se uma das obras exigidas como leitura obrigatória ao
exame vestibular para ingresso nos cursos da Universidade Federal de Roraima.
Entendemos que esse acontecimento foi um divisor de águas quanto à circulação das
obras da autora, de modo geral, e, especificamente, no meio acadêmico.
Em 2016 com a circulação do documentário "Nenê Macaggi - Roraima
entrelinhas", de Elena Fioretti, contemplado pelo Ministério da Cultura, foi momento
de grande importância para maior visibilidade das obras da autora. Nesse
documentário são abordadas configurações biográficas de Nenê Macaggi, sua
vivência com pecuaristas e garimpeiros, o ativismo e atuação junto aos indígenas,
agregado a atividades como jornalista, contista e romancista.
Nesse viés, diferentes estudos têm buscado nas obras de Nenê Macaggi
espaço para questões relativas à identidade, ao regionalismo e tantas outras
interpretações que vêm, cada vez mais, afirmar a relevância de suas obras para
diferentes áreas de entendimento. Tornou-se habitual certa economia quanto ao uso
do título dos romances de Nenê Macaggi publicados na Região Norte do país; aqui,

8 A primeira publicação desta obra é de 1976, porem neste trabalho será utilizada a segunda edição
publicada em 2012.
22

por uma questão didática também será recorrente. Optamos por esta forma de uso,
frente aos longos títulos atribuídos as obras pela autora.
É através da Imprensa Oficial do Estado do Amazonas que em 1976 surge a
primeira edição de ‘A mulher do garimpo’, consta que circulou em poucos espaços e
exemplares dessa edição podem ser encontrados apenas entre colecionadores. A
segunda edição, feita trinta e seis anos mais tarde, é de mais fácil acesso e será
adotada nesta análise9.
Ressalvamos que a partir das leituras efetuadas nas obras pudemos observar
que os romances em questão foram configurados em uma estrutura própria, nominado
pela autora de ‘Roteiro’. Este recurso talvez apresentem indícios quanto à própria
mobilidade do gênero romanesco, tendo em vista que alinhara-se à confluência de
diferentes formas literárias. Percebemos que o Roteiro adotado por Macaggi configura
certa noção a ser seguida pela autora considerando que são atestados nos
respectivos romances. É valido Sousa (2017, p. 113) quando comenta que essa
mobilidade do gênero pode fazer alusão ainda a estrutura do estilo de Roteiro
cinematográfico, cujo objetivo seria o de o aproximar a ficção cinematográfica daquilo
que é ficcionalizado no livro. Neste caso, Macaggi aparenta fazer a linha inversa e
aproxima a escrita, o mais detalhada possível, na tentativa de descrever cenas que
aproximem-se da dinâmica do cotidiano em uma espécie de cartografia etnográfica
ficcionalizada do Circum-Roraima.
Neste sentido, é possível considerarmos que a dinamicidade do “fenômeno
pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” definido por M. Bakhtin (1999, p. 73) pode nos
levar ao entendimento de que tais indícios apontam para diálogos entre a historiografia
literária alinhada a própria dinamicidade do gênero. É possível que isto possa
coadunar com à própria constituição do herói, posto que rompe com a dinâmica
instaurada nas movimentações e deslocamentos dos personagens mestiço(a)s a
reafirmar a assimilação, pelo gênero, de entendimento cultural como processo de
encontros.
A propósito do gênero romanesco é bom lembrar que Georg Lukács (2000, p.
72) afirma que “o romance é a forma da virilidade madura: isso significa que a

9 A edição que será adotada neta analise corresponde a de 2012. Segundo o editor a referida obra
levou cerca de seis meses para ser concluída. Em conversa realizada em 02/08/2018, ele nos informou
que o fato se deu em virtude do filho da autora, que detém os direitos autorais, imprimir constantes
“correções” no texto da primeira edição de 1976.
23

completude de seu mundo, sob a perspectiva objetiva, é uma imperfeição, e em


termos da experiência subjetiva, uma resignação”. Podemos observar que não se
tratar de escrever como antes em resposta e alinhado ao imposto pelo progresso
desenvolvimentista, mas assevera-se a importância exercida pela leitura executada
de maneira a buscar indícios do que foi negligenciado, presente no ‘recalque’ do
silêncio representado pelos personagens. É válido mencionar que esse ajustamento
de nomenclatura na formatação estrutural dos romances também pode apontar
ressonâncias quanto aos experimentos de longa atividade jornalística exercida pela
autora sendo entendido como uma espécie de adaptação sistemática jornalística
transposta para a estrutura romanesca.
Para além destas breves conjecturas, a seguir desenvolveremos uma linha de
comentários a respeito dos romances dos Circum-Roraima, tendo em vista que nosso
objetivo é, além de dar conhecimento do enredo dos respectivos romance, apontar
ainda como o corpo e os indícios de Biopolítica são neles configurados.

2.1.1 2012a: A Mulher do Garimpo: o romance no extremo sertão norte do Amazonas

A obra estrutura-se em um roteiro composta por dezoito capítulos intitulados


como ‘Livros’, cada um com subtópicos específicos. De início, pode ser observada
certa divisão quanto à estrutura, que trará implicações no próprio enredo, pois a autora
divide o ‘Roteiro’ em dois polos: o Sul, composto apenas de um ‘Livro Primeiro’ e
quatro subunidades; e o Norte, construído por dezessete ‘Livros’ e cinquenta e cinco
subtópicos, respectivamente.
O ‘Roteiro Sul’ apresenta a trama envolvendo o personagem Maria-Só que dará
à luz Ádria. Esta, durante a infância sofre diferentes formas de violência a ponto de,
aos sete anos, ser travestida de homem passando a chamar-se José Otávio, ainda no
Rio de Janeiro. O ‘Roteiro Norte’ apresentará os diferentes desdobramentos do
traslado de José Otávio, do Rio de Janeiro até o ‘extremo sertão norte do Amazonas’.
Serão dois ‘Livros’ (Segundo e Terceiro) dedicados ao trajeto do personagem até a
Região Norte, os outros quinze ‘Livros’ dedicam-se aos conflitos vivenciados por José
Otávio no ‘extremo sertão norte do Amazonas’.
Dessa forma, a primeira parte do romance é ambientada no Rio de Janeiro, a
então capital do país, cujo desenrolar narrativo apresentará a face antitética da cidade,
24

um misto de desenvolvimento urbano acercado das míseras formas de vida presentes


nos inúmeros cortiços. É lá que a jovem Maria-Só se envolve com o sacristão da igreja
próxima ao Cortiço Pombal, onde vive. Bela e atraente é alvo de cobiça de diferentes
rapazes. Seus encantos são também notados pelo sacristão, e dele ela engravida. Ao
comunicá-lo da gravidez é violentamente agredida e abandonada pelo amante.
Desiludida, Maria-Só, com a ajuda da avó que a criou, passa a preparar-se para o
parto. A experiência do abando gera crises depressivas, agrava sua gestação e
definha a cada dia. “Sua gravidez havia sido um martírio” (MACAGGI 2012a, p. 28)
intenso que durante o parto padeceu de hemorragia, falecendo após dar à luz a Ádria.
É entre as situações mais vexatórias e de miséria no cortiço que Ádria vai
crescer sob os cuidados da já idosa vó Belinha. Depois do falecimento da avó, o
padrinho da menina, Joãojão-Bico-de-Lacre, assume a responsabilidade de sua
criação. Foi ele, mulato, capoeirista, tatuador de marinheiros do cais do porto da
capital, homicida, que ensinou a arte da luta de capoeira à pequena Ádria, justificara
o uso par defesa de possíveis agressores. Nesse ínterim, aos sete anos de idade,
diante das ameaças de violação por parte dos fregueses das prostitutas que ali
atendiam, e, dos cafetões, moradores do Pombal, Ádria é travestida de menino em
uma tentativa de salvaguardar seu corpo das violações. Porém, na ausência de
Joãojão-Bico-de-Lacre, os assédios se intensificam, na medida em que os clientes
das prostitutas do cortiço suspeitam de sua masculinidade.
No transcorrer da narrativa, surge a amizade da menina (agora travestido e
nominado de José Otávio) com Juanito, também morador do Pombal. Juntos irão
peraltear pelas ruas da capital, arrastar as telhas da cobertura do Terreiro de
Macumba do Largo do Machado, a fim de satisfazer a curiosidade de adolescente
sobre o que ali é praticado. Para ajudar nas despesas do lar, José Otávio e Juanito
vendem jornais pelas ruas da cidade. Em uma dessas investidas pelas ruas,
conhecem Dom Carlos Urquiza, diplomata exilado político, que passou a orientá-los
nos estudos de ingresso ao Ginasial.
A confiança do adolescente no mestre a fez confessar sua condição. Juanito
também era sabedor, porém não comentava nada sobre seu fiel amigo. A dor parece
que seguia o jovem personagem, que bem cedo veio a perder, de maneira trágica,
tanto Joãojão-Bico-de-Lacre como Juanito.
25

Depois das perdas o corpo de José Otávio reage à fisiologia feminina e se


iniciam os ciclos menstruais. Diante de violentos assédios e a sensação de desamparo
pela qual passa nosso(a) jovem personagem, notamos os dispositivos criados por
ele(a) para autoproteger-se: “Ele tinha os seios pequeninos naturalmente e os
achatava com uma camiseta grossa de meia. Tinha o passo um pouco pesado”
(MACAGGI 2012a, p. 45). Assim, já não cabia mais o cortiço em seus planos, muito
menos nas formas – travestidas – do corpo feminino. A narrativa neste ponto ganha
outros rumos, o ‘Sul’ das desesperanças nos levará ao ‘Norte’, dos sonhos e
conquistas prováveis.
Faz-se necessário aqui observarmos que o personagem transita na narrativa
entre informações sócio-históricas que nos apontam questões relevantes. Nelas está
incluída a situação de marginalidade em que estava configurada a capital do país no
transcorrer da década de 1930. No momento inicial parece-nos que haver certo
espelhamento com O Cortiço, de Aluízio Azevedo. Entendemos dessa maneira, na
medida em que encontramos aproximações estilísticas com o Realista-Naturalista que
permeia a abordagem temática do romance de Azevedo. Os fragmentos seguintes
apontam para essa proximidade:

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração
tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara,
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco
palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias
entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e
do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do
casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao
contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as
ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas
das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um
entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda
amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de
lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da
estalagem ou no recanto das hortas (AZEVEDO 1987, p. 27).

O fragmento nos demonstra certo reflexo entre as obras. Considerando essas


recorrências é possível inferimos que este ponto da narrativa se aproxima à produção
literária de Azevedo, pois nos demonstra proximidades quanto a temática abordada
beirando a certa imitação do estilo do escritor. Vejamos a citação a seguir.

o Pombal, que era o maior cortiço da zona. E depois do beco, afinava-se


mais, terminava em um boqueirão. Cobras e lagartos, rodeado de sapos,
26

havia ali de sobra, e carrapatos reluzentes, como botões cinzentos, nas


carnes dessagradas dos vira-latas e das crianças raquíticas da cor-de-cidra.
Paraíso de pulgas e percevejos, era o Pombal um sobradão secular de estilo
indeterminado, cujo telhado abrigava centenas de pombas perseguidas pelas
crianças gulosas e famintas (MACAGGI 2012a, p.22).

Para além do espaço e enredo que neste ponto aproximam-se, é valido


evidenciarmos que, tanto em O cortiço como em A Mulher do Garimpo, também há
um mestre capoeira, chamado Firmo, amante de Rita Baiana:

era um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio


de marca, pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus
movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter
mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos, pescoço estreito, porém forte;
não tinha músculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um
bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro;
grande cabeleira encaracolada, negra, e bem negra, dividida ao meio da
cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grande gaforina por
debaixo da aba do chapéu de palha, que ele punha de banda, derreado sobre
a orelha esquerda (AZEVEDO 1987, p. 30).

Ao que podemos verificar a proximidade entre as personagens além de darem


vivacidade e dinamismo ao enredo da obra podem nos apontar certo tensionamento
social que envolvia a cidade do Rio de Janeiro a época de publicação de O Cortiço.
Aparenta que tais questões não fogem aos olhos atentos de Macaggi, e em outro
ponto de aproximação é possível atestarmos a abordagem do corpo homoafetivo.
Esta ocorrência vem à tona através do personagem Albino, em Azevedo, questão que
será cintilada por todo o romance de Macaggi. A provocação gerada pelo corpo
homoafetivo é desconcertante aos moldes dos “bons costumes” pregado pela elite da
sociedade narrada.

um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho


castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho
mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já
estava tão familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo
sexo; em presença dele, falavam de coisas que não exporiam em presença
de outro homem (AZEVEDO 1987, p.15)

As constantes provocações geradas pelo corpo transgressor demonstrado no


fragmento textual de Azevedo, também pode ser observados nos escritos de Macaggi
quando da presença de Ádria:
27

Um verdadeiro martírio quanto se tornou mulher. Como esconder o sinal


mensal que a Natureza lhe dera? Mas a boa Jovita-Cinquanta-Nomes, mais
tarde assassinada por um gigolô ciumento, tirou-o dos apuros e dali por diante
o rapaz soube como se haver sem que ninguém percebesse. Ele tinha seios
pequeninos naturalmente e os achatava com uma camiseta grossa de meia.
(MACAGGI 2012a, p. 45)

Percebemos que fragmento, além de demonstrar questões problematizadoras


não apenas no tocante a tensões sociais pelas quais passava a cidade do Rio de
Janeiro aquele momento, mas principalmente por questões historicamente
provocadoras quanto a preconceito e violência. O ‘Livro’ que inicia a obra, apresenta
elementos do romance histórico, principalmente quando retrata os momentos de
transição do século XIX para o XX, especialmente quanto ao processo de
desenvolvimento da Era Vargas, no Estado Novo.
Parece-nos que a presença dos cortiços em ambas escrituras evidencia-se o
conceito de modernização das cidades brasileiras, cujas classes sociais
desfavorecidas aglomeram-se em guetos, espaços de miséria, como maneira de
sobrevivência, enquanto se oferecem como mão de obra barata nas fábricas das
cidades, que passam pelos processos de reordenamento urbano, como é o caso da
capital do país naquele momento.
De volta ao nosso personagem, depois de abandonar o Cortiço do Pombal, os
descaminhos apresentados na narrativa aparentam conduzir José Otávio a aventuras
por outros espaços, até que decide tomar o rumo em direção ao ‘Norte’. O trajeto até
o Amazonas é repleto de fragmentos que vão cartografar a viajem com passagens
descritivas de cidades, pessoas e paisagens que mais parecem anotações de um diário
de viagem.

Vitória... Salvador... Recife... Maceió... Fortaleza... São Luiz... Belém.


A viagem foi maravilhosa, mas o que lhe reservaria o destino na linda e
imensa região que iria habitar?
O Norte...
Ah, o Norte desconhecido... O Norte lendário e extraordinário (MACAGGI,
2012a, p. 47).

O fragmento não apresenta o trajeto de Belém à Manaus, a viagem alonga-se


em direção à Boa Vista do Rio Branco. Nele a descrição minuciosa, chega a cansar a
leitura da composição dos subtópicos dos ‘Livros Dois (O Norte) e Três (Os grandes
Rios)’, visto que o conjunto de informações narradas aparenta ser composto pelo
28

recurso de colagem em que personagens, como Pe. Câmara, narram façanhas dos
“irmãos Pizarro’, de ‘Orelhana’, das ‘Icamiabas’, da geografia dos rios e morfologia do
ambiente.
Há de ser destacado, ainda no fragmento, a expressão “viagem foi
maravilhosa”. A pergunta que nos provoca é como uma síntese de uma longa viaje de
Barco saindo do Rio de Janeiro perpassando por “Vitória... Salvador... Recife...
Maceió... Fortaleza... São Luiz...” até a cidade de Belém do Pará pode ser considerada
tão “maravilhosa”? quais acontecimentos sucederam-se nesse espaço/tempo?
Indagamos dessa maneira visto que a atuação da autora, ao que consta, deu-
se principalmente pelo viés jornalístico. Em 1940, publica em São Luiz o artigo
“Pescando tubarão ... e me adorando” (O Malho, novembro de 1940)10 ou a viajem
feita à Macapá, Santarém, e São Joaquim (Revista Beira Mar-RJ, em 1940)11.
Também do mesmo ano e provavelmente resultado da viagem ao norte do país é o
texto “Retorna ao Rio (O Malho 1939)”12. Embora publicado somente em 23 de abril
de 1941 na Revista da Semana-RJ, mas as informações constam da coleta de dados
em fins de 1940 é o artigo “Instituto de patologia experimenta Evandro Chagas” 13. Em
todos eles há certa receptividade de alguém que está a serviço do Estado. Isto é fato
frente as descrições realizadas pela jornalista sobre a paisagem e os diferentes
espaços por onde esteve em viagem.
Consideremos ainda que em outro momento da narrativa, durante a viagem
entre Belém e Amazonas, o narrador também acrescenta, na íntegra, longo poema
intitulado ‘Criação do Mundo’ (MACAGGI, 2012a, p. 75), constituído de trinta e uma
estrofes, em sextilhas, atribuído ao poeta Esaú, viajante rio-branquense, que segue
com José Otávio até Boa Vista. As sucessivas passagens mais parecem adaptações
de manuais históricos e relatórios14 (MIBIELI, 2016).
No Amazonas, a permanência de José Otávio é repleta de percalços. Para
manter seus gastos financeiros aceita trabalhar como mecânico e vendedor de frutas
na feira de Manaus. Mas é a atividade de motorista do carro funerário da Santa Casa
que se torna determinante para que ele abandone aquela cidade e decida partir em

10 Vide anexo 01.


11 Vide anexo 02.
12 Vide anexo 03.
13 Vide anexo 04.
14 Revista Brasileira de Geografia, abril-junho de 1942.
29

direção ao ‘extremo Sertão Norte do Amazonas’. Boa Vista do Rio Branco, nesse
período, é apenas uma pequena cidade vinculada ao estado do Amazonas que, além
da produção de gado, funciona como ponto de apoio para os que se aventuram pelos
garimpos do Circum-Roraima.
Na abertura do ‘Livro segundo: o Norte’ a autora abre o texto com um fragmento
da obra Inferno Verde, de Alberto Rangel (1927).

E a terra ínvia, confrontada e desdenhosa em sua serenidade profética,


acrescentaria – Oh, infeliz, invasor! Fadejas desenraizado, descontente,
praguejando, mas fertiliza...
Por ti sou denegrida: que importa!
Impassível, porém, aguardo as gerações que hão de seguir, cantando, o carro
do meu triunfo (RANGEL,1920 apud MACAGGI, 2012a, p.51).

Além de o fragmento reforçar o diálogo de Macaggi enquanto leitora de obras


que vão aos poucos se diluindo na construção do romance, como é o caso de ‘O
Cortiço’ e agora ‘Inferno Verde’, parece-nos que nesta passagem ocorre o registro dos
migrantes que aportam na região amazônica e, mesmo que venha a passar por
diferentes desafios, persistem na busca de dias melhores. É o caso de José Otávio,
que passará por diferentes situações que irão contribuir para o desfecho da narrativa
no ‘Norte’.
Relativo a essas questões podemos confrontar com uma passagem do
romance de Macaggi (2012) em descrição, que bem configura essa condicionante
trazida pela citação de Rangel (1927). Vejamos:

Sim! Um dia o Amazonas ressurgirá, primeiro com a lavoura, a


pecuária, e as rodovias interioranas e internacionais! E, mais
tarde com o petróleo!
O Brasil espera pacientemente esse milagre! Ele não tardará...
(MACAGGI, 2012a, p. 55)

Essa mesma aproximação, de caráter citacional e intertextualizante, também pode


ser feita com Euclides da Cunha. Pensamos dessa maneira, baseados no ensaio
‘Inferno verde: representação literária da Amazônia na obra de Alberto Rangel’15, de
Rafael Voigt Leandro (2009), que Rangel e Euclides eram próximos no que tange aos
traços estilísticos. Este último já era autor consagrado entre escritores do início do

15 Disponível em: <https://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/275/231.pdf>


Acesso em: 19 de agosto de 2019.
30

século XX; não sendo, portanto, absurdo tratar Rangel como um ‘euclidiano’, tendo
em vista que Euclides da Cunha prefacia a obra de Alberto Rangel (Inferno Verde,
1927). Parece-nos que a premissa pode ser alongada também a Macaggi, pois além
de leitora de Rangel, ela o cita diretamente em A Mulher do Garimpo. Desse modo,
podemos também consider certo espelhamento em relação a obra ‘euclidiana’, não
apenas por ser leitora de Euclides e Rangel, mas também por apropriar-se,
literalmente, de suas práticas jornalísticas, de pesquisa e registro escritural. Além
disso, Leandro bem delineia essa proximidade entre ambos:

Não é por acaso, então, que ambos se manifestam como vozes genuínas da
realidade amazônica da primeira década do século passado. Além disso,
percebe-se que os dois compartilham uma visão menos paradisíaca do
complexo amazônico. Em À margem da história (1909), por exemplo,
Euclides retira o falso véu que encobre a realidade da Amazônia. Por sua vez,
Alberto apresenta um ponto de vista semelhante nos onze contos de seu
Inferno (LEANDRO 2009, p. 1).

No fragmento, além de apresentar a linhagem euclidiana, o autor mostra


também a Amazônia distante do deslumbramento que Macaggi irá configurar.
Contudo, entre outros fatores, ela se aproxima de ambos, frente às políticas de
povoamento na Amazônia que se diluem durante todo o transcorrer de sua narrativa.
Nessa configuração, José Otávio, no ‘Livro quarto’, chega a Boa Vista do Rio Branco
e a descrição histórica não foge à regra narrada.

Boa Vista do Rio Branco, pouco acima da linha do Equador ladeava a formosa
Serra Grande, perto de Santa Maria do Boiaçu, ficava na margem direita do
Alto Rio Branco e era cercada pelas Serras Pelada, Grande, Malacacheta,
Moça e Murupú. Distava de Manaus quinhentas e quarenta milhas. Vilarejo
até 1926, pequenino e triste, possuía, na ocasião, regular número de
habitantes. (MACAGGI, 2012a, p. 109)

O fragmento só reafirma a observação feita anteriormente e nos conduz ainda


para a escolha de composição do gênero narrativo, que será pontuado mais à frente.
Essas escolhas serão algo marcante no projeto literário da autora, tendo em vista que
o corpus em questão nos conduz a essas observações. Ainda em Boa Vista do Rio
Branco, José Otávio se sente incomodado pela maneira como as moças do lugar o
olham. Isto lhe causa certo desconforto, o que desperta a atenção de pessoas ao seu
redor:
31

José Otávio ficou num quartinho em cima do bar do Moura. No dia seguinte
fez amizade com José Manteiga. [...] E com o correr dos dias andaram os
dois Josés visitando famílias e lugares.
- Você parece aborrecido, José Otávio. O que há?
- Nada. É que me enerva estas moças me olharem tanto, como se quisessem
me conquistar. Eu não gosto de namoro. Nunca namorei em minha vida. Não
tenho jeito.
- Mas como você é esquisito, rapaz! Onde já se viu moço de sua idade não
namorar? Podia até arranjar uma noiva por aqui (MACAGGI 2012a, p.112).

Os desconfortos quanto à sexualidade continuarão a acontecer durante toda a


narrativa, evidenciasse o quanto o travestimento lhe deixa propício às violações e aos
conflitos de identidade na personagem. A narrativa prossegue com José Otávio,
acompanhado de José Manteiga, garimpeiro, indo em direção às serras fronteiriças a
procura de garimpos onde pudesse trabalhar na busca por pedras preciosas.
O enredo neste ponto nos traz um dado importante, ratifica o uso de registros e
encaixes que caracterizam a colagem narrativa “Eis os preços de mercadorias do país
onde se vivia mais caro mundo, nesse ano de guerra de 1942, valendo o Bolívar, em
moeda brasileira, quatro mil réis (4$000) e o real dois mil réis (2$000)” (MACAGGI
2012a, p. 122). Nessa passagem, há uma relação de produtos de uma cesta básica
contendo quantidade e preços em bolívares, moeda venezuelana, e réis, moeda
brasileira. O recurso de colagens e anotações ocorre também em outros momentos
da narrativa, como observamos nesta nota de rodapé

(XXX) – NOTA DA AUTORA – A descrição sucinta dos Índios feita por


Parente Alberto Saldanha e tudo o que a ele se refere, relaciona-se
exclusivamente com os selvagens do Rio Branco, hoje Território Federal de
Roraima. (MACAGGI 2012a, p. 157)

Notas como estas, além de serem algo recorrentes no projeto literário da


autora, fortalecem ainda mais a observação quanto ao uso de recortes e colagens - elas
também ocorrem nas páginas 181, 189 e 227. Afirmamos isto, pois são distribuídos,
integralmente, ao longo do romance diferentes poemas. Alguns autores podem ser
identificados, como é o caso de Ada Macaggi (p. 222), já de outros não foi possível a
identificação, mas acreditamos que seguem a mesma linha (p. 75, 126 e128). Isto
também ocorre com bilhetes (p. 177, 181 e 378), notas de lista de compras (p. 122) e
cartas (p. 189; 259). Muitos desses textos são declamados e/ou cantarolados pelos
personagens do romance.
32

Ao chegar à região do Cotingo16, o personagem principal se envolve em uma


trama vindo a tronar-se o ponto culminante para que ele siga em direção ao garimpo
do Tepequém. No Cotingo, sua forma culta, educada e inteligente de tratar as pessoas
no garimpo desperta a paixão de Florzinha, filha única do garimpeiro Vivente-Pitó.

E o próprio Vicente-Pitó veio servi-lo. Olhou para a filha muito vermelha e


disse:
- O senhor num arrepare neste meu diabinho que só está ocupado quando o
senhor vem aqui (MACAGGI 2012a, p. 193).

Florzinha, a filha era muito caprichosa. Bordava, costurava, lavava e


cozinhava. [...] Florzinha era especialista em doce de mamão. (MACAGGI,
2012a, p.198).

Já foi pedida em casamento várias vezes [...]. Tem boa instrução, apesar de
engolir os rr finais. Cursou o Colégio das Dorotéias em Manaus e é muito
prendada. Além disso é herdeira de quase oitocentos quilates de bons
diamantes (MACAGGI 2012a, p.201).

A oferta da filha em casamento, por Vivente-Pitó, provoca em José Otavio


intenso conflito, pois além da atração que sentia por Carne Assada, seu amigo de
currutela de garimpo, teria que revelar o segredo íntimo que tanto o atormenta. Sua
reação é de repulsa:

- Meu amor! Tome-me, sou sua!


- Mas Flõr... Que é isto? Pelo amor de Deus vá embora criatura! Esqueça-se
de mim, que Deus é testemunha de que é humanamente impossível te amar!
- Esqueça-me! ... Vá embora (MACAGGI 2012a, p. 243).

A condição em que se encontra José Otávio o faz rejeitar o amor de Florzinha,


ainda que gracejos sejam trocados entre ambos. Sentindo-se rejeitada, a jovem
suicida-se. Pressionado pelo sentimento de culpa, José Otávio decide ir para o
garimpo do Tepequém, onde busca se afastar do tormento que dele toma conta. Dá-
se início, assim, a outro rumo na narrativa. Antes, contudo, para justificar-se ao pai de
Florzinha, ele se revela ao velho garimpeiro:

- Seu Vicente, eu não sou assassino! Eu não sou porco, não perdi a vergonha,
não! Era por isto, só por isto que eu não podia amar sua filha! E as lágrimas
escorriam-lhe em fio pelo rosto abatido. Vicente-Pitó, vendo o pequenino seio

16Rio da região fronteiriça Brasil-Venezuela, conhecido por ter sido local de exploração de garimpo
durante a décadas de 1930 e 1940.
33

branco, fitou por um instante – instante que pareceu um século – o rosto do


jovem José Otávio. Depois rompeu numa gargalhada louca, tartamudeando: -
Mas, então, era isso? Ah, ah, ah! Se a finada soubesse! Por que não mostrou
pra ela? E os garimpeiros, então, como se divertiriam! Mulher-homem! Agora
é que compreendo certas esquesitices suas! Todos vão rir quando souberem!
Que a Mulhé do garimpo, como lhe chamam, é mulhé de verdade! Vão chorá
de ri... tanto... tanto..., por isso não tinha barba...não procurava as fêmeas dá
de cima...” (MACAGGI 2012a, p. 260).

Os deboches sofridos e a maneira violenta como foram proferidos diante da


confiança depositada ao garimpeiro decepcionaram José Otávio. Havia se despojado
de todo orgulho, exposto o segredo mais íntimo de seu corpo. Daí a decisão de seguir
a vida em outro lugar.
A presença de José Otavio no garimpo de diamante no Tepequém é marcada
por constantes provocações que irão propiciar o ápice do romance. Podemos
entender esse ponto da narrativa em dois momentos: primeiro, o romance que será
vivenciado entre José Otávio e Pedro Rocha; segundo os acontecimentos que serão
os causadores da revelação do corpo travestido em que vive o personagem central,
por seu travestimento.
No primeiro, as atitudes de José Otávio e Pedro Rocha quando se descobrem
apaixonados demonstram certa semelhança com o clássico romance de Guimarães
Rosa (1994), quanto a relação entre Diadorim e Riobaldo (SILVA, 2016).
A evidência que notamos é encontrada no conflito que vive Pedro Rocha por
nutrir paixão por José Otávio. Embora correspondido, e apesar dos gracejos trocados
entre ambos, Pedro Rocha julga impossível essa paixão, decidindo afastar-se,
deixando ao amado uma carta onde expõe todo o seu amor. Em uma das passagens
da narrativa, José descreve Pedro Rocha com certo erotismo. Este ao perceber que
está sendo observado pelo garimpeiro, corresponde ao gracejo:

De repente Pedro Rocha levantou a cabeça e deu com José Otávio. Sorriu,
fez-lhe um aceno com a mão e continuou gigando. E o rapaz, ao sentir aquele
olhar franco e amigo, perturbou-se. Era sempre assim. Vinham-lhe pudores,
avermelhava e empalidecia, numa emoção que o agitava todo, quando via
Pedro. E não atinava com o porquê daquele tumulto interior (MACAGGI
2012a, p. 278).

O sentimento entre ambos é cada vez mais forte e permanece assim durante
todo restante da narrativa, porém, a permanência de José Otávio no Tepequém não
será nada amistosa. América do Norte, ex-marinheiro, arrogante e charlatão, o tirara
34

para deboche, principalmente quando passou a suspeitar de sua masculinidade. As


agressões são tantas e cada vez mais violentas que José Otávio reage às
provocações delimitando seu espaço e impondo-se entre os garimpeiros. Vejamos:

A Ruivinha. A Mulher do Garimpo vai se haver comigo. Vou dar em cima,


vocês vão ver. E vamos nos divertir! Prometo! [...] Vou lhe dar dois beijos na
boca e quero ver o que ele faz. [...] José Otávio se avermelhou com o insulto.
Então perdeu o controle e avançou para o provocador, que, um pouco
assustado, ficou imóvel. E soltou, numa raiva incontida: - Patife! Miserável!
Você agora vai me pagar por tudo o que tem me feito sofrer! Há um ano que
este maldito me persegue, me humilha, me ultraja sem eu nunca lhe ter feito
nada! Mas agora vai me pagar por tudo, cão danado! (MACAGGI 2012a, p.
373)

Quando o rapaz se moveu, ágil como um felino, passou-lhe um ‘rabo-de-


arraia’. América-do-Norte caiu espetacularmente... (MACAGGI 2012a, p.
373).

Não sou Mocinha, Ruiva ou Mulher do Garimpo. Sou é muito macho como
acabaram de ver (MACAGGI, 2012a, p. 274).

Os fragmentos demonstram as diferentes formas de violência sofridas por José


Otávio, a reação do personagem pode ser vista como resultante de toda a ação
preconceituosa que sofreu. Concomitante ao acontecimento ocorre a partida de João
Rocha do garimpo, na tentativa de evitar constranger o amado com a revelação dos
sentimentos que por ele nutria. É durante sua viajem que ocorre o confronto entre
José Otávio e América do Norte. Durante a viajem João Rocha se arrepende e decide
retornar ao garimpo. Ao chegar, encontra José Otávio ferido após acidente
ocasionado em decorrência da tentativa de encontrar o amigo que havia partido. João Rocha,
presta-lhe ajuda e descobre o segredo:

Meu Deus! Meu Deus! Estarei sonhando ou endoideci? Mas então era
verdade meu pressentimento! (MACAGGI 2012a, p. 380).

Apenas perguntou, num cicio:


- Seu nome, querida?
- Ádria... Ádria de Azevedo... adormecendo suavemente.
Ádria narrou-lhe sua vida, desde o Cortiço carioca até o Tepequém [...] Deus
que me dê saúde e forças para fazê-la feliz como merece, Ádria de Azevedo...
Ádria de Azevedo Rocha (MACAGGI 2012a, p. 381).

Dias depois partiu o venturoso casal (MACAGGI 2012a, p. 387).

Entendemos que neste ponto a narrativa ganha seu ápice, visto que José Otávio
35

anuncia sua feminilidade. É então realizada uma grande festa para celebrar e oficializar
a união do casal, quando José Otávio é apresentado a todos do garimpo como Ádria.
A narrativa chega ao fim com o jovem casal seguindo viagem em direção ao Ceará,
onde Ádria seria apresentada à família de João Rocha. Porém, uma promessa é
firmada antes da partida: retornar ao Rio Branco com a missão de ter filhos e ajudar a
Amazônia a prosperar.

2.1.2 1980: Dadá Gemada, Doçura Amargura – o romance do fazendeiro roraimense

Em 1980, Nenê Macaggi dá prosseguimento a mais uma etapa de seu projeto


literário. A obra ‘Dadá Gemada, Doçura Amargura – o romance do fazendeiro
roraimense’, agora publicada pela Imprensa Oficial do então criado Território Federal
de Roraima. Nela, a autora segue a mesma linhagem de acontecimentos históricos e
cartográficos da dinâmica das fazendas de criação de gado no vale do Rio Branco.
A obra configura, também, a reafirmação de um projeto literário cujos
propósitos estão centralizados na dinâmica social implementada na região de
abrangência do Circum-Roraima. A narrativa alonga o espaço da trama para o
Amazonas, chegando até Maués (AM), ambiente este ocupado por Dadá Gemada em
sua ‘amargura’.
Composta estruturalmente em trinta e cinco capítulos intitulados de ‘Livros’,
segmentados em oitenta e dois subtópicos que narram a presença dos migrantes no
Rio Branco, mais precisamente na parte Sul, confluência entre os Rios Negro e
Branco. A narrativa chega ao ponto de nos apresentar a configuração romantizada da
paisagem, em descrições extensas sobre os costumes e práticas sociais. A obra
aponta para a década de 1970, período de grande fluxo de migrantes na região do
baixo Rio Branco. Esse fluxo nos conduz ao crescente contato entre o indígena e os
não indígenas, ocasionado pelo decadente ciclo da borracha na Amazônia. Ao que
parece, essa movimentação dará dinâmica miscigenada aos personagens: Dadá-
Gemada Doçura Amargura17, Naldo-Macuxi e Dadá-Gemada Doçura Amargura (a

17Esclarecemos que, por uma questão didática, na tentativa de evitar certa confusão no trato dos nomes
das personagens, tendo em vista que o adjetivo, Dadá Gemada Doçura Amargura, é atribuído no
romance tanto a mãe quanto a filha, usaremos após cada um deste a expressão entre parentes,
(mãe) ou (filha) para referenciar e diferenciá-las durante a narrativa.
36

filha que recebe o mesmo nome da mãe).


A história envolvendo os três personagens centrais do romance se inicia ainda
nas fazendas do estado de Roraima. O convívio na infância entre Dadá-Gemada e
Naldo-Macuxi será interrompido pelo casamento e a maternidade de Dadá-Gemada.
Daí em diante ambos tomarão rumos diferentes. O resultado do casamento de Dadá-
gemada será a filha que recebe a mesma alcunha que a mãe, Dadá-Gemada Doçura-
Amargura. No final do romance, após os diferentes desdobramentos da narrativa os
três se reencontrarão.
O plano narrativo romanesco escolhido por Macaggi repete-se nesta obra. A
narrativa, de formação histórica e documental afirma-se cada vez mais e tem como
cenário os conflitos entre a personagens e seus deslocamentos, Aqui, a ocupação do
espaço e sua urbanização pelos imigrantes é a efetivação do que foi prenunciado por
Macaggi, no romance A mulher do garimpo.
A busca pelo aprimoramento técnico para lidar com a agricultura e pecuária,
aqui representado por Naldo-Macuxi, demonstra que o processo de urbanização
implementa outro ritmo de vida aos corpos das personagens. Isso se dá principalmente
no que se refere às técnicas na agropecuária. Figura central dessa nova postura serão
os Macuxi18, tendo em vista sua imersão nas relações de trabalho estabelecidas nas

18Autodenomidados Makuxi é termo que contrasta com os outros povos Karib próximos, os Taurepang
(Arekuna e Kamarakoto) que usam o autodenominação Pemon ('nós', 'gente'). Os Makuxi usam
também Pemon como parte do grupo mais amplo (Andrello 2004). Recebem ainda outros nomes:
Macuxi, Macushi, Pemon, Teweya. Formam parte do grupo de povos Pemon, que os distingue dos
Kapon, que consistem nos Ingarikó (Arakaio) e nos Patamona.
Históricamente a área que é hoje o Estado da Roraima era disputada e invadida por muitos países
desde o descobrimento. A fronteira do Brasil não foi determinada até 1904 que dividiu as terras dos
Makuxi. Portugal não entrou a região pelo rio Branco até o princípio do século XVIII e os índios do rio
Branco sofreram expedições para os levar a Belém como escravos.
Os portugueses conseguiram atrair mil indígenas, que incluíram os Makuxi, a viver em aldeias perto
do rio Branco, mas não tinham sucesso com os Yanomami. Estes índios aceitaram os presentes de
ferramentas, etc. e o batismo católica. Entretanto os indígenas reconheceram em pouco tempo que
seus mestres quiseram mudar sua cultura e forçá-los trabalhar. Duas comunidades fugiram e o
portugueses tomaram represália contra os outros. Mas uma mudança de política atraiu os índios de
novo e em 1789 seis aldeias, uma no lugar de Boa Vista, tinham uma população de 1.051 indígenas,
mas no ano seguinte alguns Makuxi se rebelaram, fugiram e foram capturados depois. De novo as
autoridades castigaram todos os chefes das aldeias que se rebelaram com exílio (Hemming 1995,37).
Depois os portugueses consideram missionários ser a única solução para 'amansar' os índios mas
somente dois padres responderam à vocação em toda a região amazônica. Um deles foi viver em
São Joaquim e formou uma missão no rio Rupununi entre os Wapixana e os Makuxi. Assim ele entrou
em conflito com o missionário protestante Thomas Youd e seu ministério entre os Makuxi.
A criação de gado nos campos desenvolveu no fim do século XIX com 20.000 cabeça e 4.000 cavalos
na região do rio Branco, e os Makuxi trabalharam como peões e remadores nos barcos grandes
levando o gado para Manaus. Os Makuxi eram considerados bons trabalhadores nas fazendas do
governo (Hemming 1995.335). Mas fazendeiros e regatões abusaram sua liberdade para forçar os
37

fazendas, o que lhes trará a alcunha de “hábeis com o gado”.


Parece-nos que o peso dessa urbanização terá o corpo do indígena como
sustentação dessa proposta. Também nesta obra teremos outros desdobramentos da
proposta desenvolvimentista implementada por Vargas. O fragmento a seguir bem
contextualiza este momento:

As lendas da Amazônia mergulham raízes profundas na alma da raça e a sua


história, feita de heroísmo e viril audácia, reflete a majestade trágica dos
prélios travados contra o destino. Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar
a floresta, foram as nossas tarefas. E, nessa luta, que já se estende por
séculos, vamos obtendo vitória sôbre vitória. A cidade de Manaus não é a
menor delas. (VARGAS, 1940)

O comentário retirado do discurso proferido pelo então Presidente Getúlio


Vargas em 1940 quando de sua ida a capital do Estado do Amazonas mostra o forte
impacto que essa proposta e suas consequências trouxeram para a região, pois o
mapeamento que gerou a abertura das grandes estradas na Amazônia, a exemplo dos
dispositivos que representam-se na criação da Perimetral Norte e da BR 174, foram
devastadores e imprimiram no corpo dos sujeitos – principalmente indígenas - que por
elas foram atingidos sequelas que até hoje deixam marcas profundas em nossa
configuração histórica. A questão que nos provoca é: qual o preço pago pelas violações
no espaço, da cultura e das etnias, que podem ser visualizados na respectiva obra?

índios à mão de obra e os punir severamente neste serviço (Santilli 2004). No início do século XX os
Makuxi eram bem aculturados, trabalhando nas fazendas e nos barcos, falavam português mas
tornaram-se presos em escravidão por dívida. Os Makuxi sofreram uma epidemia de sarampo em
1910, fome devido a uma seca em 1911, e malária em 1912 e milhares morreram (Hemming
2003.474). Em 1927 Coronel Rondon começou sete anos de mapeamento das fronteiras nacionais,
indo primeiro ao norte e ajudou em resolver os conflitos entre os Makuxi e Wapixana e os fazendeiros
e colonos (Hemming 2003.209). Rondon descobriu que o maior problema que enfrentou os brasileiros
foi os índios travessando a fronteira para a Guiana Britânica devido ao mau tratamento pelos patrões
no Brasil. Esta situação continuava no anos 40, porque missionários britânicos deu a assistência
médica e prática quando os missionários foram proibidos pelo SPI no lado brasileiro.
No Brasil o líder do SPI, Vasconcelles, argumentou que a conversão dos índios em católicos e
protestantes lhes causou perder interesse na suas identidade étnica e entre 1942 e 1955 proibiu os
missionários trabalhar ente as tribos. Os Makuxi não podiam se subsistir nos pequenos terrenos que
tinham entre as fazendas (Hemming 2004.476). Em 1950 os Makuxi e Wapixana começaram a ser
mais militante em defender seus direitos. Cada aldeia apoiaram um tuxana (chefes) politicamente
ativos, liderado a comunidade Raposa como chefes Gabriel, Odalício e Abel. Tuxana Abel visitou
Brasília e a Roma em 1975, os padres italianos della Consolata sendo ativos entre os Yanomami e
os Makuxi.
Disponível em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-m/123-185-makuxi.html>
Acesso em: 01/10/2019).
38

O romance tem início com a apresentação das duas fazendas coirmãs. Ambas
se localizam no norte do estado de Roraima e pertencem a migrantes nordestinos. A
primeira é a ‘Alvorada’, de propriedade de Vovô Hilário Viana, piauiense, idoso, viúvo.
A descrição da dinâmica entre as personagens nas fazendas é feita por Nenê em
diferentes passagens, a exemplo do fragmento a seguir:

Então vovô Hilário ficou trabalhando em sua fazenda em companhia das crias
e dos empregados, cuidando de seus animais e de suas plantações.
O tempo passou, algumas crias, algumas crias cresceram, casaram e tiveram
filhos e ele também cuidava das novas ninhadas de curumins, brancos e
mestiços, cujos pais nunca quiseram sair da Alvorada por terem bom
tratamento e grande amizade a vovô Hilário. [...] Dentre as novas crias o
preferido era Naldo-Macuxi (MACAGGI 1980. p. 21).

Há de ser evidenciado a forma como o discurso narrativo se constrói


demarcando o espaço de encontros étnicos entre as personagens nas fazendas.
Justamente os processos de mestiçagem delineiam como os personagens são
agraciadas nas fazendas como se estas fossem o espaço apenas de relações
amistosas. O discurso das relações fraternais acaba por atuar como mascaramento
das práticas de violações na maioria das vezes visibilizadas através dos rastros
deixados no discurso silenciado, melhor dizendo, no corpo mestiço.
A segunda fazenda tem o nome de ‘Nuvem Branca’ e pertence ao casal Vovô
Gil Pereira e Vovó Geroma, migrantes cearenses de Sobral, sem filhos ou quaisquer
parentes naquela região. Da mesma forma, a relações entre as personagens seguem
o mesmo procedimento discursivo de escamoteamento das violações e encontros
étnicos na fazenda:

Também possuem, brancas, índias, vários empregados e mais de duas mil


cabeças de gado vacum e cavalar, fora os animais de pequeno porte. [...] E
quem mandava ali e desmanda, como uma rainha? Apenas um toquinho de
gente, vive como um azougue usado no garimpo para reter o ouro e que se
chama Dadá-Gemada Doçura Amargura (MACAGGI 1980, p. 22).

“Rosada como uma atã19 perfumada” (MACAGGI, 1980, p. 23), ‘Dalvina Soares
Gomes’ é o nome verdadeiro de Dadá-Gemada Doçura Amargura e, junto com Naldo-
Macuxi, irá protagonizar os conflitos da narrativa. Dadá, assim como sua filha, recebem

19 Fruta popularmente conhecida como ‘fruta do conde’.


39

o mesmo nome de batismo bem como lhes é atribuído o mesmo adjetivo. Indígenas mestiças,
ambas passarão por constantes violações durante a narrativa. Serão elas as
protagonistas de passagens em que o espaço se confunde com os dilemas
delineadores da vida das personagens, sejam eles entre o campo e a cidade ou entre
os vícios e as virtudes que se desdobram na narrativa. É como se o corpo das
personagens metaforizasse a violações praticadas nas fazendas.
O sentido dialético se configura principalmente no personagem Naldo-Macuxi,
pois ainda na infância é enviado ao Rio de Janeiro para estudar. É obrigado a
interromper sua relação com o meio em que nasceu e foi criado. O efeito disso é
significativo em sua trajetória, pois os conflitos pelos quais passará o deixarão
vulnerável às seduções propiciados pela metrópole, e o conduzirão ao uso de
entorpecentes.
Apesar de o romance apresentar as outras ‘mestiças’ como ponto central da
narrativa, é Naldo-Macuxi que domina a cena em grande parte do romance. O
coadjuvante assume, assim, o papel de protagonista e conduzirá a narrativa para o
desfecho causado pela união conjugal com Doçura-Amargura, filha de Dadá-Gemada,
representação da união entre as duas fazendas, ao final do romance.
A narrativa nos conduz à hipótese de que é o mestiço, oriundo dos processos de
encontros étnicos entre os povos originários da região e o imigrante vindo do Sul e
Nordeste, o personagem principal do romance. É ele que representará as intempéries
trazidas, ou melhor dizendo, ofertadas pelo projeto desenvolvimentista. Há de ser
recordado que o discurso proferido por Getúlio Vargas em Manaus (1940) já
profetizava essa relação:

É tempo de cuidarmos, com sentido permanente, do povoamento amazônico.


Nos aspectos atuais o seu quadro ainda é o da· dispersão. O nordestino, com
o seu instinto de pioneiro, embrenhou-se pela floresta, abrindo trilhas de
penetração e talhando a seringueira silvestre para deslocar-se logo, segundo
as exigências da própria atividade nômade. S. ao seu lado, em contacto
apenas superficial com êsse gênero de vida, permaneceram os naturais à
margem dos rios, com a sua atividade limitada à caça, à pesca e à lavoura
de vazante para consumo doméstico'. Já não podem constituir por si sós
êsses homens de resistência indobrável e de indomável coragem, como nos
tempos heróicos da nossa integração territorial, sob o comando de PLÁCIDO
DE CASTRO e a proteção diplomática de RIO BRANCO; os elementos
capitais do progresso da terra, numa hora em que o esfôrço humano, para
ser socialmente útil, precisa concentrar-se técnica e disciplinadamente. O
nomadismo do seringueiro e a instabilidade econômica·dos povoadores
ribeirinhos devem dar lugar a núcleos de cultura agrária, onde o colono
40

nacional, recebendo gratuitamente a terra, desbravada, saneada e loteada,


se fixe e estabeleça a família com saúde e confôrto (VARGAS, 1940).

Os agravos que a proposta desenvolvimentista deixou na região foram


extremamente violentos. E o fragmento retoma nitidamente a maneira como eram
tratadas as pessoas que na região dinamizavam suas histórias sociais. Ao que
podemos observar o campo artístico reverbera, através da matéria literária, a prática
de despojo dos aspectos culturalmente construídos na região pelo modelo em
processo de encontros étnicos.
A ida de Naldo-Macuxi para o Rio de Janeiro reafirma essa proposta de Estado
e é condizente com a necessidade que a “fazenda” tem de alguém que possa conduzir
e modernizar sua produção. Dessa maneira, a busca por especialização técnica
caracteriza que o processo de urbanização da região havia se instalado, e a partida
do Macuxi seria uma consequência. Demonstra ainda a decadência das fazendas
nacionais, que introduziram o gado na região do Vale do Rio Branco. A substituição
de suas práticas culturais construídas nas relações tidas na fazenda agora ganha
outros redimensionamentos coniventes ao projeto elitista, mas que violentam a
personalidade étnica das personagens. Vejamos:

Naldo-Macuxi tinha de partir. Era preciso. Chegara o tempo. Havia


necessidade de aproveitar o pendor e a inteligência dele para a Veterinária.
O rapaz possuía mão de ouro para cuidar e curar gado e já sabia muita cousa
pratica sobre os animais da fazenda. [...] Naldo ficou em Boa Vista dois dias
e mais três em Manaus, seguindo para o Rio no avião da Cruzeiro...
(MACAGGI 1980, p. 45)

O deslocamento forçado faz com que o jovem personagem assuma práticas


culturais agressivas à forma como ele dinamizava suas relações, até mesmo nas
fazendas, fato que contribui ainda mais para seus conflitos pessoais. A migração
efetuada pelo Macuxi delineará os constantes desdobramentos aos quais passará o
jovem frente ao mundo novo que lhe imprime ritmo e maneira diferente de socializar-
se. Ressaltemos que Naldo-Macuxi já nasce na fazenda em uma relação de certa
maneira, distanciada das práticas culturais praticadas pelos povos originários.
Justamente nessa configuração do personagem é que evidenciamos o corpo mestiço
de Naldo como aquele que se penaliza pela não ancestralidade.
Naldo-Macuxi, “Como quase todo mestiço do extremo norte do amazonas...”
41

(MACAGGI, 1980, p. 134), é filho renegado de um migrante nordestino com uma


indígena Macuxi, portanto não será diferente de Dadá-Gemada (matriarca), que é filha
de uma indígena Maiongon20 venezuelana com um paranaense que a rejeita e
entrega-lhe aos cuidados de Vovó Geroma (MACAGGI, 1980, p. 36). Esta sina de
abandono e desamparo está também presente em Dadá-Gemada Doçura Amargura,
filha de pai nordestino que também padecerá da rejeição.

Então foi quando Carlos, tendo casado com uma branca no Maú, que lhe deu
dois filhos, resolveu voltar para o Paraná e não querendo misturar seus filhos
de raça branca com Dadá-Gemada, filha e neta de índio, trouxe-a para a
Nuvem Branca e a entregou definitivamente a vovó Geroma (MACAGGI
1980, p. 36).

O fragmento da narrativa nos leva a entender que a condição mestiça os


diferencia dos outros, tanto dos indígenas originários quanto dos não indígenas. É
como que se pertencessem a uma outra categoria de sujeitos, frente ao intenso
contato entre os grupos étnicos que ocupavam o lugar. Essa recorrência marca a

20Autodenominados de Ye'kuana que significa 'povo da canoa' ou 'povo do tronco na água'. Quando
se referem como so'to que quer dizer 'gente' (Moreira-Lauriola 2003). São também conhecidos como
Makiritare é nome dado pelos Arawak, e adotados pelos Espanhóis. Maiongong é outro nome usado
no Brasil.
Há alguns séculos os Ye'kuana migraram para norte dos rios do Amazonas no Brasil, entrando no sul
da atual Venezuela, deslocando os povos Arawak que estavam na região. Devido à inacessibilidade
do seu território o contato com os espanhóis e os portugueses houve somente na segunda metade
do século XVIII. Mas no século antes viajavam pelo território brasileiro para caçar e chegaram no rio
Branco. Entre 1701 e 1781 os espanhóis penetraram a região para contrariar o avanço dos
Portugueses. Os Ye'kuana dividiram os conquistadores em dois grupos conforme duas experiências
com eles. Os da primeira experiencia era os de Wanadi, o supremo ser, que é representado por a
garça branca, e mestre de metais, ferro e as armas de fogo, com quem se aliaram. Assim o primeiro
contato com os espanhóis eram satisfatório, e os índios prometeram se converter ao catolicismo e
aceitaram a proteção espanhola dos outros indígenas. Porém seis anos depois os espanhóis voltaram
com uma força militar e os sacerdotes proibiram a religião dos índios, diziam que tinham capturado o
Wanadi. Os outros do segundo encontro são de fañuru que fazem o mal, conquistando o território e
escravizando o povo. Estes espanhóis incluiriam militares que obrigaram os índios trabalhar nas
construções dos fortes. Também chegaram missionários capuchinhos e franciscanos, mandados pela
Coroa espanhola, para converter os indígenas. Mas o povo acreditaram que Wanadi escapasse dos
padres e fosse para o céu, e um dos seus pajés liderou a resistência dos Ye'kuana em uma revolta
em 1776 e em consequência os espanhóis abandonaram a região (Mekler 2001). [...]
Nos anos 90 o Exército Brasileiro instalou uma base em Auaris com uma represa hidroelétrica.
Também veio um invasão de garimpeiros que dizimou a população com violência e doenças. Depois
muitos anos de campanha afinal as autoridades no Brasil e na Venezuela reconheceram o Território
Yanomami em 1992. Em janeiro 2009 mineiros de ouro mataram um chefe Ye'kuana e feriram seu
filho em Roraima, porque eles recusaram os levar para cima das cachoeiras no rio Urarioera e
penetrar no Território dos Yanomami. Apesar dos protestos dos Yanomami as invasões estão
aumentando (Survival International).
(Informações disponíveis em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-p/213-
yecuana.html> Acesso em 01/10/2019).
42

configuração política das personagens, visto que seu pertencimento irá acompanhá-
lo nos desdobramentos da narrativa. Observa-se nesse ponto que o ‘estar no mundo’
tem mais significado e sentido no acolhimento entre os pares da mesma condição de
pertencimento.
Da condução do romance infere-se a metáfora do mestiço ‘Macuxi’, ao final da
saga, unindo-se à mestiça Dadá-Gemada Doçura Amargura (filha) possibilitando
entendermos a dinâmica de encontros culturais outros entre povos no ‘extremo sertão
norte do Amazonas’. Dizemos metáfora, pois o enredo levará nossos três
personagens a lugares distintos, até que seu retorno aconteça, levando-nos a
perceber o quão dolorido foi o distanciamento entre eles. O conforto desse tormento
é sanado apenas quando retornam ao local de onde partiram.
No início do romance, ainda na fazenda de Vovó Geroma, Dadá-Gemada
Doçura Amargura (mãe) se apaixona por Alberto Gomes, jovem nordestino de Natal,
casa-se com ele e dá à luz uma menina: Dalvina Soares Gomes (Dadá-Gemada
Doçura Amargura, filha):

Ano e meio depois, veio ao mundo Dadá-Gemada, a futura Doçura–


Amargura, parecidíssima com a mãe e com o avô paranaense, loura como
u, girassol, branquinha como um cará-mimoso e pintadinha de sardas como
uma chita de bolinhas. E, como a mãe, entrou como um furacão no coração
daquela gente, mandando e desmandando no coração de vovô Gil e na vovó
Geroma (MACAGGI 1980, p. 37).

Como podemos observar, a constituição das personagens nos romances


perpassa pela condicionante da mestiçagem e dará enredo à narrativa frente as
constantes provocações que irá causar. Para além disto, a alegria de Dadá dura
pouco, pois o esposo vem a falecer. Desamparada e amargando a solidão, é
facilmente seduzida por Clóvis, amazonense, que se dizia advogado, dono de um
carro, objeto raro nas fazendas naquele período. Aproveitando-se da bondade dos
donos da fazenda, ele se hospeda por ali por alguns dias. Encantada com as
promessas do ‘canalha’, a jovem mãe viúva decide fugir com ele, deixando todos da
fazenda tristes e, sob o amparo dos avós, a pequena Doçura-Amargura.
Neste ponto, a narrativa ganha outro desdobramento e a violência passa a
ocupar espaço. Já no Amazonas, a jovem e iludida Dadá-Gemada Doçura Amargura
(mãe) torna-se refém de um perigoso traficante que também dizia ser advogado. A
condução do enredo demonstra as barbáries praticadas por Carlos contra a
43

companheira. Além das constantes agressões que sofria, pois para manter os gastos
de Carlos era obrigada a prostituir-se, ainda que grávida.
A morte de Carlos, após ser perseguido pela polícia, traz alívio ao sofrimento
de Dadá. Envergonhada por ter abandonado a filha e a fazenda e acreditado num amor
ilusório, Dadá-Gemada, agora com outro filho, migra para a cidade de Maués. A
chegada a Maués não é simples, mas consegue abrigo, para ela e o filho Noni, e
trabalho através da amizade feita com dona Alice, moradora da cidade. Apesar de
iniciar uma nova vida em Maués, Dadá-Gemada vive atormentada com a lembrança
do abandono do lar/fazenda, da família e da filha, mas nutre a esperança de poder
retornar de maneira honrada.
Conflitos similares ao de Dadá-Gemada serão os que Naldo-Macuxi viverá.
Ocupando parte central na narrativa, antes de ser enviado para estudar no Rio de
Janeiro, é ele que protagoniza cenas de traquinagem com Doçura-Amargura. A
liberdade de infância e adolescência mostrará um jovem ‘belo e forte’ em peraltices
pela fazenda.
A partida do Macuxi para o Rio de Janeiro não inviabiliza o sentimento
correspondido que ele nutre por Doçura-Amargura, tanto é que durante o transcorrer
das cenas a relação deles constantemente volta à tona. Agregadas a saudade da
liberdade que havia na fazenda, vieram-lhe as primeiras agressões, e se repetiram
durante sua estada no Colégio: “No começo, já uniformizado, o pobre Macuxi serviu
de chacota. Chamavam-no de Índio comedor de gafanhoto, de Macaco-sem-pêlo,
Olho-de-boto e ele, que era tão violento, aguentava tudo aquilo sem dizer nada, para
evitar briga (MACAGGI 1980, p. 46).
Além da forma depreciativa como era tratado no Colégio, a maneira como é
caracterizado esse “índio” agora ‘uniformizado’ simbolicamente dócil à vida escolar de
então e aos auspícios da vida urbanizada, nos mostra como os processos biopolíticos
de docilização atingem fortemente os sujeitos. Naldo-Macuxi representa bem essa
passagem pela qual passaram os povos originários do Circum-Roraima. O antes
traquino curumim que corria solto pelos campos das fazendas, agora será ‘Dr., Dr.
Arnaldo’.
O percurso de Macuxi torna-se ainda mais doloroso quando de seu
envolvimento com uma prostituta que o inicia no sexo e no uso de maconha. Os
agravantes serão cada vez mais intensos, visto que chega a criar dependência
44

química, o que o faz abandonar os estudos. A narrativa desdobra-se em prólogos


sobre o uso de entorpecentes feito por diferentes amigos de Naldo-Macuxi e por ele
próprio. Esse desenrolar tornará o texto cansativo frente ao intenso teor moralista.
Nos diferentes desdobramentos a respeito deste ponto, a dependência química
sofrida por Macuxi o conduzirá a delírios e visões de sua vida na fazenda. A busca
por reencontrar-se o levara de volta ao Amazonas. Já bastante debilitado, encontra-
se com a amiga Dadá-Gemada, frente a ação de ter salvo uma criança, Noni, do
afogamento. Nessas vagâncias que a personagem faz, a cidade de Maués surge
como espaço de reencontro e recomeço entre os desamparados, Naldo-Macuxi e
Dadá-Gemada. Vejamos:

- Naldo? O Naldo-Macuxi? Mas meu Deus, como veio parar nestes ermos?
O que aconteceu a você? Fale, Naldo, fale.
- Minha boa amiga, por favor me dê tempo para relembrar todas as minhas
desventuras. E você vai também me contar as suas, pois tenho certeza de
que não foi feliz com aquele homem antipático com quem fugiu, por quem
abandonou tudo e os que a amavam e que confiavam em você; até sua
própria filha, aquela adorável Dadá-Gemada Doçura Amargura!
Ah, me dê tempo, Dadá-Gemada, me dê tempo para lhe contar todas as
minhas desgraças! São muitas, muitas! (MACAGGI 1980, p. 151).

O clima de surpresa e alegria no reencontro, parece tomar conta da narrativa


neste ponto. A gratidão por ter encontrado a amiga de infância personifica bem o estilo
de Dadá-Gemada Doçura Amargura, solidária e atenciosa com o amigo. Todo o vigor
do corpo de Naldo-Macuxi que havia partido para o mundo “civilizado” agora já não
era mais o mesmo. Estava ali, aos cuidados de Dadá, revigorando-se no sentimento
acolhedor da amiga, mãe de seu grande amor, Dadá-Gemada Doçura Amargura
(filha). Como se retornar ao espaço de pertencimento lhe possibilitasse revigorar as
forças, o corpo.
Nessa configuração, o amor ideal aparenta estar próximo de ser reencontrado e
acontecer, depois de trajetórias sofridas, dolorosas e violentas, os interditos para que
o compartilhar do sentimento amoroso aconteça entre Naldo-Macuxi e a filha de Dadá-
Gemada Doçura Amargura. Nos moldes em que a autora configura as cenas,
enquanto início de uma busca do que seja realmente significativo, podemos encontrar
refúgio nos traços pertinentes da manifestação literária vinculada fortemente a um,
por assim dizer, anacrônico romantismo.
Esses traços do romanceado, bem como sua aproximação ao estilo
45

regionalista, acabam por trazer à escritura de Nenê Macaggi um certo


escamoteamento de toda a dinâmica por qual passa a Amazônia no momento da
produção da autora. Parece-nos que o tom irônico ou sarcástico presente em alguns
momentos da narrativa, aponta uma voz emergente que intenciona manifestar-se,
mas de alguma maneira não vem à tona com veemência. Vejamos como isto ocorre
no fragmento a seguir:

No dia seguinte, bem cedo, foi conhecer o lado de cima da BR 174, até Santa
Elena e ficou encantado e ao mesmo tempo triste por ver tanta clareira, sinal
de morte para as maravilhosas árvores amazônicas. Mas era o progresso...
(MACAGGI, 1980, p. 174).

O demonstrativo aparenta certo receio em manifestar o ato contrário aos


processos de agressão que tiveram na Amazônia lugar de grandes projetos que ainda
hoje atingem a vida das pessoas do lugar. Isto se confirma pelo próprio uso da frase
incompleta, acrescida no final pelo usa das reticências, o que dá mais ênfase a certa
cultura do silêncio imposta na região.
A estada de Naldo-Macuxi em companhia de Dadá-Gemada Doçura Amargura
(mãe) foi fundamental para sua recuperação física e emocional. Isso contribuiu
fortemente para que tomasse a decisão de voltar a cursar a universidade e concluir o
curso de Veterinária. Antes de sua partida, firma o compromisso com a amiga de que
ele iria concluir o curso universitário, retornaria ao amazonas e juntos iriam de volta
para a fazenda. Lá, Naldo-Macuxi assumiria o amor que nutria por Dadá-Gemada
Doçura Amargura (filha), com ela casaria.
A narrativa continua e após o mestiço concluir o curso de Veterinária, decide
retornar a Boa Vista do Rio Branco, na companhia de Dadá-Gemada, só então pode
perceber o desenvolvimento pelo qual passava a cidade. O laivo historicista torna-se
aqui muito forte, Livro Décimo Sexto, pois descreve fielmente prédios públicos
resultantes das intervenções dos governos militares na cidade.
Além de citar a presença de agências bancárias, nomes de empresários e as
estradas de integração: Guiana, Venezuela, Amazonas. Ao que parece, há no projeto
de Macaggi uma efetiva necessidade de referendar, ou melhor, trazer para dentro da
obra dados da pesquisa realizada para composição do romance. Isto acontece com
poemas (p. 162, 175, 273, 235, 236, 237), informações coletadas (p. 231, 237), cartas
(p. 87, 104,131) e notas (p. 29).
46

A grande paixão de Naldo-Macuxi sempre fora Dadá-Gemada Doçura


Amargura (filha). Porém, o destino havia traçado rumos que os distanciaram por um
bom tempo. Além do falecimento do pai, o abandono por parte de Dadá-Gemada
(mãe) fez com que, tempos depois, parentes de seu pai requeressem a guarda da
menina. A contragosto a jovem é levada para o Estado do Rio Grande do Norte, terra
de origem dos familiares de seu falecido pai.
Os bens do pai, herdados por ela, fizeram com que seus parentes devotassem
empenho em ter a mestiça sob seus cuidados. A tolerância atribuída à ela resultava
da fortuna que estava em seu nome e que ela desconhecia totalmente. Após o
falecimento de seu já idoso tutor, irmão de seu pai, as coisas tenderam a mudar.
Doçura Amargura passa a ser tratada como empregada da casa, submetida as mais
diferentes violações.
Os danos causados a ela se intensificam cada vez mais. Não bastasse a
maneira cruel como era tratada; seus parentes arquitetam um plano para matá-la e
assim poder apropriar-se da herança. As diferentes maneiras de violência vão se
multiplica a ponto de Doçura-Amargura ser violentada por seu primo.

Foi até o quintal, onde ela regava umas plantas e pediu-lhe que lhe fizesse
um café. Sem desconfiar de nada, a pobre criança entrou na cozinha. E
imediatamente Gastão pulou sobre ela, tapando sua boca e arrastando-a
para o quarto dele. Dadá defendia sua honra, enlouquecida, mas não era
mais a Dadá-Gemada cheia de vida e saúde que chegara ali e por isso
predominou a lei do mais forte e ele jogou-a brutalmente sobre a cama,
rasgou-lhe a roupa e possuiu- a como um animal sem entranhas, deixando-
a ferida, machucada e completamente exaurida. Depois saiu do quarto para
tomar agua e logo voltou. Dadá estava num canto da cama, jogada,
soluçando estremecidamente. [...] Então chegou perto dela e disse-lhe: - É
melhor ir para o seu quarto. Eu não disse, gata amarela, que você havia de
ser minha?! E saiu assobiando. (MACAGGI 1980, p.75).

O acontecimento traz-lhe marcas profundas, pois além de conviver com o


agressor no mesmo espaço descobre o resultado do estupro, um filho. A gravidez é
inicialmente rejeitada de todas as maneiras, até que a jovem mestiça desperta afeto
materno pela criança. Ainda que esperasse um filho do primo/agressor, seus parentes
não desistiram da execução de Dadá-Gemada. E novamente atentam contra sua vida.
Desta vez, a tia e o pai da criança.

Dadá nem se pode defender... Afinal ele achou o que procurava e veio
segurando um enorme pedaço de pau, aproximando-se dela, meio indeciso.
47

Dadá olhou nos olhos dele, que tinham um brilho sinistro e ali viu a morte.
Quis gritar e sua voz não saiu. Dona Cintia ficara a uns dois metros de
distância, olhando, fascinada, o que o filho fazia. De repente Dadá-Gemada
ergueu-se depressa, com a força dobrada pelo instinto de defesa e de
maternidade: era a loba dormida que ia morrer pela cria...
- Anda, Gastão, acaba! Olha a chuva! – gritou dona Cintia...
Criou mais ânimo, suspirou forte e quando ergueu o pedaço de pau, para
descarregá-lo, um raio caiu ali perto, derrubando um galho de árvore que veio
ao chão com estrondo. O maldito levou um grande susto, deu um pulo enorme
e soltou a arma assassina (MACAGGI 1980, p.79).

Como por “um ato divino”, recurso muito comum nos romances de Nenê,
Doçura-Amargura consegue sobreviver e é resgatada por um casal que a encontra às
margens da estrada. Sob seus cuidados ela se recupera e conta-lhes sua história. O
casal se compadece de sua narrativa, interfere na tentativa de assassinato praticado
por seus parentes e, só depois desse episódio é que ela decide retornar ao lugar onde
vivera os melhores momentos de sua vida, a Fazenda.
A recorrência de soluções inesperada para situações que demandam extrema
violência é algo constantemente utilizado nos romances de Macaggi. Tecnicamente,
poderíamos até aproximar do uso do deus ex machina, quando a narrativa apresenta
uma dificuldade ou obstáculo aparentemente sem solução ou de grande dificuldade
que, su r p re e n d e n t e m e n t e , s e r e s o l ve o u p r o g r i d e e m ra zã o d e um fato
inesperado, improvável ou mirabolante, que em geral foge à racionalização (DIAS;
NASCIMENTO, 2014). A expressão originária do grego seria o recurso utilizado no
teatro quando do aparecimento de uma solução divina que, de maneira inesperada,
tem por função solucionar algo que supostamente não seria possível pelas ações
humanas. O aparecimento da divindade geralmente se dava pela ocorrência de
trovões e luzes dando certo ar sobrenatural à cena. Como podemos observar no
fragmento citado acima, em que um raio frustra o assassinato, esta condição ficcional
parece que coaduna com o projeto literário de Macaggi.
Ao que podemos perceber a trajetória das três personagens principais ganha
direções distintas, cujas tramas apresentam recorrências adversas. Isso estaria
explícito nas cenas de violência, que se traduzem em agressões, estupros e sedução
ao sexo e a uso de entorpecentes. O elo unificador entre as personagens aparenta ser a
fio condutor da fazenda no ‘extremo sertão norte do Amazonas’, lugar dos
reencontros. Os desdobramentos desse retorno, nos traz, além de Dadá-Gemada
Doçura Amargura (mãe), a união conjugal entre as personagens Naldo-Macuxi e
48

Dadá-Gemada Doçura Amargura (filha) apontamentos outros quanto as fazendas


como metáfora da formação e efetivação de sociedades mestiças. O grande vazio que
havia sido deixado nas fazendas quando os três partiram, agora não há mais; parece-
nos que a separação, a distinção talvez não fornecesse tanta visibilidade ao corpo
mestiço que estamos tratando.

2.1.3 1984: Exaltação ao Verde (Terra – Água – Pesca): o romance do Baixo Rio
Branco

O pequeno e pacato Bairro de São Pedro estendia-se pela margem esquerda


de quem sobe o rio, com muitos barracos habitados por lavadeiras, operários
e pescadores e tinha uma olaria. Havia ali um Grupo Escolar e uma igreja
com o nome do Santo venerado no lugar, São Pedro, cuja festa era realizada
no mês de junho, exatamente no dia vinte e nove, com alegre procissão fluvial
(MACAGGI 1984, p. 234).

O fragmento que inicia este ponto da tese nos conduz a pensarmos a pequena
cidade de Boa Vista enquanto embrião do que veio a ser a Capital do Estado de
Roraima através da Constituição de 1988. Contudo, ele também nos traz indícios de
alguns elementos que nos levam a uma breve recuo temporal quanto ao processo
formador da cidade em questão. O fluxo migratório ocasionado pela atividade
garimpeira trouxe consigo outra dinâmica a pequena cidade. A explosão demográfica
e o aumento considerável de índices de violência foram pontos que modificaram
significativamente a relações sociais estabelecidas.
As mudanças pelas quais vai passar a região do extremo norte da Amazônia
parece deixar nos romances indícios dos efeitos da Biopolítica nas formas como os
personagens atuam nas tramas. Entendemos desta maneira ao considerarmos que
se em A mulher do Garimpo (20012), Dadá-Gemada (1980) as relações apresentam
tais efeitos e imprimem no corpo dos personagens suas marcas, este romance
também reafirma a dinâmica dos encontros e suas ressignificações.
O terceiro romance do Circum-Roraima não foge à regra e dialoga com a
matéria nortista historiográfica dos que o antecederam. Inicialmente ambientado na
região do Baixo Rio Branco. Traz como enredo o ideal da ocupação dos espaços
‘vazios’, ainda não colonizados na Amazônia e os processos de grilagem de terra, em
meio a uma trama conflitante em que a violação do corpo feminino é recorrente.
49

Como são corriqueiros nos romances de Macaggi reverberações de leituras


que se afirmam e aparentam serem ressignificadas nas obras, esta não foge à regra
e talvez seja aquela que melhor situa a autora um espelhamento aos textos de
Euclides da Cunha. Pensamos assim, pois além da composição do título da obra
segmentar-se aos exemplos de Os Sertões, Macaggi cita literalmente o autor: “Disse
Euclydes da Cunha, em seu maravilhoso Os Sertões, que ‘O sertanejo é, antes de
tudo um forte’.” (MACAGGI 1984, p 182). Recordemos que esta aproximação também
entre eles dá-se justamente pelo estilo cartográfico de descrição do espaço cujos
meandros da fauna, flora, geologia e geografia são pormenorizados.
A obra é estruturada em uma composição de três capítulos nominados
enquanto ‘Livros’, subdivididos em noventa e um subtópicos. Essa configuração da
obra é pontuada nas palavras de Silva (2016, p. 138) ao nos dizer que:

Elementos reiterados na estrutura romanesca da maioria das narrativas de


Macaggi, a lentidão, os poucos reveses, a resolução “fácil” dos conflitos mais
difíceis, conduzem o desfecho das histórias quase sempre para um quadro
em que a harmonia, seja ela entre os sujeitos ou entre o homem e o espaço
– natural ou o citadino – se faz perfeita.

O fragmento nos conduz a algumas ponderações iniciais importantes, pois


ainda que o texto de Macaggi apresente tais aspectos indicados por Silva (2016) e
sobre isto não podemos negar é possível avistarmos estratégias esteticamente
recriminadas, mas que nos conduzem a problematizar por outro ângulo. Entendemos
que a maneira discursiva e truncada do estilo de linguagem construída por Macaggi,
delineia elementos que ao transcorrer da narrativa vão apontar vozes insurgentes e
silenciadas ao longo da história da Amazônia. E nesta obra, não é diferente.
Pensamos assim, por entender que frente ao laivo tradicionalista, rançoso,
construído em favor do nacionalismo do Estado Novo, escondem-se, em uma espécie
de aparência mórbida e de lentidão dos romances, elementos outros vistos através
dos resíduos históricos deixados no transcorrer discursivo. É possível ainda
observarmos que a obra inicia com a configuração descritiva da paisagem, cujo os
desdobramentos discursivos criam fortes aproximações com as narrativas dos
viajantes pela Amazônia em momentos anteriores ao narrado, a exemplo de Charles
La Condamine (1743), Euclides da Cunha (1904) e T. Koch-Grumberg (1903).
‘Exaltação ao Verde’ apontaria para um certo deslumbramento da voz narrativa
50

pela paisagem. O transcorrer do romance, descreve a trajetória da família de


Giuseppe e Herriqueta Montario, imigrantes italianos que se alojaram durante muitos
anos na parte norte do Amazonas. Lá prosperaram na fazenda ‘Bom Jesus’. O casal
havia perdido o único filho herdeiro ainda muito jovem e, das mãos do Tuxaua, da
Tribo dos Tucanos21, receberam de ‘presente’ Lúcio, mestiço que havia sido

21Autodenominados de Ye'pã-masa, Dasea. Sáo também conhecidos como Tucano, Daxsea, Takuna,
Tukána. Segundo o Ins. Antropos tem uma população de 10.934 indivíduos (Brasil: 4.604; Colômbia:
6.330). SIL 1986: 4,630.(2,630 in Brazil). 46 falantes de Wasona, 16 deles casad os com outros grupos
(González de Pérez 2000). Dsei/FOIRN (2006): 10.000 total (Colômbia: 6.330; Brasil: 3.670 (2006);
6.241 (2005) 6330 (1988). Conforme ISA o total populacional é de 11.130 no Brasil (em 2001) e
18.705 na Colômbia (em 2000). Localizam-se próximos aos rios Tiquié, Papui e Uaupés e no rio Negro
a jusante da foz do Uaupés. Na Colômbia: no alto rio Papuri e seus afluentes. São falantes da Língua
Tukano Oriental e português. Gramatica e Novo Testamento Tucano foi publicado em 1988 (SIL).
Historicamente os petróglifos nas pedras de muitas cachoeiras é evidência da ocupação humana da
região do Alto Rio Negro 1200 anos aC. Uma história dos Tariana, que moram na região há séculos,
conta que tiveram que guerrear contra os Tukano e Wanana quando vindo do rio Arai chegaram à
região, em Iauareté, provavelmente no século XIV. Então os Tukano já estava na região antes de
1500 e a invasão dos europeus (Cabalzar 2006.57). Os Tukano no Tiquié dizem que seu antigo
território era no rio Papuri. O primeiro contato do alto rio Negro com os brancos eram objetos, como
ferramentas, comerciados por outros indígenas, seguidos pelas expedições portuguesas à busca de
escravos, acompanhadas de jesuítas acerca 1650 (Cabalzar 2006.73). Escravos tukano entre outros
foram levados para Belém entre 1739-1755 e epidemias de varíola e sarampo arrasaram a região
entre 1740 e 1763, e com a derrota dos Manao pelos portugueses o alto rio Negro ficou despovoado.
Os índios se dividiram entre os que cooperavam com os branco e serviram os carmelitas com a coleta
de produto do mato e os outros que continuaram a resistir. Pombal terminou o trabalho dos
missionários e quis trocar a escravidão pela assimilação dos índios, mas os coloniais continuaram
explorá-los (Cabalzar 2006.80).
No século XIX os missionários católicos participaram na repressão dos índios, aumentada pelos
regatões na exploração do extrativismo (Cabalzar 2006.84). Alguns Tukano podem ter participado
dos movimentos dos profetas indígenas, Kamiko e Alexandre, vistos como perigosos pelos brasileiros,
que provocou mais conflito por 'pegar' crianças tukano e levá-las para Manaus. Os Tukano
enxergaram estes movimentos proféticos como uma vitória indígena sobre os brancos.
Com a estabelecimento da Província do Amazonas em 1850 índios foram enviados a Manaus para a
construção das casas. 60.000 indígenas eram compelidos a trabalhar na extração da borracha. Os
franciscanos estabeleceram missões entre 1880-1888 e provocaram uma revolta por ridiculizar as
crenças tucano, da festa de Jurupi, mas foram expulsos, deixando os índios sofrerem patronagem por
um sistema de escravidão de dívidas no começo do século XX (Cabalzar 2006.90).
A época dos salesianos começou em 1914 e durou até 1952, instalando missões em São Gabriel,
Taracuá, Iauareté, Pari-Cachoeira, Santa Isabel e Assunção do Içana. Reduziram a exploração dos
patrões, mas destruíram a cultura e as línguas indígenas por levar as crianças para serem educados
nos seus internatos, nos quais reinava só a fala portuguesa e uma disciplina rigorosa. Mandaram a
destruição das malocas para substituí-las com casas de famílias nucleares e abandonar o ritual do
Jurupari (Cabalzar 2006.95). Os salesianos só tinha influência no rio Içana depois 1950 e na época
muitos Baniwa se converteram ao protestantismo, mas isso tinham pouco contato com os Tukano.
Em 1979 o governo cortou os verbos e os salesianos terminaram o regime dos internatos.
O Plano de Integração Nacional (1970) incluiu a tentativa de construir a estrada BR-307 do Acre,
lingando Benjamim Constante e São Gabriel da Cachoeira com Cucuí, na fronteira com a Venezuela.
Só este último trecho foi construído. Em 1988 a nova Constituição deu direitos aos indígenas, mas
levou uma década de luta, com a formação das Associações indígenas do rios para conseguir a
demarcação e homologação das Terras Indígenas do Médio rio Negro, Téa e Apapóris em abril 1998.
A Escola Indígena Tukano Yupuri em São José II foi estabelecida em 2009 com ensino médio e forma
segunda turma do ensino fundamental. Oficinas em astronomia eram realizadas em 2006 (Cardoso
2007). O ensino inclui atividades relacionadas a técnicas alternativas de produção e sustentabilidade
51

abandonado pela mãe.


A vida de liberdade na fazenda, o carinho e amor atribuído a ele pelo casal de
italianos revela o amor que seria devotado ao filho. Lúcio assume a responsabilidade
pela fazenda e já homem feito casa-se com Luísa, filha de italianos da cidade de
Moura, às proximidades da ‘Bom Jesus’. Com o passar dos anos, chegam as filhas,
Luana e Carla. A felicidade da família na fazenda é interrompida frente a sequência
de acontecimentos que abala a todos. Depois da morte de Dona Henriqueta, Luísa
não resiste ao terceiro parto e falece.
Não bastassem as perdas, a fazenda do já debilitado italiano é invadida por
jagunços que buscam expulsá-los das terras. A pressão e as ameaças são
constantes, até que os grileiros forjam documentação e expulsam a família da
propriedade. “Agora tudo é dele. E tão bem avisado. Se não sai, morre tudo”
(MACAGGI 1984, p. 73) é justamente nesse tom de constantes ameaças que a família
de mestiços é expulsa de suas terras. Zelando por suas vidas, Lúcio decide migrar
para a região do Baixo Rio Branco com o que sobrou de suas posses.
Ao se alojarem na Região do Baixo Rio Branco, o narrador inicia uma descrição
das impressões que tem sobre aquele espaço. Esta terceira e última parte, tem por
título “Pesca”. A relação de subtópicos são dedicadas a descrever e comentar
espécies de peixes, cartografias de rios. Por certo esta estratégia dialoga com o
projeto literário de Macaggi quando no romance A Mulher do Garimpo apresenta
descrições sobre os Rios Negro e Branco (Capítulo III) e em DadáGemada,
descrevendo o guaraná (Capítulo VII), os rios do extremo norte do amazonas
(Capítulo XVI e XX), as plantações de feijão (Capítulo XXI e XXII) e os insetos
(Capítulo XXIX).
O transcorrer narracional é construído a partir de cartografias descritivas,
pertinente ao estilo de escritura do projeto literário de Macaggi cujo espaço corrobora
para um certo maqueamento de recorrentes violações. Nessa linha narrativa é o corpo
mestiço da jovem Luana que sofrerá a barbárie. A violência do ato praticado
demonstra a maneira como as relações eram instituídas relativas ao corpo,
principalmente o feminino. Depois desse acontecimento, a família tenta se

como piscicultura e manejo agroflorestal e por meio delas são abordados de outras matérias
tradicionais.
Disponível em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-t/175-282-tukano.html>. Acesso
em 01/10/2019).
52

reestruturar, enquanto busca agregar ao seu convívio um casal de indígenas, já


idosos, que haviam sido expulsos de sua comunidade por não terem mais força para
o trabalho.
Nestes dois casos, as violações sofridas por Luana não são diferentes dos atos
praticados contra o casal de indígenas idosos. Pensando nisso, é possível certa
aproximação com o que G. Agamben (2002, p. 91) evidencia quanto à “vida
politicamente desqualificada” e “matável”, aquele que está sujeitada aos auspícios do
soberano. Tem o soberano o poder de determinar a vida ou a morte do sujeito. Em
relação aos personagens em questão, podemos inferir que o ser matável é o sujeito
mestiço, não menos diferente é a condição de ser idoso e ainda mais agravante, ser
indígena. Contudo, o excesso de descrições associadas as riquezas da Amazônia
deixa a narrativa com uma leitura cansativa e repetitiva em vários pontos, o que nos
leva a insistir na hipótese de que as cenas marcadas pela violência e exclusão fazerem
parte de um outro plano da narrativa, o plano dos indícios que estão para além dos
discursos de deslumbramento sobre a beleza do lugar.
A forma de narrar a paisagem, a saber do estilo ‘Inferno Verde’ de Alberto Rangel
continua a figurar como lugar de cores verdejantes, não com tanta intensidade quanto
as cores apontadas por Rangel, pois em Macaggi ganha mais evidência a vida
cotidiana nas fazendas, rios, garimpos e comunidades em dinâmica social posterior
ao Ciclo da Borracha, que cedeu espaço para outro processo de colonização da
Amazônia, o agora impulsionado pelo garimpo.
Os desencantos com o ciclo gomífero forjará uma leva de aventureiros cuja
atividade principal será o garimpo ilegal. A pequena cidade começa a sofrer serias
modificações, e a ‘selva indomada’ passa ter intensas aglomerações urbanizadas. Isso
pode ser comprovado no subtópico do Capítulo III da narrativa, “Lá está ela, pai!” (p.
232), reservado a situar o surgimento da cidade de Boa Vista, Caracaraí (p. 205) e
diversas outras pequenas vilas, entre elas Mucajaí (p. 223) consequentemente, o
Estado de Roraima. No fragmento a seguir a cidade surge e nos aponta importantes
questões.

Era Boa Vista, a bela cidade-leque bordada de mangueiras, antiga Freguesia


de Nossa Senhora do Carmo de Boa Vista, outrora uma vila e hoje cidade
cheia de gente boa e hospitaleira e implantada no verde desconhecido, sendo
a sala de visita do Brasil, por ser a primeira do extremo Norte, caminho certo
para Miami (MACAGGI 1984, p. 233).
53

A saber, Boa Vista, hoje capital do estado de Roraima, resulta do


desmembramento do extinto município amazonense de Moura, ocorrido em 1943 em
virtude da criação do Território Federal do Rio Branco. Corresponde a proposta
implementada pelo governo Vargas em decorrência da institucionalização de cidades
planejada, a exemplo de Goiânia, Brasília. Boa Vista apresenta um plano paisagístico
estruturado em estilo radial, com ruas largas que se iniciam em um núcleo central,
aparentando o formato de um leque. Projetada entre 1944 e 1946 por Darcy Aleixo
Derenusson SANTOS 2010, p. 231), agrupa-se às cidades constituidoras de
dinâmicas de ajustamento sociais e culturais modernos.
A nós interessa reafirmar que Boa Vista, como todas as cidades planejadas
nesse período, obedece ao propósito de um ordenamento política e econômica. A
busca por fazer uso dos elementos regionais e suas simbologias ajustando-o a
moderna arquitetura e paisagismo do espaço da dispersão, do não aglomeramento.
A proposta aparenta muito mais a arquitetura representativa do estilo ideológico
capitalista em detrimento do laço comunitário e das relações estabelecidas nas
aldeias indígenas. A Boa Vista planejada, afirmamos veementemente, é muito mais
a representação dos processos migratórios que do povo originário local. Ainda assim
os encontros acontecem e invadem o excludente e moderno espaço público,
imprimindo e transgredindo o ordenamento planejado.
Neste viés de entendimento, podemos afirmar ainda que a referência de cidade
que presenciamos hoje, e que é apontada em diferentes momentos nos romances do
Circum-Roraima, corresponde a uma lógica vinculada a valoração e troca econômica
capitalista. Assim, as ocupações socioespaciais que surgirão para além do espaço
planejado serão o reflexo e o espaço das desigualdades, efeitos da Biopolítica,
silenciosa e violadora. Reafirmando que o planejamento da cidade de Boa Vista afirma
o efeito da soberania do estado capitalista brasileiro e seu processo excludente
marcado nos indicativos da configuração do urbano. Ainda que o espaço planejado
seja de todos os sujeitos e imprima dinâmicas entre todos, não o é de pertencimento
dos povos locais, mostra muito mais o lado obscuro do poder a tornar-se o espaço
da exclusão e da exceção.
Mas, retornemos ao romance. Quanto a composição de estrutura, ele seguirá
uma sequência em que os deslocamentos espaciais das personagens irão desenhar o
54

enredo da narrativa. A voz narrativa, é enfática no uso do discurso científico,


cartográfico, históricos e aos causos do imaginário social durante todo o transcorrer
da obra. Há de ser ressaltado neste romance a maneira insurgente de manifestar-se
frente as formas de colonização na Amazônia. A resistência apresenta-se através da
reivindicação de direitos à terra expressos na postura inconformada das personagens
Luana e Carla, irmãs mestiças, ao enfrentarem os pistoleiros que as expulsaram de
suas terras (p. 72 a 77), ou na morte de estrangeiros pelos Atroari, revoltosos frente à
“... uma comitiva de americanos... entre eles Matemáticos, Botânicos e Geólogos...
um Astrólogo” (p. 113) que a meses estavam a “...surrupiar nossos animais e
plantas...” (p. 113). A resistência ainda pode ser visualizada, frente a forma como o
jovem indígena, decide vingar-se do estupro sofridas por Luana, praticadas por dois
imigrantes ‘estrangeiros’.
A crítica insurgente ganha bastante espaço neste romance, em comparação
aos outros, pois ocorrem passagens que abordam a maneira exploratória e danosa
do garimpo e do extrativismo da borracha. Há de ser ressaltado que a obra se revela
também exploradora de questões ecológicas.

Pobres tartarugas perseguidas impiedosamente na década de 30 a 50, aos


milhares, com a maior naturalidade movida pela maior cobiça como se não
tivesse direito a vida. O pobre quelônio ia para a extinção, se não aparecesse
mais tarde o IBDF com seus fiscais para controle da horrível predação.
(MACAGGI 1984, p. 193).

Além da caça predatória apontada no fragmento é habitual neste romance que,


apesar de todo discurso ecológico ensaiado, a narrativa apresenta a necessidade do
Estado como mediador de conflitos de terra. O controle das coisas parece ganhar o
tom nesta parte do romance, ainda que escamoteado pelo estilo discursivo
romanceado, cujos deslumbramentos ganham o teor poético e atua como adereços
para os casais que se formam ao longo da narrativa. O discurso paisagístico funciona
como um adorno para a ocupação da terra por parte da família de ‘mestiços’ a toque
de união entre o nordestino bem-sucedido, Geraldo, e a mestiça Luana.
Ao chegarem ao lugar escolhido para reconstruírem suas vidas, elegem o nome
para o local: “Paraiso”. Fato este que nos remete, também, a entendermos o romance
como uma representação dos modos de ocupação da Amazônia, onde as terras
ocupadas por povos tradicionais são consideradas como devolutas e passam a ser
55

alvo de grileiros até os dias de hoje. Outro ponto a ser evidenciado neste romance, e
que segue a proposta literária de Macaggi, refere-se à abordagem da representação
da violência. A paisagem, o pitoresco, são apenas elementos iniciais que nos levariam
a questões mais complexas da dinâmica social amazônica e suas configurações. A
mulher e o corpo violado são recorrentes no romance, seja no ambiente doméstico ou
nos espaços públicos de convivência, é fortemente marcada pela luta por manter-se
viva, poderíamos até inferir que a resistência estaria presente no corpo enquanto
escrituração da luta pela vida.
A violação do corpo da ‘mestiça’ Luana encontra-se no Capítulo III, nominado
de ‘Livro Terceiro’, é prenunciado no subtópico ‘Pressentimento’. O acontecimento
ocorre em uma das vezes que Luana acompanha o pai, Lúcio, até a cidade de Boa
Vista. A narrativa segue a descrever o espaço por onde as personagens passam, a
bordo da pequena embarcação.
Há um ponto na narrativa em que aparenta haver certa interferência da voz
autoral, quando narra a aproximação dos personagens de Boa Vista. Nessa fala, a
cidade é depreciada pelo modo como foi construída. Nessa passagem destoa, assim
como em outros momentos da narrativa, do enredo do romance, visto que nela há a
clara emissão de juízo de valor quanto à forma de ‘cidade de trânsito’ em que se
constituiu, servindo apenas como ponto de apoio para os exploradores do ouro. O
narrador compara a maneira calma e ordeira que existia com estilo “sem lei”, do
garimpo em que ela se tornou. Podemos inferir que aquele garimpeiro, desbravador e
colonizador da região do Circum-Roraima, agora protagonizam uma outra fase, a do
embrutecimento das relações sociais, a intensificação do desordenado ciclo migratório
dos anos 1980, além das implicações dos agravantes ambientais pelos quais passam
os locais onde ocorre a exploração do ouro e diamante.

Quero a calma do meu cantinho de terra lá de baixo e não o barulho de uma


capital como esta, com a morte rondando na corrida louca dos carros e motos!
Eu me sinto sem jeito quando passo pelas ruas e os homens me olham como
se nunca me vissem, com um olhar esquisito, maldoso... parece que estão
me tirando a roupa e eu sinto o rosto quente, pai, me dá vontade de chorar,
de sair correndo... (MACAGGI 1984, p. 247).

É justamente nesse contexto de desajuste social e violações que a jovem


mestiça Luana será vitimada. Aparenta que a bonança do desenvolvimento,
mencionado em A mulher do garimpo (2012), agora metaforiza a desordenada
56

violência ao espaços e subalternos. Luana é vitimada por dois ‘forasteiros’, que a


estupram:

Dois monstros meio trôpegos e barbados, pularam sobre ela, com os olhos
cuspindo volúpia e um deles, como um raio, lhe tapou a boca com as mãos.
E também como um raio, ela mordeu-a e ele largou um gemido de dor.
Furioso, deu-lhe uma bofetada tão grande que ela caiu sobre o capim e,
xingando-a, amarrou-lhe um pedaço de pano imundo que tirou do bolso. E
ela os reconheceu! Eram os dois bêbados do botequim! A cena foi horrível!
Luana se defendeu como pode, num esforço doloroso, sentindo aquelas
quatro mãos ásperas como lixa percorrendo seu corpo, desnudando-a e
aquele hálito horrível sobre seu rosto. Suas esperanças logo se
desvaneceram, pois frágil como era, de que jeito poderia vencer aqueles
tarados tão fortes? (MACAGGI 1984, p. 251).

O fragmento reproduz cena do subtópico “Bestas humanas”, Capítulo II, onde o


narrador delineia a violação do corpo frente a situação vulnerável em que a jovem
Luana se encontra. Deve ser destacado, principalmente, o comportamento inumano
dos dois homens, que agem como predadores, o que justifica o título desta seção do
romance. Ao sair para explorar a sedutora cidade, ignorando as recomendações feitas
por Lúcio referentes ao perigo que ronda a capital, Luana segue até a padaria e lá é
assediada por dois homens ‘estranhos’. Retorna à casa de Dona Maria, amiga da
família, e, por um descuido da bondosa senhora, Luana sai em direção ao rio para
pescar. Os dois homens, ao longe, avistam a jovem e seguem-na até a margem do rio.
À espreita da jovem, os agressores esperam até seu retorno e colocam em ação o
plano cruel. O narrador assim descreve a culminância da barbarização sofrida pela
jovem quando os violadores “... Arrastaram-na, rasgaram-lhe as roupas, arranharam-
na, morderam-na, um deles esculpiu-lhe no seio, com uma navalha, de leve, uma cruz,
e possuíram-na bestialmente.” (p. 251).
O corpo violado e mutilado traz-lhe intenso sofrimento, visto que o trauma é
agravado pelo fato de reconhecer que seu corpo já não é mais o mesmo e que agora
carrega um filho resultante da agressão. O amparo do lar e dos familiares fazem com
que ela aceite a criança e a ela devote amor. No desenrolar dos acontecimentos, Lúcio
se apaixona por Dona Maria, que o acompanha para viver na Fazenda Paraiso. Além
de apegar-se à criança como maneira de superar o trauma, a jovem mãe Luana se
casa com Geraldo, agregado da família que, revoltado com a agressão sofrida por
Luana, decide vingar-se dos estrangeiros. Para além da condição vulnerável da
personagem, talvez possamos encontrar chaves mais profundas a respeito da
57

violação do corpo nos romances. É possível entendê-lo a partir dos indícios


historicamente construídos a respeito do corpo feminino, reunidos em tantos interditos
e cautelas direcionadas ao ser-mulher. No romance, esses indícios tornam-se ainda
mais agravantes, por se tratar de mulher pobre e mestiça, propensa as mais distintas
inseguranças e vulnerabilidades.
Há de ser ressaltada a maneira como são tratadas as barbáries praticadas
contra Luísa pelos membros da família. Nesse sentido, a ficção projeta condições
comuns à realidade brasileira, desde sempre, no que diz respeito à misógina reinante:
o fato de a família não reagir ao ocorrido e entregar a justiça ao divino reverbera as
práticas discursivas de uma sociedade falocêntrica, que reduz os atos de violação do
corpo feminino a atitudes corriqueiras, desprovidas de punição, ou de alguma forma
buscam culpar a mulher pelas agressões sofridas. Tais condições se agravam ainda
mais diante do modelo de sociedade patriarcal que se instituiu nas práticas de
povoamento na Amazônia, principalmente quando tomamos a organização social nos
garimpos, onde o poder o público é flutuante, quando não ausente. Há de ser
esclarecido que tais práticas sociais atuam fortemente como formas controladoras,
através da força e instituindo a coação ou o pavor, bem como outros modos de
violência física ou simbólica, como formas de controle. Esse agravo das circunstâncias
extremas a que estão submetidos os corpos femininos nestes espaços se encontram
bastante valorizadas no conjunto dos romances do Circum-Roraima, nos quais é
possível observar as reverberações do poder soberano sobre o espaço e a ‘vida nua’,
tal como discutida por G. Agamben (2002, p. 91).
Ao nosso entendimento, dois pontos necessitam ser mais enfatizados neste
romance: o primeiro diz respeito a elementos relativos ao gênero; o segundo, nos leva
a observar a representação dos indígenas e mestiços. Em relação ao gênero, o
conflito é construído a partir da condição feminina no contexto de subjugo aos homens,
o que pode ser verificado na formação dos casais no romance: é o caso de Lucio e
Maria, e Geraldo e Luísa. No que se refere a questões relativas aos indígenas e
mestiços, podemos observar a imersão destes no romance pela presença dos
mestiços e agregação do casal de idosos indígenas à família. A passagem a seguir,
demonstra as circunstâncias que levaram os anciões indígenas para distante de sua
comunidade e por conseguinte ao desaldeamento:
58

Lúcio dirigiu-se ao velho e perguntou, para ser melhor entendido:


-Compadre, de onde tu vem com teu mulhé? Qual é teu tribo? Por que tu veio
aqui?
- Bem, eu fala. Eu, Uaicá, do Apiaú. Meu mulhé, Xiriâna. Mora lá! Em cima,
Apiaú... Muito pexe... caça... tartaruga... balatinha... Eu, Pajé Arnesto. Meu
mulhé chama Arnestina. Tempo passa, fica velho, não pode adivinhá... batê
folha... espírito não entra... então Tuxaua mau... bota meu mulhé velhinha
mais eu e cachorro no canoa velha... vai timbora já! Tu não caça... não
pesca... sempre apertando a barriga com dô... não tem dente... não presta
pra nada. Leva teu mulhé velha... teu cachorro sem perna... ela não caça...
não corre... não presta... só come, come, come... um panela de mamão quaje
cheio. Tu não presta, teu mulhé não presta... teu cachorro não presta.
Então entra tudo na canoa. Vai! Vai timbora! (MACAGGI, 1984, p. 145-146).

As práticas culturais que envolvem as comunidades indígenas apresentam


dinâmicas diferenciadas umas das outra. No fragmento citado podemos observar pelo
viés do abandono e pela inserção de práticas culturais que imprimem maneiras outras
de convívio, mesmo entre os indígenas. Ao que parece as relações socioculturais
estariam vinculadas à produção economicamente ativa na comunidade de onde os
anciãos foram expulsos.
Os idosos – Pajé Arnesto, Uaicá22, e Arnestina, Xiriana23 – expulsos de sua
aldeia, agora são acolhidos pela família de mestiços. Porém as atividades
desenvolvidas pelo casal de idosos nos remontam a certo distanciamento do que
seriam as práticas indígenas desenvolvidas em sua comunidade. Na fazenda, agora
limpam o galinheiro e o aprisco, dão de comer e de beber às aves, cuidam da horta,
fazem farinha beiju, giquitáia e damorida (MACAGGI, 1984, p. 146), pois a rotina de
trabalho da fazenda implementa ritmos diferentes da maneira como viviam na
comunidade indígena de onde vieram, mesmo que tenham sido expulsos pelo tuxaua
na sequência da alegação de não serem mais úteis à comunidade.
A narrativa nos conduz a observar que se nas sociedades indígenas da
Amazônia o repasse das tradições culturais são transmitidas através da oralidade,
elemento significativo para a continuidade de conhecimentos que certos grupos
étnicos detêm, na obra em questão isto não ocorre. Acreditamos que a construção
discursiva apresenta sujeitos, cujo sentido para sua permanência no grupo social está
vinculado ao que pode produzir economicamente para a manutenção própria e da
comunidade. Percebemos que não há relevância social alguma nos idosos
apresentados no romance, cujos elementos da memória, enquanto fundamentais para

22 Subgrupo Yanomami.
23 Subgrupo Yanomami.
59

a manutenção e sobrevivência dos povos, são relegados ao esquecimento ou a vagar


sem rumo e destino certo.
Uma das poucas vezes que isto é evidenciado ocorre na obra Nará-Sue Uarená
(MACAGGI, 2012b, p. 34) frente ao Ritual do Iapa quando “o recura acende a fogueira,
por todos os lados, com aquela pilha de cadáveres que ele besunta com maim” e do
conhecimento sobre os procedimentos para o Peicamum, “farinha de ossos”
(MACAGGI, 2012b, p.36) feita dos parentes ou guerreiros mortos. Fora estas breves
passagens que idosos põem em prática conhecimentos tradicionais de seu povo, as
outras passagens mostram muito mais as ações vinculadas ao processo de
docilização pelos quais os povos do Circum-Roraima passaram ao longo dos tempos.
Quanto a esta questão Nelvio Santos, em “Política e Poder na Amazônia: o
caso de Roraima (1970-2000)” (2013, p. 67) afirma que o processo de povoamento
na Amazônia setentrional, Circum-Roraima, contribuiu bastante para a
instrumentalização e execução de táticas invasivas do espaço e violações das práticas
ancestrais com a ampliação da criação de gado. Aponta, ele, para “fim do século XVIII
e o século XIX” (p. 65).
Ao que consta posterior ao deslumbramento fortemente marcado pelo discurso
romanesco de Macaggi sugere agora um entendimento outro sobre o corpo. É
necessário reconhecer o corpo resultante dos encontros múltiplos que agora podemos
visualizar; apresentam-se nos romances como uma nova massa subalterna que
também passará pelos fenômenos sociais coletivos que os atingem. Ressalte-se que
para gerir essa nova massa, cada vez mais forte no discurso romanesco do Circum-
Roraima, surgirão novas tecnologias de poder, não apenas disciplinarmente violento,
mas novos biopoderes. Entre estes estão as cidades e seus planos biopolíticos. Nesse
sentido as políticas soberanas de governo delinearão os limites, fronteiras e controle
educacional e sanitário possibilitando o “fazer viver e deixar morrer”. No que se refere
ao romance em questão poderemos verificar que a relação amorosa entre Geraldo,
médico, e a mestiça Carla apontam para o que mencionamos anteriormente frente a
própria relação de prosperidade e divisão de bens instauradas pelo afortunado
Geraldo.
A relação entre Geraldo e Carla tem início quando a jovem decide ir pescar.
Durante uma forte tempestade fica à deriva e é resgatada pelo rapaz. Mesmo sendo
assistida por Geraldo em sua canoa, o risco ainda é iminente, pois a tempestade se
60

intensifica e a embarcação vai aos poucos se enchendo de água, e fica à deriva no


rio. Apavorado com o que acontecia e sangrando em função do ocorrido, Geraldo
teme os candirus e piranhas:

Luana, que estava do lado oposto, rezando mentalmente, pois a fé nunca a


abandonava, depressa, com muito cuidado, segurando as bordas, passou
para o lado dele [Geraldo, ferido e sangrando], puxando um pedaço de rede
e colocando-o sobre a ferida, ficando com a sua barriga colada à do rapaz,
bem apertada, segurando perigosamente no bordo do voador, só com uma
das mãos, enquanto com a outra ajudava a apertar a rede na ferida, para que
não sangrasse mais, senão os candirus, assanhados pelo cheiro de sangue,
o destruiriam (MACAGGI, 1984, p. 242).

Com muita dificuldade, o casal se salva. Já na fazenda ‘Paraiso’, exausta e


debilitada, Luana adoece. Revela-se então o médico Geraldo que presencia o
sofrimento da jovem decide dar-lhes os devidos cuidados médicos. Chega assim mais
um agregado. Ambos se apaixonam e se casam. Herdeiro de uma farta herança, o
jovem médico decide viver em definitivo na ‘Paraiso’ e, após tomar conhecimento dos
agravos que envolveram a família Montari, decide comprar de volta a fazenda ‘Bom
Jesus’ e entregá-la a Lúcio, enquanto alocava os outros moradores da fazenda
‘Paraiso’ em outras áreas de terra.
Ao que podemos observar com relação ao surgimento das fazendas em
questão, parecem atuar como dispositivo que normatiza e adestra o corpo do sujeito
aos moldes da proposta desenvolvimentista econômica, pensada para a região do
Circum-Roraima. A personagem Geraldo, médico herdeiro de grande quantia, atua no
romance como um grande empreendedor, divulgador o desenvolvimento da região
através da bovinocultura. Para tanto ele distribui terras aos amigos próximos formando
novas fazendas, em sociedade:

Começou então a reunião. Demorou um bocado e foi como uma sessão na


Câmara de Vereadores de Caracaraí: calma e com raríssimas aparte. Todos
sentados, o Dr. Geraldo explicou os seus planos. [...] Em primeiro lugar meu
casamento. [...]Casamento de futuro fazendeiro. [...] Em segundo [...] já
mandei um emissário me representando legalmente para adquirir aquelas
terras, acrescidas da parte montanhosa. Ficará um fazendão [...]. Quando
tudo estiver pronto, entrego a cada um seu título definitiva. Vou lutar contra o
INCRA e hei de vencer (MACAGGI 1984, p. 316).

Com muita concordância por parte dos que ouviam Dr. Geraldo e nenhum
questionamento quanto a proposta apresentada, o personagem atua como político
61

distribuindo terras, gados, ferramentas, utensílios agrícolas e construtor de casas para


a sede da fazenda: reverberações do político populista, que presenteia a todos e a
todas, ludibria os órgãos públicos e assim consegue manter os sujeitos aos seus
favores. Ao que vemos as fazendas que surgem tornam os corpos úteis à disposição
do fazendeiro, rico empreendedor, e a região próspera. O desfecho da narrativa
aponta para efetivação dos migrantes fazendeiros e, por conseguinte, do mestiço.
Leva-nos a observar, ainda, que as culturas ancestrais estariam entregues apenas
aos registros da memória, em seu devido lugar, pois toda a configuração romanesca
aponta para os indígenas como coadjuvantes na narrativa, sendo enfatizados os encontros
culturais e as ressignificações que isto trouxe à região.
Ao estilo da ficcionalização historiográfica é o último romance produzido por Nenê
Macaggi que trará a luz os Uaicá, etnia atingida por confrontos interstícios, cujo
desdobramentos narrativos os levarão aos encontros culturais ocasionados entre as etnias.
Nos desdobramentos narrativos as relações instauradas nas fazendas afirmam os corpos
mestiços e sua provocadora existência.

2.1.4 2012b: Nará-Sué Uarená (O romance dos Xamatautheres do Parima)

É o Parima centenário, de purimaarômbe (céu estrelado) sempre visível, cru,


cerrado e milionário, o mesmo Parima que na década de 60 foi visitado pelo
então Ministro Shigake Weki, causando-lhe satisfação ao constatar, no
Surucucu, ouro, bastante cassiterita e vestígios promissores de urânio
(MACAGGI, 2012b, p. 18).

O fragmento que abre este subtópico do capítulo da tese aponta a região do


Rio Parima, espaço onde habitam os Xamatauthere, região Surucucu; hoje muito
conhecida pelos presença Yanomami. No entanto, ao que podemos constatar, a visita
de um Ministro do governo Brasileiro aquele local, mencionado na obra, é de causar
certas indagações. O que motivaria tal empreitada de um Ministro de Estado até a
região do Surucucu? O que isto representa?
Talvez o próprio fragmento já nos aponte indícios, quanto a estas indagações.
Mais precisamente a “satisfação” da autoridade brasileira ao constatar “no Surucucu,
ouro, bastante cassiterita e vestígios promissores de urânio” (MACAGGI 2012b, p.
18). Para além deste indício apontado é possível imergir em questões mais pontuais
que se desdobram enquanto mais um dos indícios dos efeitos da biopolítica de
62

ocupação do espaço nacional brasileiro.


A reportagem publicada pelo Jornal A folha de Boa Vista em 02/02/1975,
registra o anuncio feito pelo então Ministro de Estado de Minas e Energia, Shigeaki
Ueki, quando de sua estada em Boa Vista-RR, a confirmação de jazidas de ouro e
urânio na região habitada pelos Yanomami24 e alongando-se sobre a constatação dos
referidos minérios na região do Parima. A reportagem mencionada ratifica que o feito
resultaria das ações empreendidas na Amazônia pelo Projeto Radam25.
A notícia veiculou em diferentes organismos de imprensa Brasil a fora. O
resultado foi o alarmante crescimento migratório para a região em busca de fortuna
através da garimpagem de ouro e diamante. Conflitos entre indígenas e garimpeiros,
os impactos causados foram danosos ao meio ambiente, causadores da mudança
tanto na geografia dos locais de mineração quanto na saúde das pessoas envolvidas.
O fragmento que inicia este texto ratifica a constância na exploração de terras

24
O povo Yanomami é divido em quatro ou cinco grupos linguísticos.
Historicamente os Yanomami provavelmente são descendentes de um povo que ficou isolado nas
cabeceiras do rio Orinoco, e começaram sua diferenciação interna há sete séculos. Conforme suas
tradições sua antiga terra era a terra firme da Serra Parima, entre o Orinoco, atualmente na Venezuela
e os afluentes do rio Branco que desce para o rio Negro no Brasil (Albert 1999). Os espanhóis
penetraram a região procurando o El Dourado. Os Portugueses construíram uma fortificação perto
das desembocaduras dos rios Uraicuera e Tacutu no rio Branco e tentaram atrair os índios e mais de
mil eram estabelecidos em aldeias no Branco. Não conseguiram a ganhar os Waiká (Yanomami) sair
das colinas entre os rios Branco e Orinoco. Por isso este povo e a maioria dos Atorí têm sobrevividos
dos perigos de contato. Os primeiros contatos com os Yanomami foram por Cel Manoel da Gama
Lobo d' Almada que foi acompanhado por alguns Yanomami (Hemming 1995.32,36), e pela expedição
de Bodadilla em 1789. Eles sobreviveram as epidemias e escravidão por viver na terra firme
interfluvial até o século XX (Chernela et. al. 2002.13). Os Carmelitas montaram uma Missão com
outras etnias no rio Branco em 1846, mas esta tentativa perdeu os seus índios e o frade Pereira tentou
persuadir os Yanomami tomar o lugar deles, mas recusaram (Hemming 1995.326).
O SPI montou postos entre 1940 e 1960 que eram fontes de objetos manufaturados e providenciou
um pouco de assistência de saúde e também de epidemias de sarampo, gripe e coqueluche (Albert
1999). A tentativa de converter os índios falhou muitas vezes, mas trouxeram tratamento médico e
educação em português. Depois 1973 os brancos invadiram a região com a construção da Rodovia
Perimetral Norte. Este projeto chamado 'Calha Norte' tinha o alvo de colonizar uma faixa perto da
fronteira que pretendia opor a possibilidade de invasão por estrangeiros (Rabben 2004.98). Somente
250 km de estrada dos 1.500 km projetados, 200 no território Yanomami, foram construídos porém o
contato trouxe degradação social, doenças e conflitos. Em 1975 o governo brasileiro fez um
mapeamento dos recursos minerais da região (RADAM).
Projetos de colonização principalmente no oeste de Roraima resultou em: estradas, fazendas,
serrarias, canteiros de obras e os primeiros garimpos (Albert 1999). 1.500 Yanomami morreram sob
a investida da 'civilização' entre 1987 e 1990 pela água contaminada e as doenças, inclusive a malária,
introduzidas pelos garimpeiros. Em muitos lugares os indígenas deixaram de construir os xabono para
viver em cabanas cobertas de plástico e ficaram tão doente que não mais cultivavam suas roças.
Disponível em: <https://brasil.antropos.org.uk/ethnic-profiles/profiles-y/104-329-yanomam.html>.
Acesso em: 01/10/2019).

25 Ver anexo (jornal de Boa Vista, 1975)


63

indígenas e os efeitos que isso causa. A justificativa de progresso desenvolvimentista


ao longo dos anos vem maquiando o real objetivo e efeitos da exploração dos bens
naturais. Em momentos mais recentes de nossa historiografia literária, a obra A Queda
do Céu: palavra de um xamã Yanomami (2015) escrita por Davi Kopenawa, pajé
escritor, tem apontado as constantes violações enquanto um dos efeitos danosos que
o projeto desenvolvimentista trouxe a seu povo e ao meio ambiente.
Os efeitos da Biopolítica na Amazônia foram e ainda o são muito agressivos,
visto que a legitimação dos objetivos do estado diluiu-se não apenas com a
legitimação do discurso do estado através da presença de um Ministro na região,
naquele momento, mas também aos efeitos causados pelas violações nos fluxos
migratórios e de garimpagem. Agregado a isto, danos irreparáveis para a dinâmica
sociocultural, saúde e espiritual dos povos indígenas e não só.
É justamente nesse contexto que se configura o enredo da última obra do
projeto literário desenvolvido por Nenê Macaggi, Romances do Circum-Roraima. No
entanto, os efeitos da Biopolítica na Amazônia, ressoam na obra através dos indícios
deixados na escrituração. Este recurso é utilizado pela autora constantemente em
romances que a este antecederam.
Dizemos desta maneira, pois a linguagem desenvolvida pela autora articula
muito mais o deslumbramento pelo contato sociocultural e beleza exuberante do
ambiente que aponta de forma clara às violações. É justamente nos indícios deixados
nas escriturações que encontramos os efeitos da Biopolítica quando do silencio das
personagens mestiças no romance, bom como nos ajustamentos sociais e culturais
que passam a formatar uma sociedade com fortes indícios de transculturação.
A saber, o romance foi publicado quatorze anos após o falecimento da escritora,
e fecha o conjunto de Romances do Circum-Roraima. Quanto a isto, Mirella Silva (2016)
apresenta informações dadas por José Augusto, filho da escritora, quanto ao motivo de
tão longo tempo para a publicação da respectiva obra:

Em entrevista informal concedida por seu filho e detentor de seu espólio, em


2012, levantamos a informação de que a escritora deixara a obra pronta e
sob seus cuidados antes de falecer. Ele também afirmou que ela lhe deixou
orientações expressas de que o livro apenas fosse publicado quinze anos
após sua morte, que ocorreu em 2003 (SILVA, 2016, p. 174).

Em conformidade com a citação acreditamos em uma lucidez da autora quanto


64

às ditas recomendações ao filho vem confirmar nossa tese de um projeto literário. As


solicitações feitas para a publicação levam-nos a essa conclusão. Caberia aqui uma
interrogativa: teria a obra publicada sofrido alguma alteração no enredo original
deixado pela escritora?26 Nossa inquietação surge do fato que mencionamos
anteriormente quanto à obra A mulher do garimpo, cuja segunda edição também foi
publicada no mesmo ano.
Provocações à parte, retomemos o fio que delineia o romance. Seguindo a
regra estrutural de Macaggi, a obra é composta de cinco (05) capítulos, intitulados de
‘Livros’ e cento e dezoito (118) subtópicos. O espaço narrativo constitui-se na região
do alto Rio Parima, extremo norte de Roraima. As personagens centrais fazem parte
da etnia Uaicá que, segundo consta na obra, seria um subgrupo dos Yanomami. É
valido ressaltar que esse romance pode ser o primeiro em língua portuguesa cuja
abordagem se dá exclusivamente sobre a etnia Uaicá, Yanomami, habitantes da
região do Alto Rio Parima.
A cena que inicia o romance é de extrema barbárie e prenuncia o decorrer da
narrativa. Nela está descrito o conflito entre duas etnias, e nesse acontecimento são
quase que dizimados os Uaicá. Sobrevivem apenas Uerená, que durante o conflito
estava distante da maloca, e seu avô, recura, que conseguiu resistir aos ferimentos
graças aos cuidados da neta.
A título do enredo, o romance se desenrola frente aos deslocamentos feitos pelo
personagem Nará-Sué Uerená. Após o confronto, dá-se início a uma série de rituais
executados por Nará, que sob a orientação do avô (Recura), o pajé da comunidade,
dá início à cremação dos mortos na chacina. Dentre os rituais executados, o que mais
tem destaque é o Iapa, no qual as crianças mortas são cremadas:

Iapa (incineração dos cadáveres). A fogueira já está arrumada aguardando a


hora de serem lambidas pelo cai (fogo). A maior (patepata) acha-se distante
e tão cheia de paus, gravetos, folhas e maiim (breu vegetal), que até parece
coberta por uma colcha grande suficiente para esconder todos os “morridos”.
A menor ainda está mais distante e abriga o corpo de um curuminzin jintin,
neto de recura, o qual tem os bracinhos amarrados ao peito, os pesinhos
presos ao pescoço e a cabecinha ferida por xotó pequeno. [...] Então o recura

26Reafirmamos que os originais da primeira edição de A mulher do Garimpo, reeditado na mesma


ocasião de Nara-sue uerená, em pesquisas realizada em 10/03/2018, a informação prestada pelo editor
das referidas obras apontava que o romance A Mulher do Garimpo levou cerca de seis meses para
ser concluído publicado. O motivo seria as constantes correções e alterações feitas pelo filho da
escritora. Desta feita é possível que a edição dos romances publicados em 2012 possa ter sofrido
significativas alterações quanto ao enredo original dos romances.
65

acende a fogueira por todos os lados, com aquela pilha de cadáveres que ele
besunta com mais maim. [...] Os dois se afastam e ficam olhando o braseiro
[...] O ritual do Iapa dos Uaicás é parte de seus “costumes religiosos” e eles
comem o peicamuns aos poucos, nas refeições, para ficarem fortes,
corajosos e bons guerreiros... (MACAGGI, 2012b, p. 34).

O ritual descrito a cima é para os Uaicá verdadeiro ato de respeito a seus


‘morridos’, comprovado através da ingestão dos restos mortais de seus parentes para
que possam adquirir mais disposição e coragem para continuar sua trajetória. Após o
ritual, os Uaicá temerosos de novos ataques; avô e neta, decidem abandonar tudo e
descer o rio Parima.
No trajeto, o que é algo recorrente nos romances que antecedem a este, há uma
cartografia detalhada do deslocamento. Em certo momento da viagem, para
descansar, aportam em uma cabana próxima a bastantes árvores frutíferas. Ao
fazerem o reconhecimento do local, encontram um não indígena muito ferido. havia
vitimado por ladrões que ali assassinaram sua esposa e filho. Nará e Recura cuidam
de Manoel. Ele, em retribuição, os convida a acompanhá-lo em direção a fazenda.
Antes, sem rumo certo, os dois aceitam o convite do paranaense para servirem na
fazenda de criação de gado, com a promessa de trabalho e abrigo para ambos. Os
olhares afetivos trocados entre Nará e Manoel dão início à história de amor que irá se
desenvolver na narrativa.
A partir deste ponto a cenas de variados tipos de violência passam a ocupar
espaço no romance. É possível perceber certa preocupação do narrador em
esclarecer significados e sentidos das expressões da língua Uaicá/Yanomami, seja
em notas de rodapé (MACAGGI, 2012b, p. 50) ou em transcrições literais no texto
narrativo, por vezes incorporados às falas das personagens. O que mencionamos em
passagens anteriores como ocorrência nos Romances do Circum-Roraima, aqui é
ratificado, principalmente quanto a estilística.
O transcorrer do enredo da narrativa configura um acompanhamento de
transcrições e seus respectivos significados, como se, concomitante ao narrado,
houvesse um dicionário de expressões etnológicas necessárias para o entendimento
da narrativa. Fato este que aponta justamente para o mecanismo de transposição dos
elementos da pesquisa como coadjuvantes no construto do projeto romanesco. Como
visto nas obras comentadas anteriormente, a técnica é reafirmada neste romance.
A preocupação quanto ao significado das palavras é significativa chega a se
66

tornar cansativa a leitura. Contudo, não há constância de explicações em notas de


rodapé como ocorrem nos romances anteriores. O que temos é a incorporação de
significados das palavras ao decorrer do texto, geralmente identificado entre
parênteses:

Parima (rio que vem da serra). Ei-la, a magnifica “selva selvaggia”


esmeraldina e faiscante, de pé, impávida, altaneiro e florido frondosamente,
que separa o Amazonas da Venezuela e da República Cooperativista da
Guiana (MACAGGI, 2012b, p. 18).

[...] Parte dos Xirianas subiu o Mucajaí com perione (tuxaua) Concha Velha e
no xobono ainda estão Chico e Macaco, que vivem de Vender peixe para os
napês ou auaus (brancos).
Eis os nomes de maior parte das “famílias” da nação uaicá:
Xamatautheres - Povo do Xamatá
Motomatautheres - Povo da Cotia
Uratoritheres - Povo do Fogo
Tootobitheres - Povo de David
Uniotitheres - Povo Preto
Opititheres - Povo da Mãe Anta
Uatotiquitheres - Povo da Serra do Vento
Maxorinxinotheres - Povo da Serra do Porroabiuxi (MACAGGI, 2012b, p. 19).

É possível verificarmos nos fragmentos citados, que esse exercício será uma
constante no decorrer da obra. Essa movimentação na escrita nos aponta que, assim
como nos romances anteriores, a escrituração parece ajustar-se a própria dinâmica
por que passa o corpo das personagens. Os encontros culturais traduzem-se também
na ressignificação dos nomes, a exemplo de “Tootebitheres - Povo de David”, o que
destoa por completo dos outros nomes relacionados anteriormente que fazem alusão
a animais, cores e serras.
O encontro ocasionado entre culturas, subverte e opera na língua dominante,
mesclagens linguísticas entre a Língua Portuguesa e as diferentes Línguas indígenas
presentes na região do Circum-Roraima. Essa condição pela qual constrói
especificidades nos romances permite que as personagens apresentem elementos de
uma variante híbrida.
Há de ser recordado que Deleuze e Guattari fazem considerações quanto a isto
afirmando que essa dinamicidade reinventaria a linguagem a partir de línguas
socialmente menores:

Quantos é que vivem hoje numa língua que não é sua? Ou então nem sequer
a sua conhecem, ou ainda não a conhecem, e conhecem mal a língua maior
67

que são obrigados a utilizar? Problema dos imigrantes e, sobretudo, dos filhos
deles. Problema das minorias. Problema de uma literatura menor, mas
também de nós todos: como é que se extrai da sua própria língua uma
literatura menor, capaz de pensar a linguagem e fazê-la tecer conforme uma
linha revolucionária sóbria? Como devir o nómada, o imigrante e o cigano da
sua própria língua? (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 43).

Neste casso, parece-nos que a dinâmica instituída no cotidianos desafia o


escritor e o faz, penosamente, exercitar uma escrita hibrida no esforço de tentar
traduzir o resultado dos encontros. Para além disto, “Tootebitheres - Povo de David”,
mencionada no fragmento macaggiano, parece-nos que estaria muito mais vinculada
aos efeitos da presença das manifestações religiosas que adentraram os campos do
Rio Circum-Roraima para catequizar os indígenas ao longo da história, o que
reafirmaria a reflexão de Deleuze e Guattari quanto à tessitura da dinâmica linguística
ocasionada e provocada pelos encontros étnicos.
Nará-Sue transita no romance, por vezes sendo vítima e em outras
presenciando as cenas de violência, desrespeito e intolerância para com seres
humanos praticada pelos donos da fazenda, principalmente contra as personagens
do gênero feminino. O Silencio, parece-nos que é o ponto que melhor pode delinear
esta personagem, pois sua coadjuvância dá espaço às cenas de violações. É valido
lembra que personagens com este perfil são recorrentes nas obras de Nenê Macaggi.
A exemplo são: Dadá-Gemada Doçura Amargura, tanto a mãe quanto a filha, Naldo-
Macuxí, Nará-Sue Uerená, Recura, o indígena Lampião, o casal de idosos indígenas.
Parece-nos que as constantes violações ao longo da história, não apenas da região
do Circum-Roraima, mas dos povos que ali habitava deixaram marcas significativas e
é possível que isto reverbere nos personagens construídos por Macaggi. por este
ângulo, entendemos que as experiências corporais ressoariam indícios das
experiências traumáticas.
Poderíamos inferir que o corpo mestiço, e/ou indígena, resultante dos
encontros, é justamente o processo continuo dessas experiências. A partir do delinear
do corpo de Nará-Sue Uerená, enquanto diferenciador das outras mulheres não
indígenas. Aparenta ser uma tentativa de afirmação do que é pertinente à etnia.
Vejamos:

Treze anos guardada pela paimepaime! Mõmos (olhos) ternos como o


amanhecer de verão no alvorado. Ruro (testa) amplo e peiçarripe (boca)
pequena, enfeitada com duas fileiras de dentes alvos e miúdos, parecendo
68

milho de pipoca. Renaque inxiixe (cabelos pretos) abundante, livre e liso


emcascata pelos ombros largos. Enfim um suérrero bonita, coisa rara, aliás,
nas meninas de Xamatá (MACAGGI, 2012b, p. 23).

Na passagem supracitada, o corpo parece ajustar-se ao meio natural como se


a ele pertencesse. A descrição nos aponta a beleza do corpo de Nará-Sue Uerená
enquanto raridade frente às outras de sua etnia. É possível inferirmos que essa
‘raridade’ aponte para os contatos que foram desencadeados ao longo dos tempos
que possibilitaram corpos outros.

No dia seguinte, depois do segura-peito (café, paçoca, banana, e coalhada),


os dois tomam conta de suas tarefas: para a suerrero, ajudar a limpar a
cozinha, lavar a louça e cuidar das chocas e seus pintinhos e para o recura,
cuidar dos porcos e ovelhas e trazer lenha para a cozinha (MACAGGI 2012b,
p. 85).

A saber que as tarefas agora desenvolvidas pelos Uaicá na fazenda vão aos
poucos lhes ajustando aos moldes do processo pelos quais os indígenas da região do
Circum-Roraima estão passando. Talvez o estado de soberania apontado nos
romances macaggianos reverberam os influxos da docilização e controle como reflexo
dos desdobramentos da Biopolítica que incidem sobre os corpos vulnerabilizados.
Recordemos ainda que, a proposta de estado nação do século XX está para
além da ampliação do território. Implicaria mais em referendar sua força, riqueza e
poderio a fazer-se presente no espaço já conquistado tomando-o produtivo. Para que
isto se afirme é necessário zelar pela saúde, educa-lo nas habilidades necessárias
para o estado capitalista desenvolvimentista e, principalmente, discipliná-lo.
Adestrar os corpos aos ritmos de vida agenciadas pela Biopolítica que permite
extrair dele tempo e produção, tornando-o útil e economicamente eficaz. Para tanto,
além dos mecanismos de poder como escolas e a noção de família aos moldes
capitalista, os dispositivos ideológicos agem como desvirtuados dos questionamentos
possíveis frente aos efeitos causados. Vejamos a passagem:

Nará-Sué está aprendendo a ler e escrever, escondida sempre, com o


capataz, que se admira de sua inteligência e vontade de aprender as coisas.
A TV ajuda-a, com os seus programas e assim vai vivendo, sempre cansada,
mas pronta para o trabalho (MACAGGI 2012b, p. 99).

A docilização à dinâmica social instituída na fazenda careceria de ser mediado


69

para que assim ela pudesse fazer parte das atividades domésticas, cotidianas da
fazenda, e portar-se em presença dos não índios. Essa mediação será exercida pelo
paranaense Manoel, o capataz, que atua como protetor dos trabalhadores da fazenda,
em muitos casos evita os desmandos e agressões praticadas pelos proprietários.
Ressaltemos que as relações de poder que são exercidas na fazenda seguem
a linha da estrutura do patriarcado. Isto mostra que o senhor das terras exerce controle
sobre aqueles que estão dentro do espaço. Em se tratando do romance em questão,
as relações que se estabelecem ali, frequentemente apontam para violações e
agressividade contra os que nela estejam, principalmente aqueles que não façam
parte da genealogia da família.
Os processos de resistência que irão se desdobrar na narrativa representam os
acontecimentos ocasionados pelos processos de contato, colonização e docilização
dos indígenas na dinâmica das fazendas do Vale do Rio Parima. A violação, neste
caso, estaria para além do que se diz enquanto identidade, mas aponta para questões
muito mais amplas, se alojam nos processos de Biopolítica cujas cintilações
apontadas nos romances de Nenê Macaggi nos conduziriam para a construção do
sujeito a partir dos influxos da sociedade contemporânea.
Lembremos que a voz narrativa nos levam a observar não um empoderamento
tácito sobre o indígena, mas certo ajustamento aos moldes da sociedade que se
instaura na região. As manifestações da resistência a tal processo se dão na
imanência corporal, da repulsa no ato da fala ou mesmo na maneira de agir
abandonando a fazenda. Vale lembrar que a voz que ressoa na narrativa é que define
a percepção da personagem indígena na sociedade descrita no romance.

Os de longe trazem guias e fotografias, não procuram penetrar nos costumes


e na vida diuturna e saem por aí espalhando que no Brasil os índios morrem
de fome! Puro engano, perversa maldade! Índio morrer de fome dentro de
seu único habitat, que é o paimepaime, ela mesma lhe oferecendo terra,
fruto, caça, pesca, madeira e os “remédios” para o pajé curá-lo? Índio não
morre de fome, morre de doença como o napê branco ou em suas próprias
guerras (MACAGGI, 2012b, p. 20).

Se o propósito do projeto romanesco de Macaggi se configura na imanência do


teor de resistência, então poderíamos inferir que a invisibilidade dos grandes conflitos
entre indígenas e não indígenas está nas entrelinhas do discurso. Dizemos dessa
maneira por acreditar que as barbáries apontadas em Nará-Sue Uerená podem nos
70

conduzir a uma representação das práticas de poder que agem enquanto


atravessamentos nos romances de Macaggi. Dessa maneira, a aparente negação aos
intensos conflitos que desenharam as políticas de povoamento na configuração do
estado de Roraima podem estar escondidas no discurso monótono, dicionarizado e
rançoso do projeto romanesco de Macaggi. E, neste romance, isso aparenta ganhar
força.
Ainda que a voz narrativa dos romances aponte para o teor conservador, há
fragmentos que nos conduzem à imanência no discurso, reverbera o que poderíamos
chamar de emergente teor de indocilidade. Esse mesmo teor pode ser observado na
cena de partida dos Uaicá após o acontecimento que os forçou a saída de fazenda e
o fará retornar às margens do rio Parima:

E voltem um dia, deixem para trás a “conhecença” do que não presta, a


amizade fingida, a civilização viciada e impura dos napês ingratos e de
coração vazio, que com seus “praticados feiosos” e “aperriames covardes”
não têm piedade de ninguém. E, ainda com “estripações” perseguem e
humilham todos, como senhores absolutos de tudo uarons uariches (homens
ordinários) que não gostam de sua gente (MACAGGI, 2012b, p. 40).

A voz que ressoa no fragmento, seria a ‘paimepaime’ (mãe natureza) profetiza


o contato com a ‘civilização viciada’ que os Uaricá irão deparar-se ao terem que migrar
para outro espaço. O tom descritivo prepondera durante o afastamento dos Uaicá até
sua chegada à fazenda. As descrições dessa viajem ocupam dois capítulos inteiros.
Neles, a relação entre Nará-Sue e a natureza é apresentada de maneira a inferir
vínculo entre o sujeito étnico e o meio, como se o vínculo afetivo entre ambos
resultasse de uma relação viva de interdependência:

No comum o índio caça e pesca para comer e não derruba senão árvores de
que precisa para o espaço do xaboono do pororó e da ricare. Nará-Sué não
é exceção e sim uma espécie de ecologista natural sem estudo, que ama o
arvoredo, adora os animais, sacrificando-os por que precisa comer, e respeita
a Mãe-Natureza, certa de que em seu corpo corre, misturada ao sangue, a
seiva dos troncos que são a aorta vegetal e também a clorofila das folhas
(MACAGGI, 2012b, p. 57).

Para além do caráter etnológico constatado no fragmento, a narrativa ganha as


práticas de controle e poder quando o espaço da trama é constituído na fazenda. Sob
o domínio de Dona Francisca, a ‘Fera-mãe’, e do filho, Lauro, os Uaicá são recebidos
na ‘Três amores’, herdada do esposo, Simão - com arrogância e desprezo. Aceitos e
71

alojados, após longa explicação do capataz Manoel, a relação que lhe é direcionada
corresponde a de patrão e ‘empregado’ (p. 84), pois os trabalhos que lhes atribuem
serão gratificados em forma de ‘pagamento’. Contudo, o trato direcionado a eles é
depreciativo e intolerante: ‘bocós’, ‘lesmas’, ‘bugres’.
O tom pejorativo aparenta afirmar que as políticas de controle vinculadas ao
expansionismo na Amazônia. A representação dessa dinâmica é exercida pela
presença do perpetrador, aquele que tem o poder de vida e morte sobre seus
subjugados. Neste caso, Dona Francisca e, posteriormente, seu filho Lauro,
representariam esse perfil.
A dinâmica implementada na fazenda pode ser entendida em duas articuladas
linhas de entendimento: inicialmente vinculadas às atrocidades praticadas por Lauro;
a outra, ligada as violações e barbáries realizadas e/ou autorizadas pela ‘Fera-mãe’.
Lauro é o típico perpetrador e tem, nos aceites da mãe, soberana, todo o apoio que
deseja para suas malvadezas:

Lauro cursou boa escola em Boa Vista, sem aproveitamento nenhum, sempre
péssimo aluno, valentão, soqueando os colegas e dando enorme trabalho às
mestras, levantando a saia das colegas, além de grande desgosto ao pai por
recusar a se alistar e sempre apoiado pela mãe. Em casa cospe nas criadas,
bolina as meninas, apedreja os animais e os telhados, degolando as galinhas,
balando os pássaros, furando os gatos e cachorros, eternamente defendido
pela megera-mãe, dona absoluta dos Três Amores desde que falecera o
marido (MACAGGI 2012b, p. 87).

Os atos praticados por Lauro o condicionam a tornar-se temido pelos


moradores da fazenda. Os requintes de crueldade se intensificam cada vez mais a
ponto de agredir um indígena Tukano, morador da fazenda, que havia ido pescar a
pedido da ‘Fera-mãe’. As agressões são tão violentas que provocam a reação do
indígena. Com um golpe fatal, o Tukano arremessa uma pedra certeira na cabeça de
seu agressor. Dá fim ao cadáver e some sem deixar vestígios. Encerram-se as
atrocidades e desmandos por parte de Lauro, para alivio dos empregados.
Sem conseguir encontrar o culpado, tão pouco o cadáver do filho, a ‘Fera- mãe’
inicia uma série de barbáries e desmandos que a levam a loucura. Entre suas reações,
está a passagem que envolve a empregada da fazenda que entra em trabalho de
parto. Sem conseguir dar à luz a criança, a ‘Fera-mãe’ chama um andarilho, bêbado
assassino, que havia se abrigado na fazenda e ordena que induza o parto. Vejamos:
72

Depois pulou na cama, tal qual um sapo, ergueu a enferma, ajeitou-se a seu
modo, e abriu-lhe as pernas cobertas de sangue; empunhando então uma
pequena faca enferrujada, de seu uso, meteu logo o punho inteiro no útero
da infeliz criatura, cortando... cortando...e logo o sangue escurecido escorreu
junto com os pedacinhos do couro cabeludo e da carne do inocentinho que
não teve a ventura de ver, sequer, a luz do dia ou receber um beijo materno
(MACAGGI, 2012b, p. 101).

O requinte de crueldade, descrito na cena, revolta os empregados. E


aproveitando-se da ausência de Manoel, que havia ido a Boa Vista buscar o esposo
da parturiente, a ‘Fera mãe’ ameaça a todos exigindo ‘silêncio absoluto’, sob pena de
morte. Revoltados, os empregados vão, aos poucos, abandonando a fazenda. Manoel
acaba sabedor da verdade que envolve a morte da empregada e tenta cobrar
satisfação. A ‘soberana’ o desdenha e mentem a arrogância em seus atos.
A narrativa se desdobra após esse episódio e ganha outro viés. Chegam à
fazenda os parentes de Simão, que sabedores dos ocorridos com os familiares e
doença de ‘Fera-Mãe’ decidem assumir a ‘Três Corações’ e dar-lhe outro rumo.
Nessas modificações, o paranaense Manoel casa-se com Nará-Sué e decidem
retornar ao lugar de onde ela e o Recura haviam saído. Encerra-se o romance dos
‘Xamatautheres do Parima’ como que metaforizando recorrência da sociedade
mestiça na Amazônia. Consideremos que o percurso feito até aqui nos demonstra que
o recurso historiográfico romanesco presente na ficcionalidade produzida por Nenê
Macaggi nos conduz a pensar alguns pontos que devem ser levados em consideração
e que iremos abordar com mais propriedade nos capítulos que se seguem.
A saber, a leitura executada nos romances aponta para que possamos
entender o território enquanto desempenhador de questões estratégicas para a
proposta de Estado, seja na atuação enquanto eficaz na ação de interditar e docilizar
as atuações do sujeito, agindo assim para a produtividade do corpo enquanto ação
econômica no território. O que surge frente efeito das ações do Estado, atuam
enquanto dispositivo de controle e docilidade, a exemplo da criação das cidades,
principalmente as planejadas, e dos sujeitos que nestas resinificam seus corpos.
Neste caso, os corpos que transitam nesse território de encontros e controles
atuam não enquanto escape do que lhe causou a ação migratória. Acreditamos que
ela efetiva aquilo que não se sustenta mais enquanto poder absoluto e bem delimitado.
Demonstra que a sociedade de controle e sua arbitrariedade, frente a dinâmica das
73

relações entre os corpos socialmente constituídos, imprimem o rompimento das


fronteiras bem definidas e delimitadas. A isto o conceito de raças é suplantado dando
vez a dinâmica dos encontros, ressignificando espaço e instituindo complexas redes
de interrelações. A produção de linguagem, o espaço socioeconômico apontariam
intrincadas redes em que o corpo atua como território de inscrições. É nos processos
dos encontros étnicos, no corpo como ato, inscritos nos desdobramentos da
Biopolítica, que os capítulos seguintes são construídas.
74

3 O PENSAR BIOPOLÍTICO SOBRE O CORPO MESTIÇO

Com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para


uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo,
desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou
um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de
trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera
simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com
o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu
a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é
uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2014, p. 144).

O fragmento que abre este capítulo, retirado da obra “Microfísica do poder”, M.


Foucault desenvolve breve genealógica tendo o corpo enquanto força motriz de
trabalho. Pontua o século XIX como o referente quanto ao uso do corpo gerador de
produção vinculado aos processos de docilização criados para atender as demandas
do capitalismo. Aos diferentes dispositivos que atuaram, e continuam atuando na
ingerência da vida das pessoas, o filosofo francês denominará, Biopolítica.
Deve ser considerado que Foucault só apresenta uma melhor definição de
Biopolítica no curso Nascimento da biopolítica (2010) onde sustenta que o
entendimento sobre esta categoria, está para além de indicativos apenas econômicos,
implicariam questões relativas às maneiras não-estatais de controle das populações.
Foucault afirma seu entendimento sobre Biopolítica:

eu entendia por isso a maneira como se procurou, desde o século XVIII,


racionalizar os problemas postos à prática govemamental pelos fenômenos
próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde,
higiene, natalidade, longevidade, raças... Sabe-se o lugar crescente que
esses problemas ocuparam desde o século XIX e que desafios políticos e
econômicos eles vem constituindo até hoje. (FOUCAULT 1987, p.431)

Relativo ao que nos afirma o filósofo francês o corpo é resultante dos efeitos
de instituições, de discursos construídos social, cultural e historicamente. Ao longo
dos tempos, os vínculos resultariam do exercício do poder sobre o corpo dos sujeitos
e populações. Verifica-se ainda na citação, que o século XVIII trouxe à luz formas de
poder adotadas pelas sociedades ocidentais cuja vida humana torna-se o centro das
estratégias de controle. Historicamente, a figura do “soberano” é substituída pela
presença do Estado enquanto detentor de poder e controle. Nesse momento,
assistimos a uma mudança considerável quanto a ação do poder sobre a vida. O
entendimento do Soberano de “fazer morrer e deixar viver” é substituído pelo poder
75

do Estado em “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT 2002, p. 287). O Estado passa
a investir na vida humana enquanto força necessária a manutenção econômica e
produtiva. É o corpo adestrado e docilizado que está em construção para atender a
proposta de mercado.
Para que esse procedimento seja efetivado, o controle da vida da população
perpassa agora a ser formulado através de dispositivos. As estratégias adotadas para
que isso dar-se-ão justamente no surgimento de instituições de caráter clínico,
pedagógico, sexual e jurídico. Os dados produzidos pelas diferentes instituições que
foram criadas, possibilitam ao estado a justificativa legal para intervir na forma de vida
da população.
Ainda sobre a citação de abertura, percebemos que a mudança de paradigma
revela a atuação de grupos privados de esferas sociais ligadas as ideologias
capitalistas. Segundo G. Agamben (2004, p. 37) dispositivos vinculados
principalmente a saúde das pessoas são estabelecidos para agrupar os corpos,
principalmente ligados a reformulação física deste para que assim possa pertencer ao
grupo e melhor atender a demanda econômica.
Nessa miríade os delineamentos pensados por M. Foucault relativos ao
entendimento de Biopolítica tornaram-se fundamentais para reflexões quanto aos
desdobramentos a respeito da mudança de paradigma do poder soberano para o
biopoder. Isto aparece na obra Em defesa da sociedade, onde M. Foucault afirma que:

Uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX


consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho
direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo,
que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo,
e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de
‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer (FOUCAULT, 1999, p. 287).

Na perspectiva apontada por Foucault, quanto ao fazer viver, é possível inferir


que as estratégias de poder incidem no corpo dos vivente e deixa impressos resíduos
históricos das modificações efetuadas ao longo dos tempos. Este mecanismo reprenta
a forma como as populações são capturadas, reguladas e ajustadas às técnicas de
controles em favor do capital.
Peter Pál Pelbart (2003, p. 13), seguindo a linhagem foucaultiana, ao tratar
sobre essas manifestações, afirma que “a defesa da vida tornou-se lugar comum”,
tendo em vista que se os efeitos da Biopolítica incidem nas relações estabelecidas
76

socialmente, teríamos por conseguinte a vida sobre os efeitos de contato pelos quais
as populações humanas tem passado ao longo dos tempos. Pensando por este viés
é possível que os efeitos demandados através dos encontros étnicos sejam respostas
à própria dinamicidade da Biopolítica.
Neste caso, os Romances do Circum-Roraima bem representam essa
movimentação humana em favor do capital, cujos diferentes meios artísticos o tem
representado de diferentes formas; a título de exemplo são os trabalhos de Eliakim
Rufino e o Movimento Roraimera que apropriam-se dos encontros étnicos
demandados na região do Circum-Roraima, resignificam-no a partir da poesia e
música; também podemos citar o escritor Davi Kopenawa através da narrativa de
testemunho. E mais recente, o escritor, músico e poeta Cristino Waipichana indicado
ao prêmio Jabuti 2019 na categoria Literatura juvenil. Em se tratando dos escritos
deixados por Nenê Macaggi, acreditamos nos conduzirem a entendimentos referentes
aos dispositivos que atuaram com eficácia das biopolíticas na referida região.
Dessa maneira, o narrador do romance A Mulher do Garimpo, afirma que:

Com o defluir dos séculos, eles, rebeldes por temperamento e refratários a


qualquer insinuação dos brancos, recusaram avaramente o capital de seu
braço em troca de amizade oferecida. Mas hoje, com exceção de algumas
tribos dos rios: Negro, Madeira, Jaci-Paraná, Ajaraní e Alalaú, no Rio Branco,
e ainda os da Serra do Parima, onde ainda existem alguns índios bravios que
se guerriam e perseguem também aos brancos, entretanto a maior parte, se
mostra concórde com a chamada Civilização Branca (MACAGGI, 2012a, p.
53)

Pensando por este viés, podemos aproximar a citação quanto a reflexão dos
pensadores italianos, de linhagem foucaultiana, aos processos de ressignificação
pelos quais passam as populações humanas. Acreditamos que para o entendimento
da Biopolítica, alinhar ela apenas relacionada à relações de poder, é perder de vista
elementos outros que incidem no corpo, efeitos exercidos pela Biopolítica.
Seguindo essa linha interpretativa, Giorgio Agamben, em Imanência absoluta
(2005b, p. 1) retoma as reflexões sobre o conceito de Biopolítica formulados por M.
Foucault (2013) ao indagar-se sobre a noção de “vivente” (AGAMBEN, 2005b, p. 14).
O filosofo italiano parte do quesito da exclusão do ser vivente da pólis grega, ainda
que a ela continuasse a pertencer. Melhor dizendo, o vivente é um ser que
desprovido de todos seus direitos jurídicos de cidadão da pólis, permanece vivendo
77

nela, mas submisso e subordinado a tudo e a todos que decidirem sobre sua
existência, politicamente desqualificada.
Partindo das noções gregas de bíos (vida politicamente qualificada) e zoé (vida
nua, desqualificada), o filósofo italiano passa a refletir que essa condicionante seria o
traço distintivo para o entendimento sociopolítico ocidental moderno e/ou
contemporâneo, mais precisamente a vida nua como provocativa na dinâmica social
contemporânea. Agamben (2004, p.12) defende a ideia que o ingresso da zoé na
esfera da pólis, a politização da vida nua como tal, constitui o evento decisivo da
modernidade. Este acontecimento assinala uma transformação radical das categorias
político-filosóficas do pensamento clássico. Nesse viés, entendemos que o corpo é
retomado como ponto central de discussão empreendida pelo filosofo italiano a partir
da noção política ocidental contemporâneo de inclusão/exclusão social.
A saber, se a zoé está retirada da norma que rege a pólis, teríamos um Estado
de Exceção (AGAMBEM, 2004) para geri-la, inclusão por exclusão, tendo este,
segundo o autor, tornando-se regra para qualificar e/ou desqualificar a vida/corpo em
sociedade. Quanto a isto, Agamben afirma que “na idade da Biopolítica este poder
[soberano] tende a emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder
de decidir sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante”
(AGAMBEN, 2002, p. 150). Lembremos que o poder a que o filosofo se refere
corresponde ao Soberano, o que gerencia, determina e ordena a vida/corpo
contemporânea; a zoé estaria, por assim dizer, em constante dinâmica social e
artística. Pensando por este viés, se o corpo metaforiza a vida, narrada nos romances
do Circum-Roraima, neste caso a ‘vida nua’ subalternizada, em sociedades
contemporâneas estaria ele como ponto de referência deste paradigma.
Pensando por este ângulo, em conformidade com G. Agamben (2013, p. 153),
acreditamos que a Biopolítica pode assim ser entendida não somente enquanto
disciplinadora do corpo, mas que atua no sentido de qualificar ou aniquilar a vida/corpo
em sociedade, incidindo nele sua condição de ser vivente, explorável ou não,
transitando entre a natureza e a humanidade, assegurado apenas por condicionantes
biológicas de subordinação às decisões do poder soberano.
A esta questão, a categoria corpo mestiço que iremos discutir mais a frente,
como mencionado no fragmento textual do romance A Mulher do Garimpo (MACAGGI,
2012a), aparenta representar essa condicionante de desqualificação, pois a jovem
78

Dadá Gemada, personagem de romance homônimo (MACAGGI 1980), quando de


sua ida para o nordeste aos cuidados de familiares, passa a ter sua vida/corpo
vinculada a condição de explorável e matável, cujas sucessivas violações as quais é
submetida demonstram que para além da condicionante haveria outra implicação que
reafirma ainda mais sua vulnerabilidade social, ser mulher, mulher mestiça. Vejamos
a passagem a seguir:

Foi naquela casa grande do bairro da cidade que encerraram Dadá-Gemada


Doçura Amargura. Todas as promessas feitas aos seus Vovôs não foram
cumpridas. Não estava no Ginásio, não era estimada, não a deixavam ler,
ouvir música, sair de casa. Só trabalhava, trabalhava, trabalhava. Varria e
arrumava toda a casa, embora houvesse duas empregadas. Varia extenso
quintal, regava a horta e o jardim, cuidava das galinhas e dos cachorros Leão
e Pantera, que logo ficaram seus amigos. Não comia direito, não dormia
direito, só recebendo ordens: - Faça isso, faça aquilo, lave o chão,
molengona! E isso das cinco da manhã às dez da noite. Emagreceu,
empalideceu, com aquele sofrimento sem trégua (MACAGGI 1980. p. 69).

Ressoam no fragmento supracitado práticas de poder soberano,


representativos da sociedade heteronormativa, no sentido de Butler (2018, p. 27), cujo
homem teria poder sobre o corpo feminino. O que podemos aludir na representação
da personagem feminina no romance de Macaggi é um ser humano em fracasso, que
mesmo que não tenha sido privado de sua liberdade, representa os efeitos da
Biopolítica enquanto retrato da vida nua do homem contemporâneo, arrastando sua
sobre-vivência nas violações, despojos, angústias e preconceitos. A questão da vida
nua dialoga com as situações de Exceção, visto que há corrupção da dignidade, do
respeito e replicam os grandes eventos de exceção, a exemplo do que é narrados por
Primo Levi, na obra É isto um homem? (1988).
A saber que os eventos traumatizantes que acometeram a humanidade no
século XX, seja em função da duas grandes guerras mundiais ou mesmo conflitos em
escalas menores corroboram aos efeitos das práticas de poder soberano. Há de ser
evidenciado que o alcance desses desdobramentos bélicos atingem diretamente o
espaço amazônico através das políticas implementadas na região para manutenção
dos conflitos mundiais. A saber, o período da borracha e os sucessivos projetos
desenvolvimentistas impulsionados pelo governo do então presidente brasileiro
Getúlio Vargas. É valido ressaltar que a barbárie tornou-se, nesse período, forma
efetiva de manutenção do poder.
79

A nós estas informações tornam-se relevante tendo em vista o que nos


propomos nesta tese, pois se a naturalização das práticas de violações e banalização
da vida humana tornou-se algo comum para a manutenção da soberania, então isto
efetiva-se como regra nos espaços usados para manutenção das duas grandes
guerras. Seguindo este ponto de vista, Tânia Sarmento-Pantoja (2014), nos faz a
seguinte reflexão quanto a condição de exceção no mundo moderno:

Sabemos que a intervenção humana também é capaz de gerar catástrofes.


Guerras, revoluções e conflitos armados podem apresentar impactos
gigantescos sobre os serviços essenciais e o patrimônio material, ambiental
e cultural. O concentracionismo, as perseguições e os massacres são
igualmente grandes motivadores da dispersão humana e mesmo da extinção
– não propriamente da espécie humana – mas de determinadas etnias,
segmentos religiosos ou políticos. Em todo caso, a catástrofe sempre se
encontra no interior da Exceção e por isso deve ser compreendida como a
precipitação da experiência da norma e do familiar (SARMENTO- PANTOJA,
2014, p. 169).

Se, em conformidade com a autora, a catástrofe pode ser gerada a partir da


intervenção humana, então os processos históricos de violações no espaço
amazônico do Circum-Roraima pode também ser entendido a partir da chave da
barbárie perpetrada ao longo dos séculos.
Seguindo este ponto de vista, visualizamos a barbárie por uma outra vertente:
através da poluição dos rios, desflorestamento acelerado, a substituição da agricultura
de subsistência, a intensificação dos conflitos de latifúndio e etnocídios de grupos
indígenas. Tais condicionantes reverberam os efeitos da Biopolítica sobre o espaço
marginalizado e o sujeito matável, cujo interesse perpassa pelo domínio de poder,
construindo uma espécie de espaço de Exceção “[...] afinal o mundo concentracionário
e suas máquinas de tortura e morte não se restringem aos restos de Auschwitz. Em
verdade, eles nos são mais familiares do que gostaríamos que fossem” (SARMENTO-
PANTOJA, 2014, p.173).
Alinhando ao pensamento foucaultiana é Roberto Esposito, cuja linha de
atuação aponta a ‘política da vida’ discutindo, principalmente na obra Bios: biopolítica
e filosofia (2010b, p. 27) o princípio de “biopolítica afirmativa”. Uma das significativas
indagações deste filósofo dá-se a partir dos acontecimentos ocasionados pelo ataque
terrorista em 11 de setembro de 2001, tendo em vista saber o que ocasionaria a
transformação da política que defende a vida torna-se aniquiladora da mesma política.
80

Ocupando-se da terminologia também estudada por Agamben, Esposito parte dessa


indagação para discutir o que ele define por ‘biopolitica afirmativa’. Vida e morte,
então, seriam resultantes de uma dinâmica e constante interrelação.
Nos escritos de Esposito há recorrente menção quanto a insuficiência de
abarcamento da dinâmica social cujo o termo Biopolítica não daria conta. Segundo ele
“porque, em algumas condições, [a contemporaneidade] passa a inverter esse vetor
biopolítica em seu oposto tanto político, passa a vincular a batalha pela vida com uma
prática de morte” (ESPOSITO, 2006a, p.10). É justamente nessa complexa relação,
entre vida e morte, que ele ressignifica o entendimento de Biopolítica para dar ênfase
a imunidade enquanto capacidade de salvaguardar a vida de alguns em detrimento
de outros. De outra forma, podemos entender que a eliminação de certos grupos
sociais se justificaria a permanência de outros. Neste caso, a prática de etnocídio e
desflorestamento aparenta reverberar a reflexão de Esposito.
Ao que consta, nesse grupo por nós entendidos como dos matáveis,
‘exploráveis’, apontados por Esposito atuariam enquanto metáforas referentes a
mulheres, indígenas, negros, homoafetivos; melhor dizendo, corpos (In)Dóceis que,
de alguma maneira, provocam a ordinária social e ocupam o espaço pensado para
atender a representação do capital. Dizemos dessa maneira, pois além dos
fragmentos dos romances do Circum-Roraima apresentados, a exemplo do
anteriormente citado, tais indícios trazem conotações dos desdobramentos do que
Achille Mbembe (2013) denomina de necropolítica, ou uma Biopolítica de morte e/ou
do aniquilamento das minorias subalternas.
Ainda segundo o filosofo italiano, a “bios é artificialmente recortado, por uma
série de umbrais, em zonas dotadas de diferente valor que submetem uma de suas
partes ao domínio violento e destrutivo da outra” (ESPOSITO, 2006a, p.10, 11). Ao
que demonstra a reflexão, é possível perceber que o que põe em risco o processo de
dominação e/ou expansão, ameaçador ao ordenamento dos territórios –
consubstanciais a gênero, classes sociais, etnias e nações – é passível de ser
eliminado e/ou sacrificável para imunizar os outros.
Para que esta “exceção” ganhe legalidade, a tornar-se regra, há um aumento
considerável de dispositivos emergenciais produzidas afim de capturar aquilo que
esteja fora do amparo legal. Isto se dá principalmente no que tange como corpo
explorável. Quanto a isto, R. Esposito orienta que:
81

Desde a relevância cada vez maior assumida pelo elemento étnico nas
relações internacionais ao impacto das biotecnologias sobre o corpo humano,
desde a centralidade da questão sanitária como índice privilegiado do
funcionamento do sistema econômico produtivo até a prioridade da exigência
de segurança em todos os programas de governo, a política aparece cada
vez mais esmagada contra a nua capa biológica, se não sobre o corpo mesmo
dos cidadãos em todas as partes do mundo. A progressiva indistinção entre
norma e exceção determinada pela extensão indiscriminada das legislações
de emergência, junto ao fluxo crescente de imigrantes privados de toda
identidade jurídica e submetidos ao controle direto da polícia, tudo isso indica
um ulterior deslizamento da política mundial em direção à biopolítica
(ESPOSITO, 2006a, p.15).

Certamente o filosofo italiano atenta aos encontros ocasionados pelos fluxos


migratórios, cuja historicidade literária indiciada nos romances do Circum-Roraima,
tem apontado que as emergentes intercambiações culturais e sociais tem provocado
constantes releituras e ajustamentos jurídicos para tentar dar conta da provocativa ao
ordenamento que essa movimentação causa ao poder constituído. Podemos aludir
ainda, a título dos exemplos mencionados no fragmento, que a Biopolítica movimenta-
se a nos provocar a execução de leituras quanto a dinamicidade das relações
artísticas contemporânea, ainda que os dispositivos que atendam à própria
excludência e aniquilamento de corpos provocativos.
O corpo mestiço atuaria nessa dinâmica apontada nos romances do Circum-
Roraima enquanto provocativo ao ordenamento que instituiu o conceito de raça como
algo inquestionável. Contudo, para além da delimitativa fronteira estipulada por essa
definição, o que nos provoca é a contribuição política que o corpo mestiço traz aos
estudos que apontam para a obsoleta teoria harmoniosa de três raça constituidoras
da nação brasileira. O corpo mestiço instaura releituras enquanto processo
provocativo e desajustador do ordenamento biopolítico que institucionaliza e nega os
processos de mestiçagem, fluxos transnacionais, como denunciadores das dinâmicas
etnossociais contemporâneas. Para tanto, entendemos que se o corpo atua no sentido
de docilidade, inscreve também a dinâmica movimentação contrária, reivindicando e
re-inscrevendo processos de resistências outras.
Segundo M. Foucault “se há relações de poder, há nela a Resistencia”
(FOUCAULT, 1999, p.76). A reflexão nos servirá de base nos trabalhos dos
respectivos pensadores italianos, posto que aponta que a Biopolítica nos possibilita
pensá-la enquanto possibilidade de formas outras de existência. Sobre este ponto, M.
82

Foucault afirma que:

Não é [...] fundamentalmente contra o poder que nascem as lutas, mas contra
certos efeitos de poder, contra certos estados de dominação, num espaço
que foi, paradoxalmente, aberto pelas relações de poder. E inversamente: se
não houvesse resistência, não haveria efeitos de poder, mas simplesmente
problemas de obediência (FOUCAULT, 1999, p.76).

O que nos traz de reflexão o fragmento é justamente na dinâmica da ‘des-


obediência’ que buscamos os indícios instituídos para a docilização dos corpos. Ao
pensar por este viés chegamos a perceber que os fluxos de resistência são
provocativos e desajustadores da Biopolítica de ajustamento e controle dos corpos.
Dessa maneira, entendemos que seja na dinâmica dos efeitos causados pela
biopolítica que a Resistência deva sustentar suas práticas provocativas. É possível
que no fragmento citado até aqui, relativo aos romances do Circum-Roraima, estejam
justamente as provocações que desdobra-se nos estudos dos filósofos italianos, o
rompimento da condicionante que normatiza a vida/corpo como um fato, apenas um
fato, inquestionável e nada mais - que miramos ser possível entender a vida/corpo
mestiço pelo viés de possibilidades e potência.
É o que G. Agamben delineia enquanto “inoperosidade”, isto é, a vida e seu
potencial criativo, justamente enquanto negativa do ato de normatizar. Neste caso a
‘imanência absoluta’ defendida por ele (AGAMBEN 2005a) reafirma a vida/corpo como
elemento central na dinâmica da Biopolítica. Justamente na obra Estado de Exceção
(2004) G. Agamben irá dar evidência a capacidade criativa do ser humano,
compreendendo que o poder sobre a vida/corpo abre fendas para significativas
práticas de insubordinação a ele. Podemos parafrasear Esposito quanto o pensar de
uma política que evidencia a vida/corpo e não o poder sobre ela (Esposito 2006, p.
12), afirmando-a enquanto potência. Seguir por esta linha de entendimento é entender
que o pensamento de Esposito, quanto a imunização, não requer apenas uma
provocação ao processo de sujeição à normativa (ESPOSITO 2010, p. 204), mas sim
apropriar-se da capacidade normativa e produzir o ‘não’, contrariando o processo
docilizador (ESPOSITO, 2010, p. 211) sem negar a existência dos corpos que atuam
enquanto provocativos ao processo de docilização, a exemplo dos corpos mestiços
apontados nos romances do Circum-Roraima:
83

A prima: Diva da Silva Gomes. Miudinha, magrinha, feinha, mentirosa,


grosseira e invejosa. [...] Invejava a beleza de Dadá, porque a infeliz, mesmo
maltratada, mal vestida e cheia de marcas de pancada, não deixava de ser
uma bela pessoinha, enfeitadinha de sardas que lhe davam certo encanto, os
seinhos ponteagudos querendo rasgar-lhe o vestido, o corpo magro mas bem
feito e as pernas batatudinhas sempre bonitas. E Diva se mordia de inveja e
procurava sempre fazer fuxico dela junto a dona Cinnira. E a pobre sertaneja,
como a chamavam, era sempre quem pagava a fava que o boi comeu. Nem
ler podia. Lia quando havia luar, atrás do galinheiro, enquanto todos assistiam
televisão, no salão interditado a ela (MACAGGI, 1980, p. 70).

Ao que a excetiva nos demonstra, ajusta-se a provocativa existência do corpo


mestiço, visto que sua função para o soberano é justamente ser ‘explorável’, não lhe
franqueando espaço na dinâmica da família de ‘classificáveis’ ainda que nela esteja
inserida. Quando adentramos mais ainda na obra em questão, podemos verificar que
o corpo mestiço presentificado nos romances seria indício da ressignificação dos
processos de tentativa de aniquilamento instituídos ao longo dos tempos na
Amazônia. Talvez o que a personagem Diva, citada no fragmento, veja no corpo
mestiço seja a própria existência daquilo que não conseguiu ser extinto e que se
inscrevem nos corpos mestiços historicizados e provocativos, que G. Agamben
evidenciou em Profanações (2007).
Quanto a este corpo ressignificado, transgressor da vida enquanto fato
meramente biologizado, seria ele uma alteridade a deriva a procura de re-fazer
(refazer) em um corpo em devir. É possível que o corpo afirmado na dinâmica
apresentada nos enredos do projeto romanesco de Macaggi, represente os
redimensionamentos do corpo mestiço enquanto potência dos encontros étnicos
contemporâneos na Amazônia.
Nos termos de Alexandre Simão de Freitas (2015), no ensaio A formação
humana no contexto da consumação metafísica do sujeito: ética da potência de
Agamben27, em que efetua análise sobre a obra de Agamben, o corpo mestiço, por
nós entendido enquanto corpo explorável, pode ser evidenciado também a partir da
seguinte reflexão executada por Freitas. Segundo ele,

Agamben (2007, p. 81) insiste, contudo, em lembrar que o objeto principal da


economia teológica também é a vida humana. O problema é que o termo
utilizado para a vida na economia teológica não era nem zoe, nem bios, mas

27Disponívelem:
<https://www.researchgate.net/publication/297608717_A_formacao_humana_no_contexto_da_consu
macao_metafisica_do_sujeito_etica_da_potencia_de_Agamben> Acesso em 11 de agosto de 2019
84

zoe aionos (vida eterna). E o uso dessa noção não teria nada de inocente. O
Filósofo não hesita em classificá-la como uma vida a ser governada (nesse
caso, pela vontade e da educação que lhe é correlata pela delimitação de
outra experiência de pensamento). (FREITAS, 2015, p. 419).

A saber que o fragmento nos remonta ao corpo mestiço, explorável, asseverado


por Agamben enquanto uma ‘vida a ser governada’, ou melhor dizendo capturada. A
questão que se levanta é justamente o que pode gerar o redimensionamento do ato
quanto a ‘outras experiências de pensamento’, visto que a resistência atua justamente
nesse espaço de possibilidades ‘outras’.

3.1 A Forma Transgressora dos Corpos (In)Dóceis

A categoria corpo mestiço a ser abordado nesta sessão da tese, melhor alinha
quando o foco de nosso olhar visualiza a categoria dos corpos (In)Dóceis. Alongamos
nossa mirada para além do olhar acercado de exotismo que, em certa medida é
atribuída aos corpos étnicos da Amazônia. Contudo, percebemos que ainda nesse
obscurantismo criado quanto aos sujeitos étnicos, efeitos da Biopolítica sobre este,
tonalizados de preconceito, violações e subjugo nos faz perceber certo receio quanto
ao assumir-se como tal.
Dizemos dessa maneira, visto que até mesmo nos espaços institucionalizados,
e seus dispositivos de preenchimento cadastral a nós é omitido a opção de sujeito
mestiço. Institucionalmente, assumir-se mestiço é algo ainda incomum e muito menos
passivo de aceite ao convívio social cotidiano. É possível que nessa postura estejam
justamente os lastros biopolíticos de preconceito em assumir-se como tal na dinâmica
étnica amazônica, retratada nos romances do Circum-Roraima. Ao longo desta tese,
temos verificado ressonâncias desse ato alojando-se nos atravessamentos
discursivos das falas das personagens, representações nas escrituras e
acontecimentos historiográficos deixadas nos rastros narrativos produzidos por N.
Macaggi.
Este projeto artístico registra, com recursos da ficção, um período de formação
social da Amazônia fronteiriça, tempo cuja preocupação apontada pelas falas das
personagens era, em muitos casos, manter-se vivo. Um hiato que ficcionalizava a
existência de grupos humanos em dinamicidade constante nos garimpos, nas
fazendas e savanas, cuja memória atuaria no campo ficcional a demonstrar as tensas
85

relações de poder que se mantinham entre indígenas e não indígenas.


Em A vida dos homens Infames (1992), M. Foucault, em um conjunto de textos
em estilo didático e poéticos, nos apresenta relatos sobre sujeitos em infortúnios
tencionados nas relações de poder. Isto nos aproxima dos escritos de Macaggi, cuja
recorrência de corpos mestiços se faz representar no projeto narrativo, como a
remexer práticas naturalizadas como inquestionáveis. Isto causa pequenas fissuras
no conjunto de ordenamento étnico institucionalizado. Ao que podemos verificar, até
este momento, parece-nos que os corpos narrados dos homens e mulheres infames,
profanos (Agamben 2007), provocam e redimensionam suas identidades:

Eu quis que se tratasse sempre de existências reais; que se pudessem dar-


lhes um lugar e uma data; que por trás desses nomes que não dizem mais
nada, por trás dessas palavras rápidas e que bem podem ser, na maioria das
vezes, falsas, mentirosas, injustas, exageradas, houvesse homens que
viveram e estão mortos, sofrimentos, malvadezas, ciúmes, vociferações
(FOUCAULT, 1992, p. 204).

Talvez o que assevere o filosofo francês e que esteja em emergência sejam os


acontecimentos, violentos e preconceituosos, que deixaram inscritos nos corpos
reescrituras que se entrelaçam nas relações artísticas, políticas e sociais
contemporâneas que anunciam o rompimento de fronteiras teóricas, étnicas e
artísticas. Recordemos que N. Macaggi também era jornalista, cronista, poeta e
contista. Nessa linha de entendimento podemos inferir que o discurso usado nos
romances do Circum-Roraima reproduzem o ordenamento e a emergência do que
historicamente lhe condiciona o texto, arquivo de vociferações.
Ao considerarmos o projeto artístico de N. Macaggi, o inscrito nos possibilita
mostrar uma genealogia, o corpo indígena mestiço e (In)Dócil, que rompe com o
descentramento do saber naturalizado como verdadeiro e inquestionável. Ver nos
corpos Insubmissos o rompimento, a possibilidade de fuga, a movimentação contrária
às práticas de subjugo. Isto reativa o debate sobre os subalternos provocando
escapes frente ao saber institucionalizado, que hierarquiza poderes ordinários
(FOUCAULT, 2014, p.13).
Essa guinada epistêmica nos faz confrontar com nossos próprios medos e
traumas. Porém, é a partir desta postura que se afirma a crítica resistente aos
dispositivos de opressão.
86

E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma
do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela
deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não
mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos (FOUCAULT,
2010, p. 347).

Ao pensar a crítica apontada por Michel Foucault podemos alongar a intima


relação que ela passa a ter com o corpo (In)Dócil que estamos discutindo ao longo
desta tese. Entendemos que, se na proposta colonialista adotada na Amazônia, a
mestiçagem agiu enquanto efeito biopolítico, o que os corpos mestiços indiciados nos
romances do Circum-Roraima nos apontam poderia não mais ser o que é/era. Dessa
maneira, é possível provocar-nos quanto a quem são os corpos mestiços hoje?
Indagamo-nos dessa forma, posto que os processos históricos até este ponto
apresentados, construíram corpos capturados pela Biopolítica, efeitos do poder
soberano, mas que não podemos negar que foram forjados também nas micro
relações e resistências, entre elas o próprio ato da escrita, da construção étnica, da
escolha sexual.
Acreditamos que, para chegarmos a uma categoria de corpo (In)Dócil, seja
necessário incorrermos em reflexões outras sobre categoria definida por Foucault
enquanto corpo dócil (2002). Ao se referir ao ato de docilização pelos quais passam
os corpos, Foucault os nomeia de corpos dóceis:

Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de


uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa;
corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada
percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-
o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos
hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de
soldado” (FOUCAULT 2002, p. 162).

Conforme o filosofo francês, os corpos estariam vinculados a um campo


estritamente político. Nesse sentido, os efeitos das relações de poder incidem sobre
ele práticas que os supliciam, os sujeitam, os marcam, os transformam de maneira
silenciosa em corpos cujo caráter vincular-se-ia a força de produção, travestidos de
relações de dominação e/ou exploração. Ao que consta, essa condição torna-se
efetiva frente a sujeição ao meio de produção capitalista. Em relação a isto
entendemos que, nesse conjunto de relações, tornam-se corpos exploráveis, cuja
87

função inicial e atuar enquanto mantenedor da ordinária forma de poder instituído na


relação de soberania, a saber os indígenas e os mestiços nas fazendas, nos garimpos
e na coleta de especiarias da floresta (MACAGGI 212a, 1980, 1984, 2012b).
Segundo o filosofo francês “os corpos só se tornam força útil se são ao mesmo
tempo corpos produtivos e corpos dóceis.” (FOUCALT 1987, p. 28). Visto que a
disciplina e sujeição cria corpos submissos, e dependendo de seu interesse aumenta
ou diminui sua força produtiva de trabalho. O ritmo e intensidade de trabalho o torna
cada vez mais dócil. Mas o que dizer dos corpos que a esse modo de vida não se
ajustam, mesmo que neles estejam a dinamizar sua existência?
É justamente para além da clausura que buscamos dar sentido a vozes que,
apesar de terem sido também capturadas pela Biopolítica, podem nos conduzir aos
insubmissos, pois entendemos que a categoria corpo é elemento de abertura para as
significativas representações da resistência.
Partimos do entendimento da noção de corpo em constante movimentação
sociocultural no intuito de romper fronteiras simbolicamente construídas que elegem
o estigma como ato (GOFFMAN, 1978, p. 06) violador. Para tanto, é necessário
suplantar a percepção forjadora do conceito de raça, classificadora e excludente, que
estabelece lugares específicos para os viventes. Nesse entendimento, a inferiorização
do sujeito através de sinais inscritos no corpo por traços como cabelo, cor da tez,
gênero e orientação sexual fundamentam argumentações discriminatórias,
posicionando e subjugando socialmente ao outro, o excluído da pólis, ainda que nela
esteja.
Segundo Melatti (2007, p. 39) “Se o racismo se fundamenta em critérios
arbitrários para identificar uma raça, então ele está no terreno da etnicidade”. Por este
ângulo, poderemos inferir que o delineamento apresentado parte dos elementos
culturais, cujos artefatos dariam indícios quanto a seus aspectos grupais étnicos.
Em tempos bem recentes a Teoria Queer, na voz de J. Butler (2018), tem
assumido a chave interpretativa de corpo (In)Dócil para os sujeitos corporalmente
provocativos aos ordeiros costumes da família modelada no patriarcado. A
provocação que nos causa é, para além destes corpos, quais outros podem ampliar o
movimento de resistência ao longo dos anos?
O (In)Dócil não pode ser mais entendido pela distorção ideológica que se
apropriou do discurso dos ‘bons costumes’ para atingir o movimento de resistência,
88

que deturpou seus manifestos e classificando-nos como: baderneiros, guerrilheiros,


agressivos, danosos à ordem pública e a moralidade familiar e religiosa. Faz-se
necessário recontar a historiografia a partir de quem sofre o dano. E neste caso, a
forma como os elementos artísticos se articulam para representá-lo, muito contribui
para entendimentos outros sobre os corpos mestiços. A recusa a tais “distorções”’
ideológicas são fortemente enfrentadas pelo significado de ‘per-vertimento’ defendido
por Sarmento-Pantoja, ao afirmar que:

Assim o gesto de perverte melhor se nomina como per-vertimento: o que


verte a norma, a convenção, o hábito, o pensamento ordinário em direção a
outras possibilidades. Sobretudo, perversão como mecanismo que deseja dar
visibilidade ao outro, a partir do excesso de visibilidade, e não como modo de
eliminação ou de opacificação do outro (SARMENTO-PANTOJA, 2012, p.
130).

A autora demarca nossa compreensão de mundo frente a apropriação do termo


‘pervertido’, pois haveria nele um deslocamento semântico no que se refere a
visibilidade do outro, como sujeito construído nos encontros étnicos, demonstra que
distorcer o significado das manifestações contrárias a ordinária social que elege, em
muitos casos, a família, a religião e a escola como espaço para naturalização de sua
ideologia, pode se transformar em ponto de partida para as ressignificações corporais.
Na família são ‘ovelhas negras’; na igreja, ‘os profanadores do pecado’ e na escola,
que antes eram os portadores de necessidade especiais ou os com baixo rendimento
escolar, agora são os “os boiolinhas e sapatões”. Sujeitos que metaforizam os ‘corpos
indígenas mestiços e (In)Dóceis’ que estão dentro das famílias, igrejas e escolas. Tem
eles sinais inscritos no corpo: cabelo, cor da tez, fisionomia e orientação sexual que
não segue a ordinária regra da racialização, do binarismo do gênero, tão poucos das
ortodoxias religiosas e pedagogias do bom comportamento; são eles os matáveis, a
vida nua, (In)Dóceis nas situações de Exceção.
Em conformidade com Sarmento-Pantoja (2012), seria justamente nessa linguagem
criativa, provocativa ao ordenamento da sociedade de controle, que podemos
acompanhar os diferentes dispositivos de silenciamentos, violações e aniquilamentos
serem ressignificados pelo corpo, apropriando-se destes em uma movimentação de
‘per-vertimento’. Na constante dinâmica de ‘contracorrente’ provoca, desajusta e
reformula espaços, ideias e a si mesmo. Nessa fissura, o entre ‘um e outro’ - ‘ele ou
ela’, ‘azul ou rosa’, indígena ou não indígena - que muitos dos (In)Dóceis se veem
89

representar e ajudam a revisar os consignados discursos sobre heteronormatividade


e racialização. Arraigado a esta velada e nefasta captura constroem identidades
outras, reclassificam performances em um conjunto articulado de ordinárias formas
de controle e assujeitamento daqueles que a elas mostram-se subvertidos ou que não
respondam ao seu ordenamento social. O extremo dessa relação é a lógica de
eliminação da “vida politicamente desqualificada” (AGAMBEN, 2002), a morte.
Quanto a arte de controle e governo da vida, há de ser recordado que é
justamente na obra Que é crítica? que Foucault afirma que os modos de governo de
“crianças, exércitos, pobres e mendigos, família, casa, diferentes grupos, cidades,
estados” (Foucault, 2013, p. 384), estaríamos frente as indistintas formas de ação da
Biopolítica. Contudo, o controle exercido nas diferentes formas de atuação, dispara
no sujeito ações contrárias quando atingem sua existência. Neste caso, a resistência
à forma de governo demonstra o ‘não’ querer estar plenamente sobre o governo,
transgredindo suas ordinárias formas de controle. Foucault afirma que as formas de
condução e governo da vida dos sujeitos devem ser questionadas:

Como modo de suspeitar delas, de mudá-las, limitá-las, de encontrar suas


medidas certas, de transformá-las, de procurar escapar dessas artes de
governar ou, de qualquer modo, deslocá-las, com uma relutância essencial,
mas também ao modo de uma linha de desenvolvimento das artes de
governar [...] que eu simplesmente chamaria de a arte de não ser governado,
ou a arte de não ser governado com isso, a esse preço (FOUCAUL, 2013, p.
384).

O fragmento apresenta que o desconfiar das certezas inquestionáveis


desajustam e incomodam a maneira naturalizada de governar. Daí, qualquer forma de
‘escape’ das formas de governos pode nos dar indícios do que Sarmento-Pantoja
(2012) nomeou de per-vertimento, a ‘não’ condescendência e naturalização da arte
de governar. Neste caso, o questionamento provocador sobre as formas e técnicas
de governo, a naturalização do poder e condução da vida, desorienta a ordeira forma
de conduzir a sociedade. Provocá-lo seria como fraturar a ordeira vida docilizada,
expondo um corpo que não obedece às formas naturalizadas e institucionalizadas de
controle.
A saber, o corpo provocador às regras da docilização, quando questiona sobre
seus limites, seu pensar, seu poder, seu fazer, potencializa-se nas ressignificações os
limites ordinários entre a Biopolítica de qualificação e/ou desqualificação do corpo. Daí
90

o filosofo francês “não aceitar como verdade o que uma autoridade nos diz que é
verdade” (Foucault, 2013, p. 385).
A posição que tomamos quanto as dúvidas e desconfianças frente a docilização
do corpo como algo dado é um ganho ao propósito aqui construído enquanto corpo
(In)-Dócil, visto que se desdobra-se como ação afirmativa, resultante da enfática
maneira de posicionamento contrário a naturalização das estratégias de controle.
Segundo Foucault,

[...] se governamentalização é realmente o movimento relacionado à sujeição


individual na realidade de uma prática social por mecanismos de poder que
apelam para a verdade, eu direi que a crítica é o movimento para o qual o
sujeito dá a si mesmo o direito de questionar a verdade concernente aos
efeitos de poder e questionar o poder referente aos discursos de poder.
Crítica será a arte da insubmissão voluntária, da reflexão indócil (FOUCAULT
2013, p. 386).

A saber, o fragmento demonstra que assumir a postura da insubmissão, (In)-


Dócil, expõe as fissuras das verdades dadas nas formas de governo. O corpo
insubmisso operaria então através do questionamento ao que é dado, do desajuste
nos discursos de verdade absoluta, na provocação ao modo de ser, na desconstrução
da ordinária forma naturalizada do que está supostamente pronto. É justamente na
emergência do pensamento dos encontros e atitudes que formatam as subjetividades
que a categoria (In)dócil sustentaria sua afirmativa existência.
Quanto a isto, se recorrermos as interpretações de G. Agamben, poderemos
encontrar uma chave de leitura de grande relevância para o que buscamos. Nessa
linha, os insubmissos padeceriam na zoe, vida desqualificada, tendo apenas a
condição de viver. Ao dinamizar suas vidas na bios, ‘vida politicamente qualificada’
(AGAMBEN, 2002, p.10), atuam provocativos no espaço para os docilizados e
politicamente aceito. É justamente nesse forma de atuação, enquanto corpo
politicamente provocador inserido na bios, que verificamos reverberações da tarefa
de não se permitir ser governados por completo.
Em certa medida, a captura dos corpos resistentes pela Biopolítica é eficiente
que o naturaliza através de dispositivos estratégicos e acaba por ser docilizados,
principalmente pelo discurso identitário, por vezes forjado no reconhecimento de
direitos. Nestas práticas, vemos a afirmação do que entendemos por “arremedos de
democracia das identidades”, pois transitam em um discurso que supostamente inclui,
91

mas que ao mesmo tempo renega à todas, típico da Biopolítica engendrada na versão
mais recente do capitalismo, o neoliberal. Poderíamos inferir a existência de certa
“higienização” de identidades. Existiriam aquelas já capturadas pelo poder ordenador,
dando-lhes, com certa ressalva, acesso à vida politicamente qualificada, e as
identidades ainda negadas, as que padecem na vida desqualificada (AGAMBEM,
2002).
A questão levantada não difere quando nos referimos ao ‘ser intermediário’
(MATTA, 1986), ‘inominável’ (BUTLER, 2018). Nos damos conta que os paradigmas
excludentes ainda permanecem agindo, capturam e tentam o anulamento de maneiras
distintas. É necessário indagarmo-nos constantemente quanto a isto, principalmente
ao trazemos a luz questões tão delicadas e provocadoras, entre estas a mestiçagem
como processos de encontros étnicos. Talvez seja o momento de reivindicarmos
termos que desestruturem classificações e rotulagens, descolonizadores baseados no
‘per-vertimento’, conforme apontado por Sarmento-Pantoja (2012). Mais que uma
identidade, necessitamos de identificações que sejam pertinentes e relativas com
aquilo que nos é significativamente singular. Talvez estejam nessas provocações a
recorrência de personagens mestiços dos romances do Circum-Roraima.
O velado processo de agenciamento que tenta anular corpos (In)Dóceis ao
longo da história é notório. Contudo, não podemos negar que, entre outros tantos, os
indígenas, os negros, os gays, transsex afirmam-se entre tantas outras vozes
insubmissas contemporâneas. Apagar a memória sobre/destes corpos (In)Dóceis nos
remete ao estudo feito por Neves e Cardoso (2017) quanto ao ensaio fotográfico
efetuado por Cláudia Adujar:

As epidemias entre os Yanomami, denunciadas pelas fotografias de Cláudia


Andujar atestam a administração de um necropoder, são consequências
imediatas do plano de integração da região e da falta de proteção à saúde
desta sociedade. Se nos campos de concentração nazistas os judeus eram
sumariamente assassinados em nome de uma guerra que em 1945 chegou
ao fim, nas fronteiras da Terra Yanomami não havia um momento de guerra
factível de se alternar com a paz, não houve matadores visíveis, mas o próprio
governo brasileiro criou as condições para deixá-los morrer (NEVES;
CARDOSO, 2017, p 140).

A citação, além de demonstrar a excessiva força em aniquilar o outro e não


possibilidade de atribuí-lo visibilidade, reverbera a leitura que ambas fazem da
necropolítica (MBEMBEM, 2006) quanto a questões envolvendo políticas “públicas” de
92

assistências aos povos ancestrais. A Biopolítica do apagamento nos conduz a


relacioná-la a frase “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2002, p. 287) ao relento,
cintilações das experiências traumáticas dos encontros entre etnias, principalmente
em situações de Exceção.
Justamente nas tensões desses encontros, movimentação contrária ao
apagamento, que podemos buscar o sentido das reflexões de G. Agamben (2004) ao
enfatizar a capacidade criativa do sujeito. É justamente nesse viés que encontramos a
compreensão da resistência como exercício constante do humano. Recordemos que
a esta insurgência Roberto Esposito (2005, p. 12) defende uma política que eleja a vida
enquanto potência.
Nessa linha de pensamento discutidas até aqui, se as narrativas romanescas
produzidas por Nenê Macaggi apontam para formas de narrar o corpo, então, qual o
lugar do corpo indígena mestiço, nos processos de tensões entre o mundo ancestral
e o urbano?
Ao ransitar entre o campo e a cidade seria ele quem representa a
contemporânea imersão dos elementos ancestrais ao mundo urbano, ao mesmo
tempo é ainda ele quem possibilita a situação inversa. Mas, essa relação não é tão
simplista assim, pois esse transitar não o franquie acesso aos elementos que
compõem a ancestralidade, tão pouco dão-lhe prestígio ao mundo urbanizado. Nesse
conflito angustiante, o corpo indígena mestiço flutua entre mundos que lhes
possibilitam a porta de entrada em situação de “quase aberta”. O corpo indígena
mestiço ressignifica os espaços, tanto indígena e não indígena, dá-lhe mobilidade,
recriando-se na própria marginalidade de ‘vida explorável’ a que foi submetido.
Provocativo, traduz a forma contemporânea de movimentação social
demonstrada nos romances. Mesmo capturado na Biopolítica é re-negado (isso
mesmo, com hífen, pois este corpo mestiço indígena torna-se (In)Dócil por ângulos
distintos e em espaços diferentes: tanto na comunidade de seus ancestrais quanto no
espaço citadino) por ser o corpo que traduz a escrita das histórias de barbárie e
silenciamento de povos ancestrais. É ele a própria forma de narrar a resistência
contemporânea, o próprio indício das mobilidades da vida em constante escape ao
poder soberano, daí a percepção que sua presença incomoda e desajusta a ordinária
forma de rotular os (In)Dóceis.
Pois, se “em sentido próprio denomina-se àquilo que, de sagrado ou religioso
93

que era, é devolvido ao uso dos homens. ‘Profano’” (AGAMBEN 2007, p 65), então
asseveramos que a potência do corpo mestiço, flutuante, ‘Profano’, mesmo nos
processos de exclusão em que é constantemente submetida atua provocador ao
poder soberano. Em O uso dos corpos (2017), Agamben novamente retoma este
debate. Segundo ele:

Uma vida, que não pode ser separada de sua forma, é uma vida para a qual,
em seu modo de viver, está em questão o próprio viver e, em seu viver, está
em jogo sobretudo, seu modo de viver. O que significa essa expressão? Ela
define uma vida – a vida humana – na qual cada um dos modos, dos atos e
dos processos do viver nunca são simplesmente fatos, mas sempre e
sobretudo são possibilidades de vida, sempre sobretudo potência
(AGAMBEN 2017, p.233).

O que torna o modo de vida potência, cintilado pelo fragmento citado, é


justamente o re-pensar entre as oposições e as formas de representação política da
vida, pois ao tratarmos de formas-de-vida referimo-nos ao ato político que ela pode
assumir. Neste caso, reafirmamos que o corpo (In)Dócil é esta forma de vida em
escape também apontada por Foucault (2013).
Em se tratando da região do Circum-Roraima, Nádia Farage (1991, p. 121)
enfatiza a importância dos mestiços nas frente de batalha na região do Rupinuni,
pertencente ao Circum-Roraima. Ressalta ainda que toda a larga região da tríplice-
fronteira foi espaço de intenso contato ao longo da história, gerando tensões, conflitos
ideológicos e significativos encontros culturais. Justamente nesses encontros e
deslocamentos entre campo e cidade demonstram que o corpo mestiço, possa
traduzir leituras da dinâmica Amazônia contemporânea. Quanto a isto, os estudos de
Boaventura de Sousa Santos (2000) afirmam que as fronteiras territoriais têm sido
rompidas e o tensionamento entre culturas traduziriam os mais recentes
acontecimentos contemporâneos.
Nossa compreensão quanto a corpo indígena mestiço, parte de que a
condicionante de flutuante entre a ancestralidade e o mundo urbanizado moderno é
importante para que entendamos a definição de hibridismo cultural (CANCLINI 2008),
forma corporal de narrar a sociedade contemporânea. Dissemos assim, pois o corpo
mestiço que transita entre estes dois espaços constitui sua existência enquanto corpo
provocativo no espaço narrado. Há de ser mencionado que estas movimentações das
personagens apontadas nos romances, representam indícios históricos há muito
94

negados. O corpo (In)Dócil, entendido como processo, não apenas das dores
traumáticas causados pelos violentos encontros representados nos romances, mas
também dos gracejos e amores incondicionais que não reconhecem fronteiras de
gênero e raça.
O corpo indígena mestiço, para além dos encontros que antecedem a moderna
civilização, encontraria na dinâmica sociedade amazônica setentrional forte
representação do trânsito entre o sagrado da ancestralidade dos povos originários e
as mudanças na paisagem trazidas pelas formações arquitetônicas das metrópoles, a
exemplo de Belém, Manaus, Maués, Boa Vista e Santa Elena de Uairém-VE
(MACAGGI 2012a, 2012b; 1980; 1984). Carrega consigo os constantes conflitos das
incertezas oriundas das Biopolítica desenvolvimentistas instaurada na Amazônia.
Construir um pensamento do corpo indígena mestiço como categoria (In)Dócil
perpassa não apenas por sua presença e forma singular provocativa de insubmisso,
mas também reconhecer nele vozes outras como os negros, prostitutas, gays e
transsex pobres, os indígenas e suas constantes lutas em romper com estereótipos
historicamente inscritos, a ferro e fogo, em seus corpos. Além disto, ver neste corpo
as reverberações da biopoder que elimina áreas de florestas, rios, lagos, em alusão a
necropolítica que aniquila pequenos agricultores, ambientalistas e indígenas
instaurando situações de Exceção enquanto regra no espaço Amazônico, narrado nos
romances.
Desta feita acreditamos que o corpo indígena mestiço atua nos romances como
categoria (In)Dócil, escape e alternativa transgressora, atuando enquanto fronteira,
possibilidade provocativa aos limites ordinários dos processos de governabilidade.
Demonstra ainda que haveria um campo de força que atua na própria dinâmica da
Biopolítica agindo para impedir que sejamos governados por completo, possibilitando
práticas de insubmissão, de questionamento, de rebeldia, de (In)Docilidade. É o corpo
atuante na movimentação de ‘per-vertimento’ (SARMENTO-PANTOJA 2012, p. 130).
Verter a regra no sentido de entender a dinâmica ressignificação efetuada por
Macaggi a partir dos encontros, mas não aceitar a forma violadora como este é
implementado, posto que naturalizar a violência e a banalização da vida humana,
frente ao interesse do poder soberano deve ser entendido como condicionantes de
Exceção, a vista do que é narrado nos romances do Circum-Roraima. Na tentativa de
alinhaves que possam fortalecer nossa busca, o tópico a seguir apresentará
95

elementos da configuração sobre o corpo mestiço com vista a compor apontamentos


que contribuam para nossa busca.

3.2 Sobre Corpos Mestiços

Dadá-Gemada já se acostumara aos maltratos, aos trabalhos excessivos.


Aprendera isso com os conselhos da mãe, quando, na Nuvem Branca, pondo-
a no colo, fazia-a olhar o céu e lhe dizia: - Olhe, minha filhinha, é ali onde
mora Deus e Jesus Cristo está ao seu lado, porque é filho d’Ele. Jesus Cristo
é amigo das crianças, perto d’Ele está sua Santa Mãe, a Virgem Maria. E
perto da Virgem sabe quem está, Doçura-Amargura? E São Francisco, amigo
de todos os bichos da terra, como eu quero que a minha Dadazinha seja.
Olhe Jesus e São Francisco sofreram muito aqui na terra e nunca se
zangaram, se revoltaram contra quem judiava deles. E perdoaram aos seus
inimigos. Por isso foram pro céu e estão felizes para sempre lá. É que quando
a gente sofre com paciência e resignação aqui na terra, ao morrer vai
direitinho pro céu (MACAGGI 1980, p. 72).

A docilização dos corpos apontados pelo fragmento nos indicia quanto a


produção e naturalização da obediência enfatizada pelo temor ao Deus cristão. Para
além dos processos que institucionalizaram os submissos, a citação também nos
conduz pensarmos em uma Biopolítica teológica ressignificada nas narrativas em
questão que reverberam efeitos traumáticos gerados a partir dos encontros étnicos
frente a substituição de elementos culturais dos povos originários. Segundo o monge
beneditino Alcuino Meier (1931, p. 2)28, em missão evangelizadora pelo Circum-
Roraima destaca a disputa entre adventistas e católicos na fronteira Brasil/Venezuela
para batizar e instalar comunidades cristãs cujos efeitos são justamente as mudanças
nas relações cotidianas em conformidade com o que é narrado por Macaggi.
Os lastros históricos têm demonstrado que as sucessivas práticas de
preconceito e violações tem sido, em muitos casos, a forma de afirmar a presença do
poder soberano. Em se tratando da Amazônia as diferentes formas de instaurar
desumanização dos corpos étnicos em favor da obediência ao Deus cristão,
coadunando com a maquinária do extermínio e substituição de práticas culturais
ancestrais, daí os romances nos ajudarem a perceber a Amazônia, em que seus
acontecimentos internos, alinha-se a noção de catástrofe apontado por Sarmento-
Pantoja (2014, p. 169).

28 Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/viagem-missionaria-de-d-


alcuino-meyer-por-trechos-do-alto-rio-branco-e-da> Acesso em 23 de agosto de 2019.
96

Quanto a esta questão, Achille Mbembe, a partir dos referenciais dos estudos
de M. Foucault cunha o termo Necropolítica, que bem problematiza os acontecimentos
historiográficos violadores e aniquiladores. Vejamos,

La caracterfstica más original de esta formacion de terror es la concatenacion


del biopoder, del estado de excepcion y del estado de sitio. La raza es, de
nuevo, determinante en este encadenamiento. En la mayor parte de los
casos, de hecho, la seleccion de razas, la prohibicion de matrimonios mixtos,
la esterilizacion forzosa e incluso el exterminio de los pueblos vencidos han
sido probados por primera vez em el mundo colonial (MBEMBE, 2006, p 36).

Na abordagem feita pelo autor ganha força e sustentação o discurso das


ciências biológicas e da medicina, imprimindo maneira historicamente específica de
escrituração sobre o corpo através de diagnósticos clínicos e de raças superiores.
Mas, para além desta questões levantadas por Mbembe (2006) é possível verificar
que o fragmento aponta ainda as práticas de extermínio cujas raízes profundas
demonstram rasgos históricos de atos de violações e aniquilamento, dando-se
principalmente através do “la seleccion de razas, la prohibicion de matrimonios mixtos,
la esterilizacion forzosa e incluso el exterminio de los pueblos vencidos”, e não só. O
sistema colonialista apontado por ele é justamente o rasgo temporal cuja severa
atuação de aniquilamento e subjugo sobre o corpo provocativo, subalternizado,
demonstrará o que ele define enquanto ‘necropolítica’. Os indícios desta prática serão
fortemente marcados nos desdobramentos sobre “raça” e “gênero”, coadunando com
o que é ressignificado nos romances do Circum-Roraima.
Para Munanga (2004) o caráter ideológico que essa proposta assume enquanto
representação do biopoder, pois ratifica a maneira desigual de tratar a vida humana a
partir da referência da cor da pele, determina ainda a condição socialmente atribuída,
quem pode ou não ser explorável, matável. Essa forma de justificar as desigualdades
ganha força enquanto manutenção do poder em vigência, ancorando-se também em
fundamentos discursivos antropológicos (SEYFERTH 1995), filosóficos (AGAMBEN
2007) e principalmente da medicina (FOUCAULT 1988), reafirmando práticas que
naturalizam a desigualdade social pautada em questões sexuais, de raça e/ou região.
Segundo Butler (2018), assim como Foucault (2010), essa forma discursiva
teria iniciado entre o século XVIII e início do XIX transformando o corpo para atender
aos modos de produção do capitalismo. A investida fundamentou as desigualdades
97

de gênero e de categorias sociais, construindo discursos de que só haveria uma


orientação sexual a ser seguida e assumida. O referencial de heterossexualidade,
invisibilizou as outras formas e opções que não se ajustassem ao ordenamento
institucionalizado. Esse aspecto também se alinha ao pensamento evangelizador
cristão narrados nos romances do Circum-Roraima.
Agregou-se a isso o discurso de que as representações da aparência física do
corpo dariam a descrição das condicionantes sociais, indícios do que seria
socialmente aceitável, explorável ou não (AGAMBEM 2002, p. 11). Põem-se em
xeque o corpo insubmisso (FOUCAULT, 2014) enquanto algo a provocar a ordinária
da sociedade formada no binarismo - homem ou mulher, preto ou branco, zoé e bios
- enquanto dispositivo de exclusão (AGAMBEN, 2009).
Neste sentido, a arte muito contribuiu enquanto ressignificação das relações de
poder instituídas em favor do soberano. Os romances do Circum-Roraima apontam
para as relações asseveradas anteriormente, cujas escriturações históricas
verificadas em Macaggi trazem indícios quanto a problemática evidenciada
anteriormente por Mbembe e Foucault. Vejamos,

Mais duas crianças aparecem na porta.


- venha cá, cunhantã formosa. Como se chama você? E esse outro aí?
- Me chamo Zeca – respondeu a cunhantã formosa. E esse é o Odeir.
- Zeca? – estranhou o rapaz.
- Sim, Zeca – respondeu dona Maria, meio sem jeito. A cunhantã é curumim.
Não carga da mania de vestir saia, se pinta como mulher, pôe fita no cabelo
e só anda onde a mulherada anda. O senhor não é a primeira pessoa que
toma o Zeca por menina. Bem feito Zeca. Você ainda vai sofrer muito por
causa dessa mania. Francamente, se eu fosse homem e alguém me
chamasse de mulher, por Deus que eu morria de vergonha – falou dona Maria
(MACAGGI 2012b, p. 157).

A sexualidade também atua no fragmento enquanto dispositivo de


normatização e conduta social. O que contradiz o ordenamento é motivo de ‘vergonha’
e ‘sofrimento’. É possível ainda visualizarmos que o corpo passa a ser alvo das
inscrições veladamente preconceituosas e repressoras sobre o corpo que se graceja
homoafetivo.
Ao longo dos tempos a afirmação desse discurso trouxe efeitos significativos
para o século 20, tendo em vista a afirmação das técnicas de controle através da
docilização dos corpos para atender a crescente industrialização das cidades e do
capitalismo. Há de ser ressaltado que os efeitos dessas mudanças terão alcance
98

sistemático na sociedade como um todo, levando-nos à concepção de que as práticas


de biopoder, seguindo a dinâmica das mudanças assumiram a condição de
Biopolítica.
Quanto a esse aspecto Agamben (2007) nos diz que é justamente a condição
de ‘vida nua‘, que nos apontam escriturações históricas quanto aos efeitos que
incidem no corpo.

Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a


contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo
menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no
centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que
reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim
(segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é
dado verificar nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana
imperii. (AGAMBEN 2007, p. 14)

Considerando que Agamben nos traz a categoria corpo como escritura das
relações de poder, poderíamos então, partir do entendimento de Biopolítica aplicada
ao uso do corpo nas propostas desenvolvimentistas que instituíram o Estado-nação
ao logo do século 19 e que, a partir das reverberações também no século 20, é
possível verificar as recorrências quanto ao corpo mestiço como ponto de ocupação
principalmente nas então colônias que passam pelo processo de criação do Estado-
nação na América Latina.
Emanuel Mariano Tadei (2002), ao tratar desse assunto, localiza a experiência
brasileira quanto à formação do Estado-nação e seus desdobramentos em razão do
corpo mestiço. Afirma ele que o corpo mestiço seria no Brasil o efeito de ‘dispositivo de
poder’ usados para a substituição dos escravos negros.
Em certa medida o pensamento de Tadei é coerente, uma vez que se apoia na
reflexão foucaultiana em que relações de poder exercidas a partir da referência de
raça são marcantes na construção do que se chamou de ‘identidade nacional
brasileira’. Segundo ele, o antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, em Casa grande e
senzala (2006), teria contribuído fortemente para naturalização desse entendimento
de mestiçagem, visto que a postura do escritor foi a de aceitar o fenômeno como ato
sumariamente consumado, sem apontar indícios outros, neste caso os efeitos do que
discutimos enquanto Biopolítica. Tadei provoca ainda mais ao comentar o sistema de
colonização portuguesa:
99

[...] essa tendência atribuída por Freyre aos portugueses não se aplica aos
casos da colonização portuguesa da Índia e da África. Nessas regiões, que
apresentaram outras formas de colonização, não ocorreu a mestiçagem como
aqui. Se ela fosse uma marca registrada dos colonizadores portugueses, por
que não ocorreu também em outras colônias mantidas por Portugal? Isso nos
faz pensar que a mestiçagem que ocorreu em larga escala no Brasil deve ser
analisada tendo em vista o projeto de colonização aqui desenvolvido pelos
portugueses. (TADEI 2002, p. 03)

Ao levarmos em consideração a reflexão do autor, é possível alongar o


entendimento sobre a mestiçagem para além de questões meramente biológicas,
neste caso interpretando-a enquanto dispositivo de poder. Mencionamos ainda que
tais práticas teriam demandado um conjunto de dispositivos baseados em construções
de discursos, planejamento de ações, criações de leis emergenciais e instituições.
Poderíamos interpretar este ato à maneira de Michel Foucault, em Nascimento da
biopolítica - 1978-79 (2010), quando aponta a docilização dos corpos com o objetivo
de transformá-los mestiços produtores de uma nação em construção.
Contudo, uma interrogação nos provoca: se o corpo mestiço em construção
representaria práticas Biopolítica, qual seria seu lugar nesse processo?
A ideia defendida por Tadei fundamenta-se inicialmente em “um provérbio
recolhido pelo jesuíta Antonil, no século 17. Diz ele que: "O Brasil é o inferno dos
negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos" (ANTONIL apud TADEI 2002,
p. 4) cuja reflexão leva ao entendimento de que o corpo mestiço seria o mais apto aos
trópicos latinos. Além desta passagem, várias outras, no texto de Tadei, vão
conduzindo a leitura sobre a construção do dispositivo corpo mestiço, defendido pelo
autor.
Em um outro giro de entendimento, poderíamos dizer que Tadei (2002) nos
apresenta a confirmação de que o corpo mestiço se tornou elemento de ocupação há
bastante tempo e, principalmente, o delineio deste enquanto emergente
contemporâneo. Contudo, devem ser enfatizadas as diferentes possibilidades de
alongamento das reflexões. O que não podemos negar, e neste ponto concordamos
com Darcy Ribeiro (2015, p.327), é que se o processo de mestiçagem se configurou
enquanto uma recorrência no novo continente, bem como na região do Circum-
Roraima, até certo ponto mascara a marginalidade étnica emergente que se torna
visível na dinâmica social da colônia. Para além disto, entendemos que afirmaria a
100

presença do corpo mestiço, a partir do dispositivo que o rotulou como ‘pardo’ no Brasil,
enquanto mais uma categoria a figurar nos grupos marginalizados, hierarquizados
socialmente.
Há de ser reconhecida a reflexão que põe em xeque a mestiçagem como uma
proposta Biopolítica, assim como pensada por Kabengele Munanga (2008) quando
afirma que a mestiçagem seriam a política de branqueamento das etnias outras. O
antropólogo afirma isto fundamentando que o processo de dominação implementado
no sistema colonial brasileiro não contaria apenas com a força bruta do negro e todo
o aparato ideológico que representou para afirmar e justificar o pensamento
‘desenvolvimentista’, mas também nas estratégias que garantiram sua permanência
e eficácia no cunho administrativo, político, social excludente e preconceituoso.
Em entrevista prestada à revista Estudos Avançados, fevereiro de 2004, o
antropólogo da USP, Kabengele Munanga, discute a dificuldade de identificação do
“negro” no Brasil. Ao nosso ver esta mesma problematização pode ser aplicada o
quanto hoje no Brasil é difícil se assumir e identificar-se como Mestiço, talvez pelo
próprio estigma construído quanto ao sujeito desprovido de identidade própria, fora
das categorias de etnias socialmente valoradas, ou mesmo pertencente a uma
categoria, por assim dizer, de ‘vida politicamente desqualificada’ (AGAMBEN 2002, p.
11).
Mas, retomemos a questão da ‘identificação do ser negro’ discutidos por
Munanga, para que a partir do que ele aponta possamos alongar nossa reflexão. A
saber:

a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de


negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e ideológico,
mas não um conteúdo biológico. Politicamente, os que atuam nos movimentos
negros organizados qualificam como negra qualquer pessoa que tenha essa
aparência. É uma qualificação política que se aproxima da definição norte-
americana. Nos EUA não existe pardo, mulato ou mestiço e qualquer
descendente de negro pode simplesmente se apresentar como negro.
Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa pode se
declarar como negro (MUNANGA 2008, p. 52).

A reflexão que o autor nos traz é relevância para o que propomos, porém
delimita o ideal do binarismo: primeiro por nos apontar que a delimitação do corpo do
indivíduo apenas pela aparência da pele é extremamente frágil; segundo, por afirmar
que a construção ideológica que o conceito de raça traz é, também, excludente. Nesse
101

sentido as violações empreendidas nos romances do Circum-Roraima podem


reverberar a barbárie apontada por Sarmento-Pantoja (2014) instituída na Amazônia
tendo por base essa construção ideológica.
É possível pensarmos a partir dessa reflexão trazida por Munanga (2004) em
grupos de seres humanos frente aos processos de encontros culturais entre etnias
outras, binaristas? Quanto a isto, Macaggi nos dá indícios:

Em Boa Vista muitos sabem ler e escrever, porque foram criados por branco.
E fora têm mostrado que bugre não é tão burro como dizem. Veja Dorval de
Magalhaes, filho de uma índia, Maria Jaime, flôr de bondade. Veja Rondon,
grande general, corajoso, também, dos Borôros de Mato Grosso. E muitos
outros em todo Brasil. Aqui é que não se dá valor aos índios. (MACAGGI
2012a, p. 142).

Seguindo esta base, podemos então afirmar que o corpo, amazônico,


emergente nas narrativas macaggianas, decorrente do contato entre os povos seria
uma transgressão ao pensamento binário. Nesse sentido, assume ele, o corpo
mestiço, um status político de extrema complexidade para se discutir sobre questões
relativas a ideologia da racialização. Inferimos que, o antes, corpo biologizado,
pertencente a “vida politicamente desqualificada” (AGAMBEN 2002, p. 10) agora
transita, provocativo e desajustador dos ordenamentos, enquanto sujeito histórico e
político, como evidenciado no fragmento textual de Macaggi.
Visto agora por este ângulo, podemos pensar não em um corpo aglutinador e
harmonioso entre as etnias, mas forjado nas tensões, provocativo e desajustante,
processo de barbárie e dupla opressão. A primeira, tendo em vista a escrituração
histórica, em muitos casos, da exploração sexual da mulher subalterna; a segunda,
pela própria condição que lhe é atribuída de não ter identidade definida. É o corpo
mestiço um fronteiriço, sem delimitações, provocador do pensamento ordinário que
envolveria o branco, dono das fazendas, e o indígena; o corpo perturbador do
ordenamento racial e social.
Este corpo historicamente forjado na arbitrariedade influi e desconstrói a ideologia
de raça, pois se não há identidade definida para este corpo provocativo, então qual o
sentido de atribuir identidade aos outros se a este lhe é negada a sua?
Se assim for, também carrega forte teor ideológico o discurso de identidade,
que define e marginaliza corpos que supostamente não apresentam identidade
definida pela Biopolítica; opera ainda de maneira excludente a ponto de pôr em
102

evidência o corpo mestiço como mais um desprovido de identidade e fora da “vida


politicamente qualificada”.
Ao pensarmos por este ângulo, os dispositivos que agora regulamentam o
corpo mestiço enquanto fronteira, ‘ser intermediário’29, provocativo às propostas que
definem e ordenam o pensamento racialista, contrariam a sociedade forjada no
binarismo, então todo aquele sujeito oriundos desses encontros estariam vinculados
à derivação, menosprezo.
Considerando este ponto de vista, estamos frente a corpos mestiços
transgressores, corpo em processo de encontros étnicos, que, mesmo tendo sido
capturados Biopolítica, fazem-se presentes na dinâmica social e artística, a exemplo
das personagens nos romances do Circum-Roraima. Atuam “entre” as “raças” e seu
conjunto de identidade demarcada. Dessa maneira, qual o lugar desse corpo mestiço
na contemporaneidade e, neste caso, no campo artístico?
Quanto a esta provocação, K. Munanga no livro ‘Rediscutindo a mestiçagem
no Brasil: identidade nacional versus identidade negra’ (2008) constrói um conjunto
de argumentos que nos levam a observar que o ‘ser intermediário’ carregaria em si, a
escrita de uma história de violações que se deram na construção social das Américas.
Desprovido dos direitos que são inerentes aos brancos e não identificado como negro
cativo ou o indígena, é o corpo mestiço o indolente que vagará provocando o
ordenamento social nas colônias latino-americanas (MUNANGA 2008, p. 38).
É possível que este ‘corpo fronteira’, além de expor historicamente o
pensamento racialista nas Américas, denuncie ainda a própria condicionante da
desigualdade enquanto grupo social categorizado como inferior. Contudo, esse
mesmo grupo socialmente provocativo refletiria a própria condição de explorável a que
os povos originários foram submetidos nas Américas.
A Revista da USP, Cadernos de campo (2006) traz a entrevista de Márcio
Goldman e Eduardo Viveiros de Castro, ambos professores da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), e discutem aspectos da categoria em questão. Na
oportunidade, os pesquisadores apresentam uma ferramenta de diálogo intelectual
vinculada ao cyber espaço. Nela, as contribuições para a produção de um único texto
possibilitam acréscimos e/ou retirada daquilo que se apresenta incoerente com o que

29 Vide Matta (1986, p. 43).


103

propõe a temática do texto base. O que nos chama a atenção é a mescla, colagens
que se juntam em um conjunto de linguagens. Para além disto, a pergunta é quem seria
o autor e se isto importaria, visto que resulta de texto assinado por diferentes mãos?
Esta alusão à plataforma idealizada por Viveiros de Castro apresenta a tese
sobre o quanto nossas vidas estariam entrelaçadas por metáforas como esta, que
apontam ainda para as relações estabelecidas no campo das artes. No mesmo texto
da entrevista, Viveiros de Castro discute a questão identitária de maneira provocativa.
No tópico ‘Identidade, isso pega?’ ele nos chama à reflexão:

Vejamos, por exemplo, o caso clássico do Nordeste, dos índios “emergentes”


do Nordeste. Trata-se de um paradoxo do ponto de vista conceitual: os índios
do Nordeste são “mestiços”, eles são a encarnação viva da anti-idéia de índio
puro, com tudo o que há nela de racista, essencialista, culturalista etc. Desse
modo, o índio do Nordeste é um índio bom, no sentido metafísico da palavra,
pois estaria encarnando a essência da não essencialidade, a essência do
não-culturalismo (CASTRO; GOLDMAN, 2006, p.12).

O fragmento é provocador no sentido em que aponta a questão da


‘essencialidade’ como algo racista, ainda no que se refere ao reconhecimento da
Comunidade indígena Pancararu, no momento da luta por sua afirmação. O ‘ser
mestiço’ fez jus à implementação da etnia, contudo, a partir do momento do
reconhecimento da comunidade pelo Estado, o ‘ser mestiço’ passa a não mais fazer
parte daqueles que só podem ter seu reconhecimento a partir da condição de
essencialidade. Estamos frente a uma dialética marcada pelo rompimento das
ideologias pautadas na essencialidade em que pese a provocação causada pela base
de identificação ancestral requerida pelos Pancararu, o que nos leva a verificar que
tais ideologias de racialização fragilizam-se frente ao dinamismo da sociedade
contemporânea.
O corpo mestiço então figura em uma dialética de fronteira na busca daquilo
que melhor o identifica e o constitui enquanto sujeito histórico de suas relações
socialmente constituídas. Ganha força não a condicionante de “ser”, mas a
dialeticidade do que entendemos por “sujeito intermediário”, o corpo mestiço,
dinamizador do rompimento da proposta essencialista classificadora e
preconceituosa. Mesmo amparado pela noção de pertencimento, transita entre
identidades que lhes são negadas. Nas tensões constantemente conflituosas que
disso emerge estará impressa no corpo mestiço sua ‘vida politicamente
104

desqualificada’ (AGAMBEM 2002, p. 11), melhor dizendo, ‘explorável’ e/ou ‘matável’.


É justamente esse corpo provocativo, desconcertante e incomodador que
delineia sua emergente corporeidade (In)Dócil. Em si, podemos entender que nos
romances dos Circum-Roraima, o corpo mestiço representa o rompimento das
fronteiras delineativas da proposta ideológica essencialista instituída pelo Estado-
nação. Porém, ainda que sua presença seja recorrente na dinâmica dos enredos
narrativos, sua condição de marginalidade ainda permanece.
Segundo Viveiros de Castro (2006), haveria um constante modismo nos
discursos sobre identidade. Isto teria se naturalizado de maneira tão intensa que
poucas vezes temos nos perguntado o “por quê”. O autor afirma que esse discurso
representaria o mascaramento de práticas de opressão historicamente instituídas cujo
discurso da ‘democracia racial’ tenta mascarar.
A grande questão levantada pelo autor, na mesma entrevista, é justamente o
preço social que é pago pela naturalização do discurso excessivo sobre a chave da
identidade ‘qualificadas’, visto que agregar toda forma de resistência ao artifício da
identidade é perder de vista que reconhecer direitos não estaria engessado apenas à
condição institucionalizada de ser indígena, negro, branco, homem ou mulher. O
debate abrange questões que envolveriam a desestabilização das práticas
essencialistas, excludentes e preconceituosas. Viveiros de Castro é mais provocativo
ainda ao indagar:

Por que é preciso passar por processos de reconhecimento como índio ou


quilombola para que se tenha o direito de viver do jeito que se quer? É assim
que a identidade pega! Ninguém adere por “conscientização” e nós sabemos,
histórica e etnograficamente, como é que a identidade pega: ela é aceita e
incorporada por falta de opção! (CASTRO; GOLDMAN, 2006, p. 13).

É possível que nesta construção teórica apontada por Viveiros de Castro


estejamos não com ‘falta de opção’, mais sim com um excesso de práticas e discursos
que naturalizam o pensamento essencialista delimitador, violentamente excludente.
Pensamos por este viés tendo por base a noção de Biopolítica enquanto foco de
análise que vem apontando entendimentos outros sobre a construção sistemática de
ações veladamente opressoras.
Nessa mesma linha de entendimento, à qual alude a Biopolítica, Viveiros de
Castro aponta outra operacionalidade nas relações de poder. Por esse viés o autor
105

vincula a naturalização da identidade essencialista a mais um desdobramento das


ações de controle. Vejamos:

Toda identidade supõe uma entidade, toda identidade engendra uma


entidade que vai administrá-la segundo o modo de constituição e
funcionamento do Estado. Porque uma das maiores e mais pérfidas
habilidades do Estado é sua capacidade de convencer todo mundo de que a
única maneira de enfrentá-lo é assumindo sua forma (CASTRO; GOLDMAN,
2006, p. 13)

Mesmo que assumamos a proposta que movimenta as ações de controle do


Estado, a reflexão nos leva a reconhecer que se foi capturado, assumido pelo Estado,
é sinal que a resistência age enquanto forma provocativa e desestabilizadora, forçando
o reconhecimento por meio de dispositivos de captura, mesmo que isto não agrade
ao poder soberano.
Desta forma é possível que a presença do corpo mestiço, recorrente nos
romances do Circum-Roraima, seja a provocação que age enquanto resultante do
encontro de identidades definidas e supostamente bem delimitadas. Talvez se
iniciássemos uma ação efetiva e profunda de descolonização do entendimento de raça
possamos chegar ao entendimento para além da noção de que a mestiçagem, no
campo social e artístico, represente hoje as políticas do vencedor.
Pensamos por este viés, pois se é a partir do século 19 que o projeto de
modernidade capitalista se instaura nas colônias - principalmente latino americanas,
e neste caso o Brasil, tendo em vista uma cartografia de afirmação da expansão do
nacionalismos, justificando ainda a afirmação do desenvolvimento econômico das
ações do capitalismo frente ao suposto ‘atraso nacional’ - é justamente nos vestígios
impressos nos corpos que podemos encontrar as inscrições da resistência.
Pensando pelo viés da resistência é possível encontrar chaves de
entendimentos outros, visto que os laivos históricos de preconceito se reproduziram
nas artes e apontavam momentos de intensas violações, de ‘desqualificação’ do outro.
Macaggi bem assevera a vida nua, mestiça, ‘politicamente desqualificada’ (AGAMBEN
2010, p. 11) na voz do narrador:

A cabeleira, espessa, lisa, negra e comprida nas mulheres, fede a caracu de


boi ou a brilhantina barata. Todos tem a pele boa e de cheiro característico,
misto de fumaça, peixe moqueado e sujeira. Sempre tem piolhos, mas sua
pele jamais é espinhada.
106

[...] mulheres, fede a caracu de boi ou a brilhantina barata. (MACAGGI 2012,


p. 150)

O fragmento nos conduz as construções discursivas que se desdobram nos


textos de Macaggi, principalmente quando se reportam aos grupos étnicos
subalternizados, tendo em vista que tais discursos representariam indícios de como a
Biopolítica atuou no espaço marginalizado, presente nas narrativas analisadas. O
estigma preconceituoso que são marcados nos desdobramentos discursivos dos
textos de Macaggi podem ainda ser entendidos em consonância do que nos diz
Dantas:

a título de um estigma, uma caracterização sociológica que poderia aplicar-


se a todas aquelas populações: “a partir da segunda metade do século,
sobretudo, os índios dos aldeamentos passam a ser referidos, com crescente
freqüência, como índios ‘misturados’, agregando-se-lhes uma série de
atributos negativos que os desqualificam e os opõem aos índios ‘puros’ do
passado, idealizados e apresentados como antepassados míticos” (DANTAS;
SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p. 451).

O fragmento nos conduza a pensarmos que aportar apenas as reflexões


míticas, quando tratamos de povos originário, escamoteia os lastros históricos de
violações e que não foram incorporados no historicismo oficial e sua cronologia de
acontecimentos (OLIVEIRA, 1988) tendenciosos, restringindo os estudos apenas
sobre o exotismo da região e discutindo a mestiçagem como RESULTADO de uma
fabricação Biopolítica. Agregamos a essa reflexão a mestiçagem como provável forma
de sobrevivência para muitos povos. Descolonizar o entendimento naturalizado da
noção de corpo mestiço como resultado, mas sim como processo de encontros étnicos
e principalmente como ato, é algo que muito pode contribuir os escritos de Macaggi
na região do Circum-Roraima, principalmente quando tomamos a barbárie como
elemento referente.
Pensamos assim, justamente no que diz Oliveira (1988) frente às novas
configurações das comunidades étnicas mestiças estudadas por ele no nordeste
brasileiro, e que bem sinalizam o que Macaggi ficcionalizou nos romances do Circum-
Roraima, chamados por ele de ‘processos de etnogênese’, cuja a emergência de
identidades que são capturadas reinventam a noção de etnia. Segundo ele:

A “etnologia das perdas” deixou de possuir um apelo descritivo ou


107

interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vista téorico passou a


ser o debate sobre a problemática das emergências étnicas e da
reconstrução cultural (OLIVEIRA, 1988, p. 53).

O fragmento textual nos conduz a repensar a noção de mestiçagem também


pelo caminha de uma emergência étnica, principalmente através das representações
no campo artístico. Dizemos dessa forma, tendo em vista a produção literária de
Macaggi, no conjunto de construções discursivas configuradoras da formação de
sociedades mestiças na região do Circum-Roraima. Vejamos:

Imairari! Gorduchinha, moreninha, olhos negros e pestanhudos... enfim o


retrato ainda não delineado da mãe! Que satisfação trouxe a mesticinha
àquela casa onde ultimamente só a tristeza fazia questão de morar!
(MACAGGI 1984, p. 284).

É possível verificarmos que a presença do corpo mestiço aparece enquanto


ponto de esperança para o espaço narrado. Sendo que o mito de construção nacional
harmônica entre as raças no Brasil é assumido singularmente enquanto verdade
absoluta. Nesse sentido, o corpo que transitaria entre as raças não encontraria espaço
ou lugar classificatório. Daí a definição radicalizada de ‘mestiço’ fazendo referência a
um ser misturado, sem definição de fenótipo, surgido do cruzamento de raças
distintas.
Matta, em O que faz o brasil, Brasil? (1986), dedica um capítulo inteiro sobre
esta questão, nos mostrando que o projeto civilizatório, cujo mito das três raças foi um
dos meios de ação, vê-se fortemente provocado pelo corpo mestiço, intermediário.
Quanto a isto, ele afirma que:

Realmente, não custa relembrar que as teorias racistas europeias e norte


americanas não eram tanto contra o negro ou o amarelo (o índio,
genericamente falando, também discriminado como inferior), que eram nítida
e injustamente inferiorizados relativamente ao branco, mas que também eram
vistos como donos de poucas qualidades positivas enquanto “raça”. O
problema maior dessas doutrinas, o horror que declaravam, era, isso sim,
contra a mistura ou miscigenação das “raças” (MATTA 1986, p. 25).

Em que pese a construção de um ideal pautada na exclusão e preconceito ao


diferente, parece-nos que Matta pontua não apenas tais aspectos, mas entende que
as construções históricas sobre a racialização, a partir do corpo mestiço, trazem à tona
questões mais amplas cuja repercussão disso encontra forte amparo no pensamento
108

‘elitista’ brasileiro do fim do século 19 e início do 20.


A saber a ideologia das raças ganha forte impulso durante a década de 1930
com as teorias publicadas por Adolf Hitler em 1922 no livro Mein Kampf, cujo teor
apresentava uma hierarquização entre as raças humanas, marcando fortemente a
mestiçagem entre negros e brancos enquanto “degenerescência e vergonha racial”
(HITLER apud MUNANGA, 2008, p. 45). A posição do nazismo frente à mestiçagem é
marcada pela barbárie extrema, contudo ela também nos demonstra que a dinâmica
social de então aponta para um outro viés, o de que o ‘sujeito intermediário’
presentifica-se provocador, incomodando as estruturas políticas. É possível que seja
essa efetiva presença o ponto central do projeto ficcional de Macaggi.
Como efetivamente construiu-se uma ideologia do binarismo racial, talvez
estejamos frente à emergência contemporânea, constantemente negada, do corpo
mestiço provocador, o qual historicamente socializa-se nos mais distintos
tensionamentos políticos e culturais. É possível que nessa construção encontre alento
na proposta desenvolvimentista que reverbera-se nos escritos de Nenê Macaggi na
Amazônia, cujos dramas humanos narrados sejam inerente a este nómos (AGAMBEM
2010), mas que reverberem situações de catástrofes acometidas em qualquer lugar.
Em hipótese alguma podemos considerar que a atuação Biopolítica através das
nomenclaturas classificatórias conduzem o corpo mestiço à condição de direitos
efetivamente respeitados. Pelo contrário, apenas naturalizam antigas práticas através
da legitimidade e reconhecimento de que a ideologia do binarismo permanece mesmo
na exceção dos corpos emergentes.

3.2.1 O Emergente Corpo Caboclo

Os encontros culturais provocados pelos deslocamentos humanos, mais


precisamente na região amazônica, possibilitaram o surgimento de uma categoria
social emergente: o caboclo. Nosso entendimento quanto a ela, refere-se ao corpo
indígena, que frente aos processos de transfigurações ocasionado pelos encontros
étnicos, indígena e não-indígena, transitaria nas tensas e conflituosas relações entre
os laços de ancestralidade e as ressignificações socioculturais contemporâneas. É o
indígena construído nas relações sociais forjadas a partir da Biopolítica
desenvolvimentistas instituídas nas práticas de ocupação de territórios ancestrais na
109

Amazônia. É aquele que será a força de trabalho para manutenção da ideologia


capitalista que institui práticas de aniquilamento, violações e preconceito frete ao que
se opuseram a sua ordinária forma de docilização dos corpos indígenas. É justamente
no corpo mestiço, hibridizações processadas ao longo dos anos na Amazônia, que a
identificação étnica passou a ser constituída nas relações forjadas nos encontros, o
que forçou ressignificações socioculturais inscritas no corpo, na forma de falar, de agir
e de manifestar-se culturalmente.
Em todo caso, o sistema de organização cultural gerado nas relações de
encontro, hibridizaram-se frente as conjunções interculturais possibilitando
organizações singulares ao universo da ancestralidade indígena e ao mesmo tempo
não por completo ao mundo moderno. Deborah M. Lima30, no ensaio “A construção
Histórica do termo caboclo.”, afirma que:

O termo caboclo é amplamente utilizado na Amazônia brasileira como uma


categoria de classificação social. É também usado na literatura acadêmica
para fazer referência direta aos pequenos produtores rurais de ocupação
histórica. No discurso coloquial, a definição da categoria social caboclo é
complexa, ambígua e está associada a um estereótipo negativo. Na
antropologia, a definição de caboclos como camponeses amazônicos é
objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos imigrantes recém-
chegados de outras regiões do país. Ambas as acepções de caboclo, a
coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social
empregadas por pessoas que não se incluem na sua definição (LIMA, 1999,
p. 5).

A categoria apresentada por Lima na excetiva demonstra-nos que o termo


Caboclo também age enquanto classificadora de sujeitos do espaço amazônico, cuja
distinção baseia-se no que o singulariza do outro. Porém, a passagem que diz
“pessoas que não se incluem na sua categoria.” nos demonstra que a condição de
‘inominável’ presentifica-se no termo enquanto uma tentativa aproximada de atribuir
definição a um sujeito por questões de diferenciação daquilo que o tornaria distinto do
“recém-chegado” à região. Neste sentido temos uma categoria que não se auto
denomina enquanto tal, mas que atribuída por acusação do outro ao sujeito do lugar.
Lima (1999) ainda assevera:

Na fala coloquial, o caboclo é uma categoria de classificação social complexa


que inclui dimensões geográficas, raciais e de classe. Considerando a

30Disponível
em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/107/161> Acessado em: 13 de
maio de 2019.
110

dimensão geográfica, o caboclo é reconhecido como um dos “tipos” regionais


do Brasil (cf. IBGE, 1975). Entre esses tipos gerais estão os gaúchos do sul,
as baianas da Bahia e os sertanejos do nordeste, para citar alguns. A
distinção de cada tipo regional está relacionada com a geografia, a história
da colonização e as origens étnicas da população. Nesse sentido, os
caboclos são reconhecidos pelos brasileiros em geral como o tipo humano
característico da população rural da Amazônia (LIMA, 1999, p. 6, grifos
nossos).

Ressaltemos ainda que, na citação é registrado o ano de 1975, pelo dispositivo


IBGE, a alcunha Caboclo, ao ‘tipo regional’ da Amazônia. O que nos leva a verificar
que a captura dos corpos se dá através da provocação exercida frente ao poder
soberano. Para além desta reflexão gerada pelo fragmento supracitado, há de ser
evidenciado uma indagação tendo por referência não a questão de raça, mas de etnia:
seria o caboclo dinamizador das relações socialmente estabelecidas apenas nas
áreas rurais da região amazônica?
Partindo dessa provocação inicial podemos mencionar ainda Carmen Izabel
Rodrigues (2006)31, no ensaio “Caboclo na Amazônia: as identidades na diferença.”
quando aponta a categoria em questão enquanto uma identidade de negação:

Segundo Lima-Ayres ‘o termo caboclo, no discurso coloquial, não se refere a


um grupo social nem corresponde a um grupo étnico” (1999: 21) nos termos
de Barth (2000); de modo geral, os habitantes rurais da Amazônia definem-
se como agricultores; também nunca foi associado a um movimento político
(Lima-Ayres, 1999: 22); por isso devemos “desistir do uso da palavra caboclo,
especialmente se pretendemos falar de identidades rurais na Amazônia
contemporânea”, posto que a identidade cabocla não existe de fato, “é uma
representação” (:29); não há uma afirmação de ser caboclo mas sim uma
aceitação contextual do rótulo, no sentido de uma “identidade negativa”
(Cardoso de Oliveira, 1972); o caboclo é aquele que não é... é a aceitação da
negação’(RODRIGUES 2006, p. 123).

A recusa de aceitação do termo pode ser pensada justamente pelo sentido


pejorativo que a ele é contextualmente atribuído, para além disto podemos ainda
inferir certa manifestação afirmativa também, haja visto que não pertenceria a
categoria branca que o estigmatiza e subjuga. Nesse sentido, a categoria passa a
ocupar certa problematização teórica, ética e, mais precisamente, política tendo em
vista que se torna um ato de afirmar-se pela negação, construído através dos
estereótipos que a ele são atribuídos.

31Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/60> Acesso em 15 de maio de


2019.
111

Há significativa relevância da categoria Caboclo quando se tomam estudos


relativos ao tipo humano que dinamiza suas relações sociais no espaço amazônico.
Evidenciamos que não apenas a história social da Amazônia é marcada por este
sujeito, mas em se tratando do campo artístico literário diferentes autores atestam em
suas obras à presença de personagens cuja alcunha de caboclo pontua a dinâmica
social da Amazônia enquanto espaço dos encontros étnicos.
A saber Dalcídio Jurandir, o personagem Alfredo e os questionamentos sobre
a dinâmica social da cidade de Belém nos romances do Ciclo Extremo Norte; Milton
Hatoum e a dinâmica da dos encontros vista pelas personagens Nael, em Dois irmãos
(2006); José Verissimo e a provocativa existência cabocla com o personagem “tapuio”,
em Cenas da vida Amazônica (1889); e, Benedicto Monteiro com as experiências
transgressoras do personagem Miguel dos Santos Prazeres, em Como se faz um
guerrilheiro (1995).
Na obra de Monteiro é possível observar fortes ressonâncias dos encontros
culturais amazônicos, principalmente quanto ao “corpo fronteira” a que nos referimos
em momentos anteriores. Dizemos dessa maneira frente as formas como o
personagem se posiciona ante ao ambiente que o cerca:

As cores verdes invadiam toda a minha vista. Era como se eu abrisse os olhos
no fundo da água limpa. Nuvens e ondas se misturavam. E folhas, folhas
verdes, vertendo cores de todas as cores, reverdeciam na água. E a água e
as nuvens na minha mente. Eu mesmo não sei quando se deu o meu primeiro
encantamento. Não sei se foi quando abri os olhos no fundo, bem dentro
d’água, ou quando comecei a sentir a minha vida também por dentro. Só sei
que, daí por diante, fazer um filho, para mim, era grande necessidade
(MONTEIRO, 1995, p. 9,).

Podemos inferir que o fragmento traz no conjunto de metáforas apresentadas


os processos de encontros étnicos decorridos na Amazônia. Para além da íntima
relação, rizomática com o ambiente, há uma forte necessidade de “fazer filho”, indícios
de que os encontros étnicos possibilitaram ressignificações ao espaço amazônico.
Essa intima relação étnica entre o sujeito e o ambiente que o cerca aparece
também em M. Hatoum (2006), visto que o espaço do transcorrer narrativo atuaria
entre as formas de vida e o mundo que é dinamizado por indígenas, caboclos, cidades
e trabalhadores. Espaço das alegrias, mas também das frustrações que envolvem a
dinâmica social presente nas narrativas.
112

O personagem Nael, em Hatoun (2006), é justamente o sujeito forjado nas


errâncias dos encontros, transgressor das fronteiras e delimitações ordinárias,
desterritorializa a linguagem cultural. Sem identidade, ordinariamente específica,
desconstrói a noção de espaço, lugar, família. É ele a representação do sujeito em
deslocamento de identidades, um corpo forjado na dinamicidade dos encontros
culturais.

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A
origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos
meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal
de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio
deserto, até que uma das margens a acolhe (HATOUM, 2006. p. 54).

O fragmento nos conduz a inferências que nos mostram indícios de que o corpo
mestiço errante, aparenta buscar um lugar de raiz. Contudo, esse espaço de
pertencimento é algo que lhe escapa constantemente tendo em vista sua condição de
corpo insubmisso ao ordenamento dos diferentes lugares por onde passa. É
justamente, este sujeito de emergência nos romances literários produzidos na
Amazônia, um corpo que se movimenta, estrangeiro e pertencente, ao seu espaço de
origem e ao mundo moderno das cidades que surgem.
Nessa mesma linhagem romanesca dos encontros étnicos, podemos encontra
o personagem Tapuio, de José Verissimo (1886), em que pese sua longa referência
sobre a dinâmica dos encontros que se sucedem no espaço a amazônico de então. O
processo de hibridização apontado por Verissimo, bem como por romancistas como
Monteiro, Hatoum, ressignifica a noção do caboclo como aquele sujeito vivente
(AGAMBEN 2002, p. 12) na área rural dos espaços amazônicos. É justamente o
sujeito que atuará nas ressignificações dos espaços sociais, cultural da Amazônia.

A essa população que habita as margens do grande rio e dos seus numerosos
affluentes, vivendo a nossa vida, contribuindo para a nossa receita,
trabalhando nas nossas industrias, e que não é nem índio puro, o brazilio-
guarani, nem o seu descendente e, cruzamento com o branco, o mameluco,
é que parece-me, cabe o nome tapuia (VERRISSIMO, 1886, p.12).

A atenção dada pelo respectivo autor quanto a movimentação dos encontros


de grupos étnicos na Amazônia, neste caso nominado enquanto ‘tapuio’, nos leva a
enfatizar que a emergência de um corpo forjado em tais circunstâncias é evidenciada
113

em decorrência da própria relações que este estabelece com o espaço amazônico.


Mesmo que esta relação aconteça de atestar sua mobilidade, seu estado de fronteira,
sua condição de Caboclo, corpo indígena mestiço (In)Dócil. A esta mobilidade
ambivalente do sujeito étnico da Amazônia, não caberia uma identidade única, mas
talvez aquela defendida por Canclini (2008), hibrida, ou a definida por H. Bhabha
(1998, p. 13), rizomática, construída na abertura possibilitada pelos encontros.
Os escritos de Macaggi inclui-se nesse conjunto de autores cuja personagens
centrais das narrativas figuram em fronteiras. Nesse sentido, os romances do Circum-
Roraima apresentam indícios do corpo indígena, mestiço e (In)Dócil, tendo em vista
que sua própria existência mestiça atua enquanto provocativo ao ordenamento social
e artístico constituído na ficcionalidade produzida por Macaggi, tal como é possível
ver em A Mulher do Garimpo (2012):

Geralmente o índio é feio, baixo, e grosso, vendo-se contudo, belos


exemplares de ambos os sexos. São morenos, considerados modernamente
como pertencentes à Raça Vermelha e têm os olhos escuros e achinesados.
Possuem belas dentaduras que se estraga muito depressa. Índio puro nunca
tem olhos claros. Misturados aos brancos, uma vez ou outra aparece um filho
de olhos azuis (MACAGGI 2012a, p. 150).

O fragmento bem evidencia as diferentes formas de violência e preconceito


atribuído aos indígenas, representado pelo dispositivo classificador das raças.
Contudo, para além disso, também é possível que o processo de mestiçagem
evidenciado destaque o mestiço apenas de olhos azuis. Nesse sentido, o estereótipo
atribuído ao caboclo enquanto cor da tez é desmistificado indiciando a negação da cor
da pele como definidora do ser caboclo.
Em Exaltação ao Verde,

O casamento de Lúcio realizou-se numa chácara ali perto, chamada Rosa


Branca, por vontade do pai da noiva, Ricardo Alberti, também imigrante
italiano naturalizado brasileiro e comerciante em Moura. A noiva e esposa
Luiza, era um belo tipo de morena, roliça e sorridente, de olhos verdes e face
corada, muito trabalhadeira e substituindo a mãe a muito falecida (MACAGGI
1984, p. 52).

Relativo ao fragmento de Macaggi (1984) podemos compreender que a


dinâmica instaurada nos romance, como asseverado no fragmento, não vincularia o
sujeito caboclo apenas a processos e áreas periféricas, mas visualizamos que, além
114

de afirmar que a tez não define o corpo caboclo, tão pouco define, em consonância
com o fragmento da obra, a classe social.
Assim também em Dadá-Gemada,

Dadá-Gemada, a mãe, foi gerada nos garimpos do Polaco, na Venezuela,


onde o pai esteve durante três anos. E o pai era um paranaense louro como
uma espiga de milho madura, já quarentão, que se apaixonara por uma índia
Maiongon, chamada Maici, filha de um pajé que morava na aba do Monte
Roraima, do lado brasileiro (MACAGGI 1980, p. 35).

O excerto mostra o que estaria para além do que ficou conhecido enquanto
branqueamento da raça. Vincular-se-ia mais ainda aos dispositivos instituídos
enquanto politicas desenvolvimentistas propostas por G. Vargas, que forçou fluxo
intenso de migrações na Amazônia, do que propriamente a higienização racial.
Pensamos assim, pois se os fluxos migratórios não reconhecem fronteiras e devem
ser entendido as enquanto desdobramentos da Biopolítica empreendida na Amazônia.
A parteri dessa dinâmica, os processos de encontros étnicos tornaram-se inevitáveis
frente as movimentações humanas evidenciada por Macaggi. Essa relação também
aparece no romance Nará-Sué Werená (2012):

E os que se acham em lua de mel, unidos pelas duas raças, branca e


vermelha (indígenas), não contando com as outras duas raças humanas,
negra e amarela, voltam atrás para admirar novamente a revoada alegre que
vai sumindo nos braços de um ibicó beijoqueiro e suave em ‘eunuvos’ mais
alvos do que flôr de repitinga (MACAGGI 2012b, p118),

O que podemos constatar nos fragmentos das narrativas de Nenê Macaggi,


correspondem a categoria emergente quanto aos desdobramentos artísticos
evidenciados nos respectivos romances. Quanto a autora Nenê Macaggi, isso é
evidenciado em função dos constantes deslocamentos narrativos demonstrando a
dinâmica dos encontros étnicos, com efeito a uma sociedade mestiça na Amazônia
setentrional, mais precisamente na região do Circum-Roraima.
Nos romances, a construção discursiva muito contribui para verificarmos a
dialogicidade como contribuidora para entendermos os diferentes desdobramentos
desse processo de ressignificação. Segundo H. Bhabha:

O sujeito do discurso da diferença é dialógico ou transferencial à maneira da


psicanálise. Ele é constituído através do locus do Outro, o que sugere que o
115

objeto de identificação é ambivalente e ainda, de maneira mais significativa,


que a agência de identificação nunca é pura e holística, mas sempre
constituída em um processo de substituição, deslocamento ou projeção
(BHABHA, 2013, p. 261).

A inferência apresentada por Bhabha no fragmento citado, nos conduz a


observar que os encontros étnicos, trazem como efeitos o rompimento de fronteiras
delimitativas de valores culturais tidos como inquestionáveis. Nosso entendimento
perpassa pelo atravessamento de fronteiras delimitativas e antagônicas, que
possibilitam provocações quanto a verdades prontas. Os efeitos dessa postura, são
justamente as possibilidades que essas ressignificações trazem para o que
identificamos como Caboclo.
Pensando por esse prisma, a categoria em emergência, presentificada nas
obras de Dalcídio, Verissimo, Monteiro, Hatoum e, especificamente, Macaggi mostra-
nos a atuação do descentramento dos personagens e do espaço amazônico em
dinâmica movimentação, redimensionando-se em corpos que se reconstroem
justamente na diferenciação engendrada nos efeitos da Biopolítica.
A linguagem ficcionalizada reproduz o sujeito em questão, mas também se
reconstrói, apontando para um espaço que se movimenta em uma sistematização
rizomática, como afirma Bhabha (2013) forçando-nos a pensarmos em uma efetiva
revisão quanto a escriturações literárias na Amazônia, tendo por referência não a
diversidade, mas principalmente a diferença como efeito Biopolítica.

A diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical da


separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela
intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma
memória mítica de uma identidade coletiva única (BHABHA, 2013, p. 69).

É justamente a partir da releitura crítica sobre ‘identidade única’, ordinariamente


definida, que pautamos em práticas de resistências que reconheçam os efeitos
históricos causados pelos encontros étnicos. Intensificando assim, atos de resistência
que elejam as negociações étnicas enquanto relevantes para a crítica literária
contemporânea.
Neste caso, a categoria corpo caboclo, metáfora do corpo indígena mestiço e
(In)Dócil, é entendido por nós como denunciador dessas negociações. O que
podemos perceber, a partir das obras e autores citados anteriormente, é que as
116

personagens mestiças – caboclos - dinamizam suas relações sócias no espaço


amazônico, fronteira entre os laços de ancestralidade e as reconfigurações urbanas
que se instalaram ao longo dos anos na Amazônia e cuja a ficção tratou de enfatizar
em diferentes articulações discursivas.
Por essa linha de entendimento, atribuir a esse corpo vínculos apenas à
dinâmica da vida rural, como o fez Lima (2006), é negligenciar sua significativa
contribuição para a leitura interpretativa das relações artísticas, culturais e sociais da
Amazônia contemporânea. Dizemos dessa maneira, pois sua condição étnica
construída a partir dos encontros culturais, possibilita-lhe ir para além da reivindicação
de uma identidade única, classificatória e excludente. Quanto que esta condição de
hibridização (CANCLINI, 2008) ou mestiçagem, reafirmaria a emergência de um corpo
construído nos influxos das relações étnicas contemporâneas apontados nos
romances de Macaggi, e não só.
É possível verificarmos certa condição de marginalidade quanto a demarcação
social da categoria caboclo, principalmente quanto a ‘vida politicamente
desqualificada’ definida por G. Agamben (2002, p. 11). Esse contraste afirmaria a
posição superioridade entre o branco, migrante na Amazônia, e aqueles que vivem
em áreas rurais da região de descendência indígena. Quanto a isto, Lima diz que:

Os chamados caboclos, isto é, os pequenos produtores rurais amazônicos,


não têm uma identidade coletiva, nem um termo alternativo e abrangente de
autodenominação. A única categoria de autodenominação comumente
empregada por toda a população rural é a de “pobre” (LIMA 1999, p 13).

Em conformidade com o que nos apresenta o fragmento, mesmo não sendo


utilizado para definir identidade especifica, o termo pode ser empregado a qualquer
pessoa que não pertença à bios, ‘vida politicamente qualificada’ (AGAMBEM 2002).
O que nos demonstra que a complexidade do termo em uso para um grupo étnico
atribuído, demonstra sua presença enquanto desajustador à ordinária forma de definir
identidades especificas aos sujeitos.
Contudo, há de ser ressaltado o termo empregado na citação “pobre”, pois se
a experiência de barbárie independe do lugar e momento, quem mais é atingido por
ela é justamente o ‘vivente’, subalterno. Justamente os efeitos da Biopolítica
geradores de situações extremas, de não reconhecimento do outro, de situações de
abandono, flagelo que são reverberadas as situações de catástrofe, cuja vida
117

acomete-se na apatia, desamparo e pobreza. Por fim, é necessário pensamos o corpo


caboclo enquanto categoria de resistência, frente aos diferentes efeitos da Biopolítica,
inscrevendo escrituras na própria existência corporal do sujeito. É ele a própria
existência do insubmisso no sentido de não se permitir por completo submeter-se a
docilização.
Ao pensarmos abordar a categoria corpo mestiço enquanto processo
provocativo e desafiador ao ordenamento, o capítulo seguinte é construído tendo por
objetivo dar conta das recorrências do corpo mestiço indígena e (In)Dócil nos
romances do Circum-Roraima.
118

4 OS CORPOS INDIGENAS MESTIÇOS E (IN)DÓCEIS NOS ROMANCES DO


CIRCUM-RORAIMA

É fato que os deslocamentos pelos quais passou Macaggi propiciaram vivenciar


situações significativas para sua produção literária. As décadas que se sucederam
após sua chegada na região norte do país são marcadas por acontecimentos
históricos que farão com que a Amazônia sofra significativas transformações. Nessa
seara, o projeto literário da autora mergulha em representações do espaço em
transformação, agenciando os encontros étnicos que se efetivam.
Os romances do Circum-Roraima apontariam ainda para a vivencia enquanto
ressignificação ficcional, ofertando-nos a perspectiva de uma escrituração
historiográfica, sobretudo no uso marcado do discurso colonialista enquanto
delineador da formação de processos de mestiçagem no ‘extremo sertão norte da
Amazônia’.
Há de ser evidenciado o delineamento distintivo entre colonialismo e
colonização. Por colonização entendemos os desdobramentos biopolíticos
implementados durante o período colonial histórico brasileiro cujo princípio era o de
povoamento e ocupação territorial vinculado a ideologia de estado nação (ASSIS,
2014, p. 613)32; por sua vez, colonialismo assevera-se frente aos mecanismos que
permanecem atuando no sentido de docilizar o sujeito. Evidenciamos que o
colonialismo é também um desdobramento da Biopolítica. Nesse sentido Quijano
(2005) efetua leitura a partir da América latina em que aponta os desdobramentos das
formas de poder, vejamos:

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo


que começou com a constituição da América e do capitalismo
colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial.
Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social
da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental
que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então
permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua
racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e
caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo
em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento
de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. (QUIJANO, 2005, p.
117)

32Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v27n72/11.pdf> Acesso em13 de junho de 2019.


119

A forma como Quijano aborda os desdobramentos das relações de poder


associadas a segmentação social e de raça nos oportuniza refletirmos quanto ao que
nos propormos nesta tese. Segundo ele estariam atreladas ao desenvolvimento do
capitalismo que institui os espaços colonizados inicialmente como fonte de matéria
prima, logo em seguida ao acumulo do capital, depois passam a ser consideradas
mercado consumidor, mantendo o ciclo de permanência do poder gerada através do
acumulo de capital. Dessa forma o processo de dominação efetua-se por força das
estratégias geradoras do capital a bem do estado. Nesse sentido o processo que vai
da colonização, perpassando pelo colonialismo alonga-se no que ele denomina-se de
colonialidade que seria a permanente atuação do colonialismo em detrimento do
poder hegemônico, o que podemos associar a que estamos discutindo quanto aos
efeitos da Biopolítica foucaultiana e agambeniana.
Como já frisado antes, o campo artístico tem redimensionado os efeitos desse
processo de Biopolítica, colonialidade para Quijano, de diferentes maneiras
principalmente nas formas de encontros étnicos que nelas podem ser representados.
Nesse sentido, os recursos literários utilizados por Nenê Macaggi constroem-se a
partir dos aspectos da dinâmica dos encontros, desenhando falas de personagens
que povoam os espaços ficcionais dos encontros fronteiriços, nos propiciando
observar a dinâmica do entrelaçamento que emergem dessas relações culturais.
Pensando assim, é possível que os romances do Circum-Roraima nos apontem uma
estética sobre as dinâmicas socioculturais, principalmente, sobre o corpo dos sujeitos
que atuam nesses encontros em conformidade com o que nos aponta Quijano (2005),
efetivamente uma relação de ‘explorável’.
Talvez a voz evidenciada do colonizador e que aparecem traduzidas na
narração, seja o forte indicio que destina o colonizado ao silêncio imposto pelas
violações, preconceito e subjugo. Contudo, seja justamente na veemência do discurso
soberano que possamos encontrar os resíduos da (in)docilidade do corpo insubmisso.
Entendemos dessa maneira, tendo em vista que, para além da afirmação da fartura e
prosperidade que supostamente o processo desenvolvimentista trará para o espaço
donde desdobram-se as tramas narrativas, entrelaçadas de discursos machistas e
preconceituosos, é justamente isto que destoa frente a contradição marcada pela
sociedade desigual apresentada nos romances. Sobretudo a representação da vida
nua, no que de mais grotesco há, as injustiças da barbárie.
120

Nessa linha interpretativa, acreditamos que os Romances do Circum-Roraima


trazem contribuições para refletirmos sobre os efeitos da Biopolítica, tendo por
referência os corpos indígenas mestiços, cujos processos históricos de violações
podem nos indicar elementos para além do Circum-Roraima, indícios das relações de
forças desiguais ficcionalizadas nas narrativas em conflitos humanos, culturais,
linguísticos e sexuais.
Podemos inferir ainda que o projeto de uma literatura fundadora em Roraima,
desenvolvido por Nenê Macaggi, demonstra forte presença do depoimento dos
processos culturais demandados pelos tensos ciclos migratórios aos quais passou a
região do Circum-Roraima. Nesse entrecruzamento étnico cultural, evidenciam-se
personagens mestiços, que figuram nos desdobramentos dos enredos produzidos por
Nenê Macaggi, enquanto indícios de processos biopolíticos. Podemos verificar tal
questão a partir das personagens Naldo-Macuxi e Dadá-Gemada (MACAGGI 1980);
Lúcio, Luana, Carla e Imairari (MACAGGI 1984).
Ao construir narrativas, cujos efeitos da Biopolítica na Amazônia tenha deixado
no corpo mestiço escriturações historiográficas imprimem nos corpos mestiços as
marcas dos encontros nos apontam para além dos aspectos culturais. As
personagens mestiças ganham força nos romances em um lugar transitório e para
que detenha a ascensão social necessita ‘educar-se’ em lugares urbanos cujo grau
avançado de desenvolvimento econômico poderá dar-lhe a ferramenta de ascensão
econômica.
A personagem mestiça Naldo-Macuxi bem representa essa categoria de
captura dos corpos pela Biopolítica: “Naldo-Macuxi tinha que partir[...] O rapaz possuía
mão de ouro para cuidar e curar gado doente e já sabia muita cousa pratica sobre os
animais da fazenda.” (MACAGGI 1980, p. 45). Observamos que ao corpo mestiço
cabe a função de explorável para atender as demandas das fazendas, bem como
ajustar-se às mudanças empreendidas pelo projeto desenvolvimentista que se
instaura.
Ressaltamos que há nos romances certo discurso que questiona o corpo
transgressor das práticas urdidas na heteronormatividade. A citação seguinte nos
conduz a refletir sobre a maneira como o corpo mestiço da personagem Dadá-
Gemada traz cintilações quanto ao preconceito em relação ao corpo que não segue a
ordinária do binarismo sexual. A saber, “- Dadá-Gemada, não me enfureça, não me
121

faça praticar um desatino. Mas me diga, criatura, de onde vem essa coragem, esse
ardor que a toma toda e faz você me enfrentar com tanta altivez como se fosse um
homem?” (MACAGGI 1980, 53). O que podemos observar na citação é que o corpo
que provoca desconfiança ao poder soberano, reverberado na voz do personagem
Clovis, ou que não atende ao forma de conduta socialmente estipulada para atender
ao pensamento heteronormativo seria passivo de violações.
Nessa linha de entendimento, defendemos a recorrência de uma identidade
historicamente negada representada pelos corpos mestiços nos romances do Circum-
Roraima. Dizemos dessa maneira por acreditar que eles dão indícios que podem atuar
como redimensionadores de leituras sobre as obras a partir de discussões sobre
relações etnia e de gênero à luz das discussões pós-coloniais. Afirmamos ainda, por
termos em vista que os romances apontam para questões pertinentes a representação
do corpo travestido na obra, o que fortalece a recorrência de subalternidade.
Segundo Tadei (2002, p.3) o discurso que harmoniza a democracia das raças,
e neste caso alongamos às questões de gêneros, invisibiliza as tensas e violentas
relações nos processos migratórios. Ao considerarmos os corpos mestiços como
construídos nesses processos, passamos a entende-lo não enquanto ocupante de um
lugar de possibilidades e encontros, engendrados frente a dinamicidade das relações
geradas nos ciclos migratórios evidenciados nos romances. Acreditamos que o projeto
romanesco desenvolvido por Nenê Macaggi aparenta haver certa preocupação com
os processos de mestiçagem, no sentido de vislumbrar o corpo mestiço como aquele
que traria prosperidade para os espaços que estão sobre os efeitos do
desenvolvimentismo varguista, podendo ser constatado na matéria nortista, produzida
por Macaggi. Acreditamos que para além desse discurso desenvolvimentista, haveria
algo a mais que emerge das fissuras entrediscursivas.
A saber, podemos inferir que as vozes mestiças presentes nos romances nos
apontam indícios quanto a reinvindicação da condição de mestiços alinhados as
reinvindicações das minorias subalternizadas. Por esta maneira, partimos do
entendimento que as obras romanescas de Macaggi não ocorre negação ao o corpo
mestiço; entendemos que o projeto literário faz uma afirmativa da presença corporal
dos mestiços. Dessa maneira, pensemos na categoria corpo enquanto ato
provocador, corpo mestiço indígena e (In)Dócil, reivindicando sua existência na biós.
É justamente nessa perspectiva que os tópicos seguintes foram construídos, no
122

sentido de afirmar a recorrência de corpos mestiços indígenas enquanto escritura


historiográfica, inscrevendo situações de violações que tornaram-se regra e não
exceção.

4.1 As Violações dos Corpos Indígenas Mestiços (In)Dóceis

Quanta queixa cheia de razão, de Parente Alberto! E que caboclo simpático,


sério nos negócios e amigo dos brancos (MACAGGI 2012a, p. 142).

Parente Alberto é a representação do corpo mestiço, caboclo docilizado,


mesmo assumindo-se enquanto indígena é quem acompanha Rondom, Rice em
expedições ao Monte Roraima (MACAGGI 2012a, p. 147)33. Inda que suas queixas
não estejam expressas no fragmento, mas ressoam as amarguras cujos processos de
contatos ao longo dos tempos na região do Circum-Roraima construíram corpos
docilizados em estereótipos de preguiçosos, cachaceiros, fedorentos e sujos. A
dinâmica instituída produziu ajustamentos sociais, cujos vínculos de amizade estariam
ligados a questões econômicas em favor dos colonizadores.
A mão de obra mestiça passa a ser a força motriz nas fazendas e afazeres
domésticos. Os espaços socialmente ocupados pelos corpos mestiços estarão
direcionados a exploração através da força de trabalho, poderíamos considera-los
enquanto corpos exploráveis. Assegurar sua permanência na dinâmica social
mantenedora das fazendas é garantir a permanecia do poder patriarcal violador de
tudo aquilo que destoa seu ordenamento.
Podemos inferir que se o poder sobre a vida, ‘fazer viver’ - o corpo produtivo e
docilizado (FOUCAULT, 2002, p. 287) - é o foco central das sociedades modernas
ocidentais, fortemente marcada pelas políticas de ocupação de territórios enquanto
sustentação de modelo ideológico. No que se refere aos romances do Circum-

33Apassagem de Hamilton Rice, reaparece na obra ‘Exaltação ao Verde’ (MACAGGI 1984, p. 230). Há
de ser destacado o estudo sobre esta questão feito por Carla Monteiro de Souza, em ‘Uma visão da
Guiana brasileira: a expedição de Hamilton Rice pela Amazônia’. Segundo ela: “Alexander Hamilton
Rice Jr (1875-1956) pela região do Rio Branco, atual estado Roraima. Esta viagem, realizada entre
1924-25, que tinha objetivos geográficos, produziu um material significativo para o estudo da região,
pois além de produzir um relatório rico em informações e comentários produziu um importante registro
fotográfico e fílmico, de seus lugares e sua gente. Aqui se aborda a obra que reproduz parte do
relatório, intitulada “Exploração na Guiana Brasileira”, publicada pela Editora Itatiaia e pela
Universidade de São Paulo, em 1978, na Coleção Reconquista do Brasil.”. (Disponível
em:<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=134652599003> Acesso em: 20 de junho de 2019)
123

Roraima, isto também pode ser aplicado, tendo em vista que reverberam tais
construções sociais.
O conjunto de dispositivos de controle, usados com a intenção de anular os
manifestos contrários a essa forma Biopolítica de captura dos corpos serão fortes
indícios das diferentes formas de violações pelas quais passarão os corpos
vulnerabilizados socialmente, nos romances.
Nesse desdobramento, acreditamos que a mobilidade instituída pelo sistema
capitalista neoliberal possibilitou à Biopolítica agir não apenas vinculada ao poder do
estado, mas em diferentes formas de ação a interesse do capital financeiro como
agenciamento do social, político, econômico e cultural. Nessa miríade, as práticas de
resistência têm se reinventado, justamente na dinâmica da vida cotidiana em
sociedade. Quanto a isto Peter Pál Pelbart (2003, p. 13) afirmar que “a vida tornou-se
o alvo supremo do capital. As práticas violentas para permanência das propostas
biopolíticas pautadas no modelo político-econômico, marcam experimentos
traumáticos, indícios deixados no corpo de sucessivas violações”.
O espaço das narrativas, Circum-Roraima, atua enquanto conjunto ordinário da
Biopolítica justamente no “populismo desenvolvimentista” cujos corpos mestiços
experimentam os diferentes desdobramentos dessa proposta. Os efeitos da
Biopolítica do aniquilamento, expropriação e apropriação do território imprime no
corpo das personagens, rastros de violações.
Podemos considerar que a própria existência do (In)Dócil demonstra os
registros de experiências de violações agenciadas durante todo processo de
ocupação do território amazônico brasileiro. Indícios desses embates podem ser
vistos nas formas de silenciar das personagens Dadá-Gemada e, Naldo-Macuxi e
Luana, resultante das sucessivas práticas de submissão à continuas violações.
O processo ideológico construído e reverberado nas narrativa primou pela
‘desqualificação’ não apenas dos corpos mestiço, mais ainda o próprio espaço é
narrado com certo teor de marginalidade, tendo por prática o ordinário discurso de
progresso para “o bem da nação”. Tudo o que nela está padeceria da intervenção do
poder “salvador” do estado para retirá-la da condição primitiva em que supostamente
se encontra. A citação a seguir, assevera a reflexão e dialoga com a fala de Varga, a
seguir:
124

Desejo trabalhar muito, fazer progredir essa fazenda e conto com vocês, os
empregados daqui.
Nada de criação bovina, equina ou caprina, anão ser o necessário à
manutenção da fazenda. Quero viver da agricultura, arroz, milho, cana, e soja
plantadas, da produção de pomares, tentar plantar alguns pinheiro e
guaperuvus, como lembranças do meu estado. Galinha, pato, peru, porco, só
para o nosso gasto.
Quero flor, muita flor. Vou encher de girassóis este lugar e mudar o nome de
Três Amores. (MACAGGI 2012b, p. 109)

É neste tom que o discurso de Vargas se constrói:

Nada nos deterá nesta arrancada que é, no século XX, a mais alta tarefa do
homem civilizado conquistar e dominar os vales das grandes torrentes
equatoriais, transformando a sua fôrça cega e a sua fertilidade extraordinária
em energia disciplinada. O Amazonas, sob o impulso fecundo da nossa
vontade e do nosso trabalho, deixará de ser, afinal, um simples capítulo da
história da terra e, equiparado aos outros grandes rios, tornaserá um capítulo
da história da civilização. (VARGAS, 1940).

O corpo mestiço apontado no fragmento acima (MACAGGI 2012b) aparenta


ser a metáfora da “vida politicamente desqualificada” (AGAMBEN, 2002, p. 11),
teríamos ainda o “espaço desqualificado” carente e necessitando passar por
modernas transformações (VARGAS 1940). Subalternizado, violado de diferentes
maneiras, embaralham-se no fragmento os discursos e práticas culturais enquanto
efeito maléfico biopolítico no espaço narrado.
Justamente nessas cintilações históricas que o campo artístico literário nos
auxilia a perceber indícios dos efeitos violentos da Biopolítica na região onde
transcorre as tramas narrativas. Quanto a esta movimentação do fazer literário e sua
atuação política, imanente, A. Bosi contribui afirmando que “Deve-se aprofundar o
campo de visão. E detectar em certas obras, escritas independentemente de qualquer
cultura política militante, uma tensão interna que as faz resistente, enquanto escrita,
e não só, ou não principalmente, enquanto tema.” (BOSI 2002, p. 129).
Podemos entender que a contribuição do campo artístico é forte aliado nos
manifestos de resistência, justamente na forma criativa de cintilar maneiras outras de
resistências. E ao que podemos constatar o projeto artístico de Nenê Macaggi alinha-
se ao que A. Bosi enfatiza. Quanto a esse ‘algo a mais’ no elemento narrativo,
Sarmento-Pantoja (2011) fornece uma reflexão:
125

o abarcamento de uma cultura localizada, a partir das condições geo-


espaciais relacionadas à Amazônia, a memória ligada à apreensão da
História, particularmente voltada a um conjunto de referências ao regime
militar de 1964, e o trânsito da utopia estão entre as linhas de força que
julgamos ser mais enfáticas, implicando complexas possibilidades criativas e
reflexivas. (SARMENTO-PANTOJA 2011, p. 2)

O fragmento acima, potencializa a memória enquanto apreensão histórica.


Entende a autora que o conjunto articulado dos registros discursivos podem nos levar
aos efeitos que se movem para além da configuração apenas ‘geoespacial’, ganham
força questões fortemente marcadas sobre a chave interpretativa da violência, e não
apenas. Quanto a este levante feito por Sarmento-Pantoja, Jaime Ginsburg afirma que
“A violência, tal como definida aqui, envolve o interesse em machucar ou mutilar o
corpo do outro, ou leva-lo à morte.” (GINZBURG, 2012, p. 11).
O que podemos abstrair quanto ao entendimento de violência funda-se na
relação de indícios que os romances podem nos ofertar. A violência física, causadora
de danos, apontadas pelo autor não inviabiliza os efeitos traumáticos que ela causa.
A partir desta chave de análise, indícios sobre tais recorrência nos romances de Nenê
Macaggi são sucessivos e apontam cenas de violações e maneiras depreciativas de
referir-se ao corpo mestiço.
Os indícios apontam forte cenas de barbárie no campo artístico, mostrando
ainda um gênero construído de mesclas de elementos estéticos e históricos.
Enfatizamos que o projeto romanesco da autora na Amazônia, apesar de ter iniciado
com a primeira obra publicada em 1976, os experimentos vivenciados recuam à
década de 1950 e 1960.
Em ‘A Mulher do garimpo.’ (2012a) as cenas de violações iniciam já na infância
das protagonistas da narrativa. Na tentativa de evitar abusos que por ventura possam
acontecer com a então Ádria, o padrinho traveste a criança de menino. “É que
Joãojão-Bico de-Lacre, em sua profissão trabalhando sempre com a escória sabendo
o quanto chega a maldade humana, para salvaguardar a integridade física da menina,
achou melhor fazê-la passar por garoto.” (MACAGGI 2012a, p.34) Esse ato será
determinante para os conflitos aos quais a personagem irá protagonizar.
Se a violação demonstrada através do travestimento da menina delineia os
desdobramentos da trama, aponta ainda para o desamparo sofrido pela ‘injeitadinha’
(MACAGGI 2012a, p. 31) frente ao falecimento da mãe, da avó, do amigo Juanito e
de seu padrinho; mas também nos demonstra situações de Exceção por que passa
126

Ádria. A vida nua evidenciada através do travestimento, para ser melhor entendida
nesta cena da narrativa deve levar em consideração que o corpo da criança
representa as condições de vulnerabilidade e fragilidade do ser humano frente as
diferentes práticas abusivas. O corpo vulnerável às violação, agora travestido de
homem, passaria a pertencer a sociedade construída para aceitar o discurso
masculino como representação da voz soberana.
Após diferentes tentativas de fixar morada no Sul, José Otavio decide migrar
para o norte do Brasil. A investidas violadora não cessão e alimentam ainda mais os
conflitos e sentimento de desamparo da personagem. Na fase adulta, José Otávio já
na dinâmica embrutecida do garimpo terá sua sexualidade desafiada pelos outros
garimpeiros.

A Ruivinha [...] A Mulher do Garimpo vai se haver comigo. Vou dar em cima,
vocês vão ver. E vamos nos divertir! Prometo! [...] Vou lhe dar dois beijos na
boca e quero ver o que ele faz.[...] Não sou Mocinha, Ruiva ou Mulher do
Garimpo. Sou é muito macho como acabaram de ver (MACAGGI 2012a, p.
274).

As tentativas de violações do corpo da protagonista mostrarão que as situações


de Exceção tornaram-se regra na trama. O desfecho da narrativa (A Mulher do
garimpo, 2012a) mostrará a resistência sendo frequentemente exercitada pela
personagem principal justamente através de uma sexualidade negada
constantemente, flutuando entre masculinidade e feminilidade. Pelo visto, a narrativa
de Macaggi, nos demonstra que corpos provocadores à ordinária social são
constantemente subjugados, cujas evidências apontam as contínuas situações de
violência como regra.
Do mesmo modo, as situações de Exceção também ocorrem no romance ‘Nará
Sué Uerená’ (2012b) cujas figurações da violência ganharão destaque com a
presença da família que detém a posse da Fazenda Três Corações. Nesse espaço, a
trama se desenvolve com a chegada de Nará Sué-Werená e Recura, seu avô,
sobreviventes de ataque a sua comunidade. A fazenda, espaço narrativo, apresenta
reverberações da noção de campo apontada por Agamben (2002, p. 173) como efeito
do moderno. Pensamos dessa maneira, visto que as cenas que se desdobram na
tramam serão de extrema barbárie. O filho e a mãe, proprietários da fazenda,
proporcionarão cenas horrendas. As atitudes de ambos representam a voz soberana
127

do perpretador que detém o poder e controle, de vida e de morte, dos espaços e


daqueles que nele se encontram. Vejamos:

Depois pulou na cama, tal qual um sapo, ergueu a enferma, ajeitou-se a seu
modo, e abriu-lhe as pernas cobertas de sangue; empunhando então uma
pequena faca enferrujada, de seu uso, meteu logo o punho inteiro no útero
da infeliz criatura, cortando... cortando...e logo o sangue escurecido escorreu
junto com os pedacinhos do couro cabeludo e da carne do inocentinho que
não teve a ventura de ver, sequer, a luz do dia ou receber um beijo materno
(MACAGGI 2012b, p. 101).

A passagem refere-se a cena em que a soberana, dona da fazenda, manda o


perpetrador induzir o parto de uma das mulheres funcionárias da fazenda,
demonstrando seu domínio absoluto, certeza de impunidade e forte demonstração de
poder e autoritário. A cena é apenas uma entre as tantas que a obra nos apresenta.
Em outra passagem a narrativa apresenta discurso em tom preconceituoso
desqualificando a figuração do indígena, vista pelos donos da fazenda.

A cabeleira, espessa, lisa, negra e comprida nas mulheres, fede a caracu de


boi ou a brilhantina barata. Todos tem a pele boa e de cheiro característico,
misto de fumaça, peixe moqueado e sujeira. Sempre tem piolhos, mas sua
pele jamais é espinhada. [...] Mulheres, fede a caracu de boi ou a brilhantina
barata (MACAGGI 2012b, p. 150).

As figurações apontadas no discurso nos indiciam práticas que se


naturalizaram na Amazônia quando de seu processo de povoamento, mostrando o
teor depreciativo durante décadas a fio em relação ao indígena. Podemos afirmar que
a tentativa de desqualificar, no sentido agambeniano (2002), o que configuram os
pertencimentos étnicos são fortemente presentes no fragmento citado, reverberam as
violentas formas de agressões impressas na descrição dos corpos do indígena. A
narrativa ganhará este teor durante todo seu desenrolar afirmando que os indícios
históricos ganham escriturações violentas e preconceituosas. Aparenta que a
“fazenda de concentração” onde se desenvolvem cenas horrendas contra corpos que
não pertencem ao Clã geneológico da família soberana demonstram condições
inumana as quais são expostas os corpos subalterno que tentam manter-se vivo a
qualquer custo. Aparenta que o corpo indígena e mestiço encontra-se condicionado a
vida nua, a expõem sua existência de explorável e matável na fazenda.
128

Em ‘Dadá-Gemada’ (1980) também não será diferente. Além das violações


temos novamente as personagens em situação de desamparo. Fragilizada/os e
submetida/os às violações. Naldo-Macuxi, indígena mestiço criado como filho pelos
donos da fazenda, vive a infância nos campos e serrados. Na adolescência é enviado
para estudar na cidade do Rio de Janeiro. Longe da família sofre intensos conflitos,
com a sensação de ter perdido seu destino. Torna-se usuário de drogas, abandona a
faculdade. Retorna ao Amazonas e segue até a cidade de Maués. Lá reencontra
Dadá-Gemada, também vitimada pelo desamparo e sucessivas agressões causadas
pelo ex-esposo. Esta, por sua vez havia abandonado a filha na fazenda e ido viver
com um homem que a forçava prostituir-se e manter relações sexuais forçadas, a peso
de espancamentos. Após isto, ela ampara Naldo-Macuxi que, recupera o rumo de sua
vida e acordam que ele irá retorna ao Rio de Janeiro, terminar a faculdade e, após
isto, juntos regressarão para Fazenda. A filha de Dadá-Gemada, Doçura-Amargura, é
o grande amor de Naldo-Macuxi e o motivo de seu retorno ao lar em que fora criado.
Porém, ela também sofrerá agressões. Após o falecimento do pai e abandonada pela
mãe é levada para outra região aos cuidados de parentes de seu falecido pai. É
violentada, gerando um filho. A saber:

Foi até o quintal, onde ela regava umas plantas e pediu-lhe que lhe fizesse
um café. Sem desconfiar de nada, a pobre criança entrou na cozinha. E
imediatamente Gastão pulou sobre ela, tapando sua boca e arrastando-a
para o quarto dele. Dadá defendia sua honra, enlouquecida, mas não era
mais a Dadá-Gemada cheia de vida e saúde que chegara ali e por isso
predominou a lei do mais forte e ele jogou-a brutalmente sobre a cama,
rasgou-lhe a roupa e possuiu-a como um animal sem entranhas, deixando-a
ferida, machucada e completamente exaurida. Depois saiu do quarto para
tomar agua e logo voltou. Dadá estava num canto da cama, jogada,
soluçando estremecidamente. [...] Então chegou perto dela e disse-lhe: - É
melhor ir para o seu quarto. Eu não disse, gata amarela, que você havia de
ser minha?! E saiu assobiando (MACAGGI 1980, p. 75).

As cenas horrendas reafirmam o corpo como escritas das históricas violações


contra mulheres. Após o acontecimento, Doçura-Amargura consegue sobreviver às
atrocidades e é socorrida e amparada por um casal de idosos. Recuperada, dá
conhecimento ao casal de todo seu amargor, os quais decidem ajudá-la a retornar à
fazenda. O desfecho é o reencontro com a mãe e o casamento com Naldo-Macuxi.
Destaquemos que a situação de violações apontadas no romance antecedes
estes não diferenciam-se quanto a intensidade dos acontecimentos de
129

desumanização do corpo subalternizado. Há certa similaridade quanto a figurações


de “espaços de Exceção” que põem a existência do corpo representado no romances
em constantes situações de extermínio e/ou de sentimento do esvaziamento de si.
No romance ‘Exaltação verde’ (1984) as cenas seguem a configuração dos
romances anteriores. Neste, o enredo apresenta um núcleo familiar de mestiços que,
após serem expulsos por grileiros de terras das margens do rio amazonas, migram
para a região do baixo Rio Branco. Nesse espaço formam uma colônia agrícola. O
núcleo central da trama se desenrola sobre a forma bárbara como a jovem mestiça,
Luana, é violentada. Vejamos na passagem a seguir:

Dois monstros meio trôpegos e barbados, pularam sobre ela, com os olhos
cuspindo volúpia e um deles, como um raio, lhe tapou a boca com as mãos.
E também como um raio, ela mordeu-a e ele largou um gemido de dor.
Furioso, deu-lhe uma bofetada tão grande que ela caiu sobre o capim e,
xingando-a, amarrou-lhe um pedaço de pano imundo que tirou do bolso. E
ela os reconheceu! Eram os dois bêbados do botequim! A cena foi horrível!
Luana se defendeu como pode, num esforço doloroso, sentindo aquelas
quatro mãos ásperas como lixa percorrendo seu corpo, desnudando-a e
aquele hálito horrível sobre seu rosto. Suas esperanças logo se
desvaneceram, pois frágil como era, de que jeito poderia vencer aqueles
tarados tão fortes? Arrastaram-na, rasgaram-lhe as roupas, arranharam-na,
morderam-na, um deles esculpiu-lhe no seio, com uma navalha, de leve, uma
cruz e a possuíram-na bestialmente (MACAGGI 1984, p. 251).

As cenas que envolvem a jovem Luana demonstram a maneira como o corpo


indígena, mestiço e feminino é representado na obra. Contudo essa recorrência nos
aponta para questões muito mais amplas. Ainda sobre o recorte deste trabalho, a
dinâmica de leitura nos traz indícios outros que podem esclarecer o tom depreciativo
referente a representação sobre o indígena nas obras, denunciadas pelas vozes das
personagens. Neste caso, entendemos que deva ser dado o sentido depreciativo
correlato a preconceito, desrespeito, exclusão e desprezo ao outro. O que ressoa nas
falas do narrador talvez reproduza o teor ideológico e preconceituoso construído sobre
aqueles e aquelas que não se incorporam por completo aos modos de vida e do poder
autoritário, alinhado e representativo do menosprezo, da pequenez, da subordinação,
violência e do preconceito aos indígenas mestiços e, principalmente, mulheres:
Os relatos bárbaros evidenciados anteriormente resultam de encontro étnicos,
em muitos casos não tão amistosos, evidenciam apontamentos de caracterização da
violência; efetivamente no sentido de Seligmann-Silva (2003) quando diz que o
130

período pós 1970 evidencia a ocorrência da barbárie e de um gênero mesclado entre


elementos estéticos e históricos na obra literárias.
Um a parte deve ser feito e ser ressaltado quanto a forma como o espaço é
tratado nas narrativas, visto que traz cintilações da adotado da maneira repressiva e
preconceituosa na proposta de povoamento da Amazônia brasileira, conforme afirma
Miranda, em Historiando a Terra de Macunaima: a questão indígena (2002, p. 167).
Talvez, além dos indícios de violência, possamos acrescentar a este o rastro deixado
pelo processo repressivo e violento pela qual passaram os povos indígenas durante o
expansionismo vivenciado na Amazônia. Nesse interim, o espaço narrado Circum-
Roraima e as diferentes representações sobre ele, apresentam indícios do que
Agamben (2002. P. 174) nominou “de campo como nómus do moderno”.
A violência e a visão depreciativa como são narrados os corpos indígenas
mestiços, também diluem-se na maneira subjetiva presente nas falas da personagem
Lauro; expressões como: ‘porco espinho pelado’, ‘mucura fedorenta’, ‘carrapatudo
piolhento’, ‘barriga empinada e cheia de lombriga’, ‘leproso de uma figa’, ‘mucura
velha’ são algumas das usadas por ele para se dirigir ao indígena; assim como a ‘Fera-
mãe’ a eles também se reporta: ‘lesma’, ‘bocós’, ‘bugres’, ‘teimosos’, ‘patifes’, etc.
Essas expressões estão imbuídas nas falas desses personagens e nos conduzem a
proposta expansionista na Amazônia deflagrada pelo Estado Novo.
A dinâmica das narrativas nos apontam ainda indícios que esclarecedores
quanto a forma de violência simbólica efetuada aos corpos indígenas nas obras.
Podemos entende-las enquanto efeitos da Biopolítica reverberados nas práticas
violadoras e preconceituosas dos donos da fazenda citados na obra o que fortalece
mais ainda a ideia de “Fazenda de Exceção”, em analogia aos Espaços de Exceção
anteriormente descritos.
Verifica-se que o corpo ‘politicamente desqualificado’ que subverte a ordinária
instituída em favor do poder soberano é passivo de violações e subjugo tendo em vista
não ser reconhecido no espaço ‘politicamente aceitável’ para o soberano. As
articulações discursivas permitem visualizarmos indícios de diferentes
desdobramentos nas respectivas obras. Justamente, na tentativa de encontrar
indícios outros dos efeitos da Biopolítica sobre os corpos que nos ocuparemos, no
tópico seguinte, de leitura analítica sobre a travestimento no romance A mulher do
garimpo (2012a).
131

4.2 O Corpo Travestido em ‘A Mulher do Garimpo’, de Nenê Macaggi

Na obra ‘A mulher do garimpo: um romance no extremo sertão do norte do


Amazonas’ (MACAGGI, 2012) é construído a partir dos deslocamentos do
protagonista José Otávio, desde a então capital da república, Rio de Janeiro, até o
espaço Amazônico-roraimense. A primeira edição do romance é de 1976, e o
transcorrer narrativo nos conduz à sobreposição de elementos da matéria literária,
escrituras de conflitos impressos na trajetória da protagonista. A narrativa se desdobra
em diferentes espaços, mostrando-nos que os dispositivos que regulam e controlam
em nome da sociedade patriarcal deixarão no corpo das personagens rastros de
configurações sociocultural e históricas.
Sobre a categoria dispositivo, Agamben (2017), ainda na condição de
comentadores de M. Foucault, são nossos referenciais, pois melhor conduzem essa
proposta de leitura do romance de Nenê Macaggi. Ainda que Foucault não tenha
delineado um conceito fechado para o termo dispositivo, a ideia aparece
problematizada em suas produções e nos dão indícios de que seria resultante de:

discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões


regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito
são os elementos do dispositivo (FOUCAULT, 2013, p. 244-245).

Os efeitos resultantes do dispositivo seriam estratégias de controle e captura.


Por outro lado, os comentadores do filósofo francês, apesar da dinâmica apontada
anteriormente, alongam o entendimento sobre o termo. G. Agamben (2009, p. 40),
afirma:

Generalizando posteriormente a já bastante ampla classe dos dispositivos


foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha
de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,
modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres viventes.

O ponto de reflexão de G. Agamben ganha força no exercício de controle não


apenas em espaços de confinamento, espécie de planejamento estratégico, amplia-
se a concepção do filósofo francêss. Vinculam-se a elas os efeitos e desdobramentos
132

do capitalismo e seus aparatos tecnológicos que incidem no dizer e no agir, ressoando


nas relações entre as pessoas e o próprio meio.
Podemos pensar na construção de uma filosofia política vinculada não só na
maneira de docilizar o sujeito (FOUCAULT, 1987) e de controlar o corpo que resiste,
mas também em quais estratégias que, nesse movimento dos dispositivos, surgem
como manifestos contrários à dominação e violência. Daí o exercício de
‘contraconduta’ buscar maneiras de romper esse processo na própria movência 34
entre/dos dispositivos, cujo engajamento incidirá na busca constante da intensidade
da vida, corpos que vibram a procura da felicidade (AGAMBEN, 2009, p. 44); pois, se
está na Biopolítica a captura dos sujeitos, é justamente nessa relação que se encontra
a resistência. A forma dinâmica do resistir Esposito (2011, p. 50) nomeia “[...]
biopolitica afirmativa, ya no definida por lo poder sobre la vida, como el que conoció
el siglo passado em todas sus totalidades, sino um poder de la vida”. Nesta, a vida
enquanto potência é o centro da reflexão.
Alongando esse pensamento para o suposto “local isolado” onde se desenrola
a última parte da narrativa em questão, ‘o extremo sertão norte do Amazonas’, talvez
seja ele a metáfora da fronteira a ser alcançada e docilizada pelo poder
estatal/soberano. Assim, formulamos o seguinte questionamento: seria ele um espaço
onde os corpos dinamizam também maneiras de resistências?
Partimos desse questionamento, pois o ponto central da trama/narrativa
configura-se na região de garimpo do ‘extremo sertão norte do Amazonas. Lá, onde
José Otávio também irá experimentar os mais diferentes acontecimentos, aparenta
ser o lugar onde “os bárbaros” vivem, necessitando de civilidade, educação e saúde.
Destacamos que apesar das indícios do exotismo apontados na obra,
acreditamos que nele escondem-se tensões conflituosas e polêmicas. Desse modo, o
aspecto regionalista defendido por estudiosos que têm se interessado pelos romances
da autora, como Almada (2015), seria a primeira de muitas outras possibilidades que
o romance pode nos apontar. Os elementos estatizantes canonizados como centro da
reflexão (MIBIELLI 2016) poderá ser oportuno em outro momento. Optamos pela
perspectiva do que nos denunciam os rastros deixados nas fissuras, nódoas, entre
cobertas no dizer narrativo que nos levam a uma escrituração da materialidade

34 Terminologia entendida aqui como: mobilidade, dinamismo, articulação, rede de ações.


133

literária; neste caso, o corpo como escritura de resistência afirmativa, contrário às


violações representativas do etnocentrismo.
Entendemos que na obra a categoria corpo representa a escrita cartográfica do
trajeto de José Otávio, protagonista da narrativa. Lembremos, ainda, que apesar de
ter sua primeira publicação em meados da década de 1970, a trama narrada acena
para momentos anteriores, período de grande efervescência causado pelos projetos
desenvolvimentistas que elegeram a Amazônia como campo a ser povoado, retirado
da barbárie, carente de desenvolvimento, como se nela não houvesse dinâmica social
muito antes dessas propostas.
Vale ressaltar que, nesse momento, vivenciava-se o período da ditadura civil-
militar brasileira, cujos dispositivos aplicados deixaram marcas profundas na
configuração social da região, agindo na tentativa de anular toda dinâmica de
‘contraconduta’. Seguindo essa linha de entendimento, refletimos que se os
dispositivos de controle do poder soberano, e tudo o que eles representam, diluem-se
nas práticas sociais e artísticas escrituras da história, então seguimos a linha de que
a obra pode nos revelar muito sobre o tema.
Nossa busca é pautada no travestimento enquanto dispositivo, recurso usado
para afastar as possibilidades (as tentações) de violação do corpo feminino em
situação vulnerável, o que nos mostra indícios do discurso heteronormativo, a
representar na narrativa a ressonância do poder patriarcal. Defendemos essa
premissa, pois tanto o francês Foucault quanto os filósofos de linhagem italiana nos
mostram que é na movência do dispositivo de poder que a resistência se afirma.
Dessa maneira, o “investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e gestão
distributiva de suas forças” (FOUCAULT, 1999, p. 133) representariam as práticas de
violência presentes na escrituração literária. Tal delineamento não pode ser
naturalizado, reveladores do corpo como rastro da investida Biopolítica.
Migrações, garimpagem, pistolagem, expansionismo desenvolvimentista do
Estado Novo serão as configurações sócio-históricas contribuidoras de interpretações
rudimentares sobre o ‘extremo sertão norte do Amazonas’ enquanto espaço de
barbárie e carecendo do poder interventivo do Estado. Retomemos o discurso do
então presidente Getúlio Vargas, proferido em Manaus, em 10 de outubro de 1940,
nos leva a essa abordagem:
134

Até agora o clima caluniado impediu que de outras regiões com excesso
demográfico viessem os contingentes humanos de que carece a Amazônia.
Vulgarizou-se a noção, hoje desautorizada, de que as terras equatoriais são
impróprias à civilização. Os fatos e as conquistas da técnica provam o
contrário e mostram, com o nosso próprio exemplo, como é possível, às
margens do grande rio, implantar uma civilização única e peculiar, rica de
elementos vitais e apta a crescer e prosperar (VARGAS, 1940).

É valido frisar que a formação do Estado moderno está vinculada ao poder


sobre a vida; pois a relevância do conhecimento sobre o território como meio de
averiguar a dinâmica social de seus habitantes e ocupa-lo com a presença do Estado
é um dispositivo estratégico de controle em evidência. Dessa maneira, o discurso
proferido por Vargas (1940) não foge ao propósito do poder soberano constituído.
Parece-nos ocorrer reverberações desse discurso na obra em questão, como no
trecho a seguir:

Sim! Um dia o Amazonas ressurgirá, primeiro com a lavoura, a Pecuária e as


Rodovias Interioranas e Internacionais! E, mais tarde com o Petróleo! O Brasil
espera pacientemente esse Milagre! Ele não tardará” (MACAGGI 2012a, p.
55)

A citação nos indicia a mesma configuração ideológica apontada nos


dispositivos da sociedade de controle descritas na fala de Vargas (1940). Dessa
maneira, o Norte narrado vai sendo construído a partir de sondagem de proposta de
crescimento demográfico, dinâmica migratória, dos infortúnios endêmicos; tantos
outros meios usados com intuito de criar práticas e estratégias de ação ratificadora da
presença e afirmação do Estado moderno controlador. Tal propósito apresenta a vida
submetida ao controle, docilizada, confirmando a presença do Estado nação como
poder soberano, aquele que determina e conduz a vida dos viventes em uma
“anatomia política” que irá operar no corpo do indivíduo (FOUCAULT 1987, p. 127).
Ao que consta, os desdobramentos da Biopolítica apontam ressonâncias no
campo das artes de modo geral e a literatura não ficará fora dessa movimentação.
Associado a isto, vale destacar que historicamente na sociedade patriarcal, soberana,
ocorre um anulamento da mulher pelo discurso heteronormativo (BUTLER, 2018, p.
26) que construiu e naturalizou a tese da inferioridade feminina. Isso pode ser
relacionado à obra em questão a partir do travestimento sofrido por Ádria; parece-nos
que para chegar a esse rastro deixado só é possível a partir das ocultações que
apontam conflitos entre as personagens.
135

Essa reflexão, além de nos dar indícios sobre o teor subjetivo do texto, pode
conduzir-nos a uma crítica à perpetuação de práticas que se naturalizam em nossa
sociedade contemporânea. Revelar essa “ocultação” é, também, olhar o fenômeno
por outro viés, possibilitando maior visibilidade aos escritos deixados por Macaggi.
A naturalização de costumes patriarcais, como reverberações do poder
soberano, suas decisões sobre as verdades que sustentaram sua permanência no
centro das ações chegam a invisibilizar a produção artística de diferentes autoras e
autores. Sobre este ponto de vista:

a história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje
na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e
anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da
genealogia nas sociedades patriarcais do passado: primeiro, a sucessão
cronológica de guerreiros heroicos; o outro, a sucessão de escritores
brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com
heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como
casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço
para mulheres ‘normais’ (LEMAIRE,1994, p. 58).

Essa condição de marginalidade atinge também as obras deixadas por Macaggi


e aparentam coadunar com o próprio trânsito da protagonista de ‘A mulher do
garimpo’, em que pese uma tentativa constante de empoderamento, de soltar a voz,
de libertar-se da condição de aprisionamento imposto pelo poder androcêntrico
socialmente constituído, afirmador da voz do homem como juízo final do dizer e,
principalmente, do fazer.
A questão do travestimento enquanto dispositivo de salvaguarda do corpo
feminino, vulnerável e exposto a diferentes violações, nos conduz à normatização
imposta a ele, escriturando maneiras de entendimentos que estariam para além do
debate sobre exotismo regionalista. Vejamos:

Aos sete anos estava no Grupo escolar do Largo do Machado. Inteligente e


estudiosa, andava sempre vestida de homem e chamavam-na de José
Otávio. É que Jãojão-Bico-de-Lacre, em sua profissão trabalhando sempre
com a escória e sabendo a quanto chega a maldade humana, para
salvaguardar a integridade física da menina, achou melhor fazê-la passar por
garoto. Depressa ela se acostumou com os trajos e aos poucos foi adquirindo
hábitos do sexo oposto (MACAGGI, 2012a, p.34).

O “silêncio” ao qual foi submetido o corpo de Ádria pontua sobre liberdades


outras, vinculadas ao travestimento do corpo para evitar as potenciais violações no
136

ambiente socialmente construído para o pensamento heteronormativo. É notória,


ainda, a maneira ‘dócil’ como isso vai se configurando na narrativa.
Dessa forma, a (re)construção do corpo de Ádria, agora como José Otávio,
estará veiculada a referenciais masculinos, seja no ambiente escolar ou nas diferentes
atividades laborais que irá assumir durante a narrativa: jornaleiro, motorista,
garimpeiro e, ainda, “copeiro, mensageiro, auxiliar de escritório, bilheteiro de cinema
e vendedor de pão. Também lavou pratos em restaurantes chineses. Teve também
muitas apaixonadas, das quais fugia como um diabo da cruz. Nunca amou”
(MACAGGI 2012a, p.45).
Os fragmentos que se sucederam anteriormente aparentam uma afirmação da
violência pela linguagem, uma espécie de naturalização da Biopolítica em que a voz
soberana ressoa como verdade androcêntrica (BUTLER 2018, p. 26). Em outra
passagem:

Você parece aborrecido, José Otávio. O que há?


- Nada. É que me enerva estas moças me olharem tanto, como se quisessem
me conquistar. Eu não gosto de namoro. Nunca namorei em minha vida. Não
tenho jeito.
- Mas como você é esquisito, rapaz! Onde já se viu moço de sua idade não
namorar? Podia até arranjar uma noiva por aqui (MACAGGI, 2012a, p.112).

A citação narrativa apresenta as atitudes de José Otávio em permanente


conflito interior frente à ‘vestimenta’ andrógina que lhe cobre. Inicialmente observamos
certo afastamento das ‘apaixonadas/moças’ que dele(a) se aproximam. As situações
conflituosas demandadas nas relações estabelecidas pela personagem mostram que
o distanciamento das mulheres que dele/a se aproximam pode também ser entendido
como um clamor por libertar-se. Romper com tudo e mostrar-se mulher/homem. Amar
à maneira intensa que pretende amar. Gozar a vida com o/a outro/a, mesmo que a
voz andrógina ressoe no fragmento exigindo a obrigatoriedade da relação de namoro
apenas entre homem e mulher, condicionando essa lógica a um enlace matrimonial.
O “per-vertimento da regra talvez seja o clamor que guarda o corpo de Àdria. Vê-se,
na passagem em que se faz revelar a intensa paixão que a personagem Florzinha
nutre por José Otávio, que a recusa feita por ele/a, conduzirá Florzinha ao suicídio.

- Meu amor! Tome-me, sou sua!


- Mas flôr... Que é isto? Pelo amor de Deus vá embora criatura! Esqueça-se
de mim, que Deus é testemunha de que é humanamente impossível te amar!
137

Esqueça-me! ... Vá embora (MACAGGI 2012a, p. 243).

- E o rifle, cortando as águas, afundou também para sempre (MACAGGI


2012a, p. 249).

Nesses conflitos e angústias José Otávio vai configurando-se na trama,


reprimindo sentimentos e desejos moldados pela sociedade patriarcal que elege
condutas e práticas sociais como únicas e verdadeiras, naturalizando preconceitos,
abusos e violências contra tudo o que foge ao seu controle.
Em outra passagem, a apresentação de Florzinha feita pelo pai a José Otávio
é reveladora e se diluem no narrado, demonstram a docilização do corpo por outro
viés; parece-nos que o corpo feminino estaria apenas vinculado e socialmente
construído para os afazeres do lar, do matrimônio e do que lhe foi ensinado na escola.
Vejamos:

E o próprio Vicente Pitó veio servi-lo. Olhou para a filha muito vermelha e
disse:
- O senhor num arrepare neste meu diabinho que só está ocupado quando o
senhor vem aqui (MACAGGI 2012a, p. 193).

Florzinha, a filha era muito caprichosa. Bordava, costurava, lavava e


cozinhava. [....] Florzinha era especialista em doce de mamão (MACAGGI
2012a, p. 198).

Já foi pedida em casamento várias vezes [...]. Tem boa instrução, apesar de
engolir os rr finais. Cursou o Colégio das Dorotéias em Manaus e é muito
prendada. Além disso é herdeira de quase oitocentos quilates de bons
diamantes (MACAGGI 2012a, p. 201).

Entendemos a recusa desses ‘dotes’, dispositivos formatadores da vida


conjugal na sociedade patriarcal, por parte de José Otávio, como uma provocação aos
costumes que tipificam e condicionam a relação conjugal à questões vinculadas a
bens materiais economicamente constituídos. Mesmo o pai de Florzinha ofertando ao
jovem garimpeiro todo seu patrimônio em favor do casamento de sua filha, José Otávio
não aceita.
Parece-nos que ele/a repudia não o sentimento da ‘moça’ por si, mas a
condição de corpo-enclausurado em que se encontra e que o impediria de vivenciar a
relação nos moldes estabelecidos pela sociedade moldada pela androgenia. O ato de
revelar-se mulher aparece em passagens pontuais na narrativa. Nos raros momentos
138

em que deixa transparecer sua feminilidade, a personagem desperta nos homens do


cortiço o desejo em possuí-lo(a).

Muitos o odiavam porque era simpático e delicado [...]: Cristina-Monta-Burro.


Um novo amásio seu descobrira, por indiscrição dela, que José Otavio era
mulher. Desejou-o, tentou violentá-lo. [...] Sem nunca conseguir ver quem era,
jogavam-lhe pedras, lixo e água. Por isso deixou, cheio de mágoa, o grande
casarão onde nascera e crescera (MACAGGI, 2012a, p.45).

Os indícios de preconceito e as tentativas de violação investidas contra Ádria


demonstram algo para além da liberdade individual; percebemos elos norteadores
referentes a emancipação do corpo sob constante ameaça de violação. Sobre isso,
verifica-se que as relações de poder e docilização sobre o outro vinculam-se
principalmente às representações opressoras, vozes soberanas (RIBEIRO, 2008, p.
63).
Em ‘A mulher do garimpo’ as cintilações de liberdade social ressoam como um
conjunto de metáforas nas tensões sociais que se potencializam a partir do plano
individual da protagonista. Assumir-se como mulher, construída no corpo de homem,
nas condições sociais que lhes foram impostas, seria romper com o pensamento
androcêntrico que tanto a angustiava. Os conflitos nos conduzem a entender o
travestimento de Ádria como um dispositivo usado na tentativa de evitar a violação;
porém, as constantes aflições geradas dessa condição seriam marcas da lógica do
poder soberano, representados pela voz androcentrica atuando na narrativa.
Talvez esse indício demonstre a tentativa de afirmar-se mulher em um corpo
de homem ou vice-versa, em uma dialética homoafetiva, negada em algumas
passagens da narrativa, mas denunciada nos gracejos que José Otávio troca com
Florzinha e com os amigos de currutela35. Parece-nos que redimir-se ao desejo
“impossível” na dinâmica do garimpo é despojar-se de seus gozos e segredos mais
íntimos entregando-se ao outro apenas como mulher.
A narrativa ironicamente reconstrói a configuração sociopatriarcal. É como se
Ádria estivesse envolvida em uma ‘vestimenta’ que não a/o possibilitasse revelar o
que realmente sente/deseja no espaço em que se encontrava. A autodefesa seria uma

35Currutelaé o nome dado ao lugar onde os garimpeiros da beira do rio Madeira, Amazonas, vão ao
encontro de prostitutas, bebidas, músicas ao fim do dia, podendo ser até mesmo em barracas de lona.
Zona, casa de prostituição, boates também são chamados de currutela.
139

entre as tantas maneiras de expor sua indignação, fosse na recusa à proposta de


casamento com Florzinha, fosse no combate corporal travado contra “América-do-
norte’, personagem que tenta violentá-la/o no garimpo.
Voltar ao corpo de mulher, posição afirmativa que só ocorre mediante sua
reação frente às agressões sofridas no garimpo, dá-lhe a condição de pertencer a
‘vida politicamente qualificada' (AGAMBEN 2002, p. 11) dos homens do garimpo,
como mulher. Parece-nos que voltar ao corpo feminino não seria aceitar a condição
de soberania, mas a maneira de resistir, afirmando sua feminilidade combativa às
práticas de abuso, mesmo que, para isso tenha que reprimir seus desejos mais
íntimos.
A revelação do/s corpo/s ocorre diante da violência praticada por América-do-
norte contra José Otávio, pois as atitudes deste, supostamente não condiziam com a
de um “macho” do garimpo. Tal condição desperta o interesse de América-do-norte,
personagem agressivo e violento que, para demonstrar sua masculinidade e poder no
garimpo, tenta possuí-lo/a diferentes vezes: “A Ruivinha [...] A Mulher do Garimpo vai
se haver comigo. Vou dar em cima, vocês vão ver. E vamos nos divertir! Prometo! [...]
Vou lhe dar dois beijos na boca e quero ver o que ele faz. (MACAGGI 2012a, p. 274).
Os fragmentos reafirmam práticas abusivas e tentativas de violações do corpo
da protagonista, porém o enfrentamento de José Otávio é aceito no garimpo sob o
condicionante travestimento, salvaguarda do corpo, e sinaliza sua afirmação de
“macho”, após luta corporal com seu oponente. Posterior ao combate contra América-
do-Norte, José Otávio se revela mulher a Pedro Rocha, seu amigo de garimpagem.
Somente após essa revelação, eles assumem o romance no garimpo.

Apenas perguntou, num cicio:


- Seu nome, querida?
- Ádria... Ádria de Azevedo... adormecendo suavemente.
[...]
Ádria narrou-lhe sua vida, desde o Cortiço carioca até o
Tepequém.
[...]
- Deus que me dê saúde e forças para fazê-la feliz como merece, Ádria de
Azevedo... Ádria de Azevedo Rocha. (MACAGGI 2012a, p. 381).

Partindo do enredo narrativo é possível aproximar esta obra do romance de


Guimarães Rosa (1986). Porém, ao contrário deste último indicar que a afirmação da
mulher se dá apenas pela morte de Diadorim (TIBURI, 2013), em Macaggi, a
140

afirmação da vida se dá pela maneira resistente de ser mulher, para além das
fronteiras dos territórios que definem gênero e sexualidade. Porém, a noção de vida
nua, marcada em A Mulher do Garimpo, em referência ao travestimeto pode nos
apontar constante situações de Exceção tornando-se regra a ser narrada. Dessa
maneira, a narrativa sobre Ádria as cenas de barbárie presentes na narrativa em torna
o ponto culminante do romance. Em ‘A mulher do garimpo’ o que temos poderia ser
interpretado como uma provocação à sociedade patriarcal que se instaurou na Região
do Circum-Roraima, representado nos romance em análise. É possível perceber
ainda, o travestimento enquanto dispositivo operando como salvaguarda do corpo
feminino. Dessa maneira, entendemos que o travestimento não aparece nas referidas
obras de maneira ocasional pode, sim, demonstrar-nos clamores outros omitidos e
silenciados ao longo dos tempos.
É possível concluir que, conforme Candido (2016)36, só é franqueado a mulher
atuar no garimpo em condições inferiores; na obra de Macaggi, a afirmação de Ádria
como mulher em meio aos garimpeiros demonstra que José Otávio, travestido, além
de representar o dispositivo de resguardo do corpo é também a maneira inventiva de
provocação ao poder soberano e patriarcal. Nesse contexto, em ‘A mulher do
garimpo’, o corpo de Ádria demonstra não a ‘mera vida’, mas o corpo que elege a vida
como ato político. Ressaltemos que Candido (2016) aborda a figura emblemática de
Marina Meu Caso – ‘a goiana ‘38’, que para atuar no garimpo da em Itaituba-Pará,
travestiu-se de homem e assim tentar fortuna.

Quando estava no garimpo em Itaituba, no interior do Pará, tinha o seu


restaurante “Recanto da Marina” e para manter à distância os assédios dos
garimpeiros, portava na bolsa um revólver e, como dizia que tinha vindo de
Goiânia, em Goiás, passou a ser conhecida como a “Goiânia do 38”.Em outra
ocasião, quando precisou entrar no Garimpo de Serra Pelada, no sudeste do
Pará, se travestiu de homem e assumiu o nome: “Geraldo Brandão dos
Santos”, já que era proibida a presença de mulheres no garimpo.(CÂNDIDO
2016)

Ressalte-se que, que a exemplo de Àdria (MACAGGI 2012a), o fragmento


trazido por Cândido (2016) nos aponta o dispositivo de salvaguarda do corpo atuando

36Disponívelem < https://folhabv.com.br/coluna/Personagem-da-Nossa-Historia/1917.> acessado em:


03 de julho de 2019.
141

como apropriação dos dispositivos de poder para permanecer re-existindo,


possibilitando des-confiar do processo histórico que o constitui na
Heteronormatividade. Pensando por este ângulo, caberia uma indagação última: seria
a obra uma metáfora da emergência do corpo-travestido revelando a vida por olhares
outros?

4.3 A BR 174 e a Profanação no Espaço Narrativo

Não chegou o rapaz a andar uns metros, quando Carne gritou por ele: - José,
venha aqui! Grande novidade! Depressa, rapaz!
O futuro garimpeiro aproximou-se rapidamente e prestou atenção. e ouviu,
três, quatro vezes, a sensacional notícia da declaração de guerra do Brasil a
Alemanha e à Itália. Quatorze nações, entre as quais a Inglaterra, os Estados
Unidos, a Rússia, a França, a Holanda, a Bélgica, a Tchecoslováquia, a
Grécia, a Polônia e a Yugoslávia cantaram hinos nacionais em homenagem
ao Brasil. Os Estados Unidos leram uma homenagem de Rousevelt a Getúlio
Varga, muito bonita. (MACAGGI 2012a, 144)

O professor Marcos Reigota, no ensaio A devastação ecológica em cinzas do


norte de Milton Hatoum (2014, p. 709)37, estudioso de questões referentes à
ecocrítica, ao estudar a obra do escritor amazonense evidencia que os efeitos
causados pelos processos biopolíticos agiram também como potencializadores de
práticas de resistência, principalmente no campo cientifico. O estudioso pontua que
no campo artístico literário o período pós segunda guerra mundial tenha sido momento
chave para a circulação de obras literárias que ressoaram elementos residuais de
práticas sociais e políticas relacionados com tal período. Ao que vemos o fragmento
que abre esta seção não foge a regra comentada pelo crítico e nos leva a verificarmos
que os desdobramentos da trama narrativa perpassa por referentes ligados a
ocupação do espaço amazônico a partir das ações empreendidas pelo Estado Novo.
Considerando o que vem sendo discutido, acreditamos que os romances do
Circum-Roraima também apontam para uma literatura cujo repertório temático
vinculado aos encontro étnicos trazem resíduos de desdobramentos da Biopolítica na
Amazônia fronteiriça e os efeitos causadores de práticas violadoras no espaço
narrado. A saber, revelariam os espaços profanados, no sentido de G. Agamben
(2007).

37Reigota,M. A devastação ecológica em cinzas do norte de Milton Hatoum. Psicologia & Sociedade,
26(3), 707-715, 2014.
142

A perspectiva economicista implementada no Brasil através do período político


do Estado Novo, capitaneado pelo então presidente Getúlio Vargas, introduziu na
Amazônia formas desenvolvimentistas sustentadas nas práticas de desflorestamento
que originaram significativas mudanças nas formas sociais e culturais do espaço
amazônico. O governo desenvolvimentista, a partir de então, foi deixando rastros de
suas práticas, principalmente de devastação ecológica, que ressoaram em diferentes
produções artística.
O campo literário não ficou fora disso e ao que consta os romances do Circum-
Roraima, considerando a forma criativa como a artista apropriou-se de
acontecimentos e eventos no arcabouço ficcional, desdobra o discurso narrativo nos
ofertando o espaço tomados por recorrentes figurações violentas e encontros étnicos.
Recordemos que em momentos anteriores, ao longo desta tese, apontamos
indícios de representações de formas de vidas narradas nos romances que se
aproximam do que Giorgio Agamben (2002) nominou de vida nua. A saber que essa
categoria apresentada por Agamben reverbera aquilo que, atingido pelos efeitos da
violenta e silenciosa forma de atuação Biopolítica, não atende e/ou atrapalham a
lógica soberania capitalista, que “[...] devolve ao uso comum os espaços que ele havia
confiscado” (AGAMBEN 2007, p. 68).
Seguindo essa linha reflexiva, passamos a entender que tais procedimentos de
recurso discursivos em uso nas narrativas, atuam enquanto dispositivos estratégicos
nas narrativas, ressoando práticas sociais autoritárias e preconceituosas capturadas
pelo artista através do elemento ficcional presente nos romances do Circum-Roraima.
A título de exemplo quanto a forma como os artistas exploraram o momento
autoritário no campo literário amazônico, podemos citar as obras de Milton Hatoum,
em Cinzas do Norte (2006); e, para além deste, citemos ainda Benedito Monteiro, em
Como se faz um guerrilheiro (1974)38 e Delcidio Jurandir, em Belém do Grão-Pará
(2004)39 e Chove nos campos de Cachoeira (2011)40. Corroboram nas referidas
narrativa o espaço de violações e transformações, o que nos leva a referendar que,
quanto a essas inferências, os romances do Circum-Roraima alinham-se a tais
escrituras. Nesse interim, nos perguntamos se é possível pensar o espaço narrado

38 MONTEIRO, Benedicto. Verde Vagomundo. 2 ed. Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. 257 p
39 JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Belém: EDUFPA, 2004.
40 _______. Chove nos Campos de Cachoeira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.
143

nos romances do Circum-Roraima a partir do que nos recomenta G. Agamben quanto


a profanação?
Ao escolhermos para esta seção a categoria espaço enquanto ponto de análise
nas obras de N. Macaggi entendemos que comparece de maneira significativa nas
escriturações dos romances, a geografia da Amazônia, integrada ao espaço literário,
apontando para a forma criativa de construção de territórios criados pela escrita.
Quanto a esta questão, Gaston Bachelard, nos faz lembrar que “o espaço percebido
pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à
reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com
todas as parcialidades da imaginação.” (BACHELARD, 2001, p. 19). Por este ângulo,
o espaço articula-se nos romances inscrevendo memórias de encontros étnicos
ocasionados pelos efeitos biopolíticos, transfigurados ao texto literário; sendo,
portanto, espaços vividos e ficcionalizados.
Evidenciar o espaço literário é tratar de espaço e de tempo ficcional que traz
reverberações de processos biopolíticos na Amazônia narrada por Macaggi, cujos
estudos dessa categoria literária podem nos trazem indícios do que nos orienta G.
Agamben:

“[...] o espaço da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma


dupla exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso
no profano, que configura uma zona de indiferença entre o sacrifício e o
homicídio”. (AGAMBEN 2004, p 85)

Tendo em vista que a condição de marginalidade atribuída ao espaço nos


romances do Circum-Roraima, é possível associa-lo ao que o fragmento textual
supracitado nos evidencia. Esse espaço onde as relações de poder se inscrevem e
delineiam os rasgos de violações imprimem as narrativas a condição do espaço
enquanto profanação. Visto que atua enquanto interdito para os propósitos
desenvolvimentista a ser implantado.
Relativo a essa questão, entendemos que as tramas narrativas apresentam a
noção de devastação ecológica pensado por M. Reigota (2014) de maneira residual,
que apontariam práticas de desobstrução do interdito. Entendendo assim, o espaço
narrativo em transformação, construído por Nenê Macaggi nos permitiria verificar que,
processos agressivos de desflorestamentos e violações do meio ambiente, nos levam
a pensar que esta prática seria uma forma discursiva de profanação. O espaço
144

marginalizado, sobre os influxos dos efeitos violadores da Biopolítica, desenham a


movimentação contradiscursiva, indiciadas de diferentes maneiras nos romances.
Nesse sentido, são recorrentes passagens cuja voz do narrador configura
repertório de acontecimentos e dispositivos que demonstram modificações no espaço
através da violação do ambiente narrado, oriundos dos efeitos biopolíticos que atua
na transformação de pequenas comunidades em áreas urbanizadas e
economicamente produtiva, a exemplo do que ocorre com Boa Vista. Vejamos:

“Luana estava na proa, atenta e de repente gritou: - Pai, uh, pai, olhe, lá está
ela! Lá está ela!
Era de fato Boa Vista, a bela cidade-leque bordada de mangueiras, antiga
Freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Boa Vista, outrora uma cila e hoje
cidade cheia de gente boa e hospitaleira[...]” (MACAGGI 2012ª, p. 233)

Os efeitos da Biopolítica que emergem no fragmento citado, se desdobram nos


romances indiciando modificações do meio ambiente, espaços em processo de
transformações vistos que nos enredos narrativos apontam a região do Circum-
Roraima em dinâmica constante. A forma como o espaço é redimensionado aproxima-
se do que “Félix Guattari (1991) esboçou em “As três ecologias” e Ana Godoy (2008),
em “A menor das ecologias”” (REIGOTA 2014, p. 707), não diferem desses
argumentos os estudos feitos por Sarmento-Pantoja41 quando de suas reflexões sobre
um dos romances escritos por Milton Hatoum a respeito do grotesco enquanto forma
criativa reveladora de práticas violentas e devastadoras. Segundo ela:

Nesse romance de Hatoum o problema do dizer sobre a profanação passa


fundamentalmente pela esfera da arte. E isso não necessariamente pelo fato
de se tratar de um romance, mas, sobretudo, por dizer com a arte, pois no
romance o grotesco está especialmente sintetizado nos objetos artísticos
produzidos por Mundo, protagonista da narrativa. Entre essas manifestações
artísticas encontram-se caricaturas, desenhos, instalações, porém, o
grotesco não se manifesta apenas nas composições artísticas desse
personagem, também se faz presente em outras imagens, como por exemplo,
as que estão no ateliê do Arama, um dos lugares favoritos de Mundo, usado
por ele para refugiar-se das opressões do pai. A arte torna-se assim um lugar
de aninhamento e, ao mesmo tempo, instrumento de representabilidade do
sufoco psíquico que afeta o protagonista ao longo de sua infância e primeira
juventude. Nesse sentido, é preciso destacar que há um objeto artístico – uma
instalação – produzido por Mundo, entre os muitos apresentados em Cinzas
do Norte, que pode potencialmente ser lido como processo de

41Para uma análise de como as formas desfiguradas (particularmente as grotescas e zoomórficas)


figuram na arte de Mundo dentro do romance, ver: Sarmento-Pantoja, Tânia. “Efeitos de grotesco em
Cinzas do Norte, de Milton Hatoum”. Anais do Silel, Uberlândia, v. 2, n. 2, 2011. Disponível em:
http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2011/2191.pdf . Acesso em: 16 jun. 2019. 22.
145

representabilidade da violência, ora individual, pois por ele vivenciada, ora


coletiva, na medida em que a matéria histórica, a ditadura de 1964, invade a
narrativa.” (SARMENTO-PANTOJA 2011, p. 147)

Neste caso, o que nos apresenta Sarmento-Pantoja alinha-se a forma como o


artista manifesta sua interpretação dos efeitos da Biopolítica ressignificando espaço
grotesco e de potencial aos manifesto de resistência, principalmente quando as
escriturações historiográficas materializam-se em indícios que nos conduzem aos
efeitos de períodos referentes a ditadura civil militar na Amazônia. Pensando por este
viés é possível que a linguagem artística adotada por Nenê Macaggi ressoe indícios
de devastações causadas ao longo da construção da BR 174 enquanto formas
potenciais de manifestar-se frente as violações do espaço. Opera contribuidora para
essa ‘representabilidade’ a forma grotesca de narrar o espaço e as pessoas do lugar.
Recordemos que o professor Pedro Mandagará, no ensaio O dorso da cutia e
as formas de ver este mundo (2019) pode nos auxiliar a pensar tais efeitos. Segundo
ele:

Em Roraima, a construção de estradas deixou caminhos de genocídio e


etnocídio. A abandonada Perimetral Norte resultou no genocídio de
populações yanomami. A parte sul da BR-174 trouxe o genocídio dos waimiri-
atroari, nos anos 1970. Sua parte norte, de Boa Vista até Pacaraima, resultou
em processo etnocida contínuo sobre as populações das TIs São Marcos e
Raposa Serra do Sol que vivem próximas à estrada.” (MANDAGARÁ 2019,
p. 16)42

As recorrências de acontecimentos referentes aos processos biopoliticos na


Amazônia, cuja materialidade narrativa apresenta recorrentes indícios que se alinham
à proposta do estadonovismo brasileiro referente a abertura de rodovias
transnacionas objetivando integrar o áreas supostamente isoladas do restante do pais.
Neste caso, especificamente operava o discurso integracionista de delineamento
fronteiriço do pais para que se afirmasse a soberania brasileira na Amazônia. No
projeto viário pensado para a Amazônia abriu rasgos significativos na história social
da Amazônia. Quanto a isto, podemos citar a perimetral norte (BR 210) que Davi
Kopenaua, na obra “A queda do Céu” (2015), dá seu testemunho frente aos efeitos
aniquiladores ao povo Yanomami; não menos agressiva foi a construção da BR 174,

42Disponívelem: <http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/72-
resenha/2265-makunaima-obra-re%C3%BAne-antigas-hist%C3%B3rias-de-ind%C3%ADgenas-de-
roraima.html> Acessado em 07/08/2019.
146

cujo rasgo na floresta amazônica aberto expôs a forma mais cruel e inumana dos
efeitos da Biopolítica. Se o etnocídio praticado contra os Yanomami recebeu grande
repercução a interdição de boa parte da BR 210, isto não ocorreu com a 174, pois o
objetivo de interligar o estado do amazonas ao caribe venezuelano foi cumprido e os
danos causados ao Waimiri-Atroari, talvez até mais agravante que os Yanomami,
omitidos pela “História Oficial” sobre o estado integracionista na Amazônia. Na ação,
os Waimiri Atroari beiraram o extermínio por completo de seu povo. O violento
processo desenvolvimentista tem nas estradas seu maior símbolo de intervenção e
impacto na transformação do espaço. Quanto a isto, Macaggi, em Dadá Gemada
(1980), narra que:

“E essas estradas corriam para Venezuela, Guyana e Manaus, interligando


os pontos mais distantes do Grande Roraima.
O progresso! O progresso chegara para a sua terra. Progresso para a capital,
progresso para o interior, lançando seus braços possantes para todos os
lados e suas mãos hábeis instalando novas colônias agrícolas e carreando
maquinaria, mudas e sementes para as fazendas e futuras cidades da
fronteira, começando também a distribuir comprovantes e títulos definitivos
das posses de terra!” (MACAGGI 1980, p. 173)

O efeitos dos dispositivos estrada foram sintomáticos na formatação social,


política e étnica da Amazônia pós década de 1960. Dizemos dessa maneira posto que
diferentes fragmentos, verifica-se que o interdito para o desenvolvimento da região
seria, também, o espaço inóspito e rudimentar. A maneira discursiva grotesca de
referir-se ao espaço narrado nos diz que ele também atua nas narrativas, em mesmo
plano que o corpo mestiço e indígena. É, ele que atingido pelas sucessivas violações
protagonizadas pelo estado desenvolvimentista, integracionista, mas osrastros
deixados pela voz do narrador nos aponta praticas etnocídas. O espaço coaduna em
semelhante trato no discurso que o excluí da modernidade, do ‘espaço politicamente
qualificado’, em analogia a Agamben (2002):

“Por tudo isso é que o forasteiro, entre deslumbrado e temeroso vê em


avassaladora e inconsciente perturbação estética, o Amazonas apenas como
região inconcebível, insegura à vida do homem na instabilidade geológica e
inadaptável, por consequência a toda e qualquer tentativa de progresso.
- Terra atrasada – dirá. Vida parasitária, sem ideais nem patriotismo. Terra
onde o homem braceja e estertora tateando o futuro, inamoldado ao
improdutivo nomadismo que a natureza bárbara e paradoxal lhe impõe.”
(MACAGGI 2012a, p. 52)
147

A partir da citação é possível pensarmos que a forma representada na narrativa


o espaço amazônico como rudimentar - embrutecida e inóspita - profaniza e provoca
o poder soberano e sua vertente etnocida, a bem da ordem econômica e da nação.
Ademais, o fragmento demonstra a recorrência de representações violadoras por
parte do estado na voz do narrado dos romances do Circum-Roraima. Entendemos
que o corpo/espaço seria o interdito para a efetiva presença do estado nação nas
fronteiras da Amazônia setentrional. Tal nível de desenvolvimento só seria possível
alcançar frente a construção de malha rodoviária que interligassem o país de norte a
sul e ocupasse as fronteiras do território brasileiro.
É justamente a fissura aberta entre os discursos soberanos presentes nos
romances do Circum-Roraima que podemos verificar o insubmisso, o (In)Dócil
presente na voz do narrador, por vezes exercendo a tom denunciativo ratifica que as
narrativa reverberam o espaço como (In)Dócil. Por esse viés de entendimento,
Reigota (2014) menciona os estudos feitos por Ana Godoy (2008), em “A menor das
ecologias”, cujo enfoque ecocrítico ressalta a possibilidade de aproximação dos
pensamento de Deleuze e Guattari em diálogo com obras de “Guimarães Rosa, Julio
Cortazar e Willian Faulkner” (REIGOTA 2014, p. 709).
A saber, podemos visualizar nos romances do Circum-Roraima precisamente
sobre a temática que transita nas fissuras estre os discursos autoritários, hegemônico
e violento, presente em personagens como Lauro, ‘Fera-mãe’ (MACAGGI 2012b) e
aqueles que praticam as violações no corpo/espaço (MACAGGI 2012a, 2012b. 1980
e 1984) há a recorrência de dramas ambientais.
Nesse interim, verificarmos que um dos dispositivos que agiram
significativamente nos desdobramentos das narrativas, principalmente em A Mulher
do Garimpo (2012a), foi a construção da BR 174 cuja função, além de objetivar o
povoamento do Estado de Roraima, tornou-se fator de variadas formas de relações e
encontros étnicos. Asseverado através do interligamento da capital brasileira ao pais
Venezuela, ocasionam-se inúmeros e devastadores efeitos e as rodovias, foram aos
poucos, desenhando o mapa das aberrações etnocidas praticadas pelo estado
brasileiro em favor da economia nacional.
As tensões geradas no enredo narrativo coadunam com as propostas
desenvolvimentistas implementadas pelo Estado Novo na Amazônia, visto que na
década de 1970 ao mesmo tempo que abria um rasgo de violações no espaço
148

amazônico com a BR 174, construía a Hidroeletrica de Balbina, criava áreas de


reservas indígenas - a exemplo da reserva Waimiri-Atroari - afirmando sucessivos
acontecimentos que efetivaram mais ainda a dinâmica do encontros étnicos.
Entre as proposta desenvolvimentista uma delas propunha a interligação do
Brasil central ao caribe através da rodovia transnacional o que nos leva a verificar que
agregado ao processo de construção das estradas transnacionais o fluxo migratório
atuou de maneira significativa para a dinâmica dos encontros na região do Circum-
Roraima. Quanto a isto, a narrativa de Macaggi diz que:

“Mas eis que invade o amazonas uma benemérita onda de nacionalidade que,
fortificando a mentalidade moça na consciência e no valor de si mesma,
prepara e solidifica um futuro brilhante para o nosso Brasil.
Estamos na época da Agricultura e do fundamento, o difícil, mas realizável é
a organização técnica, social, comercial e agrícola das propriedades rurais
ajustando o homem, já conhecedor do que planta à terra, para saneá-la,
debelando as epidemias e as endemias, fazendo arrefecer, portanto, o
maldito impaludismo que tanto aquebranta a resistência humana. É preciso
desbravá-la, civilizá-la e habitá-la, a fim de subjulgar-lhe a feroz e natura
agressividade.” (MACAGGI 2012a, p. 54)

No fragmento citado é possível observarmos que o processos biopolíticos


inscreveram na dinâmica social da região lastros de violações, docilização do espaço
a bem da nação. Tal procedimento aponta ainda o espaço marginalizado, descrito
como algo que necessita ser dominado e invadido pelo poder do estado nação.
Docilizar corpos, ajustar o espaço ao proposito nacionalista torna-se o ponto central
narrado por Macaggi. Cabe, nessa proposta, o que é citado por Macaggi quanto
“saneá-la”.
Aparenta que para chegar ao nível ideal de modernidade seria necessário
implementar a política higienista, reveberando o entendimento de Necropolítica de
Mbembe (2006). Contudo, essa forma de atuação do estado vê-se agredida e
provocada quando os processos de ocupação formatam personagens configurado nos
encontros étnicos, corpos que materializam as diferentes formas de violações do
espaço.
A imagem seguinte, materializa a forma invasiva praticada pelas políticas de
povoamento implementadas a bem do capital e da nação. Quanto a BR 174, talvez o
149

maior símbolo da intervenção do estado no espaço amazônico, pode ser visualizado


na figura43 o rasgo deixado na história social dos povos do lugar:

Figura 1 - BV-8: Brasília - Caracas

A imagem demonstra que as estradas talvez sejam os dispositivos que melhor


ilustram a forma violenta e agressiva ao espaço e a dinâmica social apontado nos
romances do Circum-Roriama. A exemplo da Perimetral Norte (BR 210) que atingiu
os Yanomami, a BR 174 abre um rasgo de violações para além do território Waimiri-
Atroari chegando ao extremo norte do estado de Roraima e violando territórios Macuxi
e Pemon, fronteira com Venezuela.
A dinâmica dos encontros incidem nos corpos indígenas mestiços inscrições
que nos levam a entendermos que o projeto literário de N. Macaggi possibilita a
abertura à uma sociedade em processo dinâmico e continuo, o que nos conduz a
pensar o espaço narrativo do Circum-Roraima, enquanto elemento dialógico em

43Disponívelem:
<https://www.google.com/search?q=BV+9+RODOVIA+BRASILIA+CARACAS&source=lnms&tbm=isc
h&sa=X&ved=0ahUKEwiu5fvWwoDkAhVSHLkGHVtrBmgQ_AUIEygD&biw=1366&bih=608#imgrc=Xp
8YoU8CuJewqM:> Acesso em 29/07/2019.
150

movimentação constante com diferentes sujeitos. Corroboram para pensarmos dessa


maneira os eventos que se multiplicam nas narrativas em análise, sejam eles
episódios e/ou datas alusivas cujas articulações discursivas demonstram as
ressignificações do espaço e das identidades narradas. A exemplo desta
dinamicidade, o personagem Parente Alberto, narra que:

“Em viagem perguntou Rondom: - Eh, Parente Alberto, de que era feita
aquela damorida tão esquisita?
- Camarão-do-campo, Chefe. Cousa muito boa, melhor do que sapinho
moqueado.
- Mas o que é camarão-do-campo, homem?
- Gafanhoto, Chefe, gafanhoto dos grandão, de perna cor de jerimum...
Rondom sorriu meio amarelo e calou-se.
Com Rice, em 1925, foi à cachoeira do Tucujimã, no Alto Parima Ali viu os
porquinhos, na cabeceira do Mucajaí, bravios, que tinham esse nome por
andarem pelo mato, tanto os homens como as mulheres e crianças, fungando
hum! hum! hum! para imitar porco do mato e espantar onça e sucuriju.”
(MACAGGI 2012ª, p. 147)

Corroboram ainda a presença de agentes de Estado que transitam nos enredos


das narrativas indiciando que a dinâmica do espaço fronteiriço do Circum-Roraima,
além das diferentes etnias, desconsidera a linha divisória que, supostamente,
separaria povos e suas respectivas sociedades, como é pensada por Sarmento-
Pantoja (2012, p. 32).
Seguindo essa linha de entendimento, as narrativas do projeto literário de N.
Macaggi, é possível verificar que a noção de fronteira visualizada nas narrativas,
subverte tal conceito e estabelece o princípio da dialogicidade, da polifonia, da
hibridização e principalmente o referencial de Profanação defendido por G, Agamben
(2007):

“E quem trouxe a oncocercose para o Parima foram os africanos vindos pela


vizinha Venezuela. E polo que fazem crer, só existem ianomâmis,
esquecendo as outras “famílias” dos uaicás, quase 20 iamãs ou tribos.
Se há mais de 30. 000 índios em Roraima, por que não se lembrar dos
Saparás, Taurepãs, Ingaricós, Uaipixanas, etc....etc...?” (MACAGGI 2012b,
p. 18)

Em outra passagem:

“Três horas atravessando um pedaço da floresta. E depois perigosa subida


do Arái. Prosseguimento da viagem. Ás onze horas foi avistada a porteira que
separava o Brasil da Venezuela.
151

Ali o rapaz estacou. O que viu de belo e grandioso, tolheu-lhe a respiração.


Muitas cordilheiras, todas em território amazônico, afogando-se no anil do
céu. Ao longe aparecia o Monte Roraima, onde Rondom, Rice e Brás de
Aguiar estiveram.” (MACAGGI 2012ª, p. 118)

Frete as provocativas que nos causam as citações, vemos que os dispositivos


que determinas regras e separam povos e sociedades, fragilizam-se frente a dinâmica
que recebe o espaço de fronteira, neste caso Circum-Roraima apontado nas
narrativas. Tal noção atinge e relativizam conceitos como “pátria”, “raça”, “língua” e
“identidade nacional”.
Mesmo que os dispositivos de controle atuem para marginalização do espaço
e dos corpos étnicos que presentificam-se nos enredos narrativos, ainda assim é
possível verificar que as inter-relação entre as diferentes vozes marginalizado
potencializam-se pondo em evidencia o discurso de encontros étnicos enquanto
validação de vozes historicamente negligenciadas e constrangidas. O espaço,
também reverbera essa condicionante de violações e marginalidade, como em Nará-
Sué Uerená (2012b) em que a voz do narrador é substituída pela voz da natureza,
como que retirando a responsabilidade autora e atribuindo ao ficcional a ação política.
Neste casso, a movência da voz narrativa perpassa pelos processo hibridização da
voz do narrador para que assim redimensione as violações no espaço narrado:

“Não cheguem os forasteiros para tentarem me dominar, me exaurir, por que


quero viver em paz no meu isolamento, sem me sujeitar a ninguém de fora.
Não venham como inimigos, sujar de inheinhe minhas oxocorems, estupir
minhas veredas, tombar meu arvoredo ou ferir minha maxita, levando minha
produção para longe, entregando-a aos ‘chefões’ que lutam para conservar o
poder, desafiadoramente, miseravelmente, selvagem e exaustivamente.”
MACAGGI 2012, p. 21)

Haveria no fragmento citado algo a mais a ser observado que estaria para além
apenas do espaço enquanto efeito do explorável, em analogia ao ‘matável’
(AGAMBEM 2002, p. 12), mas que delineara-se ao processo de exclusão que institui
zonas periféricas. Dizemos dessa maneira, tendo em vista o próprio processo de
colonização na Amazônia que manteve a região do Circum-Roraima no “isolamento”.
Justamente nessa zona de exclusão que potencializou-se a dinâmica dos encontros
étnicos culturais narrados nos romances do Circum-Roraima. Dessa maneira os
rasgos feitos pelas construções das estradas transnacionais, traduzem as práticas
violadoras do poder soberano que deixou marcas profundas nos corpo/espaço. As
152

formas como isto é resignificado trazem iluminações quanto a dinâmica das relações
fronteiriças apontadas nos enredos narrativos em análise. Esta dinâmica relação
Nestor Garcia Canclini (2008) nomeia de Culturas Híbridas, tensionamentos de
complexas relações estabelecidas no plano narrativo, como vistas no Capítulo I desta
tese.
A forma como os indícios da reformulação dos espaço, desprovido e carente
de desenvolvimento para atender o mercado, antes mesmo da interligação efetuada
pela construção da BR 174 nos traz indícios dos encontros e violações.

O povoamento do Rio Branco [...]. Ruas estreitas, barrentas e no centro da


cidade um coreto coberto de palhas. Nenhuma indústria. Comercio regular
[...]. A igreja bonitinha [...]. Todo policiamento era feito por três guardas
municipais[...]. O mercado paupérrimo [...]. ao redor da cidade, mato raso e
cajuais de frutos saborosíssimos [...].
Nenhum cinema. Um clube[...]. Nenhuma farmácia particular. Nem luz elétrica
funcionando[...]. (MACAGGI 2012, p. 111)

A passagem nos faz perceber o estilo ainda interiorano que o pequeno povoado
ainda detém, contudo o efeito causado pela construção da BR 174 foi preponderante
para mudanças sistemática na região. Exemplo significativo é disposição de como foi
pensada a moderna cidade de Boa Vista, conforme a narrativa de Macaggi descreve
“Era de fato Boa Vista, a bela cidade-leque bordada de mangueiras, antiga freguesia
de Nossa Senhora do Carmo de Boa Vista, outrora uma vila e hoje cidade [...]” (1980,
p. 233).
A moderna cidade de Boa Vista é representativa a forma como ela foi
“implantada” em obediência a arquitetura dos prédios Estatais, bancos em diálogo
com o capital. As escolas apontam que o espaço rudimentar, passava por
transformações e afirmava mais ainda a presença do Estado como forma de demarcar
sua presença docilizadora e soberana na região. A pequena vila de Boca Vista da
infância de Arnaldo Macuxi modificou-se:

“[...] muito admirado com o progresso. Ele estava sofrendo de uma doença
chamada ‘vontade de ver tudo’.
A Catedral, os Bancos, a Fazenda, o Forum, o INPS, o Parque de Exposições,
o Estádio do Canarinho, o Ginásio coberto Hélio Campos, os Bairros da
Aparecida, da Mecejana, São Vicente, 13 de Setembro, 31 de Março e o
melhor deles, o São Francisco, passaram por sua inspeção.
Atravessou a Bela ponte do Macuxis e do Caumé, pisou nas ruas e avenidas
asfaltadas, olhou os prédios públicos de construção moderna, a quantidade
de boas residências particulares, a corrida barulhenta dos taxis, motocicletas
e carros particulares.
153

Tanta, tanta coisa nova que não se cansava de admiras, de devorar com os
olhos.” (MACAGGI 1980, p. 173)

A forma como os dispositivos, descritos na excetiva, atingem o modo de vida


da personagens pode ser evidenciado na maneira como a articulação discursiva
ganha redimensionamentos outros, visto que complexas relações encontrarão nas
escriturações historiográficas dos corpos mestiços, laivos de ressignificações
ocorridas nos processos de reformulação do espaço. Pensamos assim, pois as
narrativa apontam para além das relações estabelecidas no espaço urbano em
transformação:

E os Quarteis do BEF e do BEC, os bequeanos de chapéu de banda virada,


tão alegres, trabalhando, furando, rasgando, rompendo a selva, para cima e
para baixo, vencendo-a e passando por toda a parte as estradas de ventre
amarelo com bordados verdes que se grudavam nas suas margens sem
querer sair. E essas estradas corriam para a Venezuela, Guiana e Manaus
interligando os pontos mais distantes do Grande Roraima.
O progresso! O progresso chegara para sua terra! (MACAGGI 1980, p. 173

Em relação ao que é exposto no fragmento acima, é valido evidenciar que o


personagem Naldo-Macuxi (MACAGGI 2012b) reverbera o corpo mestiço docilizado
que irá assumir a tarefa de tornar as fazendas produtivas com base em sua formação
de médico veterinário e, além de cuidar dos animais das fazendas, Naldo propaga a
experimentos para o plantio de soja nos campos das fazendas. Vejamos:

- Puxa, Naldo, que feijãozinho pai d’egua, heim!


- E tem mais vovô Gil. A soja é chamada carne vegetal por que é tão rica em
proteínas quanto a carne do boi. [...]
- Sim, disseram os dois vovôs. Vamos plantar soja. Vamos plantar a vaca-
soja! (MACAGGI 1980, p. 207)

Os efeitos da Biopolítica desenvolvimentista deixou lastros violadores, contudo


o discurso de progresso impõe preço auto para os personagens descritos nas
andanças de José Otávio. As mudanças no ambiente causadas pela abertura de
estradas e ampliação de garimpos e espaços urbanos, trouxeram consigo endemias
que atuaram nos romances como resíduos e intenso encontros étnicos. Atesta esse
processo heterogêneo Batista quando escreve que:

Culturalmente, as Amazônias também diferem muito, começando pela língua.


Cinco idiomas são falados (além do quíchua dos Andes): português,
espanhol, inglês, holandês e francês. O português é a mesma língua
abrasileirada, que ficou no país da cultura lusitana; mas o espanhol é mais
154

no castelhano, que os brasileiros entendem perfeitamente, sem que a


recíproca seja verdadeira (ninguém entende o português, ao falarmos nos
países limítrofes). O inglês, o holandês e o francês das antigas Guianas têm
uma versão crioula muito típica (BATISTA, 2007, p. 43).

O processo de encontros étnicos deixou resíduos das línguas indígenas,


representadas nos romances do Circum-Roraima. Tais construções podem ser vistas
nos nomes de palmeiras (açaí, bacaba, tucumã, inajá, ouricurí, Mucajaí, patauá), de
peixes (mandubé, piracatinga, surubim, jandiá, mandi, pacamão, boto, peixe-boi,
piranambu, caparari, dourado, cuiucuiu, pirarucu, mamori, jaraqui, jandiá, tambaqui,
piaba, matrinchão, piranha, pacú, acarí), de Serras (Arái, Tepequém, Pacaraima), de
rios (Mucajaí, Surumú, Cotingo, Maú, Urucá, Cotingo, Parima, Quinô, Itacutú,
Uraricoera, Amajarí, Ajaraní Suapí e Surumú), de madeiras (tatajuba, angico, copaíba,
seringueira, marupá, castanheira, angelim, itaúba, acapu, andiróba, cumarú), etc. Se
o rudimentar, grotesco, inóspito transita no discurso narrativo produzido por Macaggi,
visualizamos nessa interrelação de encontros formas de presentificar a resistência,
através de continua movimentação de trocas, ainda que em muitas delas inscrevam-
se as violações. Mesmo assim, podemos afirmar que os fragmentos nos indiciam que
a resistência, embaralha-se por entre os discursos de soberania presentes nas
narrativas em análise, através das maneiras de apropriar-se e produzir efeito contrário
aos processos de subjugo. A título dessa forma de movência é possível ser
exemplificado a partir do fragmento seguinte:

“Desde a noite Tuxaua Ernesto, com sua família e seus convidados Macuxis,
Uaipixanas e Ingaricós, esses de rabo de pano vermelhonescondido dentro
da calça, tomavam acento ao redor da mesa reservada para eles, conversado
em sua gíria e rindo muito.
Várias cunhãs tomavam conta de seus curumins, de cócoras e enfiadas em
vestidos feios e esquisitos, feitos a mão por elas mesmas e com colares e
enfeites de miçanga.
Outras davam de mamar e era engraçado olhar os gulosinhos, tão bonitinhos
alguns! Agarrados aos peitos compridos e bicudos das mães, peitos que se
fossem jogados para tras iam brigar por um lugarzinho na oitava vertebra, a
partir do pescoço.
Havia também várias cunhatãs cheirosas e pintadas, de roupas coloridas e
brincos pendurados, que aguardavam a hora do rebolado com bastante
ansiedade.” (MACAGGI 1980, p. 219)

A passagem ilustra o casamento de Naldo-Macuxi atesta que as práticas


sociais estão em transformação. Ademais não seriam apenas o espaço que transgride
o ideal de colonização para Amazônia, mas o corpo indígena inscreveria indícios
155

dessas transgressões, principalmente ao apropriar-se do espaço e de adereços


criados para os não índios. Para tanto, os traços residuais transitam por entre
discursos de poder apontando que os processos de colonização estabeleceu
entrelaçamentos culturais possibilitadores da dinamicidade que indicia aspectos da
transculturalidade étnica. A forma “feia e esquisita” de vestir-se com artefatos feitos
para não índios traz-nos indícios do corpo profanador, que incomoda e transgride a
ordinária social narrada no romance.
Para além dessa dinâmica, verificamos que os efeitos da Biopolítica atuaram
como forma de ressignificações do espaço, seja no ecossistema através da efetiva
presença da pratica de garimpagem ou os rasgos feitos nos diferentes biomas pela
abertura da BR 174, e os impactos gerados por ela foram fundamentais para a
mudança nas relações estabelecidas entre as personagens das narrativa. Vejamos:

“O Apiaú [...]
Seus habitantes eram uns poucos Aicás. Que plantavam pimenta mas não a
usavam na damorida e possuíam castanhais, balatais e seringais e em suas
águas passavam jandiás e muito pacamão.
A floresta que abrigava esse rio tão formoso, também filho da selva bruta,
estava sendo indiscriminadamente varrida por madeireiros que lhe
exploravam o cedro, tombando-o às centenas e abrindo claros na obra-prima
da Natureza, claros que pareciam dolorosas feridas escalvadas manchando
o verde maravilhoso daquela vela e rica região.” (MACAGGI 1984, p.224)

Visualizamos nessas residualidade, até aqui apontadas, de acontecimentos e


eventos, refletindo sobre a narrativa de Macaggi enquanto escritura de matéria
historiográfica construídas nos múltiplos encontros. Nesse sentido as ressignificações
referentes ao projeto romanesco do Circum-Roraima não apenas indiciam-se nos
corpos (In)Dóceis, mas atuam através das diferentes formas de interação do homem
com o espaço. Podemos visualizar nessas relações a memória agindo como não
esquecimento das violações, a exemplo da citação anterior, o espaço enquanto
marginal, rudimentar, supostamente inóspito passando por continuas transformações.

4.4 A Poética do Corpo Mestiço Profanador nas Narrativas

Em diferentes momentos nesta tese, elencamos aproximações da categoria


corpo (In)Dócil às reflexões de G. Agambem a respeito de sua abordagem quanto a
homo sacer. Evidenciamos tal categoria por acreditarmos que a matéria narrativa dos
156

romances do Circum-Roraima tencionam a normatividade atribuídas ao corpo


indígena mestiço, o que justificaria os elementos subjetivos presente nas diferentes
formas de exclusão e violações que são construídos ao longo dos constantes
deslocamentos das personagens nos espaços narrado.
Dessa maneira, as narrativas apresentam personagens cuja condição de
gênero, sexual e étnica delineiam o foco: Adrià, travestida de José Otávio (MACAGGI
2012a), os mestiços Naldo-Macuxi, Dadá-Gemada Doçura-Amargura (mãe e filha)
(MACAGGI 1984); a família de mestiços Lúcio, Luana e Carla e Imaici (MACAGGI
1980) e os indígenas. Tais recorrências de personagens, corpos (In)Dóceis,
possibilitam-nos exercício de leitura com vista a compressão da forma como são
construídos os personagens por Macaggi de maneira a percebermos neles a chave
interpretativa apontada por G. Agambem (2007) enquanto profanação. Seriam, por
assim dizer, corpos profanadores, provocativos ao ordenamento social apontado nos
romances.
Corroboram, nos desdobramentos das tramas a maneira angustiantes que
permeia o conflito sexual vivido pela personagem Àdria (MACAGGI 2012a), ou
mesmos ressignificações de sentido que podem ser atribuídas ao desamparo porque
passam Naldo-Macuxi, Dadá-Gemada (mãe e filha) (MACAGGI 1984) e pela família
de mestiços (MACAGGI 1980). A citação a seguir, indicia como os corpos em conflito
com a forma de docilização efetuada ao longo dos anos, na voz de Naldo-Macuxi:

“Só eu, só eu pecava, só eu praticava maldades, sentindo prazer doentio


em judiar dos animais, apedrejando, escondido, os cachorros e gatos,
esmagando as borboletas, lagartas e besouros, lanhando os sapos e
colocando sal groço nos lanhos, rindo com os pelos de dor do infeliz animal
e trucidava ou aleijava os passarinhos com uma enorme baladeira.
E foi por isso que Deus me castigo: pela minha perversidade. Porque eu era
um curumim malvado, não prestava mesmo.” (MACAGGI 1980, p. 178)

Ainda que o corpo transgressor de Naldo-Macuxi seja narrado no citação


enquanto vinculado a “perversidade”, lembremos que a terminologia pressupõe o per-
vertimento, aquilo que desajusta e incomoda. Nessa dinâmica empreendida na
narrativa podemos verificar que o corpo é docilizado a partir do referencial de
religiosidade, cujo conflito de conduta social estipula-se em função “do ser bom”
referir-se a obedecer ao Deus cristão abandonando seus referenciais étnicos de
ancestralidade. As implicações que são geradas a partir desses conflitos nos levam a
157

observar que as experiências dos encontros étnicos deixaram indícios traumáticos no


corpo de Macuxi, principalmente quanto a forma de expressar sentimentos, de gozo,
de liberdade, de amar. Ao que consta, a exemplo de Naldo-Macuxi, esse mesmo
sentimento atua em outra personagem, asseverando os conflitos de Ádria (MACAGGI
2012a) quando se sente pressionada a retribuir o sentimento de Florzinha pelo corpo
travestido de José Otávio:

“Carne-Assada, meu amigo, nesta hora grave e séria, perante Deus e minha
consciência juro que me é humanamente impossível casar com essa moça.
Entre nós há uma barreira intransponível. Desgraçadamente não lhe posso
explicar a causa, porque equivale a lhe revelar um segredo que só a mim e
a Deus pertence.” (MACAGGI 2012a, p. 226)

Na citação é possível verificarmos que o destaque atribuído ao corpo travestido


de Ádria, cujos efeitos das diferentes violações que perpassam sua trajetória narrativa,
aponta conflitos íntimos potencializados em um desejo afetuoso de entregar-se ao
gozo, recalcado nas condutas sociais heteronormativas indiciadas nas articulações
discursivas dos romances. A respeito disto, podemos observar nos seguintes
fragmentos:

“Mas florzinha não o escutava. Seu pensamento errava, longe. Derrepente


chegou-se para perto do rapaz e disse, baixinho: - Ouça, José, como as
rolinhas arrulham! Tão irrequieta! É que estão se amando! Como deve ser
bom encontrá alguém que nos ame?
José Otávio, sem olhá-la ia escutando e sentindo em seu coração a trialdade
úmida de um subterrâneo. Temia a cena que se aproximava, o terrível
momento que a pobre apaixonada voluntariamente provocava. Tentou
mudar de assunto, mas como? Então surgiu-lhe uma ideia. Tirou
devagarinho do bolso o canivete e picou rapidamente a ponta do dedo. – Ui,
diabo! E sacudia o dedo, de onde pingavam gotículas de sangue. Porém,
lhe saiu o tiro pela culatra, pois a situação piorou.
Flozinha depressa lhe puxou a mão. – Deixa vê, deixa vê! E levou o dedo
ferido à boca, chupando-lhe o sangue. Depois disse: - Bebi do seu sangue.
Agora nunca mais nos separaremos.” (MACAGGI 2012a, p. 240)

Partindo deste fragmento podemos evidenciar que nos romances do Circum-


Roraima os corpos, sejam eles indígenas, mestiços e/ou travestidos, protagonizam a
vida nua descrita por G. Agamben (2002), sendo profanadores da forma dócil
estruturada a partir dos dispositivos de controle biopolítico. Seguimos essa reflexão,
tendo em vista a projeção de uma dissidência étnica e sexual transgressora aos
moldes dos preceitos da sociedade heteronormativa que reprime a sexualidade de
corpos que fogem aos preceitos do moralismo binário sexual e racialista por ela
158

defendido. São justamente os corpos - travestido, indígenas e mestiços - presente nos


romance A mulher do garimpo (2012a) que atuam de forma transgressora que
profaniza o discurso sexual vigente que padroniza a sexualidade na voz do
personagem América do norte (MACAGGI 2012, p. 276). Insta lembrar que, ao se
tratar da obra A mulher do garimpo, a personagem José Otávio protagoniza cenas de
gracejos e seduções com personagens masculinos.
Considerando o corpo travestido, presente em um dos romances do Circum-
Roraima é possível verificarmos que ele expõe a movimentação da resistência ao
transgredir regras estabelecidas, pondo em evidencia formas de escape contrárias
aos dispositivos de controle. Aparenta que a maneira como o projeto literário é
construído por N. Macaggi põe em evidencia o que G. Deleuze chama de “a criação
de um povo que falta” (2011, p. 14) que entra em conformidade com o que G.
Agamben diz sobre o “insacrificável” (2014, p. 9). Corroboram nessa linhagem
interpretativa os grupos sociais subalternizados cuja a carga de potência da
alteridade nos demonstram diferentes processos de violações sofridos pelo corpo ao
longo da história, cujas escriturações historiográfica materializam-se no conjunto de
romances de N. Macaggi.
É valido dar destaque referente ao entendimento sobre a profanação posto que
estaria para além da mera apresentação de personagens marginalizados socialmente.
Agrega-se a condicionante da margem social, o corpo profanador, neste caso mestiço
indígena e/ou travestido, enquanto categoria de exercício político. E neste caso, as
personagens que sofrem continuas violações, a exemplo das cenas de estupro,
Exaltação ao Verde (MACAGGI 1980) e em Dadá-Gemada (MACAGGI 1984), das
barbáries presentificadas em Nará-Sué Uerená (MACAGGI 2012b), bem como a
forma preconceituosa e violenta como a voz soberana refere-se ao corpo travestido,
em A Mulher do Garimpo (2012a), configuram formas punitivas ao corpo mestiço
indígena feminino e os travestimentos corporais provocadores à ordinária forma de
controle das sexualidades heteronormativas.
Há de ser evidenciado que é justamente o corpo que movimenta-se provocativo
e desajustador da regulamentações efetuadas pelos dispositivos biopoliticos que a
categoria (In)Dócil alinha-se ao que G. Agamben nomeia de vida nua. Nos
redimensionamentos que emergem nas fissuras discursivas que se articulam nos
romances do Circum-Roraima, que tomamos por contradispositivo as movimentações
159

da resistência. A partir deles é possível visualizarmos os efeitos que o discurso


soberano referente as formas de controle da sexualidade e moralidade normativa,
deixam nas fissuras discursivas indícios da profanação através das inscrições
reverberadas no corpo das personagens subalternas.
O corpo (In)Dócil ressignifica a lógica de raça e de sexualidade normativa
atribuindo significados outros ao corpo que padece das violações. Acreditamos que o
exercício de poder e controle efetuado violentamente por vezes pela voz narrativa e/ou
mesmo por personagens, a exemplo de Lauro e ‘Fera-Mãe’ (MACAGGI 2012b),
transgridam a lógica discursiva e nos demonstram uma REVERSÃO contrária ao
poder soberano. Damos destaque a chave da reversão para apontá-la em
movimentação contrária na própria movimentação da Biopolítica, pois se em toda
ação de violações há práticas de resistência, então é possível que a ação de reverte
possa nos auxiliar nessa busca contra-discursiva ao poder soberano.
Por fim, entendemos que a forma grotesca como o espaço é narrado no
romances em analise; bem como, a maneira provocativa e não menos violenta como
o discurso é construído a respeito dos corpos indígenas mestiços, principalmente
femininos/travestido, apresentam formas de escape exercidas pelas personagens que
estariam, para além da lógica discursiva que naturaliza apenas a voz do poder
soberano heteronormativo.
Os recorrentes indícios que as violações nos apontam, principalmente em se
tratando de romances gerados em meio ao ‘período de chumbo’ pelo qual passou a
Amazônia, apontam formas de controle pautadas na barbárie como ocupação do
espaço e docilização dos corpos. Por essa linha de entendimento, a profanação,
presentifica-se na matéria narrativa dos romances do Circum-Roraima através do
espaço tomado como margem e dos corpos indígenas mestiços que transgridem a
ordinária ‘defensora da ordem, dos bons costumes e da nação’.
160

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo que nos ocupou ao longo desta tese foi o de efetuar leitura analítica
nos romances do Circum-Roraima com a intenção de verificar como Nenê Macaggi
reescreve os processos biopolíticos no interior de uma economia social e política de
viés desenvolvimentista, na Amazônia setentrional. Ao lermos a obras por esse ângulo
interpretativo acreditamos que o conjunto romanesco possibilitam uma discussão,
atravessada pela reflexão que nasce da Biopolítica, cujos efeitos deixam marcas nos
corpos das personagens.
Essa possibilidade de leitura se desdobra em duas linhas de observação: a
intertextuadade entre elementos jornalísticos e literários quanto à escrita
historiográfica e a ressignificação dos arquivos de pesquisa da escritora; aspectos
materializados na escrita dos romances faz frente a presença dos indícios
historiográficos, diluídos em rastros de uma época e modo de pensar a Amazônia
setentrional. Em outro giro, as inferências intertextuais justificariam uma série de
colagens estilísticas, igualmente distribuídas pelo conjunto narrativo; um corpus de
personagens, que se constituem de corpos mestiços e travestidos, violentamente
acuados no viés desenvolvimentista, figurando na subalternidade.
Nesse processo, observamos que os romances trazem diferentes
acontecimentos ocorrido no país a partir da década de 1960, cujos efeitos apontam
tensionamentos históricos direcionados à Amazônia setentrional. Frente a esses
redimensionamentos trazidos pelas obras, verificamos que as estratégias utilizadas
por N. Macaggi para ficcionalizar os dados históricos e encontros culturais também
permitem que a escriturações traga à luz o corpo enquanto principal categoria a
sustentar a reflexão sobre a vida politicamente desqualificada e os mecanismos de
sobrevivência. Mecanismos esses que a “História Oficial” brasileira marginalizou, ao
silenciar a dinâmica dos encontros étnicos no espaço amazônico.
É explícita nos romances a condicionante marginal, principalmente quando
tomamos por base o título da obra que inicia a produção romanesca de Macaggi no
norte do país, A mulher do garimpo: o romance no extremo sertão norte do amazonas.
O grifo em destaque, aponta para algo longínquo denotando aspectos de extremos e
exoticidade. Denota, inda, uma fratura no espaço narrado. Entendemos dessa
maneira, frente aos desdobramentos dos enredos das narrativas ocasionados através
161

dos deslocamentos da personagem Ádria, justamente no primeiro capítulo da obra


(MACAGGI 2012ª) referida anteriormente. Havendo uma progressão para o espaço
narrado na escritura da matéria nortista.
Nos romances podemos entender essa fratura ou borramento em relação ao
espaço exótico narrado, na medida em que esse mesmo espaço é problematizado: a
descrição romantizada de natureza exuberante aos poucos é contraposta as
descrições grotescas da bárbarie. Dessa forma, a construção do espaço narra como
se constituiu a Biopolítica direcionada ao povoamento dessa Amazônia, cuja
argumento de fundo coloca o Sul como fomentador de progresso e o Norte carente de
ser povoado e a receber o progresso. Acreditamos que ocorre, também nos romances,
uma progressão no sentido de mostrar os efeitos violadores desse processo para os
grupos socialmente mais vulneráveis. Devendo ser destacado ainda a evidencia dada
às diferentes formas de violações as quais os corpos são submetidos.
O Norte se desenhado como Espaço de Exceção onde o dono da fazenda,
demonstra a maquinaria do garimpo em que o grileiro e os donos de fazendas
representam a figuração do soberano, cujas práticas de ‘fazer viver ou deixar morrer’,
entrariam em concordância com os interesses de produtividade econômica de suas
posses e interesse. Essa pratica se faz representar na vozes soberanas que atua nos
romances através dos desmandos violentos e preconceituosos, praticados por
América-do-Norte (MACAGGI 2012a), o primos de Dadá (MACAGGI 1980), os
grileiros e os estupradores de Luana (MACAGGI 1984) e Dona Francisca e Lauro
(MACAGGI 2012b).
Além da violência que perpassa o romance no tratamento dado aos corpos
indígenas ou mestiços de herança indígena, principalmente os femininos. Ou seja, os
romances demonstram que a Biopolítica na Amazônia não marcou o fim das
diferenças sociais, das injustiças prometidas pelo “progresso desenvolvimentista”. Na
verdade demonstra que os efeitos da Biopolítica, deixam inscritos nos corpos das
personagens representações dos lastros da violações e subjugo como regra e não
como exceção.
É valido evidenciar que o lastro de devastação narrado nos romances
promoveu o etnocídio e o exílio de várias grupos indígenas frente à violência como
foram empreendidas as práticas de ocupação de territórios tradicionais na Amazônia.
162

Entre este, podemos exemplificar os Waimiri-Atroari, Yanomami, Macuxi, Taurepang,


atingidos pela abertura das rodovias, BR 174 e BR 210.
Macaggi opta pelo regime de realidade realista em suas narrativas, que ela vai
buscar no espelhamento que faz em relação aos paradigmas de escrita de outros
escritores, como Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha e Alberto Rangel. Em relação a
isto, à guisa de conclusão, devemos destacar ainda o modo como Macaggi trata a
violência, visto que em suas narrativas notamos a preocupação em detalhar com
recorrência cenas em que há violações. A cena de maior destaque talvez seja a da
morte por indução do parto, ordenada por Dona Francisca (MACAGGI, 2012b). Não
menos horrendas são as cenas de estupro contra Luana (MACAGGI, 1984) e Dadá-
Gemada (MACAGGI, 1980).
Há de ser evidenciado ainda, que não apenas os corpos indígenas e mestiços
se encontram sujeitos às violações, destacamos que o corpo de Ádria travestido de
José Otávio não apenas é constantemente acercado de investidas violentadoras como
ainda protagoniza sucessivas cenas de preconceito contra sí. Entendemos que o
corpo travestido carrega consigo não somente a representação de salvaguarda da
intimidade feminina, mas reverbera os sonhos, desejos e gozos frustrados pelos
dispositivos ideológicos heteronormativos, impedidor de prazeres outros que estariam
para além do pensamento binarista.
Em relação aos encontros étnicos representados nos romances demonstram
que a biopolítica atuou enquanto ideologia de branqueamento, porém a leitura que
efetuamos nos romances, transfigura-se na dinâmica dos encontros étinicos, cujos
efeitos mostram corpos indígenas mestiços enquanto dinamizadores da ‘per-
vertimento’. Demonstra ainda que mesmo capturados pela Biopolítica eles
ressignificam a docilização através da presença atuante dos rastros de ancestralidade
inscritos em seu corpo. Podemos pensar ainda que o corpo indígena mestiço e
(In)Dócil metaforiza o espaço amazônico setentrional enquanto categoria
marginalizada e violada, espaço de emergência que coaduna às violações e
preconceitos porque passa o corpo mestiço representado nos romances. Por essa
linha de entendimento, o corpo indígena mestiço representa processos de
ressignificações. O espaço é também entendido como atuante no redimensionamento
dos efeitos da Biopolítica desenvolvimentista empreendida nas obras analisadas.
163

No sentido sistemático da tese, a divisão dos capítulos foi pensada para


descrever o corpus, interpretar a luz dos referenciais teóricos e analisar as obras que
nos levaram a concluir que os corpos indígenas mestiço atuam nos romances
enquanto testemunho resistente frente aos acontecimentos da história. Indiciam
ainda, a recorrência da história da Amazônia setentrional, principalmente a região do
Circum-Roraima, em fluxos contínuos de encontros étnicos, visto a forma como são
apontados os efeitos dos acontecimentos ao longo dos romances. Em uma das
análise efetuadas privilegiamos a personagem Ádria, que travestida de homem (José
Otávio) empreende deslocamento do Sul do Brasil para o Norte. O deslocamento
efetuado demonstra a fratura no espaço do narrado que irão se suceder, pois o Norte
aparece como espaço de deslumbramento, carecendo receber o modo de vida
moderno do Sul.
Frente a isto, ao final dos quatro romances assevera-se corpos mestiços frente
aos casamentos e uniões que são afirmadas nas tramas narrativas. Nesse traslado
as modificações ocorridas no espaço frente as interferências causadas pelo projeto
desenvolvimentista nos levam a visualizar que esse processo de encontros apontam
para a construção de sociedades mestiças, híbridos culturais, metaforizados pelo
espaço em processo tensionados de ajustamento entre o tradicional e o moderno. A
região do Circum-Roraima, na Amazônia setentrional, representada nas narrativas,
constitui-se a dinamicidade do rompimento da noção de fronteira, de nação, raça e
gênero.
O enredo das narrativas é evidenciado pelas e andanças das personagens.
Façamos um destaque ao romance Dádá-Gemada Doçura Amargura, posto que
ocorre uma superposição do personagem secundário em detrimento da principal. A
mestiça Dadá-Gemada é posta a segundo plano na trama e assume o protagonismo
Naldo-Macuxi, mestiço, cujas histórias particulares contadas no romance,
entrelaçadas por narrativa maior (a implantação da agropecuária em substituição a
criação de gado em pequena escala nas Fazendas narrada no romance). O enredo
de Dadá-Gemada organiza-se os evento protagonizados por Naldo-Macuxi que sofre
processo de docilização a partir das viagens que seus pais adotivos ajustam para que
assim ele possa receber educação no Rio de Janeiro, formar-se em Medicina
Veterinária e retornar a fazenda no Circum-Roraima para efetuar seu processo de
164

mudança no espaço, casando-se com a filha de Dadá-Gemada, também mestiça, e


assim prosseguir a trama.
Neste caso, a memória age nos romances com que evidenciando a voz
soberana em detrimento dos subalternos em uma estratégia discursiva, por nós
entendida no sentido de registrar as práticas violadoras e preconceituosas efetuadas
pela Biopolítica desenvolvimentistas na Amazônia setentrional. Pensando por este
viés, acreditamos que os romances do Circum-Roraima não permitem o esquecimento
da memória, visto que os narradores enfatizam os efeitos dos encontros em exercício
dinâmico entre o recurso literários e as ressignificações históricas, inscrevendo, a
partir do que surge entre os discursos soberanos de poder, a emergente presença dos
corpos indígenas mestiços, nos levando a exercitar leitura mais aguçada quanto a
movimentação do corpo mestiço por um outro ângulo: o da provocação, do (In)Dócil.
Nenê Macaggi ao proceder uma articulação discursiva por este ângulo e
reverberar vozes do poder soberano dos donos de fazendas e das elites locais
constituídas através de acontecimentos e episódios narrados nos leva a considerar
que seja possível que o excesso de vozes opressoras podem evidenciar o incômodo
que sentem pela presença dos corpos indígenas mestiços na dinâmica das fazendas
e cidades da região do Circum-Roraima, os provocativos corpos (In)Dóceis.
Entendemos que deve ser dado destaque ao narrador justamente pelo ato de
exercício de não-esquecimento de períodos testemunhados em que a voz soberana
presentificou-se incomodada pela efetiva dinâmica dos (In)Dóceis, mas
principalmente como que estes ressignificaram e potencializaram sua re-existência, a
história a contrapelo, reveladora do corpo como ato e potência. Afinal, se inicialmente
o que vislumbrou o narrador dos romances foi um espaço em transformação, talvez
não contasse com os rastro de ancestralidade que deixaram nos corpos mestiços seus
lastros daqueles que foram atingidos nesse processo. Destaquemos ainda, pontos de
diálogo entre os romances, pois em todos eles a voz soberana é retratada
constantemente praticando violações, mas também ganham força os corpos
indígenas mestiços no espaço de ressignificações narradas; além disso, os romances
apontam para o projeto de desenvolvimento empreendido a partir da ideologia
heteronormativa, cujo patriarcado ganha forte impulso em vozes narradas.
Conclusivo sobre a questão do narrador nos romances, podemos observar que
a movimentação temporal exercida nas tramas, em que o passado distante aproxima-
165

se do presente com projeções de acontecimentos futuros, aproxima-se do estilo de


escrita auto biográfico. Este recurso faz com que personagens históricos de
acontecimentos políticos da Amazônia setentrional transitem em paralelo nas
narrativas. O vínculo com o que é narrado apontaria para o inscrever conhecedor das
histórias oficiais através de datas, acontecimentos e nomes de autoridades de
governo. O usso deste recurso implementa um tempo de fala narrativa para além do
narrado, como que tentando justificar a veracidade do que é instituído no espaço. A
escrituração historiográfica ganha força pelo olhar do narrador cujo fluxos de memória
delineiam o não apagamento das relações desiguais no exercício do poder,
demonstrando a forte articulação entre literatura, filosofia e história.
No projeto narrativo de N. Macaggi devemos apontar uma obra, que mesmo
seguindo a ótica colonizador/colonizado, mas apresenta um diferenciador, o trato ao
corpo travestido. Em A Mulher do Garimpo (2012a) acreditamos que seja uma das
poucas obras, a época de sua primeira edição, que trata o afeto através do
travestimento, visto que mesmo atuando como dispositivo de salvaguarda do corpo
na tentativa de evitar violações, mas aponta para elementos subjetivos de afeto e
gracejos entre personagens de mesmos sexo, gozos e liberdades sexuais.
Há de ser dada atenção a pouca fortuna crítica sobre a Matéria Nortista em
análise e este trabalho agrega-se aos poucos, até agora produzidos sobre os
romances do Circum-Roraima, no sentido de dar abordagem outra ao corpus. As
análise desdobradas nesta tese são apenas um olhar interpretativo a mais,
pretendendo ser ‘janela aberta’ para as que dela puderem fazer uso e assim ampliar
possibilidades interpretativas outras em relação as obras.
Considerando que a pouca fortuna crítica sobre a autora tenha transitado, em
grande parte, em aspectos do regionalismos, acreditamos que as obras assim como
o espaço nelas abordado e principalmente o corpo indígena mestiço podem coadunar
para a afirmativa do sentido de margem atribuído a região do Circum-Roraima.
Ajustam-se a esse pensamento a forma depreciativa, violenta e preconceituosa no
trato dos romances ao corpo indígena mestiço e/ou travestido. O que nos leva a crer
e defender que o corpo desajustador e provocativo à ordinária do poder soberano atua
enquanto afirmativo nos rastros das escrituras da matéria literária como forma de re-
existência da ancestralidade. É o (In)Dócil, em emergência na Amazônia setentrional.
Entendemos dessa maneira, pois se transparece nas vozes discursivas soberana o
166

teor higienista é justamente a partir dele que emergem o corpo transgressor do ‘per-
vertimento’ denunciando possibilidades outras de entender a dinâmica dos encontros
étnicos e sexuais. É possível que a pouca fortuna crítica nos aponte não o
desinteresse pela produção artística da autora, mas o auto re-conhecimento de lastros
históricos de violações sobre corpos indígenas mestiços (In)Dóceis como categoria
emergente.
167

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ANEXOS

ANEXO 1
175

ANEXO 2
176

ANEXO 3

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