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O CELULOIDE E O MÁRMORE1
por Eric Rohmer
(“Le celluloid et le marbre”, Cahiers du Cinéma N°44, p. 32-37)

Os pintores, os músicos, os romancistas, os poetas jamais tiveram escrúpulos em


lançar um julgamento ao cinema, seja precipitado ou prudente, entusiasta ou severo.
Revertendo os papéis, é em nome do amador de cinema que Eric Rohmer se propõe a
examinar as outras artes. Frequentar as salas escuras teria enfraquecido nossa
sensibilidade às outras formas de expressão? Ou, pelo contrário, nos teria enriquecido
com novas exigências? É possível admirar, ao mesmo tempo, e pelo mesmo motivo,
Picasso e Jean Renoir? As respostas que ele nos dá a partir de hoje não pretendem ser
definitivas, nem mesmo imparciais. Através deste confronto, e para além dele, é a própria
natureza do cinema, iluminada por tantas luzes enganosas, que Rohmer quer melhor
circunscrever.

Desde que o cinema surgiu, que o reconhecemos como uma arte entre as
outras, nós nos apressamos em definir o que o distinguia das suas artes rivais.
Investida admirável, decerto; difícil, e longe de estar concluída. Sem dúvida, essas
foram suas características mais superficiais que de início impressionaram nossos
estetas: o fato de que era mudo, por exemplo. Tomar isso como algo negativo os
exporia a uma tremenda negação dos fatos – o que aconteceu, como sabemos.
Teríamos mudado tanto assim? Quando se trata de demonstrar que uma obra
é autenticamente cinematográfica, nós nos atemos mais à sua forma do que ao seu
fim profundo. Ora, pouco importa mostrar que ela fala outra linguagem, mas, sim,
que ela diz outra coisa, que até então não pensávamos sermos capazes de exprimir.
Se eu me atenho, aqui, à forma – a mais externa delas –, é para mostrar,
considerando as condições sob as quais o filme é criado, conhecido, conservado,
que não há nada que o faça tão diferente de um quadro, de uma escultura, de uma
partitura musical. Há um vício de escrita que me irrita nos precursores dos anos
30: o termo “arte do presente”, que antes de René Clair, creio eu, era reservado ao

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Como observado na tradução de Diana Matias (cf. “Cahiers du Cinéma – 1960-1968: New Wave, New
Cinema, Reevaluating Hollywood”, editado por Jim Hiller) da entrevista intitulada O Antigo e o Novo (diz-
se na entrevista, publicada na Cahiers N°172: “Pois, ao deixar o mármore dos Cahiers, ele [Rohmer] não
nos deu no celuloide suas melhores críticas?”), “marbre”, em francês, pode consistir tanto na rocha
mármore quanto em um termo técnico para designar prensa móvel, isto é, o meio pelo qual os textos
eram impressos. Eis aqui, portanto, um título de supostamente duplo sentido: uma reflexão sobre o
cinema (celuloide) em uma revista (“mármore”) cuja proposta, por parte de Rohmer neste artigo, é
confrontar o cinema com as artes clássicas, como a própria escultura ou, se extrapolarmos um pouco, a
literatura enquanto texto impresso;
[Nota do tradutor]
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parente mais pobre. Tanto já se foi dito que o cineasta não trabalha com o eterno,
que uma visão fugidia de uma hora e meia decidirá ou não sua glória. Observação
precisa, infelizmente. Se falamos apenas de finanças, então não há absolvição e
nem apelo. Mas o comércio – fosse ele influente nessa questão – ditaria sozinho
os seus direitos? Quantas telas Cézanne ou Van Gogh venderam em vida?
Nossa geração vê isso de outro modo. Ela não assistiu com desconfiança à
súbita chegada dessa criança inquieta; tampouco tem o excesso de paixão ou
modéstia de um novato. Ela não se declara culpada. Ela tem pelo cinema o respeito
que se deve ter pelos grandes monumentos do passado. Seu julgamento, ela o
desenvolveu não ao acaso, mas sob as sombras introspectivas das cinematecas. Ela
percebeu que o cinema mudo, revelado a ela depois do sonoro, não era nem a
balbúrdia nem o suprassumo da nova arte. Ela se permitiu julgar por si mesma,
escolher a erva boa dentre as piores; ela fez parecer essencial o papel do criador, e
mínimo o das contingências sórdidas. Ela acredita ter descoberto que, aqui como
alhures, é o reconhecimento da posteridade que dita o verdadeiro mérito de uma
obra.
É tão estranho que este século, que tanto respeita os monumentos do
passado, que tão habilmente os restaura e os conserva, tenha criado a forma de arte
mais perecível de todas. Circulam-se notícias alarmantes, eu sei, sobre os negativos
perdidos ou propositalmente destruídos. Acalmem-se: as grandes obras-primas do
cinema mudo ainda estão por aí, bem conservadas, em suas latas; os museus, as
cinematecas que são incumbidas de cuidar delas. A era dos revendedores acabou.
Chega de iconoclastas a temer. A atual “base2” da emulsão, filha deste “celuloide”
cuja fragilidade antes temíamos, orgulha-se de resistir à corrosão do tempo mais
do que o mais duro mármore de Paros. A mais nobre das pedras, pois, é um material
imputrescível? Ou tão bem protegido de desastres? O que resta da escultura grega
do século V? Pouca coisa. E da pintura? Nada. As tonalidades das pinturas
impressionistas já estão gastas, e não há artifício químico que as devolva sua
transparência de antes. Se, por algum cataclismo, nossa civilização inteira
desaparecer, seria adorável pensar que um filme cuidadosamente enterrado será,
para as eras seguintes, o mais fiel testemunho.
Temo que vejam em minha reivindicação apenas os efeitos de uma inveja
pueril: “De que importa o material?” – Ele importa, sim. Um filme é um espetáculo
a que assistimos, certamente; mas também é algo que se pode pegar, tocar,
contanto que esteja em latas de metal, envelopadas em sacos de lona. E aproveito
a situação para denunciar outro senso comum: o tradicional paralelo entre teatro e
cinema. Essas duas artes, da forma como são comparadas, nada têm em comum.
Um bom metteur en scène de teatro é um tecnicista; ou melhor, um teórico. Por
mais original, por mais genial que seja, o que ele terá criado? Vento. Eu ao menos

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No original, “support”. Trata-se de um elemento material que serve de base a uma obra gráfica;
[N. do T.]
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penso assim, e não é a Dullin ou a Baty que pretendo opor Renoir, mas a algum
romancista ou dramaturgo, tenha ele tirado sua anedota de Zola ou Merimée, tenha
ele copiado até os diálogos.
Eu assisti, no último verão, aos ensaios de Júlio César, que Jean Renoir –
sim, exatamente – montava nas arenas de Arles. O maior dos cineastas franceses
dedica à sua mise en scène o mesmo cuidado, a mesma paixão, o mesmo tempo
que à filmagem de seus filmes. Ademais, a representação se beneficia de
circunstâncias próprias dos grandes sucessos do palco – um triunfo legítimo;
reparação justa de uma tola ingratidão. Os críticos de ambos os domínios e de todos
os grupos concordam desta vez. Eu dificilmente seria relutante aqui, mas a
admiração que tenho pelo cineasta Renoir me diz que, apesar de tudo, essa
apresentação foi pouca coisa – em troca da qual, como diria François Truffaut, eu
não daria o menor plano de Carrosse3. Esse plano, eu sei que ele ainda existe; essa
apresentação, ela nada mais é do que uma lembrança.
Assim, dir-se-á que as artes mais recentes – como a do rádio, a da televisão
– são decerto artes do presente. Pelo contrário, pensemos: como a interpretação
musical, depois do disco, reencontrou o seu valor? Ela se tornou uma obra por si
mesma; o intérprete aumenta suas ambições e exigências sobre si mesmo. Kempff
assina a sonata ao mesmo tempo que Beethoven; ele é o autor da execução, se ouso
dizer, não somente o executante. Se o cinema é o rival feliz das outras artes, se ele
conseguiu a seriedade que o concede a pretensão ao eterno, se ele saiu intacto do
tribunal de seus ancestrais, então por que ele, por sua vez, não os convoca para o
seu próprio tribunal? E, neste caso, o que diria a película, ao julgar o mármore?
Uma questão impertinente, decerto, porém instrutiva. Que pensa o amador
de cinema das outras artes? Sua paixão o consome a ponto de fazê-lo desprezá-las
todas, justa ou injustamente? Ela, ao contrário, abriu seus olhos e fê-lo enxergar
outras perspectivas, novos motivos para experimentá-las?
Do mesmo modo que a pintura moderna nos fez ver nos clássicos o que eles
mesmos não viam, o homem da era do cinema não descobrirá na literatura, na
pintura, na música de outrora e de hoje em dia interesses totalmente novos? Sob
seu olhar inculto e, ao mesmo tempo, desinteressado, quais belezas inquestionáveis
não brilharão? Quais pretextos surgirão das sombras?
Uma questão sedutora, confesso. De modo totalmente pessoal, ousarei
propor minhas respostas.

3
Le Carrosse d’Or, que será citado por Rohmer mais adiante como exemplo de um bom filme; [N. do T.]
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I
O BANDIDO FILÓSOFO

Já há muito que o cinema não mais precisa de advogado. A cinefilia até


mesmo conquistou Sorbonne; isso não basta? Ao meu gosto, não. É uma entidade
fria, sem graça – o cinema-em-si –, que querem nos fazer experimentar; mas diante
de uma obra específica, eles somem. Por outro lado, creio que uma arte só vale o
que valem suas manifestações – “Já não vamos ao cinema”, observou Roger
Leenhardt há alguns anos. Veja: não gostamos de mais nada. Eu concordaria de
bom grado com o crítico Johagrinissime4, de um “jornal” de domingo, que se
espantava com o fato de as pessoas frequentarem as salas escuras enquanto havia
cafés tão bons em Paris. Neste inverno úmido e cinzento, segui seu conselho sem
o mínimo remorso.
Se hoje me permito destacar alguns aforismos contemporâneos, é por ter
como foco não o cinema como deveria ser, mas tal ou tal obra-prima. Limitando-
me apenas ao ano de 1953, não me seria difícil dizer ao menos seis filmes5 que me
provocaram grande êxtase, que me pareceram mais dignos de admiração (eu diria
mais “valiosos”, se minha pluma conservadora não recusasse o jargão hoje) do
que, digamos, os seis melhores romances publicados no pós-Guerra.
Impressão muito pessoal, me dirão. Quais provas, então, devo apresentar?
Estabelecer uma classificação dentro de determinado gênero já é um desafio –
ainda mais se abrangermos dois domínios bem diferentes, apesar de seus pontos
de interferência. Eu não invocaria, aliás, a vaga e extenuada noção de valor, mas a
noção concreta – e erroneamente desprezada – de interesse, de prazer.
Eu pregaria pela vulgaridade e preguiça, assim buscando ser aceito? De
forma alguma. Não é em nome do cidadão comum – em cujo pensamento me é
difícil entrar – que falo aqui, mas em nome do amador 6 de cinema, amador
assumido e, aliás, culto; aquele que possui o gosto pelo grandioso, pelo belo, pelo

4
No texto que eu tinha em mãos, este trecho apresentava uma lacuna. Não pude discernir se se tratava
de um nome próprio, como foi mantido na tradução (“o crítico Johagrinissime”, embora me tenha
parecido uma alternativa menos provável, mas mais condizente com a ideia geral do parágrafo) ou se se
tratava de um adjetivo atribuído a essa crítica (“uma crítica [...]); [N. do T.]

5
Le Carrosse d’or (J. Renoir) – Europa 51 (Rossellini) – I Confess (Hitchcock) – The Big Sky e Monkey
Business (Hawks) – Big Heat (Fritz Lang); [Nota do autor.]

6
Amateur: optei por amador – e não amante –, termo também usado por Jean Douchet em A Arte de
Amar; [N. do T.]
5

novo, pelo profundo, e que preferirá encontrar sua satisfação no ecrã às páginas ou
às telas7. Que tola ideia pensar que haveria em nós duas inclinações, uma ao prazer
pelo fácil e grosseiro, e outra às atividades mais elevadas – porém mais árduas!
Esse tipo de protestantismo sempre me foi estranho. Eu diria, pelo contrário, que
ter gosto é amar por instinto as coisas belas e cultivar o resto apenas por polidez
ou paradoxo – ou seja, com esforço.
Nessa indulgência que ultimamente se tem tido por um produto exótico ou
popular, eu enxergo mais o fruto do intelecto e do sistema do que da verdadeira
sensibilidade. Nossos sentidos são o que fazemos deles. Por que desconfiar?
Aliás, não nego que raciocinar em geral, substituir o signo escrito pela
imagem, não ameniza a preguiça. O cinema não é feito para crianças, mas para os
velhos e rígidos cidadãos que somos. Jamais serei feliz o bastante por não ter visto
mais de dois filmes antes dos meus dezoito anos. Eu contraí uma inaptidão
definitiva em “ler” a imagem, a ponto de me surpreender com essas crianças que,
num piscar de olhos, devoram quatro páginas de “quadrinhos”; eu até me perdia,
de vez em quando, nos desenhos animados por não entender todos os símbolos. Se
o cinema é apenas uma linguagem, eu realmente sou um péssimo aluno da língua.
Mas um bom filme não me parece falar um dialeto distinto do da minha mãe
Literatura.
Dito isso, vamos ao romance. Toda uma escola de jovens críticos zomba da
nossa ânsia moderna pelo autêntico. Que importa se o romancista vivenciou ou não
os eventos que ele relata? A imaginação não é sua principal virtude? E poderíamos
citar mil exemplos ilustres... Clássica por instinto, peço apenas que anotem essa
opinião: por que, então, tenho mais interesse (mantenho os meus critérios) – um
interesse profundo e “nobre”, ao menos na minha opinião – em ler aquelas
reportagens, aqueles memorandos, do que ler grande parte dos romances
publicados nos últimos dez anos? Porque a história é superior à ficção? Não. Esse
fenômeno afeta particularmente a nossa época, e creio saber pelo menos uma das
razões.
Antes de tudo, gostaria de esclarecer duas coisas: a primeira é que não existe
pura ficção. Todos os grandes criadores fizeram algo a partir de um fundo histórico
ou mítico, seja de “fatos diversos” ou de sua experiência própria. A segunda é que
o “estilo” nunca foi e nem pode ser a única preocupação de um romancista, nem
seu único apelo ao leitor. Com base nesses dois aspectos, eu não diria, já que não
sei qual é a crítica, que o mal atual do qual o romance parece sofrer é o de que
“todos os estilos são permitidos”. (E eu evito um argumento fácil, pois, no jovem
cinema, a técnica é o firme e precioso controlador do “estilo”). Prefiro dizer que
nosso autor de romances vê se abrir diante de si um leque de motivos mil vezes
maior do que no passado, e é essa liberdade que o aprisiona. Stendhal pôde

7
Telas de pintura; [N. do T.]
6

felizmente extrair da “Gazette des tribunaux” uma anedota – à sua época,


escabrosa; mas quem ousaria, do mesmo modo, transformar um relato ficcional da
France-Soir em 500.000 exemplares de um drama passional? Balzac o fez com
Vautrin. Nossos Vautrins modernos, com ou sem a ajuda dos rewriters, estão se
saindo bem por conta própria, a ponto de suprimir os mais hábeis contadores de
estória. Os cineastas, pelo contrário, desconhecem esse constrangimento; podem
aproveitar à vontade as notícias mais quentes pela simples razão de que, se nossos
gângsteres ou campeões modernos aprenderam a escrever, eles ainda não
adquiriram a arte e o poder de se colocarem em imagens. Nesse domínio, como
nos bons e velhos tempos do romance, o estilo, o “saber-fazer”, é o apanágio das
especialidades. Pouco importa à beleza de seus filmes se Lang ou Hitchcock
viveram ou não entre ladrões e marginais; basta que tenham sido documentados
como em Balzac; as “notas” aqui valem mais que a vivência. Mas se eu prezo por
Dashell Hammet ou Stanley Gardner mais do que por outro autor policial, é pelo
proveito que esse ex-detetive e esse ex-advogado tiraram de suas próprias
experiências.
Não, o romancista de hoje em dia não está errado em querer escrever com
seu sangue. Eu sei que a riqueza de uma experiência interna pode acolher o lado
comum da vida; mas essa experiência, inteiramente pura, seja do santo ou do
pensador, nunca foi o suficiente para criar uma trama romanesca. Eu me surpreendi
recentemente ao perceber que, depois de tanto tempo, uma obra contemporânea
me havia suscitado um interesse tão vívido; era um romance em que o
extraordinário de uma aventura vivida se juntava a uma consciência limpa –
embora desenvolvida de forma ingênua onde a experiência poderia ter sido
significativa, exemplar. Críticos literários, aceitem: esse texto, que vocês ignoram
decerto, eu nem sequer tive o mérito de encontrá-lo na poeirenta estante de um
livreiro; ele estava, na verdade, na segunda página de um jornal noturno. O autor,
um tal de Caryl Chessman, está, digamos, condenado à morte. Enquanto escrevo,
ele espera pela hora de sua execução. O que me seduz nessa obra? Saber que seu
criador pagou com a vida seu direito de escrever? Cinicamente, eu confesso que
sim, a ponto de até mesmo rever meus julgamentos se um dia descobrir que era
apenas uma mistificação. Meu amor pelo romance não é puro; que posso fazer?
Há mais coisas: o autor hesitou – ele nos diz – entre a profissão de escritor e a de
bandido, de tal modo que temos aqui uma obra literária. De um ângulo pragmático
e justificador, não é um destino individual nos é contado; mas, de um ponto de
vista universal – digo, exemplar –, é o conflito entre vontade e Destino. Nós já
havíamos conhecido, sem dúvida, essa confidência que nos é feita; mas, aqui, a
qualidade particular da experiência a confere um ar totalmente novo. “Se Deus não
existe, tudo é permitido”, disse Ivan Karamázov8. Nosso herói, por volta dos
dezesseis anos, já acreditava que “Deus estava morto” e, ao mesmo tempo, que o
temor diante de Deus superou seu medo dos homens, da sociedade, da lei. Então

8
Personagem do romance Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski; [N. do T.]
7

ele passou para o lado aonde Vautrin não pôde acompanhar Rastignac9. Esses
romancistas modernos, que se orgulham de ter abordado o mesmo tema, será que
eles o deram ressonâncias patéticas? A fim de que eu não seja acusado de
paradoxal, guardarei minha melhor carta para o final. Há em nossos textos recentes
um bandido filósofo; pelo que diz a maioria, o melhor escritor em dez anos. Isso
de forma alguma diminui o mérito de Jean Genet, que acredita ter sido essencial a
sua experiência como bandido e marginal. Eu diria que esse autor me encanta da
mesma forma que os grandes mestres do romance? Não, sem dúvida; mas devido
à natureza específica dessa experiência, é o mesmo caráter que também a torna
atrativa.
Sim, o grande, o verdadeiro romancista deve ser abstraído do que ele conta,
mas eu não vejo espaço na literatura moderna para o verdadeiro romancista. Esse
profissional10 não encontrará seu lugar em canto algum das nossas usinas. O
cineasta, pelo contrário, malgrado o maquinário complicado do qual ele se ocupa,
ainda é um bom artesão, como hoje já não vemos mais. Eu amo esse classicismo
autêntico e ingênuo presente em todos os filmes que citei. Eu só resisto às seduções
de um neoclassicismo estéril. Meu amor pelo cinema me fez recusar uma literatura
que empresta de um filme seu verniz mais superficial – e cuja crença até hoje é a
de estar protegida dos sintomas do nosso tempo. Antes o contrário: é o mais recente
advento das artes que está bem protegido dela. Espero que o autor de romances
não me veja com rancor por ter elucidado o perigo e, enfim, o mérito supremo de
sua posição.
(Continua)
Eric ROHMER

(Traduzido por Miguel Fernandes)11

9
Vautrin e Rastignac são ambos personagens de Honoré de Balzac; [N. do T.]

10
No original, “maître ouvrier”. Trata-se de profissionais que precisam de uma qualificação superior
para exercer uma profissão. Rohmer talvez queira dizer que esses escritores não terão o “saber-fazer”
(citado anteriormente) para mexer com os maquinários de usinas, isto é, os aparatos de cinema;
[N. do T.]

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Esta tradução teve como base principal o texto original em francês, mas em alguns momentos houve
o apoio da tradução em português de Marina Takami, que já havia traduzido a introdução a “O Celuloide
e o Mármore”. [N. do T.]

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