Apoio ao professor
123RF
imagem:
A cardiografia
filosófica de Amenemope
O
Se para bem viver é nosso primeiro desafio merece uma ressalva. Nosso
objetivo é embrenhar-se pela filosofia egípcia; não
preciso examinar o
vamos tratar longamente aqui da querela a respeito
coração e alcançar da existência ou inexistência dessa filosofia. O nosso
serenidade diante intuito é sustentar trabalhos que possibilitem que docentes de
das tempestades ensino médio e educação superior possam desfazer as noções pré-
-concebidas de que na Antiguidade a Filosofia era uma atividade
mais dilacerantes e exclusivamente grega.
difíceis, a cardiografia Um dos nossos pressupostos é que o Antigo Egito produziu Renato Noguera
impõe-se como textos filosóficos, tomando como base uma perspectiva defendida é professor na
por Pierre Hadot (1922-2010). O filósofo e historiador francês defi- UFRRJ.
percurso filosófico Este artigo foi
niu em Exercícios espirituais e filosofia antiga (2014) que a atividade
incontornável filosófica na Antiguidade greco-romana poderia ser definida como publicado em 2015
pelo periódico do
“exercícios espirituais”. Neste sentido, o escopo deste trabalho não
evento da Semana
retoma debates que encontramos em outros trabalhos acerca da
de Egiptologia do
filosoficidade de textos não ocidentais, principalmente os africa-
Museu Nacional
nos, em especial os egípcios.1 Aqui, a chave de leitura passa pela
(SEMNA).
noção de que a atividade filosófica na Antiguidade greco-romana
encerra um conjunto de técnicas para produção de um modo de
vida. E, nesse quesito, consideramos que é plausível dizer que os
textos egípcios são filosóficos. O legado (filosófico) de Amenemo-
pe constitui-se como um autêntico conjunto de exercícios espiri-
tuais. Contudo, encontramos outro desafio implícito sempre que
1
NOGUERA, 2013; NOGUERA, 2014
www.portalcienciaevida.com.br • ciência&vida • 45
estavam ocupadas em produzir um mento – ao invés de evitar problemas,
modo de vida. E, tal como está bem causaria mais embaraços. O exame
registrado na Filosofia antes dos gregos: minucioso de Hadot elucida essa
“Como Sócrates, também os Egípcios tripla recusa. Afinal, “intelectual” não
e Amenemope estavam convencidos fornece toda a dimensão de modifica-
de que bastava o conhecimento da ção e transfiguração de um modo de
doutrina para fazer um homem justo”3. vida. O mesmo procede com “moral”,
A virtude do silêncio (que remete-nos concepção que nitidamente parece
a acepção de bem viver) é incansavel- com código de conduta ou conjunto
mente perseguida por Amenemope de regras. A impressão que o termo
e indica o esforço de conduzir uma “pensamento” nos dá não é menos
existência justa baseada no espírito de inexata; à medida que parece excluir
Maat, deusa que circunscreve verdade, caráter, imaginação, sensibilidade e a
justiça, harmonia e equilíbrio. vontade. A expressão “exercícios espi-
rituais” fornece a extensa e profunda
A expressão “exercícios Filosofia como dimensão de uma atividade que é, ao
espirituais” fornece a modo de vida mesmo tempo, escolha e elaboração
profunda dimensão de
O filósofo e historiador francês de uma maneira de viver no mundo.
Pierre Hadot brinda-nos com uma Ou seja, não estamos a falar de um
uma atividade que é,
perspectiva muito interessante. Em discurso separado da vida; mas, de
ao mesmo tempo, seus estudos sobre o pensamento filo- uma orientação existencial que exige
escolha e elaboração sófico na Antiguidade diz: “A filosofia, transformação de quem pratica a ativi-
na época helenística e romana, apre- dade (filosófica).
de uma forma de viver
senta-se então como um modo de vida, Conforme Hadot, na Grécia e na
no mundo como uma arte de viver”4. Neste caso, Roma antigas a condição de filósofo
a finalidade da Filosofia estaria na só poderia ser confirmada por quem
ultrapassagem de si, na transfiguração assumisse uma vida (filosófica), uma
daquele que filosofa. Por isso, a crítica maneira de posicionar-se consigo
nos debruçamos sobre textos africa- hadotiana da concepção moderna que mesmo e no mundo. O que difere da
nos – egípcios ou de outras regiões da assevera que Filosofia é tão somente noção de produzir discursos, textos,
África – considerando que na tradi- “construção de uma linguagem técni- especulações e teorias que não tenham
ção, manuais e imaginário filosóficos ca reservada a especialistas”5. Hadot relação com transfiguração daque-
são nitidamente demarcados por uma usa a expressão “exercícios espirituais”. le que versa. A exegese de textos só
historiografia ocidental. Essa proble- Ora, o termo exercícios encerra ativi- tem sentido se for para a pessoa que
mática que aqui desafia-nos apare- dades e práticas; enquanto espirituais lê atingir “a consciência de si, a visão
ce bem colocada no comentário que nada tem de teológico ou religioso. A exata do mundo, a paz e a liberdade
segue: “A dificuldade é que não pode- primeira hipótese plausível poderia interiores”6. Entretanto, mesmo que
mos pensar a filosofia egípcias senão sugerir a substituição de “espirituais” nenhum tratado sistemático a respei-
com as nossas categorias não egípcias pelos termos “intelectuais”, “morais” to do ensino de técnicas de exercícios
[‘ontologia’ é só uma delas]”2. É preci- ou de “pensamento”; propondo algo espirituais tenha sido encontrado na
so enfrentar frontalmente esse proble- como exercícios intelectuais, exercí- Antiguidade, um dos arremates do
ma, pensando a filosofia egípcia com cios morais, ou ainda, exercícios de filósofo francês é de que esses exercí-
seus próprios conceitos, ainda que o pensamento. Mas, Hadot explica que cios estavam integrados ao cotidiano
diálogo com a tradição ocidental seja a expressão “exercícios espirituais” é das escolas filosóficas. Para chegar a
123RF
mantido. Afinal, na esteira da tese mais adequada. Porque um desses três essa conclusão, sua investigação faz
imagens:
de Pierre Hadot que preconiza que termos – intelectuais, morais, pensa- uma verdadeira “arqueologia” em
as escolas filosóficas greco-romanas busca das camadas mais profundas
3
CARREIRA, 1994, p. 155
4
HADOT, 2014, p. 271
2
CARREIRA, 1994, p. 59 5
Idem 6
HADOT, 2014, p. 22
46 • ciência&vida
que sustentam os textos dos filóso- A virtude do silêncio (que remete-nos
fos gregos e romanos na Antiguida-
de. Para Hadot, o verdadeiro tesouro À acepção de bem viver) é perseguida
está justamente num elenco de uma por Amenemope e indica o esforço de
terapêutica filosófica de inspiração
estóico-platônica extraída das consi- conduzir uma existência justa baseada
derações de Fílon de Alexandria (um
no espírito da deusa Maat
dos maiores expoentes do helenismo
judeu que teria vivido entre 20 a.E.C
a 50 depois da Era Comum [d.E.C], ficar e intervir. Ou seja, desfazer o
conforme Emile Bréhier e Hans Lewy pavor e ansiedade diante das coisas
de 25 A.E.C a 50 d.E.C). Na estei- que não podemos controlar.
ra de Fílon, Hadot nos proporciona 3) Exercícios intelectuais têm
duas listas de exercícios. A primeira como objetivo tornar o aprendizado
é composta de seis técnicas: pesquisa mais efetivo, fortalecendo a precisão
(zetesis); exame aprofundado (skepsis); dos estudos através de quatro elemen-
a leitura, a audição (akroasis); a aten- tos: a) Leitura, b) Audição, c) Pesqui-
ção (prosochè); o domínio de si (enkra- sa, d) Exame aprofundado.
teia); indiferença às coisas indiferen- 4) Exercícios ativos servem
tes. A segunda também conta com para criar, desenvolver e assegurar
seis exercícios: leituras; meditações hábitos indispensáveis para saúde
(meletai); terapias das paixões; as do espírito: a) Domínio de si, b) A
lembranças do que é bom; o domí- realização dos deveres, c) a indife-
nio de si (enkrateia); a realização rença às coisas indiferentes.
dos deveres.7 A partir dessa leitura, Todavia, ainda que o filósofo fran-
Hadot fornece uma articulação que cês faça um belo inventário dos exercí-
divide os exercícios em pelo menos cios espirituais na filosofia helenística
quatro grandes grupos, os quais são e romana, não deixando dúvidas que o
seguidos de definições preliminares: seu ensino não consiste numa “teoria
1) Atenção (prosochè): atitude abstrata, ainda menos na exegese de em Amenemope um vasto conheci-
preferida dos estoicos que consiste na textos, mas numa arte de viver”8. Ele mento da tradição kemética (termo
vigilância continua e ininterrupta de nada menciona a respeito dos textos que deriva de Kemet, nome egípcio
si mesmo, fornecendo ao filósofo a africanos, em nenhum momento faz antigo que significa “terra negra”,
concentração adequada no momento referência ao vasto e rico material empregado para designar o território
presente, permitindo que o instante egípcio. Eis nosso convite, adentrar dos faraós). Amenemope era um alto
e a compreensão do que está fora do os escritos egípcios, especialmente funcionário do Antigo Egito (Kemet),
nosso alcance esteja sempre nítida. os 30 capítulos dos Ensinamentos de filho de um proeminente escriba
2) Meditação (meletè) e lembran- Amenenmope com objetivo de fazer chamado Kanakht. Os 30 capítulos
ças do que foi bom: atitude de estar uma incursão introdutória no coração dos Ensinamentos de Amenemope estão
de prontidão para acontecimentos da filosofia da serenidade.9 disponíveis na íntegra no Papiro 1074
aparentemente desagradáveis que do Museu Britânico datando aproxi-
escapam ao nosso controle, destituin- O cor ação madamente 1300 a.E.C.10 Theóphile
do situações como pobreza, doen- em Amenemope Obenga dedica uma parte de seu livro
ça, sofrimento em geral e morte da Diversas leituras de comentado- La philosophie africaine de la période
condição de males. O objetivo é que res do pensamento filosófico egípcio, pharaonique (2780-330 a. C.) [1990]
concentremo-nos somente naquilo tais como Obenga (1990), Carreira para Amenemope. O mesmo é feito
que podemos deliberadamente modi- (1994) e Asante (2000), identificam pelo português José Nunes C arreira
8
HADOT, 2014, p. 23
7
HADOT, 2014, p. 23 9
Expressão de NOGUERA, 2013 10
ASANTE, 2000, p. 107
www.portalcienciaevida.com.br • ciência&vida • 47
que diz: “Amenemope apresenta uma para os discípulos, “inclina teus ouvi- uma vida justa e feliz. O veredic-
primorosa estruturação da obra, que dos, ouve (minhas) palavras, aplica to de Osíris, deus responsável pelo
divide em trinta capítulos – uma teu coração em compreendê-las”12. O julgamento dos que deixam o corpo
inovação sem precedentes. Como escopo desse trabalho está na análise mortal. Vale a pena enfatizar que a
(...) bom egípcio, não podia igno- do conceito de coração em Amenemo- narrativa mítico-religiosa diz que o
rar os antecessores; inspirou-se em pe. Considerando como um axioma coração precisa ser leve. Essa dimen-
materiais da tradição. Mas acabou que: “Criar conceitos sempre novos é o são é retomada por Amenemope de
por atingir invejável inovação. É ler objeto da filosofia”13, aparece o conceito várias maneiras. No Capítulo 10
a abertura de ópera que é o prólogo, de cardiografia para atender as deman- dos Ensinamentos, encontramos a
enunciando os temas a desenvolver no das da filosofia de Amenemope e o seguinte instrução espiritual: “Não
corpo da Instrução”11. papel do coração no seu pensamento. separes teu coração de tua língua”14.
O objetivo do filósofo egípcio é Em diálogo com a tradição egíp- E adiante no Capítulo 18 insiste,
ensinar uma arte que consiste num cia, Amenemope mantém interlo- “mantém firme teu coração, resoluto
conjunto de técnicas que possam fazer cução com a concepção de coração teu coração”15. O que pode ser colo-
do discípulo atento uma geru maa como sede do pensamento, das ações cado em sequência com “melhor é o
(pessoa serena ou verdadeiramente e do caráter. O termo “coração” tem homem cuja palavra (permanece) no
silenciosa), alguém capaz de examinar duas palavras em egípcio antigo, ventre, do que aquele que fala para
seu próprio coração e dizer a verda- Haty [coração em seu aspecto físico] causar dano”16. Amenemope defen-
de sobre si. Sem dúvida, a definição e Ib [coração no aspecto espiritual]. de o geru maa (pessoa verdadeira-
hadotiana da Filosofia e os grupos ou Este último aparece na descrição mente serena) como sendo modo de
categorias desses exercícios espirituais mítico-religiosa que descreve a situ- vida daquele que leva uma existência
adequam-se perfeitamente àquilo que ação dos humanos após a morte. A filosófica. A obtenção desse estágio
Amenemope faz. Algumas noções narrativa diz que depois de morrer, de vida, dessa perspectiva existencial
chegam a surpreender e podem servir o coração [Ib] é posto na balança de diz respeito ao que anteriormente
como mote para estudos comparati- Maat (deusa da verdade, harmonia denominamos de cardiografia e faz
vos entre a filosofia de Amenemope, e equilíbrio) que coloca a pena de par com o projeto filosófico-ontoló-
o estoicismo, a filosofia de Epicuro, íbis para mensurar se o coração é gico egípcio.
dentre outras. O pensador kemético diz mais leve para abrir passagem para O que está em consonância
com algumas técnicas de inspeção
12
AMENEMOPE, 2000, p. 263
11
CARREIRA, 1994, p. 139 13
DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 13 do coração denominadas aqui de
cardiografia (filosófica) que reúnem
cinco provisões – termo retirado das
Amenemope funções administrativas dos altos
funcionários como Amenemope que
e a filosofia africana aqui indica conjunto de técnicas,
atitudes e precauções metodológi-
O artigo pretende introduzir leitoras e leitores nos estudos sobre filosofia
cas – para cultivo da vida serena: I)
africana antiga a partir de um dos pensadores mais representativos da escola
Audição atenta do próprio coração;
egípcia: Amenemope. O pensador egípcio tem todas credenciais para inclusão II) Leitura dos ensinamentos (filo-
na história oficial do pensamento filosófico ao lado dos antigos gregos. Ame- sóficos) dos que vive(r)am atentos
nemope viveu na última fase da 20ª Dinastia do Reino Novo que, no total, ao próprio coração; III) Pesqui-
durou aproximadamente de 1186-1069 antes da Era Comum (a.E.C.), filho sa do coração através das palavras
de um escriba, atuava como supervisor dos campos de cereais, sua voz ecoou (os vestígios do que está no ventre
123RF
durante até dimensões, segundo Carreira, “jamais sonhadas e nunca antes [lugar onde a cólera e o orgulho são
até aí alcançadas no Egito1”. A partir dessas considerações, a nossa pretensão
imagens:
48 • ciência&vida
daquilo que as palavras do “homem nar outras técnicas. Não basta que o nomes para a mesma coisa. Pois bem,
inflamado”; V) Firmeza e caráter coração não seja inflamado, ele precisa com essa unidade aquilo que for dito
resoluto no/do coração. tornar-se sereno. pela língua estará de acordo com a
No Capítulo 18, Amenemope obser- A serenidade é o ponto de chega- verdade do coração. O que nos traz de
va que se a língua de um homem é o da da caminhada filosófica. Tudo isso volta à cardiografia, isto é, desenhar
leme do barco, o Senhor do universo é passa pelo coração, raiz e sede do dese- e redesenhar o coração reconhecendo
o seu piloto.17 O que significa reconhe- jo (xrt-ib) e do pensamento (sxr). O que o pensamento e o desejo habitam
cer que a sorte não está ao alcance das pensamento, sxr na transliteração do a mesma casa.
escolhas humanas; mas, que uma pessoa hieróglifo, remete ao vocábulo “plano” De volta ao enunciado, “é preciso
verdadeiramente serena pode bem viver e circunscreve as noções de inteligência que o coração derrote a si mesmo”,
diante de qualquer vicissitude. Pois bem, e de competência. Num outro registro, percorremos o território kemético com
a cardiografia é a técnica de ajuste da “plano” remete à outra palavra egípcia desníveis, vales e desertos até o oásis
balança e mensuração e reescrita das com a mesma transliteração e uma mais reconfortante: a verdade que as
palavras a partir do parâmetro da sutil diferença numa das figuras de palavras podem extrair do coração.
verdade. Cardiografar quer dizer fazer “derrubar” e “derrotar”. Plano e derru- Dentro do solo cultural egípcio, já foi
com que as palavras que passam pelo bar são transliterados como sxr. Ora, o dito que coração recobre pensamen-
coração sejam equilibradas, harmôni- pensamento poderia ser descrito como to e desejo. Pois bem, Amenemope
cas, isto é, tenham o mesmo “peso” da um engenho que derruba e derrota? parte dessa perspectiva cultural para
verdade. Para cumprir esse objetivo, Ou, esse plano diz respeito a derro- tecer suas formulações, fornecendo a
as cinco provisões (audição, leitura, ta de si mesmo? Onde o pensamento ideia de que pensar e desejar/sentir
pesquisa, exame e firmeza) mencio- (incluindo inteligência e competência) nascem juntos; mas, podem entrar
nadas são indispensáveis e devem ser deve caminhar com o desejo? Pois em conflito diante das tempestades,
praticadas. Contudo, ainda é preciso bem, dentre as especulações filológi- das palavras inflamadas e obstácu-
desopilar o coração para que este tenha cas para ampliar nossa compreensão los advindos do desejo de sobrepor-
as mesmas medidas da pena de Maat. do discurso filosófico precisamos nos -se aos outros. Amenemope adverte
Esse primeiro passo não pode abando- ater num aspecto importante. Ora, que não devemos nutrir arrogância,
se tomamos a cardiografia – medir, arvorando superioridade diante de
17
AMENEMOPE, 2000, pp. 274-275 mensurar, pesquisar as palavras e rees- qualquer fortuna que seja. Afinal, diz
crever o cerne do coração em função o filósofo: “Na verdade não conhe-
da verdade – como o caminho que ces os desígnios do deus e não podes
deve ser trilhado para uma vida sere- lastimar o amanhã”18. Por isso, o
na, o silêncio autêntico que caracteriza filósofo adverte “não digas: encontrei
o bem viver, não é equívoco mencionar um protetor e agora posso desacatar
que o objetivo é que o “coração derro- quem odeio”19. Não se deve abusar da
te a si mesmo”. Em outros termos, sorte, porque ela pode mudar como
o coração deve derrotar o desejo de o vento no deserto, imprevisível.
controlar o que escapa ao contro- Por isso, só devemos nos assegurar
le, derrubando as diferenças entre os de nosso próprio coração. Para isso,
elementos que o constituem, fazendo 18
AMENEMOPE, 2000, p. 276
com que pensar e desejar sejam dois 19
AMENEMOPE, 2000, p. 276
www.portalcienciaevida.com.br • ciência&vida • 49
A cardiogr afia pretende libertar o to que pode ganhar uma subárea
promissora, à “Filosofia”. Ora,
pensamento articulando-o com o a defesa de que o pensamento
desejo, que não se curva à vontade de produzido no Antigo Egito seja
filosófico não é corriqueira. Mas,
vencer os outros. Mas, somente vencer longe de supor que esse estudo seja
a si par a ser capaz de encontr ar-se inédito estamos aqui para convidar
pesquisadoras(es) da área de Filo-
sofia a adentrar nos escaninhos da
o coração não pode estar dividido. sabe com nitidez o plano que perse- egiptologia para visitar os textos
Neste sentido, pensar não pode ser gue, derrotar a si mesmo, isto é, o sapienciais, verificando com suas
separado de sentir e vice-versa. Ora, o desejo de que a sorte esteja sempre a ferramentas se o caráter filosófico
que Amenemope observa é justamen- seu favor. O que acaba por criar obstá- está presente ou se seriam somen-
te que o coração tem sede de pensar culos para o curso filosófico do pensa- te especulações mítico-religiosas.
e desejar/sentir e isso confunde e mento. Neste sentido, a cardiografia Nossos estudos têm convergido
inflama as pessoas. Segundo Amene- pretende libertar o pensamento, o que com as análises dos egiptólogos
mope, o desejo de que a fortuna seja não significa desconectá-lo do dese- Cheikh Anta Diop (1923-1986) e
constante em nossas vidas desvia o jo; mas, articulá-lo com o desejo que Theóphile Obenga.
pensamento de seu curso: da verda- não se curva à vontade de vencer os Sem deixar de lado a Egiptologia,
de. Porque não é raro que as diver- outros. Mas, somente vencer a si para passamos a realizar estudos compara-
gências entre pensamento e desejo ser capaz de encontrar a si. Afinal, dos para analisar o material egípcio. O
confundam o humano. Por isso, a guardar os ensinamentos que “fazem ponto de partida foi a reflexão impac-
atenção deve ser integral para fazer o ignorante conhecer. (...), purifica- tante de Hadot que trouxe um cami-
com que o coração seja sempre uma do por eles”20 torna quem assume as nho que tem muitas possibilidades
só coisa. Afinal, pensar e desejar são cinco provisões, “verdadeiramente investigativas. A tese de que a filosofia
atividades cardíacas. O dilema nasce sereno, (que se) conserva plácido”21, greco-romana na Antiguidade sempre
sempre que o pensamento é separado senhor(a) do seu próprio coração. esteve ligada invariavelmente aos exer-
do desejo fazendo com que o coração cícios espirituais deixou-nos à vista um
se transforme em mar revolto de difí- Egiptologia encaminhamento pouco explorado por
cil travessia. Amenemope explicita no Br asil esse viés. Uma enorme variedade de
123RF
que o coração humilde deseja apenas A Egiptologia no Brasil é um textos egípcios está incontornávelmen-
imagens:
o que depende de suas próprias forças. campo em franco desenvolvimen- te ligada a mesma acepção de filosofia
Um coração sereno não tem excesso advogada por Hadot, a noção de exer-
no querer e distante da turba incauta AMENEMOPE, 2000, p. 280 cícios espirituais.
20
21
AMENEMOPE, 2000, p. 265
50 • ciência&vida
efeito, não temos outra intenção a ALLEN, James (2001). Middle
referências
Egyptian: an introduction to the language
não ser dar início aos estudos da and culture of hieroglyphs. Publisher:
f ilosof ia de Amenemope insis- Cambridge University Press, 2001.
tindo em repetir as provisões da AMENEMOPE. “Ensinamentos de
Amenemope” (2000) ARAÚJO, Emanuel.
cardiograf ia para que a memória Escrito para a eternidade: a literatura
não esvaia como a palha que quei- no Egito faraônico. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília: São Paulo:
ma com o fogo. A cardiograf ia do Imprensa Oficial do Estado, pp.260-280.
pensamento está acessível a todo APPIAH, Kwame Anthony (1997). Na
casa de meu pai: a África na filosofia da
aquele que reconhece sua igno- Cultura. Tradução Vera Ribeiro. São Paulo:
rância e se esmera em aplicar as Editora Contraponto.
suas cinco provisões anteriormen- ASANTE, Molefi (2000). The Egyptian
philosophers: ancient African voices from
te mencionadas: I) Audição aten- Imhotep to Akhenaten.Illinois: African
ta do próprio coração; II) Leitura American images.
dos ensinamentos (f ilosóf icos) dos BBC, Documentary. Chapter 6 – The
Secrets of the Hieroglyphs (no Brasil:
que vive(r)am atentos ao próprio Capítulo 6 – O Segredo dos Hieróglifos)
Pois bem, foi neste percurso coração; III) Pesquisa do coração CARREIRA, José (1994). Filosofia Antes
dos Gregos. Mem Martins: Publicações
em busca da Filosof ia como um através das palavras (os vestígios Europa-América.
conjunto de técnicas para bem do que está no ventre [lugar onde DELEUZ, Gilles, GUATTARI, Félix (1992).
viver que exploramos os Ensina- a cólera e o orgulho são gerados] O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr.
e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro:
mentos de Amenemope, o instigante e passa pelo coração f ica nas pala- Editora 34.
supervisor dos campos de cereais vras; IV) Exame cuidadoso daqui- DIOP, Cheikh Anta (1954). Nations
nègres et culture, t. i, Paris: Présence
da 20ª Dinastia que traz à baila o lo que as palavras do “homem africaine.
coração e investe toda sua narrati- inf lamado”; V) Firmeza e caráter FOÉ, Nkolo. “África em diálogo, África
va nos modos de evitar os sobres- resoluto no/do coração. Em resu- em autoquestionamento: universalismo
ou provincialismo? ‘Acomodação de
saltos e tempestades que podem mo, com isso não chegaríamos à Atlanta’ ou iniciativa histórica?” Educar
assolá-lo, em favor de que nossas derrota de nosso próprio coração? em Revista, Curitiba, Brasil, n. 47, p. 175-
228, jan./mar. 2013. Editora UFPR
palavras sejam o resultado de uma Amenemope não deixa-nos garan-
FONTOURA JR, Antônio
audição segura e concentrada do tias incontestes, insiste que deve- (2010). Hieróglifos Egípcios: um
coração. Por isso diante das dif i- mos revitalizar o nosso propósito curso de introdução à leitura e decifração
de textos do Antigo Egito. Curitiba:
culdades de buscar uma leitura que porque uma pessoa inf lamada não PatolaLivros.
pudesse ser efetivamente kemética, precisa dar atenção a si mesma e KARENGA, Maulana (2004). Maat, the
Moral Ideal in Ancient Egypt: an study
empreendemos com algumas espe- pode deixar-se levar por qualquer in classical african ethics. New York:
culações preliminares a respeito acontecimento. Mas, se quisermos Routledge Press.
do que aqui foi batizado de cardio- a serenidade, não podemos deixar NOGUERA, Renato (2014). Ensino de
Filosofia e a Lei 10639. Rio de Janeiro: Pallas.
graf ia (do pensamento). Ora, a que nada além de nosso próprio
NOGUERA, Renato (2013). “A ética
cardiograf ia foi caracterizada coração vencido pela verdade guie da serenidade: o caminho da barca e
como um conjunto de exercícios ou nossos passos. Com efeito, derru- a medida da balança na filosofia de
Amenemope” Ensaios Filosóficos Volume
provisões na busca do cultivo da bar expectativas desmedidas, asse- VIII, p. 139-155.
vida serena. Amenemope adver- gurar-se do seu próprio coração, OBENGA, Théophile (1992). Ancient
Egypt and Black Africa. Chicago, IL:
te que se esta arte, tal como nos isto é, de si mesmo com a humil- Karnak House.
diz Ptahhotep, não tem artista de dade própria dos que sabem que OBENGA, Théophile (2004).“Egypt:
destreza perfeita, 22 o mais impor- sua destreza em aprender nunca Ancient History of African Philosophy” In
WIREDU, Kwasi. A companion to African
tante é insistir incansavelmente está completa pode ser o primeiro Philosophy. Oxford: Blackwell Publishing,
guardando suas palavras no cora- passo para adentrar as cinco provi- p. 31-49.
ção para que a lembrança sempre sões da cardiograf ia do pensamen- OBENGA, Théophile (1990). La
philosophie africaine de la période
viva possa manter acessa a vontade to. O que se caracteriza como a pharaonique (2780-330 a. C.), Paris:
de buscar o próprio coração. Com tarefa mais importante dos ensina- L’Harmattan.
OBENGA, Théophile (2005). L’Égypte,
mentos de Amenemope, quiçá de la Grèce et l’École d’Alexandrie. Paris:
22
PTAHHOTEP, 2000, p. 247 toda f ilosof ia genuína. L’Harmattan.
www.portalcienciaevida.com.br • ciência&vida • 51