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CRIMINOLOGIA CRÍTICA

E DIREITO PENAL
ANÁLISE CRÍTICA DO SISTEMA DE
JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

Antônio Leonardo Amorim, Anderson Rocha Rodrigues,


Paulo Eduardo Elias Bernacchi e Stefania Fraga Mendes

(Organizadores)
CRIMINOLOGIA CRÍTICA E DIREITO PENAL: ANÁLISE CRÍTICA DO
SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO
Antônio Leonardo Amorim, Anderson Rocha Rodrigues,
Paulo Eduardo Elias Bernacchi e Stefania Fraga Mendes
(Orgs.)

CRIMINOLOGIA CRÍTICA E DIREITO PENAL: ANÁLISE CRÍTICA DO


SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

1ª Edição

Quipá Editora
2022
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apresentados, bem como a revisão ortográfica e gramatical são de responsabilidade de
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Maciel (IFCE) / Dra. Patricia Verônica Nunes Carvalho Sobral de Souza (TCE-SE/UNIT)
VerônicaNunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Criminologia crítica e direito penal : análise crítica do sistema de justiça


C929 criminal brasileiro / Organizado por Antônio Leonardo Amorim ... [et al.]. ―
Iguatu, CE : Quipá Editora, 2022.

137 p. : il.

ISBN 978-65-5376-024-0
DOI 10.36599/qped-ed1.143

1. Direito penal. 2. Criminologia. 3. Sistema de Justiça Criminal – Brasil. I.


Amorim, Antônio Leonardo. II. Título.
CDD 345.05

Elaborada por Rosana de Vasconcelos Sousa ― CRB-3/1409

www.quipaeditora.com.br / @quipaeditora
APRESENTAÇÃO

Queridos leitores e leitoras, é com grande satisfação que os professores do


Curso de Direito da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso), lançam em
formato de livro digital as pesquisas realizadas por seus orientados de trabalho de
conclusão de curso.
Os professores organizadores, autores e autoras, responsáveis pela realização
de pesquisa crítica, científica e democrática, apresentam seus dados em formato de
artigo científico, validando o aprendizado e dando publicidade a toda comunidade
jurídica e sociedade das pesquisas realizadas na Universidade Pública e Gratuita.
Compõem essa obra artigos que analisam de modo crítico o sistema de justiça
criminal, colocando em discussão a aplicação da lei pelo Estado, o tratamento dos
apenados, além de promover debates sobre a criminalização de ações, respeitando os
Direitos Humanos e Fundamentais garantidos a todos os seres humanos.
São capítulos de livro em formato de artigo científico, que representam a
participação dos campus de Alto Araguaia/MT, Vila Rica/MT e Aripuanã/MT, na
pesquisa científica.
Desde já, fica registrado o agradecimento a todos aqueles que contribuíram
para a consecução dessa obra.
Desejamos a todas e todos uma excelente leitura.

20dedemaio
Cuiabá/MT,20 maiodede2022.
2022.

Antônio Leonardo Amorim


Anderson Rocha Rodrigues
Paulo Eduardo Elias Bernacchi
Stefania Fraga Mendes
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 1 08

A AUSÊNCIA DE RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO:


ANÁLISE A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS

Dhieider Batista Gonçalves


Antônio Leonardo Amorim

CAPÍTULO 2 20

APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA REMIÇÃO DA PENA PELO TRABALHO NA


CADEIA PÚBLICA DE VILA RICA/MT

Vanessa Marques Queiroz


Paulo Eduardo Elias Bernacchi

CAPÍTULO 3 32

GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA


(2017-2019) EM PORTO ALEGRE DO NORTE/MT – BRASIL

Deusimar Correia de Sousa


Anderson Rocha Rodrigues

CAPÍTULO 4 44

O CUMPRIMENTO DA EXECUÇÃO DA PENA POR CONDENAÇÃO EM


SEGUNDA INSTÂNCIA E SUA CONTRIBUIÇÃO O ABISMO SOCIAL ENTRE
RAÇAS E CLASSES NO BRASIL

Kelly Morgana Moraes da Rocha


Antônio Leonardo Amorim
Elizete Beatriz Azambuja

CAPÍTULO 5 56

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UMA ANÁLISE CRÍTICA Á LUZ DA LEI MARIA DA


PENHA
Milene Medeiros de Oliveira
Anderson Rocha Rodrigues

CAPÍTULO 6 67

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES: MEDIDAS DE


ENFRENTAMENTO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Eva Karolina Griebeller Ferreira


Antônio Leonardo Amorim
Meiriany Arruda Lima
Ernestina Norinha de Lima Sousa

CAPÍTULO 7 80

NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE: DEBATES ATUAIS A PARTIR DO VIÉS


JURÍDICO

Isabella Silva Jacobina


Anderson Rocha Rodrigues

CAPÍTULO 8 89

É POSSÍVEL UM PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO HUMANIZADO NO CASO DE


CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL?

Edenir Paulista Sólis dos Santos


Antônio Leonardo Amorim

CAPÍTULO 9 101

O INSTITUTO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMENTADO À LUZ DA LEI


ANTICRIME E SUA INSTRUMENTALIZAÇÃO EM TEMPOS PANDÊMICOS

Beatriz Campos Simão


Anderson Rocha Rodrigues

CAPÍTULO 10 113

MEDIDAS DE SEGURANÇA: O MODELO JURÍDICO-PUNITIVO-TERAPÊUTICO


COMO SANÇÃO PENAL NA HIPÓTESE DE INIMPUTABILIDADE

Leidiany Ferraz Xavier Rezende


Stefânia Fraga Mendes
CAPÍTULO 11 127

SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E AS BARREIRAS DA


RESSOCIALIZAÇÃO

Anderson Rocha Rodrigues

SOBRE OS AUTORES 136


Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 1

A AUSÊNCIA DE RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL


BRASILEIRO: ANÁLISE A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS

THE ABSENCE OF RESOCIALIZATION IN THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM:


ANALYSIS BASED ON HUMAN RIGHTS

Dhieider Batista Gonçalves1


Antônio Leonardo Amorim2

Resumo: O sistema prisional brasileiro está em colapso, essa pesquisa apresenta o


maior número de pessoas encarceradas desde a sua fundação e, milhares de detentos em
situações degradantes, bem como superlotação e condições higiênicas precárias, fatores
esses que além de retirar a liberdade dos indivíduos é suficiente a promover o pior crime
contra a humanidade. A Lei de Execução Penal (LEP), instituída para promover a
execução da pena e ressocializar o condenado, parece cumprir o seu papel apenas na
execução da pena imposta, fazendo vistas grossas ao processo de ressocialização do
condenado, principalmente no que se refere à aplicabilidade dos Direitos Humanos e
fundamentais. Diante do exposto, indaga-se: o sistema carcerário brasileiro tem
ressocializado de forma suficiente a promover a dignidade da pessoa humana? A
resposta a esse problema de pesquisa se dará a partir do método hipotético dedutivo,
indutivo, de pesquisa bibliográfica e documental, com objetivo de constatar se o sistema
carcerário brasileiro tem ressocializado os seres humanos nele inserido, de forma a
promover a dignidade da pessoa humana. A partir desse estudo, podemos concluir que a
LEP possui diversas ferramentas e princípios que contemplam a ressocialização, mas
deixa a desejar na sua aplicabilidade devido à situação carcerária atual. Portanto, não
basta apenas a existência da lei, é necessária uma aplicabilidade mais efetiva, com
deveres mútuos do Estado, do reeducando e da sociedade.

Palavras-chave: Criminologia Crítica; Direitos Humanos; Sistema Prisional; Prisões.

Abstract: The Brazilian prison system is collapsing, this research has the largest
number of people incarcerated since its foundation, and thousands of inmates in
degrading situations, as well as overcrowding and precarious hygienic conditions,
factors that, in addition to removing the freedom of individuals, are sufficient to
promote the worst crime against humanity. The Criminal Execution Law (LEP),
instituted to promote the execution of the sentence and resocialize the convict, seems to
fulfill its role only in the execution of the sentence imposed, turning a blind eye to the
convict's resocialization process, especially with regard to applicability Human and
1 Graduado em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), e-mail:
dhieiderbg@gmail.com.
2 Doutorando Doutorando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES
(2022), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019), bolsista
CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (2012-2016) -
Unidade de Naviraí/MS, pesquisador de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito da Criança
e Adolescente. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), foi Coordenador do
Grupo de Pesquisa Novas Perspectivas do Direito Penal (2019-2021), e-mail:
amorimdireito.sete@hotmail.com.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

fundamental rights. Given the above, the question is: has the Brazilian prison system
been sufficiently resocialized to promote human dignity? The answer to this research
problem will be based on the hypothetical deductive, inductive method of
bibliographical and documentary research, with the objective of verifying whether the
Brazilian prison system has re-socialized human beings inserted in it, in order to
promote the dignity of the human person . From this study, we can conclude that the
LEP has several tools and principles that contemplate resocialization, but it lacks
applicability due to the current prison situation. Therefore, the existence of the law is
not enough, it is necessary a more effective applicability, with mutual duties of the
State, the re-educated and society.

Keywords: Critical Criminology; Human rights; Prison System; Prisons.

INTRODUÇÃO

A reflexão acerca do sistema prisional brasileiro é de extrema importância e


tem caráter emergencial, pois é notável que o ideal preconizado na Lei de Execução
Penal não condiz com a realidade que se nota nas penitenciárias. Hodiernamente,
verifica-se nos telejornais incidentes graves como o de rebeliões em prisões, que por
sinal, não desperta a real justificativa dos incidentes nos telespectadores, uma vez que o
senso comum ainda prepondera em uma boa parte da população, onde o
conservadorismo da Lei de Talião – de que uma pessoa que feriu alguém deve ser
penalizada reciprocamente da mesma forma – fica evidente em diversos discursos leigos
observados cotidianamente.
A ressocialização do sentenciado constitui direito prescrito na Lei de Execução
Penal e não objetiva apenas punir os transgressores com pena privativa de liberdade,
mas propiciar meios de reeducação do condenado para que este seja reinserido de forma
efetiva na sociedade.
Todavia, o processo de ressocialização é amplo e requer precipuamente a
iniciativa do Estado para que se dê início a tratar o cerne da questão, situação em que é
possível observar um enorme obstáculo a ser combatido, a realidade carcerária.
Presídios abarrotados de detentos, extrapolando a capacidade de ocupação em celas,
situação em que o Estado relativiza os direitos humanos, deixando os mesmos viverem
em situação de risco e fazendo vistas grossas ao processo de ressocialização. Diante
disso, indaga-se: o sistema carcerário é suficiente para efetivar a ressocialização e
promover a dignidade da pessoa humana? A resposta a esse problema de pesquisa será
dará a partir do método indutivo, de pesquisa bibliográfica e documental.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Nesse sentido, a proposta é fazer uma reflexão acerca do entendimento de que


é necessário voltar os olhos para a questão e direcionar às políticas públicas para o
sistema prisional, pois é importante evidenciar essa realidade para provar que este não é
o caminho para se combater a criminalidade e mostrar que rotineiramente os detentos
estão ficando cada vez mais agressivos por causa do tratamento que estão sendo
submetidos. Portanto, a pesquisa tem por foco mostrar como o estudo e compreensão do
tema pode contribuir para identificar a raiz do problema e formular possíveis soluções.

SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO – ENCARCERAMENTO EM MASSA E A


FALÊNCIA DO SISTEMA PENAL

A SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Certamente, um dos maiores problemas penitenciários no mundo é a


superlotação dos presídios. No Brasil, o problema é patente e prejudica demasiadamente
a proposta de ressocialização da pena.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulga os dados das inspeções nos
estabelecimentos penais brasileiros, chamados de Geopresídios – Uma radiografia do
sistema prisional, cuja fonte é o Relatório Mensal do Cadastro Nacional de Inspeções
nos Estabelecimentos Penais (CNIEP).
Dentre os dados divulgados, está o percentual de déficit de vagas nos
estabelecimentos prisionais por estado da federação. Os dados atualizados demonstram
que todos os estados possuem déficit de vagas e, na maior parte deles, o déficit é
superior a 50% (cinquenta por cento) das vagas. Há estados, como Roraima e
Pernambuco, que ultrapassam em muito o percentual de 100% (cem por cento) de
déficit.
No Estado de Mato Grosso, por exemplo, o déficit é de 64,18% (sessenta e
quatro, dezoito por cento), estando entre os dez estados com os maiores déficits de
vagas no sistema prisional (FBSP, 2020). Em geral, o percentual médio de déficit de
vagas nos estabelecimentos penais brasileiros é de aproximadamente 70% (setenta por
cento), o que significa uma excessiva superlotação dos presídios.
Veja-se abaixo o percentual de déficit de vagas de cada estado da federação
(CNJ, 2020):

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Assim, a superlotação é um dado empírico, notável e conhecido pelo Poder


Público e pela população brasileira. A superlotação, sem dúvidas, é um dos principais
fatores a tornar o cárcere um elemento de desumanização da pessoa.
Como será mostrado a seguir, o STF definiu como ―estado de coisas
inconstitucional‖ essa situação dos presídios brasileiros.

O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento de medida cautelar em ADPF


(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 347, de relatoria do Ministro
Marco Aurélio, definiu que, relativamente ao sistema penitenciário brasileiro, está
configurado um ―estado de coisas inconstitucional‖. A decisão foi assim ementada:

SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO


CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA –
VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS
ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL –
CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de
direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas
públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza
normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário
nacional ser caracterizado como ―estado de coisas inconstitucional‖.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

A Corte Suprema considerou que no sistema prisional brasileiro ocorre


violação generalizada de direitos fundamentais dos presos, especialmente aqueles
relacionados à dignidade humana e integridades física e psíquica.
Conforme o Informativo nº 798 do STF, que traz resumo da decisão, diversos
dispositivos da legislação nacional e internacional são violados pelo Estado brasileiro.
In verbis:
As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em
penas cruéis e desumanas. Nesse contexto, diversos dispositivos
constitucionais (artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º),
normas internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção
Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP
e a LC 79/1994, que criara o Funpen, teriam sido transgredidas. (BRASIL,
2015, online)

Conforme é disposto na decisão, o ―estado de coisas inconstitucional‖ é um


conceito criado pela Corte Constitucional Colombiana, na Sentencia de Unificación
(SU) 559, de 1997. Segundo a Corte, esse estado de coisas existe quando há um quadro
fático de generalizada violação de direitos fundamentais em razão de omissão ou
comissão estatal.
Nesse sentido, é inegável que o sistema penitenciário brasileiro viola, de forma
generalizada, direitos fundamentais dos presos. A superlotação e as condições
degradantes das prisões brasileiras são incompatíveis com os preceitos constitucionais,
notadamente a dignidade da pessoa humana, a vedação à tortura e ao tratamento
desumano e os direitos sociais à saúde, educação e trabalho.
No Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos
Deputados, de 2009, consta que ―a superlotação é talvez a mãe de todos os demais
problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças,
motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens
amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo
em cima do vaso sanitário‖.
As situações vexaminosas dos presídios brasileiros, por definição, configuram
o ―estado de coisas inconstitucional‖ e isso impossibilita concretizar o objetivo de
ressocialização da pena. Com celas lotadas e condições insalubres, as prisões brasileiras
degradam a dignidade humana e amputam diversos direitos fundamentais dos presos.
Apesar desse estado ser reconhecido pela Corte Suprema, em razão do
princípio da separação dos poderes, pouco se fez e ele ainda se mantém. A situação é tão

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

alarmante que há quem defenda a interdição de todos os estabelecimentos penais


inadequados, o que atingiria, certamente, a maior parte dos presídios brasileiros.
Zaffaroni (1986, p. 206), por exemplo, defende que a solução para a superlotação que
mais se coaduna com os direitos humanos é interdição dos presídios inadequados e a
colocação em liberdade de qualquer pessoa privada de liberdade que não esteja em
condições mínimas de dignidade humana.
Por outro lado, são notórias as propostas de construção de mais presídios, que
não enfrentam o problema humanitário dos presídios. A posição de Roig (2018, p. 286)
demonstra o problema dessas propostas:

A política de construção de mais e mais unidades prisionais é medida custosa


e unicamente paliativa, que deixa justamente de enfrentar a natureza
estrutural e sistêmica do sistema penitenciário. Em outros termos, construir
mais vagas não resolverá o mau funcionamento crônico do sistema
penitenciário, assim como não afastará a sua natureza endêmica. Aliás, essa
foi uma das premissas adotadas pela decisão da Corte Federal da Califórnia,
de 8 de abril de 2009, que intimou o Estado a apresentar ao mesmo colegiado
um plano de radical redução da população carcerária. Na referida decisão, a
Corte afirmou que a construção de novas unidades é essencialmente uma
medida de expansão do cárcere que incrementa o número de celas sem
enfrentar o fundamental problema estrutural que causou a crise e que criou
condições inconstitucionais no interior das prisões.

É necessário enfrentar com seriedade o estado de coisas inconstitucional do


sistema presidiário brasileiro. São necessárias respostas comprometidas com direitos
humanos e que de fato resolvam os problemas.
Na ADPF em comento, o STF determinou que a União liberasse o recurso
orçamentário contingenciado do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e que se
abstivesse de realizar novos contingenciamentos.
No entanto, em recente acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU), no
Relatório de Auditoria, de relatoria da Ministra Ana Arraes, ficou definido que os
repasses do fundo penitenciário são utilizados de forma ineficiente pelo sistema
prisional. Confira-se trecho da decisão:

61. Esta auditoria confirma, por meio de dados consistentes, a impressão do


senso comum sobre o sistema penitenciário nacional. A quantidade e a
complexidade de números, informações e estimativas coletados no trabalho
revelam que os recursos repassados pela União, por intermédio do Funpen,
aos estados e municípios, além de insuficientes para cobrir o volume de
despesas da esfera prisional, considerando-se a necessidade de criação de
vagas no ritmo de crescimento da população carcerária – que foi de 294%
entre 2000 e 2016 –, têm sido aplicados de modo ineficiente.
62. Não obstante a maior disponibilidade orçamentário-financeira, a
execução das despesas apresentou baixos índices, há atrasos sistemáticos na
execução de obras e faltam ações articuladas por parte dos atores estatais em

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

direção a maior eficiência na gestão dos recursos públicos. De forma mais


específica, atrasos nos cronogramas dos empreendimentos, carência de
planejamento do setor, deficiências administrativas das UFs, lentidão do
Depen na análise de processos e pedidos de alteração de planos de aplicação,
baixa execução orçamentário-financeira e baixo volume de investimentos,
entre outras evidências, são alguns dos problemas retratados nesta ação de
controle. (TCU - RA: 01804720181, Relator: ANA ARRAES, Data de
Julgamento: 03/07/2019, Plenário)

Isso demonstra, mais uma vez, a omissão estatal relativa aos problemas
carcerários brasileiros. O sistema prisional brasileiro é superlotado e ineficiente e o
Poder Público não toma medidas capazes de resolver esse estado degradante.
Constatada essa situação, é preciso fazer sua análise do ponto de visto da
função preventiva especial positiva da pena: a ressocialização. Se a pena possui a
finalidade de possibilitar o retorno do condenado ao convívio social, é necessário
discutir essa possibilidade no contexto fático-prisional brasileiro, o que será feito no
próximo tópico.

DADOS SOBRE A AUSÊNCIA DE RESSOCIALIZAÇÃO

Como já amplamente demonstrado, a pena privativa de liberdade tem a


pretensão de retirar uma pessoa que praticou um crime do convívio social para depois
retorná-la a esse convívio. No entanto, é necessário investigar se estatisticamente essa
função é de fato efetivada na realidade prisional brasileira. Isso pode ser feito por meio
da análise de dados oficiais acerca da reincidência criminal, uma vez que, se o preso
voltou a reincidir, então a pena não atingiu sua finalidade de ressocialização em relação
a ele.
Um relatório de pesquisa chamado de ―Reentradas e reiterações Infracionais —
Um olhar Sobre os Sistemas Socioeducativo e Prisional Brasileiros‖ lançado em 2020
pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça demonstra
um percentual geral de reincidência criminal de 42,50% (quarenta e dois, cinquenta por
cento), isto é, quase metade da população carcerária brasileira retorna ao cárcere após
ser posta em liberdade.
O Espírito Santo, por exemplo, ostenta índice de reincidência superior a 70%
(setenta por cento), o que demonstra um total fracasso na proposta de ressocialização da
pena. É importante assinalar que o sistema penitenciário capixaba é notoriamente
conhecido pelas constantes violações a direitos humanos e pelo alto índice de

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

superlotação, sendo superior a 60% (sessenta por cento), conforme já citado. Isso indica
uma correlação entre o índice de superlotação e o índice de reincidência criminal.
A seguir, a tabela com o percentual de reincidência por cada estado da
federação:

Outro relatório de pesquisa, dessa vez publicado pelo Instituto de Pesquisa


Econômica Aplicada (IPEA) em 2015, apresenta o percentual de reincidência por tipo
penal imputado ao apenado na sentença.
Conforme o relatório, o maior índice de reincidência é quanto a crimes
patrimoniais, sendo de 27,5% (vinte e sete, cinco por cento) em relação ao furto e
22,8% (vinte e dois, oito por cento) em relação ao roubo, perfazendo um total de mais
de 50% (cinquenta por cento) de índice de reincidência em crimes patrimoniais.
O crime de tráfico de entorpecentes vem logo a seguir com um percentual de
11,9% (onze, nove por cento), seguido de homicídio e latrocínio com 5,7% (cinco, sete
por cento).
Veja-se a tabela completa desenvolvida pelos pesquisadores do IPEA:

15
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Esses dados demonstram um alto índice de reincidência, que ocorre


principalmente em relação aos crimes patrimoniais e ao tráfico de drogas, que também
são, em geral, os crimes mais praticados e punidos no Brasil. No tópico a seguir, esses
dados servirão de fundamento para a resposta à investigação a que esse trabalho se
propõe.

O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO - CRIME CONTRA A HUMANIDADE

Em sua obra ―Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à


sociologia do direito penal‖, Alessandro Baratta (2002, p. 183) discorre sobre a
literatura baseada em observação empírica que analisou a realidade carcerária sob
diversos aspectos. Para Alessandro Baratta (2002, p. 183):

As características deste modelo, do ponto de vista que mais nos interessa,


podem ser resumidas no fato de que os institutos de detenção produzem
efeitos contrários à reeducação e à reinserção do condenado, e favoráveis à
sua estável inserção na população criminosa. O cárcere é contrário a todo
moderno ideal educativo, porque este promove a individualidade, o auto-
respeito do indivíduo, alimentado pelo respeito que o educador tem dele. As
cerimônias de degradação no início da detenção, com as quais o encarcerado
é despojado até dos símbolos exteriores da própria autonomia (vestuários e
objetos pessoais), são o oposto de tudo isso. A educação promove o
sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere,
como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante.

Baratta, portanto, a partir de dados empíricos concluiu que o encarceramento


produz efeito contrário à ressocialização e efeito positivo à manutenção do condenado

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

em situação de criminalidade. Conforme cita Baratta (2002, p.184), ―a possibilidade de


transformar um delinquente antissocial violento em um indivíduo adaptável, mediante
uma longa pena carcerária não parece existir‖.
Como é cediço, o preso passa por um processo negativo de socialização, isto é,
passa, inicialmente, por um processo de retirada do convívio social, lhe retirando
valores e condições da vida em sociedade, para depois passar por um processo de
―prisionalização‖, assumindo valores da vida no cárcere, que perpassa por mais
violência. Em outras palavras, a prisão consiste em impor ao condenado um reforço
para que se mantenha na criminalidade.
Para Nilo Batista (2019), o sistema penal é repressivo, seletivo e
estigmatizante, características que tornam a prisão essencialmente contrária à sua
pretensa finalidade de ressocialização.
Para Nucci (2010, p. 990):

Na realidade, no entanto, lamentavelmente, o Estado tem dado pouca atenção


ao sistema carcerário, nas últimas décadas, deixando de lado a necessária
humanização do cumprimento da pena, em especial no tocante a privativa de
liberdade, permitindo que muitos presídios se tenham transformado em
autênticas masmorras, bem distante do respeito à integridade física e moral
dos presos, direito constitucionalmente imposto.

Nesse contexto, é importante lembrar os dados já lançados nesse trabalho


acerca da situação degradante do sistema penitenciário brasileiro, que demonstram que
as prisões brasileiras são superlotadas e provocam um alto índice de reincidência.
Uma análise criminológica e sociológica da prisão, tal como fez Baratta, indica
de forma muito clara a incompatibilidade da prisão com a função de reeducação ou
ressocialização. Além disso, os dados sobre a realidade carcerária brasileira demonstram
que a prisão no Brasil não apenas não promove a ressocialização, como viola de forma
sistemática direitos e garantias fundamentais, como a integridade física e moral dos
presos, tal como já reconhecido pelo STF no julgamento da ADPF 347.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na esteira da doutrina de Baratta, é cristalino que a prisão é incompatível com


a pretensa função ressocializadora da pena. A prisão provoca um processo negativo de
―desaculturação‖, retirando do preso o convívio social onde prevalecem valores éticos e
morais, e de ―aculturação‖, colocando o apenado em um ambiente carcerário onde

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

prevalecem normas morais e sociais próprias essencialmente contrárias àquelas


estabelecidas para a vida em sociedade.
Nesse sentido, mesmo que considerada a prisão abstratamente, sem análise
específica sobre a realidade carcerária do Brasil, é patente que a pena privativa de
liberdade possui exclusivamente a função retributiva, que produz efeitos contrários à
ressocialização.
Por outro lado, analisando concretamente a realidade brasileira, é possível
afirmar que o sistema penitenciário brasileiro é estigmatizante, degradante, violento,
cruel e desumano. Não há dúvidas sobre esses aspectos, uma vez que reconhecidos por
dados oficiais, pela doutrina brasileira e judicialmente pelo STF no julgamento da
ADPF 347. Trata-se de uma realidade notória e de conhecimento público, o que, nada
obstante, não recebe a devida atenção da administração pública, especialmente em razão
do populismo penal que impera não apenas na opinião pública, como também na
opinião forense.
A partir dessa realidade, é evidente que a finalidade de ressocialização,
concretamente considerada, não é alcançada no sistema penitenciário brasileiro. Na
verdade, as prisões brasileiras não apenas condicionam a pena a uma finalidade
exclusivamente retributiva e punitivista, como também representam sistemáticas
violações a direitos humanos e fundamentais previstos na Constituição Federal e em
tratados e convenções internacionais.
O problema da criminalidade é de situação solução e esse trabalho não
pretendeu apresentar propostas de intervenção quanto a isso, uma vez que se trata de
problema complexo e amplo, que perpassa por questões estruturais como desigualdade
social e pobreza. Nada obstante, é certo que o sistema carcerário brasileiro necessita de
urgente reforma. Se as prisões não cumprem uma função ressocializadora, elas ao
menos têm que respeitar a dignidade humana de cada apenado, de modo a não se tornar
um crime contra a humanidade.
Diante disso, são necessárias ações governamentais, legislativas e judiciárias
voltadas ao desencarceramento, como a descriminalização do uso e cultivo de drogas,
uma vez que o crime de tráfico compõe parte substancial das prisões e condenações no
país. A solução do problema perpassa pelo desencarceramento e não pela construção de
mais presídios, proposta populista que serve tão somente a pretensões eleitoreiras.
Concomitantemente à redução da população carcerária, são necessárias
medidas de reforma das estruturas das prisões brasileiras e de garantia de saúde,

18
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

alimentação e trabalho, garantindo-se um cumprimento de pena mais próximo dos


ditames de direitos humanos constitucionalmente estabelecidos.
Enquanto não promovidas reformas estruturais, o sistema penitenciário
brasileiro será caracterizado por violações sistemáticas a direitos humanos, como um
verdadeiro crime contra a humanidade, em sentido amplo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução


à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. – Rio de
Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro:


Revan, 1996.

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Penais. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php. Acesso em 22
de maio de 2021.

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olhar sobre os Sistemas Socioeducativo e Prisional Brasileiros. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/01/Panorama-das-Reentradas-no-
Sistema-Socioeducativo.pdf. Acesso em 22 de maio de 2021.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Reincidência Criminal no Brasil.


Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2011/02/716becd8421643340f61dfa8677e1538.pdf. Acesso em 22 de
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BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. BRASIL.


Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em 12 de
Abril de 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal. - 1. ed. - Rio de Janeiro:


Forense, 2018.

Supremo Tribunal Federal. Informativo 798. 2015. Disponível em:


http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm. Acesso em:
13 de julho de 2021.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas Penales y Derechos Humanos/Informe Final.


Buenos Aires: Depalma, 1986.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 2

APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA REMIÇÃO DA PENA PELO TRABALHO


NA CADEIA PÚBLICA DE VILA RICA/MT

APPLICATION OF THE INSTITUTE OF PUNISHMENT FOR WORK IN THE


PUBLIC JAIL OF VILA RICA/MT

Vanessa Marques Queiroz3


Paulo Eduardo Elias Bernacchi4

Resumo: O principal objetivo deste artigo é o de analisar a forma como é aplicado o


instituto da remição da pena pelo trabalho na Cadeia Pública de Vila Rica/MT, tendo em
vista que em tese, o local é destinado apenas aos presos provisórios. Para o alcance de
tal objetivo, foi realizada uma pesquisa exploratória, com o uso de pesquisa
bibliográfica, pois, inicialmente foram apresentadas as principais características,
conceitos e requisitos para aplicação do benefício da remição da pena pelo trabalho.
Após, foi realizada uma pesquisa de caso tanto quantitativa, quanto qualitativa, tendo
em vista ter sido feita uma análise da realidade carcerária do estabelecimento prisional
de Vila Rica/MT, por meio de uma entrevista realizada com o diretor do local e de
reportagens por ele citadas. De todas as informações e materiais colhidos, foi possível
observar os reflexos positivos que o trabalho possui no tempo de prisão do detento, seja
ele provisório ou condenado, com a melhora significativa em seu comportamento e
sentimentos como a solidão e a ansiedade, bem como, a satisfação de poder observar o
resultado de seus esforços, por meio do desconto dos dias trabalhados em seu tempo de
cumprimento de pena, o que possui grande contribuição para o seu processo de
recuperação.

Palavras-chave: Remição, Trabalho, Recuperação.

Abstract: The main objective of this article is to analyze how the institute of remission
of the sentence for working in the Public Prison of Vila Rica/MT is applied, considering
that, in theory, the place is intended only for provisional prisoners. In order to achieve
this objective, an exploratory research was carried out, using bibliographical research,
as the main characteristics, concepts and requirements for applying the benefit of
remission of sentence for work were initially presented. Afterwards, both quantitative
and qualitative field research was carried out, in view of an analysis of the prison reality
of the prison establishment in Vila Rica/MT, through an interview conducted with the
director of the place and reports by him. cited. From all the information and materials
collected, it was possible to observe the positive effects that the work has on the
prisoner's prison time, whether provisional or convicted, with a significant improvement
in their behavior and feelings such as loneliness and anxiety, as well as, the satisfaction

3 Graduada em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso.


4 Mestre em Direito na Universidade Católica de Petrópolis/RJ (2017) - Programa de Pós-graduação
stricto sensu em Direito com área de concentração única em JUSTIÇA, PROCESSO E DIREITOS
HUMANOS, na linha de pesquisa Processo e efetivação da justiça e dos direitos humanos. MBA em
LLM Direito Corporativo pelo IBMEC-RJ (2006-2007). Graduado em Direito pela Universidade Estácio
de Sá (2005). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ) na Turma de Ética e Disciplina
(TED) e membro da Comissão de Estudos em Processo Civil da OAB/RJ (2018/2021). Atualmente é
advogado.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

of being able to observe the result of their efforts, by discounting the days worked in
their time spent serving their sentence, which has a great contribution to their recovery
process.

Keywords: Remission, Work, Recovery.

INTRODUÇÃO

Criada pelo Direito Penal Militar, a remição da pena foi instituída no Código
Penal espanhol, em 28 de maio de 1937 e era aplicada aos prisioneiros da Guerra Civil,
condenados pelo cometimento de crimes especiais e, posteriormente, em 14 de março de
1939, o instituto foi estendido para os crimes comuns. No Brasil, o benefício da remição
foi incorporado ao ordenamento jurídico pela Lei de Execução Penal n° 7.210/84.
A remição trata-se de um benefício que proporciona ao condenado uma
redução do tempo de cumprimento de sua pena privativa de liberdade por meio do
trabalho e/ou estudo.
A lei traz uma distinção, determinando que os condenados que cumprem pena
em regime fechado ou semiaberto podem ter seu tempo de pena diminuído tanto pelo
trabalho, quanto pelo estudo, já aos condenados que cumprem suas penas em regime
aberto ou em livramento condicional é permitida a remição somente pelo estudo.
Pelo trabalho, a remição é computada descontando-se 01 (um) dia de pena,
para cada 03 (três) dias trabalhados. Já pelo estudo, é descontado 01 (um) dia de pena,
para cada 12 (doze) horas de frequência escolar, as quais podem ser divididas em, no
máximo, 03 (três) dias, ou seja, 04 (quatro) horas de estudo por dia. A remição ainda
pode se dar pela leitura, sendo realizadas resenhas de obras literárias pelo sentenciado.
O presente trabalho, delimitou-se em analisar os principais elementos da
aplicação do benefício da remição da pena por meio do trabalho, como: quais os
serviços são aceitos e o tempo de jornada de trabalho estabelecida em lei para fins de
remição da pena? Como é feito o controle, declaração e abatimento dos dias remidos
dentro do processo de execução penal? Se existe a possibilidade de perda dos dias
remidos? É possível a remição da pena para o preso provisório? e etc.
A par das principais características e requisitos para aplicação do referido
instituto, foi realizada entrevista com o diretor da Cadeia Pública do município de Vila
Rica/MT, Rivelino Pereira de Jesus, na tarde do dia 29 de junho de 2021, para o
levantamento de informações sobre a forma de aplicação do benefício da remição da
pena para os presos que se encontram recolhidos no local.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Na citada entrevista, foram levantados os seguintes questionamentos: Quantos


presos se encontram reclusos na Cadeia Pública de Vila Rica/MT? Todos os reclusos são
presos provisórios ou também existem presos condenados? Dos presos provisórios,
quantos deles optam pelo serviço? Quais trabalhos são realizados dentro e fora do
estabelecimento prisional? Como é feita a fiscalização do trabalho dos condenados que
cumprem pena em regime semiaberto? Existe alguma remuneração para o serviço
prestado pelos detentos? Qual a jornada e como é feito o controle das horas trabalhadas?
Todas as questões apresentadas foram respondidas pelo diretor, que comanda o
estabelecimento desde o ano de 2009.
Sendo assim, a presente pesquisa caracteriza-se como exploratória, na qual foi
utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica, eis que foram utilizados materiais já
elaborados como livros, artigos científicos, documentos eletrônicos e textos legais. O
estudo de caso foi realizado de forma quantitativa, eis que buscou-se traduzir em
números os conhecimentos adquiridos e qualitativa, pois foi demonstrado o reflexo que
a aplicação do benefício da remição da pena traz para o processo de recuperação dos
detentos da Cadeia Pública de Vila Rica/MT.
Mais do que a forma com que são abatidos os dias de cumprimento de pena,
este trabalho procurou verificar quais os efeitos que a aplicação do instituto da remição
gera nos presos que realizam os trabalhos, tanto intramuros, quanto extramuros e quais
as contribuições desse trabalho para sua ressocialização.

DA REMIÇÃO

O instituto da remição da pena trata-se de um direito dever do condenado à


pena privativa de liberdade, seja ela de reclusão ou detenção e em alguns casos, a prisão
simples. Nas palavras de Nucci (2020, p. 171), a remição da pena:

Trata-se do desconto na pena do tempo relativo ao trabalho ou estudo do


condenado, conforme a proporção prevista em lei. É um incentivo para que o
sentenciado desenvolva uma atividade laborterápica ou ingresse em curso de
qualquer nível, aperfeiçoando a sua formação. Constituindo uma das
finalidades da pena a reeducação, não há dúvida de que o trabalho e o estudo
são fortes instrumentos para tanto, impedindo a ociosidade perniciosa no
cárcere.

Inserida no ordenamento jurídico brasileiro com o advento da lei n° 7.210/84, a


remição tem como finalidade precípua a diminuição do tempo de pena a ser cumprida
pelo reeducando. No entanto, além da abreviação da reprimenda, a remição proporciona

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

ao condenado um suporte, por meio do trabalho e do estudo, para sua capacitação


profissional, tornando-se um incentivo ao bom comportamento e para sua recuperação,
sendo assim, uma ―via de mão dupla‖.
A Lei de Execução Penal, em seu art. 126, regulamenta a forma de aplicação
do benefício da remição. Vejamos:

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto


poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da
pena.
§ 1º A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:
I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade
de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou
ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias;
II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.
§ 2º As atividades de estudo a que se refere o § 1º deste artigo poderão ser
desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e
deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos
cursos frequentados.
§ 3º Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de
trabalho e de estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem.
§ 4º O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos
estudos continuará a beneficiar-se com a remição.
§ 5º O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3
(um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior
durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente
do sistema de educação.
§ 6º O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que
usufrui liberdade condicional poderão remir, pela frequência a curso de
ensino regular ou de educação profissional, parte do tempo de execução da
pena ou do período de prova, observado o disposto no inciso I do § 1o deste
artigo.
§ 7º O disposto neste artigo aplica-se às hipóteses de prisão cautelar.
§ 8º A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério
Público e a defesa.

Como pode ser observado pela leitura do dispositivo legal, o aludido instituto
reconhece tanto o trabalho, quanto o estudo como atividades capazes de ensejarem na
diminuição do tempo de execução da pena, contudo, o presente trabalho se limitou a
analisar os requisitos e a forma de aplicação da remição da pena apenas por meio do
trabalho.

REMIÇÃO PELO TRABALHO

O primeiro ponto importante de ser destacado é o de que não se pode confundir


―remissão‖ com a ―remição‖, eis que a primeira significa o ato de perdoar sem nenhum
ônus para aquele que está sendo recuperado, já a segunda, apesar de também tratar-se de

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

um perdão de parte da condenação, este exige um esforço por parte do condenado para
ser alcançado.
O item 132 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal dispõe que:

A remição é uma nova proposta ao sistema e tem, entre outros méritos, o de


abreviar, pelo trabalho, parte do tempo da condenação. Três dias de trabalho
correspondem a um dia de resgate. O tempo remido será computado para a
concessão do livramento condicional e do indulto, que a exemplo da remição
constituem hipóteses práticas de sentença indeterminada como fenômeno que
abranda os rigores da pré-fixação invariável, contrária aos objetivos da
Política Criminal e da reversão pessoal do delinqüente.

A possibilidade de remição do tempo de pena por meio do trabalho é dada aos


condenados que se encontram em regime fechado ou semiaberto, não havendo, assim, o
que se falar em remição da pena aos condenados que cumprem suas sentenças em
regime aberto ou livramento condicional, eis que, nessas hipóteses o trabalho já se trata
de uma das exigências para concessão do benefício e a permanência do condenado nele,
dispostos no art. 114, I e art. 132, § 1°, ―a‖, ambos da LEP, ―[...] considera-se trabalho a
atividade desempenhada pelo preso dentro ou fora do estabelecimento prisional, sujeito
o preso à devida remuneração [...]‖ (Avena, 2019, p. 252).
Como anteriormente demonstrado, o art. 126 da LEP regulamenta a forma de
aplicação do instituto da remição da pena e, no que diz respeito ao trabalho, determina
em seu §1º, II, que a cada 03 (três) dias trabalhados regularmente, é abatido 01 (um) dia
de pena a ser cumprido.
Para fins de remição, são computados os dias regulares de trabalho e não as
horas trabalhadas, contudo, considera-se dia regular de trabalho, nos termos do art. 33
da LEP, aquele com jornada não inferior a 06 (seis) horas e nem superior a 08 (oito)
horas. Desta forma, para alcançar a diminuição do seu tempo de encarceramento, é
necessário que o reeducando efetivamente trabalhe ou estude. [...] Não existe limite
para a remição de pena. Portanto, quanto mais o condenado dedicar-se ao trabalho ou
ao estudo, maior será o tempo de desconto da pena privativa de liberdade. [...] (Avena,
2019, p. 250).
O exercício do direito de trabalho do preso está condicionado a diversos
fatores, sendo alguns deles, as condições pessoais do reeducando, a estrutura do
estabelecimento prisional, as condições do mercado e etc, os quais serão abordados a
seguir.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CADEIA PÚBLICA DE VILA RICA/MT

Em entrevista, na tarde do dia 29/06/2021, com o diretor da Cadeia Pública de


Vila Rica/MT, Rivelino Pereira de Jesus, que está no comando do estabelecimento
prisional desde o ano de 2009, este informou que atualmente, em decorrência de obras
de expansão realizadas pelos próprios reclusos, a cadeia do município possui capacidade
para o recolhimento de 120 (cento e vinte) presos.
Em uma realidade muito distante da maior parte das unidades prisionais do
país, que não possuem outra opção, senão a de comportar presos muito além de suas
capacidades, a Cadeia Pública de Vila/MT conta com pouco mais de 50% (cinquenta
por cento) de sua capacidade de lotação ocupada, possuindo atualmente 67 (sessenta e
sete) reclusos, sendo 46 (quarenta e seis) deles presos provisórios e 21 (vinte um)
condenados cumprindo sentença.
Apesar de, nos moldes do art. 102 da LEP, a Cadeia Pública destinar-se apenas
para o recolhimento de presos provisórios, diante da realidade vivenciada na região de
Vila Rica/MT, em que a penitenciária mais próxima se encontra à mais de 500 Km
(quinhentos quilômetros) de distância, no município de Água Boa/MT, distância esta
que conta com um trecho de cerca de 120 km (cento e vinte quilômetros) de estrada sem
pavimentação na BR-158, pois corta a terra indígena Marãiwatsédé do povo Xavante,
aos presos condenados que possuem bom comportamento enquanto aguardam a
transferência para o presídio, é feito um peticionamento ao Juízo da Comarca, que após
deferido, permite que o condenado permaneça na Cadeia Pública de Vila Rica/MT, a fim
de que fique próximo de seu lar e seus familiares durante o cumprimento da reprimenda,
fato este que possui grande peso para que sua recuperação se dê de forma efetiva.

APLICAÇÃO DA REMIÇÃO DA PENA NA CADEIA PÚBLICA DE VILA RICA/MT

Apesar de, como demonstrado anteriormente, a Cadeia Pública de Vila


Rica/MT manter recolhidos, em sua maioria, presos provisórios, para os quais o
trabalho considerado para computação dos dias remidos é facultativo, conforme
disposição do parágrafo único do art. 31 da LEP, os trabalhos ofertados pelo
estabelecimento prisional possuem uma grande aceitação por parte desses presos
provisórios, que já garantem a diminuição, em sede de detração, de eventual sentença
penal condenatória que venha a ser-lhes aplicada, tendo em vista que os dias

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

compensados pelo trabalho são considerados como pena cumprida para a Lei de
Execução Penal.
Dos 67 (sessenta e sete) presos, 40 (quarenta) deles realizam trabalhos no local,
destinados à remição do seu tempo de pena, sendo distribuídos da seguinte forma:

• 06 (seis) presos condenados e 02 (dois) presos provisórios prestam serviços de


alvenaria na estrutura do estabelecimento prisional;
• 02 (dois) presos condenados que possuem bom comportamento e conquistaram a
confiança dos servidores do local, auxiliam o serviço da Polícia Penal interno, de
logística e distribuição dos alimentos entre os presos;
• Os demais 30 (trinta) presos realizam o serviço de artesanato, como a fabricação
de tapetes, ursos, bolsas e objetos de decoração com materiais recicláveis.

Com isso, ―independentemente da natureza do trabalho desenvolvido (desde


que lícito, é claro), é certo que a atividade laboral que serve de base à remição é aquela
que efetivamente cumpre sua função ressocializadora, e devidamente fiscalizada pelos
órgãos de execução‖ (AVENA, 2019, p. 254).
Insta salientar, que o serviço interno de manutenção da higiene do local é dever
de todos e não é considerado para fins de remição da pena, eis que este trabalho é
desempenhado de forma esporádica e sem carga horária regular, não observando,
portanto, as regras legais de autorização da remição.
A jornada de trabalho segue o estabelecido no art. 33 da LEP, sendo cumpridas
08 horas de trabalho diárias, de segunda a sexta e conforme autorização do parágrafo
único do mesmo artigo, os detentos que auxiliam na logística e manutenção do
estabelecimento trabalham em horários especiais, bem como, aos finais de semana e
feriados.
Outro ponto importante a ser abordado, é a forma em que era realizada a
aplicação do trabalho externo aos presos com sentença condenatória transitada em
julgado e que haviam cumprido mais de 1/6 de suas penas, antes do estabelecimento de
medidas de prevenção à contaminação do vírus da COVID-19 no país, as quais
suspenderam as atividades extramuros dos presos, que eram realizadas em convênio
com a Prefeitura Municipal e com a FUNAC (Fundação Nova Chance) de Cuiabá/MT.
Os serviços prestados pelos detentos eram realizados na Secretaria de Obras do
Município, cumprindo a mesma jornada acima citada. A remuneração dos presos era

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

realizada pela Prefeitura Municipal, no valor de 01 (um) salário mínimo, do qual, 1/3
era enviado à família do preso, 1/3 era destinado à compra de suprimentos para o
próprio reeducando que lhe eram fornecidos na cadeia e o outro 1/3 era depositado em
uma conta, que tinha como titular o próprio preso, a fim de que este tivesse um suporte
financeiro para sua ressocialização após a conquista de sua liberdade ou progressão de
regime. Antes da suspensão das atividades extramuros, 03 (três) presos do
estabelecimento prisional se encontravam integrando esse convênio com a prefeitura do
município de Vila Rica/MT.
No final de todo mês os presos assinam as planilhas que constam os dias e
horas trabalhadas, as quais são encaminhadas ao Ministério Público, acompanhadas de
relatórios de comportamento, para análise e posterior homologação dos dias remidos
pelo Juízo da Comarca.
Os presos que realizam trabalhos no local, tendem a ter um melhor
comportamento e em razão disso, o próprio sistema carcerário procura auxiliá-los em
seu processo de recuperação, dando-lhes um tratamento diferenciado dos demais presos
e reconhecendo a importância de suas atividades para o estabelecimento prisional,
sendo, também, uma forma de incentivo aos outros detentos para também aderirem ao
trabalho ou melhorarem seu comportamento, eis que, ―só existem dois caminhos para a
ressocialização, o trabalho ou a religião‖ (Rivelino Pereira de Jesus, Diretor da Cadeia
Pública de Vila Rica/MT).
Caso algum dos presos que são beneficiados com instituto da remição da pena
pelo trabalho venha a apresentar um mal comportamento ou desobediência, seu direito
ao trabalho e consequentemente da remição, é suspenso, retornado após cessadas as más
condutas por parte do reeducando.
O principal objetivo dos servidores da Cadeia Pública é o de tentar elevar a
autoestima dos presos para auxiliá-los em seu processo de recuperação, e a remição
trata-se do principal incentivo para encorajá-los a trabalharem e se sentirem incluídos
nas relações sociais, mesmo que adstritas ao estabelecimento penal, já melhoram de
forma significativa a ansiedade e humor desses detentos.

DAS OBRAS REALIZADAS PELOS PRESOS

Os trabalhos desempenhados pelos presos na Cadeia Pública de Vila Rica/MT


tratam-se de uma via de mão dupla, eis que contribuem não apenas para a

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

ressocialização daqueles, mas também com a melhora da estrutura e do ambiente do


estabelecimento prisional.
Um grande exemplo da contribuição do trabalho dos presos para o sistema de
execução penal do município de Vila Rica/MT e região, foi a reestruturação da cadeia
da cidade, obra finalizada no dia 26 de julho de 2019, a qual tornou possível a
reativação do estabelecimento prisional, que estava interditado desde o ano de 2013, em
decorrência de um incêndio que afetou grande parte de sua estrutura.
A Cadeia Pública de Vila Rica/MT possui grande relevância para a região em
que está inserida, eis que atente também aos municípios de Santa Terezinha/MT, Santa
Cruz do Xingu/MT e, em algumas ocasiões, Porto Alegre do Norte/MT.
A reestruturação da cadeia foi realizada com a participação por 08 (oito)
reeducandos que estavam cumprindo suas penas no presídio do município de Água
Boa/MT e à época foram transferidos para Vila Rica/MT, a pedido do diretor do
estabelecimento, a fim de fazerem as mudanças necessárias na estrutura da Cadeia
Pública, contando com a colaboração da comunidade e de entes públicos, como o Poder
Judiciário, Prefeitura Municipal, Governo do Estado e Ministério Público, para que o
local voltasse a ser utilizado.
Para designar os serviços que serão desempenhados pelos presos, antes são
observadas quais as aptidões destes, como no exemplo da reestruturação da Cadeia
Pública, os presos que participaram já exerciam a função de pedreiros antes do cárcere,
o que teve grande relevância para o excelente resultado da obra.
Por meio deste trabalho, foi possível estabelecer uma relação de confiança
entre os detentos, os servidores e membros da comunidade, o que fez com que os
reeducandos se sentissem inseridos no sistema do qual fazem parte e ficassem
orgulhosos de contribuírem com as obras voltadas ao município. Bem como, os detentos
conseguiram derrubar as barreiras do preconceito por meio de seu trabalho
desempenhado.
Outra importante obra realizada, desta vez exclusivamente pelos detentos da
Cadeia Pública de Vila Rica/MT, em parceria com o Conselho da Comunidade local e
do Poder Público Municipal, foi a construção de uma nova ala da cadeia, contando com
03 (três) celas e 01 (uma) sala de aula para estimular o ensino aos reeducandos,
inauguradas no dia 16 de outubro de 2020.
Com a construção da nova ala, foram disponibilizadas 24 (vinte e quatro)
novas vagas para região, sendo assim, a Cadeia Pública, que contava com uma

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

capacidade para 62 (sessenta e dois) presos, foi ampliada para 86 (oitenta e seis).
Atualmente essa capacidade de lotação está ainda maior, também em decorrência dos
trabalhos realizados pelos detentos.
Até a data da entrevista os presos da Cadeia Pública de Vila Rica/MT estavam
trabalhando na ampliação de algumas celas e da área administrativa do local, com o
objetivo de diminuir a insalubridade tanto para os servidores, quanto para os
reeducandos.
Esses são apenas alguns exemplos da contribuição dos trabalhos desenvolvidos
pelos detentos, que vai muito além do mero abatimento dos dias de cumprimento de
pena a título de remição, eis que, proporcionam ao reeducando uma oportunidade de
estarem inseridos em projetos desenvolvidos em parceria com entes públicos e com
representantes da comunidade, refletindo de forma significativa em sua autoestima,
desenvolvimento profissional e consequente ressocialização.

DO TRABALHO DE ARTESANATO

Além do trabalho de alvenaria, grande parte dos detentos da Cadeia Pública de


Vila Rica/MT realizam o trabalho de artesanato afim de remirem os dias de
cumprimento de suas reprimendas, bem como, para garantirem uma renda extra para
eles e suas famílias.
Os materiais utilizados pelos reeducandos na fabricação dos objetos em um
primeiro momento são fornecidos pela própria família daquele e após são adquiridos
com o dinheiro da venda dos produtos por eles confeccionados.
Após a confecção, os artesanatos são encaminhados às famílias dos
reeducandos para que seja realizada sua venda. Assim como o trabalho nas obras de
alvenaria, o trabalho com artesanato proporciona ao detento o conhecimento de novos
ofícios e consequentemente, auxiliam na diminuição do sentimento de ansiedade e da
sensação de abandono que a grande maioria enfrenta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como pôde ser observado nos capítulos acima, foi possível atingir todos os
objetivos propostos pelo presente trabalho de pesquisa, eis que, discorreu-se sobre os
principais elementos, características e requisitos de aplicação do instituto da remição da
pena pelo trabalho, bem como, a partir da entrevista realizada com o diretor da Cadeia

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Pública de Vila Rica/MT, colheu-se diversas informações e curiosidades de como é


aplicado o benefício da remição da pena para os presos no local.
Foi possível observar a existência de presos sentenciados, que possuem bom
comportamento, no referido estabelecimento prisional, apesar de ser um centro
destinados à presos provisórios, pois tal medida possui a finalidade de facilitar o
processo de ressocialização destes condenados, fazendo com que eles cumpram suas
reprimendas na própria região em que estão seus familiares e longe dos grandes
presídios, que tendem a ser verdadeiras escolas do crime.
Destacou-se, ainda, que apesar de facultativo, o trabalho a título de remição de
pena é muito realizado pelos presos provisórios no local, o que já lhes garante um
percentual maior de detração em uma eventual sentença condenatória ao final da
persecução penal.
Foi demonstrado, também, quais trabalhos são realizados na cadeia, como
alvenaria, artesanato e manutenção do local e a distribuição desses serviços entre os
detentos.
A grande surpresa durante a pesquisa, foi descobrir, a partir não só da
entrevista realizada com Rivelino Pereira de Jesus, mas também das reportagens por
este citadas, da contribuição do trabalho dos presos tanto para reativação da Cadeia
Pública de Vila Rica/MT, como também, para o melhoramento da infraestrutura e da
ampliação da capacidade de lotação do local.
A demonstração dos benefícios que o trabalho realizado pelo detento traz, tanto
para estrutura de um órgão da administração pública, tanto para o processo de
ressocialização daquele, eis que, conforme relatado pelo próprio diretor do
estabelecimento, quando os presos passam a trabalhar, estes começam a ter uma
melhora significativa em seu comportamento, humor e diminuem o sentimento de
angustia e ansiedade que são gerados pelo encarceramento, é relevante para que o
instituto da remição da pena seja visto com mais atenção pelas autoridades do poder
executivo, tendo em vista a contribuição que os trabalhos desempenhados pelos presos
possui para que sejam alcançadas as finalidades da aplicação da pena, quais sejam:
retributiva, preventiva e ressocializadora, bem como, a diminuição do preconceito no
momento de reinserção desses indivíduos ao convívio social e, consequentemente, ao
mercado de trabalho.
O presente trabalho limitou-se em analisar a aplicação do benefício da remição
da pena na Cadeia Pública de Vila Rica/MT apenas pelo trabalho, contudo, como pode

30
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

ser observado na figura 6, do item 2.3, há no citado estabelecimento uma sala de aula
que foi construída pelos próprios presos, na qual são ministradas aulas em alguns dias
da semana, pois atualmente os detentos estão tendo aulas pelo sistema híbrido, em
decorrência das medidas de restrições de contaminação da Covid-19.
Desta forma, uma importante linha de pesquisa que poderia complementar as
pesquisas já realizadas neste projeto, seria a análise da aplicação do instituto da remição
da pena pelo estudo na Cadeia Pública de Vila Rica/MT, pois, conforme as informações
apresentadas pelo diretor do local, o estudo é outra atividade que possui uma grande
aceitação pelos presos provisórios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVENA, Norberto. Execução Penal, 6ª Edição, São Paulo-SP, Editora Forense, p. 402,
2019;

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Brasília, DF,
Palácio do Planalto. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 23 de jun. 2021;

tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho. Brasília, DF, Palácio do
Planalto. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2011/lei/l12433.htm>. Acesso em: 25 de jun. de 2021;

. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984. Exposição de Motivos n° 213, de 09 de


maio de 1983. Brasília, DF, Câmara dos Deputados. Disponível em:
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. Lei n° 12.433, de 29 de junho de 2011. Dispõe sobre a remição de parte do.

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Forense, p. 305, 2020;

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MT. Disponível em: < http://www.sesp.mt.gov.br/-/15668275-cadeia-publica-de-vila-
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de Vila Rica. TJMT. Disponível em:
<https://www.tjmt.jus.br/noticias/57254#.YPW05OhKjIU> Acesso em: 01 de jul de
2021.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 3

GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA


(2017-2019) EM PORTO ALEGRE DO NORTE/MT – BRASIL

FUNDAMENTAL RIGHTS GUARANTEE: CUSTODY HEARINGS (2017-2019) IN


PORTO ALEGRE DO NORTE/MT – BRAZIL

Deusimar Correia de Sousa5


Anderson Rocha Rodrigues6

Resumo: A criminalidade e a violência são dois entraves para a boa convivência


humana. Ao longo da História alguns fatos levaram o coletivo humano a refletir sobre o
que é punição, diferindo de ações grotescas usadas em períodos de guerras, aos quais o
mundo ainda teme e deseja que não se repitam. A Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), ou Pacto de San José da Costa Rica (1969), estabeleceu princípios
básicos de civilidade e respeito à pessoa humana e, dentre muitos quesitos, a Audiência
de Custódia emerge como um marco civilizatório no Eixo das Penitenciárias impostas
aos criminosos ou, antes de averiguado o fato, ―custodiados‖. Em 1992, o Brasil se fez
signatário da CADH e a prática da Audiência vem sendo implementada nos municípios
brasileiros. No presente estudo realizou-se uma pesquisa bibliográfica acerca do tema
―Audiência de Custódia e Direitos Fundamentais‖ e também foram coletados dados do
Sistema Prisional, da cidade de Porto Alegre do Norte/MT, sobre as audiências de
custódia dos anos de 2017, 2018 e 2019. Analisando estes dados, observou-se que as
pessoas custodiadas estão sendo apresentadas em Juízo, no termo da Lei e, que são
mantidas presas aquelas para as quais os recursos de liberdade não se enquadram, em
função dos tipos penais ou do rigor destes. Assim, a referida prisão se adequa aos
requisitos estabelecidos tanto em relação ao preconizado peala CADH quanto aos
parâmetros do CNJ.

Palavras-chave: Criminalidade; Direitos Humanos; Prisões Brasileiras.

Abtract: Criminality and violence are two obstacles to good human coexistence.
Throughout in the history some facts have led the human collective to reflect on what
punishment is, different from the grotesque actions used in periods of war, which the
world still fears and wishes they would not happen again. The American Convention on
Human Rights (ACHR), or Pact of San José, Costa Rica (1969), established basic
principles of civility and respect for the human person and, among many issues, the
Custody Hearing emerges as a civilizing milestone in the axis of the Penitentiaries
imposed on criminals or, before the fact, "custodians". In 1992, Brazil became a
signatory to the ACHR and the practice of the Hearing has been implemented in
Brazilian municipalities. In the present study, a bibliographical research was conducted
on the theme "Custody Hearing and Fundamental Rights" and data were also collected
from the Prison System, in the city of Porto Alegre do Norte/MT, on custody hearings
for the years 2017, 2018 and 2019. Analyzing these data, it was observed that the people

5Graduado em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT (2021). E-mail:
deusimarc505@gmail.com.
6 Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis, RJ. Professor de Crime e Sociedade,
Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade de Miguel Pereira. Professor contrato temporário
na UNEMAT. E-mail: profandersonrocharodrigues@gmail.com.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

in custody are being presented in court, according to the law, and that those for whom
the resources of freedom do not fit are kept in prison, due to the criminal types or the
severity of these. Thus, this prison conforms to the requirements established both in
relation to the ACHR and the CNJ parameters.

Keywords: Criminality; Human Rights; Brazilians Prisons.

INTRODUÇÃO

Com o aumento constante do índice de criminalidade, a superlotação do Sistema


Penitenciário é um fato estarrecedor que carece de debate. Em muitos países a
criminalidade vem aumentando significativamente, sacramentando a ineficiência das
políticas públicas dispensadas à população. Por sua vez, o Brasil mantém suas prisões
superlotadas sob condições insalubres e, há tempos, a privação da liberdade é a menor
das penas impostas pela prisão (ANDRADE; ALFLEN, 2010). Dentre desmandos e
descasos, as prisões se tornaram verdadeiros centros de articulação de facções
criminosas e poderes escusos. Estar preso, por vezes, se tornou sinônimo de sofrimento,
subserviência e falta de expectativas.
Segundo o julgamento da arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental – ADPF nº 347, caracterizou-se a existência de um quadro de violação
massiva e persistente de direitos fundamentais bem como a superlotação carcerária. Tais
transgressões decorrem de falhas estruturais e falência de medidas abrangentes de
natureza normativa, administrativa e orçamentária. Uma vez constatadas as violações
contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais o sistema penitenciário nacional deve
ser considerado como ―estado de coisa inconstitucional‖ (BRASIL, 2015; LIMA, 2018).
De acordo com o relatório da Organização (Não Governamental) Human Rights
Watch, observam-se constantes violações de Direitos Fundamentais no Brasil, como
execuções extrajudicias pela polícia, superlotação das prisões, tortura e maus tratos às
pessoas detidas, coerção e outros (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017). Ademais, ainda
segundo a referida organização, em uma década a população carcerária brasileira
aumentou em 85% (de 2004 a 2014). Ainda segundo o relatório, um fator que contribuiu
para o aumento da população carcerária brasileira foi a Lei de Drogas de 2006.
Em 2018, no Brasil, a população carcerária ultrapassou o número de 700 mil
presos, dos quais 40% cumprem pena provisória e 35% foram condenados em execução
definitiva. Segundo Cruz e Faria (2020), o Brasil apresenta o quarto maior número de

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

presos, sendo o único país onde as estatísticas continuam aumentando. Diante de tal
cenário, fica evidente a inversão da regra estabelecida no processo penal, onde as
presunções de culpabilidade sobressaem à culpabilidade sentenciada. Assim, a
persecução criminal é tida como elemento substancial na segurança pública para que a
sociedade sinta segura tanto da pressão da criminalidade quanto da possibilidade de
perda ou sufrágio dos direitos fundamentais.
Com a ratificação, pelo Congresso Nacional da Convenção Americana de
Direitos Humanos (CADH) – Decreto nº 678/1992 (BRASIL, 1992a) e pelo Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos – Decreto 592/19992 da Organização das
Nações Unidas – ONU (BRASIL, 1992b), constitui-se a qualquer preso a garantia de ser
conduzido, sem demora, à presença de um juiz. Este deverá analisar se a prisão foi legal
e se estão presentes os fundamentos para decretar a prisão preventiva ou, ainda, se a
pessoa deve ser solta, mediante fiança ou outras medidas cautelares, se necessárias.
Cabe salientar, ainda, o que preconiza o Art. 5º da Constituição Federal onde
―todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes‖. Este artigo,
da carta magna brasileira, também dispõe no Inciso LVII que ―ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória‖
(BRASIL, 1988).
Assim sendo, a Audiência de Custódia se apresenta como instituto garantidor
dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Assegurar o direito à
audiência de custódia, além de garantir as prerrogativas individuais respaldadas na
Constituição, é uma maneira eficiente de diminuir o avolumado número de detentos e,
por conseguinte, desarticular o recrutamento das organizações criminosas.
Com a implantação da Audiência de Custódia pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), Resolução 213/2015 (BRASIL, 2015) determina-se que ―toda pessoa presa em
flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja apresentada
em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente‖. A
CADH atribui que a Audiência de Custódia seja realizada por autoridade competente
que detenha poderes legais, ou seja, um juiz ou tribunal competente, independente e
imparcial. Dentre as finalidades da audiência de custódia destaca-se a tentativa de evitar
prisões ilegais e desnecessárias, além da premissa de garantir os direitos fundamentais e
a integridade do acusado (CORREIA JÚNIOR, 2020).

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Diante do flagrante delito, o benefício da Audiência de Custódia é ponto crucial


da apresentação do preso ao juiz para averiguação pessoal, física e mental. Esta etapa
permite analisar se a prisão foi ilegal ou desnecessária, se há cabimento do relaxamento
da prisão com medidas cautelares ou se há de converter em prisão preventiva. O juiz a
analisará as circunstâncias da prisão e não da materialidade do delito, partindo dos fatos
narrados no Auto de Prisão em Flagrante (APF) imputados ao preso e pelas condições
do agente, dando ao apresentado a oportunidade de apresentar sua versão dos fatos.
Por ser um instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro, a audiência de
custódia desperta a sede de entendimento desse processo imprescindível tanto para o
Direito Penal quanto para o cidadão em si. Diante deste cenário, a presente proposta
almeja abordar alguns pontos acerca dos Direitos Fundamentais, visando oportunizar
mais esclarecimentos à sociedade. Ademais, pretende-se discutir e salientar dados do
sistema prisional de Porto Alegre do Norte/MT.
Assim, o presente trabalho consiste de uma pesquisa documental e bibliográfica
acerca da garantia dos Direitos Fundamentais com ênfase na Audiência de Custódia,
estabelecida no Brasil em 2015, pela Resolução nº 213 do Conselho Nacional de
Justiça. Artigos, livros e documentos institucionais foram explorados visando compor o
referencial e a discussão deste trabalho. Além disso, tendo em vista a necessidade de
trazer o debate dos Direitos Fundamentais dos presos para a região Araguaia – Xingu
foram avaliados os Termos de Audiência de Custódia (TAC) de 1º grau do Tribunal de
Justiça do Estado de Mato Grosso – Comarca de Porto Alegre do Norte (dos anos 2017,
2018 e 2019) configurando o presente como um estudo de caso.

BREVE HISTÓRICO SOBRE PUNIÇÕES AOS CRIMINOSOS

A história da humanidade é pautada pelas relações sociais, quer seja em grupos


pequenos de aldeões quer seja na conformação de grandes sistemas de vivência social
nas civilizações mais recentes. Sabe-se que esta vivência nem sempre foi amistosa visto
que muitos feitos individuais interferem na convivência entre iguais. Agressões,
discussões, apropriações indevidas e relações afetuosas são alguns dos exemplos que
levam e levaram nos tempos remotos, à barbárie.
Naquela época as punições eram imediatas, por vezes levando os supostos
―transgressores‖ à morte ou, ainda, aos mais perversos rituais de punição. O Homem
aprendeu a viver em grupos seguindo uma lógica inventada pela gestão do mais forte,

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

fisicamente, ou daquele que melhor conseguisse gerir o grupo, por arguições que
apelassem para o imaginário ou fictício (HARARI, 2017).
Em posse desta convivência coordenada por algum ou por alguns membros,
além da necessidade de ressoar a justiça para todos, muitos códigos foram
desenvolvidos ao longo da história. Desde os primórdios, a humanidade tenta trazer os
fatos e as justificativas a fim de deliberar se haverá, ou não, castigo ao acusado. Um
exemplo histórico é o código de Hamurabi (1800 a. C.), um conjunto de leis para
controlar e organizar a sociedade que foi baseado nas Leis do Talião (―Olho por olho,
dente por dente‖) (BOUZON, 1980).
Neste código as 282 leis dispostas continham normas e penalidades para os fatos
que costumam ocorrer diariamente na vida dos cidadãos. Além disso, De Paula (1963, p.
269) ressalva que o Código de Hamurabi ―não é somente um monumento jurídico, mas
também é um documento literário de extremo valor, índice de um grande movimento
intelectual que culminou na tradução para o acadiano de um grande número de velhos
textos sumerianos‖. Em outras palavras, o Código de Hamurabi foi referência
consultada para pontuar outros códigos ou tratados legislativos.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH)

Já no Século XX, tendo em vista a reviravolta mundial com os horrores


cometidos nas Duas Grandes Guerras (Primeira Guerra Mundial 1914–1918 e Segunda
Guerra Mundial 1939–1945), alguns tratados humanitários foram discutidos por todo o
mundo (BRASIL, 1948). Na América, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos
Humanos) – órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos
(OEA), encarregado da promoção e proteção dos direitos humanos – foi criada pela
OEA em 1959 e, juntamente com o Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CorteIDH), instalada em 1979, é a instituição do Sistema Interamericano para a
proteção dos Direitos Humanos (SIDH).
O SIDH iniciou-se com a aprovação da Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem na 9ª Conferência Internacional Americana (Bogotá, 1948), onde
foi adotada a própria Carta da OEA, firmando os ―direitos fundamentais da pessoa
humana‖ como princípios fundadores da Organização (CIDH, [s.d.]). Já o Pacto de San
José da Costa Rica ou Convenção Americana dos Direitos Humanos – CADH, que
aconteceu em 22 de novembro de 1969, teve a ação dos Estados americanos signatários

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

reafirmando seu propósito de consolidar, dentro do quadro das instituições


democráticas, um regime de liberdade e de justiça social, fundado no respeito dos
direitos essenciais do homem.

SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

A finalidade principal do processo penal é assegurar a real e efetiva aplicação do


Direito Penal, embora seja uma questão ainda não pacificada no ordenamento jurídico
brasileiro. Com o advento da Constituição Federal de 1988, ocorreram mudanças no
sistema processual que optou pelo princípio acusatório. Deste modo, o processo penal
encontra-se ancorado no sistema acusatório que não se justifica em si mesmo, onde o
Estado e a sociedade são atores garantistas da promoção da paz social e de proteção do
indivíduo.
No Brasil, a Constituição de 1824, previa que fosse elaborada nova legislação
penal, surgindo o novo Código Criminal do Império sancionado por Dom Pedro I, em
1830. Com o advento da Proclamação da República, salientou-se a necessidade de
elaborar um novo Código Penal. Elaborado às pressas, visto que o Brasil, à época,
passava por transformações galopantes, saindo de um período dominado pela Corte
Real, onde não se cogitava sequer falar sobre direitos humanos. A pressa ao elaborar o
Código Criminal Republicano acarretou falhas que, de certa forma, provocaram
insegurança jurídica, uma vez que a legislação penal tem pontos de vulnerabilidade.
Em um contexto de incerteza jurídica, marcado pelo estigma de um Estado
Social desordenado, viu-se a necessidade de elaborar o Código de Processo Penal – CPP
(Decreto Lei 2848/1942 e o Código Penal (Decreto 3689/1941) (BRASIL, 1941).
Dando enfoque a segurança pública que autorizou a intervenção exagerada na vida do
cidadão, entendimento este que afronta a salvaguarda dos Direitos Fundamentais. No
âmbito Processual Penal, a legislação tem sido alterada de modo a acomodar o
entendimento acusatório, inclusive pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é
signatário.
De modo geral, depreende-se que nem sempre os agentes da Lei estão cientes da
responsabilidade do Estado em manter a ordem e, em paralelo, respeitar a dignidade da
pessoa humana. Há casos nos quais os autuados são presos por engano ou
indevidamente, o que gera ―uma humilhação ao brasileiro e uma demonstração da
dimensão da crise do Judiciário‖ (GAMA, 1997). Esse autor ainda destaca que nas varas

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

de execuções penais, com falta de decisões judiciais, existem presos que já cumpriam
suas penas sem passar pela Audiência de Custódia. Ademais, o autor salienta que o
número de juízes é insuficiente, ou por falta de verbas e ou por ineficientes meios de
seleção, cerceando o acusado do direito sagrado à liberdade.
Portanto, as várias modificações feitas na legislação Penal e Processual, para
ajuste constitucional, não foram capazes de modificar sua estrutura fundamental
autoritária e inquisitorial, por ser oriundas dos referidos diplomas. O que ao certo seria
resolvido por meio de uma reforma integral que viesse quebrar paradigmas do Estado
Democrático de Direito. Destaca-se que a Audiência de Custódia serve como um
indicador da promoção da garantia dos Direitos Fundamentais, tendo o cuidado de não
se banalizar em mero formalismo jurídico.

A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A audiência de custódia surgiu almejando diminuir o número de prisões


desnecessárias, permitindo ao preso em flagrante delito o direito de aguardar ao
julgamento do processo em liberdade. É, portanto, um instrumento imprescindível para
a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo (CORDEIRO; COUTINHO, 2018).
Ademais, audiência de custódia é um termo adotado para a apresentação do cidadão
preso perante a autoridade judiciária (Juiz). Ou seja, o auto de prisão em flagrante e o
indivíduo são levados ao magistrado, em até 24 horas, para que o juiz possa ouvir o
preso cuja liberdade foi cerceada em virtude do flagrante. Assim, o juiz avalia se é
necessário manter a pessoa presa, ou se cabem outras medidas legais (LIMA et al.,
2019).
No âmbito dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, já havia previsão
normativa de medidas para evitar a ocorrência de abusos contra a figura da pessoa
detida, aqui sendo destacada a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de
San José da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário desde 1992. Nesta Convenção está
previsto que haja a apresentação de qualquer pessoa presa, sem demora, a um juiz ou
autoridade competente (FRANCO; OLIVEIRA, 2017; CARVALHO, 2018).
No âmbito penal brasileiro verifica-se que diversos são os direitos consagrados
pela Constituição visando proteger as pessoas que tenham sua liberdade cerceada. Do
mesmo modo, Cordeiro e Coutinho (2018) sugerem que a presença do processado
perante o juiz, constitui-se como um direito imprescindível para a manutenção da

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

dignidade da pessoa humana. Após as avaliações acerca dos delitos cometidos e das
circunstâncias são tomadas as decisões cabíveis pelo magistrado. Deste modo, quanto
maior o risco apresentado pelo acusado mais penosas deverão ser as cautelares a serem
estabelecidas.

AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA (2017-2019) EM PORTO ALEGRE DO NORTE/MT

O município de Porto Alegre do Norte tem 3.972,256 km² de extensão territorial


e contava com pouco mais de 12 mil habitantes em 2020 (IBGE, 2021). A cidade é
subsidiada, basicamente, pela agropecuária assim como os outros municípios
adjacentes, também bastante produtivos neste setor (Luciara, Canabrava do Norte,
Confresa e Vila Rica). Hoje o acesso ao município pode ser pelas rodovias BR-158, MT-
412, MT-437 e até mesmo por avião (coordenada da pista asfaltada S:10º55‘05‖ /
W:51º36‘32‖ 1600 m).
A ampla economia do município é constituída predominantemente pela
agricultura, que está em ampla expansão. Os principais cultivos de grãos são soja e
milho, mas há outros. Na área industrial temos armazenamento de grãos e produção de
ração animal. Nos últimos anos foram implantadas lavouras de fruticulturas como
maracujá, limão, banana, acerola e mandioca. Além da criação de gado de corte e leite,
carro forte da região (PORTAL DE MATO GROSSO, 2020).
No que concerne à área da segurança pública e do sistema penal, o Brasil
comporta 2.808 estabelecimentos penais de pequeno, médio e grande porte com
capacidade para alocar 447.556 presos. O estado de Mato Grosso conta com cinquenta
(50) estabelecimentos prisionais comportando 7.175 vagas (CNJ, 2021). Já a cidade de
Porto Alegre do Norte conta com a Delegacia Municipal de Porto Alegre e a Cadeia
Pública sendo que esta última possui 66 vagas para presos provisórios, do sexo
masculino, em cumprimento de pena no Regime Fechado (CNJ, 2021).
Acerca das prisões efetuadas foram avaliados os TAC dos anos 2017, 2018 e
2019. Os dados foram tabulados observando as variáveis: idade do autuado, tipo penal,
nome do magistrado e decisão. Também foram observadas a relações destes casos
específicos com a jurisprudência competente. Avaliou-se, ainda dados obtidos junto ao
CNJ sobre a inspeção realizada na Cadeia Pública do município para identificar se os
Direitos Fundamentais dos internos estão em conformidade com os preceitos
constitucionais.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Percebeu-se que há uma variedade de tipos penais, sendo que dos 29 casos
registrados no ano de 2017 os tipos penais mais cometidos foram furto, violência contra
a mulher e homicídio (ou tentativa). Os tipos penais mais comuns em 2018 foram
Tráfico de drogas e condutas afins, homicídio qualificado, estupro e violência contra a
mulher. Verificou-se, no ano de 2019, que dentre os tipos penais cometidos, destacam-se
a violência contra a mulher com nove casos, onde apenas um foi favorecido com
Liberdade provisória com medidas cautelares. Ainda em 2019, foram registrados casos
de estupro de vulnerável, furto ou furto qualificado, crimes de trânsito e tráfico de
drogas ou condutas afins.
Fechando a avaliação das Audiências de Custódia verificou-se que no ano de
2017 a prisão foi mantida em 17 casos (58%), em 29 casos (93%) em 2018, e em 40
casos (73%) em 2019. Sabe-se que não são todos os prisioneiros que, aguardando
julgamento ou cumprindo pena, permanecem na Cadeia Pública, pois acontecem
transferências para outras instituições. Ainda assim, somando-se as prisões mantidas ou
convertidas de 2017 a 2019, foram 84 audiências convertidas em prisão nos termos da
Lei.
Sobre as instalações carcerárias, no Relatório Mensal do Cadastro Nacional de
Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP) de 05 de maio de 2021, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) realizou a inspeção da Cadeia Pública de Porto Alegre do
Norte constatando que ela está em pleno funcionamento. A referida unidade prisional
conta com 14 agentes penitenciários e 4 computadores para uso administrativo com
acesso à internet. Não há pessoal terceirizado trabalhando na unidade, sendo todos os
envolvidos agentes do Estado de Mato Grosso. Certificou-se que o estabelecimento
destinado a presos do sexo masculino, provisórios ou no cumprimento de pena no
regime fechado (CNJ, 2021).
Acerca dos quantitativos, verificou-se na inspeção que a lotação atual da Cadeia
comporta 55 presos. A cadeia tem capacidade projetada para 66 presos, sendo 8 celas
com proteção. Atualmente são oferecidas 4 vagas para trabalho interno e 26 vagas para
estudo na unidade. Na data da Inspeção verificou-se o quantitativo de 54 presos
provisórios e 12 cumprindo pena em regime fechado. Quanto à situação dos presos no
estabelecimento, há 4 presos em regime semiaberto trabalhando internamente nas
demandas da cadeia e 22 presos estão estudando. Avaliando-se a estrutura
complementar da Cadeia, verificou-se que a seguridade pessoal dos presos vem sendo
mantida.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho versou sobre o direito que a pessoa presa tem de ser apresentada
em juízo visando respaldar o que preconiza a Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH). Para além das questões jurídicas elaboradas sobre o tema, o
presente estudo constatou que na comarca estudada (Porto Alegre do Norte/MT) os
custodiados foram apresentados em juízo como estabelece a Lei.
Nos anos de 2017, 2018 e 2019 foram realizadas, respectivamente, 29, 31 e 55
Audiências de Custódia, seguindo o pressuposto no Art. 310 do Código de Processo
Penal (CPP), onde após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até
24 horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com
a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o
membro do Ministério Público. Deste total de audiências (105), 80% dos casos autuados
foram mantidos ou convertidos em prisão preventiva em virtudes dos tipos penas bem
como dos agravantes.
Também foi averiguado junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os dados
das inspeções nos estabelecimentos penais no Relatório Mensal do Cadastro Nacional
de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP) de maio de 2021. Nestes, verificou-
se que a Cadeia Pública de Porto Alegre do Norte atende as solicitações em todas as
etapas da inspeção realizada.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 4

O CUMPRIMENTO DA EXECUÇÃO DA PENA POR CONDENAÇÃO EM


SEGUNDA INSTÂNCIA E SUA CONTRIBUIÇÃO O ABISMO SOCIAL ENTRE
RAÇAS E CLASSES NO BRASIL

COMPLIANCE WITH THE ENFORCEMENT OF THE PENALTY BY SECOND


INSTANCE AND ITS CONTRIBUTION TO THE SOCIAL CHASM BETWEEN
RACES AND CLASSES IN BRAZIL

Kelly Morgana Moraes da Rocha7


Antônio Leonardo Amorim8
Elizete Beatriz Azambuja9

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade analisar o cumprimento de sentença


penal condenatória a partir de segunda instância sob a ótica do Princípio de Inocência
(ou não culpabilidade) previsto no artigo 5º, LVII da Constituição Federal de 1988, que
traz a garantia de que ―Ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de
sentença penal condenatória‖, e suas consequências à sociedade, ao sistema jurídico e
prisional. Para tanto, serão abordados institutos legais como prisão cautelar e detração
da pena, juntamente com o princípio do devido processo legal, que é considerado por
muitos pensadores o mais importante dos princípios constitucionais, dele derivando
todos os demais, pois assegura a todos o direito a um processo justo, em que se
contemplam os princípios do contraditório e da ampla defesa, garantindo a devida
segurança jurídica. Concomitantemente essa pesquisa se encarrega de examinar se, ao
ferir o princípio da presunção de inocência, o sistema penal contribuirá ainda mais para
a estigmatização e o encarceramento de negros e pobres no Brasil, ferindo os direitos
humanos mais básicos como o da isonomia e da liberdade.

Palavras-chave: Criminologia Crítica; Cárcere; Direitos Humanos; Sistema Prisional.

Abstract: The purpose of this paper is to analyze compliance with a criminal conviction
from the second instance under the perspective of the Principle of Innocence (or non-
guilt) provided for in article 5, LVII of the Federal Constitution of 1988, which
guarantees that ―Nobody will be considered guilty until the final and unappealable
sentence of the criminal sentence‖, and its consequences for society, the legal and prison
system. To this end, legal institutes such as provisional arrest and penalty will be
addressed, along with the principle of due process, which is considered by many

7 Graduada em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), e-mail:


kelly@direitovr.com.br.
8 Doutorando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES (2022), Mestre
em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019), bolsista CAPES durante o
período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal (2017-2018), Bacharel
em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (2012-2016) - Unidade de Naviraí/MS,
pesquisador de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito da Criança e Adolescente.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), foi Coordenador do Grupo de
Pesquisa Novas Perspectivas do Direito Penal (2019-2021), e-mail: amorimdireito.sete@hotmail.com.
9 Professora da Universidade Estadual de Goiás, no curso de Letras do Câmpus Oeste: Unidade de São
Luís de Montes Belos/GO. Doutora em Linguística pelo Programa Interinstitucional em Linguística
(UNICAMP/UNEMAT/CAPES). e-mail elizete.azambuja@ueg.br.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

thinkers the most important of constitutional principles, deriving from it all the others,
as it ensures everyone the right to a fair process, in which the principles of contradictory
and broad defense are contemplated, ensuring due legal certainty. At the same time, this
research is responsible for examining whether, by violating the principle of the
presumption of innocence, the penal system will further contribute to the stigmatization
and imprisonment of blacks and poor people in Brazil, violating the most basic human
rights such as equality and freedom.

INTRODUÇÃO

Com o cumprimento de pena a partir de sentença penal condenatória


confirmada em segunda instância, quem serão os verdadeiros prejudicados? A elite
brasileira que comete crimes de colarinho branco ou os pobres e negros? Essa é nossa
proposta de pesquisa, olhar criminológico com recorte racial e classista para o
cumprimento de pena a partir de condenação em segunda instância.
Dialoga com nossa pesquisa os temas prisão cautelar, princípio de presunção
de inocência, mencionado no artigo 5º, LVII, da CF, onde afirma que ―Ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória‖
(BRASIL, 1988), além de outras categorias de garantias de direitos humanos, que serão
apresentadas no decorrer dessa pesquisa.
Tema que tem causado atualmente controvérsias, não só no âmbito jurídico
como também político e acadêmico, devido à sua complexidade e contemporaneidade.
Em um cenário de insegurança nacional, em que o cidadão brasileiro observa mudanças
rápidas, não se levando em consideração todo o arcabouço jurídico, que por sua vez
possui como escopo a instalação de um estado de justiça, equidade e consequentemente
de paz, para uma sociedade que vivencia um período conturbado, onde conflitos
permeados de violência e insatisfação colocam em perigo a tão jovem e frágil
democracia brasileira, que por décadas vem tentando se alicerçar em um sistema
econômico e social que se cria e se recria na desigualdade e consequentemente, na
injustiça econômica e social, perpetuando um estado de coisas que por sua vez produz
uma parcela significativa de famintos, miseráveis e consequentemente excluídos,
marginalizados por um sistema voraz e estruturalmente corrupto, em que não poucos
cidadãos brasileiros terminam sendo captados pelo crime organizado, que traz uma
ilusão de resposta positiva a problemas, que o governo constituído não consegue dar à
uma população ávida por soluções a problemas sociais gravíssimos, que decorrem de
séculos de desigualdade e dominação.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Desde o período colonial, e ainda antes, com a chegada dos europeus em terras
brasileiras, percebe-se uma nítida diferença de tratamento entre o ―filho de algo, ou
fidalgo‖, o indígena e o afrodescendente, diferença que se perpetua ao longo dos
séculos, aumentando o abismo criado através de uma equivocada visão de superioridade
hegemônica do europeu branco e ―civilizado‖ em detrimento da população nativa, dos
negros trazidos para serem escravizados e, posteriormente, os ―mestiços‖ decorrentes da
miscigenação étnica.
Com a evolução de tal entendimento surgiu e se alicerçou a sociedade
brasileira, onde existem dois ―brasis‖: o país Brasil dos ricos e poderosos nascidos sob a
égide da proteção do rei com a divisão de terras pelas capitanias hereditárias, e o Brasil
de uma enorme massa de indivíduos que foram sendo empurrados para a margem de um
sistema de concentração de recursos e riquezas, em que obviamente não poderiam fazer
parte, já que a concentração exige uma menor proporção de indivíduos na partilha
dessas riquezas construídas à custa do suor, e não poucas vezes, do sangue daqueles que
não poderiam fazer parte da camada favorecida da sociedade que então se formava.
Neste cenário, o encarceramento se torna um dos mais eficientes meios de
dominação, haja vista que os presídios em um país que concentra a terceira maior
população carcerária do mundo, como o Brasil, que se posiciona atrás somente da China
e dos Estados Unidos da América, e que a maior parte dessa população carcerária se
caracteriza por afrodescendentes, e/ou mamelucos oriundos da mestiçagem entre
branco e índio, mulatos advindos de europeus e negros, e cafuzos que nascem da
mistura entre o negro e o índio.
Portanto, a partir da Constituição Federal de 1988 pretende-se analisar com
vistas à segurança jurídica, o que vem a representar em dignidade da pessoa humana o
cumprimento de pena a partir de condenação em segunda instância.

O CUMPRIMENTO DE PENA PROVISÓRIO COMO VIOLADOR DE


DIREITOS HUMANOS DOS CONDENADOS

A prisão após condenação criminal em segunda instância refere-se à


imperatividade de que, no ordenamento jurídico brasileiro, o réu condenado
à pena privativa de liberdade inicie o seu cumprimento após decisão de segunda
instância, ainda que pendentes recursos às instâncias superiores (Superior Tribunal de
Justiça e Supremo Tribunal Federal).

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Importante pontuar o que Evandro Lins e Silva descreve sobre a realidade do


sistema prisional brasileiro (BRASIL, 2001, p. 1) ao comentar que ―hoje, a prisão não
regenera nem contribui para a ressocialização de ninguém; perverte, corrompe, deforma,
avilta, embrutece, é uma fábrica de reincidência, é universidade onde se diploma o
profissional do crime‖.
Pelo fato de o Estado concentrar em si o poder de dizer o direito através da
interpretação dada pelo judiciário, a ele cabe a efetivação das garantias que estão
previstas no ordenamento jurídico, para que barbáries como a do grande encarceramento
que vivemos no século XXI não continue a ocorrer.
Considerando presos em estabelecimentos penais e presos detidos em outras
carceragens, o Infopen 2019 aponta que o Brasil possui uma população prisional de
773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes. Caso sejam analisados
presos custodiados apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias, o país detém
758.676 presos. Segundo a Constituição Federal de 1988 ninguém poderá ser
considerado culpado até trânsito em julgado, surgindo daí o princípio da presunção de
inocência ou da não culpabilidade, de modo que é necessário que a execução da pena só
possa ser aplicada depois de esgotados todos os recursos em devido processo criminal
pautado na ampla defesa e, portanto, após trânsito em julgado.
A Declaração Universal dos Direito Humanos de 1948 preceitua em seu artigo
2º que:
Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, sexo, cor, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição.

Porém, não é o que sucede cotidianamente em nosso país, o que se vê são


presídios e cadeias públicas com um número elevado de detentos de cor negra e/ou
parda, na verdade a maioria, numa política de segurança obviamente racista como o é a
sociedade brasileira, que nunca se desvinculou do pensamento do senhor de engenho de
séculos atrás.
O art. 3º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, preceitua que ―todo
ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal‖. Partindo do princípio
de que para que a vida subsista se faz necessário que haja alimento pois do contrário não
há vida que resista, a condição de vida do brasileiro e em especial, a do afrodescendente
brasileiro, fere brutalmente o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

pois em grandíssima parte dos lares brasileiros falta comida, comprometendo


seriamente a subsistência dos integrantes desta vasta parcela da população brasileira, e
se falta alimento que é essencial à vida, o que dirá do direito à liberdade e à segurança
pessoal, já que a fome humilha, enfraquece, aprisiona, tornando encarcerados pela
subnutrição aqueles que poderiam estar conquistando seus direitos por meio dos estudos
e de uma atividade laboral que lhes traria a dignidade de receber seu salário advindo de
uma atividade honesta e compensativa.
Pelo contrário, o estado permanente de necessidade fomenta a violência, que
por sua vez atinge diretamente o princípio de liberdade, ao terminar por encarcerar os
cidadãos que transgridam a ordem estabelecida por um sistema excludente e
marginalizante.
O art. 5º, dispõe que ―ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante‖. Ao comparar este artigo com as condições
existentes nos cárceres do Brasil, como também no próprio sistema de segurança
existente, compreendemos o quanto de injustiças o cidadão brasileiro é vítima, pois não
são poucos os relatos de tortura, tratamento desumano e degradante aos que cometeram
delitos afirmam sofrer. Desde o ato de prisão, instauração de inquérito até o momento
em que são condenados, os réus já iniciam o cumprimento de pena ao serem são
tratados como culpados antes mesmo que a sentença seja prolatada, em clara oposição
ao que prevê a Constituição Federal e os pactos que visam preservar os direitos
humanos dos quais o Brasil é signatário.
O Artigo XI, dispõe que ―todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o
direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de
acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas as
garantias necessárias à sua defesa‖. Outra questão bastante grave no ordenamento
jurídico brasileiro, é o fato de não existirem defensorias públicas suficientes para agir
em defesa daqueles que não possuem condições financeiras para contratar um
advogado, e o cidadão brasileiro que não possua um nível escolar médio, não conhece
seus direitos e não sabe como e nem onde acessá-los, resultando cárceres permeados de
réus que sequer foram julgados e que não possuem um patrono para defender suas
causas, ferindo ferozmente o princípio do devido processo legal e da ampla defesa,
agravando ainda mais o sistema penitenciário e consequentemente a violação dos
direitos humanos daqueles que ali se encontram, aumentando profundamente o abismo
entre os encarcerados e a justiça restaurativa que poderia devolvê-los à sociedade e

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

contribuir para que tornasse melhor para todos, e não para delinquir como na maioria
das vezes acontece.
Outro agravante, em toda essa situação que por si só já é delicada e prejudicial
à toda a sociedade, é o cumprimento antecipado da pena, ou cumprimento antes do
trânsito em julgado. Sendo a prisão o último recurso a ser efetivado, deveria ser aplicada
apenas em condenados considerados de alta periculosidade, que efetivamente poderiam
constituir grave ameaça à paz social e ao bem-estar dos cidadãos de tal modo que
justificaria o recolhimento à cárceres tão desumanizantes como os do Brasil. Assim
sendo, faz-se necessário observar a previsão das prisões precautelares e cautelares, que
resultam da necessidade de garantia das ordens pública e/ou econômica, como também
pela conveniência da instrução criminal ou ainda com o fim de assegurar a aplicação da
lei penal.
Isso se houver prova da existência do crime concomitante ao indício de autoria,
de acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal. Ou seja, após o
reconhecimento de todas essas premissas, ainda há de se considerar se houve realmente
o crime e se os indícios de autoria são robustos e inequívocos, para que seja dado início
ao rito procedimental para apuração dos fatos e posterior prolação de sentença, sempre
respeitando o devido processo legal.
Desse modo, cumprir pena antecipadamente constitui uma violência
extremada, podendo se constituir em uma medida irreparável caso o acusado seja
inocentado ao fim do processo, porque ao ser preso o acusado é afastado da família,
perde o emprego, deixa de estudar e ao ter seu direito fundamental à liberdade suspenso,
perde junto a dignidade ao ser recolhido em cela superlotada, passando a conviver com
presos de alta periculosidade, que muitas vezes são membros de organizações
criminosas que não perdem tempo e captá-los para suas facções.
Quando no final do processo esse acusado é inocentado por haver cometido um
delito leve, o que fazer com o tempo em que esteve preso cumprindo antecipadamente
uma pena mais grave do que o crime cometido? Um crime em que a pena foi revertida
em prestação de serviços comunitários ou multa? Há casos em que a pena poderá ser
mais leve ainda e por meio de acordo feito como judiciário, como o tratamento da
dependência química por exemplo, o acusado tem sua liberdade restituída? Qual seria a
reparação dos danos físicos e psicológicos causados pelo confinamento em condições
sub-humanas? De que forma o Estado responde a essa imperiosa necessidade de
reparação? E a sociedade como recebe de volta o cidadão que recebeu uma pena mais

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

branda ou foi inocentado? O Estado simplesmente o ignora e a sociedade o rejeita,


relegando-o a marginalidade mais uma vez.
Enfatizando que todo esse aparato jurídico e prisional custa milhões de reais
aos cofres públicos, dinheiro dos contribuintes que poderia ser gasto em políticas
públicas que trouxessem melhoria de condições para milhares de famílias brasileiras,
mas que são gastos em um sistema que amplia o abismo existente entre a justiça e os
direitos fundamentais, retroalimentando esse círculo vicioso de injustiças e violência.
Essas violações de Direitos Humanos demonstram que enquanto Nação o
Brasil precisa evoluir no sentido de que seus cidadãos tenham todos os direitos
preservados e atendidos, inclusive o direito à justiça gratuita, que é um dos deveres do
Estado mas que é apenas parcialmente atendido, e essa dificuldade em acessar a justiça
prejudica a defesa dos acusados, que em muitos casos sequer são devidamente
instruídos, não conseguindo sustentar uma posição de defesa coerente, e acabam por ser
julgados sem sequer ser plenamente ouvidos sobre o que de fato ocorreu, ficando muitos
questionamento sem ser elucidados devidamente, e nesse sistema perverso cresce o
super encarceramento e a violência que assola o país.
Por serem todas essas questões muito delicadas, é que se faz imperiosa a
garantia prevista no artigo 5º, LXXVII da CF/88, pois o tempo, a saúde e a dignidade
perdidos jamais poderão voltar, portanto que sejam feitos esforços não só pelo
legislativo ou judiciário para erradicar tais situações de injustiças, mas também por toda
a sociedade brasileira, afinal, como cidadãos de um mesmo país, somos todos irmãos, e
o que afeta a um, mais dia menos dia afetará a todos.

O ENDURECIMENTO DO DIREITO PENAL QUE CAUSARÁ AINDA MAIS


ESTIGMA E PRECONCEITO – UM RECORTE RACIAL E CLASSISTA
SOBRE O CUMPRIMENTO DE PENA A PARTIR DE SEGUNDA INSTÂNCIA

Em artigo publicado no site Empório do Direito Rosa (et al, 2019) trazem o
seguinte entendimento sobre o endurecimento do Direito Penal:

O termo ‗endurecimento de penas‘ surge e ganha forças no cenário mundial


por meio de movimentos considerado punitivistas. No entanto, esse
endurecimento almejado é apenas uma medida simbólica, isso porque a ideia
de ver os ‗criminosos‘ presos simboliza o sentimento de que os crimes estão
diminuindo.

O que de fato não acontece, muito pelo contrário, o que se vê é o expressivo


aumento da criminalidade que as medidas punitivas não têm conseguido conter e a cada

50
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

vez mais pessoas são levadas ao encarceramento com a finalidade de coibir as ações
delituosas, mas parece que quanto mais se endurece o sistema penal, mais infrações,
delitos e crimes são praticados, o que deveria levantar questionamentos tanto entre os
que criam as leis, quanto os que as executam.
Tais práticas utilizadas pelo estado para encarceramento não promove a
condição de um ser humano melhor, desde a Idade Média, período em que os crimes
eram punidos por meio de castigos contra o próprio corpo de quem os praticasse, em
espetáculo público e de uma crueldade inigualável, que os seres humanos vêm
cometendo os mais diversos crimes, e tais ―espetáculos‖ para nada serviram, a não ser
para formar uma sociedade aterrorizada e embrutecida.
O que a história tem demonstrado é que ao contrário desse punitivismo
descabido, a criação de políticas públicas de efetivação de direitos fundamentais, como
alimentação adequada, moradia, saúde e educação de qualidade, é altamente eficaz na
diminuição de crimes, basicamente, porque atuam como preventivos, ou seja, inibe o
surgimento ao invés de punir os indivíduos, proporcionando a eles condições de
viverem com dignidade e mais ainda, de desenvolverem seu potencial desde a infância.
As recessões de direitos fundamentais, além de causarem insegurança jurídica,
contribuem para o aumento de conflitos, pois como já dito anteriormente, abarrota um
sistema prisional inchado, permeado de problemas que são considerados básicos como
espaço adequado e alimentação saudável, além da oferta de atividade laboral que se bem
implementados, contribuiriam para a remição de penas e ressocialização dos presos,
mas ao contrário do que seria lógico, ou seja devolver o cidadão à sociedade em
condições de participar ativa e positivamente para seu crescimento e evolução, o que se
vê são estabelecimentos prisionais com um número de detentos e presos absurdamente
acima de suas capacidades, e o mais grave é que as estatísticas comprovam a teoria da
seletividade defendida por muitos pensadores do sistema jurídico brasileiro, como
Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Martinelli (2020, p. 55) ―na realidade social,
porém, esse sistema, não obstante comum, não opera de forma uniforme, pois o
destinatário das leis penais ou as pessoas submetidas ao sistema penal – os condenados,
em linguagem simples – pertencem aos níveis sociais de menores recursos‖.
A teoria da seletividade defende que o Estado por meio do sistema judiciário
criminal seleciona quem será punido com mais rigor, aqueles que serão condenados a
penas restritivas de liberdade, quais sejam, os pobres e negros e com baixo nível de
educação formal, que são maioria no sistema carcerário brasileiro.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Não diferentemente do entendimento de Thiago Fabres de Carvalho (2104, p.


56), que compreende est seletividade como ―naturalização da desigualdade e da gestão
da subcidadania‖, o que formos analisar é um sistema de muita gravidade, e trata da
perpetuação da exclusão e do racismo iniciado no Brasil Colônia e não erradicado do
imaginário cultural da sociedade brasileira.
Ainda em conformidade com esta política de estigma, preceituam Leonardo
Schimitt de Bem e João Paulo Martinelli (2020, p. 56):

[...] não se pode ignorar que ainda ocorre uma atuação seletiva em vários
níveis, pois as diversas formas de criminalidade não são perseguidas de modo
similar. As raras prisões de pessoas com projeção social elevada,
especialmente derivadas de colaborações premiadas, não alteram a realidade
de ser o pobre o hóspede do cárcere e nele se encontrar, em diversas
situações, confinado provisoriamente pela prática de condutas insignificantes.

O Estado ao não dar conta das demandas sociais que são inúmeras devido ao
não atendimento das necessidades de enorme parcela da população, justamente
desassistida por conta dessa política de exclusão onde impera o vício dos favores e dos
acordos com o fim de promover o benefício de alguns, em detrimento de muitos
outros, reforça o modus operandi de encarcerar e assim os problemas sociais se agravam
de maneira insustentável, e seguindo essa lógica cruel e racista entende-se que ao
encarcerar, tem-se o problema solucionado, já que o que não está visível, incomoda
menos.
Contudo, não é o que as estatísticas demonstram, pelo contrário o índice de
violência e criminalidade é elevado nos parecendo que quanto mais injustiças são
cometidas contra os cidadãos, mais problemas ―brotam‖ dessa mesma sociedade, e os
oriundos desse sistema perverso criminal voltam ao convívio social ―graduados‖ no
crime, mais revoltados e embrutecidos, tudo isso fruto dessa seletividade injusta, cruel e
desumana.
Salo de Carvalho (2015, p. 624) afirma que:

A racionalidade etnocêntrica racista (e igualmente misógina e homofóbica),


que funda as bases que permanecem hegemônicas no pensamento ortodoxo
das ciências criminais (criminologia positivista, direito penal dogmático e
política criminal defensivista), tem sido denunciada, desde há muito, pela
criminologia crítica latino-americana, sobretudo a partir da compreensão dos
processos de seletividade criminal e de sua funcionalidade para a gestão e o
controle repressivo dos grupos indesejáveis.

Rosa Del Olmo, em sua obra A América Latina e sua Criminologia (2004, p.
175), demonstra que os índios e negros foram os primeiros criminosos em terras

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

brasileiras, e que os negros tiveram especial atenção de médicos legistas porque


praticavam suas religiões originárias, que por sua vez eram consideradas como sintomas
de patologia e expressão de bruxarias, o que fomentaria a violência, e desse modo a
ideia de inferioridade racial de negros e mestiços foi se consolidando no saber
criminológico e por conseguinte, criando ―apartheids criminológicos‖, em inúmeras
variáveis de segregação racial, inclusive nas ciências sociais, que eram fomentadas
pelas oligarquias latifundiárias, mineradoras e mercantis (CARVALHO, 2015, p. 625).
Zafaroni (1993, p.146), em estudo sobre o racismo, afirma que ―[...] a ‗ciência‘
deveria demonstrar a inferioridade moral do mulato‖, interessante observar que a
segregação racial não se limita aos grupos dominantes, mas a história demonstra que
não. Duarte (2011, p. 287) preconiza que:

[...] embora o racismo seja uma ideologia das elites brasileiras, porque é
funcional à dominação que exercem, ao rearticular e redimensionar inúmeros
processos culturais e materiais, expande-se para os demais grupos sociais e se
materializa em um número ilimitado de relações de dominação.

Salienta o pesquisador que a criminologia racista surge a partir de ―condições


materiais concretas, de relações de poder estabelecidas nas políticas colonialistas e nos
processos de implementação do capitalismo‖, ou seja, está no cerne da evolução
capitalista e, portanto, social do Brasil, refletindo a necessidade de um controle social
que reprimisse as populações não-brancas (CARVALHO, 2015, p. 626).
E assim vai sendo construída uma estrutura jurídica pautada em punições
marcadas pelo autoritarismo, concomitantemente genocidas, alicerçando um racismo
advindo da herança escravagista, em uma ciência ―antimulata‖, sustentadora de práticas
de controle social.
Não são raros os debates no meio acadêmico sobre a ―criminalização da
miséria‖ e o ―populismo punitivo‖, longe estamos de encontrar solução para tão graves
mazelas sociais, por serem tão estruturais e regimentadas na sede de poder e dinheiro,
que parece no Brasil ser de uma força imperiosa mais do que em outras partes do
mundo, dado o profundo abismo existente entre os que detêm o poder e os que nada
possuem, e o judiciário, ao se eximir do debate sobre tais estruturas, termina por
legitimar a violência ao manter uma prática de encarceramento abusiva, extravagante e
ineficaz. Conforme relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(INFOPEN, 2016, p. 32):

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

A partir da análise da amostra de pessoas sobre as quais foi possível obter


dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos afirmar que 64% da população
prisional é composta por pessoas negras. Na população brasileira acima de 18
anos, em 2015, a parcela negra representa 53%, indicando a sobre
representação deste grupo populacional no sistema prisional.

Através de tais dados, podemos afirmar que há inequivocamente uma política


criminal racista e seletiva que busca criminalizar aqueles que são provenientes da etnia
afro-brasileira e que não por acaso fazem parte do maior percentual de pessoas pobres e
com baixa escolaridade do Brasil. O encarceramento massivo e malconduzido contribui
para elevar os índices de violência e, nas palavras de Carvalho (2015, p. 649):

A seletividade racial é uma constância na historiografia dos sistemas


punitivos [...], a população jovem negra, notadamente aquela que vive na
periferia dos grandes centros urbanos, tem sido a vítima preferencial dos
assassinatos encobertos pelos ‗autos de resistência‘ e do encarceramento
massivo, o que parece indicar que o racismo se infiltra como uma metarregra
interpretativa da seletividade, situação que permite afirmar o racismo
estrutural, não meramente conjuntural, do sistema punitivo.

Assim sendo, havendo recessões de direitos fundamentais, a classe mais


prejudicada é exatamente a que mais depende da tutela do Estado, por viverem em
condições de fragilidade econômica e social, é esta a classe constituída em sua maioria,
por negros, cafuzos e mulatos mestiços provenientes da união de índios, negros e
europeus, historicamente relegados à marginalização em todas as esferas, sendo,
portanto, as pessoas mais pobres as maiores vítimas do retrocesso dos direitos
fundamentais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluir o presente trabalho, que teve como enfoque a prisão após


condenação em segunda instância, e se esta aumentaria o estigma entre pobres e negros
nas instituições carcerárias brasileiras, é importante salientar que através de pesquisas
bibliográficas identificamos existirem políticas públicas que foram criadas com o
objetivo de silenciar determinada parcela da sociedade, e mais que silenciá-las, levá-las
à condição de invisibilidade.
A herança colonialista escravocrata e, portanto, autoritária, não deixa por
menos as ações daqueles que por necessidade se insurgem contra esse sistema opressor
e excludente, que tem como aparato todos os mecanismos do Estado a alicerçar ações
criminalizadoras e punitivistas, sendo o sistema judiciário um dos mais efetivos meios
de garantir tal conjuntura.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Dentre os que apoiam a prisão por condenação em segunda instância, há os que


argumentam que, em países desenvolvidos, a execução da pena pode ser realizada antes
do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Porém tal entendimento não
procede, pois mesmo em países de regime penal rígido como os Estados Unidos da
América, a prisão em geral se dá após esgotados todos os recursos.
Desse modo, ao estudarmos o sistema jurídico brasileiro, e mais
especificamente o penal, causa-nos espanto a disposição em encarcerar que existe, e
parece-nos que mais que isso, há uma predisposição em enviar para o cárcere aqueles
que praticam algum tipo de delito, existindo uma inversão onde a prisão deveria ser a
excepcionalidade, o último ato a ser executado no devido processo legal. Infelizmente
não é o que se observa, bastando para isso analisar as estatísticas do quantitativo de
pessoas encarceradas no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Dados Sobre a População


Carcerária do Brasil São Atualizados. Disponível em: https://www.gov.br/pt-
br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-
sao-atualizados. Acesso em 26 de jun. 2020.

CARVALHO, Salo de. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a


decisiva contribuição do poder judiciário. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte,
n.67, pp.623-652, jul. /dez.2015.
INFOPEN - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, junho/2016;
PNAD, 2015.

MARTINELLI, João Paulo Orsini. Direito penal parte geral: lições fundamentais /
João Paulo Orsini Martinelli, Leonardo Schmitti de Bem. - 5. ed. – Belo Horizonte, São
Paulo: D‘Plácido, 2020. 1354 p.
ONU. (DUDH) Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Organização das
Nações Unidas promulgada em 10 de dezembro de 1948:
Fonte: Agência Senado. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2018/12. Acesso: 05 de mar. 2021.
ROSA, Marcela Araújo; Stephannye de Pinho Arcanjo. O endurecimento de pena e
sua inefetividade: o caminho inverso e ineficiente do pacote anticrime.
Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2020, 7h02. Disponível
em: https://www.flickr.com/photos/pamwood707/5646757752.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 5

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UMA ANÁLISE CRÍTICA Á LUZ DA LEI MARIA


DA PENHA

DOMESTIC VIOLENCE: A CRITICAL ANALYSIS IN THE LIGHT OF THE MARIA


DA PENHA LAW

Milene Medeiros de Oliveira10


Anderson Rocha Rodrigues11

Resumo: O presente trabalho trata-se de uma análise crítica à luz da Lei Maria da
Penha e sua abordagem punitivista no sistema judicial criminal, ainda discute as
possíveis causas que levam a violência doméstica e a contribuição que a Lei Maria da
Penha acarretou no cenário jurídico brasileiro. Desse modo tem-se como problemática
de pesquisa o seguinte questionamento: A aplicabilidade da Lei Maria da Penha tem
sido satisfatória para sanar os casos de violência no Brasil? O objetivo dessa pesquisa é
dialogar teoricamente sobre as possíveis causas da violência doméstica no ambiente
familiar e as implicações da Lei Maria da Penha no cenário brasileiro. Entende-se que a
violência doméstica é considerada nos dias atuais um fenômeno social que cruzam
problemas da esfera política, social, cultural, da economia, da moral, do direito, da
psicologia, das relações humanas e institucionais, e do plano individual. Verifica-se que
a violência doméstica é um problema cuja prevenção tem que atuar, em primeiro lugar
na sensibilização e no avanço da consciência social.

Palavras-Chave: Lei Maria da Penha; Violência Doméstica; Fenômeno social;


Sensibilização; Consciência Social.

Abstract: The present work is a critical analysis in light of the Maria da Penha Law and
its punitive approach in the criminal justice system, it also discusses the possible causes
that lead to domestic violence and the contribution that the Maria da Penha Law brought
to the Brazilian legal scene. Thus, the following question is the research problem: Has
the applicability of the Maria da Penha Law been satisfactory to remedy cases of
violence in Brazil? The objective of this research is to theoretically dialogue about the
possible causes of domestic violence in the family environment and the implications of
the Maria da Penha Law in the Brazilian scenario. It is understood that domestic
violence is currently considered a social phenomenon that crosses problems in the
political, social, cultural, economic, moral, law, psychology, human and institutional
relations, and individual spheres. It appears that domestic violence is a problem whose
prevention has to act, in the first place, in raising awareness and in advancing social
awareness.

Keywords: Maria da Penha Law; Domestic violence; Social phenomenon; Awareness;


Social consciousness.

10 Especialista em Psicopedagogia, Bacharel em Direito e Licenciada em Letras Port/Inglês. E-mail:


milene.medeiros@unemat.br.
11 Mestre pela Universidade Católica de Petrópolis, RJ. Professor de Crime e Sociedade, Direito Penal e
Processual Penal da Faculdade de Miguel Pereira. Professor contrato temporário na UNEMT. E-mail:
profandersonrocharodrigues@gmail.com

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

INTRODUÇÃO

Considerando que a violência doméstica tem sido uma parte trágica na história
da humanidade, a qual faz parte da vida de muitos indivíduos e inserida no seio familiar,
discutir essa temática no ambiente da academia é uma possibilidade de inquietação com
todos esses atos de violência que cercam as famílias brasileiras. No Brasil, foi
promulgada a Lei 11.340/2006, a qual trata da violência doméstica, e é a partir dela que
discutimos os direitos adquiridos às mulheres.
Ao visualizar o cenário da violência doméstica através dos noticiários
televisivos em nível nacional, das conversas informais com a comunidade de Vila Rica-
MT, esses elementos me permitiram ter consciência da urgência que se faz em trazer
esse debate para o seio acadêmico. As indagações que nortearam o desenvolvimento do
trabalho foram: Como poderemos contribuir, com a reflexão sobre essa problemática
social? Quem são os sujeitos inseridos nesse fenômeno social? Quais são as causas que
desencadeiam esse processo violento? Onde a hipótese era a de que: É cogente e
imperioso que as autoridades públicas saiam da inércia e busquem alternativas para
sanar essa ―úlcera‖ que se estende em todo o sistema familiar brasileiro.
A desigualdade de gênero como um problema macro abrange a violência
doméstica, a qual é tida como um dos principais obstáculos para a garantia dos direitos
humanos e as liberdades fundamentais das mulheres. Uma nítida relação desigual de
gênero que perpetuaram à naturalização dessas violências, e consequentemente a
impunidade de seus agressores, e ainda como esse tema era silenciado com a falta de
discussão pública do fenômeno.
A estruturação desta pesquisa se configura em duas etapas: Na primeira
apresenta-se o resultado de uma pesquisa bibliográfica que teve como objetivo
compreender o aspecto conceitual, o processo histórico de estigmatização feminina e a
importância dos direitos fundamentais, das ações afirmativas e dos Tratados
Internacionais na luta de igualdade de direitos preconizados na Constituição Federal que
reza: ―Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações‖. Já a segunda etapa traz
uma abordagem da Lei Maria da Penha e quais foram às implicações no sistema
judiciário brasileiro, nos seus aspectos gerais e práticos e quais as inovações que essa lei
foi adquirindo nos últimos tempos.
A presente pesquisa é de cunho descritivo, uma vez que objetiva de forma
primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

estabelecimento de relações entre variáveis; e uma de suas características mais


significativas está na utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados. Elas estão
no âmbito das pesquisas sociais preocupada com atuações práticas (Gil, 2008). A
abordagem aplicada é qualitativa a qual visa trabalhar os dados buscando seu
significado, tendo como base a percepção do fenômeno dentro do seu contexto.
Assim sendo, a Universidade como espaço de ensino, pesquisa e extensão, o
desenvolvimento dessa pesquisa possibilitou a condição de contribuir com ações
realizadas no seio da sociedade de forma significativa, uma vez que a expectativa seja a
de despertar nas mulheres o senso de pertencimento e amor próprio que cada uma deve
carregar no ―peito‖.

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM PROCESSO DE


ESTIGMATIZAÇÃO FEMININA

Há uma notoriedade do crescimento de casos de violência doméstica em


território nacional, e até em nosso município. Décadas de submissão e desigualdades
produziram uma espécie de empoeiramento dos homens em relação às mulheres e junto
com eles a ideia nefasta da mulher como relação de objeto e prazer, estando sujeita aos
seus comandos e a todo tipo de violência, desrespeito e arbitrariedades.
Ninguém pode negar a história de inferiorização feminina desde o início da
civilização, eis que, a subordinação está expressa reiteradas vezes na Legislação vigente
de vários países, inclusive no Brasil, nas mais diversas épocas, demonstrando que as
mulheres não passavam de objetos de seus senhores (pais e maridos) e que sempre
viveram num mundo machista e preconceituoso de supremacia masculina, com
liberdade restrita e direitos suprimidos, anulados e ignorados.
A Carta Cidadã (Constituição Federal) de 1988 tornou-se um divisor de águas
para as questões de gênero, trazendo em seu art. 5º que todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza. O inciso I, do mesmo artigo, declara que homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (BRASIL, 1988, Art. 5,
I).

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Os anos finais da década de 1980 se tornam marco decisivo para a introdução


das discussões legais a respeito dos direitos fundamentais, vivia-se no país um período
antagônico de conquistas e recessões dos direitos sociais. Visualizava-se um período de
agravamento das expressões da questão social, do acirramento dos movimentos
políticos de amplos setores da população e a derrota da ditadura tornando-se inevitável
para a classe dominante a substituição do estado autocrático burguês para o regime
democrático.
Nesse sentido, a organização da classe ganhou tal magnitude que começou a se
criar as bases jurídico-institucionais para reverter boa parte daqueles traços de extrema
exploração e dominação. Traços estes, que configurariam na Constituição da República
Federativa do Brasil em 1988, se tornando uma consagração do avanço social através
das lutas conduzidas pelos setores populares por duas décadas. (Netto in Lebauspin:
1999). Esse aparato jurídico significou redução a níveis toleráveis de exploração, se
configurando em um novo pacto social:

Apontando para a construção pela primeira vez na história brasileira de uma


espécie de Estado de Bem-Estar Social (...) com isto, colocava-se o
arcabouço jurídico-político para implantar na sociedade brasileira, uma
política social compatível com as exigências de justiça social, equidade e
universalidade. (NETTO in LE-BAUSPIN, 1999, p.77).

Apesar desse movimento intenso de reflexões diante da nova ferramenta


garantidora de direitos, a Constituição Federal, buscou garantir direitos sociais para
todos os brasileiros buscando meios para afirmação dos direitos constitucionais.
Conforme afirma Perin (2010) ―nesse campo complexo e contraditório instala-se a
discussão sobre qual é a função do sistema jurídico na garantia dos direitos
constitucionais, quando, para sua efetivação, além de formalidades jurídicas, são
exigidos processos políticos para efetivação dos preceitos na Constituição Federal‖, e
ainda:

É nesse movimento contraditório que vem avançando, no campo formal, o


reconhecimento dos direitos sociais enquanto direitos que podem ser
cobrados e exercidos. Isso tem exigido um reposicionamento das estruturas
formais e uma busca de mecanismos inovadores que possam garantir a
conquista desses direitos. (COUTO (2010) apud PERIN, 2010, n. p.)

À luz da concepção de Perin é possível afirmar que é nessa essa dualidade que se
configura o reconhecimento dos direitos sociais, os quais passam a serem notados e a
história do pesar da mulher vem aos poucos ganhando outras nuances, sendo essas de
esperança de tempos melhores, os quais podem definitivamente exigir novos

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

comportamentos sociais e reestruturar o aparato jurídico, em benefícios daquelas que há


tantos anos foram tidas no esquecimento e na ―naturalização‖ de atos desumanos. Nesse
cenário de transformações ideológicas já tem a possibilidade de discutir o conceito de
violência de gênero.
A violência contra as mulheres em todas as suas formas (doméstica, psicológica,
física, moral, patrimonial, sexual, tráfico de mulheres, assédio sexual, etc.) é um
fenômeno que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, idades, regiões,
estados civis, escolaridade, raças e até mesmo a orientação sexual. É notório a
contribuição através das ciências humanas para compreender o que foi cogente para a
perpetuação desse comportamento por longas décadas.

LEI MARIA DA PENHA E SUAS IMPLICAÇÕES NO SISTEMA JUDICIÁRIO


BRASILEIRO

Segundo Fernandes (1994) o porquê da denominação da Lei Maria da Penha


remete-se ao ano de 1983, no dia 29 de maio desse mesmo ano, na cidade de Fortaleza,
no estado do Ceará, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto
repousava foi atingida por um tiro de espingarda desferido por seu então marido, o
economista, colombiano de origem e naturalizado brasileiro. Esse tiro atingiu a vítima
em sua coluna, destruindo a terceira e a quarta vértebras, lesões essas que a deixou
paraplégica. Esse desfecho denominou-se devido a um relacionamento conturbado,
pontilhado por diversas agressões de seu marido e também contra as filhas do casal.
Ela foi vítima de duas tentativas de homicídio perpetrada pelo seu esposo, que
de início fora negada por ele, porém as provas obtidas no inquérito policial o
incriminaram e se revelaram suficientes para embasar a denúncia ofertada pelo
Ministério Público, na data de 28.09.1984, perante a 1ª vara Criminal de Fortaleza. O
réu foi pronunciado em 31.10.1986, sendo levado a júri em 04.05.1991 e condenado.
Contra essa decisão apelou à defesa, suscitando nulidade decorrente da falha na
elaboração dos quesitos. Acolhido o recurso, o réu foi submetido a novo julgamento no
dia 15.03.1996, quando restou condenado a pena de dez anos e seis meses de prisão.
Dessa sentença seguiu novo apelo e recursos dirigidos aos tribunais Superiores,
e somente em setembro de 2002 passados mais de 19 anos da prática dos atos
delituosos, foi seu autor preso, sendo que não cumpriu 1/3 em regime fechado. Foi

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

preso em setembro de 2002, e posto em regime aberto, retornando para o Estado do Rio
Grande do Norte.
É de suma importância frisar que à época que foi perpetrado o crime, no ano de
1983, ainda não entrará em vigor a Lei 8.930/1994, a qual classifica o homicídio
qualificado como crime hediondo, sendo o fator de permissão a progressão do regime
aberto ao apenado.
Maria da Penha expôs a sua história a toda sociedade, como forma de
contribuir com transformações pelos direitos das mulheres a uma vida sem violação dos
seus direitos fundamentais, seu caso se tornou litígio emblemático internacional para o
acesso à Justiça e para a luta contra a impunidade em relação à violência doméstica
contra as mulheres no Brasil e no mundo. O caso em tela chegou ao conhecimento da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da organização dos Estados
Unidos em 20 de agosto do ano de 1998 denunciado pela própria Maria da Penha. Essa
provocação resultou na confecção de um Relatório 54/2001, o qual foi publicado em 16
de abril de 2001 e abriu espaço devido à repercussão internacional aos debates sobre o
tema e após cinco anos com o advento da Lei Maria da Penha.
Vale ressaltar para fechamento do caso que na época do relatório a situação
jurídica relativa ao processo ainda não estava definida, eis que o autor somente foi preso
em setembro de 2002 e pela inércia da justiça brasileira o teor do relatório se tornou
público e ficou preso apenas dois anos e hoje cumpre a pena em liberdade.
Dentre as deliberações tomadas pela Comissão Internacional dos Direitos
Humanos, teve-se o pagamento de uma indenização de 20 mil dólares em favor da
Maria da Penha, em decorrência do dano sofrido. Após 25 anos de espera ela recebe do
estado do Ceará uma indenização no valor de 60 mil reais.
Maria da Penha se tornou uma militante na defesa dos direitos das mulheres
coordenando em 2006 a Associação dos Parentes e Amigos da Violência Doméstica
(APAVV) em Fortaleza/CE, e ainda relata em um discurso cedido ao G1 que é
impossível calcular o prejuízo causado pelo tiro disparado pelo ex-marido.
A Lei Maria da Penha 11.340/2006 incorpora ao ordenamento jurídico e cria
mecanismos de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesse caso a
ofendida passa a contar com esse precioso estatuto de caráter repressivo, mas, sobretudo
preventivo e assistencial.
Com base na jurisprudência para configurar violência doméstica não há a
necessidade que as partes sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

casados, uma vez que a união estável se encontra sob o manto protetivo da lei. A
violência doméstica é definida como:

Todo tipo de violência praticada entre os membros que habitam um ambiente


familiar em comum. Pode acontecer entre pessoas com laços de sangue
(como pais e filhos), ou unidas de forma civil (como marido e esposa ou
genro e sogra) e caracteriza-se por apresentar qualquer conduta ou omissão
de natureza criminal, reiterada e/ou intensa ou não, que inflija sofrimentos
físicos, sexuais, psicológicos ou econômicos, de modo direto ou indireto, a
qualquer pessoa que resida habitualmente no mesmo espaço doméstico
(BRASIL, 2007, p. 32).

Admite se ainda que o sujeito ativo seja tanto homem quanto mulher, bastando
a existência da relação familiar ou afetividade, nesse caso o gênero do agressor não tem
importância. Já o sujeito passivo abarcado pela lei, exige uma qualidade especial: ser
mulher, seja as lésbicas, os transgêneros, as transexuais, as travestis desde que tenham
identidade com o sexo feminino.
No pólo passivo não são apenas as esposas, companheiras, namoradas ou
amantes que estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica destaca-se
as filhas, netas do agressor, bem como, a mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que
mantém vínculo familiar e podem integrar o pólo passivo da ação delituosa. (TJM, HC
1.0000.09.513119-9/000, j.24.02.2010, rel. Júlio Cezar Gutierrez). A lei ainda prevê
uma majorante ao crime de lesão corporal em sede de violência doméstica conforme
cita (CP, art.129, § 11): ―se o crime for cometido contra pessoa portadora de
deficiência‖, seja qual for o sexo do deficiente físico, a pena de seu agressor é dilatada.
Segundo Rogério Sanches e Ronaldo Batista (2008), a constitucionalidade da
lei foi questionada ―num primeiro momento por parecer discriminatório e tratar a
mulher como ―eterno‖ sexo frágil, deixando o homem desprotegido, presumidamente
impotente‖, porém a tese da inconstitucionalidade não foi aceita nos Tribunais, mesmo
antes da decisão da paradigmática decisão do Supremo Tribunal Federal art.41, item 6
onde analisa-se a decisão do STF a respeito da constitucionalidade de vários
dispositivos legais da Lei Maria da Penha. Essa jurisprudência relata sobre a
constitucionalidade da lei12.
Compreende-se que a lei nasce de uma desvantagem da condição de ser
mulher, condição física e ao mesmo tempo de livrá-las de uma cultura patriarcal e
machista arraigada há séculos na cultura do povo brasileiro. Assim como seu teor não é
perfeito, assim como as outras leis, porém apresenta uma estrutura adequada a fim de
12 TJSP. Conflito de jurisdição 150.521-0/8. Rel. Maria Olívia Alves, j. 08.10.2007. Disponível em:
<http://www.tj.sp.gov.br/>. Acesso em: 20 abr. 2010.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

atender a complexidade do fenômeno da violência doméstica ao prever mecanismos de


prevenção, assistência às vítimas, bem como políticas públicas e punição mais rigorosa
aos agressores.

BENEFÍCIOS CONQUISTADOS À LUZ DA LEI MARIA DA PENHA

Verifica-se a necessidade de maior proteção à mulher, em razão dos inúmeros


fatores elencados nessa pesquisa, e também em razão do maior número de infrações
contra elas cometidos no âmbito doméstico afirma assim a importância da
aplicabilidade da lei.
A lei traz em seu corpo alguns benefícios importantes para as mulheres. O
primeiro deles é com relação às mulheres servidoras públicas em situação de risco
podem ser transferidas para outros locais de trabalho, bem como trabalhadoras da
iniciativa privada, alterações essas em decorrência da Lei 13.984/2019:

Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar


será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes
previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde,
no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas
públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.§ 2º O juiz
assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para
preservar sua integridade física e psicológica: I - acesso prioritário à remoção
quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; II -
manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local
de trabalho, por até seis meses. III - encaminhamento à assistência judiciária,
quando for o caso, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação
judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união
estável perante o juízo competente. (Incluído pela Lei nº 13.894, de 2019)

Ainda no que se refere às trabalhadoras de iniciativa privada poderão pedir


afastamento por até seis meses, sem a perca do vínculo empregatício, e ainda a
determinação do encaminhamento de mulheres em situação de violência a programas e
serviços de proteção extensivos à prole e dependentes.
A autorização e criação de Juizados Especiais da Violência Doméstica e
Familiar que serão órgãos da justiça ordinária com competência cível e criminal,
podendo ser criados pelos Estados, pela União, pelo Distrito Federal e pelos territórios.
Ainda ressaltamos dentre outros avanços:

§ 3º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar


compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento
científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a
profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos


necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.

À luz do §3º no que diz respeito à violência sexual a vítima dessa situação tem
direito a assistência e acesso aos benefícios e procedimentos médicos necessários para
prevenção da vida. Ainda temos como avanços garantidos na Lei, a obrigatoriedade de:

§ 4º Aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou
psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir
todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS),
de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados
para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e
familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente
federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.(Vide
Lei nº 13.871, de 2019) (Vigência)

Nessa perspectiva de direitos garantidos à luz da Lei Maria da Penha, destaca-


se a responsabilização do agressor em arcar com as despesas financeiras oriundas de
atos de violência doméstica, ou seja, o autor de violência doméstica ou familiar também
será obrigado ao ressarcimento dos gastos com o SUS. Nesse último caso, o Estado
poderá cobrar do agressor os valores gastos para o tratamento da vítima e os recursos
obtidos serão destinados ao ente da federação que prestou o serviço de saúde. Como
reza que:

§ 5º Os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente


e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou
familiar amparadas por medidas protetivas terão seus custos ressarcidos pelo
agressor. § 6º O ressarcimento de que tratam os §§ 4º e 5º deste artigo não
poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus
dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar possibilidade de substituição
da pena aplicada.

O autor da violência doméstica terá a obrigação de ressarcir com os gastos


relativos aos equipamentos de monitoramento e segurança, a exemplo, botão de
segurança, para acionar a polícia, em caso de perigo representado pelo agente. A
obrigação de ressarcimento por parte do autor de violência doméstica ou familiar não
pode atingir o patrimônio da mulher e dos seus dependentes, ou seja, o dinheiro vai ter
que sair do bolso do agente.
Além disso, a lei proíbe que os ressarcimentos sejam usados como atenuantes
ou para fins de substituição da pena. É importante lembrar que a obrigação de
ressarcimento por parte do autor de violência doméstica ou familiar não depende do
trânsito em julgado de eventual condenação. O autor pode ser acionado na esfera cível,
sem necessidade de aguardar o resultado na esfera penal. Assim, a lei tem como

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

principal objetivo encorajar as mulheres vítimas de violência doméstica a denunciarem


seus agressores, e com isso coibir e prevenir a violência doméstica no âmbito familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa propiciou compreender as seguintes interrogativas que nos


angustiavam quando iniciou esse estudo. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha tem
sido satisfatória para sanar os casos de violência no Brasil? É possível dialogar
teoricamente sobre as possíveis causas da violência doméstica no ambiente familiar
tendo como norte as implicações da Lei Maria da Penha?
Os resultados da pesquisa reafirmam que a violência contra as mulheres é
reconhecida como violência de gênero, processo esse marcado pela estigmatização
feminina durante toda a história da humanidade. E como isso pôde perdurar por tantos
séculos? Pois a mulher nesse processo de estigmatização ela própria se convence da
inferioridade e dependência ao homem, e passa a agir consoante a este estigma.
Esse panorama teórico embasa a atitude de muitas mulheres vítimas de
violência doméstica que buscam justificar os atos de violência de seus companheiros e
renunciam por inúmeras vezes, ao direito de representação, de queixa nos processos
criminais, chegando ao absurdo de se culpabilizar pelas crises conjugais que
desencadearam esses atos de violência.
As ciências humanas como a Sociologia e a Antropologia buscaram na
categoria de gênero demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes
entre homens e mulheres, que repercutem na esfera da vida pública e privada, impondo
a cada um, papéis sociais diferenciados, que foram construídos historicamente criando
assim pólos de dominação. O caso mais emblemático do Brasil com relação à violência
doméstica foi o ocorrido com a Sra. Maria da Penha e foi também o baluarte do
movimento feminista, em prol da luta pela legislação penal analisada que enrijeceu os
delitos que envolvem a violência doméstica.
Espera-se ter contribuído para o esclarecimento desse tema tão divergente, bem
como para a conscientização da sociedade e também para os operadores de direito
acerca do estigma da mulher, de forma a buscar mecanismos para coibir a violência de
gênero. Nada justifica qualquer violência por parte dos homens contra suas ex-
companheiras, contra qualquer mulher. Os homens precisam compreender e respeitar o
fim de um relacionamento amoroso, e se a decisão é não, isso tem que ser

65
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

RESPEITADO. Verifica-se que, a violência doméstica é um problema cuja prevenção


tem que atuar, em primeiro lugar na sensibilização e no avanço da consciência social e o
espaço da escola, através do processo educacional se torna uma das ferramentas de
combate a esse tipo de atitude comportamental que afeta a vida das mulheres no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm . Acesso
em: 02 de fevereiro de 2021.

BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em:


https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/educacao-em-direitos-
humanos/plano-nacional-de-educacao-em-direitos-humanos#:~:text=O%20Plano
%20Nacional%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o,solidariedade%20e%20do
%20respeito%20%C3%A0s. Acesso em 04 de julho de 2021.

LESBAUPIN, I. (Org). O Desmonte da nação: balanço do governo FHC. 2. ed.


Petrópolis: Ed. Vozes, 1999. v. 1.

NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. 2. ed. São Paulo:
Cortez, 1995.

PENHA, Maria da. Antes de tudo, uma forte. Entrevista concedida à revista Leis e
Letras, n. 6, ano II, p. 20-24, Fortaleza, 2007.

PERIN, S. D. Serviço Social no Ministério Público: um mundo a desvendar e


identidade (s) a construir. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, 2010.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 6

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES: MEDIDAS DE


ENFRENTAMENTO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

DOMESTIC VIOLENCE AGAINST WOMEN: COPING MEASURES DURING THE


COVID-19 PANDEMIC

Eva Karolina Griebeller Ferreira13


Antônio Leonardo Amorim14
Meiriany Arruda Lima15
Ernestina Norinha de Lima Sousa16

Resumo: Diante do cenário de pandemia do Covid-19, o mundo entrou num contexto


totalmente peculiar. Somado ao medo e a insegurança do contágio no novo vírus, nos
encontramos diante de uma situação alarmante. As medidas de restrição de circulação
adotadas por países de todo o mundo agravaram ainda mais a situação da violência
doméstica contra as mulheres. No Brasil os números de mortes de mulheres
aumentaram drasticamente, porém a diminuição das denúncias de violência causou uma
falsa sensação de normalidade jurídica. Diante disso, o governo brasileiro, apesar de
escassa as medidas de enfrentamento, criou lei que garantisse o atendimento das vítimas
de violência doméstica durante a pandemia do Covid-19, com o objetivo de minimizar
os impactos do isolamento social nas vidas das mulheres vítimas de violência
doméstica. Importantes fontes de dados, como o Fórum Brasileiro de Segurança pública,
através do seu Anuário de Segurança pública, forneceram dados e, mais do que isso,
alertaram para a grave situação encontrada no contexto de violência doméstica contra
mulheres no país. Essa pesquisa busca analisar as medidas de enfrentamento durante a
pandemia do Covid-19 em relação a violência doméstica contra mulheres no Brasil.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Gênero; Pandemia da Covid-19; Violência


Doméstica.

Abstract: Faced with the Covid-19 pandemic scenario, the world entered a totally
peculiar context. Added to the fear and insecurity of contagion with the new virus, we
are faced with an alarming situation. Circulation restriction measures adopted by
countries around the world have further aggravated the situation of domestic violence
against women. In Brazil, the number of deaths of women has increased dramatically,
but the decrease in reports of violence has caused a false sense of legal normality. In
13 Graduada em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), e-mail:
cavalcantebatistaa@gmail.com.
14 Doutorando Doutorando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES
(2022), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019), bolsista
CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (2012-2016) -
Unidade de Naviraí/MS, pesquisador de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito da Criança
e Adolescente. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), foi Coordenador do
Grupo de Pesquisa Novas Perspectivas do Direito Penal (2019-2021), e-mail:
amorimdireito.sete@hotmail.com.
15 Doutoranda em Saúde Coletiva no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade
de Brasília. Mestra em Bioética pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de
Brasília (2020), e-mail: meiriany.lima@unemat.br.
16 Servidora na Universidade do Estado de Mato Grosso, Unidade de Vila Rica/MT.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

view of this, the Brazilian government, despite the scarcity of coping measures, created
a law to guarantee the care of victims of domestic violence during the Covid-19
pandemic, with the objective of minimizing the impacts of social isolation in the lives of
women victims of domestic violence. Important data sources, such as the Brazilian
Public Security Forum, through its Public Security Yearbook, provided data and, more
than that, alerted to the serious situation found in the context of domestic violence
against women in the country. This research seeks to analyze the coping measures
during the Covid-19 pandemic in relation to domestic violence against women in Brazil.

Keywords: Human rights; Genre; Covid-19 Pandemic; Domestic violence.

INTRODUÇÃO

A violência contra as mulheres é uma realidade que se inicia, praticamente, na


origem da humanidade. Desde os povos mais antigos, é sabido que a mulher vem de um
contexto de submissão e inferioridade. Com o passar dos anos, a passos lentos e com
grande dificuldade, as mulheres foram em busca de seus direitos. As conquistas como o
direito ao estudo, a escrita e ao voto foram sendo conquistados nos últimos séculos,
acontecimentos recentes na história longa das mulheres em busca dos seus direitos.
No Brasil não foi diferente, as mulheres, após muitas lutas e mobilizações
conseguiram o direito ao voto, e posteriormente na Constituição de 1988 conquistaram
o direito a igualdade de gênero.
Apesar dos esforços contínuos, a violência contra as mulheres permeia até a
atualidade. Mobilizações e campanhas parecem não surtir efeitos diante dos números
alarmantes de casos de feminicídios e denúncias de casos de violência doméstica.
Mesmo após a principal lei criada para combater a violência doméstica contra as
mulheres, a Lei Maria da Penha, centenas de milhares de casos são registrados todos os
anos no país.
Em 2020 somando-se ao cenário de aumento de casos de violência doméstica
contra mulheres a pandemia do Covid-19. O mundo inteiro se depara com uma
realidade assustadora, o surto do novo coronavírus e sua alta propagação por diversos
países. À medida que o vírus se alastra, os governos da maioria dos países adotam
meios de enfrentamento ao novo vírus, dentre eles, o principal é o isolamento social,
que obrigava as pessoas a permanecerem em suas residências, sem contato com
qualquer indivíduo que não seja sua família.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

PANDEMIA DA COVID 19 E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China, é observado um novo


coronavírus, causador da infecção COVID-19. Os primeiros casos de COVID-19 foram
confirmados num grupo de pessoas que estiveram no mercado popular de Wuhan, onde
eram vendidos vários tipos de animais selvagens vivos, como cobras, morcegos e
castores, que podem ter sido os transmissores do vírus, de um animal doente para as
pessoas. Os pacientes apresentaram sintomas semelhantes, o diagnóstico era de uma
pneumonia.
No mesmo mês do surto, em dezembro de 2019, a China envia um relatório a
OMS (Organização Mundial da Saúde), relatando a situação e comunicando que o
primeiro paciente com sintomas da doença foi registrado em Wuhan, em 8 de dezembro
de 2019. Em janeiro de 2020 a OMS publica um comunicado relatando 44 casos de
―pneumonia de causa desconhecida‖ na cidade de Wuhan na China. Desde então, a
OMS investiga as origens da pandemia.
Logo após os primeiros casos do vírus 2019-nCoV surgiram vários outros
pacientes com os mesmos sintomas. Pelo fato de o vírus infectar os pulmões, causando
tosses e espirros, torna a doença super contagiosa e seu alastramento muito rápido. Em
janeiro de 2020, apesar das notificações serem concentradas na cidade originária,
Wuhan, também já havia casos na Tailândia, no Japão, na Coreia do Sul e nos Estados
Unidos, todos envolvendo pessoas que eram de Wuhan ou visitaram a cidade chinesa.
Em 9 de fevereiro de 2020, trinta e quatro brasileiros que viviam na cidade
chinesa de Wuhan foram repatriados, por meio de duas aeronaves da Força aérea
Brasileira. Eles ficaram de quarentena por 14 dias na Base Aérea de Anápolis, no Goiás.
No Brasil, após 54 casos suspeitos descartados, o primeiro caso confirmado foi em 26
de fevereiro, em São Paulo. O paciente era um homem de 61 anos que viajou a Itália.
Até 2 de março apenas houve confirmação de 2 casos no Brasil e monitoramento de 433
casos suspeitos. Em 6 de março de 2020 chega a 13 o número de casos confirmados no
Brasil, assim o Ministério da Saúde anuncia a ampliação de medidas no enfrentamento
do coronavírus no Brasil.
Em 11 de março de 2020 a OMS declarou pandemia de coronavírus e o
Ministério da Saúde atualiza para 52 o número de casos confirmados de infecção por
coronavírus, sendo 6 casos por transmissão local e 46 casos importados. Em 12 de
março o Ministério da Saúde lança edital com 5.811 vagas para médicos com CRM

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Brasil atuarem nos postos de saúde por meio do Programa Mais Médicos. Em 13 de
março é regulamentado critérios de isolamento e quarentena aplicados em pacientes
com suspeita ou confirmação da doença. Nessa data também houve a cura do primeiro
paciente diagnosticado com coronavírus no Brasil.

MEDIDAS DE RESTRIÇÃO DE CIRCULAÇÃO DE PESSOAS EM TODO


TERRITÓRIO NACIONAL

Em 16 de março de 2020 os 234 casos confirmados fazem o Brasil entrar em


uma nova fase, a de estratégia de contenção do covid-19, que é criar medidas de
prevenção. Em 17 de março é notificada a primeira morte por covid-19, um homem de
62 anos com histórico de diabetes e hipertensão. Rio de Janeiro decreta situação de
emergência e define medidas temporárias para prevenção de contágio, suspendendo por
15 dias eventos e atividades com presença de público, visitas as unidades prisionais e
aulas nas redes públicas e privadas, além de outras medidas.
Portaria do Governo Federal torna crime contra a saúde pública a recusa ao
isolamento e a quarentena e prevê detenção de um mês a um ano, além de multa, a
quem descumprir as medidas sanitárias preventivas. Em 21 de março sobe para 18 o
número de mortes registradas por coronavírus. O presidente Jair Bolsonaro determina
quais serviços essenciais para funcionamento do país que não podem parar em meio a
pandemia do novo coronavírus.
Em 27 de março de 2020 os dados são atualizados para confirmação de 3.027
pessoas contaminadas e 92 o número de óbitos. No dia 6 de abril de 2020 o Governo
federal publica novas orientações sobre medidas diferenciadas quanto ao distanciamento
social: saída do distanciamento social ampliado para o distanciamento social seletivo,
com o objetivo de promover o retorno gradual das atividades laborais sem levar a uma
explosão de casos que não possam ser absorvidos pelo sistema de saúde.
Em 10 de abril de 2020 o número de mortes chega a 1.074 e 19.943 casos
confirmados da Covid-19 no Brasil. Em 16 de abril de 2020 o Presidente da República
Jair Bolsonaro decide exonerar o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandeta, e quem
assume o ministério é o médico oncologista e empresário Nelson Teich.
O número de casos confirmados em 8 de maio de 2020 chega a 136.519 e
9.265 óbitos. São Paulo prorroga quarentena até 31 de maio. Rio de Janeiro considera
possibilidade de decretar lockdown em todo o estado, com bloqueio de estradas e
restrição de circulação.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Brasil supera a marca de 10 mil óbitos decorrentes do novo coronavírus.


Congresso Nacional decreta luto oficial de três dias devido aos mais de 10 mil óbitos
pela Covid-19. Em nota, presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do
Senado, Davi Alcolumbre, afirmam que o Parlamento não está indiferente à situação.
Supremo Tribunal Federal também decreta luto oficial de três dias. O presidente da
Corte, Dias Toffoli, pede união entre os poderes e ação coordenada amparada na ciência.
O Poder Executivo não se manifesta.
Em 11 de maio de 2020 o governo de Pernambuco decreta lockdown na capital,
Recife, e em quatro cidades da região metropolitana: Olinda, Jaboatão dos Guararapes,
Camaragibe e São Lourenço da Mata. Juntas, as cidades são responsáveis por 77% dos
casos confirmados e 68% das mortes decorrentes da contaminação pelo novo
coronavírus. O estado tem 13.768 diagnósticos de Covid-19 e 1.087 óbitos.
Presidente da República decide incluir atividades industriais, construção civil e
salões de beleza, academias e barbearias na lista de atividades essenciais. Medida
permite que esses setores funcionem durante o período de pandemia do novo
coronavírus. Os estados e municípios, no entanto, têm a prerrogativa de ignorar a
determinação federal, após entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Coronavírus se torna a maior causa de mortes no Brasil atualmente. A doença
supera o conjunto de todas as doenças cardiovasculares, que matam 980 pessoas por dia.
Também deixa para trás mortes diárias por câncer (624) e acidentes e violência (413).
O número de casos confirmados salta para 271.628. O total mantém o Brasil como
terceiro país do mundo em casos de coronavírus. País está atrás apenas dos Estados
Unidos (cerca de 1,5 milhão) e Rússia (299 mil casos).
No Brasil, as medidas de restrição de circulação, minimizada desde o início
pelo poder Executivo, se tornaram mais rigorosas gradativamente, sendo adotadas
medidas pelos estados e municípios, com o objetivo de conter a propagação do vírus e
evitar que o sistema de saúde entre em colapso.
Em março o governo federal, através da Instrução Normativa 19 do Ministério
da Economia, aplicou teletrabalho para servidores federais pertencentes a grupos de
risco, e também Decretou a Medida Provisória nº 927, que permitiu teletrabalho,
antecipação de férias individuais e coletivas, compensação de horas e antecipação de
feriados.
Já os Estados e Municípios tomaram maiores medidas para conter a
propagação do vírus, ao proibir por exemplo eventos com aglomerações, fechar

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

unidades de ensino, proibir agrupamentos em locais públicos, suspensão ao comercio e


serviços não essências, suspensão do transporte rodoviário intermunicipal e turístico,
isolamento social obrigatório, proibição de frequentar praias, rios, lagoas e piscinas,
suspensão do funcionamento de academias de ginastica, shoppings centers e
atendimento de agencias bancarias, proibição de frequentar parques.
Diante das medidas adotadas para conter a propagação em grande escala do
coronavírus, inevitavelmente a maior parte da população foi obrigada a ficar em casa,
sem poder sair a qualquer tipo de ambiente público. Consequentemente, as mulheres
vítimas de violência doméstica se viram em uma situação de maior dificuldade, por
estarem no ambiente mais vulnerável, a própria residência, sem poder sair e convivendo
muitas vezes com o próprio agressor.

DADOS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE A PANDEMIA DA COVID 19

Desde o início da pandemia do Covid-19, países de todo o mundo ficaram


diante de um cenário assustador – aumento de casos de infecção da doença seguido de
óbitos crescentes. Mas, não bastasse isso o Brasil diante também, infelizmente, do
crescimento de ocorrências de violência doméstica. Apesar de que milhares dessas
vítimas já experimentavam dessa situação antes da pandemia, a situação se agravou em
razão do novo contexto ocasionado pelo isolamento social, que apesar de eficaz para
conter a propagação do vírus, fez com que elas convivessem mais tempo e de maneira
mais intensa com o agressor, que na maioria das vezes é o próprio parceiro.
Conforme os países ao redor do mundo foram decretando quarentena, foi
observado o aumento dos casos de violência doméstica. Apesar de países como França,
Espanha e China registrarem aumento de ocorrências e solicitações em números de
ajuda, outros países como Itália e Brasil perceberam a diminuição no número de
denúncias. Isso pode ter acontecido pelo fato de que nestes países, para a denúncia do
crime doméstico é necessário a presença da vítima para a instauração do inquérito,
sendo então impossibilitada por causa das medidas de distanciamento social e maior
permanência em casa.
Nesse aspecto, Pimentel e Martins (2020, p. 38) complementam:

Assim, a diminuição do registro de algumas ocorrências neste período


representa menos uma redução de casos de violência contra a mulher e mais
as dificuldades e obstáculos que as mulheres encontraram na pandemia para
denunciar a situação de abuso a que estão submetidas, além da instabilidade
sofrida no período pelos serviços de proteção, com diminuição do número de

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

servidores e horários de atendimento e aumento das demandas. Esses fatores


foram confirmados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quando
realizou monitoramento dos registros de ocorrências de feminicídios,
homicídios de mulheres, lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de
vulnerável e concessões de medidas protetivas de urgência em 12 Ufs
brasileiras entre os meses de março, abril e maio deste ano, constatando que
durante esse período, houve queda no registro da maior parte desses crimes,
com exceção da violência letal contra as mulheres, que apresentou
crescimento.

De acordo com dados divulgados pelo comitê parlamentar de violência contra


as mulheres, segundo os relatórios da polícia sobre abuso doméstico caiu para 652 nos
primeiros 22 dias de março, comparado a 1.157 no mesmo período de 2019. Além disso,
o Telefone Rosa, maior linha de apoio a violência doméstica contra mulheres do país,
registrou uma queda de 55% desde o início do isolamento, sendo registradas apenas 496
chamadas, comparado a 1.104 no mesmo período do ano anterior.
Ao comparar os números trazidos pelo Anuário Brasileiro de Segurança
Pública acerca da violência doméstica contra mulheres no primeiro semestre de 2019 e
2020, pode-se observar que, no primeiro semestre de 2020 houve uma redução dos
registros de lesão corporal dolosa (-10,9%), ameaça (-16,8%), estupro (-23,5%) e
estupro de vulnerável (22,7%), e, em contra partida, verificou-se um aumento nos
registros de violência letal contra mulheres (+0,8%) e feminicídios (+1,2%) no mesmo
período. Além disso, o registro de ligação para o 190 cresceu 3,9%. Ao analisar esses
dados, é possível verificar que, aqueles crimes em que depende da presença da vítima
nas delegacias houve queda.
Isso quer dizer que, se a violência contra as mulheres foi acentuada na
pandemia e os registros dos mesmos apresentaram queda, as vítimas então enfrentaram
dificuldades para realizar a denúncia, e essa dificuldade não foi causada por motivos
particulares das mesmas, mas sim pela ausência de meios de enfrentamento adotadas
pelo governo para auxiliar as vítimas de violência nesse cenário tão complicado.
Apesar da ONU ter feito uma série de recomendações aos governos do mundo
inteiro a respeito da necessidade de investimentos em serviços de atendimento online,
serviços de alerta de emergências em locais como farmácias e supermercados e criação
de abrigos temporários, nem todos os países tomaram tais medidas como prioridade.
A relatora especial da ONU sobre Violência contra a Mulher, Dubravka
Simonovic, alerta que Covid-19 intensificou risco de violência doméstica e que

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

―Governos não devem permitir que circunstâncias extraordinárias e medidas restritivas


contra a COVID-19 violem o direito das mulheres a uma vida livre de violência‖17.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES É UMA PANDEMIA?

Pandemia é uma palavra de origem grega, formada pelo prefixo neutro pan e
demos, que significa povo, e foi usada pela primeira vez por Platão num sentido
genérico, referindo-se a qualquer acontecimento capaz de alcançar toda a população.
Galena também usou o termo pra se referir a doenças epidêmicas de grande difusão.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pandemia é a
―disseminação mundial de uma nova doença e o termo passa a ser usado quando
uma epidemia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes
com transmissão sustentada de pessoa para pessoa‖18.
De acordo com esse conceito, pandemia pode ter como característica principal
a sua abrangência extensa, ou seja, que está presente na maioria dos países do mundo,
senão todos. Nesse sentido, a violência doméstica contra mulheres tem sido chamada de
―Pandemia das Sombras‖, isso porque no contexto do Covid-19, o aumento do número
de feminicídios em contra partida da diminuição do número de denúncias, faz com que
a vítima tenha enfrentado dificuldades ao buscar ajuda. Vemos então uma pandemia
crescente nas sombras da Covid-19, a da violência contra as mulheres. Além disso, essa
violência se tornou ainda mais silenciosa do que já era, progredindo sem ser
identificada.
É sabido que, antes do surgimento do Covid-19, a violência doméstica já era
uma das principais preocupações de violação de direitos humanos. Conforme dados da
ONU, ―nos 12 meses anteriores ao surgimento da COVID-19, aproximadamente 243
milhões de mulheres e meninas (de 15 a 49 anos) em todo o mundo foram submetidas à
violência sexual ou física por um parceiro íntimo‖ (ONU, 2020).
A pandemia do Covid-19 trouxe uma realidade nova a todos os países do
mundo, as medidas de quarentena e isolamento social foram adotadas com o objetivo de
diminuir a propagação da doença. Por outro lado, a situação das mulheres vítimas de
violência doméstica piorou diante desse cenário de confinamento, ao serem obrigadas a
permanecer dentro de suas residências juntamente com o agressor. Nesse aspecto, se

17 Informação obtida em: https://brasil.un.org/pt-br/85372-relatora-da-onu-estados-devem-combater-


violencia-domestica-na-quarentena-por-covid-19.
18 Informação retirada em: https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-uma-
pandemia).

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

torna muito mais difícil acionar o sistema de proteção quando a vítima está o tempo
todo na presença do agressor. Somada a essa dificuldade está o fato de que ao sair de
casa, a vítima romperá com o isolamento, ficando vulnerável à doença, e também a
indisponibilidade dos serviços públicos causados pelo lockdown – medida adotada por
diversas cidades do país.
Outro ponto importante é que a violência doméstica não atinge somente suas
vítimas, mas também se configura como um problema de toda a sociedade em diversos
aspectos.
As agressões domésticas as mulheres atingem também os direitos de crianças e
adolescente, que convivem com essa situação dentro de seus lares. Não obstante,
também se trata de um impasse econômico, ao corresponder a um custo global de
aproximadamente 1,5 trilhão de dólares. Isso significa que essa violência não atinge
somente a vítima, apesar da mesma ser a principal preocupação, com todo sentido, para
todos que enfrentam a extinção da violência doméstica. Esse problema vai além,
traumatiza milhares de crianças, adolescentes e se torna um gasto desproporcional aos
cofres públicos. A tendência desse número é aumentar agora e continuar após a
pandemia. Assim, reduzir a violência doméstica contra as mulheres também é um
investimento em estabilidade econômica.
Nesse sentido, Gisele Meneses do Vale e Júlia Sousa (2020, p. 3), em seu artigo
―A pandemia das sombras: como o período de quarentena pode intensificar a violência
doméstica?‖, destacam:

Nessa esteira, bom seria se também voltássemos nossos esforços para


combater a violência contra a mulher com o mesmo empenho que nos
prevenimos do coronavírus, já que a violência doméstica é também uma
doença social presente nos lares de todo o mundo.

E, complementam (VALE; SOUSA, 2020, p. 3):

Posto tudo isso, a convergência entre aquilo que é privado e os valores


coletivos se torna ainda mais necessária diante desse cenário. O setor público,
a iniciativa privada, a academia e a sociedade civil organizada precisam, mais
do que nunca, andar de mãos dadas no que diz respeito aos desafios acerca da
violência doméstica. Precisamos ininterruptamente estar atentos e atentas às
tantas vulnerabilidades enfrentadas pelas mulheres frente à essa pandemia,
bem como quanto aos seus desdobramentos no tecido social.

Podemos considerar que a violência doméstica é uma pandemia, pelo fato de


que esse fenômeno está presente em praticamente todos os lares ao redor mundo e por
perpetrar século após século na cultura do ser humano.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O histórico das dificuldades com que as mulheres lidam nos remonta desde a
centenas de anos atrás. Desde a origem das sociedades o papel de inferioridade das
mulheres predomina diante de um mundo praticamente machista. As mulheres sempre
foram destinadas as tarefas domésticas e cuidado com os filhos e, desde o início, o que
predominava na civilização é o patriarcado, onde o homem desempenha o papel de
chefe da família e sujeito de direitos na sociedade.
No Brasil, desde seu descobrimento, não foi diferente. O Brasil Colônia,
passando para o Império e chegando na República, as mulheres não tinham direitos
diante da sociedade. Além de estarem restritas as tarefas domésticas, sofriam abusos e
violências, mas não possuíam o direito de justiça diante da situação. Além disso, o
pouco que se tinha na época de regulamentação de direitos, como a Ordenação das
Filipinas, dispunha da mulher como sujeito incapaz de raciocinar, desprovida de
discernimento. Nesse contexto, as mulheres eram vistas como objeto do seu marido, e
era permitido até seu assassinato em alguns casos.
Conforme os anos foram passando, já no século XIX, após muitas lutas e
movimentos feministas, as mulheres alcançaram alguns direitos, como o direito ao
estudo, a escrita e posteriormente, ao voto. O sufrágio, embora inicialmente tímido, fez
com que as mulheres alcançassem a igualdade de votar, de ser considerada igual aos
homens nesse sentido, apesar de que a possibilidade de ser votada se fez muitos anos
depois.
Após a Constituição de 1988, que garantiu a igualdade de direitos as mulheres,
somente em 2006 foi criada uma lei específica para tratar dos casos de violência
doméstica contra as mulheres, é a Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como ―Lei Maria
da Penha‖.
A preocupação com o combate à violência contra a mulher e, sobretudo, sua
criminalização e o suporte jurídico-estatal às vítimas são fenômenos recentes
(WAISELFISZ, 2015).
A Lei Maria da Penha trouxe mais efetividade ao processo nos crimes de
violência doméstica contra mulheres, mas além disso, dotou de mecanismos para
proteger a mulher e romper com o ciclo de violência. Embora muitos desafios tenham
sido enfrentados, tanto na aceitação quanto na aplicação da lei, suas medidas vem

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

contribuindo para a diminuição da desigualdade e da violência em si, buscando sempre


resguardar e proteger famílias brasileiras.
A violência doméstica, além de atingir e causar traumas as vítimas, também
reflete em problemas para a economia, pois a mulher, além de faltar ao trabalho,
também faz uso do sistema de saúde pública, o que gera custos aos cofres públicos e
déficit de mão de obra aos empregadores.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, através dos Anuários, vem
atualizando dados sobre a segurança pública e crimes do país. Através dele pode-se
estudar crescimento ou diminuição da violência e analisar possíveis efetividades de
medidas adotadas pelo governo ou instituições civis. O Fórum Brasileiro, em seu último
Anuário, do ano de 2020, retratou que houve um crescimento considerável nos registros
de feminicídios e crimes contra mulheres do ano de 2018 para 2019. O real motivo não
se sabe ao certo, se foi realmente um aumento de mortes em si, ou se houve uma
melhora na interpretação dada ao registro de feminicídio.
Não bastasse o cenário de preocupação com o crescimento dos registros de
feminicídio, no final de 2019 houve o surto do novo coronavírus. Observado em
dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China, os casos do Covid-19, desde os
primeiros casos, resultaram em um surto sem precedentes. O alto risco de contágio do
novo vírus permitiu sua propagação por todo o mundo, onde, em poucos dias, já haviam
registros de casos em países da Europa e América do Norte.
Como consequências das medidas de isolamento social, usadas para conter o
novo vírus do Covid-19, pode-se observar o aumento dos casos de feminicídios e de
subnotificações de violência doméstica contra as mulheres. O Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, divulgado pelo FBSP, apontou aumentos nos casos de feminicídio
(+1,2%) no primeiro semestre de 2020, quando comparado ao mesmo período de 2019.
Também houve aumento nos casos de violência letal contra mulheres (+0,8%) e de
registro de ligação para o 190 (+3,9%). Em contra partida a esses aumentos, foi
registrada diminuição nos registros de lesão corporal dolosa, ameaça e estupro, ou seja,
nas modalidades de denúncias onde era necessária a presença da vítima para sua
efetivação, observou-se uma queda.
Ao analisar o contexto social do país e interpretar esses dados apontados é
possível apontar, não uma redução de casos de violência contra a mulher, e sim
dificuldades e obstáculos que as mulheres vítimas de violência encontraram na
pandemia para denunciar situações de abusos e violência a que estavam submetidas. As

77
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

medidas de restrição de circulação de pessoas, apesar de eficazes para conter a


propagação do Covid-19, impôs a vítima que permanecesse junto ao agressor e
impossibilitou que a mesma realizasse qualquer denúncia ou até mesmo buscar a rede
de apoio e proteção. Com as medidas de lockdown, as delegacias, casas de abrigo, apoio
psicossocial, assistência social e demais serviços antes disponibilizados, ficaram
inacessíveis, pois estavam em sua grande maioria cumprindo obrigações impostos pela
pandemia.
Diante do cenário do crescimento de violência doméstica e feminicídios na
pandemia, organizações internacionais, como a ONU, realizaram uma série de
recomendações aos países para investimento em serviços de atendimento online,
serviços de alerta de emergências e criação de abrigos temporários. Porém, nem todos
os países levaram a sério as medidas recomendadas.
Considerando todas as recomendações feitas pela ONU e as medidas tomadas
por diversos países da Europa, uma das únicas medidas adotadas pelo governo brasileiro
foi a expansão de canais de denúncias e recomendações sobre a rede de proteção a
mulher. Ocorre que, tais medidas não foram concretas e suficientes de modo que
auxiliasse a vítima na realidade em que se encontravam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Norma técnica de padronização: Delegacias Especializadas de


Atendimento à Mulher – DEAMs. Brasília: Ministério da Justiça. Presidência da
República, 2006.

CALAZANS, Myllena. CORTES, Iáris. O processo de criação, aprovação e


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compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2014/02/1_3_criacao-e-
aprovacao.pdf. Acesso em 07 de maio de 2021.

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da efetividade: abordagem jurídica e multidisciplinar (inclui Lei de Feminicídio) /
Valéria Diez Scarance Fernandes – São Paulo: Atlas, 2015
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ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos


Humanos da ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-a-experiencia-

78
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

internacional-com-os-impactos-da-covid-19-na-educacao/amp/. Acesso em: 09 de abril


de 2021

Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de


Políticas para as Mulheres, Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência
Contra as Mulheres. Brasília: Presidência das República, 2010.

SAFFIOTI, Heleieth I. B.. ALMEIDA, Suely S. de. Violência de Gênero: Poder e


impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995.

79
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 7

NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE: DEBATES ATUAIS A PARTIR DO


VIÉS JURÍDICO

NEW AUTHORITY ABUSE LAW: Current debates from a legal bias

Isabella Silva Jacobina19


Anderson Rocha Rodrigues20

Resumo: Este trabalho propõe um diálogo a respeito da lei de abuso de autoridade,


considerando a importância da discussão no âmbito do direito. Teve-se como objetivo
analisar os elementos da Lei 13.869/2019, observando os possíveis conflitos desta com
a Constituição Federal. Compreender o ponto de vista apresentado por diferentes
juristas acerca da LAA e analisar se o dispositivo legal fere princípios constitucionais.
Para isso, a pesquisa foi pautada na abordagem qualitativa, ou seja, diferentemente da
abordagem quantitativa, esta não emprega dados estatísticos. Este trabalho foi embasado
no método dedutivo, transformando enunciados complexos em particulares. Realizou-se
uma pesquisa exploratória, permitindo a obtenção de um melhor aprofundamento da
temática. Com este propósito, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, cujos dados serão
analisados a partir da pesquisa exploratória, ou seja, descrever-se-á o que os autores ou
especialistas escrevem sobre o assunto e, a partir daí, estabelecer uma série de
correlações para, ao final, expressar um pensamento conclusivo acerca do assunto. A
princípio, será exposto conceitos específicos e esclarecimentos sobre a
constitucionalidade da LAA. Serão demonstrados ainda pensamento relevantes de
alguns juristas sobre a LAA e o posicionamento deles com a análise da legislação.
Encerrando o esforço dissertativo, apresenta-se os principais pontos aqui discutidos.
Ressalta-se que não se tem a pretensão de esgotar a matéria referente ao assunto
discutido, mas sim estimular o debate e reflexões para que se inicie um avanço nos
âmbitos social e jurídico.

Palavras-Chave: Abuso. Autoridade. Constituição.

Abstract: This work proposes a dialogue about the law of abuse of authority,
considering the importance of the discussion in the field of law. The objective was to
analyze the elements of Law 13,869/2019, observing the possible conflicts between it
and the Federal Constitution. Understand the point of view presented by different jurists
about the LAA and analyze whether the legal provision violates constitutional
principles. For this, the research was based on the qualitative approach, that is, unlike
the quantitative approach, this one does not employ statistical data. This work was
based on the deductive method, transforming complex statements into particulars. An
exploratory research was carried out, allowing for a better deepening of the theme. For
this purpose, bibliographical research was used, whose data will be analyzed from the
19 Graduada em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).
20 Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Especialização em Ciências Criminais pela
PUC/MG e Mestrado em DIREITO pela Universidade Católica de Petrópolis (2017). Atua como
professor nas seguintes instituições: Faculdade de Miguel Pereira (FAMIPE), nas matérias de Crime e
Sociedade, Direito Penal e Direito Processual Penal e no Curso Preparatório às Escolas Militares -
CPREM - CONCURSOADM. Atuou na Universidade do Estado de Mato Grosso, nas matérias de Direito
Penal, Direito Constitucional e Direito Administrativo em Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino
- IESDE BRASIL S/A e foi conciliador no Fórum Regional de Bangu/RJ (2020/2021).

80
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

exploratory research, that is, it will describe what the authors or specialists write about
the subject and, from there, establish a series of correlations for, at the end, express a
conclusive thought about the subject. At first, the historical context involving the
understandings about the law over the years will be exposed. Below, there will be
specific concepts and clarifications on the constitutionality of the LAA. Relevant
thinking of some jurists about the LAA and their position with the analysis of the
legislation will also be demonstrated. Ending the dissertation effort, the main points
discussed here were presented. It is noteworthy that the intention is not to exhaust the
matter referring to the subject discussed, but rather to stimulate debate and reflections so
that progress can be started in the social and legal spheres.

Keywords: Abuse. Authority. Constitution.

INTRODUÇÃO

No dia 05 de setembro do ano de 2019 foi sancionada a Lei n.º 13.869/2019, a


nova lei de abuso de autoridade (LAA), a qual alterou várias legislações vigentes. Em
meio a discussões e polêmicas, esta nova lei revogou a antiga e primeira Lei de Abuso
de Autoridade (Lei n.º 4.898/1965), publicada no período do Regime Militar, criada para
combater os abusos praticados por agentes públicos membros das polícias. A nova Lei,
objeto do estudo, gerou acúmulo de ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo
Tribunal Federal, que atacam vários de seus dispositivos. Nesta perspectiva a pesquisa
pretende propor pensamentos sobre a proposta da nova legislação e destacar alguns
apontamentos de juristas acerca do assunto, sobre o qual há vários entendimentos e
opiniões distintas.
Dentre os questionamentos relacionados a legislação em comento, é abordada a
suposta violação ao princípio da taxatividade, decorrente do princípio da legalidade.
Para melhor compreensão, veja-se um esclarecimento sobre o princípio da taxatividade:

A lei penal deve ser clara e precisa, de forma que o destinatário da lei possa
compreendê-la, sendo vedada, portanto, com base em tal princípio, a criação
de tipos que contenham conceitos vagos e imprecisos. A lei deve ser, por isso,
taxativa. Implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais,
impondo-se ao Poder Legislativo, na elaboração das leis, que redija tipos
penais com a máxima precisão de seus elementos. Exemplos de tais conceitos
vagos ou imprecisos seriam encontrados naqueles tipos penais que
contivessem em seu preceito primário a seguinte redação: ―São proibidas
quaisquer condutas que atentem contra o interesse da pátria‖. O que isso
significa realmente? Quais são essas condutas que atentam contra o interesse
da pátria? O agente tem de saber exatamente qual a conduta que está proibido
de praticar, não devendo ficar, assim, nas mãos do intérprete, que dependendo
do momento político pode, ao seu talante, alargar a sua abrangência, de modo
a abarcar todas as condutas que sejam de seu exclusivo interesse (nullum
crimen nulla poena sine lege certa), como já aconteceu na história do Direito

81
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Penal no período da Alemanha nazista, da Itália fascista, e na União


Soviética, logo após a Revolução bolchevique. (MENDEZ, p. 02, 2019).

Diante da explicação, se faz necessário uma análise sobre a possível


inconstitucionalidade da nova Lei de Abuso de Autoridade, o que será explanado a
seguir.

A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI N.º 13.869/2019

A constitucionalidade, assim como a inconstitucionalidade, depreende a


presença de uma Constituição rígida, sendo utilizada como base para elaboração de
demais dispositivos. Conforme a ideia da estrutura hierárquica, se os atos públicos ou
privados contrariarem o caráter supremo das normas constitucionais, estaremos diante
da inconstitucionalidade. (Bulos, 2015).
Ainda em conformidade com Bulos (p. 138), o entendimento do STF acerca do
assunto é:
Repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que,
fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional,
consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso
ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de
positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade
vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de
consequente inaplicabilidade. Atos inconstitucionais são, por isso mesmo,
nulos e destituídos, em consequência, de qualquer carga de eficácia jurídica‖
(apud STF, Pleno, ADIn 652-5-QO/MA, Rel. Min. Celso de Mello, v. u., j.
em 2-4-1992, DJ de 2-4-1993, Ementário de jurisprudência n. 1698-03).

Diante disso, entende-se por Constitucionalidade a relação de concordância


hierárquica entre ações públicas e privadas com a constituição do Estado. Indica uma
conexão de reciprocidade, adequação ou idoneidade de um comportamento com a Carta
Magna. Já a inconstitucionalidade é o oposto, ou seja, trata-se da relação de
desconformidade hierárquica entre ações públicas e privadas com a constituição do
Estado. Evidencia a inadequação ou inidoneidade de um comportamento com a Carta
Magna. (BULOS, 2015).
Considerando o exposto acima, tem-se que o Brasil adota como fonte imediata
da ordem jurídica a lei, de acordo com o descrito no art. 5.º, inc. II, da CF: ―ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei‖
(BRASIL, 1988), percebendo, com isso, o princípio da legalidade. Evidente que existem
alguns requisitos para que a lei seja considerada constitucional e, caso esses requisitos

82
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

não venham a ser observados, o Poder Judiciário poderá declarar a inconstitucionalidade


da norma.
A nova LAA foi e ainda é polemizada por conta de uma possível instabilidade
institucional, gerada com a chegada da legislação, seguida de falta de credibilidade das
mesmas, polarizando-se discursos a favor e contra as novas regras. Diante desse
cenário, alguns questionamentos foram levantados, dentre eles, a inconstitucionalidade
formal e material da nova LAA.
Com o sancionamento da nova LAA, foram ajuizadas várias ações diretas de
inconstitucionalidade, nas quais são questionadas, entre outros, a violação do princípio
da proporcionalidade e da taxatividade por existirem definições vagas constantes na
legislação, o que seria inconstitucional por violar a legalidade penal. A título de
exemplo, a ADI 6239 discutiu acerca da inconstitucionalidade do art. 9.º da LAA, visto
que o artigo mencionado indica elementos do tipo penal, como ―manifestamente‖ e
―deixar‖, os quais seriam subjetivos amplos, caracterizando crime de hermenêutica.

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta


desconformidade com as hipóteses legais: (Promulgação partes vetadas) Pena
- detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na
mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:
I - Relaxar a prisão manifestamente ilegal; II - Substituir a prisão preventiva
por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando
manifestamente cabível; III - Deferir liminar ou ordem de habeas corpus,
quando manifestamente cabível.‘

Outrossim, alguns estudiosos do direito também questionaram a


constitucionalidade da nova LAA, e as divergências de pensamentos ainda repercutem
entre os juristas, mas, com efeito, percebe-se a necessidade e importância desse tipo de
debate para oxigenação de ideias e aperfeiçoamento do direito brasileiro como um todo,
somente assim poder-se-á alcançar um Estado mais justo.

INTERPRETAÇÕES DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

Como mencionado, para alguns juristas, além de inteligível e inconstitucional


em alguns dispositivos, gerou grande insegurança jurídica, e, acerca disso,
respectivamente os promotores de justiça e defensores públicos Igor Pereira Pinheiro,
André Clark Nunes Cavalcante e Emerson Castelo Branco manifestaram que:

(...) princípio da taxatividade penal (decorrência do princípio da legalidade


penal – artigo 5.º, XXXIX, CF/88), que exige uma descrição pormenorizada

83
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

da conduta proibida, de modo que a criminalização de condutas genéricas não


pode prevalecer. Ocorre que a lei é cheia de comandos vagos e imprecisos
que impedem a perfeita compreensão prévia do que se criminalizou, ficando
a autoridade pública, em muitas das vezes, sujeita ao modo de pensar do
magistrado que vai julgá-lo. Trata-se de uma indevida delegação legislativa
em branco ou camuflada, incompatível com o princípio da legalidade penal.
(CAVALCANTE; BRANCO, 2020, p. 201).

Ademais, como já mencionado anteriormente, compartilha do mesmo


pensamento os autores e delegados de polícia Joaquim Leitão Junior e Marcel Gomes de
Oliveira, como se demonstrará a seguir:

Quando acreditávamos que alvíssaras estariam aportando em solo jurídico


penal, com punição eficaz dos crimes pecaminosos praticados pela grande
elite, com interesses vultuosos e quantias incalculáveis de dinheiro em jogo,
percebeu-se, em especial, que nos últimos meses há uma sanha indescritível
com o objetivo de afanar tudo aquilo conquistado na última década, em
especial a condenação dos inatingíveis políticos. A lei em exame é um tanto
lacunosa, imprecisa e com dispositivos vagos e abertos por demais, sem
qualquer técnica jurídica a esmerar pelo princípio da taxatividade. (JUNIOR;
OLIVEIRA, 2020, p. 01-02).

Os autores Joaquim Leitão Junior e Marcel Gomes de Oliveira acima citados,


apresentaram em sua obra o entendimento do juiz de direito Rodrigo Foureaux, o qual
tratou da inclusão do art. 7.º-B no Estatuto da Advocacia e da OAB por meio da LAA.

A imprensa e as redes sociais têm noticiado que violar prerrogativa de


advogado passou a ser crime diante da criação do art. 7º-B do Estatuto da
Advocacia e da OAB. Ocorre que tal conduta (violar prerrogativas de
advogados) já é crime e não passou a ser crime com a Nova Lei de Abuso de
Autoridade, razão pela qual a Nova Lei de Abuso de Autoridade não
criminaliza a violação às prerrogativas do advogado, pois já é criminalizado.
Não há um crime novo, mas mera continuidade normativo-típica. Isto é,
revoga-se um artigo de lei ou uma lei, mas mantém a conduta prevista na
norma revogada como crime em outro artigo de lei ou lei. (...) Na verdade o
que houve foi uma restrição às condutas consideradas criminosas quando se
trata de violação às prerrogativas dos advogados, pois o art. 3º, ―j‖, da atual
Lei de Abuso de Autoridade considera criminosa qualquer violação aos
direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional, o que
abrange a violação a qualquer direito dos advogados previstos no art. 7º do
Estatuto da Advocacia e da OAB, que supera vinte. (...) a título de exemplo, a
atual Lei de Abuso de Autoridade considera que pode ser crime a conduta do
juiz consistente em não receber advogados, conforme já decidido pelo
Superior Tribunal de Justiça, ao fundamentar que ―A negativa infundada do
juiz em receber advogado durante o expediente forense, quando este estiver
atuando em defesa do interesse de seu cliente, configura ilegalidade e pode
caracterizar abuso de autoridade‖. (Apud JUNIOR; OLIVEIRA, 2020, p. 7).

Em contrapartida, o professor Guilherme de Souza Nucci, também já citado em


capítulo anterior, apresenta um entendimento diverso acerca da nova legislação, a
entender 30 que a LAA se faz superior à Lei n.º 4.898/65 (antiga LAA), não possuindo

84
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

qualquer vício de inconstitucionalidade, enumerando os benefícios alcançados com a


nova Lei:
Pode-se argumentar que a nova Lei de Abuso de Autoridade foi editada em
época equivocada, pois pareceu uma resposta vingativa do Parlamento contra
a Operação Lava Jato. Mas, na essência técnica, trata-se de uma lei
absolutamente normal, sem nenhum vício de inconstitucionalidade (...). 1 (...)
os tipos penais da lei 4.898/65 eram muito mais abertos e não taxativos do
que o cenário ofertado pela lei 13.869/19. Para certificar disso, basta a leitura
do art. 3.º, ―a‖, da lei anterior: constitui abuso de autoridade qualquer
atentado à liberdade locomoção. Seria perfeitamente amoldável a esse tipo
penal toda e qualquer prisão preventiva decretada ―sem justa causa‖ ou até
mesmo uma condução coercitiva ―fora das hipóteses legais‖. Dependeria de
interpretação? Sem dúvida. Porém, na atual lei tudo ficou muito mais claro e
taxativo; 2 (...) as falhas da lei anterior são muito mais gritantes do que as da
atual lei. Esta deixou claríssimo que um abuso de autoridade somente ocorre
quando manifestadamente excessiva foi a atitude do agente público. É forte a
indignação. Manifesto é algo notório, patente, inegável. Nada disso envolvia
a lei 4.898/65. 3 (...) elogiar o cuidado legislativo em colocar, de maneira
destacada, que todos os tipos penais configuradores de crime de abuso de
autoridade exigem, além do dolo, a especial finalidade de ―prejudicar outrem
ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou
satisfação pessoal‖. (...) A atual lei 13.869/19 é muito mais garantista e
protetora. O agente público está amparado pelo escudo do elemento subjetivo
específico, que é muito difícil de explorar e provar. (NUCCI, 2019, p. 01-02).

Outro entendimento relevante realizado pelo ex-ministro do Supremo Tribunal


Federal Ayres Britto, bem como algumas entidades e magistrados, os quais apontaram
possíveis inconstitucionalidades na LAA, afirmando que a lei ―inibe a prestação
jurisdicional e independência do magistrado que se vê, segundo ele, criminalizado‖.
Apontando ainda que, ―nenhum diploma infraconstitucional pode ter a pretensão de
ditar as coordenadas mentais do juiz, ou instância judicante colegiada, para conhecer do
descritor e do prescritor dessa ou daquela norma geral a aplicar por forma tipicamente
jurisdicional‖. (BRITTO, Ayres. Parecer).
O ministro do Supremo Tribunal Federal, juntamente com seu assessor, Victor
Oliveira Fernandes, também se posicionaram sobre a nova lei de abuso de autoridade,
referindo-se a ela como uma conquista.

É indiscutível que nenhuma legislação nasce perfeita, muito menos as que


amadurecem em um caminho histórico tão labiríntico. É possível, e mesmo
necessário, que alguns dispositivos da lei tenham que ser submetidos a um
teste de batimento à luz do texto constitucional. Todavia, a qualidade técnica
da proposição aprovada é digna de destaque. A latitude da incidência da
norma sujeita qualquer agente público ao seu escrutínio, do Presidente da
República ao guarda de trânsito da esquina. Para além, a ampla conquista de
uma nova Lei de Abuso de Autoridade transcende o exame da sua
tecnicidade. O ganho democrático da legislação está em reinserir na pauta
institucional um debate que nunca deveria ter sido relegado a segundo plano.
Longe de ser uma jabuticaba, diversos países da tradição romano-germânica
em democracias consolidadas conservam leis penais efetivas voltadas à

85
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

coibição de excessos dos agentes públicos. Na França, os artigos 332-4 a


332-9 do Código Penal trazem previsões específicas para o abuso de
autoridade, tipificando como crime ―ordenar ou praticar arbitrariamente ato
prejudicial à liberdade pessoal‖. Na Alemanha, a legislação criminaliza a
―violação ou torsão do Direito‖, a Rechtsbeugung do §339 StGB, e ainda o
delito de ―persecução de inocente‖, a Verfolgung Unschuldiger do §344
StGB. Na Espanha, o artigo 446 do Código Penal prevê a punição do "juiz ou
magistrado que, intencionalmente, ditar sentença ou resolução injusta‖. Este
foi, inclusive, o dispositivo que fundamentou a condenação do juiz Espanhol
Baltasar Garzón, por violação ao direito de defesa dos réus na ordenação de
interceptações telefônicas ilegais. Se é inegável que toda norma recebe a
incontornável marca da sua temporalidade, a Lei 13.869/2019 embalsama-se
em uma quadra única da nossa história recente: o momento de reconciliação
do sistema punitivo com os pilares essenciais do constitucionalismo
democrático. Seja por nos advertir dos profundos riscos do autoritarismo, seja
por sagrar a virtude da prudência na realização da justiça, a Lei 13.869/2019
merece ser cunhada de Lei Cancellier-Zavaski. (MENDES; FERNANDES,
2020).

Já neste texto, o advogado criminalista Antônio Ruiz Filho afirma que a nova
legislação expressa nada menos que a "vontade popular", "não devendo, por isso
mesmo, ser objetada por veto presidencial embasado no mérito".

O risco em que incorre a nova lei é não ser suficiente para aplacar tantos
desmandos que cotidianamente vilipendiam o direito das pessoas pelo abuso
de agentes públicos displicentes ou imbuídos do exercício desmedido dos
poderes de que são investidos em nome do Estado para agir em prol da
sociedade, e nunca contra os cidadãos. (RUIZ, 2019).

Por fim, vejamos os entendimentos dos delegados Marcelo de Lima Lessa e


Rafael Francisco Marcondes de Moraes tem o seguinte entendimento sobre a nova lei:

(...) a despeito das controvérsias que orbitam a Nova Lei de Abuso de


Autoridade, sobretudo pela turbulenta conjuntura de sua publicação, a
inovação legislativa oferece avanços na tutela de direitos fundamentais e
salutares filtros acerca do elemento subjetivo para a configuração dos ilícitos
penais nela previstos. (LESSA; MORAES, 2020).

Considerando a exposição dos juristas e autores acima, os quais defenderam


diferentes pensamentos sobre a nova Lei de Abuso de Autoridade, apresenta-se a seguir
as considerações finais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado por meio do presente trabalho teve como temática a análise
da nova Lei de Abuso de Autoridade, embasando-se em debates atuais a partir do viés
jurídico. A LAA entrou em vigor em janeiro de 2020, especificando ações consideradas
abuso de autoridade, prevendo punições para quem as violarem.

86
Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

O estudo se deu em três tópicos para melhor organização e compreensão do


estudo, sendo que no primeiro foram abordadas notas introdutórias.
No segundo foram trazidas algumas análises constitucionais, tendo como
centro do debate a constitucionalidade da LAA. Para esse fim, foram apresentados a
este trabalho conceitos acerca de constitucionalidade e inconstitucionalidade.
Ao final, no terceiro tópico apresentado diversos entendimentos e contrapontos
de autores e juristas sobre a nova lei de abuso de autoridade, os quais se posicionaram
pelo progresso ou retrocesso alcançado por ela, tendo em vista a sua condição polêmica,
a existência de alguns dispositivos vagos e a possível inconstitucionalidade da
retrocitada lei.
É notório que a nova Lei de Abuso de Autoridade promoveu muitas reflexões
no meio jurídico, sendo que em alguns contextos ela não foi acolhida. Diante da sua
vigência recente, improvável seria afirmar que esse diploma legal trouxe ou trará
avanço ou retrocesso, contudo, por meio do estudo realizado neste trabalho,
compreendeu-se que a nova lei de abuso de autoridade trouxe consigo um
aperfeiçoamento inegável em alguns dispositivos, se comparado com a antiga LAA (Lei
4.898/1965).
Porém, analisando pormenorizadamente, tem-se que a nova legislação foi
insuficiente em outros aspectos, pois houve a introdução de dispositivos vagos,
necessitando da realização de alguns ajustes.
Conclui-se, portanto, que a nova legislação trouxe importantes renovações em
relação aos abusos praticados por autoridades, quando em comparação à antiga
legislação, possuindo boas intenções e alcançando seu objetivo de processar e
responsabilizar agentes públicos que, no exercício de sua profissão, pratiquem abusos e
excessos em detrimento de direitos fundamentais ao cidadão.
Todavia, alguns termos utilizados nos dispositivos permaneceram vagos sob o
ponto de vista técnico, sendo que a imprecisão no momento da elaboração dos tipos
penais constantes na legislação dificultou a sua interpretação, podendo gerar efeitos
negativos na prestação jurisdicional. Em vista disso, tem-se que a lei em comento
descumpriu o princípio da taxatividade, porém, essa legislação, assim como todas as
outras, não ―nascem‖ perfeitas, portanto, sugere-se a partir disso, que com o
aperfeiçoamento da lei estudada poder-se-á alcançar um Estado mais justo.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 8

É POSSÍVEL UM PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO HUMANIZADO NO CASO


DE CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL?

IS A HUMANIZED INVESTIGATION PROCESS POSSIBLE IN THE EVENT OF


CRIMES AGAINST SEXUAL DIGNITY?

Edenir Paulista Sólis dos Santos21


Antônio Leonardo Amorim22

Resumo: O presente artigo traz a discussão a possibilidade de que o processo de


investigação de crimes cometidos contra a dignidade sexual precisa ser modificado,
tendo em vista o processo de revitimização da vítima no curso das investigações e
também na ação penal. Na sociedade moderna, onde os gêneros ocupam espaços
fundamentais na construção social, se tem um abismo entre as diferenças de sociais e
culturais sobre o corpo, o que faz com que as vítimas de crimes contra a dignidade
sexual, normalmente mulheres, fiquem vulneráveis no procedimento investigatório.
Diante do exposto, indaga-se, é possível que crimes contra a dignidade sexual tenha um
processo de investigação humanizado? A resposta a esse problema de pesquisa se dará a partir
do método hipotético dedutivo, indutivo, da pesquisa bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Criminologia Crítica; Direitos Humanos; Processo Penal Humanizado;


Vitimização.

Abstract: This article discusses the possibility that the investigation process of crimes
committed against sexual dignity needs to be modified, in view of the victim's
revictimization process in the course of investigations and also in criminal proceedings.
In modern society, where genders occupy fundamental spaces in social construction,
there is an abyss between social and cultural differences about the body, which makes
victims of crimes against sexual dignity, usually women, vulnerable in the procedure
investigative. Given the above, the question is, is it possible for crimes against sexual
dignity to have a humanized investigation process? The answer to this research problem
will be based on the hypothetical deductive, inductive method of bibliographic and
documentary research.

Keywords: Critical Criminology; Human rights; Humanized Criminal Procedure;


Victimization.

21 Graduado em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Agente de Polícia
Civil na Polícia Civil do Estado de Mato Grosso, e-mail: edenir@direitovr.com.br.
22 Doutorando Doutorando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES
(2022), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019), bolsista
CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (2012-2016) -
Unidade de Naviraí/MS, pesquisador de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito da Criança
e Adolescente. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), foi Coordenador do
Grupo de Pesquisa Novas Perspectivas do Direito Penal (2019-2021), e-mail:
amorimdireito.sete@hotmail.com.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

INTRODUÇÃO

O presente estudo se ocupa em abordar os crimes sexuais, analisando-os


através do contexto social historicamente concebido, para então compreender as normas
pertinentes ao tema.
Dessa maneira, a pesquisa é de enorme importância dada a projeção dos
debates acerca da proteção aos direitos relacionados a liberdade sexual, sobretudo
relacionado aos avanços sociais e jurídicos acerca da tutela dos direitos femininos e à
liberdade sexual.
Neste prisma, as novas configurações sociais permitem analisar as relações
humana sob outros aspectos, refletindo também em como a violência se estrutura.
Inevitavelmente, ao tratar dos crimes sexuais, aborda-se a discriminação de gênero, isso
posto, faz-se necessário trazer os contornos dos interesses das mulheres e como seus
direitos foram tutelados ao longo do tempo.
Na órbita jurídica, a moral alça grande preso para determinação dos limites
aceitáveis pelo Estado ao controlar o comportamento coletivo. Na seara penal, ao longo
do tempo, foi determinante o papel sexista atrelado aos dogmas conservadores
inspirados na moral religiosa.
Ora, tanto é verdade que, os primeiros registros acerca da criminalização da
violência sexual, a mulher figura como único sujeito passivo do crime, cuja proteção se
direcionava à honra do pai ou do marido, ou seja, a tutela em si era do interesse
masculino. Para além, a mulher sobre a qual poderia recair a conduta, era valorada
moralmente quanto a ser ou não virgem, posteriormente concebida por honesta, a fim de
determinar a existência ou não de violação do seu corpo para fins sexuais.
Neste aspecto, é importante ressaltar a pertinência do tema, ao passo que
fundamenta a necessidade de que a lei interpretada de forma a contemplar a tutela dos
direitos fundamentais da pessoa, tal qual faz a Constituição Federal quando consolida a
igualdade de gênero.
Ressalva-se que, o humanismo dos direitos fez refletir diretamente na
necessidade de contemplar a norma como garantidora dos direitos essenciais da pessoa,
não somente como guardiã da moral social que reflete em dogmas que são estremecidos
quando se deparam com temas polêmicos.
Não obstante essas mudanças sociais, temos ainda as comportamentais, com o
brasil sendo signatário de importantes pactos internacionais em defesa dos direitos
humanos, em defesa da vida e da liberdade, houve um avanço no início destes séculos

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

nas agendas ligadas a defesa de minorias, não se admitindo mais qualquer tipo de
discriminação, seja por cor, raça, credo ou orientação sexual. As pessoas hoje são mais
livres para se expressar em sua plenitude sem que tenha sua liberdade tolhida pelo
preconceito que outrora dominava a nossa sociedade.

PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE CRIMES CONTRA A DIGNIDADE


SEXUAL (LEI N. 13.718/2018) HUMANIZADO – UM OLHAR PARA A VÍTIMA

Os crimes contra a dignidade sexual envolvem uma gama de elementos que


traduzem os próprios conflitos sociais, desde a relação de poder estabelecida em razão
do gênero, até as crenças incutidas na forma como poder, religião e a família foram
estabelecidas ao longo do tempo.
Discutir um papel humanizado da investigação acerca dos crimes sexuais
trazem a vítima para um papel de cuidado e protagonismo que refletem a tendência da
lei penal em entender as relações sociais que fundamentam os conflitos e como sua
aplicação fundamenta a existência do próprio direito enquanto ferramenta de promoção
da pacificação social.
Como se pode observar, a Lei n. 13.718/2018 nasce para o mundo jurídico com
a importante missão de dar ao Estado legalidade para processar e punir crimes contra a
dignidade sexual, até então sem previsão legal para alguns tipos penais os quais foram
criados, ou atualizada suas redações.
Observa-se também a discussão que se criou em torno da alteração referente ao
processo nesses tipos de crimes que passou a ser de ação penal pública incondicionada,
e para que não aconteça aquilo que as correntes doutrinarias contrárias a essa mudança
asseverava, que seria a revitimização por meio da exposição da vítima a seu contra
gosto, a um processo que ao menos na visão destes doutrinadores causariam mais
sofrimento do que benefícios as vítimas.
Diante do que podemos observar neste estudo, imperiosa é a questão da
efetividade da nova norma na pratica, atendendo os anseios da sociedade e conforme a
intenção do legislador. Neste aspecto, importante é o papel da polícia civil, como
primeira garantidora dos direitos da vítima.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

A VITIMIZAÇÃO DAS MULHERES PRECISA SER REVISTA

A legislação brasileira tem com fito a proteção da dignidade sexual, antes


direcionadas exclusivamente ao sexo feminino, tem sido atualizadas a fim de proteger a
dignidade sexual da pessoa humana, o que é muito louvável e também demonstrar uma
certa mudança de paradigmas, não só a mulher ou pessoa do sexo feminino podem ser
vítimas de violência sexual mas também as pessoa do sexo masculino, isso não é
novidade nenhuma mas em razão da cultura e dos costumes patriarcais vigentes na
sociedade, essa prática era inferiorizada em relação a violência contra a mulher.
Com essa mudança de paradigma, temos uma legislação moderna capaz de
estender o seu alcance a proteção da dignidade sexual da pessoa humana, quando se
trata de proteção a um direito, muito melhor que seja extensivo do que restritivo, nesse
aspecto não podemos reclamar.
Todavia, os números relacionados a esse tipo de violência contra a dignidade
sexual, quer seja observado localmente quer seja observado nacionalmente, não nos
resta dúvidas que a principal vítima dos crimes contra a dignidade sexual é do sexo
feminino, e com uma maior incidência ente crianças e adolescentes.
Portanto, necessário se faz, voltar os olhos para o papel da vítima e procurar
identificar nuances que possam nos indicar porque vivemos em uma sociedade em que
um número assustador de mulheres é violado em sua dignidade sexual diariamente, e
principalmente buscar responder o problema de pesquisa, diante deste cenário, como
podemos fazer um processo de investigação humanizado sob a perspectiva da vítima.

O que é ser vítima?

A lei passou a considerar que qualquer sujeito pode ser vítima do crime, logo
podem figurar no polo passivo da ação. Há que se considerar que, as práticas sexuais
são variadas, ainda que a lei determine a penetração como centro fundamental para
ocorrência do crime tentado ou consumado.
O intuito de tolher a liberdade sexual da pessoa com o uso da força para violar
o corpo também é considerado, mesmo que não seja suficiente para caracterizar o
estupro, pode fazer incidir sobre a conduta outra modalidade delitiva. Dessa maneira, é
crime comum, podendo ser cometido contra qualquer pessoa, sendo dispensável
também qualquer condição para ser agente da conduta desde que o caráter central da

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

conduta seja suficiente para apresentar os demais elementos essenciais para configurar o
núcleo do tipo.
O momento histórico do Código Penal de 1940, deva-se ressaltar, vigente até o
momento, coincidiu com a elaboração do Código de Processo Penal, sendo pois, a
oportunidade em que se estruturava o sistema penal brasileiro com a composição do
direito material e processual positivados.
Instituído pelo Decreto-Lei 2.848, prevê à vulnerabilidade da vítima,
regulamentando da seguinte maneira, quando considerou no art. 224, a presunção de
violência quando a vítima não é maior de quatorze anos alienada ou débil mental, bem
como quando não oferece resistência. Diante disso, o legislador reduziu, para o efeito de
presunção de violência, o limite de idade da vítima para 14 anos, justificando a
precocidade no conhecimento dos fatos sexuais, como motivo bastante para a redução
(GOMES, 2017).
Insta considerar que, o fundamento da ficção legal de violência, seria
considerar a completa inocência em relação aos fatos sexuais dos adolescentes. De sorte
que, desconsidera-se seu consentimento, sendo este irrelevante para a responsabilidade
penal (GRECO, 2011). Nesse sentido, entende-se que ―ademais, a presunção de
violência foi estendida aos casos em que o sujeito passivo é alienado ou débil mental,
tendo por base o mesmo entendimento de que, nesses casos, há ausência de
consentimento válido‖ (GOMES. 2017, p. 1), nesse sentido, entende Greco (2011, p. 1):

Hoje, com louvor, visando acabar, de vez por todas, com essa discussão,
surge em nosso ordenamento jurídico penal, fruto da Lei nº 12.015, de 7 de
agosto de 2009, o delito que se convencionou denominar de estupro de
vulnerável, justamente para identificar a situação de vulnerabilidade em que
se encontra a vítima. Agora, não poderão os Tribunais entender de outra
forma quando a vítima do ato sexual for alguém menor de 14 (quatorze) anos
(pelo menos é o que se espera).

Notadamente que, o direito penal não pode abdicar de sua função ética, para
comportar os costumes, convalidando-os sem mensurar os efeitos diante da função que
tem o direito penal na sociedade, de controle e manutenção da paz social.
Para se chegar no atual entendimento pacificado da legislação que tutela as
garantias as liberdades sexuais foi percorrido um grande caminho, onde a definição de
vítima foi sofrendo alterações e da mesma forma essas alterações refletiam a sociedade
contemporânea a legislação.
Hoje não importa a experiência sexual anterior da vítima nos casos de menor
de 14 anos, e não importa se houve consentimento da vítima maior de 14 até

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

determinado momento, se decidiu não ter relacionamento sexual ―NÃO‖ é ―NÃO‖,


aquele que desprezar o aviso de parada vai ser responsabilizado penalmente.
Percebemos aí uma mudança no perfil da vítima de violência sexual, outrora
apenas mulheres ditas ―honestas‖, agora pessoa de ambos os sexos, independente de já
ter tido alguma experiência sexual pretérita, e sobretudo o respeito a autodeterminação
da pessoa sobre o seu próprio corpo de sua sexualidade.
O que nos leva a concluir que vítima de violência sexual na atualidade é toda
pessoa que tem sua liberdade de escolha de com quem, quando e como vai se relacionar
sexualmente tolhida, com emprego de violência, grave ameaça, ou mesmo através de
uma importunação sexual ou divulgação de imagens sem autorização da vítima.

O que é vitimização?

Além dessa violência sofrida pela vítima descrita no parágrafo anterior, a qual
a doutrina vai classificar como vitimização primaria, em que a vítima sofre com a
ocorrência direta do fato criminoso, temos também a vitimização secundária, em que a
vítima após passar por uma violência precisa se submeter ao Estado e suas ações
evasivas relacionadas ao processo, e ainda a vitimização terciária que é aquela
provocada pela repercussão na sociedade da notícia da violência sofrida, no caso do
nosso tema estudo, via de regra a vítima passa por essas três fases, como podemos
observar até aqui, e passaremos a fazer algumas alguns apontamentos mais adiante.

CRIMES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PREJUDICAM A HONRA E MORAL?

Uma das grandes controvérsias desta nova a lei foi a alteração do art. 225 do
Código Penal que torna de ação pública incondicionada a representação criminal os
crimes previstos nos capítulos I e II daquele título.
Em linhas gerais, o prazo decadencial decorrido em 6 meses da não propositura
da queixa em juízo. Contando-se do momento em que se sabe a identidade o autor do
fato, não por vezes coincidentes a data do fato criminoso, uma vez que, nos delitos
sexuais é comum que sejam praticados por pessoas conhecidas.
Não se pode negligenciar em registrar que, o interesse deve ser da vítima,
sobretudo nos casos favoráveis à promoção da ação, pois essa tem o direito violado e
deve ser amparada pela lei penal.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

Entretanto, sabe-se que, tanto a lei quanto a sociedade encontram dificuldades


em refletir sobre os crimes sexuais de maneira precisa considerando a esfera autônoma
da vítima em ter seus direitos tutelados, sem pender para a análise a partir dos valores
morais, como menciona Gomes (2017, p.1):

De toda sorte, ao longo das décadas verificou-se a necessidade de atualizar a


modalidade da ação, não só em face do amadurecimento da sociedade em
relação ao tratamento dispensado às vítimas dos crimes, como pelas inúmeras
situações de injustiças.

Diante da negligencia legislativa em disciplinar os pontos sensíveis acerca dos


crimes contra a dignidade sexual, em 1984 o STF editou a Súmula n. 608: ―No crime de
estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada‖
(BRASIL, 1984).
Significa dizer, pois que, ―quando houver lesões graves, gravíssimas ou morte
da vítima, a ação é de titularidade do Ministério Público, de forma incondicionada sua
procedibilidade‖ (GOMES. 2017, p. 1). Logo, sem que a vítima tenha possibilidade de
interferir, pois seu consentimento é processualmente irrelevante. De todo modo, em
relação aos vulneráveis, por capacidade reduzida ou critério etário, preserva-se a ação é
pública na modalidade incondicionada.
Retirando da vítima a decisão de tornar público o ocorrido por meio do
processo criminal ou silenciar quando entendia que a dor relacionadas a lide processual
poderia lhe causar, os apoiadores da mudança alegam que a vítimas destes tipos de
crime não oferecem denúncia porque sofrem coação, ou mesmo por medo uma vez que
na maioria dos casos o agressor é próximo da vítima, sendo assim obrigação do Estado
exercer o seu jus puniend para que a pratica desse crime não fique em pune.

A ESCUTA DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O CONSTRANGIMENTO

Destarte, quando da ocorrência de crimes sexuais, um importante catalizador


dessas denúncias são, num primeiro momento as escolas e depois os conselhos tutelares
no caso de menores de idade, e só então a polícia, no geral se existir lesão e precisa
passar por atendimento médico a vítima vai ser inquirida sobre os fatos e do mesmo
modo informado a polícia, toda essa triagem antes que a denúncia chegue a justiça além
de constrangedor implica em ter que reviver o ocorrido e passar por uma exposição
desnecessária do ocorrido a mais diversas pessoas alheias ao processo criminal,
ocasionando de fato um constrangimento para a vítima.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

A vítima, diferente das testemunhas não tem o dever legal, compromissado de


dizer a verdade daquilo que souber ou que lhe for perguntado, e no que diz respeito aos
crimes alcançados pela Lei n.º 13.718/2018 objetos desta pesquisa, a participação ativa
da vítima no processo, de modo a colaborar com as investigações e de suma
importância, haja visto que em sua maioria é cometido por pessoas da família ou
próximo da família e no âmbito familiar, o que dificulta sobremaneira a colheita de
provas.

O que fazer nesses casos?

A Lei n.º 13.431/2017 que estabelece a escuta especializada e o depoimento


especial surge como solução a essa questão de vitimização pela reiterada exposição da
vítima criança ou adolescente, que antes eram submetidas a reviver por meio da
narrativa dos fatos a violência sofrida, de forma reiterada e a vários órgãos ou entidades,
que na busca por ajudar acabava por revitimizar.
A lei informa como e quando devem ser realizados a escuta e o depoimento,
este último apenas em sede de delegacia para a autoridade policial e ou para o juiz, e
ambas devem ser realizadas em ambientes adequados e sem a presença de qualquer
pessoa que possa lhe causa constrangimento.

A necessidade de preparação do responsável pelo diálogo com a vítima para fazer


as perguntas adequadas

A justiça restaurativa surgiu como técnica jurídica para enfrentar conflitos de


maneira efetiva. Seguindo na contramão da judicialização de questões
independentemente do nível de complexidade, a justiça restaurativa logrou êxito na
atuação em diversos procedimentos na seara criminal.
No que concerne aos crimes contra dignidade sexual, em termos de
procedimento, a escuta qualificada e com finalidade determinada dentro do processo é
importante para colaborar a reparação dos prejuízos causados à vítima, pois, embora não
se possa dizer em restaurar o status quo da vítima, nem via processo judicial, nem por
qualquer outro meio.
A pessoa que vai fazer as perguntas para a vítima, deve se limitar a perguntar
apenas detalhes do fato que possam levar a identificação da autoria e da materialidade,
no caso da autoria, caso não seja conhecida, perguntar o máximo de detalhes a respeito

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

dos aspectos físicos e comportamentais do criminoso, que via de regra são contumazes
nessa prática. Mesmo sendo indispensáveis essas perguntas para os desdobramentos das
investigações e consequente ação penal, o cuidado com a vítima não deve ser deixado
de lado, devendo sempre que possível realizado essas inquirições por profissionais do
mesmo sexo da vítima, que na maioria das vezes são femininas, em local apropriado e
de preferência por uma profissional de psicologia.

UMA MUDANÇA NO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO

Ficou perceptível no transcorrer desse estudo a ausência por parte do Estado de


uma preocupação real com a vítima quando o tema é violência sexual, como observado
aqui, embora existam os clamores sociais por justiça em todo canto do nosso país, o que
faz com que o legislador pátrio se veja coagido a apresentar alternativas e mudança, o
que se vê dessas ações é o foco no criminoso e não na vítima.
Se a partir de agora, da promulgação desta lei, a pessoa não pode mais exercer
seu livre arbítrio no que diz respeito a participar ou não em um processo criminal em
que tenha sido vítima de violência sexual, que ao menos o processo investigatório possa
ser realizado de forma a preservar o máximo todos os aspectos físicos e emocionais da
vítima.
A mudança legislativa colabora significativamente com o protagonismo da
reestruturação do direito penal, flexionando-o as necessidades reais que alimentam os
conflitos sociais. Permitir que uma investigação criminal utilize de ferramentas reais
como o diálogo e o acolhimento no decorrer de procedimento investigatório e judicial,
fortalece o dinamismo processual que privilegia o mérito, dando um verdadeiro
significado aos interesses da vítima, para além do cunho punitivo da norma penal e da
justiça criminal.
Para tanto, propomos um procedimento de investigação humanizado, com
acolhimento da vítima por meio de uma escuta especial conduzida por um profissional
da área de psicologia, que possa ser gravada com a finalidade de evitar revitimização
pela repetição de depoimentos mesmo em sede de delegacia de polícia.
Acreditamos que ao final da pandemia, será possível acessar remotamente
serviços especializados e voltados ao tratamento de vítimas de violência sexual,
quebrando assim mais um paradigma o qual em razão da distância e tamanho do
município não era possível oferecer esses tipos de atendimentos especializados,
destinados as capitais e grandes centros em que funcionam as delegacias especializadas.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

A pandemia da COVID-19 nos ensinou que para não parar nossas atividades
imperioso foi transpor as barreiras físicas que nos separam, e a internet foi
imprescindível nesta mudança de paradigma, vários foram os programas e ferramentas
que surgiram para atender as mais diversas necessidades na escola, no trabalho, na
família e em nosso entretenimento, fundamental que possamos continuar usando esses
recursos para atender as vítimas de violência sexual.
A construção de um novo procedimento de investigação humanizado nos
crimes contra a dignidade sexual nas delegacias, primeiramente deve passar por uma
transformação comportamental de seus servidores, embora seja importante as delegacias
especializadas no atendimento à mulher vítima de violência. Porém, não é o suficiente
se as equipes de atendimento não estiverem treinadas (FELBERG, 2009).
Tal mudança passa necessariamente por construir novos paradigmas que
rompem com a revitimização da mulher, bem como, a coloca como um elemento do
processo, esvaziando o conteúdo finalístico da lei de promover a paz social, que passa
inevitavelmente pela compreensão dos interesses da vítima, enquanto meio para
realização da justiça.
O que teremos neste caso são mulheres revitimizadas por um atendimento
impróprio em uma unidade policial própria. O que nos leva a compreensão de que todos
os esforços devem objetivar o treinamento multidisciplinar das equipes envolvidas no
atendimento a vítima de violência sexual, com esse tipo de perfil profissional será
possível realizar um atendimento humanizado em qualquer delegacia, mesmo que não
seja uma delegacia especializada, com uma estrutura física precária, o servidor do
atendimento será qualificado.
Superada essas questões estruturais, e apresentado a importância singular de
servidores capacitados e conhecedores das melhores práticas de acolhimento das vítimas
de violências sexuais, objetivando o início de um procedimento de investigação
humanizada, mister se faz, a realização de alguns apontamentos que compreendemos ser
imprescindíveis para obtermos êxito em investigações dessa natureza.
Paralelo a atenção especial dedicada a vítima, temos a ocorrência de um crime
repugnante, nefasto e nossa pesquisa nos aponta o quão prejudicial à ordem pública
seria caso o criminoso livre-se solto em razão de uma falha no procedimento
inquisitorial realizado na delegacia de polícia, após a realização de uma escuta ativa, da
coleta de todas as informações importantes para solução do caso e de posse do

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

conhecimento das ferramentas de investigação disponíveis, o policial pode dar a


resposta esperada por todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar os crimes contra dignidade sexual, ponto comum na história é que


as legislações sempre foram inspiradas pelo padrão moral da sociedade, logo,
invariavelmente traz em seu bojo soluções que misturam possibilidade jurídica com
impasses sociais. Tanto é que, a ação penal por vezes foi tema de críticas por
inviabilizar o exercício do direito da ação, seja pela falta de recursos financeiros, seja
pela exposição social da vítima, de todo modo, o que se percebe é o desvalor da vítima
que tem seu direito violado e encara um sistema de justiça que dificulta ou inviabiliza o
manejo da ação penal.
Como já destacado, a condição social de mulher pautado pela exigência de
moral conservadora impede que os direitos femininos sejam de fato resguardado, dando
um caráter muito mais de preservação da honra masculina quando envolve esses crimes.
Historicamente a mulher é guardada pelo pai, em seguida conduzida pelo marido, no
que diz respeito a vida pública, logo, seus deveres sociais sempre estão ligados a honra
e moral masculina.
Com os avanços sociais e legislativos alguns aspectos essenciais foram
modificados, podendo-se destacar, a evolução da lei ao tratar da violência sexual
cometida no ambiente familiar, fazendo o fato figurar como causa de aumento de pena.
De uma única vez, o legislador venceu a hipocrisia que torna a família divina e
inabalável para encarar a realidade dos crimes e violências que já se iniciam no ciclo
familiar.
Diante disso, na hipótese de o autor do crime ser ascendente, padrasto ou
madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da
vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela há previsão específica de
aumento de pena (artigo 226 CP). Ademais, o manejo da ação pública incondicionada,
elevando a dignidade sexual a bem indisponível, logo, nos casos que a lei assim
assevera, a possibilidade da vítima não optar por promover a ação penal é irrelevante.
Ao começar a lidar como causa de interesse público, o Estado se posiciona pela
preservação dos direitos da pessoa, demonstrando um avanço no trato da matéria. A
pesquisa ao explorar a narrativa e evolução histórica, bem como destacar os principais

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

avanços, cumpriu seu papel em contextualizar a violência sobre o prisma jurídico e


social, analisando os caminhos trilhados da defesa da dignidade da pessoa humana.
Concluímos, portanto, que reclamar das benesse do nosso ordenamento
jurídico que impede a autoridade judicial de ratificar as prisões dessa natureza não
resolve o problema, tampouco, se faz justiça, é preciso conhecer o tipo penal e
identificar no caso concreto a sua incidência, e mais ainda reunir materialidade para fins
probatórios de instrução do devido processo legal, naturalmente observando a
legalidade na coleta dessas provas e respeitando todas garantias constitucionais afetas
também a pessoa do suspeito.

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NUCCI, Guilerme de Souza. Curso de Direito Penal – parte especial; Rio de Janeiro, Forense,
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NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2014.

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Criminologia crítica e Direito Penal : análise crítica do sistema de justiça criminal brasileiro

CAPÍTULO 9

O INSTITUTO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMENTADO À LUZ DA LEI


ANTICRIME E SUA INSTRUMENTALIZAÇÃO EM TEMPOS PANDÊMICOS

THE CUSTODIAL HEARING INSTITUTE COMMENTED IN LIGHT OF THE


ANTI-CRIME LAW AND ITS INSTRUMENTALIZATION IN PANDEMIC TIMES

Beatriz Campos Simão23


Anderson Rocha Rodrigues24

Resumo: A presente exposição científica tem como objeto de estudo, a audiência de


custódia, inserida no sistema criminal de justiça brasileiro por meio da resolução
n.213/15 do Conselho Nacional de Justiça e, posteriormente, legalmente oficializada
pela lei 13.964/19. Trata-se da apresentação da pessoa presa perante a autoridade
judicial, no prazo de até 24 horas após a prisão, com o propósito de assegurar sua
incolumidade física e moral contra eventual prática de tortura ou maus tratos, além de
ser o momento oportuno para que o magistrado avalie a necessidade e a legalidade do
ato cerceador da liberdade. Concomitante a isso, será discorrido acerca do hodierno
cenário de pandemia do coronavírus e seus impactos na oralidade em comento, tendo
em vista que as implicações da crise epidemiológica também repercutiram no âmbito
das audiências de custódia; destacando-se, sobretudo, as disposições regulamentares
emitidas pelo Poder Judiciário. Com isso, intentou a pesquisa conduzir a uma
desconstrução da imagem do Processo Penal como instrumento repressor, rumo a uma
visão constitucional e mais humanizada de seus institutos – como deve ser –, assim
como, revelar que a prestação jurisdicional deve ser contínua, sobretudo nos momentos
de crise, como a pandemia. No mais, trata-se de uma pesquisa descritiva, de natureza
qualitativa, pautada no método dedutivo, de conteúdo bibliográfico e documental,
realizada com base em publicações legislativas, livros e artigos científicos.

Palavras-Chave: Audiência de custódia. Processo penal. Prisão. Lei anticrime.


Dignidade da pessoa humana.

Abstract: The present scientific exposition has as its object of study, the custody
hearing, inserted in the brazilian criminal justice system through the resolution n.213/15
of the National Council of Justice and, later, legally made official by the law 13,964/19.
It is the presentation of the arrested person before the judicial authority, within 24 hours
after arrest, in order to ensure their physical and moral safety against possible torture or
ill-treatment, in addition to being the opportune time for the magistrate assess the
necessity and legality of the act restricting freedom. Concomitantly, the current
coronavirus pandemic scenario and its impacts on orality under discussion will be
discussed, considering that the implications of the epidemiological crisis also had
repercussions in the context of custody hearings; highlighting, above all, the regulatory
provisions issued by the Judiciary. With this, the research intended to lead to a
deconstruction of the image of the Criminal Procedure as a repressive instrument,
towards a constitutional and more humanized vision of its institutes - as it should be -,
23 Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso, e-mail:
biacampossimao@gmail.com.
24 Mestre pela Universidade Católica de Petrópolis, RJ. Professor de Crime e Sociedade, Direito Penal e
Processual Penal da Faculdade de Miguel Pereira. Professor contrato temporário na UNEMT. E-mail:
profandersonrocharodrigues@gmail.com

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as well as revealing that the jurisdictional provision should be continuous, especially in


moments of crisis, such as the pandemic. Furthermore, it is a descriptive research,