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Livros DO AUTOR PUBLICADOS FELA L&PIM EDITORES: Uma autobiografia literdria — O texto, ou: a vida Cenas da vida minascula Ociclo das éguas Os deuses de Raquel Diciondrio do viajar Doutor Miragem Aeestranha nagao de Rafe! Mendes Oecxército de um homem 36 A festa no castelo A guerra no Bom Uma hist6ria farroupilha Historias de Porto Alegre Histérias para (quase) todos os gostos Historias que os jornais nao contam A massagista japonesa Max ¢ 0s felinos Més de caes danados Verissimo e Edgar Vasques) fosse Rothschild ntdrios MOACYR SCLIAR UMA AUTOBIOGRAFIA LITERARIA 0 texto, ou: a vida EPA Texto de acordo com ortografia Este livro foi publicade em 2007, pela Editors Bertrand Brasil, com ‘ote vida aed. ‘tert, oura vida | Moaeye: 1937-2011, 2. Escrtores brasiletos- Biografia 3. Aut cpp. 928, 79.821 ° 34.3(81) (© 2017, herdeiros by Moacyr Seliar ‘Todos os direitos desta edicao reservados a LAPM Editores Rua Comendador Coruia, 314, loja 8 loresta -99220-180, kaa h4 muito tempo. Costumo dizer que se ainda no aprendi nao foi por falta de pritica. Comecei cedox, minhas recordagoes de infincia estao ligadi e contar hisi6rias. Nao s6 historias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assus- taram — 0 Saci-Pereré, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, ‘0s Macabeus, 0s piratas, Emilia, Jodo Felpudo, Huck Finn =, mas também as historias que eu ouvia de meus pais, de parentes, dos vizinhos, ¢ aquelas que eu préprio inventava. isto: a ouvir Contar e ouvir hist6rias é fundamental para os seres, humanos; parte de nosso genoma, por assim dizer. Sob a forma de mitos, as historias proporcionayam, e propor- cionam, explicagdes para coisas que parecem, ou podem parecer, misteriosas. De onde veio 0 mundo? De onde sur- giram ascriaturas que o habitam? O queacontece com 0 sol quando ele se poe? Mitos ou hist6rias proporcionam expli- cagoes que, mesmo fantasiosas (ou exatamente por serem fantasiosas), acalmam nossa ansiedade diante da vida e do universo. Os indios Kiowa, dos Estados Unidos, explicam, através de uma narrativa, por que a formiga vermelha tem corpo praticamente dividido em duas metades. A histéria é Moaeye Scuiar narrada através de didlogos entre o deus Saynday ea Formiga Vermelha, que até entao tinha © corpo inteirigo, esférico. Saynday expressa a sua preocupacdo em relagio & morte, coisa que a Formiga Vermelha, no entanto, menospreza e considera apenas um justo castigo para incompetentes. Dias depois o filho da Formiga Vermelha morre, pisado por um biifal duasmetades com uma face, mas Saynday nao permite. Re- sultado: a Formiga Vermelha fica com o corpo quase seccio- nado, Desta maneira, além de prover uma explicagao para a caracteristica do inseto, a narrativa envolve uma meditagao sobre a morte 0 sofrimento. Tao importantes quanto os esesperada, cla tenta suicidar-se, cortando-se em mitos so os contos populares, aqueles que serviram de base para as historias de Charles Perrault (1628-1703), dos irmaos Grimm (Jakob: 1785-1863; Wilhelt 1786-1859), de Hans Christian Andersen (1805-1875). Como entender a magia dos contos de fadas ¢ as narrativas populares em geral? Varios teéricos estudaram 0 assunto, a luz de diferentes pontos de vista. Para comesar, temos 0 russo Vladimir Propp (1895-1970), que usou o mé- todo estruturalista para identificar os elementos narrativos ‘mais simples dos contos populares russos, 0s “narratemas”. Identificou, assim, 31 narratemas bisicos, Por exemplo: 1) 0 her6ié apresentado; 2) 0 her6i recebe uma proibigio (“nun- ca atravesse aquele bosque” ); 3) 0 her6i viola a interdi¢ao; 4) © heréi encontra o vildo; e assim por di re. Esta, contudo, é uma andlise formal Para entender- mos o significado psicol6gico das histérias temos de ir mais fundo, como fez Bruno Bettelheim (1903-1990). Egresso UMA AUTOBIOGRAFIA LITERARIA de campos de concentragao, Bettelheim imigrou para os Estados Unidos, onde se tornou professor de psicologia na Universidade de Chicago. LA criou a chamada Escola Ortogénica, que tratava de criangas mentalmente perturba- das. O trabalho the deu um certo prestfgio; sua reputagao, contudo, ficou prejudicada quando tornou-se pablico que as credenciais universitérias de Viena, apresentadas por ele, nao existiam e que havia maltratado criangas. Mas seu ro A psicandlise dos contos de fadas, que examina esses contos a luz da psicologia freudiana, teve muita repercus- sdo. Bettelheim sustenta que tais narrativas sio importantes no desenvolvimento da crianga, ajudando-a a entender e, a sublimar os seus impulsos agressivos. J4 Marie~ -Louise von Franz (1915-1998) aplicou os principios da anélise junguiana aos contos de fadas. Em Uma introdugao a interpretagao dos contos de fadas, argumenta que tais nar- rativas si0 a mais pura e simples expressio do inconsciente coletivo postulado por Carl Jung (1875-1961), partilhada por toda. humanidade e povoado por gigantes, monstro: bruxas, demOnios. O historiador contempordneo Robe Darnton (1939-) diz que 0s contos de fadas nos ajudam a entender omundo mental — temores, esperancas—de épo- cas passadas. Em muitos casos, funcionavam como ligdes praticas. A historia do Chapeuzinho Vermelho, narrada pelos pais as filhas, era uma adverténcia: na Idade Média, as meninas cram presas ficeis dos senhores feudais, que podiam violenté-las sem qualquer restrigao. Osmitos antigos encontram correspondéncia nas nar- rativas dos bardos gregos e romanos, nas lendas orientais, nas ‘Moseyr Scuiar paribolas biblicas, na novella medieval italiana aperfeigoada por Boccaccio (1313-1375), nos fabliaux franceses, nos orque tém princip nal, as diferentes formas de narrativa nos dao a consoladora ideia de que a vida faz sentido. Final, alids, nao éa mesma , € mais misericor- contos modernos. eum coisa que fim. Final € menos drast dioso. No final a imagem fica congelada; hé um potencial para a continuidade, esta sem limites. Ad imortalitatem, a divisa da Academia Brasileira de Letras, expressa um desejo ;ntasioso, mas desejo) de todos os seres humanos. Todos quetemos ser imortais. A literatura é uma promessa neste sentido, uma dupla promessa, al tem a esperanga da permanencia: permanece vivo em suas obras”. De outro lado, a histéria sempre pode continuar. “Casaram e foram felizes para sem- pre.” Este “sempre” é uma gama infinita de possibilidades: os filhos, alegres e rechonchudos; os netinhos... De divércio ninguém fala ao final de um conto de fadas. Nao far parte do final feliz, Unindo os seres humanos na esperanga, De um lado, 0 autor ulano nao morreu inda que -0s emocionais. Querem m exemplo? Tomem uma familia (pai, mie, filhos) em fantasiosa, as narrativas criam casa, A noite. J4 jantaram, ja viram tevé —a tipica rotina das casas brasileiras nesse horario. E afo pai ou a maeanunciam 20 cagula que esté na hora de dormir. Nao hé crianga que receba essa noticia sem protestar. Afinal, seré afastada do convivio dos pais ¢ dos irmaos; sera levada para o quarto de dormir; a luz vai se apagar; a porta vai se fechar. Ficara no escuro, aquele escuro que naginasio infantil povoa de seres fantisticos, nao raro meacadores. E por isso reclama, sapateia, chora. Todo pai € toda mae sabem, contudo, que hé um jeito de superar esse problema. Uma frast lhe conto uma histé1 ¢ voce for para a cama agora, eu Nao hé menino ou menina que resista a este convite. orque a histéria significa a presenga tranquilizante do pai ou da mae. E, se eles lerem a historia, a crianga associar 0 bjeto livro com es ium futuro | Ahist6ria é feita de palavras. Palavras sto fandamen- imagem protetora: estaré nascendo tor ou leitora. tais para quem escreve, como a madeira, a serra, o martelo, os pregos, para o marceneiro. Esta comparagao, no meu ‘caso, € mais do que adequada, Passei boa parte da infancia na oficina de méveis do meu tio. Como nao podia comprar brinquedos em lojas ~ eram muito caros -, eu proprio os fabri Confeccionava, assim, avides e navios de guerra, todos com muitos canhes cada canhao representado por um prego, va, utilizando a madeira que sobrava dos méveis. com 0 que ficava ficil criar um grande poder de fogo. Lembro desses brinquedos com saudade. Ensinaram- -me, em primeiro lugar, a trabalhar com as maos, o que é m bom antidoto paraa arrogancia intelectual. Ensinaram- me também a usar a imaginagao pai deficiéncias dos toscos obj ctos. A comparago com oficina pode parecer insélita; lite- raturanem € considerada trabalho, Ha uma hist6ria (sempre contando historias, Moacyr Scliar! Sempre contando hist6- nho. O vizinho olhava 0 !) sobre um escritor e seu v Mosewr Scriax escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: “Descansando, senhor escritor?”, Ao queo escritor respondia: “Nao, amigo, estou trabalhando”. Data pouco o vizinho via © escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: “Traba- Ihando?”. “Nao”, respondia o escritor, “descansando.” Uma ocupagio que nao parece trabalho mobiliza ar- caicossentimentos de culpa; afinal, eao menos no Ocidente, ainda vivemos sob a influéncia do biblico “ganharis 0 pao com o suor do teu rosto”. Isto talvez explique um curioso ritual do Nobel Gabriel Garcia Marquez (1928-2014). O escritor colombiano conta que, quando se senta para escre ver, coloca sobre a mesa os mais variados objetos — lipis, tesoura, cola, borracha, grampeador ~ para se sentir como um operario. Mas 0 resultado objetivo desse esforco, do Ponto de vista material, é modesto: resume-se a palavras. Palavras na tela do computador, palavras no papel. Palavras, palavras. Sao tudo — para os escritores, nio para as pessoas em geral. Isto explica a amarga pondera de Franz Kafka (1883-1924) por palavras”. Ou o dilema posto por Pirandello (1867- 1936): “Ou se vive, ou se escreve”. Ou a postica afirmacao de Pablo Neruda (1904-1973): “Livro, quando te fecho abro la”, Apesar da suposta oposicao entre texto e vida, todos 05 escritores sabem que nao ha um absurdo tocar a vida utta forma de produzir ia, ainda que momentaneamente, para criar outras existéncias, literatura. £ preciso, por assim dizer, suspender a exis virtuais, ficcionais. trabalho eminentemente solitario. Claro, sabemos de livros escritos a quatro ou mais maos ~ Luis » Una aurontoGraria LIT eRAnra Fernando Verissimo (1936-), Josué Guinparaes (1921-1986), Edgar Vasques (1949-) e eu escrevemos uma historia cha- mada Pega prakaputt!—, mas estamos falando de excecoes. A regra & cada obra, um autor; € um autor em solidao. O contato como piiblico demorari a acontecer. Neste sentido, 0 teclado do computador é diferente do teclado do piano, porexemplo. Este iltimo proporciona um retorno imediato; qualquer que seja 0 publico que assiste a0 concerto de um pianista podera manifestar seu apoio (ou sua desaprovagao) tao logo termine a pega musical. No caso da literatura hé ncia. O texto precisa ser terminado, e uma inevitavel depois enviado para edigdo, e depois chegar ao leitor. A essa altura nao raro o proprio escritor perdeu o int por sua obra. Ernest Hemingway (1899-1961), que além que um livro pronto S8e de escritor era também cagador, di € como um leio morto. Vivo, o ledo sacode a mostra os dentes, ataca; morto, ele jaz no solo como um. tapete empoeirado, Nao por outra razao ha escritores que is releem suas obras. Por outro lado, a ficpio tendeaadquirir uma existén- cia auténoma, independente do escritor. Porque a obra nao esté atrelada realidade imediata, resultando, como resulta, da imaginagao. Da mentira, se voces quiserem. Verdade é uma palavra muito relativa para um escritor de ficgio. O ba, ruge, é verdade, o que ¢ fantasia? No Colégio Jiilio de Castilhos, de Porto Alegre, onde estudei, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Fama, néo; ele era mentiroso. Todo mundo sabia que ele era mentiroso. Todo mundo, menos ele. que Moncrs Sex Certa manba o ridio transmitia mante: um avido em dificuldades ~ 0 trem de pouso nao baixava—sobrevoava Porto Alegre e poderia caira qualquer momento. No colégio (nossas aulas comegavam logo de- pois do meio-dit) nao se falava de outra coisa. Estivamos ali, preocupados, quando apareceu o nosso colega. Pilido, nervoso, disse que tinha visto uma cena terrfvel:o aviao que estava em perigo caira perto da casa dele e explodira, uma nas, Nds escutévamos, impres- sionados. Ai veio um colega correndo, com outra noticia: © avido acabara de aterrissar sem problemas, Todo mundo comegou a rir. Todo mundo, menos o colega m “Nao pode ser”, repetia teimosamente, “eu vi o avido cair”, Agora, quando lembro desse fato, concluo que, num certo sentido, ele nao estava mentindo. Vira, realmente, 0 iroso: avid cair. Com os olhos da imaginacao, decerto; mas para ele 0 aviao tinha caido, e tinha incendiado, e muita gente havia morrido... O rapaz acreditava no que dizia, porque no fundo era um ficcionista, Se tivesse escrito 0 que contara, seria um escritor, bom ou mau; como nao escrever ratava- se de um mentiroso, Uma daquelas pessoas que nao conse- guem separar o real do imagindrio. O que até independe da vontade: uma pesquisa cientifica mostra que essas pessoas 1 uma quantidade maior das fibras que conectam os neurénios, 0 que Ihes dé maior sao diferentes. Seu cérebro cont facilidade para conectar ideias. Na vida em geral conexiioé uma palavra-chave; “Only connect”, diz 0 escritor inglés E. M. Forster (1879-1970), ¢ a recomendagao de conectar- ido do relacionamento com outras ~se vale tanto no s Una AUTOBIOGRAIA LITERARIA pessoas como do ponto de vista da existéncia interior. Pdr emcontato diferentes partes de nossa mente, inclusive aque- las que se expressam simbolicamente, metaforicamente, é essencial. £ o inicio mesmo do proceso de criagao. Um proceso que envelve muitos mistérios: os escritores nunca conseguem responder satisfatoriamente a clissica pergunta 0s textos?”. E mais fécil De onde surgem as ideias responder de onde nao surgem as ideias. Nao surgem do uso de drogas, por exemplo. No pasado, pessoas recorriam 1D, na esperanga de ‘ruques também s mais variadas substancias, como 0 estimular a criatividade. Nao funciona. nao funcionam, como constataram os surrealistas com a escrita automitica, Era uma versio do processo de livre associagao da psicandlise e consistia em rabiscar qualquer coisa, a0 acaso, até que um texto literiio dali brotasse. Nao brotava, mas associagio é uma boa palavra para descrever 6 processo criativo. Algo serve de estimulo; no caso dos escritores, uma noticia de jornal, uma historia que nos é€ contada, um ¢} ico, uma imagem. John Fowles (1926-2005) escreveu A mulher do tenente francés a partir de uma persistente visio: mulher de costas, num cais, olhando © oceano. Que mulher era esta? Por que olhava o oceat Em busca de respostas para estas pergumtas, o autor chegoua ¢ voces quiserem usar o neologi criado por Guimaraes Rosa (1908-1967) a partir do inglés story, que ¢ diferente de History. Mas, podemos perguntar, como € que se sabe que tal noticia de jornal vai dar uma historia (estoria) e aquela outra noticia nao vai? Em outras palavras, como se sabe que uma ideia € boa? “Quando os nconsciente € que partis nds obscura, do com uma casa, oconsciente sf cozinha, o banheiro —lugare ~-0 passo que o inconscient E84 Pordo ou soto, aqueles nga has, brinquedos estragade= raramente vamos. Pordoe soe! dennosea vontade, fechando-(i Que 0 sonho pode de® (ou queo process -0 0 famoso episédio de 17: Samuel Taylor Coleridge (1 uma dose de 6pio, drogaenta't provocava sono, Coleridge po." naya um palacio construido f (1215-1294), naman fo longo (“Nao menos que duzeny. fren a Una avrosiogRAna Lr sobre © tema. Acordando, tratou de colocé-lo no papel & chegou a escrever algumas dezenas de linhas, mas entao {oj interrompido por um visitante que bateu a sua porta ea quem, educadamente, atendeu. Quando finalmente retomou a tarefa, verificou, para seu surpreso desgosto, que, a semelhanga do que acontece com os sonhos quando acordamos, o poema simplesmente havia desaparecido de sua meméria. Foi publicado assim, incompleto, com o titulo de Kubla Khan, e 0 subtitulo: Uma visio em um sonho. Sonhos nao sao inspiradores unicamente para poe- tas ou escritores, Eles também desencadeiam 0 proceso criativo em outras dreas, inclusive cientificas. © quimico alemao Friedrich August von Kekulé (1829-1896) esta voltas com um problema complicado: descobrir a disposigao espacial dos étomos de carbono na molécula do benzeno, a popular benzina, Por mais que quebrasse a cabega, no conseguia obter a resposta. Uma noite, ¢ & cle mesmo quem o narra, adormeceu olhando as chamas da lareira que se retorciam, segundo sua expresso, como “serpentes de fogo”. E ai sonhou com uma serpente que mordiaa propria cauda, formando uma figura semelhante a. um anel, Ao acordar, Von Kekulé havia descoberto 0 anel benzénico. Cabem aqui as perguntas: “De onde veio esta imagem?”, “Como se introduziu na cabega do cientista?”. Os antigos gregos viam nisso a agao das musas, a quem se devia a inspiragao. Uma interpretayao mais logica nos diz que Von Kekulé tinha a resposta para o seu problema ~ no inconsciente, Um junguiano lembraria que a serpente que se devora pela prépria cauda, Ouroboros, é um antigo Moaerr Setar mito, um arquétipo que faz parte do inconsciente coletivo postulado. Mas por que o cientista nao encontrou antes essa imagem? Boa pergunta. Para tentar respondé-la, a por perto), do qual ele falaria para um analista competente. E nem isto nos garantiria uma resposta satisfat6ria. Porque (0 processo criativo, ao menos no atual estigio de nossos conhecimentos, envolve muitos mistérios. O que, diga-se de passagem, nao € de todo mau, Ja exploramos todo 0 bom, portanto, tenha algum segredo, algum misté- terfamos de deité-lo num diva (com ou sem lat planeta, jé exploramos parte do univers que a existéncia ai rio, algum desafio, Isto da sabor a vida Nao apenas as origens do texto literdrio sao obscuras. O proprio significado deste pode ser intrigante ~ incl ive, ¢ principalmente, para 0 proprio autor, a quem frequente- ado conto, mado mente se pergunta o que quis dizer com deter determinado poema. Como se a obra fosse um qual o escritor, ¢ 56 0 escritor, possui a resposta. O leitor, este, tem de sofrer; 0 leitor ¢ fdipo avindo da esfinge lite réria o desafio: “Decifra-meou te devoro” (para estudantes, a segunda alternativa parece muito mais provavel). Mas isto € um equivoco. Em relagdo a sua propria obra, o escritor é como alguém que tem uma ferida no dorso; a lesao esté ali, se ndo tem um espelhoa mio, precisa de alguém que lhe diga o que esté se passando cle a sente, mas nao pode vé-la. numa parte de seu corpo que é para ele quase como a face oculta da Lua, Dessa experiéncia posso dar um testemunho, relativo a um conto chamado Cego e amigo Gedeao a beira da estrada, ¢ que ai vai, com desculpas pelas antigas marcas UMA AUPOBLOGRAPIA LITERARIA de carro (0 texto foi escrito ha muito tempo) ¢ por algumas modificagées que depois fz. Cego e amigo Gededo a beira da estrada — Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, nao smigo Gedeao? Nao, Cego. Foi uin Simea Tufte. .. Ah, sim, éverdade. Carre potente, muito econdmico. Conhego o Simca Tufao de longe. Conheco ualquer automével pelo barulho do motor. Este que passou gora nao foi um Ford? Nao, Cogo. Foi um eaminhdo Mercedinho. — Um caminhio Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que nao passa por aqui um caminhio Mercedinho. Grande caminhdo, Forte. Estavel nas curvas, Conheco o Mercedinho de longe... Conhego qualquer carro. Sabe itd quanto tempo sento 4 beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedetio? Doze anos, amigo Gedetio, Doze anos. E um bocado de tempo, niio 6 amigo Gededo? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo, Este que passou nao foi um Gordini Teimoso? ~ Nao, Cego, Foi uma lambreta. — Uma lambreta... Enganam a gente, essas lambretas. Principalmente com a descarga aberta. Mas como eu ia di- zendo, se hd coisa que sei fazer é reconhecer automdvel pelo barutho do motor. Também, nao é para menos: anos ¢ anos ouvindo! Esta habilidade de muito me valew, em ce m Mercedinho? Esse que passou nao foi ~ Naio, Cego. Foi um énibus. Moaeyr ScuuaR ~ Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse sé pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim. Uma vez, minha habilidade foi itil; foi até decisiva, Quer que eu conte a histéria, amigo Gedeao? Pois entao conto. Ajuda a mataro tempo, nit & Assimo dia termina mais ligeiro. Gosto da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: anos atrds mataram um homem a uns dois quilémetros daqui. Um fazendeiro muito rico, Mataram com quinze balagos. Esse que passou niio foi um Galaxie? —Nao. Foi um Volkswagen 1964. —Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econdmico. Ea caixa de mudangas € dtima... Mas, entao, mataram o fazendeiro. Nao ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balagos! F levaram todo o dinheiro do homem. Eu, que naquela época ja costumava ficar sentado aqui a beira da estrada, owvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta feira, o radio dizia que a policia nem sabia poronde comegar. Esse que passou nao foi um jipe Candango? — Nao, Cego, nao foi um jipe Candango. —Eueestava certo de que era um jipe Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde comegar. Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pen- sando... A gente pensa muito. De modo que fui formando um raciocinio. E achei que devia ajudar a policia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunica ¢@0 a fazer. Mas esse agora foi um jie Candango! ~ Nao, Cego. Foi um Gordini Teimoso. —Ex seria capaz de jurar que era um jipe Candango. O delegadto demorou a falar comigo, Decerto pensou: “Um cogo? O que pode ter visto um cego?”. Essas bobagens, sabe como 6, UMA AUTOBIOGRAFIA LITERARIA amigo Gededo, esses preconceitos. Mesmo assim, aparece, porque estava tao atrapalhado que falaria até com uma pedra. Veio 0 delegado e sentou bem af onde voce estd, amigo Gededo. Esse agora foi o énibus? — Nao, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavao. ~ Boa, essa camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado, Perguntei: “Senhor délegado, aque horas foi cometido o crime?”. “Mais ou menos ds trés da tarde, Cego”, respondew ele, “Entao”, disse eu, “o senhor terd de procurar um Oldsmobile 1947. Este carro tem a surdina ‘furada. Uma vela de ignigao funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrés, nao tenho certeza, mas iam talvez duas ou trés pessoas.” O delegado estava assombrado. “Como sabe de tudo isso, amigo?”, era 560 queele perguntava. Esse que passou nao foi um DKW? Nao, Cego. Foi um Volkswagem. — Muitos Volkswagem, por aqui... Mas voltando ao as- unto: 0 delegado estara assombrado, “Como save de tudo iso?” “Ora, delegado”, respondi. “Hé anos que sento aqui a beira da estrada ouvinde automveis passarem. Conhezo qualquer carro. Sei dizer quando o motor funciona mal, quando hd muito peso nna frente, quando ha gente no banco de trds. Esse carro passou ara o campos quinze para as trés;e voltou para a cidade as trés ce quinze.” “Como é que vooe sabe que horas eramé”, perguntou o delegado, “Ora, delegado”, respondi, “além de reconhecer os carros pelo barulho do motor, também sei calcularas horas. Pela temperatura: ao meio-dia é muito quente, depois vai ficando ‘mais fri... Questto de pratica.” Mesmo duvidando do que eu dizia, o delegado resolveu investigar...Passou urn Aero Willys? ‘ —Nao, Cego. Foi urn Chevrolet. —Bom. Chevrolet, Chevrolet a parte. Esse que passou foi umn Toots i —Néo, Cego. Foi um Ford 195612 rama Bah opiniao “O que o autos conto?”), ¢ eu disse: “Para mim o c! colega do colégio, um mitémano, unt se deixam levar pelas proprias ilusod* Si que scare ui prisao de pessoas provavelmente inot! Be Levantou-se um garoto e fez uta peigui deixou absolutamente perplexo: “Que! nag havia ocorrido a mim, o autor ela é perfeitamente Iogica Enfim, ni pensem que oescrit tede sua obra. E também nao pensem* entender o processo que, como diz Kat; em palavras, Mas 0 escritor pet evo estabelecer um nexo entre estas coi paginas que seguem. m 1993 passei um semestre na Brown University, em Providence, Rhode Island, onde dei um curso sobre medicina e literatura, Quando lé cheguei, fui convidado a participar da cerimonia de abertura do ano letivo, em que professores usando a tradicional toga desfilariam diante de alunos. Junto com eles, ¢ também de toga (emprestada), posei para uma foto. Quandoa recebi, fiquei surpreso.O rosto que ali apare- cianao erao meu;era o do meu pai, falecido. Nunca fomos tao parecidos. Diante de meus olhos, togado, estava o judeu russo José Scliar, que emigrou para o Rio Grande do Sul na segunda década do século XX e que, com persisténcia e cor gem, trabalhou, formou uma familia, educou os filhos. Um: homenagem merecida e que me fez lembrar minhas raizes. Raizes, origens. Na literatura, sdo importantes. Uni versal, ia Tolstéi (1828-1910), é 0 escritor que escreve sobre sua aldeia. Claro, nao basta querer escrever sobre @ aldeia, € preciso saber escrever sobre a aldeia. Mas a traje~ t6ria pessoal conta muito; sobretudo no inicio, a aventura iterdria ¢ inevitavelmente autobiografica. Nasci no extremo sul do Brasil, egido de tumultuada istéria: o territério que depois constituiria o Rio Grande do Moser Scuar lido Max e os felinos, ¢ que do livro conhecia apenas uma breve sinopse, feita, segundo ele, por um resenhista norte americano, que classificava Max and the Cats como obra menor. Tal resenha nunca aparecen. ju-se, em parte, mencionando no pre- facio de seu livro a sua gratidao a meu trabalho, Esta ad- nha escassa vontade de pr agiio judicial, foi o suficiente para que eu desse o i por encerrado. Escrita a época da ditadura militar, Max e 0s felinosé uma alusio ao clima politico entao reinante naquela fase. O jaguar parece-me um claro simbolo do autoritarismo. Mas outros componentes faziam parte da conjuntura: a da supremacia da economia de mercado, da concorréncia como forma dealcangar a eficiéncia. Coisa que a nds parecia apenas um ténue disfarce paraa introdugaa do darwinismo social, O que eu retratei na histéria que segue. Milton e 0 concorrente ‘on ainda nao abriu a sua loja, mas o concorrente jd abriu a dele, ¢ jé esté anunciando, jd esta vendendo, jd estd liquidando a precos abaixo do custo. Milton ainda estd na cama, ao lado da amante, dessa mulher ilegitima, que nem bonita 6 nem simpdtica; 0 concorrente jd estd de pb, alerta, atrds do baled. A esposa— fiel companheira de tantos anos ~ esté a seu lado, alerta também. Milton ainda nao fez 0 desjejum (desjejum? Um cigarro, umn copo de vinho, desjejurn2); 0 concorrente jé tomou suco de laranja, jd Una AUTOBIOGRAPIA LITERAIGA 010, torrada, queij, jd sorveu uma grande xicara de café com [dest nutrido. ’ Milton ainda estd nu; 0 concorrente a se apresenta ele- gantemente vestido, Milton mal abriu os olhos; 0 concorrente 34 leu os jornais da manha, jé esté a pardascotagées da Bolsa das tendéncias do mercado. Milton ainda nao disse uma palavra; 0 concorrente jéfalow com clientes, com figurdes da politica, com ofiscal amigo, com osfornecedores, Milton ainda esté no subtirbio; 0 concorrente, vencendo todos os problemas do transito, jd chegou ao centro da cidade, ja foi aos bancos, jd conseguiu finan 5, Milton ainda nao sabe se o dia échuvoso ou de sol; 0 concorrente ja estd seguramente infor- ‘mado de que vao subir os precos dos artigos de couro. Milton ainda nao viu os filhos (sem falar da esposa, de quem estd separado); 0 concorrente jd criou as filha, j as formou em Direito e Quimica, jd as casow, jd tem netos. Milion ainda niio comegou a viver. Oconcorrentejé estd sentindo uma dor no pelt caindo sobre o balcao, jd esta estertorando, os alhos arregalados — jd esta morrendo, Contar histérias é coisa antiga, e © conto percorreu ‘umalonga trajetéria. Nela,o século XIX representa uma fase © acesso de um amplo publico & narrativa curta ~ apesar, como veremos, das restrigdes que escritores faziam a essa forma de publicagio. Nao por acaso é também no sécullo XIX que surge o primeiro grande tedrico do conto, Edgar Allan Poe. Com 0 caracteristico pragmatismo americano, mm Moser Seuan Poeconceitua 0 conto como uma peca ficcional curta (tem- po de leitura: 30 a 120 minutos), coesa, tendo como tema um Gnico incidente, e aconselha o potencial conti do concebido, com deliberado cuidado, um efeito tinico original, invente o incidente que conduza ao efeito, Toda palavra da narrativa deve servir a este desfgnio”. © fecho ¢ essencial. Para o critico Irving Howe, 0 conto deve ser ferozmente condensado, como 0 poema, € deve explodir numa revelagio, numa epifania, por assim dizer. Os seres humanos sio iluminados por um flash num climax arquetipico que, por definigao, exclui o anedético (“anedético”, para os literatos, é sempre um termo pejora- tivo, ainda que nem sempre sejam nitidas as fronteiras entre conto e anedota), A importancia do final foi bem expressa naobservagio feita por Robert Louis Stevenson (1850-1894) 20 editor que queria mudar o fim de uma de suas histérias: “Mudaro fim torna o comego errado. Num romance, o fim nao € nada; no conto, ele ¢ tudo”, Todos estes condicionamentos dificultam, nao faci- itam, a tarefa do contista. William Faulkner (1897-1962) observa que € mais ficil escrever um romance do que um conto. “No romance”, le, “vocé pode ser menos cuidadoso ¢ ainda assim ser desculpado pelo excesso ou pelo supérfluo. No conto, que éa forma mais proxima do poema, cada palavra tem de estar em seu lugar, cumprindo uma fungao. Em fisiologia fala-se da lei do tudo ou nada. Um misculo (da pata da ri, em geral) ¢ isolado e estimulado eletricamente. Ele s6 se contrairé a partir de determinada 12 Uma auromiocraria terrAnia voltagem, mas, quando o fizer, seté como total de sua forga: tudo ounada, O mesmo vale para o conto, De uma maneira geral, ou ele é todo bom ou € todo ruim; o meio-termo af éa excego, nao a regra. Parafraseando Marshall McLuhan (1911-1980), para quem o meio é a mensagem, Stanley Elkin diz que o género também é a mensagem. E qual a mensagem representada pelo conto ou, ainda, pelo poema? Nao errarfamos muito se faléssemos num pedido de socorro. A metifora do néufrago {que coloca sua mensagem na garrafa adquire dramitica vali- dade. A semelhanga da poeta Edna St. Vincent Milay (1892- ‘Read me, do not let medie” (“‘Leia-me, nao me deixe porrer”}, pede o escritor Scholem Aleichem (1859-1916) cm seu testamento: “Retinam-se todos os anos, selecionem dentre as minhas hist6rias as mais engracadas e leiam-nas. Este ser para mim o melhor monumento”. E interessante como, neste pedido, 0 escritor retorna a tradigao oral do conto, a0 velho habito, que ainda fascina as criangas, de contar histérias. Oconto nos diz algo sobre o contista e sua época. Tra- fa-se, sustenta o escritor irlandés Frank O'Connor (1903- 1966), de uma forma literaria caracteristica de sociedades inquietas, em que o elemento de coesio social ainda nio se fez sentir. Para V. Pritchett (1900-1997), isto explicaria por que 0s russos ¢ norte-americanos precederam os ingleses ria do conto. O conto fez a América inteligivel a si ‘mesma, superando o caos, a desigualdade, a diversidade. O conto é uma forma de nagies jovens ~ ¢ de gente jovem. Diz-se que nio ha romancista com menos de Moacrr Seuar quarenta anos; reciprocamente, todo contista nasce antes dos quarenta anos, eno passado (sobretudo no século XIX, © século da tisica), nao iam muito além disso: O. Henry 862-1910) morreu com 48 anos; Stevenson, com 44, ‘Tchékhov (1860-1904), com a mesma idade, Maupassant , com 43; Kafka, com 41; Katherine Mansfield 1m 35, Em contraste, Zola (1840-1902) che- ‘gou aos 62; Thomas Mann (1875-1955), aos 80; e Tolst6i, aos 82: todos romancistas Estes fatos esto na origem mesmo de uma das pla- titudes sobre o conto: a de que se trata de um embridio do romance ~ com 0 que os romancistas nao concordam. Ao longo do tempo o conto tem subido e descido na bolsa das cotagdes litersrias. No Brasil, ele jd teve virias €pocas dureas: nos anos 70 era um género bem popular ¢ cultivado. Depois, os editores voltaram a sua caracteristica ojeriza pelo géncro, Umjornal satirico de Porto Alegre, 0 Pato Macho (com 0 qual, alids,eu colaborava), publicou uma gozacao acerca dos contistas. Por ébvias razdes — afinal, ‘comecei como contista ~aquilo me perturboue, quando vi, estava escrevendo uma historia (ou um conjunto de mini- -hist6rias) falando exatamente sobre isto, sobre os contistas. Os contistas Todo mundo foi a tarde de autSgrafos do contista Rarni- 10, Todosos quarenta ou cinquenta contistas. Fui dos primeiros 4 chegar: ndto queria perder os cachorros-quentes. Tive azar: sendo apenas o décimo, encontrei so metade de uma salsicha 14 Una avtostognara LITERARIA uisque falsficado. Isso nao me impediu de abragar Ramiro com efusdio. - Que é que hé, rapaz? ~ ele me perguntou, e eu disse: ~ Nao hd nada, Ramiro, nada mesmo. E acrescentei: ~ Meus parabéns pelo teu livro, Ramiro, ainda ndo li, mas jd me disseram que esté muito bom; alids, eu sempre achei gue cara que se deu bem foi tu, tu és um dos poucos, Ramiro, dos poucos. ~ (Eu jé comegava a me comover; em tardes de autégrafos, sou assim mesmo.) — Obrigado —disse Ramiro — agente faz o que pode, E tu — perguntou 0 que é que estas fazendo? ~ Nada — eu disse ~ dando duro no jornal, s6 isso. ~ Estds escrevendo alguma coisa? Eu estava; estava sim. Estava escrevendo um conto chamado Os contistas. Ramiro riu e pediu desculpas; tinha de dar um autigrafo ‘para wna velha tia que viera do asilo especialmente para a ocasiae. Os cachorros-quentes ndo apareciam, mas ia chegan do mais gente. Orlando se aproximou; ia me pedir dinkeiro emprestado; viu pela minha cara que nao ia adiantar nada, Entao me perguntou o que eu estava escrevendo, - Un conto chamado Os contistas — respondi. ~ F isso ai — disse ele - ‘manda brasa, rapaz, o conto catarinense esta a espera do seu renovador. ~ Nao sou catarinense ~ respondi, mas ele jd se afastara, Pobre Orlando, sempre atrapalhado. = Dizem que ele esté com cincer — cochichou-me Ma- risa. ~ E 0 pior — acrescentou — é que ndo se trata, ndo tem heiro para hospital particular; em hospital publico ndio quer baixar. Além disso — finalizou ~ é um safado. — Concordei, olhando para uma porta dos fundos, de onde, por alguma ra- 210, eu esperava que saisse umn homem com cachorros-quentes. us Moacyr Scuar A luz do aruanhecer, jét ndo parece a espléndida figura do dia anterior: nenhum enfeite, nenhuma pintura, nada, & bugre mesmo. Mas mostra-se grata: jd esteve na oca, jé vin a ‘menina, jé se convenceu de que sobreviverd, gragas ao doutor ‘Noel, ~ Minha gente — diz, eo intérprete traduz suas palavras com evidente embarago ~ sofreu muito por causa de voces, brancos. Nos éramos fortes e saudéveis, agora andamos por ai, sem forcas,e de repente comecamos a emagrecer, e a tossin, € 4 escarrar sangue. O nosso povo esta condenado, sera que ninguém vai fazer nada por nds? Comega a chorar. Um chorinho sentido, manso, as lagrimas correndo-Ihe pelo rosto, caindo na areia da margem do rio, Noel olha-o, comovido e surpreso. Nunca imaginara ver um indio chorando. Lembra um velho judeu sentado nas ruinas da sua casa, depois do pogrom, em Ananiev, solugan- do ¢ perguntando: “Até quando teremos de derramar nossas lagrimas, até quando?”. Com a ajuda do intérprete, Noel tenta consolar o cache que. Trard outros doutores, trard remédios, os indios ja naa estarao entregues a prépria sorte. O cacique parece nao ouvir; fita, em silencio, as dguas do Xingu. Noel suspira, Suspeita {que a pergunta do indio, ao fim e ao cabo, ficard sem resposta, 'm 1974 comeceia escrever para 0 jornal Zero Hora, de orto Alegre. Euma experiéncia no minimo curiosa passar da pagina do livro para a pagina do jornal. Sim, em ambos 0s casos trata-se de texto impresso, destinado a um publico, mas as diferengas so grandes, ¢ histéricas. Para comegar, 0 livro, tal como 0 conhecemos, surgiu antes € do século XV, enquanto o jornal s6 aparece no comeco do século XVII. Ao contrario do livro, que em. nha um tema tinico, tratava de varios assuntos num estilo que nem sempre era refinado,literdrio. Estabeleceu-se uma divisdo: 0s escritores eram uma antiga aristocracia: os 's eram os arrivistas. Os escritores escreviam para a eternidade; os jorn momento, nem sempre agradaveis. Escritores falavam mal do jornal: “Da primeira diltima linha, nada mais é que um circo de horrores”, disse Baudelaire (1821-1867). Edmond de Goncourt (1822-1896) e seu irmao Jules (1830-1870) acrescentaram: “Efémera folha de papel, o jornal é inimigo ‘ga da mulher decent as estavam presos aos assuntos do do livro, como a cortesa Osesctitores podiam fazer pesquisas formais, mes- mo que estas res! ‘obscuros: 0s jornalistas tinham, e tém,a obrigagao da clareza, Os escritores podiam, jssem em text mm Moacyr Scuar se estender por muitas paginas, eo caudaloso romanee= -rio era disso um exemplo. £ verdade que outros fatores intervinham af. Na Inglaterra, por exemplo, havia um subsidio para o livro, desde que este tivesse no minimo trés volumes. Resultado: todo mundo queria publicar livros em trés tomos, Os jornalistas precisam se aum espago previamente fixado. Se Ihe sao solicitadas quarenta linhas, 0 texto devera ter quarenta linhas. Se for maior, © editor vai ter de cortar ~e qual o critério para isso? Se forem menos de quarenta linhas, sobraré um espago—e como preenché-lo? Além disto, os jornalistas tém prazo para entregar a mati , coisa que raramente ocorre com 0s escritores, De qualquer modo, porém, muitos escritores ade- riram a noya forma de comunicagdo com piblico ~ por exemplo, através do folhetim, equivalente & novela de tevés uma obra de ficgio publicada em capitulos (ou fasciculos) que, no século XIX, era muito popular, gracas a autores como o inglés Charles Dickens (1812-1870), cujos textos cram, inclusive, enviados para os Estados U does aguardavam no porto 0 navio que trazia 0s fa No Brasil, José de Alencar também ficou conhecido desta maneira. EI nosso pais, s, surgiut um género que se tornou o elo entre literatura ¢ 0 espago jornalistico: a crO- nica, praticada por grandes nomes como Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922). No comego era basicamente um género intimista;lirica, poética, meditagao sobre 0 cotidiano das pessoas ~a versdo literdria da conversa de bar que, nas maos de um Rubem Braga (1913-1990), de 2 UMA AUTOSIOGRAHA LITERARIA um Fernando Sabino (1923-2004), de um Paulo Mendes. Campos (1922-1991), de um Luis Fernando Veris grandes textos. Era um respiradouro, uma brecha na massa nao raro sufocante de noticias. Bu escrevia, eescrevo, crénicas sobre os assuntos mais variados, o que é uma caracteristica do género. Quando meu filho Beto nasceu, abordei muito sobre a experiéncia de ser pai. O texto que segue é um exemplo. imo, deu A mamadeira das duas da manhé Amigos me mandam um cariéio-postal; mostra um pai de pijaina, barbudo, desfeito, segurando um bebé e a mama- deira, Junto, um recado, segundo 0 qual muita coisa pode ser escrita a respeito da mamadeira das duas horas da manha. Presumindo que o pai barbudo seja eu, aceito o desafio, mesmo porque de fato, muita coisa pode ser dita a respeito da mamadeira das duas da manha. Nem tudo 6 publicével, naturalmente, mas aqui vdo algumas das reflexdes que me ocorrem. As duas da manha as pessoas de bom senso costumara estar dormindo. Fazem excegao os boémios, os segurangas, os poctasr ‘que voc’, leitor, faga parte dessa maioria silenciosa: Id estd voce, mergulhado num sono reparador, sonhando com um cruzeiro de ite pelo Caribe. Esta voce encostado na amurada, ao lado de wma bela mulher que pode ou ndo sera sua esposa, quando se ouve ao longe a sereia de um navio. Ruido incomodo, que to inspiradose algumas outras categorias. Suponho vocé gostaria de nao escutar; mas é impossivel. Mesmo porque 223 nao se trata da sereia de nenhum navio. E 0 bebé, chorando, Esté na hora da mamadeira. A primeira coisa que acontece éuma dis mulher sobre quem deve ir atender 0 garoto. Nos tempos do chamado “chefe de familia”, este debate nao existia: a mie levantava ¢ ia cumprir com sua obrigaco, Hoje, quando as mulheres trabaliam ¢ esto conscientes de seus direitos, as Vocé tenta estabelecer um debate a respeito, de levantar. Vocé atira o cobertor para o lado (um movimento que exige especial resolucdo quando a temperatura ambiente 1a-se de zero grau) ¢ parte para 0 empreendimento, no sem antes dar ura topada com o dedao no pé da camay que no contribui em nada para melhorar 0 seu bom humor. Ainda que cambaleante, voct chega ao bergo e olhat te diferente da sua. O entusiasmo de seu choro é qualquer coisa de estarrecer. Se as ‘massas oprimidas da América Latina gritassem deste jeito, iam bern arranjadas, 106 para taisconsideragacs. Voeb std pronta ~ pelo menos previdentes voces so ¢ a primeira coisa onde imediatamente tem de preparar outra mamadeira de bactérias tomam posse dela, Vook ‘frasco novo. Coloca Il juece-a, experimenta-ano dorso da mo, ignora [Uma avromocraria Lirenknta a queimadura de terceiro grau que 0 liquido produziu, ¢ vai {firme para o bebé. Fle suga, esfomeado — mas aparentemente ‘nao consegue o que quer, porque continua gritando. O furo do bico pequeno, voce pensa, € aumenta-o. Nada, Vocé alarga ais furo, ransforma-o num rombo. Nada. Finalmente, voce se lembra de tirar o disco de borracha que estava na base do bico. Agora sim, 0 leite jorra — como cascata, quase afogando 0 garoto. Voct faz tudo de novo, ¢ desta vez did certo. O bebe toma o leite, enquanto voce fica rumsinando consideragdes sobre a vida, nenkuma delas particularmente otimista. (© fim da mamadeira é a sua libertagho. Voce pode voltar para a cama. Isto é, seo bebe permite. Fid vezes emt que cle continua chorando. Voce tenta remédios para célicas, vore muda as fraldas (duvido que voct ainda tenha vontade de comer abacate, depois de ver o que contém), e o guri sempre chorando, Finalmente voc’ & obrigado a concluir: voce nao sabe por que ele chora. Talvez a CIA consiga descobrir, mas vocé nao tem o nimero do telefone deles. Quando voce ja esté pensando em fazer as malas ¢ fu para o Polo Norte, ele de stibito deixa de chorar. Assim mes- ‘mo: para de chorar. Voce suspira aliviado, toma o rumo da ‘cama, dé a topada habitual e ai vé o relogio: sete horas, Esta nna hora de levantar. Vocé fazabarba, toma batho, xe veste, oma café— tudo 10 com olhos fechados — e antes de sair vocé ainda dé uma olhada no bebi. Dorme tranquilamente, claro. E 0 sorriso que ostenta é definitivamente irdmico e triunfante. Moacyr Scuar Outra crdnica, redigida anos mais tarde, aborda uma segunda causa pela qual os pais nao dormem. Minha mae néo dorme enquanto eu nio chegar O titulo desta crénica foi tirado de um samba do grande Adonitan Barbosa: um rapaz explica a namorada que “nao posso ficar nem mais um minuto com voce. / Sint muito ‘amor, mas nao pode ser” porque, fill tinico, a mae nao dorme enquanto ele nao chega. De maneira geral, pais nao dormem. Podem deitar, Jechar os olhos, podem até roncar — mas, na verdade, nto esto dormindo, Quando os filhos io pequeros, esto atentos qualquer chorinko, a qualquer gemido; quando os filhos sto ‘maiores, ao contrério, 6 0 siléncio que os mantém despertos; 0 ‘omiinoso silencio do quarte vazie: 0 filho ou a filha nao estao, foram a um aniversario, a uma festa. Que terminard... Quem sabe quando termina uma festa de adolescentes? Para eles a vida é uma festa permanente, na qual o relégio & um corpo estranho. Enquanto isso, os pais esperam. Poderiam nao estar esperando, claro; poderiarn ter dado a chave ao fitho ow a filha Mas dar a chave é um gesto élico para o qual os genitores nem sempre esto preparados, e que, de qualquer modo, nao arante um repouso reparador; este <6 pode ter inicio depois do abengoado ruido da dita chave girando na fechadura, (O que fazem os pais enquanto esperam? Uns fingem dor- mir. Outros rolam na cama, inquictos, Ehdos que se levantam ¢ vao preencher estas horas, que afinal sito parte de sua vida, 225 UMA AUTOBIOGRAFIA LITERARIA com algo que aliviea ansiedade, e que seja itil. Conheco uma senhora que usa esse tempo para ler a Enciclopédia Britanica ‘em inglés; jd estd no volume 16 (Mush to Ozon) ¢ ainda néo recuperou a tranquilidade. Ha um pai que vé todos os filmes do madrugadao; segundo cle, urna noite dessas 0 James Cagney o mirou da tela e disse: “Vai dormir, rapaz! Jé estou farto de te ver ai todas as noites! Mas os pais ndo dormem. Como Macbeth, el a ordem fatidica: “Sleep no more"(ainda que, diferente de Macbeih, eles ndo tersham culpa alguma; ou talvez tenham; quem sabe 0 que se passa no coragiio dos pais?). Seu suplicio nada tem a ver com a idade do filho, Amigo meu, divorciado, voltou a morar com os pais; precisava de um tempo para se recuperar do trauma. Um tempo que teve, contudo, de abre- “Nao va ram viar - porque, cada vez que saia, a mae Ihe dizia: voltar tarde, meu filho!”. E, cada ver que o programa noturno cestava.a ponto de gerar um romance, ele se lembrava da mae acordada, a esperi-lo, e voltava. A insbnia dos pais é eterna e incurdyel. Mas a crOnica também pode descrever situagdes nao tio amenas quanto estas. Em 1993 tive um grave acidente deautomével, umasituagao aflitiva quemelevou a UTI em estado grave, e que Vivi como paciente c como médico. Junto eu sentia @ urgente necessidade com a dor eo sofrime' de narrar esta experiéncia, de entendé. ‘Tao logo pude levantar da cama, escrevi o que segue. através do texto. aw Moacyr Seuan Voltando a vida Vida é assim. = Um dia de manha voce pega seu carro, na praia, para ra Por Porto Alegre, onde tem alguns assuntos a resolver. A tarde voc' estard de volta; somo muitos, como todos, vocé acredit que a vida pode ser planejada e que as sit ool conforme o previsto. a ___ Vooe entao vai dirigindo seu carr, nesta manha agra- devel, conversando com a amiga, a quem voce estd dando carona. E entito um estrondo, e um segundo depois voce estd Jogado no asfalto, 0 sangue correndo de varios feriment dores lancinantes pelo corpo. "i Voce nao acredita. “Nao, nao pode ser verdade, isto & tm pesadelos en ainda nao acorde, estou sonhandos daqui a pouco despertarei e comegarei uma viagem a Porto a af sim, tudo dard certo.” Mas a realidade se impoe, onl voce acabou de softer um acidente,evoc8sente 0 enue sopra de sua vida vacilando, prestes a se extinguir. 4 Sou médico, Sofri um acidente, mas sou médico, conti- uo médico. Muitas vezes atendi pessoas em situagdo igual @ que me encontro, Aprendi algo com isso, aprendi a raciocinar depressaecom clareza quando uma vida est em risco. Desta lucidez médica preciso agora, para enfientar 0 caos organico € mental que, muitas vezes, precede o fim. : Nao enxergo. Por alguma raza — trauma craniano, acho ~ perdi a visto. Mas ouro vozes. Confusas, alarmadas. Querem me leva, E eis o primeiro perigo: “levar” significa que ‘me agarrariio pelos bragos ¢ pelas pernas, me colocarao num carro eassim sereitransportado, Mas sei que tenho fraturas e 208 Unta Avrostocaarta LITERARIA alana soa dentro de mim: ndo, eles nao podem me levar, ‘les me colocarao em risco ainda maior. Com o que resta da minha autoridade médica, comando: ~ Nao me mobilizem, deixem-me aqui, chamem uma ambuldncia. ‘Neste momento, a sorte decide a meu favor, Ha um saT- gento da polcia militar no locale também, como me contans depois, um auxilias de enfermagem. Esto elesque organizam minha remogiio: com uma porta de madeira improvisarn uma f maca ¢ levam-me & ambulancia, Depois de uma vingem, que as insuportéveis dorestornam: ainda mais longa e dificil chegamos a Porto Alegre. E aqui estou eu, num cenrio que ho me é desconhecido: 0 Hospital de Prowto Socorro, do qual {fai meédico, Ali muitas vezes recebi pacientes que, como eu. politraumatizado, a; chegavam com o rétulo terivel: Sou colocado numa maca e rapidamente examinado. Hi suspeitas de fraturas ¢ de traumatismo craniane, preciso ser radiografado, tomografado. E enidio comega a corrida da: ‘maca pelo corredor: 0 teto que eu veja, 0 teto passando répido, , faces ansiosas, eluzes, e aparelhos. Cada movimento acarreta dores lancinantes. Ha win sé momento em que tenho descanso: quando me introduzem dentro do tomégrafo. Esta experiencia, queen outros se acom- panha de claustrofebia, me proporciona um bem-estar incrivel sem dor, quieto, no escuro. “Deixem-m ali estou, imobilizado, aqui”, & 0 que en tenho vontade de pedir, mas sel que & in possivel, Levam-nne para a Unidade de Tratamento Intensiv ‘Ali obtenho o primeiro alfvio: com grande habilidade,, s o.anestesisia introduz-me na coluna vertebral wm cateter Guts. nas ratzes nervosas. Tae grande pinga morfina diretamente ny €0 bem-estar que chego a ficar euférico. Uma euforia que, contudo, nao durard muito A radiografia mostra que tenho vérias costelas que~ bradas e sangue na cavidade tordcica. A fungao respiratéria estd em risco, & conveniente que eu seja transportado para um servico especializado, o Pavilhiio Pereira Filho, da Santa Casa de Porto Alegre. Ali também estou em casa: frequentei esse serviro quando, no comeco de minha carreira médica, trabalhava com tuberculose. De imediato sou transportado aUuTL Ai viverei uma experiéncia, para dizer om mo, insd~ lita. Na UTL a vida esté em suspenso. O tempo ali nao passa ~alids, nao ha religios nas paredes. A luz nunca se apagas nao é dia, nao é noite, reina uma dlaridade fixa, imutével, Mas omovimento écontinuo; médicos, enfermeiras, auxiliares Sat de um episidio sombrio néo apenas com a satide preservada, meas conta confianga resiaurada, Esso, para quem ‘sté hd anos no ramo, nao é pouco. Garanto: nao é pouco. ___ Nao foi a primeira cronica que escrevi sobre uma situagao dolorosa. Anos antes, minha mie, doente de cin- cer, viera a morrer —em meus bragos. Foi uma experiénci terrivel, que até hoje me persegue. Num Dia das Ma J evoquei sua morte no texto que segue. a “Pieta” Talvez ndo exista imagem mais dramética e mais laceranie do amor materno que a Pieta, de Michelangelo, A mae que segura o filho morto ao colo traducy eo Jrieza do marmore (ou justamente por causa dela, por causa do contraste que proporciona aquela superficie lisa, branca e ria com o medonho sofrimento), toda a di erst que pod atingir esta queé a mais singular das formas de amor, 0 arnor que a natureza cro para assegurar a perpetuagao da espéce, Mas hd outra imagem igualmente terrivel, se bem ia nndo expressa em marmore, ou em bronze ou em aac é do filho que sustenta a mae moribunda, E éuma coisa curi E que tal imagem seja tho rara, Curiosa e significativa Poon se os artistas quisessem nos poupar da visto da morte da mg tum fato biologicamente até mais provdvel, mas ‘nadie 4 idea da mde est ligada a de um amor que ¢ profundo, éincondicional; que é eterno. a E no entanto as mdes morrem, como o sabem todos que veem 0 Dia das Maes como data melancélica; pessoas que jd nao podem homenagear suas mies. Elas morrem. Quando a gente menos espera, as maes se vo. Desaparec 0. D em, QRAFIA EITERARIA, Uma aurow! Minha mae morreu. De cancer, como muitas outras maes, Uma doenca apavoranie, mas nao rara: é a segunda causa de dbito no Sul do Brasil, E eu, como médico, deveria estar preparado para a ideia de cfncer em alguém dos meus. ‘Mas nao estava preparado, E nem pudeaceitar a sirua- iio. Nem o diagndstio, nem o tratamento, nem o prognés: fico, nada, Quando, saindo da sala de operagdes, 0 cirurgino ‘me disse as clissicas e meclonhas palavras — no hd nada a fazer, eid tudo tomado - tive, pela primeira vez na mina vida, a sensagio da vertigem existencial, aquela vertigem ques ‘num étimo, nos precipita no mais undo dos abismos. E uma 10 que 56 nto nos aniquila porque é passageira (mas para que sensagi exigird 0 resto da vida, sea este resto quanto for. precariamente a elaboremes)- ‘A.agonia foi longa, doloro: «0 espectro de nossos tempos; sua mal implacdvel disseminagao como da desmoralizagio que provoca nna pessoa. As vezesespera-se pela morte como por ura liber- tacao. No caso de minha mie, a morte veio na hora em que amorte mais se anuncia: poucos minutos apds a meia-noite, quando as pessoas, cansadas, entregaimse 40 repouse- ‘No quarto do hospital, aguardavamos o fin, 0 s0r0 a pingar montotonament Imenie. De repente, ela se soer- ‘queu; sustentei-a como pude, com bracos que fraquejavami ¢ ‘la entao me olhou, e este olhar nao mais poderei esquecer, porque era um olhar aterrorizado, era oolhar do ser humane iftando a Mortequechega, 0 othar deinerédulo terror, 0 olhar que indaga, ser a menor esperanga de uma resposta: “Por qué? Qual o sentido disto tudo?” sa e insuportavel. O clncer é lignidade resulta tanto da 29 Fia muitas perguntas em minha vida, sobretudo a meus ais, que representavam para mim a fonte de todo o conheci- ‘mento, de toda a sabedoria. Mas desia vez nao era eu quem Perguntava. Nao era 0 menino curioso a indagar: “Mae, por que chove? Mae, aquilo na Lua é uma cara? Mae, como éque 0s avides voam?”. Nao, eu jd nao podia perguntar nada, ndo podia sequer implorar @ minha mae que me transmitisse uma uiltima mensagem, uma derradeira ligdo de vida, Tudo que eu poderia fazer era sustenté-la em meus bragos. Tudo que eu oderia fazer era ter piedade: Pieta. Epiedade eu tive. Dela, de mim, de todos nds. Dos fllos, dos pais, das macs. Porque nite hd filhos, nao hd pais, nao hd mites, nesses momentos; hé eriancinhas assustadas diante da Grande Incognita. ‘Meu primo, que também émédico, meajudou naqueles ‘iltimos instantes. E logo depois estava tudo terminado, As vezes vejo meu filho Beto-acariciar os cabelos de sua ae. E um gesto terno, um gesto delicado, mas é sobretudo um gesto de instintiva sabedoria, Precisamos cuidar de nossas ‘maes, precisamos protegé-las, precisamos reconhecer nelas as frdgeis criaturas que muitas vezes sto. Precisamos ajudd-las a escrever o poema pedagdgico que é.a edificacio de uma vida, E precisamos jazer isto com a arte e a paciéncia com que Mi- chelangelo esculpiu a Pieta, Em 1993 fui convidado por um editor da Folha de S, Paulo para escrever um texto de ficgao baseado em matérias publicadas no jornal. A proposta me surpreendeu. Achei até que tinha entendido mal: nao se trataria de uma crénica? Nao, nio 24 UMA AUTOBIOGRARIA LITERARIA ‘era cronica, era ficgao mesmo. [deia original, mas de dificil execucios outros escritores, convidados para participar na 1a coluna, acabaram desistindo. Continuei sozinho, Pos alae ‘e com o tempo constatei que, atras de muitas f jommal, hd uma historia esperando para ser contada ~ Dalton Trevisan (1925-) escreveu varios: contos desta: ee cobrir qual noticia capas de dar uma historia, ¢ descobrir ahistéria emsi, envolve até um elemento de suspense, que funciona como desafio. Nem sempre se trata ara mim, a censacional; pode ser, por exemplo, uma de uma maté curiosidade hist6rica. Como a que segue. Roda dos expostos “Roda dos expostos” recebia bebés rejeitados até 0 {final dos anos 40, Feita de madeira, era geralmente um cilindro oco que girava ent torno de seu préprio eixo ¢ tinha uma portinha voltada para a rua, Sem ser iden- tificada, a mae deixava seu bebe e rodava ocilindro 180 graus, 0 que facia a porta fcarvolada par o interior de predic, onde alguém recolhia a erange reitale Em Sao Paulo, bastava a campainha soar no meio da noite para as freiras da Santa Casa terem a certeza Es aque mais uma erianca acabava de ser rejeitada (2 de {fevereiro de 2006). Ele foi provavelmente urn dos tiltimos bebés eit roda dos expostos, oque aconteceu hd exatamente 65 anos. i vide compensou-o devidamente. Entreguea uma familia de 235 Moacyer Scuar classe média alta, gente senstvel ecarinhosa, teve uma infancia feliz, com os irmiios, com brinquedos, com livros. Estudou, entrou na universidade, formou-se em Medicina, tornou-se 4m neurocirurgiao famoso, respeitado no pais ¢ no exterior, Os pais adotivos faleceram quando ele tinha quarenta anos. Pouco antes de morrer, a mae revelou-the a historia da roda dos expostos. Chorou muito, mas nao por ter sido abuandonado; chorou pelos pais, a quem amava profundamente e que the fariam muita falta, A verdade, porém, é que a revelacao o abalou. Fez psi- coterapia por algun tempo, acabou deixando, e por fim achou sua propria maneira de lidar com esse trauma da infiincias mandou construir uma roda dos expostos, Nao é uma roda Pequena, para bebes;é algo grande, onde ele, homem robusto, . Ea partirdat imaginou uma espécie de ritual Todos os anos, no dia de seu aniversdrio, a porta da lu- 2u0sa mansiioem que mora éaberta ¢, no vio, osempregados colocam a grande roda dos expostos. Ele entra ali. A roda gira, na grande familia, esposa, flhos, filhas, netos = recebe-o entre abragos ¢ exclarnagdes de jibilo. Cantam 0 roda é retirada.e a festa ten com a presenca de amigos e familiares. ‘Nos primeiros anos as pessoas achavam estranho este . Depois, deram-se conta de que aquilo correspondia uma necessidade emocional ¢ accitaram-no, Até 0 cumpri= mentam pela ideia, simbélica e generosa. O que nao the perguntam, e nem ele fala a respeito, & em que pensa no momento que a roda esta girando, trans- 236 [UMA AUTOMOGRAPIA LITERARIA portanio-o do exterior para o interior, do abandono para 0 ‘acolhimento. Dura poucos segundos esse intervalo, e nem ha tempo para refletir muito. Mas é entao, certamente, que cle descobre os segredos de sua vida. s yes Incursionei por muitos outros gers: artigos nso ficcao infantojuvenil, teatro, tevé. A tinica coisa que nao fiz, sar) sistematicamente (e deste crime nao podem me i é sia, Mesmo assim, cometi alguns versinhos ¢ até cheguet a figura em guns deles, como este, que fig ar em livro algun oe po or i i Os deuses de Raquel eque aqui vai com pe = a Camées (15272-1580) ea Drummond (1902-1987): Nao te das conta, pobre tola, ‘ao aniversariares com paixtio, que a vela que arde no bolo éamesma que enfeita 0 caixiio?

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