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LUMINOSA LUCIDEZ EM TARRAFAL DE SANTIAGO (UMA LEITURA DE

POEMAS DE ANTONIO JACINTO)

Tania Macedo

O livro Sobreviver em Tarrafal de Santiago 1, lançado no ano de 1985, congrega


poemas de Antonio Jacinto elaborados durante o longo período de seu encarceramento no
Campo de Concentração do Tarrafal, na Ilha de Santiago em Cabo Verde.
Composto de três partes em que a memória e a reflexão sobre a poesia se fazem
presentes, o livro é, sem dúvida, um dos momentos mais iluminados da trajetória artística
de Jacinto, poeta que cuja referência é imprescindível quando se fala da literatura angolana
contemporânea.
A situação de produção dos textos desse livro inscreve-se não apenas no título do
volume, mas também ao longo de seus sessenta poemas que desenham a cartografia do
cárcere em Cabo Verde. E, dessa forma, flagramos, em meio a uma paisagem inóspita,
limitado pela exigüidade do espaço-cela, numa ilha do Atlântico o poeta que, mesmo
exilado, não deixou de produzir: compondo, exprimindo, refazendo textos, rejuntando
experiências passadas e presentes, entre as grades da prisão , Antonio Jacinto modula o seu
canto de liberdade e crença no humano entoado sob a privação e a desumanidade do campo
de concentração. Sob essa perspectiva, esse livro de Jacinto constitui-se em um dos mais
comoventes e lúcidos documentos poéticos sobre a esperança e a capacidade de a poesia
ultrapassar os limites impostos e, assim, construir utopias.
Resultado de um esforço contínuo de, lucidamente, ampliar horizontes para além
dos muros da prisão e, dessa forma, concertar a harmonia do artefato poético em meio à
barbárie do cárcere político, Sobreviver em Tarrafal de Santiago revela a tentativa de
transcender a exigüidade (de espaço e liberdade), quer no plano de apreensão do mundo,
quer no plano da construção original do universo poético. Ou seja, os poemas ali reunidos
apontam para o “construir o aberto” – para usarmos aqui a expressão de João Cabral de
Melo Neto – desdobrando o espaço e os textos em um caleidoscópio de paisagens, de forma


Professora da Universidade de São Paulo (USP) e da UNESP-Campus de Assis
1
Todas as citações no corpo do texto referir-se-ão à edição do INALD de 1985.
a que se criem passagens não apenas de porvir, como também elaborem liames entre o
passado e o futuro, entre o individual e o coletivo.
Essa construção, todavia, não parte de uma visão onírica, mas sim de uma
consciência acordada, que apresenta os frutos de seu trabalho.
É assim que, sob o signo da precisão e da racionalidade, Antonio Jacinto – o
arquiteto de poemas – erige um discurso de recusa ao cárcere e à alienação, ao mesmo
tempo em que constrói nas malhas do poético a positividade de um cântico de amor e de
liberdade, como se pode ver no poema “Nas tarefas da construção do mundo”:

Nas tarefas da construção do mundo


Aqui estou de novo
Unido
- Na procissão de vontades
Alavancas em aplicação comburente –
Aqui estou de novo
Presente!
(p. 50)

A construção do mundo como tarefa inadiável em que colabora o eu poemático,


mobilizado pela coletividade e pela história (“procissão de vontades”), apresenta-se no
poema como a alavanca que permite a reafirmação de sua humanidade (“Presente!”).
Ocorre que esse movimento, sem dúvida, excede a individualidade, acabando por resgatar
a história não enquanto moldura do literário, mas enquanto uma de suas componentes
internas que se articula às outras, resultando disso a organicidade a obra.
Assim, desenha-se a partir da perspectiva particular do eu lírico, a história de todos
os que foram encarcerados pelo regime colonial, de forma que o doloroso itinerário
apresentado pelo livro é também o caminho de todos os nacionalistas cuja voz a opressão
do colonialismo tentou silenciar. Surgem, dessa forma, as três partes que compõem o livro,
as quais flagram o exílio sob variados aspectos: desde o embarque rumo ao campo de
concentração como se verifica em “Neste navio embarcados”
Neste navio embarcados
Somos náufragos ancorados
Oh!
neste navio ancorado
somos náufragos embarcados
Oh! Navio!
Oh! Náufragos da terra longe!
Oh! Terra longe!
Oh!Terra!
Oh!
(p. 19)

que marca a primeira parte do Livro, intitulada TARRAFAL EM REDOR, até o


“Sonho, doce miragem, fumo ou breve nuvem” de TARRAFAL LÍRICO, o qual procura
atar as pontas da memória individual a uma poética coletiva, passando pelo TARRAFAL
INTERIOR, em que, não raro, a própria poesia é tematizada, como forma de resistir ao
encarceramento, como se pode ver em “Alvorada”:
No ensombrado barracão de grades
grades que não impedem estrelas
estrelas no celeste painel negro
As camas alinhadas
As cobertas novas
Os tossires da madurgada.

Desperto!

E tu Poesia, invades,
(pelas
ondas de sono refrego)
as idéias desarrumadas
- enroladas trovas –
Tu Poesia, ou talvez Nada.

Da cama,
são as estrelas perto! (p. 54)

As três partes do livro, com todos os poemas datados, possibilitando que se


acompanhe os dias e anos em que foram escritos (e o tempo que durou o encarceramento),
elaboram de maneira admirável o percurso do homem sob privação que se recusa a perder
o sonho e a dignidade, pois traz em si uma certeza que o poema intitulado “Nem a chuva
dissolve estas pegadas” deixa entrever:

Nem a chuva dissolve estas pegadas


Nem o tempo as tem sepultadas
Remonta ao xisto a força da verdade
Renasce o sol do teu seio – LIBERDADE!

Outras vozes

Além dos temas da resistência e da liberdade, desenvolvidos em vários poemas,


constitui também a tematização da Poesia elemento recorrente ao longo do livro. Como
bem afirma Irene Guerra Marques na Introdução do volume,

Alguém lhe acena e lhe estende amorosamente a mão. É a Poesia, a sua Amiga de
sempre. E o Homem, ergue-se, firme e resoluto. Lá longe, os seus poemas “Carta de
um contratato”, “Monangamba”, outros, estão nas fábricas, no musseque, no
coração do Povo. Os seus companheiros esperam-no! Resistir! Viver para regressar!
África presente (...) (p. 10)

Apresentando-se como reflexão metalingüística ou a partir da voz de outros poetas,


convocados no texto a acenderem a centelha da esperança a partir do fazer artístico,
deparamo-nos em vários momentos de Sobreviver em Tarrafal de Santiago com uma
reflexão lúcida e madura sobre a escrita e a poesia.
Veja-se, por exemplo, o poema “Alda Lara”, que revisita o texto “Testamento” da
poeta benguelense, de maneira que um sentido de missão e de esperança (Quanto aos meus
poemas loucos,/ Esses, que são de dor /Sincera e desordenada.../ Esses, que são de
esperança, /Desesperada mas firme, /Deixo-os a ti, meu amor... ) são retomados por Jacinto:

Irmã
não se frustrou a vida
de breve interrompida

(...)

Voltarás
(exige em espera nossa saudade)
E surgirás
das fímbrias da memória
- alma aberta de contentamento –
se, como tu, nos vires
espargir pelo Mundo
tuas flores
de amor fraterno e puro. (p. 55)
Mas outras vozes poéticas também comparecem trilhando as veredas da poesia no
Tarrafal: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Manuel Bandeira, Ovídio Martins , citados
literalmente nos poemas, ou ainda a partir das sugestões de versos de outros companheiros
de fazer artístico, como Camões em “Apontamento para poema” (amor é fog´alma/põe
brilho/diamante nos teus/olhos/instante de febre-tacula/na tua/face trigueira), cujo famoso
soneto “Amor é fogo que arde sem se ver” é angolanizado por Jacinto.
Vale ressaltar, todavia, que a metalinguagem ou a citação de outros poetas não
atende a um mero exercício estético. Pelo contrário, encontramos a cada passo a expressão
de uma profunda crença no humano, de forma a que a Poesia acaba por ser a parceira que
ilumina os recantos escuros da cela, propiciando o brilho da esperança. Assim, verifica-se
que a todo instante o lírico e o político se solidarizam na elaboração de uma produção
liberta e libertadora – única forma possível de ser da poesia em nosso tempo – a qual
organiza a personalidade poética expressa nos poemas de Sobreviver em Tarrafal de
Santiago e do qual o poema “Ó dragões de fauces sangrentas” é exemplar:

Ó dragões de fauces sangrentas


Satãs triturando homens nos engranzos do ódio
Entre o chão e as cardas das botas
Procurais apagar uma a uma
As perenes chamas da esperança duma
Múmura for de sangue ou
Duma poêmia imperecível

- digo-vos que sou perigoso quando


na força viril do meu verso
Espero!

Detecta-se aí uma tensão mantida (e não resolvida, o que seria impossível ao poeta
cativo) entre a atividade cruel e repressiva de aniquilamento e da memória e da palavra, e
uma confiança fundada a partir da voz acusatória que se ergue (“força viril do meu verso”).
Assim, o esperar não significa passividade, mas sim a certeza no devir, na

tarefa de formular, poeticamente, respostas que traduzam (...) a sua crença na


resistência, na capacidade de assegurar à palavra o direito e o poder de continuar
fundando utopias. (CHAVES,
Nesse sentido, Sobreviver em Tarrafal de Santiago realiza a delicada articulação
entre o histórico – coletivamente desejado – e o subjetivo, sofridamente vivenciado, através
da palavra, apontando a poesia como “recado de ressurreição”, como se lê em “Nuvem
passageira”

Olho-me
Serenamente
morri.

Alguém morreu de mim dentro.

A dúvida
- Eh! Drama cruento!... –
Aqui permanece e sente.

Quem me morreu no meu eu?

A criança inocente?
(os mitos e mistérios a tiveram criança)
O poeta semeador de estrelas de esperança?
(uma mensagem o firmava)
O feito sonho de fraternidade?
(de lado a lado as mãos dadas)
O todo confiança destemida?
(nupérrimas núpcias)
O que cria Paz?
(aquém e além desta realidade)

(...)

Morri?

Mas eu vos acompanho


(a todo o tamanho)
que a vida de novo bate à porta
como importa:
- recado de ressurreição!
Não causa espanto, pois, que todo o livro de Antonio Jacinto seja perpassado por
imagens luminosas, indicadoras da “luminosa esperança” (para lembrarmos aqui outro
poeta angolano, João Melo) expressa em seus versos.
Assim à lucidez de um discurso que afirma a liberdade para todos, vinculam-se
raios de luz dispersos sob variadas maneiras:
Sol – “Ilha ao entardecer” (p. 27), “esplendorasa manhã” (p. 28), “na manhã rosa
meu sol/aquece” (p. 33)
Lua – “Lua lívida e leve” (p. 66), “Se disser que a Lua é a flor” (p. 85);
Estrelas – “sonhemos estrelas” (p. 62), “fulgindo lume destrela” (p. 33); “grades que
não impedem estrelas” (p. 54)
Fogo – “na pira que da dor esplende amor” (p. 84), “construam as chamas suas
próprias cinzas” (p. 31).
Os poemas inundam-se, pois, de uma luz que se contrapõe às trevas do cárcere e da
solidão, na construção magnífica que amplia os limites impostos pelas grades e torna claro
o ambiente onde se ergue a voz que a prisão pretendia silenciar.
Dessa maneira, Sobreviver em Tarrafal de Santiago apresenta-se como uma fala
lúcida e poeticamente articulada, iluminada pela Sagrada Esperança da liberdade: cântico
que nos devolve a crença de poder construir um amanhã em que “Vamos com toda a
Humanidade/ conquistar o nosso mundo e a nossa Paz” (NETO, 1985, p. 60), como afirma
Agostinho Neto, seu companheiro de poesia e lutas.
Poucos poetas possuem essa capacidade de realizar a passagem entre o individual e
o coletivo, entre a subjetividade e a utopia, pois, como bem observa T. S. Eliot, “a poesia
não é soltar de emoção, mas uma fuga à emoção; não é a expressão da personalidade, mas
uma fuga à personalidade. Mas, claro, somente aqueles que possuem personalidade e
emoção sabem o que significa fugir a essas coisas” (ELIOT, 1962, p. 34).
Antonio Jacinto o sabe largamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAVES, Rita. Costa Andrade: poesia e história com empenho e arte.
ELIOT, T. S. Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães Editores, 1962.
NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática, 1985.

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