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Para se orientar na vida os seres precisam de indicações. A este respeito os animais seguem o
que os seus instintos lhes indicam. Mas quanto ao homem, os instintos que possui não são
suficientes para ele se orientar na vida. Sob este aspeto podemos dizer que o homem é um ser
ontogeneticamente inacabado, deste modo, precisa de padrões de conduta na vida e que lhe
digam como se deve comportar. É nas regras que os homens encontram os modelos de
orientação para as suas condutas, regras essas sem as quais não conseguem viver em
sociedade. Até o simples modo de vestir obedece a regras (variáveis é certo) conforme as
situações e as convivências sociais. Já as crianças brincam de acordo com regras de jogo que
estabeleceram e que, ao criarem igualdade de oportunidades para ganhar o jogo, permitem-
lhes competir entre si. As regras dizem ao homem o que está certo ou errado, justo ou injusto.
Contudo, as regras não têm todas a mesma natureza ou importância; conforme a sua origem
varia a força vinculativa com que se impõem.
Como as regras não são inatas, o homem tem de as apreender. Desde o seu nascimento o
homem encontra-se envolvido num determinado contexto a que foi exposto e que atua sobre
ele. Isto é, o homem, desde o seu nascimento sente a conivência humana que o rodeia. E esta
convivência com outros homens acompanha-o durante toda a sua vida, uma vez que apenas
em sociedade humana consegue (sobre)viver. As regras que servem para o orientar emanam
de “instituições”, logo, para viver em sociedade, o homem precisa de instituições. As
instituições poderão ser definidas como conjuntos na realidade social que, como organizações
sociais, estabelecem para quem a elas pertence regras de conduta ou de comportamento que
têm carácter normativo e normador (norma = regra) e que, ao serem observadas, garantem a
segurança nas relações entre os homens abrangidos por elas. É precisamente nas instituições
em que está inserido (familiares, educativas, culturais, desportivas, políticas, etc.) com as suas
normas próprias e padrões de conduta, que o homem aprende a viver regradamente em
sociedade com os outros. Muitas vezes, as regras de convivência nem sequer são sentidas
porque na consciência das pessoas já estão completamente interiorizadas como habituais. A
primeira instituição em que o homem está inserido e começa a ser socializado é a família.
O homem é um ser social que evolui e se realiza na convivência com os outros, apresentando-
nos uma natureza ambivalente como indivíduo autónomo e ser social, a “sociabilidade não
social”. O homem está sempre relacionado com alguém (depende do outro), e como indivíduo
depende da sociedade. A sua sociabilidade existe em todos os estados da sua evolução e em
todas as culturas, sendo certo que os concretos modos de convivência são naturalmente
diferentes, excetuado um ponto: todas as relações sociais, inclusive as relações jurídicas, são
relações de poder. Por mais individualista que um homem queira ser, ele continua
inevitavelmente um ser social. A sua humanidade específica está intrínseca e
inseparavelmente ligada à sua sociabilidade, e a sociedade é uma forma de vida necessária por
natureza ao homem, essencial à constituição da humanidade do homem. Por outro lado, a
conduta do homem enquanto ser social precisa de uma “ordem” que legitima a sua atuação,
de uma organização que implica a existência de regras ou normas que o disciplinam. A
necessidade de organização implica a existência de regras ou normas que disciplinem a
conduta do homem que, enquanto ser social, precisa de uma “ordem” que legitime a sua
atuação. Os homens distinguem-se e caracterizam-se por uma extrema complexidade, por
uma individualidade que é um mosaico das mais diversas vivências que a identificam, havendo
assim diferenças consideráveis entre uns e outros, dotes naturais muito desiguais,
mentalidades e comportamentos diferenciados. Sendo assim, vemos que são as diferenças
entre eles que mais caracterizam os homens; diferenças essas que, com toda a sua diversidade
e multiplicidade, em caso algum afetam os homens na sua igualdade em dignidade e direitos
(e obrigações) decorrente da natureza humana e comum a todos os seres humanos, mas estão
perfeitamente de acordo com elas. Na verdade, os homens são todos iguais como homens,
têm a mesma natureza humana, mas como indivíduos são todos diferentes. Contudo, embora
dando estabilidade e orientação às condutas dos homens, as próprias instituições estão
naturalmente sujeitas à evolução (cultural, científica, económica, política, social). Todo o
mundo é composto de mudança. Para entendermos isso, basta olharmos para o curto período
da evolução da instituição da família que no decurso de pouco mais de uma única geração
sofreu alterações profundas que refletem a evolução e a alteração das conceções
predominantes na sociedade e a modificação das mentalidades das pessoas. Todavia, não
obstante todas estas evoluções, a família – ou os vários modelos familiares que foram surgindo
– manteve a sua função institucional de sempre: a inserção do homem na sociedade (sua
socialização primária), a aprendizagem de viver em comunidade.
Já Aristóteles abordava e distinguia entre direito natural e direito legal. O direito natural tem
em todos os lugares a mesma força e não depende do consentimento dos homens (é pré-
existente). São regras comuns à humanidade que vigoram em toda a parte. E em sentido
semelhante Montesquieu constatou que há leis que os homens fizeram e leis que eles não
fizeram (mas que têm de observar).
A condição biológica (física) do homem, insuficiente para se afirmar por si só, acaba por ser
completada, pela sua condição ou componente cultural, sendo as condições biológicas e
culturais complementares, e não opostas. A cultura – com as suas manifestações e produções,
padrões de conduta e interação, atitudes, crenças e regras – é o meio ambiente construído
pelo homem. Os padrões culturais dizem ao homem como se comportar, dão-lhe segurança e
ao mesmo tempo liberdade. Tais padrões culturais de conduta ou instituições são para o
indivíduo um indicador do rumo pelo qual se deve orientar, sendo certo que as culturas que os
homens desenvolveram são muito diferentes entre si. Na medida em que o homem se
mantém dentro dos respetivos padrões culturais, anda seguro. Todavia, a cultura não
determina por completo o pensar e agir dos homens.
A função do direito aparece-nos desta maneira como uma necessidade prática: mediante o
estabelecimento das normas de conduta possibilita e assegura o desenvolvimento do homem
na sua convivência com os outros, bem como a satisfação dos seus interesses próprios ou
individuais. O direito estabelece deste modo regras para o comportamento exterior dos
homens na sua convivência entre si, define o quadro dentro do qual se podem (e devem)
mover. Esta função tem em vista sobretudo os aspetos da ordenação da liberdade individual e
da criação de segurança na convivência social. As normas jurídicas que vão ao encontro dos
interesses dos homens revelaram-se, desde sempre, mais eficientes do que proibições ou
punições. Apenas uma ordem jurídica que realize, de uma maneira equilibrada, liberdade e
segurança continua a ser aceite e consegue conciliar e ordenar os interesses divergentes entre
os homens ou entre estes e a sociedade, bem como extinguir os conflitos que daí possam
resultar. Por regra, a ordem jurídica – que é aceite – conta com a observância espontânea e o
cumprimento voluntário das suas normas, em virtude do sentimento jurídico comum dos
homens. Contudo, quando ela não é experimentada como justa, mas antes como um regime
de força, o referido comportamento não se verifica. O mesmo sucede em períodos de crise
(por exemplo, guerra) em que se dissolvem os valores comuns da sociedade e, entre eles,
também o sentimento comum de justiça. E nestas situações todas as autoridades públicas são
poucas para manter a paz social. Sempre que as normas jurídicas são desrespeitadas é
necessário e lícito que os órgãos estaduais recorram a meios coercivos para impor a sua
observância. É uma característica do direito serem as suas normas munidas de coercibilidade,
segundo as regras e formas de um processo judicial, ordenado e formalizado de maneira
objetiva e isenta para garantir a igualdade processual das partes litigantes. Na medida em que
é vedado fazer justiça pelas próprias mãos, o direito serve e protege desde já o mais fraco,
incapaz de se defender pela força, por ser mais fraco, mas capaz de fazer valer os seus direitos
num processo judicial. Em qualquer caso, e isto convém ser sublinhado, não pertence às
funções do direito eliminar as diversidades de interesses entre os homens. De igual modo,
também não é função do direito eliminar a relação de tensão existente entre o homem
autónomo e a sociedade em que se integra, dando supremacia àquele ou a esta. Todas estas
relações de tensão devem ser ordenadas e reguladas de forma a garantir o desenvolvimento
tanto do homem autónomo, do indivíduo, como da própria sociedade.
Nestes termos, a função do direito é ordenadora e criadora de segurança e certeza, que são
valores imprescindíveis para a convivência humana. Mas um valor que pode ser considerado
como mais elevado do que a ordem jurídica é a ordem moral. O direito diz respeito às relações
dos homens entre si ou com a sociedade ao ordenar, delimitar e compatibilizar as suas esferas
de interesses e de atuação. Assim, o direito visa regular a convivência exterior ao garantir a
liberdade de agir. Dentro desta finalidade, a observância das regras jurídicas é coercível, pois
um comportamento exterior pode ser fiscalizado e imposto. A ordem moral, por sua vez,
dirige-se para dentro e aponta para as convicções internas e o aperfeiçoamento ético do
homem. Ela resulta da sua consciência e é com base neste “fio condutor interno” que o
homem procura (ou deve procurar) pautar os seus atos. Todavia, normalmente as condutas
dos homens conforme as leis correspondem também às suas convicções morais. Dada a sua
função de ordenação exterior da convivência humana, o direito possibilita a todos viver em
conformidade com as suas convicções interiores de acordo com as suas conceções morais,
crenças ou confissões religiosas. Acresce que o direito não pode ignorar a moral, não pode
abstrair de princípios morais. Estes últimos são, de facto, orientações para ele. Contudo, daí
não resulta que o direito pode transpor princípios morais para o seu domínio, a não ser em
situações específicas, como sucede, por exemplo, quando o Código Civil, nos seus artigos 280.º
e 281.º, invoca os “bons costumes”, ou seja, os valores morais positivos compartilhados e
vigentes na sociedade, que um negócio jurídico deve respeitar (sob pena de nulidade). O
direito não pode juridificar a moral, pois isto significaria que os homens tivessem de
subordinar não apenas o seu pensamento, isto é, as suas convicções morais, mas também o
seu comportamento exterior à moralidade o que favorecia a hipocrisia e, pior, a intolerância e
seria destruidor da liberdade e da democracia e, em última análise, totalitário no sentido de
quem impõe os seus critérios morais. Na medida em que o direito não pode abstrair de todo
de princípios morais pode dizer-se que ele se deve orientar na moral, na medida em que
consagra o “mínimo ético”, uma ordem de valores, que é aceite por todos. Caso isto não
suceda, ao verificar-se uma dissonância aguda entre convicções morais generalizadas e a
ordem jurídica, estamos perante uma crise social em que a ordem jurídica é sentida como um
mero sistema de força e não de justiça.
Diferentes das normas jurídicas e das exigências morais são os usos e costumes, ou seja, meras
normas de conduta social que, sendo observadas de facto pelos homens, em princípio não têm
valor jurídico, embora este, segundo o artigo 3.º do Código Civil, pontualmente lhes possa ser
atribuído por lei. À semelhança das normas jurídicas, as normas de conduta social são
exteriores ao homem, mas, precisamente por não terem natureza jurídica, não são como
aquelas judicialmente coercíveis, sendo a sua observância sancionada apenas por uma
“coerção social” que consiste no desprezo, na marginalização ou mesmo na exclusão da vida
social. Esta sanção, por seu lado, tanto pode quase não ser sentida, como pode ir mais longe e
até ter consequências mais graves do que a inobservância de uma norma jurídica, devido ao
isolamento ou social do infrator em reação à sua conduta desconforme com as normas sociais
vigentes. Juridicamente relevantes são, por isso, apenas as normas do direito e, ainda,
excecionalmente, as normas morais e as normas de conduta social quando elas são
juridificadas, quer dizer, dotadas de valor jurídico que lhes é atribuído pelas próprias normas
jurídicas, tal como exemplificámos com as disposições dos artigos 280.º, 281.º, 218.º do
Código Civil. Acrescente-se que, quanto à realização ou à observância das normas jurídicas, o
homem está submetido a duas exigências: a exigência da justiça e a exigência da equidade
(suum cuique tribuere et neminem laedere). Mas, em contrapartida, nenhum homem está em
relação ao seu próximo numa posição de superioridade de tal ordem que apenas possa olhar
para o (seu) direito. A solidariedade é o comportamento mais humano. Igualmente não
podemos dizer que a crescente juridificação das relações inter-humanas as torna, por causa
disso, mais humanas; pelo contrário, frequentemente são tristes as situações em que os
homens, para se entenderem, nada mais sabem do invocar direitos e leis.
1.4.3 De qualquer maneira, quanto à obediência a normas devemos distinguir entre estar
obrigado juridicamente e estar obrigado moralmente.
Estar obrigado juridicamente significa que alguém, apoiado numa determinada norma jurídica,
pode exigir de outrem um comportamento, uma conduta (o artigo 2009.º do Código Civil diz
quais são as pessoas que são obrigadas a prestar alimentos e estabelece, no seu n.º 1, alínea
d), também a obrigação de prestar alimentos entre irmãos).
Estar obrigado moralmente significa que é a nossa consciência que nos impõe um dever (dar
uma esmola ou socorrer a quem está a afogar-se).
Obrigações morais e jurídicas podem coincidir: socorrer a quem está a afogar-se não é apenas
uma obrigação moral, mas também jurídica. Neste caso, a omissão de prestar auxílio é um
crime e como tal punido. Ainda pode suceder que alguém cumpre uma obrigação jurídica e ao
mesmo tempo sente-se também moralmente compelido a cumprir (por exemplo, prestar
alimentos legalmente devidos a seus irmãos). Como já sabemos, apenas a observância das
normas jurídicas é garantida pelo poder do Estado (através dos seus meios coercivos).
Compete ao Estado decidir se uma dada norma de conduta é uma norma jurídica, sendo assim
juridificada, ou se não o é. As normas morais em princípio não devem ser juridificadas.
1.4.4 Neste contexto podemos distinguir para já – entre as várias modalidades de normas (que
ainda vamos estudar) – as seguintes:
1) Normas preceptivas (= normas que prescrevem, que impõem um certo comportamento (por
exemplo, as disposições do artigo 879.º CC que prevêem as obrigações de vendedor e
comprador; normas que exigem que se contraia um seguro automóvel, etc.);
3) Normas permissivas que atribuem poderes, faculdades e garantem liberdades (por exemplo,
no CC os artigos 405.º [que estabelece o princípio da liberdade contratual que permite às
partes fixar livremente o conteúdo dos contratos … com as cláusulas que lhes aprouver”], ou
2179.º, n.º 1, e 2188.º [que consagram a liberdade de fazer um testamento]. Mas devemos ter
a consciência que todas estas liberdades existem sempre e apenas “dentro dos limites da lei”.
1.4.5 Resumindo:
podemos dizer que estas normas referidas exprimem três ideias: “tu deves, tu não deves e tu
podes”. Mas é fundamental a ideia de que antes de tudo as normas jurídicas aceitam e
protegem a liberdade. Mantendo-se dentro destes espaços de liberdade, portanto aceitando
as regras legais, o homem atua com a segurança que a lei lhe oferece. Neste sentido, o direito
estabelece regras para o livre querer, dirige-se a homens dotados de razão e capazes de se
autodeterminarem. No fundo, a liberdade não é concedida ao homem, ela pertence-lhe, é
inata – o homem nasce livre. Ele pode fazer uso da liberdade como lhe agradar e sem prestar
contas desde que não diminua ou prejudique ninguém. Contudo, a sua liberdade encontra,
naturalmente, limites, ou seja, os “limites da lei”. Os alicerces da liberdade são a propriedade
privada e o Estado de Direito, ou seja, um Estado submetido à lei e sujeito ao controlo judicial.
Sem um sistema de justiça independente, isento e eficiente a liberdade não está garantida.
Podemos dizer que nada protege mais os elementos mais fracos de uma sociedade e evita o
abuso do direito pelo mais forte do que a existência do Estado de Direito e de uma justiça
independente. Resta acrescentar que o espaço de liberdade reservado aos indivíduos dentro
de uma sociedade mede-se pelo grau de autonomia que a ordem jurídica lhes concede na
organização e conformação das suas vidas.
2. A ordem jurídica como ordem normativa
2.1 Subjacente à ordem jurídica estão as características que a definem e a individualizam face
às outras ordens normativas e que, de resto, implicitamente, já foram referidas. Pertencem
aqui as seguintes:
2.1.1 Necessidade
Já explicámos que a ordem jurídica surge como necessidade prática para regular a convivência
humana, em consequência da vida em sociedade. Já Aristóteles referia que o homem é um
animal social, pois é um ser carente que necessita de se relacionar com o outro para atingir a
sua plenitude. Assim, a necessidade de se relacionar com o outro pressupõe também que haja
regras que definam e delimitem os direitos de uns a que correspondem os deveres dos outros.
2.1.2 Exterioridade
2.1.3 Estatalidade
Esta característica significa que o Direito provém do Estado, sendo emanado dos seus órgãos
pelo que também a estes compete a aplicação do Direito- doutrina do monismo jurídico.
Todavia, há quem defenda o oposto: não se nega que o Estado crie e aplique Direito, através
dos seus órgãos competentes, somente não se aceita que o Estado seja o único a emanar
normas jurídicas nem que seja o único com o poder de as aplicar, ou seja, nega-se o monopólio
da criação e aplicação do Direito pelo Estado- doutrina do pluralismo jurídico.
Contudo, o conceito “direito” tem ainda um sentido subjetivo. A distinção entre os dois
sentidos fica bem clara nos conceitos do direito anglo-saxónico. Este distingue-se entre law (=
o direito objetivo) e right (= o direito subjetivo). Seguindo esta distinção vemos que o direito
objetivo é na verdade um conjunto abstrato de normas jurídicas e que estamos perante um
direito subjetivo quando alguém, invocando uma norma precisa instituída pelo direito
objetivo, exige de outrem, ao apoiar-se no conteúdo desta norma que lhe atribui este direito,
um determinado comportamento. Portanto, é o direito objetivo que reconhece ou atribui um
direito subjetivo. Por isso, para quem quer fazer valer um direito subjetivo face a outrem, é
sempre indispensável que encontre no direito objetivo uma norma em que o seu pedido se
apoia, isto é, uma norma determinada que lhe atribui o seu direito subjetivo e em que se
baseia a sua pretensão. Por exemplo, o artigo 1311.º atribui ao proprietário esbulhado o
direito de exigir (= reivindicar) a restituição da coisa enquanto o artigo 483.º confere ao lesado
o direito de ser indemnizado pelos danos sofridos ou o artigo 2101.º dá ao herdeiro o direito
de exigir a partilha dos bens da herança. Os direitos subjetivos apresentam-se-nos em
modalidades diferentes. Em termos gerais podemos fazer a seguinte abordagem: existem duas
modalidades distintas do direito subjetivo que são os direitos subjetivos absolutos e os direitos
subjetivos relativos que, no seu conjunto, se designam também por direitos subjetivos
propriamente ditos, havendo, para além deles, ainda os direitos potestativos.
Os direitos de domínio incidem sobre uma coisa determinada, que constitui o seu objeto.
Serve como exemplo a definição do conteúdo do direito da propriedade feita pelo artigo
1305.º CC: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e
disposição das coisas (as coisas são o objeto sobre que incide o direito da propriedade) que lhe
pertencem …”. Estas coisas, sendo inanimados, podem ser corpóreas (um bem material) ou
incorpóreas (um bem imaterial) como nos indicam os artigos 1302.º, n.º 1, e 1303.º. O artigo
1303.º determina que a propriedade intelectual, que é um bem imaterial, está sujeita à
legislação especial. Para ter relevância jurídica é necessário que a respetiva criação intelectual
tenha ganho expressão, ou seja, tenha sido exteriorizada. Ainda são objeto do direito da
propriedade os animais (artigo 1302.º, n.º 2) em relação aos quais o seu proprietário deve
observar deveres especiais (artigo 1305.º-A). Aos animais, seres vivos dotados de sensibilidade
(artigo 201.º-B), são aplicáveis na ausência de uma lei especial as disposições do Código Civil
relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza (artigo 201.º-D).
Como dissemos, aos direitos subjetivos absolutos pertencem também os direitos de
personalidade que não são direitos de domínio (porque não incidem sobre um objeto [uma
coisa]) e que são definidos pelo seu conteúdo. Os direitos de personalidade são regulados nos
artigos 70.º e seguintes do Código Civil e pertencem aqui, além dos referidos nos artigos 72.º a
80.º, por exemplo, o direito à vida ou à integridade física ou moral. Aparte algumas exceções
(como sucede com o direito ao nome) estes direitos não são atribuídos pelo direito objetivo,
mas resultam da natureza humana, sendo à semelhança da liberdade do homem direitos
inatos e irrenunciáveis. Aqui o direito objetivo limita-se a reconhecer e, por conseguinte,
proteger estes direitos. Vemos, portanto, que todos os direitos de domínio sobre uma coisa
são direitos absolutos, ao excluírem todos os outros, mas nem todos os direitos absolutos são
ao mesmo tempo direitos de domínio como vimos a respeito dos direitos de personalidade,
também exclusivos a quem pertencem. Temos ainda os direitos familiares pessoais que têm
características de direitos absolutos, excluindo todos os outros, mas simultaneamente
estabelecem deveres ou obrigações só oponíveis entre as partes de uma relação jurídica
familiar.
Enquanto os direitos de domínio como direitos absolutos incidem sobre uma coisa os direitos
relativos são direitos dirigidos à realização de uma prestação, ou seja, são dirigidos contra uma
pessoa determinada que a deve efetuar. Corresponde-lhes apenas uma obrigação desta
pessoa. Deste modo, os direitos de domínio e os direitos a uma prestação têm objetos
diferentes – coisa ou prestação – mas têm também obrigados diferentes – todos os outros,
indeterminados, ou uma pessoa determinada. Os direitos subjetivos relativos são direitos de
crédito, isto é, são direitos que permitem exigir uma prestação ao estabelecerem uma
obrigação entre determinadas pessoas. O artigo 397.º diz: “Obrigação é o vínculo por virtude
do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação”. Agora, os
direitos relativos resultam de consensos entre as partes e são apenas estas que ficam
vinculadas e os direitos de cada uma delas são oponíveis apenas entre estas. Por isso são
relativos, quer dizer, têm efeitos inter partes, ou seja, entre as pessoas que celebraram
livremente um contrato com base no artigo 405.º e que ficam vinculados a ele. Em relação a
terceiros, um contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei
(artigo 406.º, n.º 2). Mas a regra é a de que os efeitos jurídicos na sequência da celebração de
um contrato, que vincula as partes que o outorgaram, se limitam apenas a estas, dele
resultando só para elas os direitos de exigir e as obrigações a cumprir.
Podemos acrescentar que, sob este último aspeto, os direitos familiares pessoais – além da sua
característica de direitos absolutos nas relações externas – têm nas relações internas que,
como vimos, vinculam os familiares (pais e filhos ou cônjuges) ainda características de direitos
relativos, tendo deste modo natureza híbrida. Na sua grande maioria, os direitos de crédito
são direitos de curta duração (visam, como vemos no exemplo do contrato de compra e venda,
o rápido cumprimento das obrigações e extinguem-se com o seu cumprimento) enquanto os
direitos de domínio são geralmente direitos de longa duração (como vemos no exemplo no
direito de propriedade que não prescreve e não se extingue com o seu não uso ou o mero
decurso do tempo). Por outro lado, há direitos de crédito muito relevantes de longa duração
que conferem a utilização (o gozo) de uma coisa como, por exemplo, os direitos dos locatários
que resultam de contratos de arrendamento ou de aluguer. A lei designa este tipo de direitos
de crédito como direitos pessoais de gozo. Mas também há direitos de domínio de curta
duração como sucede com o direito da propriedade quando incide sobre coisas destinadas ao
consumo. Como vimos, em princípio a cada direito de crédito corresponde uma obrigação,
como vem expresso no artigo 397.º, e as obrigações uma vez contraídas devem ser cumpridas.
São estes os casos normais e aqui falamos de obrigações civis cujo cumprimento pode ser
exigido. Todavia, pode não ser assim o que sucede no caso das obrigações naturais cujo
cumprimento pode apenas ser pretendido. Temos assim direitos relativos (de crédito) aos
quais corresponde apenas uma “obrigação natural”. Estes são direitos subjetivos relativos mais
fracos porque o seu cumprimento não pode ser exigido, faltando-lhes a tutela judicial e com
isso a proteção coerciva dos órgãos estaduais. Quer dizer, o credor apenas pode pretender o
cumprimento por parte do devedor, mas não lho pode exigir, sendo certo, todavia que o seu
direito existe e que lhe corresponde uma obrigação (artigos 402.º a 404.º). Por conseguinte, o
devedor pode sempre cumprir voluntariamente a sua obrigação por se sentir moralmente
obrigado.
Atendendo aos seus efeitos erga omnes, os direitos absolutos podem ser violados por todos os
que os deviam respeitar, mas não cumpriram a obrigação passiva universal de não os lesar,
enquanto os direitos relativos (salvo raras exceções), com os seus efeitos apenas inter partes,
só podem ser violados pelas partes de um contrato, vinculadas pela obrigação de o cumprir. A
violação culposa de um direito subjetivo faz com que o lesante incorra em responsabilidade o
que implica a sua obrigação de reparar o dano causado e de indemnizar o lesado. Em princípio,
e sempre que possível, deve ser reconstituída a situação que existiria se não se tivesse
verificado o evento que causou o dano (artigo 562.º). Caso contrário, a indemnização é feita
em dinheiro (artigos 566.º [que se refere a danos patrimoniais] e 496.º [que se refere a danos
morais ou não patrimoniais onde a indemnização corresponde a uma compensação, sendo
certo que nestes casos frequentemente fica o efeito do semper aliquid haeret]). A violação de
um direito relativo tem como consequência a responsabilidade civil contratual, uma vez que as
obrigações contratuais assumidas pelas partes não foram devidamente cumpridas; já a
violação de um direito absoluto, pelo contrário, onde não há um contrato, tem como efeito a
responsabilidade civil extracontratual. Todavia, a violação de um direito subjetivo, por si só,
não é suficiente para que surja a obrigação de indemnizar. Segundo a lei, a justificação
primordial da responsabilidade é a culpa, um comportamento censurável que justifica uma
sanção. Isto vale tanto para a responsabilidade contratual (artigo 798.º) como para a
responsabilidade extracontratual (artigo 483.º). O critério da culpa para justificar a
responsabilidade pode hoje considerar-se questionável e nem sempre é seguido. Sobretudo no
campo da responsabilidade extracontratual há cada vez mais factos danosos em que a lei
impõe uma responsabilidade independentemente da culpa do causador do dano ou lesante.
Aqui temos a chamada responsabilidade pelo risco: quem tira proveitos de uma atividade lícita
que implica riscos responde, independentemente de culpa sua, pelos danos nos casos em que
o risco se concretiza. Nesta responsabilidade civil pelo risco subjaz o princípio ubi commoda,
ibi incommoda. Mas pertence a este campo também a responsabilidade do produtor ou de
quem fabrica e põe ao uso objetos guiados por inteligência artificial.
Aos direitos subjetivos propriamente ditos devemos acrescentar os direitos potestativos cujo
exercício depende da vontade (potestas) do seu titular e que lhe conferem o poder de
produzir, através do seu exercício, unilateralmente – e não por consenso como sucede
comummente no caso dos direitos relativos – efeitos jurídicos na esfera de outrem, ou seja, na
esfera de uma outra pessoa. Esta outra pessoa encontra-se num estado de sujeição, isto é, há-
de suportar, sem lhes poder subtrair ou sem os poder afastar, na sua esfera jurídica os efeitos
jurídicos que se lhes impõem por virtude do exercício unilateral daquele direito.
Quer dizer, não estamos perante uma obrigação que, eventualmente, pode vir a não ser
cumprida, como acontece com os direitos subjetivos propriamente ditos, pois quem está
sujeito ao exercício de um direito potestativo não se pode subtrair aos efeitos jurídicos
produzidos que se lhe impõem sem mais. Por via de regra, os direitos potestativos pressupõem
a pré-existência de um direito subjetivo propriamente dito ou de uma relação jurídica ou de
uma situação a partir do qual podem vir a nascer e que confere o direito para eles poderem
ser exercidos. Conforme os efeitos que resultam do seu exercício distinguimos entre três
modalidades de direitos potestativos, os extintivos (que extinguem um direito subjetivo ou
uma relação jurídica), os modificativos (que, embora mantendo o direito ou a relação jurídica,
o alteram) e os constitutivos (que fazem nascer um novo direito subjetivo que anteriormente
não existiu).
d) Com o seu exercício, e com os seus efeitos produzidos em virtude deste, ou seja, com a
extinção ou modificação de um direito subjetivo existente ou com a constituição de um direito
subjectivo novo, o fim do direito potestativo ficou esgotado e, em virtude disso, o direito
potestativo extingue-se; a sua razão de ser acabou. Todavia, nos casos em que a lei sujeita o
exercício de um direito potestativo a um prazo, o direito extingue-se por caducidade se não
tiver sido exercido dentro do prazo.
2.2.2.5 Conclusões – o abuso do direito – os prazos para o exercício dos direitos: prescrição,
caducidade, não uso
a) Dito tudo isto podemos concluir: definido “tecnicamente”, o direito subjetivo é o poder ou a
faculdade, reconhecido ou atribuído pela ordem jurídica (= o direito objetivo) ao seu titular, de
exigir (judicialmente [no caso direito absolutos e das obrigações civis]) ou de pretender
(extrajudicialmente [como sucede com as obrigações naturais]) de outrem um comportamento
ativo/positivo (por exemplo: realizar uma prestação) ou passivo/negativo (não violar um
direito absoluto) ou então o poder de produzir unilateralmente efeitos jurídicos na esfera de
outrem (na sequência do exercício de um direito potestativo).
b) Deste modo todos os direitos subjetivos conferem ao seu titular sempre um poder, que lhe
pertence, e que o exerce de acordo com a sua vontade. De facto, a vontade é o elemento
decisivo para a produção dos efeitos jurídicos. Contudo, o exercício volitivo de quaisquer
poderes é sempre (parece quase por natureza) suscetível de ser abusado ou de ser feito de
forma arbitrária. Esta constatação é importante pois, como sublinhámos logo na primeira aula,
todas as relações sociais ou jurídicas apresentam estruturas de poder em que, não raras vezes,
existe um desequilíbrio do poder. Por outro lado, há também muitas relações em que se
verifica um equilíbrio dos poderes em causa.
A ordem jurídica, porém, não pode confiar que o poder é geralmente exercido de um modo
moderado. Como a experiência mostra não se pode confiar numa moderação geral aquando
do exercício de um poder. Daí que a ordem jurídica contenha regras contra o exercício abusivo
dos poderes que são inerentes aos direitos subjetivos (ver, nomeadamente, a norma proibitiva
do artigo 334.º CCiv que determina que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular
exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes6 ou pelo fim
social ou económico desse direito”).
c) Finalmente, o direito subjetivo também tem limites que resultam do simples decurso do
tempo ou dos prazos em que podem ou devem ser exercidos. Não o sendo, temos como
consequência que os direitos podem prescrever ou caducar. Distinguimos, portanto,
prescrição, caducidade e não uso.
Não tendo sido exercido dentro do prazo previsto um direito pode prescrever, quer dizer,
deixa de ser exigível judicialmente, embora continue a existir. E, como existe, o titular do
direito prescrito ainda pode pretender o cumprimento tal como o devedor pode,
voluntariamente, cumprir a sua obrigação. Neste último aspeto o direito prescrito aproxima-
se, quanto aos seus efeitos para o devedor – deixa de ser exigível para apenas ser pretendível
– a uma obrigação natural. Contudo, a prescrição não funciona ipso iure, mas tem que ser
invocada por quem dela pretende beneficiar (artigo 304.º). São os direitos de crédito que
podem prescrever e os prazos variam conforme a natureza da obrigação do devedor (artigos
309.º a 317.º).
Mas um direito pode também caducar se não tiver sido exercido dentro do prazo. Enquanto,
apesar de ter prescrito, o direito ainda continua, com a sua caducidade o direito extingue-se,
deixa de existir. Ao contrário da prescrição a caducidade é apreciada oficiosamente pelo
tribunal (artigo 333.º) perante o qual o direito é invocado e de cuja não existência ou não
depende a sua decisão. São os direitos potestativos que podem caducar.
Ler: Ángel Latorre, pp. 19-22; J. Baptista Machado, Introdução, pp. 64, 88-90
3. Os fins do Direito
3.1 A Justiça
Como resulta da definição do conceito “direito objetivo”, os fins da ordem jurídica são a
realização da justiça.
O direito cumpre as suas funções a partir de uma ideia de justiça, que o legitima, sendo esta
ideia aceite (ou, pelo menos, tolerada) pela sociedade. A aceitação do direito pelos homens é
fundamental. Está em causa a aceitação social daquilo que se entende por justo porque uma
definição objetiva de justiça, perene e comummente aceite, não existe. Há-de assumir-se,
resignadamente, que não se pode encontrar uma resposta definitiva à questão de saber o que
é a justiça. O sentir em relação ao entendimento do que é justo modifica-se no decurso da
evolução social e das convicções religiosas e morais e da realidade económica e varia nas
diferentes sociedades. Por isso, a justiça (inclusive os direitos subjetivos e seu exercício) deve
ser sempre aferida à realidade, deve respeitar a realidade que resulta da evolução contínua
dos conhecimentos, da técnica, da ordem social, do sentir dos homens e das suas expectativas
e deve ser consentânea com elas sob pena de se criar um fosso, um desfasamento, fatal para a
aceitação da ordem jurídica, entre a realidade social e as leis. Deve haver uma ligação, uma
“comunicação” (uma interacção), entre quem faz as leis e os que as devem seguir. O que
significa também que a aceitação das leis pelos seus destinatários é um pilar fundamental da
legitimação democrática.
Com os olhos de hoje podemos considerar muitas soluções legais, vigentes no passado, como
injustas embora, na altura, não eram entendidas desta maneira. Ao direito cabe realizar a
justiça na vida real e social que, em dada altura, é acessível ao legislador. E a justiça de que
falamos é a justiça humana, moldada, em termos mais ou menos perfeitos, de acordo com os
conhecimentos existentes, por leis humanas.
A ausência de uma resposta comummente aceite no que respeita à definição da justiça não
impede, todavia, que possam ser definidos elementos da justiça ou determinadas modalidades
da justiça.
3.1.1 Os elementos da justiça
Ser responsável por outrem pressupõe o poder de determinar a conduta deste (é o artigo
491.º que prevê uma situação deste tipo) o que por regra não é o caso. Coisa perfeitamente
diferente e imprescindível é respeitar o outro como ser igual e neste sentido ser responsável
pela sua condição de homem.
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