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9.5.

3 As presunções – legais e judiciais

Finalmente, temos ainda as presunções.

a) Definição: a lei diz que “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto
conhecido para firmar um facto desconhecido” (artigo 349º), sendo óbvio que se refere a
factos jurídicos.

Distinguimos deste modo as presunções legais, previstas no artigo 350º, e as presunções


judiciais, previstas no artigo 351º.

As presunções têm grande relevância para efeitos de prova.

As provas têm por função demonstrar a realidade dos factos, conforme dispõe o artigo 341º.
Dos factos provados resulta a verdade processual, uma vez que quod non est in actas non est
in mundo, portanto, não pode ser considerado pelo juiz. Contudo, a verdade processual tem
de ser provada e, deste modo, não coincide forçosamente com a realidade verdadeira, que
não se conseguiu provar.

As regras gerais do ónus de prova (artigo 342º) ditam que quem invocar um direito, tem o
ónus da prova dos factos jurídicos constitutivos do seu direito e que quem alega factos
impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado contra si deve igualmente provar
estes mesmos factos. Resumindo estas regras, diz-se que quem invoca um facto em seu favor,
dele pretendendo beneficiar, deve prová-lo e não somente alegá-lo.

O ónus da prova é um ónus pesado, pois uma pessoa pode ter inteira razão, mas num processo
judicial pode não conseguir prová-la, não vendo o seu direito reconhecido por falta de provas.
Dos factos provados pelas partes depende a decisão do juiz. O juiz correlaciona estes factos
com a previsão da norma, quer dizer, faz a subsunção, mas, obviamente, apenas pode
subsumir os factos que conhece por terem sido alegados e provados.

b) Mas se um determinado facto (por exemplo, a culpa do devedor [artigo 798º] ou o


cumprimento de uma dívida [artigo 312º]) é presumido, havendo uma presunção legal, não é
necessário fazer a sua prova. É o que dispõe o artigo 350º, nº 1. A presunção legal beneficia,
portanto, quem invocar o facto presumido a seu favor, bastando alega-lo, não tendo de fazer a
sua prova. Por exemplo, o artigo 798º determina que o devedor que falta culposamente ao
cumprimento é responsável pelo prejuízo do credor. Todavia, segundo o artigo 799º, nº 1,
presume-se que há culpa do devedor e, por isso, o credor não precisa de a provar, bastará
alegar que o devedor teve culpa no incumprimento.

Assim, a consequência da presunção legal é a inversão das regras gerais do ónus da prova
(artigo 344º, nº 1), na medida em que agora compete à outra parte ilidir a presunção que a
prejudica, ou seja, caberá, no nosso exemplo, ao devedor fazer prova de que não teve culpa no
incumprimento.

Portanto, quem invocar um direito subjetivo a seu favor deve provar os factos constitutivos do
direito, ou seja, os factos que sustentam ou suportam o seu direito, a não ser que, em relação
aos factos alegados, existam presunções e, de igual modo, na situação inversa, quem alegar os
factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado também há-de provar estes
factos.

A respeito das presunções legais distinguimos:


i. As presunções relativas (iuris tantum), que são ilidíveis mediante prova em contrário (artigo
799º, 491º, 493º, 1260º, nº 2).

ii. As presunções absolutas (iuris et de iure) (artigos 243º, nº 3, e 1260º, nº 3), que não
admitem a elisão o que a formulação da lei deixa bem claro ao dizer “considera-se sempre” e
nesta medida, no que respeita ao resultado prático, as presunções iuris et de iure são próximas
de uma ficção legal.

Todavia, não se deve confundir uma presunção com uma ficção, na medida em que as ficções
nunca correspondem a um facto real, mas a lei ficciona a existência ou a não existência de
factos para poder aplicar um determinado regime, enquanto que nas presunções a lei não
inventa nada e apenas presume, a partir da existência de um facto conhecido, a existência de
um outro facto. Ao contrário do que sucede com uma ficção, onde o facto fingido nunca é
realidade, nas presunções absolutas o presumido pode perfeitamente corresponder à
realidade como, aliás, muitas vezes será mesmo o caso.

Se de um facto decorre uma presunção legal (presumptio iuris) esta pode ser ilidível ou não
conforme a natureza da presunção. Em geral, as presunções legais podem ser ilididas
mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir (artigo 350º, nº 2, última
parte), ou seja, proibir que se faça a prova em contrário. Neste caso a presunção é absoluta. A
regra é, portanto, que as presunções legais são relativas, sendo as presunções absolutas a
exceção.

iii. As presunções híbridas, que encontramos no contexto do direito da filiação, ou mais


precisamente, no contexto do estabelecimento da paternidade (artigos 1826º e 1871º). No
que respeita aos filhos nascidos ou concebidos na constância do matrimónio, o artigo 1826.º
diz que se presume a paternidade do marido da mãe, enquanto que em relação aos filhos em
que mãe e progenitor não estão casados, o artigo 1871º, nº 1 enumera um leque de
presunções, sendo a mais relevante delas a da alínea e) que determina qua a paternidade se
presume “quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o
período legal da conceção”.

As presunções híbridas assentam na lógica mater semper certa est – pater numquam e para a
sua elisão não se exige a prova em contrário pois a elisão faz-se com base na “manifesta
improbabilidade” num caso (artigo 1839.º, n.º 2, em relação ao artigo 1826.º) e devido a
“sérias dúvidas” no outro (artigo 1871.º, n.º 2, em relação às presunções do n.º 1).

Falta acrescentar que as presunções legais se apresentam também como normas não
autónomas na medida em que ao consagrar-se uma presunção o legislador remete-nos para o
regime jurídico aplicável do facto presumido ou pelo menos a tê-lo em consideração para
efeitos de aplicação do regime jurídico.

A finalidade principal da presunção é aliviar o ónus pesado que é o da prova de factos. Assim, a
lei, uma vez verificados e provados certos factos, presume outros abdicando da necessidade
de prova destes, a qual, aliás, pode ser deveras difícil como pode ser difícil também a elisão de
uma presunção (por exemplo, não é fácil ilidir a presunção do artigo 1268.º, n.º 1, 1.ª parte,
quanto à titularidade do possuidor).

c) Finalmente, as presunções judiciais (também designadas presunções de facto), previstas no


artigo 351º, são baseadas na experiência da vida e são ilidíveis por simples contraprova. Basta
alegar e provar a possibilidade real de que as coisas se podem ter passado de forma diferente
daquela que resulta da experiência normal da vida em que se baseia a presunção. Por
exemplo, o choque em cadeia de automóveis não resulta da falta de atenção ou do
desrespeito da distância indicada pelo condutor do carro seguinte, que será o caso normal,
mas deve-se a uma travagem brusca, não previsível e não justificada do condutor do
automóvel da frente. Porém, o recurso a presunções judiciais só é possível nos casos em que é
admitida a prova testemunhal (artigo 392º), ou seja, em situações em que o facto em causa
não deve constar de um documento (artigo 393º, nº 1). O mesmo é dizer que se não for
admissível prova testemunhal sobre um facto, também não poderá esse facto ser objeto de
uma presunção judicial (Por exemplo, a falta de um documento exigido não é suprível por
testemunhas do mesmo modo que testemunhas não podem afastar um facto provado por
documento). De resto, de entre todas as provas admitidas, nos artigos 362º e seguintes, a
prova documental é, ainda antes da prova pericial ou da prova por inspeção, a melhor prova. A
prova menos fiável é a prova testemunhal.

10. A tutela de direitos subjetivos

Como sabemos, decorre das normas do direito objetivo (privado e público) a atribuição ou o
reconhecimento de direitos subjetivos (privados ou públicos) e a determinação dos deveres e
obrigações correspondentes.

Sob pena de valerem pouco ou nada, os direitos subjetivos necessitam de ser protegidos, seja
preventivamente contra a possibilidade da sua violação, ou, tendo esta se verificado,
posteriormente pela atenuação ou eliminação dos efeitos da mesma e/ou pela reparação dos
danos causados pela violação.

Há, portanto, a necessidade da tutela dos direitos subjetivos o que envolve, simultânea e
indiretamente, a defesa do direito objetivo que os concede.

Os meios de tutela ou defesa são a autotutela e a heterotutela, sendo esta o meio regular.

10.1 A heterotutela

A heterotutela é o caso normal num Estado de Direito. É a tutela pública, que consiste na
consagração de mecanismos legais a partir dos quais se exerce a proteção jurídica efetiva dos
direitos, assegurando o cumprimento das normas jurídicas e aplicando, coercivamente se for
necessário, as consequências jurídicas para a violação das mesmas.

A heterotutela é o resultado da evolução social que acabou por afastar a “justiça privada”.
Sendo o Estado o principal criador das leis (do direito objetivo) ao decidir a juridificação das
normas de conduta, compete-lhe também impor a sua observância e a proteção dos direitos
subjetivos por via coerciva, isto é, de lhes dar garantia jurídica. A heterotutela pode ser
judiciária ou administrativa.

A estas atribuições do Estado corresponde o direito ou a garantia fundamental e não limitada


de todos consagrada no artigo 20º, nº 1, da Constituição que proclama “a todos é assegurado
o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos”, sendo este acesso reforçado ainda pela afirmação “não podendo a justiça ser
denegada por insuficiência de meios económicos”. Isto significa, logo à partida, sob pena de
inconstitucionalidade, que as custas judiciais devem ser socialmente adequadas e obedecer ao
princípio da proporcionalidade e não podem ser proibitivas.

10.1.1 A tutela judiciária


Assim, sendo a heterotutela o caso normal num Estado de Direito, ela pressupõe regularmente
o recurso aos tribunais. Sirva como exemplo o princípio geral enunciado no artigo 817º para o
caso do incumprimento de uma obrigação: “Não sendo a obrigação voluntariamente
cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento.” Deste modo,
inicia-se um processo judicial. Aqui temos, como primeira fase, o processo declarativo em que
são apreciados os factos provados e é decidido o litígio com a sentença que condena o
devedor. Se, ainda assim, a parte condenada não cumpre a decisão judicial, segue-se como
segunda fase o processo executivo, em que se apreendem os bens patrimoniais do devedor
suscetíveis de penhora (artigo 601.º) e o produto da sua venda judicial destina-se a satisfazer o
credor.

Portanto, a tutela judiciária é garantida pelos tribunais que, em sintonia com a lógica do
princípio da heterotutela, têm uma relevância proeminente. Os tribunais administram a justiça
em nome do povo.

10.1.1.1 A relevância dos tribunais, que são órgãos de soberania, reflete-se na sua consagração
constitucional. A Parte III da Constituição regula a organização do poder político do Estado, ou
seja, o seu estatuto organizatório, e, dentro desta Parte III, o Título V, que abrange os artigos
202.º a 220.º, destina-se aos tribunais, enquanto o Título VI, que abrange os artigos 221.º a
224.º, se dedica ao tribunal constitucional.

Quanto à organização dos tribunais (regulada nos artigos 209.º a 214.º da Constituição),
distinguimos:

a) Os tribunais judiciais ou comuns, as suas instâncias e competências especiais (definidos nos


artigos 209.º, n.º 1, alínea a), 210.º e 211.º);

b) Os tribunais administrativos e fiscais, organizados em tribunais de círculo, tribunais centrais,


Supremo Tribunal Administrativo (artigos 209.º, n.º 1, alínea b), e 212.º);

c) O Tribunal de Contas (artigo 214.º) cuja função não é decidir litígios, mas antes fiscalizar a
legalidade das despesas públicas.

d) Estando o País em guerra, serão constituídos tribunais militares aos quais compete julgar
crimes de natureza estritamente militar (artigo 213.º).

O estatuto dos juízes dos tribunais judiciais vem regulado nos artigos 215.º a 218.º da
Constituição, sendo de realçar as competências do Conselho Superior da Magistratura (artigo
218.º) que, atendendo à sua composição específica, possui alguma legitimidade democrática
que, de um modo indireto, se repercute nos tribunais.

Ao contrário dos tribunais que são órgãos de soberania (artigo 202.º, n.º 1), o Ministério
Público (artigos 219.º e 220.º) não é órgão de soberania e também não pertence à
Administração Pública; ele goza de um estatuto próprio e de autonomia, pois não depende do
Ministério da Justiça.

Com a desjudicialização de diversos processos sem natureza litigiosa, sobretudo no âmbito do


Direito da Família, foram reduzidas as competências dos tribunais e alargadas as do Ministério
Público (que, por exemplo, passou a ter competência para a autorização de atos dos pais como
representantes dos filhos a respeito de disposições patrimoniais) bem como da Administração
Pública na medida em que foram atribuídas competências às Conservatórias do Registo Civil,
em matéria de divórcios não litigiosos, baseado no argumento de que aos tribunais compete
decidir litígios.

Finalmente, para evitar dúvidas: toda a polícia pertence à Administração Pública (artigo 272.º).

O Tribunal Constitucional (artigos 221.º a 224.º) é especificamente competente para


administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional; do processo da sua
composição resulta que tem legitimidade democrática. Além da sua competência de apreciar a
inconstitucionalidade e a ilegalidade de atos ou omissões nos termos dos artigos 277.º a 283.º
(artigo 223.º, n.º 1) pertencem ao tribunal ainda as competências exclusivas que lhe são
atribuídas pelos números 2 e 3 do artigo 223º.

10.1.1.2 É um princípio elementar de qualquer Estado de Direito que os tribunais são


independentes e apenas sujeitos à lei (artigo 203.º da Constituição) e os juízes não podem ser
responsabilizados pelas suas decisões, salvas as exceções consignadas na lei (artigo 216.º, n.º
2, da Constituição).

As decisões devem ser tomadas de maneira estritamente imparcial, como vem simbolizado
pelos olhos vendados da JUSTITIA, e justa, como vem simbolizada pela balança que a JUSTITIA
segura na sua mão esquerda, sendo coercíveis, simbolizado pela espada que a JUSTITIA tem na
sua mão direita.

O próprio juiz é uma figura neutra e a sua neutralidade ganha expressão formal e simbólica
pela toga (beca) que veste em sinal de ser unicamente representante da lei que há-de aplicar.
Fica deste modo explícito o seu estatuto elevado em relação às partes de que se mantém
distante. Todavia, nada garante que um juiz seja insensível em relação ao Zeitgeist (o ambiente
dominante geral ou mainstream social) que não pode desconhecer e que o possa afetar, a
fatores ou circunstâncias emocionais divulgadas com grande destaque pelos meios da
comunicação social.

10.1.1.3 O princípio da irresponsabilidade do juiz – consagrado no artigo 216.º, n.º 2, 1.ª parte,
da Constituição (os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões) – tem sido
defendido na sequência do princípio da separação dos poderes com a necessidade da
independência do poder judicial dos restantes poderes do Estado aos quais não são permitidas
quaisquer intromissões na esfera jurisdicional e em relação aos quais o juiz não responde.
Todavia, o princípio da independência do poder judicial ou do juiz dos restantes poderes do
Estado e a irresponsabilidade daí resultante não pode ser confundido com uma
irresponsabilidade pessoal, pura e simples. Trata-se de aspetos distintos.

Do mesmo modo que sucede em relação a todas as profissões prestadores de serviços,


também o juiz – que presta um serviço e não exerce um poder e para o qual a humildade é, em
comparação com outras profissões, a característica mais relevante – deve ser, se for caso
disso, responsabilizado (artigo 216.º, n. º, 2.ª parte). Até por maioria de razão, exatamente em
consideração do valor elevado deste seu serviço para a comunidade e do seu papel inestimável
num Estado de Direito democrático, ao qual consagra os serviços da maior relevância e valia: a
garantia da justiça, como resultado da sua fidelidade à lei, e, ao mesmo tempo, a garantia da
paz social.

Ninguém é infalível (errare humanum est) e ao ser decidido um caso em tribunal podem
ocorrer erros judiciários. São os artigos 12.º a 14.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro,
aprovada, contra o veto do Presidente de República, por unanimidade pela Assembleia da
República, que assumem e regulam a responsabilidade do Estado por erros judiciários
cometidos pelos juízes nas suas funções. Segundo o artigo 369.º do Código Penal, um juiz que
decide, conscientemente contra o direito, é punido, como é punido também o juiz que, com
negligência grosseira, ordena ou executa medida privativa de liberdade de forma ilegal.

As decisões dos tribunais são fundamentadas (artigo 205.º, n.º 1, Constituição): o processo da
aceitação das provas, da avaliação dos factos, da interpretação e aplicação da lei deve ser
transparente; é necessário tornar percetível a objetividade de cada decisão bem como as
circunstâncias que influenciam o processo mental que a ela conduz. Para este efeito
contribuem as audiências públicas em tribunal (artigo 206.º da Constituição). A publicidade
constitui uma garantia processual elementar. É difícil conceber que haja opiniões
absolutamente neutras e é também daí que resulta a exigência da transparência das
fundamentações subjacentes à decisão.

10.1.1.4 No contexto da aplicação das leis pelos tribunais deve ser referido o chamado direito
judiciário (o direito jurisprudencial ou de jurisprudência). Aqui estamos perante complexos
normativos ou sistemas construídos a partir de conceitos jurídicos indeterminados e/ou de
cláusulas gerais ou de preenchimentos de lacunas na lei. A partir de muitos casos ocorridos e
decididos temos concretizações sucessivas do conteúdo de conceitos jurídicos indeterminados
ou de cláusulas gerais das quais com o tempo acabam por resultar tais sistemas (algumas
vezes praeter legem). Neste contexto inserimos também uma jurisprudência fixada ou
estabelecida pelos Supremos Tribunais que na prática – embora não vincule obrigatoriamente
o julgador – serve de precedente em que se orientam novas decisões. O julgador (juiz) utiliza
estes instrumentos para fazer evoluir o direito designadamente a partir de conceitos jurídicos
indeterminados como a boa-fé ou de cláusulas gerais como os bons costumes.

De qualquer maneira, o juiz está sempre vinculado pelas finalidades, princípios, critérios e
decisões valorativas da lei, a começar pela Constituição, cujas normas, princípios e finalidades
influenciam especificamente a concretização das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos
indeterminados. Seja como for, devido à evolução referida, o juiz passa de um “simples”
aplicador de normas a um agente ativo do Direito e da sua evolução dinâmica.

10.1.2 A tutela administrativa

Para além da tutela pelos tribunais temos ainda a tutela administrativa.

A Administração é distinta da Jurisdição e a sua finalidade consiste essencialmente em realizar


os objetivos próprios da Administração e do Estado, sendo a sua função ativa concretizar os
fins estaduais, nomeadamente, praticar atos administrativos, ou seja, atos unilaterais que
produzem efeitos num caso individual e concreto que se impõem ao cidadão, implementar
planos ou leis ou controlar ou condicionar atividades económicas ou encerrar
estabelecimentos comerciais por razões de saúde pública. Aliás, neste contexto surge o
privilégio da execução prévia, com o controlo judicial posterior do ato praticado, necessário no
âmbito da tutela preventiva.

A tutela dos cidadãos é assegurada em dois sentidos:

a) pelas garantias dadas pela própria Administração, cujos atos obedecem ao princípio da
legalidade e são praticados de forma imparcial e isenta, que criam confiança nos cidadãos e
lhes dão proteção e, ainda;

b) pelas garantias ou defesas dos cidadãos contra atos ilegais da Administração.


A Administração pública aplica as leis, as normas jurídicas, de acordo com os princípios da
legalidade – que caracteriza todo o direito público – e, ainda, da oportunidade. Estes dois
princípios têm essencialmente relevância no direito administrativo e visam garantir a
imparcialidade e isenção da Administração e o tratamento igual dos cidadãos perante a lei.

Mas não é de excluir que pode haver atos administrativos ilegais ou desvios de poder que
lesam os cidadãos nos seus direitos subjetivos. Nestes casos pode haver ou um recurso
hierárquico dentro da estrutura administrativa ou um recurso contencioso para os tribunais
administrativos e fiscais para impugnar o ato da Administração com o fim de obter a sua
revogação ou anulação.

a) Dito isto, dentro do princípio da legalidade, distinguimos:

I. Decisões vinculadas: os atos administrativos devem conformar-se na estrita obediência à lei


que lhes serve de fundamento e cujas normas não deixam ao agente margens decisórias
nenhumas o que sucede na liquidação de impostos; ou na justificação de multas ou coimas.
Contudo, o texto da norma aplicável pode conter conceitos indeterminados e/ou cláusulas
gerais;

II. Decisões discricionárias: também aqui, evidentemente, os atos devem conformar-se em


obediência à lei que lhes serve de fundamento, mas que confere certas margens decisórias
para o agente escolher, de acordo com os princípios da proporcionalidade e da igualdade, a
partir de critérios de avaliação e ponderação, percetíveis e transparentes, aquela medida que
entre as várias medidas possíveis se oferece como a mais adequada à situação concreta;
estamos perante o exercício de um poder discricionário circunscrito, delimitado, não havendo
nunca lugar para uma plena liberdade decisória e ainda menos para a arbitrariedade;

III. Discricionariedade na apreciação de conhecimentos ou competências em que a apreciação


ou avaliação implica sempre certa liberdade de quem a faz, por exemplo os membros de um
júri. Esta apreciação é feita de acordo e dentro de estritas regras formais que são previamente
estabelecidas e publicadas. A avaliação em si não é judiciável, isto é, o juiz não se pode
substituir a quem fez a apreciação ou avaliação e para a qual nem sequer terá os
conhecimentos necessários. Mas observância ou não das regras formais dentro das quais se
procede à avaliação já é sindicável pelo tribunal. Assim, a decisão tomada em consequência da
apreciação, por exemplo, a seriação dos candidatos, está vinculada pelo resultado desta e,
nesta medida, também pode ser judicialmente controlada.

b) Quanto ao princípio da oportunidade vale que determinadas decisões são tomadas


oportunamente. O órgão administrativo ou o funcionário (o agente) deve adotar, por lei que
lhe confere as respetivas competências, certas condutas a tomar oportunamente sem já estar
previamente vinculado a uma obrigação ou atuação determinada por esta lei. Pois sucede que
as medidas a tomar dependem de circunstâncias que, por não serem previsíveis para qualquer
eventualidade, condicionam as acuações indicadas na situação concreta. O princípio da
oportunidade tem muita relevância para a atuação dos órgãos de segurança, nomeadamente
dos órgãos policiais. A lei estabelece hipóteses e pressupostos para a intervenção do agente e,
verificados estes, permite a atuação em conformidade com as necessidades que surgem face à
situação concreta (por exemplo, tendo havido um acidente, o agente da polícia pode indicar
uma faixa geralmente interdita no sentido de contribuir para uma maior fluidez do trânsito;
ou, para facilitar que uma pessoa com deficiências físicas possa sair de um carro, o polícia
pode permitir uma curta paragem num lugar onde ela é proibida). As decisões são tomadas
oportunamente, embora sempre enquadradas nos pressupostos gerais que justificam a
atuação.

10.2 A autotutela

No contexto garantístico de uma proteção judiciária, a relevância da autotutela não pode


deixar de ser residual. O artigo 1.º do Código do Processo Civil é peremptório ao dizer que
ninguém pode recorrer à força própria a não ser nos casos e nos limites previstos na lei. A
autotutela é uma exceção, sendo permitida apenas em casos extraordinários, anormais,
especificamente previstos na lei. Os meios de autotutela funcionam como causas de exclusão
da ilicitude e, consequentemente, da responsabilidade civil.

À parte um caso específico, a autotutela aplica-se entre particulares. Estamos sempre perante
atos unilaterais de defesa.

Distinguimos, no âmbito da autotutela, as seguintes modalidades:

a) a ação direta;

b) a legítima defesa;

c) o estado de necessidade.

A ação direta e a legítima defesa dirigem-se contra atuações humanas; já o estado de


necessidade está relacionado com coisas ou animais de que provém um perigo (estado de
necessidade defensivo) ou de coisas de que alguém se serve para afastar um perigo de outra
origem (estado de necessidade agressivo).

10.2.1 A ação direta

Na ação direta, prevista no artigo 336.º do Código Civil, está em causa a defesa do próprio
direito daquele que age em ação direta, ou seja, não existe ação direta para proteger ou em
favor de terceiros.

Só se pode agir em ação direta na impossibilidade de recorrer aos meios coercivos normais e
ela traduz-se num ato material de apreensão ou destruição de uma coisa ou mediante a
eliminação da resistência de uma pessoa, por exemplo, prender um ladrão para impedir a sua
fuga até que chegue um polícia. Também para este meio de autotutela deve ser observada a
proporcionalidade a que acresce a racionalidade. Devem considerar-se os interesses
envolvidos, tanto os do agente como os da outra parte. Desta maneira, impõe-se o uso do
meio menos lesivo e os interesses do agente devem ser superiores ou de mesmo nível que os
interesses do agressor.

Por último é de referir que, quanto à ação direta, não existe um mecanismo idêntico ao do
artigo 337.º, n.º 2, previsto para o caso da legítima defesa, isto é, se se apurar ter existido
excesso, a ação direta é sempre ilícita e determina a obrigação de indemnizar. Contudo, tendo
havido erro sobre os pressupostos da ação direta, a obrigação de indemnizar deixa de existir se
o erro foi considerado desculpável.

No caso da legítima defesa, prevista no artigo 337.º do Código Civil (e também nos artigos 32.º
e 33.º do Código Penal), considera-se justificado o ato que se destina a afastar qualquer
agressão humana atual, contrária à lei, ou iminente contra a pessoa ou o património do agente
(que pratica o ato de defesa) ou de terceiro, desde que (1.º) o agente não possa defender-se
pelos meios coercivos normais e (2.º) o prejuízo causado pelo ato não seja manifestamente
superior ao que pode resultar da agressão.

Deve existir uma proporcionalidade entre o meio de reação do agente em relação à agressão.
Esta proporcionalidade refere-se à exigência que impende sobre o agente de verificar e
ponderar os interesses envolvidos, ou seja, o seu e o do atacante. Deste modo, a lei sublinha
no artigo 337.º, n.º 1, parte final, que o prejuízo causado pelo ato de defesa não pode ser
manifestamente superior ao prejuízo que pode resultar da agressão e admite que o interesse
de quem agride seja superior ao do agente, embora não possa ser manifestamente superior. O
princípio da proporcionalidade impõe ainda que seja efetuada uma moderação por parte do
agente em relação ao meio que usa para afastar ou travar a agressão, tentando sempre
socorrer-se do meio menos lesivo.

No caso da legítima defesa pode haver excesso na forma ou no meio de defesa, mas o artigo
337.º, n.º 2, considera o ato excessivo igualmente justificado se o excesso for devido a
perturbação ou medo não culposo do agente no momento da defesa. O modo de aferir se o
medo ou perturbação em que incorreu o agente e que o levou a exceder-se é ou não culposo,
é feito através do recurso ao critério do artigo 487.º, n.º 2, ou seja, segundo o critério do
bonus pater familiae. É que, se o medo ou perturbação em que o agente incorreu for culposo
isso implicará que o mesmo tenha praticado um ato não justificado e, por isso, ilícito e seja
obrigado a indemnizar. Caberá o ónus de prova da verificação dos pressupostos que o
legitimou a agir em legítima defesa ao agente, nos termos das regras gerais definidas nos
artigos 342.º e seguintes.

Finalmente, relativo ao aspeto do excesso, resta referir que pode suceder que o ato em si não
seja excessivo, mas tenha consequências excessivas por causa de força maior ou de uma
reação imprevisível para o agente. Por exemplo, este dá um empurrão no peito do agressor
para o afastar e ele cai no chão e falece com o rompimento de um aneurisma cerebral que
possuía e até desconhecia. Nesse caso, tem-se entendido – mas é duvidoso – que estes
acidentes podem acontecer e que a conduta do agente continua a ser justificada (porque falta,
devido à imprevisibilidade, um nexo de causalidade adequada entre o ato do agente e suas
consequências).

10.2.3 Do erro acerca da verificação dos pressupostos da ação direta e da legítima defesa

Como já dissemos, quanto à ação direta não existe um mecanismo idêntico ao do artigo 337.º,
n.º 2, isto é, se se apurar ter existido excesso a ação direta é sempre ilícita e determina a
obrigação de indemnizar.

Por outro lado, em relação à ação direta e à legítima defesa, o artigo 338.º determina que no
caso de existir erro acerca dos seus pressupostos, o titular do direito deve indemnizar os
prejuízos causados, a não ser que o erro tenha sido desculpável. Esta ressalva consagrada na
parte final do preceito legal parece-nos de justificação difícil, pois quem recorre a estes meios
de defesa deve assumir o risco da sua atuação.

Todavia, refere-se ainda que o critério para se aferir se o erro é ou não desculpável é
novamente o critério do bonus pater familiae nos termos do artigo 487.º, n.º 2.

10.2.4 O estado de necessidade

O estado de necessidade, previsto no artigo 339.º do Código Civil (e nos artigos 34.º e 35.º do
código Penal), podemos distinguir entre o estado de necessidade defensivo, por um lado, que
corresponde à defesa contra o perigo proveniente de uma coisa (um objeto perigoso e
inflamável) ou o perigo proveniente de um animal (por exemplo, temos um Rottweiler que se
soltou da trela) (Neste contexto devemos conjugar o artigo 339.º com o artigo 201.º-D
segundo o qual as disposições legais relativas às coisas são aplicáveis subsidiariamente aos
animais), por outro, e o estado de necessidade agressivo, em que é permitido a destruição ou
danificação de uma coisa para afastar um perigo que não provém dela (isto será o caso quando
se utiliza um extintor pertencente a outrem para apagar um fogo ou se parte uma bengala
pertencente à outra pessoa ao defender-se contra um ataque).

Desta forma, o estado de necessidade surge-nos como uma reação a um perigo que advém
não de uma pessoa, mas de uma coisa ou animal. Esse perigo pode dizer respeito aos direitos
de personalidade ou direitos de propriedade do próprio agente ou de terceiro e pode ser um
perigo atual ou iminente. A reação daquele que age em estado de necessidade dirige-se contra
uma coisa ou animal e não contra pessoas, podendo destruir ou danificar essas mesmas coisas
ou animal. Também neste caso o agente deve sempre agir com proporcionalidade, na medida
em que não pode sacrificar um bem maior do que aquele que visa proteger, ou seja, o estado
de necessidade pretende que se remova um perigo atual de um dano manifestamente
superior.

Não obstante o referido, o estado de necessidade apesar de tornar lícita a conduta do agente,
implica ou gera a obrigação de indemnizar.

A respeito do dever de indemnizar, o artigo 339.º, n.º 2, consagra dois regimes. Há que
distinguir se quem contribuiu para o estado de necessidade foi o agente, caso em que só ele
deve indemnizar; ou se o agente em nada contribuiu para o estado de necessidade, sendo que
neste caso a indemnização será fixada de forma equitativa entre três pessoas, o agente, aquele
que beneficiou do estado de necessidade e aquele que para ele contribuiu.

10.2.5 Dos requisitos comuns a todos os meios de autotutela

Como verificamos, nos três casos da autotutela acima analisados deve haver sempre –
conforme os casos – proporcionalidade, ou seja, o dano causado pelo agente que atua em
legítima defesa não pode ser manifestamente superior ao dano que pode resultar da agressão;
o dano que se quer afastar em caso de estado de necessidade tem que ser manifestamente
superior àquele que se provoca agindo, e quem recorre à ação direta não pode exceder o que
for necessário para evitar o prejuízo.

10.2.6 Do direito de resistência e da cessação do dever de obediência

Um caso à parte é o direito de resistência, ativa ou passiva, previsto no artigo 21.º da


Constituição, o qual assiste a todos. Aqui, o que normalmente seria ilícito, já não o será se o
exercer ao abrigo do direito de resistência (por exemplo, não admitir entrada de forças
policiais na residência sem apresentação prévia de um mandado judicial). E um caso ainda
mais especial está consagrado no artigo 271.º, n.º 3, que determina a cessação do dever de
obediência dos funcionários em relação aos superiores hierárquicos em face de ordens cujo
cumprimento implica a prática de um crime (por exemplo, um funcionário que recusa assinar
um documento que lhe é dado para o efeito que se traduzirá na falsificação de documento).

Ler: J. Baptista Machado, pp. 111-133, 139-141, 148-151, 135-137, 130.

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