Você está na página 1de 12
A QUESTAO DA ALTERIDADE NA TEORIA DA SEDUGAO GENERALIZADA DE JEAN LAPLANCHE! Luis Claudio Mendonca Figueiredo Instituto de Psicologia - USP Neste artigo é apresentada uma sintese da Teoria da Seduao Gene- ralizada de Jean Laplanche enfatizando-se a incidéncia decisiva do encontro com a alteridade — as mensagens enigmdticas do mundo ‘adulto — nos processos de constituigdo e reconstituigdo do si. Em ‘seguida, € posta em questdo a prépria nogdo de ‘alteridade’ assumi- da implicitamente por Laplanche: procura-se mostrar que o psica- rnalista francés trabalha com uma nogao ‘positivista’ de alteridade ‘em que esta é concebida como ente-ji-constituida. Em contraposigéo, argumenta-se que a nogdo de ‘enigma’ exige uma ontologia ndo ‘positivista em que a alteridade seja tomada como emergencia, ou ‘se/a, como 0 que brota no acontecimento inaugural em que 0 sie 0 ‘outro vém a ser. Descritores: Subjetividade. Psicanélise. Teoria psicanalitica. Tempo. Sedugto. s textos de Jean Laplanche reunidos na coletanea La Révolution (Copericienne Inachevée (1992), em particular os tiltimos, em que sua Teoria da Sedugdo Generalizada é desenvolvida e posta a trabalhar, 1 Este trabalho foi preparado tendo como base o material de um curso ministrado na Pés-Graduac4o em Psicologia Clinica da PUC-SP. A primeira aula deste ‘mesmo curso foi publicada na revista Percurso, 11, em 1993, e pode ser consul- tada para maiores esclarecimentos ao projeto de pesquisa na sua globalidade. Psicologia USP, S. Paulo, 5(1/2), p.297 - 308, 1994 297 Luts Claudio Mendonga Figueiredo tém como questo central os processos de constituigo e reconstituiggo da subjetividade a partir do encontro com as alteridades. Neste artigo tomaremos como base dois capitulos deste livro (Temporalidade e Tradugiio € O Tempo e 0 Outro) para uma exposigao critica das idéias do psicanalista francés. Como se verd adiante, a critica incidira na propria compreensio da alteridade explicitada por Laplanche: a uma concepgdo em que a alteridade € vista como ente-jd-constituido contraporemos ‘uma concepgo da alteridade tomada como o que emerge no mesmo proceso em que se constitui o si. Avangaremos procurando inicialmente uma sistematizagao das idéias principais através de breves consideragdes em torno de alguns temas 1. Tempo césmico ou cosmoligico, tempo do vivente, temporali- wagaoo e historicidade Laplanche distingue quatro niveis em que o tempo pode ser tra- balhado pela filosofia e pelas cigncias: 0 tempo dos processos fisicos, 0 tempo dos processos biolégicos e das “vivéncias”, a temporalizago 20 nivel da existéncia humana e, finalmente, a historicidade das coletivida- des. As contribuigdes de Freud para o tempo perceptivo do vivente so rapidamente apresentadas; trata-se na verdade de uma formulagdo no psicanalitica, embora de eventual interesse, acerca de como 0 modo de funcionamento dos aparelhos perceptivos gera uma temporalidade ba- seada na periodicidade dos ritmos de abertura e fechamento das vias de contato com o ambiente. Estes ciclos de abertura e fechamento seriam, talvez, expedientes através dos quais os organismos regulam suas ex- posigdes ao meio, evitando uma sobrecarga de estimulago. Desta pe- riodicidade adviria o tempo da vivéncia. 298 A Questdo da Alteridade na Teoria da Sedugdo Generalizada... 2. A questdo da temporalizacdo e as respostas implicitas da psi- candlise Laplanche pretende trabalhar no terceiro nivel, o da temporalizagéo da existéncia, tentando desentranhar 0 que poderia ser uma teoria implicita da psicandlise acerca do processo existencial de temporalizagio. Para fazé-lo, contudo, Laplanche expe a sua propria concepgio do que seria 0 processo analitico e, em seguida, do que seria a subjetivaglio numa pers- pectiva psicanalitica pés-freudiana, 2.1. A alteridade e 0 enigma: todo 0 processo de constituigao das subjetividades é deflagrado, segundo Laplanche, pelo encontro da crianga com a alteridade do adulto. Nao se trata apenas de um adulto em especial (0 sedlutor), mas do mundo adulto; por outro lado nao se trata do mundo adulto como “o grande outro” lacaniano, mas de adultos concre- tos, particulares e diferenciados que “representam” o mundo adulto para a crianga, Esta alteridade — esta mensagem outra — nao ¢ s6 a da diferen- a entre 0 adulto em relagdo a crianga, mas a da diferenca do adulto ‘para consigo mesmo, ou seja, trata-se da alteridade implicada no/pelo inconsciente do adulto como corpo estranho © no que este inconsciente toma o adulto enigmético para si mesmo e, mais ainda, para a crianga, Assim sendo, a “hipocrisia” de que fala Ferenczi (1990, 1992) niio é algo climinavel pela boa vontade ou pelo esforgo de sinceridade do adulto, Em acréscimo, a sedugdo nao é exercida apenas pelo adulto perverso, mas pelo aduulio-outro-enigmitico, isto é, por todo e qualquer Tepresentante deste mundo adulto com suas mensagens sempre plurais, Cindidas, equivocas, promissoras e excludentes. Assim sendo, as mensa- gens do adulto serdo necessariamente enigmaticas, pondo a prova e der- rotando as capacidades e recursos simbélicos da crianga. 2.2. O enigma e a exigéncia de tradugdo: efetivamente, os enigmas provenientes do mundo adulto impdem a crianga uma tarefa inexequivel e inadiavel, a de traduzir, a de teorizar, a de simbolizar, a de metaboli- zar 0 corpo estranho implantado pelas mensagens enigméticas. Uma parte mais ou menos substancial destes enigmas é imetabolizavel, resis- tente ao trabalho tradutivo e vai se constituir, através do recalcamento 299 Luis Claudio Mendonca Figueiredo de fragmentos de mensagens enigmaticas, no inconsciente da crianga, Estas partes intraduziveis — que sfio ao mesmo tempo comunicadas, ignoradas e desmentidas (para usarmos 0 termo ferencziano) pelo adulto — séo 0 ‘sexual’ (“a sexualidade é 0 que se esconde das criangas”, nos diz. Laplanche). Mas, atengdo: creio que no se trata de dizer que 0 ‘si nificado sexual’ é recalcado, mas de dizer que ¢ 0 recalque que constitui 0 ‘sexual psicanalitico’ enquanto tal. O nfo traduzido ¢ intraduzivel, esta coisa impenetrdvel, exercerd pe- renemente uma pressio, gerando uma pulsdio tradutiva e, simultaneamen- te, impondo reiterados fracassos ao esforgo tradutivo. 2.3. As ocorréncias de de-tradugdo:em determinadas circuns- tAncias, acontecimentos naturais, como 0 luto, ou ‘artificiais’, como a interpretagao psicanalitica, promovem movimentos de-tradutivos, movi- mentos de destecimento ou desligamento dos elementos de uma trama. Esta trama, ao mesmo tempo que reunia e significava alguns elemen- tos, resistia, por outro lado, emergéncia dos que ficaram excluidos, ‘como residuos no traduzidos, como corpos estranhos, objetos-fonte de pulsio, As de-tradugdes propiciam novas possibilidades de tecimen- tos, eventualmente mais ‘fluentes’ ‘continentes’ e menos rigidos e recal- cantes. Ou seja: a de-tradugio beneficiaria ‘melhores’ re-tradugGes. 2.4. Os enigmas, as tradugdes na posterioridade, as de- tradugées, as re-tradugdes posteriores e a seqiténcia dos ekstases temporais — presente, passado e futuro: 0 que Laplanche sugere é que a temporalizagao se da através dos movimentos gerados pelo enigma, ‘ou seja, pela implantagdo de um a-traduzir, que ao mesmo tempo obriga 0 sujeito a um trabalho de tradugdo/tecimento (sempre imperfeito) e torna, dada a imperfeigao, qualquer tradugfo/tecido (ou trama) precaria, 2 Ao falar em ‘sexual psicanalitico’, e nao em ‘sexualidade’ como Laplanche na frase acima transcrita, estou tentanto diferenciar este conceito do que seria um “sexual biologico’ - um dado da natureza - ¢ do que seria a ‘sexualidade” tal ‘como tratada, por exemplo, por Foucault (Historia da sexualidade I: a vontade de saber, 1984). O sexual psicanalitico seria o que se constitui pelas e nas ex- clusdes (0 que se ‘esconde” ou 0 que se, desmente") impostas a crianga pelos representantes do mundo adulto, eles mesmos cindidos. 300 A Questéto da Alteridade na Teoria da Sedugdo Generalizada... vulneravel a de-tradugdes e tendendo para re-tradugdes. A histéria se faz nas posterioridades dos encontros com os enigmas a-traduzir, sob ‘0 impacto destes enigmas ou sob a pressiio de suas ressurgéncias (08 retornos ‘enigmaticos’ do recalcado, por exemplo, num sintoma). Estes impactos & que levam do presente — o presente do encontro com um a- traduzir atual ou ressurgente — ao passado, num movimento de-tradutivo, € deste conduzem a abertura de um novo futuro, através de re-tradugdes. 2.5, A temporalizagéio entre o determinismo e a construgao livre do sentido: assim, uma teoria psicanaltica da temporalizagao estaria livre tanto do determinismo proprio de um realismo ingénuo — “passado de- termina presente e este determina futuro” — como de um puro construti- vvismo em que s6 no futuro, na posterioridade, se decide e se constréi 0 sentido do passado, o que retira deste passado qualquer eficdcia propria. ‘Nos dois casos, na verdade, o que mais se empobrece é o presente: sob a dtica determinista, o presente nada mais é que decorréncia do passa- do e nada nele pode acontecer de fato; na ética oposta, o futuro d 4 do sentido do pasado e, portanto, do sentido do que hoje ainda é ‘presente’, Assim, nada do que se da aqui e agora pode incidir efetiva- ‘mente na marcha da temporalizag403 . Para que no presente algo se possa dar de critico ¢ decisivo fazem falta nogées como a de acontecimento e de transpassibilidadet ; embora Laplanche nao faga uso delas, elas esto como que ausentemente presentes na sua teorizagio acerca dos impactos de enigmas a-traduzir. Enigmas a-traduzir, implantados como objetos-fonte de pulsio, nem contém em si mesmos todas as possibilidades futuras de 3. Esta seria a posicdo que Laplanche atribui equivocadamente a Heidegger, mas ‘que esté realmente presente em concepgdes que sobrestimam as construgées na posterioridade como as de Danto e Droysen (cf. Georgia Warnke, Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason, 1987); no campo da psicandlise, Vider- ‘man (1990) esté préximo a esta posicio. 4 Estas nogées foram trabalhadas em meu texto Fala e acontecimento em anéli- se, Percurso (1993). Neste artigo defino 0 acontecimento como “uma ruptura na trama das representag%es ¢ das rotinas” e, nesta medida, como a “figura pa- radigmética da alteridade”; quanto a0 conceito de “transpassibilidade”, empres- tado a Maldiney (1991) refere-se a “passibilidade ao inesperado, ao surpreen- dente, a0 impossivel, ao inacreditavel”. 301 Luis Claudio Mendonga Figueiredo um sujeito, como se fosse um script a ir sendo recitado ao longo de uma vida, nem se submetem docilmente a qualquer tradugéo a posteriori. Ao contrério: no se submetem a nenhuma tradugdo e, exatamente por isso, exigem um permanente trabalho re-tradutivo, No entanto, se na minha leitura de Laplanche sinto-me a vontade para discemir a necessidade e a possiblidade de introduzir uma nogdo como a de acontecimento, sinto-me também obrigado a considerar 0 fato de que ele proprio nao a introduz. Isto me leva a elaborar uma leitura criti- ca de sua obra, Realmente, em que pese o instigante das propostas de Laplanche, elas suscitam indimeras questées, algumas das quais j4 enunciadas pelo debatedores, e, em particular, por Maurice Dayan$. Antes de expor, porém, estas questdes jé debatidas, iniciarei colocando outras que me parecem ainda mais basicas. Comegarei tratando do que poderia ser chamado de o positivismo realista de Laplanche. Para inicio de conversa, vale assinalar que o termo positivismo niio esta sendo aqui usado como acusagdo, mas corresponde ao que 0 proprio Laplanche disse de si mesmo em resposta a uma questio de Zeljko Loparic, quando de sua fala na PUCSP em setembro de 19936 O que significa ser (e dizer-se) positivista? Significa tomar os entes na sua positividade... e nada mais; ou seja, significa lidar-com e focalizar apenas os fendmenos ja entificados, 5 Os debates com Maurice Dayan, Pierre Fédida e J. Gagey foram transcritos em continuidade & Conferéncia Temporalité et traduction. 6 A questdo dizia respeito exatamente & auséncia na teorizacdo laplancheana de ‘qualquer possibilidade de uma existéncia pré-objetal (que nada tem a ver com ‘um estégio anobjetal no sentido tradicional do termo); este modo de existéncia em que sujeito € objeto nao esto perfeitamente diferenciados ¢ em que 0 “outro” é ‘mundo circundante € no objeto, pode ser ilustrado com as formulagtes de Fe~ renczi e Winnicott ¢ outros autores do grupo independente da escola b de psicandlise. Enfim, 0 que Loparic questionava era, creio eu, 0 estatuto do ‘outro que, segundo Laplanche, é sempre um outro ja objetivado. Foi diante deste questionamento que o psicanalista francés ‘confessou’ seu positivismo, no ue estava sendo absolutamente sincero 302 A Questdo da Alteridade na Teoria da Sedugdo Generalizada... 4J4 constituidos e re-presentados. Ser, porém, que enigmas podem ser tomados desta maneira? Sera que o positivismo de Laplanche faz. justi- 2 A sua intuigdo tedrico-clinica que concede aos enigmas uma fungio destacada na subjetivagao? Creio que ndo: falar em enigmas é ja com- prometer-se com um ‘algo’ que deixou de ser e ainda nao & Ha nos enigmas uma falta — a falta de sentido, a falta de fungio — e um excesso — uma espécie de sobra irredutivel e promissora, Efetivamente, “se 0 enigma fosse apenas o ‘sem-sentido’ ele no engendraria a pulsdo tradutiva cuja fungio sera exatamente a de the dar um é. Nesta medida, enigmas devem ¢ precisam ser entendidos como um momento de um processo que implica perda e reconstituigo. Em outras palavras, enigmas no possuem a positividade dos entes simplesmente dados, nem a sélida funcionalidade dos instrumentos a mao e para dar conta deles seria necessiria uma outra ontologia que nao a positivista. No entanto, em que pese a introdugao desta nogdo, Laplanche & realmente positivista ao tratar de algumas questdes basicas para a sua teorizagao. Fundamentalmente, este positivismo se traduz na dificuldade de Laplanche livrar-se de uma nogo pré-critica de ‘outro’ e no seu des- conhecimento de como se da a emergéncia da alteridade. ‘Quando Laplanche fala do ‘outro’ e de sua alteridade ele se co- loca no ponto de vista realista em que, naturalmente, o adulto é 0 ou- tro da crianga, Ele nfo é capaz de tratar da alteridade como emergén- cia, ou seja, ele nfo faz o trabalho fenomenolégico que da conta da emergéncia simulténea de uma alteridade e do si como o protétipo de todos os acontecimentos, como 0 acontecimento inaugural. Para Laplanche o outro ¢ desde sempre um objeto a oferecer mensagens & crianga e nunca o mundo circundante e, nesta medida, matriz de todas as tradugSes primitivas. © outro funcionando como parte do si (a rigor ainda nfo ha neste momento um si plenamente constituido, e a expresso ‘parte do si’ acaba incorrendo também ela numa falacia realista) foi o que levou, por exemplo, Kohut a cunhar 0 termo self-objeto, na mesma linha em que Winnicott falara em mae ambiente e que Bollas veio a propor 0 303, Luls Claudio Mendonga Figueiredo termo objeto transformacional? . Muito antes deles, contudo, e numa abordagem fenomenoldgica, estas posigdes do mundo adulto e da cri- anga foram tratadas por Scheler (1923/1971) que disse: “o homem vive de inicio e principalmente dentro dos outros ¢ néo de si mesmo” (p.335). Ao que acrescentei num outro trabalho: De inicio estamos todos, assim, ‘dentro’ dos outros, sejam os outros familia, classe social, naga, tradigt, sistema linguistico etc. E este “outro”, anterior ao ‘eu’ ao ‘tu’ € a0 ‘ele’, & este “outro” indiferencia- do — e que nesta medida precede a emergéncia da alteridade — que antes de aprendermos a fazer ¢ a dizer ‘eu fiz’, antes de aprendermos ‘a pensar ¢ a dizer ‘eu pensei’, antes de querermos ¢ de dizer ‘eu que~ ro’, j faz, J pensa, j4 quer e jé sente por nés (Figueiredo, 1991), ‘Segundo Max Scheler a diferenciagao nunca sera total: estamos sempre em maior ou menor medida imersos neste ‘outro’ (e sendo atraves- sados por ele); a este ‘outro’ Heidegger chamara de “o impessoal” e é 0 ‘quem’ que nos oferece um mundo sempre ja pré-compreendido. E desde ai que podem emergir 0s outros positivados com suas alteridades, é ai que podem eclodir os acontecimentos, ¢ deste pano de fiundo que se podem destacar os enigmas. Parece-me, contudo, que a contribuigao de Laplanche é valiosa niio s6 por insistir na outra face da moeda — 0 outro enigmatico, sedu- tor e traumatizante — como por também enfatizar que este outro é outro para si mesmo, ou seja, contém uma diferenciagdo interna. Ora, esta idéia de um outro cindido e plural poderia proveitosamente ser incorporada também ao ‘outro’ (aparentemente) indiferenciado de Max Scheler ou a0 outro como self-objeto ou como ambiente de que nos falam Kohut e os psicanalistas do grupo independente. Esta cisio, in- clusive, seria, provavelmente, a condi¢do da emergéncia da alteridade positivada. Assim sendo, a medalha nos seus verso e reverso nos mos- traria que a cada vez que alguém me aparece como outro, uma ‘parte’ 7 Ver, a propésito Kohut (1988), Winnicott (1983) ¢ Bollas (1994) 308 A Questdo da Alteridade na Teoria da Sedugdo Generalizada... ou ‘partes’® deste alguém jé esto fazendo ou fizeram o seu trabalho matricial, ou seja, j& esto presentes como ‘meu’ mundo, como o ‘meu’ cédigo de interpretagao. Seria, portanto, possivel conceber este ‘outro-mundo-circundante’ como atravessado por cisdes e no como homogeneidade (por exemplo, como constituido pelo amor e pelo dio € pelos movimentos de retengao e de expulsio, de cuidados e de explo- rag, de ajuda e de vinganga dos pais para com seus filhos, e, em ge- ral, por todas as suas ambivaléncias diante do mundo e de si mesmos, tc), Seria apenas a partir do conflito entre estas ‘partes’ incorporadas do ‘outro-mundo-circundante’ que uma alteridade positivada pode ir- romper diante da crianga, A respeito desta questo, valeriam alguns comentarios suplemen- tares a partir de Ferenczi (1993), que nos oferece uma contribuiggo importante no seu artigo. O problema da afirmado do desprazer (p.393-404), Neste texto ele rastreia a emergéncia de uma “percepgao de objeto” do outro na sua alteridade (ou seja, de uma percepgao do outro como objeto) desde uma presenga pré-objetal do outro como (nos termos heideggerianos que estou adotando) mundo circundante. Na condigéo de mundo-circundante a mie no pode ser ‘objeto’ de qual- quer sentimento, E s6 quando sucessivas experiéncias de frustragao e pri- vago versus experiéncias de satisfago operam o “desintrincamento pul- sional” e separam amor ¢ édio que a mie se objetaliza, tomando-se a “matéria para uma representagio de objeto”. Ele conclui dizendo: ‘Queremos somente acrescentar que a ambivaléncia de que acabamos de falar, ou seja, 0 desintrincamento pulsional é absolutamente ne- cessirio para que apareca uma percepelo de objeto (Ferenczi, 1993, .397, grifos do autor) Enfim, é da natureza conflituosa do outro-mundo-circundante que, mediante desintrincamento pulsional, emerge um outro objetalizado como alvo de amor e ddio simultineos. E o relativo e sempre instavel 8 As aspas simples em parte ou partes decorre, novamente, do fato de que estes termos, ¢ infelizmente ndo disponho de outros, sugerem uma existéncia objeti- ‘vada do outro que é exatamente 0 que estou tentando refutar. 305 Luts Claudio Mendonca Figueiredo equilibrio entre amor e édio que conservam o outro na justa distancia em que pode ser “matéria para uma representago de objeto”, Diz Ferenczi: as coisas que nos amam sempre, ou seja, que satisfazem constante- ‘mente todos os nossos qesejos, ndo tomamos conhecimento delas ‘como tas, incluimo-las simplesmente em nosso ego subjetivo; as coi- 15 que nos so € sempre nos foram hostis, recalcémo-las simples- ‘mente (1993, p.397). E preciso que benevoléncia e hostilidade coexistam para gerar 0 desintrincamento pulsional que gera e sustenta a objetalidade. De ma- neira mais ampla e retomando Laplanche, poderiamos dizer que é pre- ciso que o outro-mundo-circundante seja outro para si mesmo para que venha a ser outro para a crianga. A esta compreensio da alteridade como emergéncia, ou seja, do processo que leva do outro-mundo-circundante ao outro objetivado na sua alteridade poderia também ajudar uma rapido passeio pelo campo da psicologia histérica sob a tutela de Detienne (1988). Para os gregos, o estrangeiro (ksénos) nil se refere a0 no-grego, ao bérbaro de fala ininteligivel, mas a0 cidadio de uma comunidade vizinha (..) Para ser chamado ksénos, ‘um estrangeiro deve, pois, pertencer ao mundo helénico, idealmente cconstituido pelo conjunto de homens que tem o mesmo sangue, mes- ‘ma lingua, santuérios e sacrificios comuns (Detienne, 1988, p.21, grifos meus). Ora, o que ressalta desta compreensiio & que a pré-condigao da es- trangeirice ¢ uma anterior presenga do ‘estrangeiro’ como pertencente a0 mundo helénico, ou seja, s6 ¢ estrangeiro aquele que antes de mais nada foi e é parte do mundo circundante, Na auséncia desta co-pertinéncia nio se pode constituir uma alteridade humana: o barbaro esta para além dos limites em que a alteridade pode emergir, j& que, destituido de uma lingua humana, ele no pode emitir mensagens; muito menos, mensagens enigmiaticas 306 A Questao da Alteridade na Teoria da Sedugao Generalizada... Em acréscimo, haveria que se assinalar o fato de que a chegada do estrangeiro impée aos cidadaos os deveres da hospitalidade privada: E com efeito um simples cidadio, em sua privacidade, que se encarrega de acolher e de proteger um estrangeiro em transito (Detienne, 1988, p.23-4), Ou seja, exatamente porque o estrangeiro emerge desde um pla- no de comunidade constituinte, nfo ha como evité-lo e barrar sua en- trada, E 1a ‘de dentro’ deste acolhimento que ele se podera revelar na sua estranheza, Um outro aspecto da questdo diz respeito ao fato de que 0 outro- mundo-circundante deve ser concebido nas suas pluralidades e, portanto, nas suas possibilidades de surpresas. Retomando a nogo de ksénos, s6 vem a ser estrangeiro quem, pertencendo a uma comunidade de sangue e de lingua, surge de uma cidade vizinha, com suas formas de vida mais ou menos diferenciadas. $6 dai vem o estranho familiar do ksénos. Concluindo, gostaria de propor a tese de que nao é a alteridade do outro que surpreende, mas que é a surpresa diante de alguém-que- sendo-parte-do-mesmo-é-outro, 0 que constitui o outro na sua alteri- dade. De uma certa forma, a surpresa surpreende porque provém do que parecia mais préximo e familia. FIGUEIREDO, L.C.M, The Question of Alterity in Jean Laplanche's ‘Theory of Generalized Seduction, Psicologia USP, S40 Paulo, v.5 n.1/2, p.297 - 308, 1994, Abstract: This paper presents a synthesis of the Generalized Seduction ‘Thoory of Jean Laplanche enphasizing the encounter with alterity in the processes of constitution and reconstitution of the self, Then, the very notion of alterty implicit in Laplanche’s work is discussed. An aliemative conception is proposed; here alterity is conceived as “emergency” and happening in the same process of self-constitution Index terms: Subjectivity. Psychoanalysis. Psychoanalytic theory. Time. ‘Seduction 307 Luts Claudio Mendonga Figueiredo REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BOLLAS, C. A sombra do objeto. Psicandlise do conhecido nao pensado. Rio de Janeiro, Imago, 1994. DETIENNE, M. Dioniso a céu aberto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988. FERENCZI, S. Diério Clinico, Sao Paulo, Martins Fontes, 1990. FERENCZI, 8. Obras completas IV. So Paulo, Martins Fontes, 1992. FERENCZI, S, Obras completas II], Sao Paulo, Martins Fontes, 1993. FIGUEIREDO, L.CM. Fala ¢ acontecimento em andlise. Percurso: Revista de Psicanalise, n 11/12, p.45-50, 1993. FIGUEIREDO, L.CM. A questio da intersubjetividade, uma falsa questo. Sto Paulo, 1991. /Mimeografadol FOUCAULT, M. Historia da sexualidade Graal, 1984. KOHUT, H. A restauragdo do self. Rio de Janeiro, Imago, 1988, LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris, Aubier, 1992. MALDINEY, H. Penser l'homme et la folie & la lumiére de Vanalyse existentielle et de l'analyse du destin. Grenoble, Jerome Millon, 1991. SCHELER, M. (1923). Nature et formes de la sympathie. Patis, Payot, 1971. VIDERMAN, S. A construcdo do espago analitico, So Paulo, Escuta, 1990. WARNKE, G. Gadamer: herméneutique, tradition et raison. Bruxelles, De Boeck Université, 1991. WINNICOTT, D. O ambiente e os processos de maturacao, Porto Alegre, Artes Médicas, 1983. vontade de saber. Rio de Janeiro, 308

Você também pode gostar