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Atividade 3 - Definição e análise de uma situação empírica relacionada à pesquisa envolvendo o

tempo como dimensão epistemológica


Pesquisa Social (2022/2) - PPGS UFSCar

Cairo Henrique dos Santos Lima

Para compreender adequadamente o tipo de temporalidade envolvida na construção histórica


das culturas da Diáspora Africana devemos considerar as consequências epistemológicas de diferentes
conceitos de tempo, isto é, como determinado entendimento sobre o tempo possui implicações no
nível da produção de conhecimento. De modo geral, a temporalidade linear é uma das características
mais constantes na narrativa da modernidade ocidental (MOMBAÇA, 2020).

A linearidade pressuposta no curso de desenvolvimento do processo “civilizatório” de matriz


colonial implica determinados modelos de sociedade e de sujeito, cuja institucionalização fundamenta
e naturaliza a ideia de modernização, a despeito das descontinuidades geográficas, políticas e culturais
resultantes da aplicação de um modelo europeu ou estadunidense a regiões como a América Latina ou
a Ásia. A partir de trabalhos historiográficos hegemônicos orientados pelo interesse em preservar a
narrativa da modernidade, outras formas de compreender o tempo e a história foram deixadas de lado,
apesar das mesmas sobreviverem através da hibridação junto à epistemologia da modernidade.

Em meio a disputas pelo direcionamento dos usos do conceito linear de tempo, há


perspectivas que enfatizam o retorno constante ao passado, a relevância crítica de se pensar o futuro, e
em suma, a influência mútua e constante entre o passado, o presente e o futuro. O afrofuturismo, além
de destacar tais elementos, traz à tona uma preocupação com o desenvolvimento de consciência sobre
o potencial político da imaginação como uma ferramenta de descolonização (IMARISHA, 2020),
apontando para novas possibilidades de projetar modificações nas narrativas históricas sobre o
processo colonial por trás da fundação da modernidade, bem como, no próprio modo como
entendemos o tempo e seus usos políticos possíveis.

Um exemplo contemporâneo das disputas pela ressignificação política de símbolos históricos


e dos usos práticos de um entendimento alternativo sobre o tempo inclui o processo de tombamento de
estátuas de figuras coloniais, em vista do poder que as estátuas suscitam ao representar um conjunto de
memórias de acordo com um enquadramento “oficial”. O caso mais recente e marcante deste tipo no
Brasil foi o incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, ocorrido em 2021, na cidade de São Paulo.

Nesse sentido, o afrofuturismo nos leva a conceber outras formas de temporalidade, em que o
futuro se apresenta como a dimensão fundamentalmente política do tempo. A partir da elaboração de
projetos de futuro, isto é, do desenvolvimento de perspectivas de acesso a espaços sociais alternativos,
aspectos de múltiplas epistemologias e temporalidades são articulados, em um processo de hibridação
cultural característico da Diáspora Africana.

Esses contrastes podem ser percebidos através da esfera estética. As obras de arte que
selecionamos apresentam influências tanto de uma epistemologia de viés científico, inspirada pela
modernidade, quanto de uma epistemologia decolonial, que adentra a narrativa da modernidade
criticamente, carregando saberes ancestrais constantemente reelaborados por meio da hibridação. A
partir do afrofuturismo imagens de futuro podem sobrescrever o passado, e imagens do passado
podem modificar um futuro idealizado, a exemplo das operações simbólicas que podemos perceber em
nomes como do grupo musical “Senzala Hi-Tech”, ou do título “O caçador cibernético da rua 13”, do
livro de Fábio Kabral. O espaço histórico da senzala permeado por “alta tecnologia” e a relação
estabelecida entre a atividade da caça e aparatos técnicos e digitais representam a formulação de novas
tecnologias ancestrais.

Os artistas afrofuturistas reúnem palavras com sentidos de temporalidade opostos, remetendo


à mescla entre símbolos que pertencem ao passado e ao futuro, bem como, à reinterpretação dos
saberes ancestrais da Diáspora Africana através de texturas tecno-científicas - no caso de “O caçador
cibernético da rua 13” (2017), elementos da mitologia iorubá, associados à tradição do Candomblé
Ketu, são transformados com base na estética tecnocêntrica típica do gênero de ficção científica. Na
narrativa do livro, as propriedades mágicas apresentadas pelos orixás, sobretudo por Oxóssi, em sua
gestão governamental da cidade de Ketu 3, a metrópole flutuante, permitem o funcionamento eficiente
de diversos equipamentos urbanos ligados à modernidade, como de distribuição de recursos médicos,
educacionais e tecnológicos.

Para levar a questão epistemológica ao nível histórico e discutir a dificuldade em compreender


o afrofuturismo a partir dos esquemas convencionais de representação linear do tempo, apontando ao
mesmo tempo para a hibridação de sua temporalidade própria, traremos agora, questões referentes ao
surgimento e consolidação do movimento afrofuturista em um panorâma transnacional. Podemos dizer
que o afrofuturismo surgiu ao longo do século XX, sendo nomeado muito tempo após o surgimento
das primeiras obras, fato este que dificulta uma qualificação cronológica do surgimento do
movimento. Nas décadas de 1920 e 1930, foram publicadas obras literárias consideradas precursoras
da estética afrofuturista, a exemplo do conto “O cometa” (1920) de W.E.B. Du Bois. Algumas décadas
depois, obras musicais e cinematográficas foram publicadas, a partir das décadas de 1960 e 1970,
como no caso do filme “Space is the Place”(1974) e do álbum de mesmo nome, ambos lançados pelo
músico estadunidense de jazz Sun Ra, junto à sua “Arkestra”.

Entretanto, tais obras de arte viriam a ser amarradas pelo conceito de afrofuturismo apenas na
década de 1990, através do texto “Black to the future” (1994), do crítico cultural Mark Dery, em que o
termo “afrofuturismo” surge pela primeira vez. Através da realização de entrevistas com os escritores
Samuel Delany, Greg Tate e Tricia Rose, o autor aborda os movimentos culturais da Diáspora
Africana e propõe o afrofuturismo como uma interpretação ampla, capaz de considerar essas
manifestações estéticas em conjunto. Desde então, dilemas fundamentais se estabeleceram no interior
do movimento, sobretudo considerando que Mark Dery é um homem branco, e que, para muitos
artistas afrofuturistas, a autoria negra é um dos critérios fundamentais para qualificar obras, sujeitos e
o próprio movimento como afrofuturista. Nesse sentido, surgiram, ao longo dos anos, denominações
alternativas para o mesmo conjunto de fenômenos, como afropessimismo e africanofuturismo 1,
indicando a existência de uma disputa constante pelo domínio estético e político do movimento.

A partir do conceito de "ziguezague temporal” (ESHUN, 2015), referente às oscilações que


caracterizam a temporalidade do afrofuturismo, Kodwo Eshun (2015) indica a intencionalidade dessas
alternâncias, isto é, os artistas buscam estabelecer uma desfamiliarização com a interpretação histórica
convencional sobre a formação da modernidade, que desconsidera a experiência social massiva das
populações da Diáspora Africana. Mais especificamente sobre o processo colonial que envolveu o
tráfico de sujeitos negros escravizados, o autor procura tensionar as continuidades e as rupturas entre
contextos coloniais passados e presentes, a exemplo da imagem da abdução alienígena, utilizada tanto
para ressaltar quanto para ressignificar elementos particulares de experiências ancestrais atreladas à
Diáspora Africana.

Dentro deste esquema metafórico, o sequestro realizado com a finalidade de escravizamento


seria representado pela abdução, os alienígenas seriam representados pelos colonizadores e as naves
espaciais seriam representadas pelas caravelas. Todos esses símbolos de poder são embebidos pela
complexidade dos cruzamentos entre diferentes temporalidades. A “confusão” que o afrofuturismo
procura causar na temporalidade linear da modernidade, portanto, está relacionada a seu projeto
político de elaborar futuros alternativos, e, nesse sentido, as questões epistemológicas acarretadas pelo
acionamento do tempo como categoria analítica tornam-se indissociáveis do afrofuturismo enquanto
objeto de pesquisa.

1 De acordo com Fábio Kabral, a situação instável do movimento afrofuturista em seus desenvolvimentos atuais
implica transformações constantes e dissensos, de modo que a disputa terminológica ou linguística alimenta o
avanço de discussões cruciais para o afrofuturismo, nesse caso, tangendo a pauta do antiessencialismo. Em
artigo, Fábio Kabral discute algumas das distinções e aproximações entre afrofuturismo e africanofuturismo:
https://fabiokabral.wordpress.com/2020/03/03/afrofuturismo-vs-africanfuturism/.
Bibliografia

DERY, Mark. De volta para o Afruturo: entrevistas com Samuel Delany, Greg Tate e
Tricia Rose. In: AMORIM, Tomaz (Org.). Ponto Virgulina #1: Afrofuturismo, 2020.

ESHUN, Kodwo. Mais considerações sobre afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (Org).
Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. São Paulo: 2015.

IMARISHA, Walidah. Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a


justiça. In: AMORIM, Tomaz (Org.). Ponto Virgulina #1: Afrofuturismo, 2020.

MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. MASP Afterall: Arte e descolonização, São


Paulo, 2020.

Referências digitais

KABRAL, Fábio. Afrofuturismo vs. Africanfuturism. Fábio Kabral Wordpress. 2020.


Disponível em: <https://fabiokabral.wordpress.com/2020/03/03/afrofuturismo-vs-
africanfuturism/>. Acesso em: 31 de ago. de 2022.

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