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Do Crime Continuado

Sumário. Forjada sob o influxo da equidade, a teoria da ficção jurídica do


crime continuado arma ao fim de evitar a acumulação de penas ou exagero
punitivo (art. 71 do Cód. Penal). É lance de alta política criminal saber temperar o
rigor da lei com a moderação da clemência.

I. Instituto nascido da equidade, é o crime continuado uma “fictio


juris” destinada a evitar o cúmulo material de penas(1); põe o fito,
portanto, em favorecer o réu.

No crime continuado, mais do que a unidade de ideação,


prevalecem os elementos objetivos referidos no art. 71 do Código Penal e
a conveniência de remediar o exagero punitivo, que não corrige o
infrator, senão que o revolta e embrutece, por frustrar-lhe a esperança
de realizar, em tempo razoável e devido, o sonho de liberdade.

Em ponto de crime continuado, não deve o Juiz reduzir


demasiado seu alcance, de arte que lhe impossibilite o
reconhecimento; antes lhe importa, de par com a preocupação da
ordem jurídica e social, atender à finalidade do instituto, convém a
saber, evitar, sob o influxo da equidade, o excesso da punição, pois
meta do Direito Penal é também a recuperação do infrator.

É certo que a reiteração criminosa e a habitualidade repugnam


ao reconhecimento da continuidade delitiva e, destarte, à unificação
das penas.

Com efeito:

“É preciso não confundir reiteração de crimes com crime continuado,


pois a prevalecer a confusão, chegaríamos à negação da reincidência, e todo
delinquente profissional, ao fim de sua vida, teria praticado um único crime

(1) Cf. José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354;
Editora Saraiva; São Paulo.
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continuado” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 84, p. 913; Min. Cordeiro
Guerra).

Não esqueçam, porém, ao Magistrado aquelas palavras das


Escrituras: “Noli esse justus multum” (Eccl., 7, 17), que o clássico Manuel
Bernardes pôs em vernáculo neste feitio: “Não queiramos ser justos com
nimiedade” (Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 236).

II. Feriu o ponto do crime continuado o voto adiante reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO

T RIBUNAL DE J USTIÇA DO E STADO DE S ÃO P AULO

T ERCEIRO G RUPO DE C ÂMARAS – S EÇÃO C RIMINAL

Revisão Criminal nº 364.238-3/2-00


Comarca: Suzano
Peticionário: AA

Voto nº 6063
Relator
Sorteado
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Declaração de Voto (vencido)

– “Intimada a defesa da expedição da carta precatória,


torna-se desnecessária intimação da data da audiência no
juízo deprecado” (Súmula nº 273 do STJ).
– A confissão do réu, na Polícia, corroborada por
outros valiosos elementos de convicção (v.g.:
reconhecimento pela vítima, depoimento de
testemunha presencial, etc.), autoriza a edição de
decreto condenatório. Com efeito, exceto se
comprovado ter sido obra de violência, a confissão
do réu passa por prova excelente, “pois que é contrário à
natureza alguém afirmar contra si fato que não seja
verdadeiro” (Mário Guimarães, O Juiz e a Função
Jurisdicional, 1958, p. 309).
–“Instituto jurídico nascido da equidade”, na frase de José
Frederico Marques, “é o crime continuado uma fictio juris
destinada a evitar o cúmulo material de penas” (Curso de
Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354).
– Segundo a jurisprudência do STF, o art. 71 do Cód.
Penal admite a aplicação da teoria da ficção jurídica
(ou continuidade delitiva) aos crimes dolosos contra
a vida; pelo que, homicídios praticados nas mesmas
circunstâncias de tempo, lugar e “modus operandi”,
impõem a pena de um só deles, aumentada até o
triplo (cf. Rev. Tribs., vol. 788, p. 515; 813/535 e
763/549).
–“Ao mesmo Demônio se deve fazer justiça, quando ele a tiver”
(Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. III, p. 329).

1. AA, condenado pelo MM. Juízo de Direito da 2a. Vara da


Comarca de Suzano à pena de 25 anos de reclusão, no regime
integralmente fechado, por infração dos arts. 121, § 2º, ns. I e IV, e 155,
“caput”, conjugados com o art. 69 do Código Penal, reformada
parcialmente em grau de recurso pelo ven. acórdão de fls. 74/78
(apenas para modificar o regime prisional imposto ao delito de furto,
4

para inicialmente fechado), requer a este Egrégio Tribunal, assistido de


competente e dedicado Procurador do Estado, Revisão de seu processo.
Afirma, em extensa e esmerada petição, que o processo estava
eivado de nulidade, por cerceamento de defesa, porque ouvida
testemunha por precatória, sem a sua presença.
No ponto do mérito, alega que, praticados em continuação seus
crimes, era forçoso unificar-lhes as penas, na forma do art. 71 do Código
Penal.
Pleiteia, em suma, à colenda Câmara tenha a bem deferir-lhe a
unificação das penas, ou declarar nulo o processo, desde a audiência
de fl. 257.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e escorreito
parecer do Dr. Luiz Cláudio Pastina, opina pelo indeferimento do
pedido (fls. 110/113).
É o relatório.

2. Foi condenado o peticionário porque, no dia 20.3.1995, pelas


7h10, por motivo torpe e valendo-se de recurso que dificultou a defesa
dos ofendidos, matou, mediante golpes de faca, as vítimas Deuvalino
Januário de Pina e Neide Aparecida dos Santos.
Consta ainda da denúncia juntada aos autos (fls. 4/7) que, nas
mesmas circunstâncias de tempo e lugar, após a prática dos
homicídios, o peticionário subtraiu para si coisa alheia móvel: uma
bicicleta pertencente a Everton Santos de Pina.
Foi o caso que o peticionário, frequentador do estabelecimento
comercial das vítimas, aí contraíra dívida. Instado a satisfazê-la,
encolerizou-se e as partes romperam em hostilidades.
No dia dos fatos, porém, o peticionário dirigiu-se à residência
das vítimas (visto que o estabelecimento comercial já estava fechado),
com o pretexto de que lhe servissem bebida alcoólica.
Tanto que vieram à porta da residência atendê-lo, o réu
acometeu-as, vibrando-lhes golpes mortais de faca. Ato contínuo, por
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dissimular a enormidade de seu ato, pôs os corpos sobre uma cama, e


amarrou-os com pedaços de fio.
A seguir, dirigiu-se ao bar, enfrascou-se em cerveja e subtraiu do
menor Everton Santos de Pina sua bicicleta.
Instaurada a “persecutio criminis in judicio”, transcorreu o processo
em forma legal; ao cabo, foi o peticionário condenado.
Agora, pela via revisional, pretende o reconhecimento da
continuidade delitiva, nos termos do art. 71 do Código Penal, ou a
declaração da nulidade do processo.

3. A arguição de nulidade do feito, embora suscitada em


exuberante arrazoado — que muito acredita e recomenda o nome do
patrono do réu (Dr. Murilo Schieri Costa Neves) —, não procede, “data
venia”.
Estaria trincado de nulidade o processo, argumenta a Defesa,
porque nem o réu nem seu procurador foram intimados da audiência,
realizada no Juízo deprecado, para a inquirição de testemunha.
Semelhante alegação, porém, carece de fomento de bom direito.
Em verdade, do r. despacho que determinou a expedição de
carta precatória (fl. 116) foi intimado o defensor do réu, Dr. Gil
Tanoeiro (fl. 121 v.).
Por outra parte, isto de não ter sido requisitado o réu para
assistir à inquirição de testemunha fora da terra não implica nulidade
do processo. A diretriz não é menos que do Excelso Pretório:
“Assim, é desnecessária a requisição de réu preso para a audiência em que
deve ser ouvida, por precatória, testemunha arrolada pela acusação” (STF,
HC nº 56.880; DJU 8.6.79, p. 4.534; apud Damásio E. de Jesus,
Código de Processo Penal Anotado, 21a. ed., p. 191).
Ao demais, na conformidade da Súmula nº 273 do Colendo
Superior Tribunal de Justiça, “intimada a defesa da expedição da carta
precatória, torna-se desnecessária intimação da data da audiência no juízo
deprecado”.
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À derradeira, é princípio inscrito no art. 563 do Código de Processo


Penal que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo
para a acusação ou para a defesa”.
Também não há que dizer contra a r. decisão que,
acertadamente, indeferiu pedido formulado pelo patrono do réu, de
adiamento da sessão do júri, sob color de que o Cartório não
providenciara cópia de peças dos autos para que pudesse melhor
desempenhar-se da defesa (fl. 463). É que ditas cópias, segundo o
observou o r. despacho verberado, já estavam à disposição do
requerente, havia coisa de “um mês” (fl. 472); demais disso, ao patrono
do réu, já que regularmente intimado (fl. 472), cumpria comparecer à
plenária para promover-lhe a defesa.
Outro tanto no que respeita à irresignação da Defesa ao
despacho que lhe indeferiu requerimento de diligência, i.e., elaboração
de esboço gráfico do local dos fatos (fl. 103).
Obrou com aviso o douto Magistrado, ao indeferir-lhe o pedido
de diligências, que o douto parecer de fl. 112 reputou, com assaz de
razão, de todo escusadas: “absolutamente desnecessárias” para a “busca da
verdade”.
Com efeito, embora o escopo do procedimento criminal seja
“obter a certeza judicial, segundo o critério da verdade” (Bento de Faria, Código
de Processo Penal, 1960, vol. II, p. 210), a liberdade de requerer “não deve
degenerar em abuso, por forma a paralisar a marcha do processo, com o propósito
de retardar a administração da justiça ou tumultuar a ordem processual” (Idem,
ibidem).
Enfim, por empregar a expressão vivaz de Francisco Campos na
Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, a lei “não deixa respiradouro
para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades” (nº XVII).
Afasto, assim, a alegação de nulidade do processo, que tenho
por desarrazoada.

4. A responsabilidade do peticionário pelo duplo homicídio e pelo


furto é superior a toda a dúvida sensata.
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A testemunha Éverton Santos de Pina relatou, com grande rigor


descritivo, a cena lutuosa do trucidamento de seus pais pelo réu. À
distinta Juíza que lhe tomou o depoimento (Dra. Maria Isabel
Caponero Cogan) esclareceu que o pai era dono de um bar e residia no
imóvel que lhe era contíguo, onde, no dia dos fatos, apareceu o réu.
Aos brados, pediu lhe servissem pinga. O comerciante, conforme as
palavras da testemunha, negou-se a atendê-lo, porque aparentemente
embriagado e por não haver saldado ainda débito anterior. Então o réu
empurrou-o, e esse, após dar com a cabeça na porta, desfaleceu. O réu
neste ínterim, amarrou-o à cama, o que fez também em relação à
mulher; em seguida, coseu-os de facadas.
Após selar-se com o sangue das vítimas, deitou a mão a uma
bicicleta que aí havia, de propriedade de um dos filhos das vítimas, e
abalou (fl. 25).
Fatos foram esses que o réu tentou negar, em seu interrogatório
no plenário do Júri (fl. 519). Fê-lo, entretanto, debalde, não só porque a
mencionada testemunha o conhecia bem — e até lhe declinara a
alcunha: “Bambu” (fl. 258) —, senão porque o réu, na fase policial,
confessara, amplamente, a autoria dos crimes (fl. 83).
Não estranha, pois, que os jurados, por implacável unanimidade
de sufrágios, lhe afirmassem a autoria dos crimes nas três séries de
quesitos (fls. 520/522).
As sentenças condenatórias do Júri, ainda que seja possível
rescindi-las na instância revisional, por amor da “prevalência do interesse
social do status libertatis” (Rev. Tribs., vol. 594, p. 372), toca à Defesa
demonstrar-lhes o erro ou injustiça.
A propósito:
“Em se tratando de revisão, inverte-se o ônus da prova, cabendo ao
requerente mostrar o desacerto da decisão que o condenou, que ela foi
contrária à evidência dos autos, não lhe aproveitando o estado de dúvida
que acaso consiga criar no espírito dos julgadores” (Rev. Forense, vol.
188, p. 349).
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5. A decisão revidenda fundou-se em prova obtida com estrita


observância dos preceitos legais.
Diferentemente do que asseverou o peticionário, portanto, não
afrontou a evidência.
Tão só a decisão que se aparte rudemente das provas sofre a
pecha de contrária à evidência dos autos; não está nesse número, bem
se vê, a que faz objeto do presente pedido.
Ora:
“Decisão contrária à prova dos autos é aquela que se choca, de modo claro,
manifesto e inequívoco, com os elementos probatórios dos autos e não a
que lhes empresta o justo valor” (Rev. Forense, vol. 187, p. 387).
A condenação do réu, sobre ter sido necessária, foi justa.

6. A despeito de ter praticado atos atrocíssimos — próprios


somente de quem desceu todos os círculos da maldade humana —,
acho razão ao réu quando, por seu digno e esforçado patrono, pleiteia
o reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes dolosos
contra a vida, visto que cometidos nas circunstâncias do art. 71 do
Código Penal, isto é, de forma continuada.
De feito, “instituto jurídico nascido da equidade”, na frase de José
Frederico Marques, “é o crime continuado uma fictio juris destinada a evitar o
cúmulo material de penas” (Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354).
Beneficiar o réu, portanto, é o alvo a que atira.
Cai a lanço o ven. acórdão, abaixo reproduzido por sua ementa:
“Segundo a disciplina do Código Penal Brasileiro, é despicienda a unidade
de ideação ou o nexo psicológico para o reconhecimento do crime
continuado. Relevância maior assumem os elementos objetivos,
decorrendo da sua homogeneidade e da conveniência de favorecimento, ou
não, na aplicação da pena mais branda ao condenado, o reconhecimento,
ou não, da continuação” (Rev. Tribs., vol. 380, p. 220; rel. Manoel
Pedro).
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Faz ao caso, à derradeira, transcrever o escólio de Julio Fabbrini


Mirabete:
“Em que pese aos entendimentos em sentido contrário, prevalece em
flagrante maioria a ideia concernente à admissão da teoria objetiva pura
ou realístico-objetiva, consoante a qual o crime continuado é uma
realidade apurável objetivamente através da apreciação dos elementos
constitutivos exteriores, independentemente da unidade de desígnio”
(Manual de Direito Penal, 1999, pp. 316/317).
Nisto de crime continuado, mais do que a unidade de ideação,
importam os elementos objetivos referidos no art. 71 do Código Penal e a
conveniência de evitar o exagero punitivo, que não corrige o infrator,
antes o revolta, com retirar-lhe a esperança do retorno breve à
comunhão social.
Ainda:
“Entendemos que a reforma penal de 84 tornou prejudicada essa súmula,
que enunciava: Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a
vida. Nesse sentido: STF, RJTJSP 121/665; TJSP, RJTJSP 165/315”
(Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 6a. ed., p. 145).

7. De que nossas Cortes de Justiça têm admitido a continuidade


delitiva, mesmo em se tratando de homicídios, estão a demonstrá-lo os
julgados a seguir reproduzidos por suas ementas:

a) “Ante os pressupostos objetivos do art. 71 do Cód. Penal — prática de


dois ou mais crimes da mesma espécie, condições de tempo, lugar,
maneira de execução e outras circunstâncias próximas —, impõe-se a
unificação das penas mediante o instituto da continuidade delitiva.
Repercussão do crime no meio social — de que é exemplo o caso da
denominada Chacina de Vigário Geral — não compõe o arcabouço
normativo regedor da matéria, muito menos a ponto de obstaculizar a
aplicação do preceito pertinente” (STF; rel. Min. Marco Aurélio;
Rev. Tribs., vol. 788, p. 515);
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b) “Crime continuado é aquele no qual o agente, mediante mais de uma


ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os
quais, pelas semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução,
podem ser tidos como continuação de outros (art. 71 do Cód. Penal). O
modus operandi, em tais delitos, dever ser o mesmo, sendo necessária a
homogeneidade das condutas.
No caso sub judice, a peça vestibular, bem como o libelo, apontam a
ocorrência de um homicídio qualificado e em seguida a tentativa de
cometimento de outro homicídio, pelas mesmas autoras e em
circunstâncias objetivas homogêneas. Destarte, configura-se a
continuidade delitiva, e não o concurso material” (STJ; rel. Min.
Jorge Scartezzini; Rev. Tribs., vol. 813, p. 535);
c) “O art. 71, parág. único, do Cód. Penal admite o reconhecimento da
continuidade delitiva nos crimes dolosos contra vítimas diferentes,
cometido com violência ou grave ameaça à pessoa; assim, no duplo
homicídio, o ignóbil motivo dos delitos e a dificuldade de defesa
imposta aos ofendidos, circunstâncias já mensuradas quando da
aplicação das qualificadoras, não podem ser consideradas como causas
para a exclusão do favor legal da continuidade delitiva, sob pena de bis
in idem” (TJSP; rel. Walter Guilherme; Rev. Tribs., vol. 763, p.
549).

8. A circunstância de ter-se utilizado o peticionário da via


revisional não lhe obsta ao atendimento da súplica.
À uma, porque somente agora acertou que a Defesa discorresse
a propósito da questão, isto é, do cúmulo material de penas.
À outra, porque, ao pretender o reconhecimento do crime
continuado, intenta a reclassificação da infração penal, o que o
art. 626 do Código Processo Penal prevê e autoriza (cf. RJDTACrimSP, vol.
22, p. 500).
À derradeira, “o instituto da revisão criminal visa, como última garantia
do direito de defesa assegurado indistintamente a todos os condenados, ao
reexame da sentença condenatória suscetível de emenda ou reforma nos casos
previstos em lei” (Rev. Forense, vol. 141, p. 381).
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Ainda que autor de crimes repugnantes e gravíssimos, tem


direito o peticionário à aplicação da teoria da ficção jurídica. Ao mesmo
Demônio — sentenciou o profundo Antônio Vieira — “ao mesmo
Demônio se deve fazer justiça, quando ele a tiver” (Sermões, 1959, t. III, p. 329).
Assim, adotado o estalão dosimétrico da r. sentença, que fixou a
pena do réu no mínimo legal, imponho-lhe a sanção de um dos
homicídios e aumento-a de 1/2 (6 anos) — pois que o mínimo do
acréscimo é 1/6, segundo a jurisprudência do Colendo Supremo
Tribunal Federal (cf. Rev. Tribs., vol. 617, p. 410) —, de que resultam 18
anos de reclusão, para cumprimento sob o regime integralmente
fechado, mantida a pena de 1 ano para o crime conexo (furto), no
regime fechado, no início.
Em suma: defiro em parte o pedido de revisão criminal para,
reconhecida a continuidade delitiva quanto ao duplo homicídio,
impor ao peticionário a pena de 18 anos de reclusão, mantida no mais
a r. sentença de Primeiro Grau.

9. Pelo exposto, defiro em parte a revisão criminal para, reconhecida


a continuidade delitiva entre os dois homicídios, reduzir a 18 anos de
reclusão a pena do peticionário a esse respeito, mantida no mais a r.
sentença de Primeiro Grau.

São Paulo, 4 de agosto de 2005


Des. Carlos Biasotti
Relator Sorteado

III. Crime Continuado: a Lição da Doutrina e o Magistério dos


Tribunais. Ementas.

1. “O crime continuado, instituto nascido da equidade, é uma fictio juris


destinada a evitar o cúmulo material de penas” (José Frederico
Marques, Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354).
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2. “O réu tem direito ao crime continuado, agindo ou não com unidade de


desígnio, pois essa foi a vontade do legislador” (Guilherme de Souza
Nucci, Código Penal Comentado, 2000, p. 216).

3. Não haverá continuidade, mas simples reiteração criminosa, se


os delitos não foram praticados pelo sujeito “mediante o
aproveitamento das mesmas relações e oportunidades ou com a utilização
de ocasiões nascidas da primitiva situação” (Damásio E. de Jesus,
Código Penal Anotado, 5a. ed., p. 198).

4. A figura da continuidade delitiva, prevista no art. 71 do Cód.


Penal, pressupõe as “mesmas relações e oportunidades ou com a
utilização de ocasiões nascidas da primitiva situação”, sua pedra de
toque (cf. Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 5a. ed., p.
198).

5. “Inadmissível é a outorga do benefício quando se trata de casos em que


estão patentes a perseveratio in crimine ou a consuetudo delinquendi,
sobretudo porque tais circunstâncias constituem motivo não do
abrandamento da pena, mas sim de seu agravamento, como indícios de
periculosidade e da incapacidade de adaptação à ordem legal” (Damásio
E. de Jesus, Direito Penal Anotado, 1988, p. 527).

6. “Por mais graves que tenham sido os crimes praticados, tem o acusado o
direito à esperança de um dia voltar ao convívio social e de sua família”
(João Baptista Herkenhoff, Uma Porta para o Homem no Direito
Criminal, 2a. ed., p. 166).

7. “Criação destinada a evitar o excesso de punição decorrente do tratamento


rígido conferido ao concurso real de infrações”, como o definiu Manoel
Pedro Pimentel (Do Crime Continuado, 2a. ed., p. 114), o crime
continuado não deve ser estímulo nem acoroçoamento à prática
de ações delitivas, o que se dá sempre que medido por craveira
demasiado generosa (art. 71 do Cód. Penal).

8. “Viola o art. 71 do Código Penal o acórdão que, embora reconhecendo a


concorrência dos elementos da caracterização objetiva do crime
continuado, que nele se adotou, nega, porém, a unificação das penas, à
base de circunstâncias subjetivas, quais os antecedentes do acusado ou a
13

ausência da unidade de desígnio” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 137, p.


772; rel. Min. Sepúlveda Pertence).

9. “É preciso não confundir reiteração de crimes com crime continuado, pois


a prevalecer a confusão, chegaríamos à negação da reincidência, e todo
delinquente profissional, ao fim de sua vida, teria praticado um único
crime continuado” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 84, p. 913; Min.
Cordeiro Guerra).

10. Segundo a jurisprudência do STF, o art. 71 do Cód. Penal admite a


aplicação da teoria da ficção jurídica (ou continuidade delitiva)
aos crimes dolosos contra a vida; pelo que, homicídios
praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e “modus
operndi”, impõem a pena de um só deles, aumentada até o triplo
(cf. Rev. Tribs., vol. 788, p. 515; 813/535 e 763/549).

11. Crimes da mesma espécie, o roubo e a extorsão, quando


praticados nas circunstâncias do art. 71 do Cód. Penal,
configuram continuidade delitiva, não concurso material de
infrações. É desse número, portanto, o caso de delinquentes
que, após consumar o roubo, “forçam a vítima a acompanhá-los à
caixa eletrônica para sacar o dinheiro” (cf. Rev. Tribs., vol. 765, p. 572;
rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).

12. “Aplica-se a regra do crime continuado quando da aplicação da pena pelo


delito de atentado violento ao pudor, se este foi praticado, embora contra
várias vítimas, pelo mesmo modus operandi” (Rev. Tribs., vol. 807, p.
592; rel. Celso Limongi).

13. Segundo a Jurisprudência, a mera possibilidade de serem


considerados continuados os delitos atribuídos ao réu não
importa a junção dos processos (cf. Rev. Tribs., vol. 445, p. 442).

14. “A simples habitualidade delituosa descaracteriza a noção legal do


chamado crime continuado” (STF; HC nº 68.626; rel. Min. Célio
Borja; DJU 1.11.91, p. 15.569).
14

15. “Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena


imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da
continuação” (Súmula nº 497 do STF).

16. Segundo a comum doutrina de graves autores, não há


continuidade delitiva (art. 71 do Cód. Penal), mas simples
reiteração criminosa, se os crimes subsequentes não estão
ligados aos anteriores por vínculo psicológico.

17. No crime continuado, mais do que a unidade de ideação,


prevalecem os elementos objetivos referidos no art 71 do Cód.
Penal e a conveniência de remediar o exagero punitivo, que não
corrige o infrator, senão que o revolta e embrutece, por frustrar-
-lhe a esperança de realizar, em tempo razoável e justo, o sonho
da liberdade.

18. Para caracterizar a ficção de direito do art. 71 do Cód. Penal, é


indispensável a comprovação, dentre outros, do requisito da
identidade dos participantes dos crimes (“modus operandi”).

19. A pedra de toque do crime continuado, segundo o preceito do


art. 71 do Cód. Penal, é tenham sido os delitos praticados pelo
sujeito “mediante o aproveitamento das mesmas relações e oportunidades
ou com a utilização de ocasiões nascidas da primeira situação” (Damásio
E. de Jesus, Código Penal Anotado, 5a. ed., p. 198).

20. Não há aplicar com extremo rigor o instituto da unificação de


penas, que isso importaria na deturpação de seu escopo:
verdadeiro instrumento de individualização da pena, destina-se
a evitar o excesso de punição.

21. Segundo a comum doutrina de graves autores, não há


continuidade delitiva (art. 71 do Cód. Penal), mas simples
reiteração criminosa, se os crimes subsequentes não estão
ligados aos anteriores por vínculo ideológico.

22. Isto de unificação de penas reclama do Magistrado especial


prudência e discernimento, não venha a premiar, com redução
15

drástica e temerária, a duração de penas de criminosos


empedernidos.

23. Conforme a lição de autores de primeira nota, para a


configuração do crime continuado faz-se mister idêntico “modus
operandi”, isto é, que “os delitos tenham sido praticados pelo sujeito
aproveitando-se das mesmas relações e oportunidades ou com a utilização
de ocasiões nascidas da primitiva situação” (Damásio E. de Jesus,
Código Penal Anotado, 9a. ed., p. 228).

24. Os crimes subsequentes “devem ser havidos como continuação do


primeiro”: este o traço mais conspícuo do crime continuado. Para
tanto, além dos elementos de ordem objetiva, é mister concorra
o de índole subjetiva, a saber: unidade de resolução. Sem essas
características, não há continuidade delitiva, mas simples
reiteração criminosa, que argui no agente a torpe malícia de
quem faz do crime profissão.

25. Se até os crimes contra a vida admite a “fictio juris” da


continuidade, não há razão atendível para negá-la nas hipóteses
de crimes contra os costumes praticados nas circunstâncias do
art. 71 do Cód. Penal.

26. Entre furto e estelionato não há continuação porque, embora


delitos da mesma natureza, pertencem a espécies diferentes.
Crimes da mesma espécie, conforme Damásio E. de Jesus, “são os
previstos no mesmo tipo penal, i.e., aqueles que possuem os mesmos
elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e
qualificadas, tentadas ou consumadas” (Código Penal Anotado, 9a. ed.,
p. 227).

27. Satisfeitos os requisitos do art. 71 do Cód. Penal, nada impede o


reconhecimento da continuidade delitiva entre roubo e
extorsão, pois se trata de crimes da mesma espécie: apenas se
estremam na forma de entrega da coisa.

28. Sem atender ao requisito da pluralidade de crimes da mesma


espécie, não há falar em continuidade delitiva (art. 71 do Cód.
Penal).
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29. Que é possível a continuação entre crimes praticados contra


vítimas diferentes e bens personalíssimos está a persuadi-lo
assim a lição de acreditados penalistas como a jurisprudência
dos Tribunais.

Em sua prestantíssima obra Código Penal Comentado (5a. ed., p.


378), escreveu Guilherme de Souza Nucci:

“Atualmente, os acórdãos seguem tendência em sentido contrário,


acolhendo o delito continuado mesmo contra vítimas diferentes e bens
personalíssimos”.

Ao diante, na mesma página, remata:

“Aliás, outra não poderia ser a solução, pois a Reforma Penal de 1984
acrescentou o parágrafo único ao art. 71 do Código Penal, prevendo
claramente essa possibilidade”.

30. “Ao mesmo Demônio se deve fazer justiça, quando ele a tiver” (Pe.
Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. III, p. 329).

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