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mente aplicado desde jovem à mecânica do fato lite-

rário, à instrumentação poética, à técnica da crítica, às


fórmulas capazes de assegurar o controle sobre a ma-
téria com que se trabalha mediante o absoluto domínio
dos utensílios mentais que a elaboram, Poe busca essa
"atitude central" de que fala Paul Valéry ao estudar
Leonardo, atitude "a partir da qual as empresas do
conhecimento e as operações da arte são igualmente
possíveis". Sob a evidente influência das reflexões de
Poe, Valéry atribui a Leonardo uma idéia da realização,
que parte da consciência de que a rigor é impossível
comunicar ao espectador ou ao leitor as imaginações
próprias, pelo que o artista deverá compor, ou seja,
criar uma verdadeira "máquina", que, tal como vimos,
é o modo de Poe conceber a criação de um co11to ou
de 11m rm1•1nr1. Sem aludir explicitamente à noção de
originalidade e de poiesis em Poe, Valéry o cita ao final
da sua lntroduction à la méthode de Léonard de Vinci:
"Poe ... assentou claramente na psicologia, na proba-
bilidade dos eíeitos, o ataque ao leitor".
De toda a sua obra crítica, esta busca de um mé-
todo parece ser o legado mais importante deixado por
Poe às letras universais. Sem frieza mecânica - pois
às aparências de cc, tos text0c; mistificadores se opõe
o melhor da sua narrativa e da sua poesia, que são as
provas que contam - , e sem o pragmatismo indisfar-
çável do profissional da literatura, Poe indaga a chm•e
da criação 1•crbal, situando-se num plano que recusa
simultaneamente a efusão e a montagem, substituídos 6. ALGUNS ASPECTOS DO CON ro
por um sistema de movimentos espirituais capazes de
dinamizar a obra literária, de projetá-la no leitor até Enconlro-me hoje, diante dos senhores, 1111111:i ,i-
reduzi-lo à passividade - pois só assim o atingirá a tuação has,ante paradoxal. Um contista arge11ti11P si:
mensagem na sua total pureza - , em vez de provocar dispõe a trocar idéias acerca do conto sem que s~u~
o processo inverso pelo qual o leitor penetra na coisa ouvintes e seus interlocutores, salvo algumas exccçí,e5.
lida e incorpora a ela, num jogo de mútuos reflexos, conheçam coisa algum:i de sua obra. O isolamrnln rnl-
suas próprias tcnsôcs ddormadoras. E esta concepção tural que continua prejudicando nossos países, s0111;1d,1
ativa e atuante da literatura, este verbo que se encarna, à injusta incomunicabilidade a que se vê submetida
é a melhor coisa capaz de parafrasear o sentido de uma Cuba atualmente, têm determinado que meus livros.
criação, se entendermos por esta não tanto a passagem que já são uns quantos, não tenham chegado. a 11;io
inconcebível do nada ao ser, mas a admirável, infinita ser excepcionalmente, às mãos de leitores tão dispostos
ação do ser sobre si mesmo, nas suas muitas figuras, e tão entusiastas como os senhores. O mal disto niio
na alegre variedade das coisas e dos dias. é tanto que os senhores não tenham tido oportunid;1dc
de julgar meus contos, mas, sim, que eu me sinta 11111
pouco como um fantasma que lhes vem falar sem essa

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relativa tranqüilidade que sempre dá sabermo-nos pre- à margem de todo realismo demasiado ingênuo. l'or
cedidos pela tarefa cumprida ao longo dos anos. E o isso. se nas idéias que seguem, os senhores cncont Ia-
fato de me sentir como um fantasma deve ser já per- rem urna predileção por tudo o que no conto é cxn:p-
ceptível em mim, porque há alguns dias uma senhora cional, quer se trate dos temas ou meomo das for mas
argentina me assegurou no hotel Riviera que eu não expressivas, creio que esta apresentação de mi11ha
era Julio Cortázar, e diante de minha estupefação prúpria maneira de entender o mundo explicar.í 111i11ha
agregou que o autêntico Julio Cortázar é um senhor tomada de posição e meu enfoque do problema. Em
de cabelos brancos, muito amigo de um parente dela, 1iltimo caso se poderá dizer que só falei do conto tal
e que nunca arredou pé de Huenos Aires. Como já laz qual cu o pratico. E, contudo, não creio que sc;ja as~irn.
doze ,1110s que resido cm Paris. os senhores cornprcen- Tenho :1 certcz;i de que existem certas constantes, cc1 los
clerãn que minha qualidade espectral se lenha intensifi- val(l1cs que se aplicam a todos os contos, f:lntústiui-;
cado notavelmente depois desta revelação. Se de repente ou ~ealistàs, dramáticos ou humorísticos. E penso que
eu desaparecer na metade de uma frase, não me sur- lalvcz seja possível mostrar aqui esses elementos ill\a-
pn:enderci dcmai<;; e 111, 111í11in1n sairemos todos ga- 1i:ívl'is om: diin a um 1111111 conto a atmosfera pcnili:11
nhando. e a qualidade de obra de arte.
Afirma-se que o desejo mais ardente de um fan- A oportunidade de trocar idé ias acerca do conto
tasma é recobrar pelo menos um sinal de corporeidade, me interessa por diversas razões. Moro num país --
algo tangível que o devolva por um momento à vida França - onde este gênero tem pouca vigência, embura
de carne e osso. Para conseguir um pouco de tangibi- nos últimos anos se note entre escritores e leitores um
lidade diante dos senhores, vou dizer em poucas pala- interesse crescente por essa forma de expressão. De
vras qual é a direção e o sentido dos meus contos. Não qualquer modo, enquanto os críticos continuam acu11111-
o faço por mero prazer informativo, porque nenhuma lc111Jo teorias e mantendo exasperadas polêmicas acc1 c:1
resenha teórica pode substituir a obra em si; minhas do romance, quase ninguém se interessa pela problc111ú-
razões são mais importantes do que essa. Urna vez que tica do conto. Viver como contista num país ontle L·sta
me vou ocupar de alguns aspectos do conto como gê- forma expressiva é um produto quase exótico, ob1 i!,!:1
nero literário, e é possívc.::1 que algumas das minhas f1ir\·os:i111cnk :1 buscar cm outras literaturas o alinw111u
idéias surpreendam ou choquem quem as escutar, pa- que ali falta. Pouco a pouco, em textos originais ou
rece-me de uma elementar honradez definir o tipo de mediante traduções, vamos acumulando quase que I an-
narração que me interessa, assinalando minha especial corosamentc uma enorme quantidade de contos dll
, maneira de entenJer o mundo. Quase toJos os contos passado e do presente, e chega o tlia em que podc1111,s
que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico fazer um balanço, tentar uma aproximação apreciad01 a
por falta de nome melhor, e se opõem a esse falso a esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo 110s
realismo que consiste em crer que todas as coisas podem seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em últi111a
ser descritas e explicadas corno dava por assentado o análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol
otimismo filosófico e científico do século XVIII, isto da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra
é, dentro de um mundo regido mais ou menos harmo- dimensão do tempo literário.
niosamente por um sistema de leis, de princípios, de Mas além desse alto no caminho que todo escritor
relações de causa a efeito, de psicologias definidas, de deve fazer em algum momento do seu trabalho, falar do
geografias bem cartografadas. No meu caso, a suspeita conto tem um interesse especial para nós, uma vez que
de outra ordem mais secreta e menos comunicável, e todos os países americanos de língua espanhola estão
a fecunda descoberta de Alfred Jarry, para quem o dando ao conto uma importância excepcional, que ja-
verdadeiro estudo da re;iliJade não residia nas leis, mas mais tivera r111 outrns países latinos como a França 1111
nas exceções a essas leis, foram alguns dos princípios a Espanha. Entre nós, corno é natural nas literaturas
orientadores da minha busca pessoal de uma literatura jovens, a criação espontânea precede quase sempre o

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cxamc c1 ític.:11, c é ho111 quc :..cp assim. N111guém poLlc água dentro de urn cristal, uma fugacidade numa pn-
pretender que só se devam escrever contos após serem manência. Só com imagens se pode transmitir essa al-
conhecidas suas leis. Em primeiro lugar, não há tais quimia secreta que explica a profunda ressonã11ci;1 que
leis; no m:'íximo cabe í:tlar de pontos de vistn, de ccrt.is um g1 ande conto tem cm nós, e que explica também por
constantes que dão uma estrutura a esse gênero tão que há tão poucos contos verdadeiramente grandes.
pouco classificável; em segundo lugar, os teóricos e os Parà se entender o caráter peculiar do conto, cos-
críticos não têm por que serem os próprios contistas, e tuma-se compará-lo com o romance, gênero muito mais
é natural que aqueles só entrem em cena quando e,dsta popular, sohre o qual abundam as preceptísticas. A,;si-
já um acervo, uma boa quantidade de literatura que nala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no
permita indagar e esclarecer o seu desenvolvimento e papel, e, portanto, no tempo de leitura, sem outros li-
as suas qualidades.. Na América, tanto em Cuba como mites que o esgotamento da matéria romance.ida; por ,ua
no México ou no Chile ou na Argentina, uma grande vez, o conto parte da noção de limite, e, cm primeiro
quantidade de contistas trabalha desde os começos do lugar, de limite físico, de tal modo que, na França,
século, sem se conhecerem muito entre si, descobrim.lo- quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma j;í
-se às vezes de maneira quase que póstuma. Em face o nome de ,w111·t'II<'. gênero a cavaleiro entre II co111,1 c
dcs-;e panorama sem coei ência suficiente, no qual pou- 11 10111a11c.:e p111p1 i:11111.:nte Jito. Nesse sentiJo, o 10111:111, e
cos conhe1.:cm a fundo o trabalho dos demais, creio que e o conw se 1..kixam comparar analogicamente 1.:1.1111 o
é útil falar do conto por cima da~ particularidades na- cinema e a fotografia, na medida cm que um fil111c é
cionais e internacionais, porque é um gênero que entre cm princípio uma "ordem aberta'', romanesca, c11t1u 111-
nós tem uma importância e uma vitalidade que crescem to que u111a fntografia bem rcnlizacfa pressupõe 11111a jus-
dia a dia. Algumn vez faremos as antolugi.is definitivas ta limitação prévia, imposta cm pnrtc pelo reduzido
- como fazem os países anglo-saxões, por exemplo - campo que a câmara abrange e pela forma com qm· o
e se saberá até onde fornos capazes de chegar. Por ora fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação. Não sci
não me parece inútil falar do conto em abstrato, como se o~ senhores terão ouvido um fotógrafo profissirn1al
gênero liter,írio. Se tivermos urna idéia convincente des- falar da sua própria arte: sempre me surpreendeu qu,;
sa forma de expressão liter:íria, ela poderá contribuir se expressasse tnl como poderia 'fazê-lo um contista l ' lll
para estabelecer uma escala de valores para essa anto- muiros aspectos. Fotógrafos da categoria de um Carli,·t-
login ide:11 que esl.í por fazer. Há demasiada confusão, Bresson ou de um Brassai definem sua arte wmo u111
demasiados mal-enlendidus neste terreno. Enquanto os aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da rl'a-
contistas levam adiante sua tnrefa, já é tempo de se fa- lidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal
1.-ir dessa tarefa cm si mesma, à margem das pessoas e modo que c~sc recorte :itue como u111a cxplo~fü1 q11,·
das n:-.cion:ilidadcs. i- prl'cis(l d1q!annos a ter u111a idi:ia ab,a 1k pai c:111 par u111a rcalidadc 111uilo 111:iis ampl.1.
viva do que é o 1.:onh1, e isso 6 sc111prc difídl na mcdida como uma visão dinâmica que transcende cspi1 itual-
em que as idéias tendem para o abstrato, para a desvi- mcntc o campo abrnngido pela câmara. Enquanto 1H1
talização do seu conteúdo, enqua1110 que, por su:i ve7, cine111a. como rn1 rn111:111cc, a captação clcssa re;did.1,lt-
:i vida rejeita esse laço que :1 conn·ptualizaçiin lhe que, 111:iis a111pla e 11111ltifll1 llll' t: alcan~·ada 111cdia11tc n d,
ati1 a, par:, fi ·«i-la e t·ncc.:ri.í-la 11u111a categoria. Mas se scnvulvimento de elementos parciais, acumulativos, que
não tivermos uma itléia viva du que é o conto, teremos não excluem, por certo, uma síntese que dê o "clírna,··
perdido tempo, porque um conlo, cm última análise, se da obra, numa fotografia c1u num conto de grande q11 .1-
move nesse plano do homem onde a vida e a expressão lidade se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou D
escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me contista sentem necessidade de escolher e limitar uma
for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o imagem ou um acontecimento que sejam signi/icntii'of,
próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que que não só valham por si mesmos, mas também sej:1111
uma vida sintetizada, algo assim r:omo um tremor de capazes de atuar no espectador ou no leitor como 111 ·

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espécie de abertura, <le fermento que projete a inteli- fictício que possua essa misteriosa propriedade de irra-
gência e a sensibilidade cm direção a algo que vai muito diar alguma coisa para além dele mesmo, de modo que
além do argumento visual ou literário contido na foto 11111 vulg:11 episódio doméstico, como ocorre em tantas
ou no conto. /Um escritor argentino, muito amigo do a<lmi1 :ívcis narrativ:1s de uma Katherine r.tansficld ou
boxe, dizia-me que nesse comhate que se trava entre de um Sherwood Anderson, se converta no resumo im-
\"
...... um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sem- placável de uma certa condição humana, ou no símbolo
pre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por candente de uma ordem social ou histórica. Um conto
knock-0111. E verdade, na medida em que o romance é significativo quando quebra seus próprios limites com
acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquan- essa explosão de energia espiritual que ilumina brusca-
to que um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua mente algo que vai muito além da pequena e às vezes
desde as primeiras frases. Não se entenda isto demasia- miserável história que conta. Penso, por exemplo, no
do literalmente, porque o bom contista é um boxeador tema da maioria das admiráveis narrativas <le Anton
muito astuto, e muitos cios seus golpes inicinis podem Tchccov. Que há ali que não seja tristemente cotidiano,
parecer pouco eficazes quando, na realidade, estão mi- medíocre, muitas vezes conformista ou im1tilmcnte re-
nando já as resistências mais sólidas do adversário. belde? O que se conta nessas narrativas é quase o que,
Tomem os senhores qualquer grande conto que seja de quando crianças, nas enfadonhas tertúlias que devíamos
sua preferência, e analisem a primeira púgina. Surpre- con1p:1rtilhar com os mais velhos, escutávamos nossas
ender-me-ia se encontrassem elementos gratuitos, mera- avós ou nossas tias contar; a pequena, insignificante
mente decorativos. O contista sabe que não pode pro- crônica familiar de ambições frustradas, de modestos
ceder acumulntivamente, que não tem o tempo por alia- dramas locais, de angústias à medida de um:1 snla, de
do; seu 1111ico 1Tc111so é 11ahalli:11 i:111 profundidade, ver- 11111 piano, di: 11111 ch:í com doces. E, contudo, os contos
ticalmente, seja para dma ou para baixo do espaço <l~ Kathcrine Mansfield, <le Tchecov, são significativos,
literário. E isto que assim expresso parece uma metá- alguma coisa estala neles enquanto os lemos, propon-
fora, - exprime, contudo, o essencial do método. O tem- do-nos um11 espécie de ruptura do cotidiano que vai
po e o espaço do contti têm de estar como que conden- 11111ito nlém <lo nrgumento. Os senhores já terão perce-
sados, submetidos a uma alta pressão espiritual e for- bido que essa significação misteriosa não reside so-
mal para pro\oocar essa "abertura" a que me referia mente no tema do conto, porque, na verdade, a maioria
antes. Basta perguntar por que determinado conto é dos contos ruins. que todos nós já lemos, contém epi-
ruim. Não é ruim pelo tema, porque em literatura não sódios similares aos tratados pelos autores citados; a
há temas bons nem temas ruins, há somente um trata- idéia de significação não pode ter sentido se não a rela-
mento bom ou ruim do tema. Também não é rulin por- cionarmos com as de intensidade e de tensão, que j.í
que os personagens careçam de interesse, já que até uma não se referem apenas ao tema, mas ao tratamento lite-
pedra é interessante quando dela se ocupam um Henry rürio desse tema, à técnica empregada para desenvol-
James ou um Franz Kafka. Um conto é ruim quando é vê-lo. E é aqui que, bruscamente, se produz a distinção
escrito sem essa tensão' que se deve manifestar desde as entre o bom e o mau contista. Por isso teremos de nos
primeiras palavras ou desde as primeiras cenas. E as- deter com todn o cuidado possível nesta encruzilhada,
sim podemos mJia11t:1r j.í que as noções de significação, parn !ralar de entender um pouco mais essa estranha
de int~nsidade _e de tensão hão de nos permitir, como forma de vida que é um conto bem realizado, e ver por
se vera, aproximarmo-nos melhor da própria estrutura que está vivo enquanto outros que, aparentemente, a
do conto. ele se nssemclham, não passam de tinta sobre o papel,
Dizíamos que o contista trabalha com um material alimento para o esquecimento.
que qualificamos de significativo. ,O elemento significa- Vejamos a questão do ângulo do contista e, neste
tivo do conto pareceria residir principalmente no seu caso, obrigatoriamente, da minha própria versão do as-
tema, no fato de se escolher um acontecimento real ou sunto. Um contista é um homem que de repente, rode/1-

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anos se passaram e vivemos e esquecemos tanto; 111as
do pela imensa algaravia do mundo, comprometido em esses pequenos, insignificantes contos, esses grãos de
,._ maior ou menor grnu com a realidade histórica que o arei;, no imenso m 1r da literatura continuam rií, p:ilpi-
~- I'
contém, escolhe um determinado tema e faz com ele um
_ conto. Esta escolha do tema não é tão simples. As vezes
tando cm nós. Não é verdade que cada unr tem ~11a
própria coleção de contos? Eu tenho a minha e pmk1 ia
1 i' { o contista escolhe, e outras vezes sente como se o tema citar alguns nomes. Tenho "William Wilson", de Edgar
se lhe impusesse irresistivelmente. o impelisse a escre- !\. Poc, renho "Bola de Sebo", de Guy de Maupas~anl.
vê-lo. No meu caso, a grande maioria dos meus contos Os pequenos planetas giram e giram: aí está "Uma Lrn1-
foram escritos - como dizê-lo? - independentemente hrança de Natal", de Truman Capote, "Tlon", "Uqhar",
de minha vontade, por cimri ou por baixo de minha "Orhis", "Tertius·•, de Jorge Luís Borges, "Um So11h11
consciênciri, como se c11 niio fosse mais que um 111cin
Realizado" de Juan Carlos Onetti, "A Mmle de Ivan
pelo qual passava e se manifestava uma força alheia.
lllich", de Tolstói, "r-ifty Grand", de Hemingway, Os
Mas isto, que pode depender do temperamento de cada
Sonhadores", de lsak Dinesen, e assim poderia continuar
um, não altera o fato essencial: num momento dado
há tema, já seja inventado ou escolhido voluntariamente, e continuar ... Os senhores já terão advertido que 11.:111
ou estranhamento imposto a partir de um plano onde todos estes contos são obrigatoriamente antológicos. Por
nada é definível. l lá tema, repito, e esse tema vai se que perduram na memória? Pensem nos contos que n:io
tornar conto. Antes que isto ocorra, que podemos dizer puderam esquecer e verão que todos eles têm a mesma
do tema em si? Por que este lema e não outro? Que característica: são aglutinantes de uma realidade infini-
razões levam, consciente ou inconscientemente, o con- tamente mais vasta que a do seu mero argumento, e por
ti_sta a escolher um determinado tema? isso influíram em nós com uma força que nos faria su,-
- Parece-me que o tema do qual sairá um bom conto peitar da nwdéstia do seu conteúdo aparente, da brevi-
é sempre exrepcio11al, mas niio quero dizer com isto dade do seu texto. E esse homem, que num determi11:11lll
que um tema deva ser extraordinário, fora do comum, momento escolhe um tema e faz com ele um conto, scd
misterioso ou insólito. Muito pelo contrário, pode tra- um grande contista se sua escolha contiver - às ve7es
tar-se de 11111a histi'iria pcrkita111c11tc trivial e cotidiana. sem que ck o saiha cun~cientementc - essa fahul.,,a
O excepcional reside numa qualidade parecida à do abertura do pc4ucnll para o grande, do individu.,I e
ímã; um bom tema atrai todo um sistema de relações circunscrito para a essência mesma da condição huma-
conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma na. Todo conto perdurúvel é como a semente onde dl)r-
imens:i quantidade de noções. enlrcvisões, sentimentos mc a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nú-;,
e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória inscreverá seu nome em nossa memória.
ou na sensibilidade; um bom tema é como um sol um Entretanto, é preciso aclarar melhor est:i noçãP de
astro em torno do quril gira um sistema planetári~ de temas significativos.
que muitas vezes não se tinha consciência até que o Um mesmo tcmpa pode ser profundamente sigoifi-
,I contista, astrônomo de palavras, nos revela sua exis- cativo para um escritor, e anódino para outro; um
tência. Ou então, para sermos mais modestos e mais mesmo tema despertará enormes ressonâncias num lcitm
:ituais. ao mesmo tempo 11111 hom tema lem algo de e dcixar:í indiferente a outro. Em suma, pode-se di,cr
sistema atômico, de nlicleo ern torno do qual giram os que não h:í temas absolutamente significativos ou ahs11-
elétrons; e tudo isso, rifinal, não é já como uma propo- lutamen1e insignificantes. O que há é uma aliança n1is-
sição de vida, uma dinâmica que nos insta a sairmos de teriosa e complexa$ entre certo escritor e certo terna
nós mesmos e a entrarmos num sistema de relações mais num momento dado, assim como a mesma aliança po-
comple,w e mais ~cio? Muitas vezes tenho-me pergun- der:í logo entre certos contos e certos leitores. Por is,o,
tado qual será a virtude de certos contos inesquecíveis. quando dizemos que um tema é significativo, comu no·
Na ~casião. os Jemos junto com muitos outros que in- caso dos contos de Tchecov, essa significação se vê de-
clusive podiam ser dos mesmos autores. E eis que os terminada em certa medida por algo que está fora dn

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tema em si, por algo que está antes e depois do tema.
O que e~tá antes é o escritor, com a sua carga de valores mas que não adquiriu ainda sua forma definitiva. Para
humanos e literários, com a sua vontade de fazer uma ele esse tema tem sentido, tem significação. Mas se
obra que _tenh~ um sentido; o que está depois é o tra- tudo se reduzisse a isso, de pouco serviria; agora, corno
tamento hteráno do tema, a forma pela qual o contista, último termo do processo, como juiz implacável, está
em face do tema, o atnca e situa verbnl e estilísticamente, esperando o leitor, o elo final do processo criador, o
estrutura-o em forma de conto, projetando-o em último cumprimento ou o fracasso do ciclo. E é então que o
term_o em direção a algo que e~cede o próprio conto. conto tem de nascer ponte, tem de nascer passagem, tem
Aqut me parece oportuno mencionar um fato que me de dar o salto que projete a significação inicial, des-
ocorre com freqiiência e que outros contistas ami'gos coberta pelo autor, a esse extremo mais passivo e menos
conhecem tão bem quanto cu. f: comum que, no curso vigilante e, muitas vezes, até indiferente, que chama11u1~
de uma conversa, alguém conte um episódio divertido leitor. Os contistas inexperientes costumam cair na ilu-
ou ~amovente ou estranho e que, dirigindo-se logo ao são de imaginar que lhes bastará escrever chã e f111rn-
contista presente, lhe dign: "Aí tem você um tema for- temente um tema que os comoveu, para comover por seu
midável para um conto; lhe dou de presente". Já me t11rno os leitores. fncorrnm na i11genuidadc daq111·lc
presentearam assim com uma porção de temas e sempre que acha belíssimo o próprio filho e dá por certo que
resp?ndo amavelmente: "Muito obrigado", e jamais es- os outros o julguem igualmente belo. Com o tempo,
crevi um conto com qualquer deles. Contudo, certa vez com os fracassos, o contista, capaz de superar essa pri-
uma amiga me contou distraidamente as aventuras de meira etapa ingênua, aprende que em literatura não va-
uma criada sua em Paris. Enquanto ouvia a narrativa lem as boas intenções. Descobre que para voltar a criar
senti que isso podia chegar a ser um conto. Para el~ no leitor essa comoção que levou a ele próprio a escre-
esses episódios não crnm mnis que histórias curiosas· ver o conto, é necessário um ofício de escritor, e q11c
para mim, bruscamente, se impregnavam de um sentid; esse ofício consiste entre muitas outras coisas em wn-
que ia muito além do seu simples e até vulgar conteúdo. seg~ir esse cl(ma próprio de todo grande conto, 4ue
Por isso, toda vez que me perguntam: "Como distin- ?bnga a _contmuar lendo, que prende a atenção, que
guir entre um tema insignificante - por mais divertido isola o leitor de tudo o que o rodeia, para depois, tn-
ou emocionante que possa ser - e outro significativo?, mtnado o conto, voltar a pô-lo em contacto com o :.1111-
respondo que o escritor é o primeiro a sofrer esse efeito biente de uma maneira nova, enriquecida, mais pro-
i~definível ma~ avassalador de certos temas, e que pre- funda e mais bela. E o ún.ico modo de se poder conse-
cisamente por isso é um escritor. Assim como para Mar- guir esse scqiiestro momentâneo do leitor é media111c
cel Proust o sabor de uma madeleine molhada no chá um estilo baseado na intensidade e na tensão, um estilo
abria subitamente ~m imenso leque de recordações apa- no qual os elementos formais e expressivos se ajustem,
rentemente esquecidas, de modo análogo o escritor sem a menor concessão, à índole do tema, lhe dêem a
reage dian!e de certos temas, da mesma forma que seu forma visual a auditiva mais penetrante e original, o
conto, mrus tarde, fará reagir o leitor. Todo conto é tornem único, inesquecível, o fixem para sempre no
a~sim predeterminado pela aura, pela fascinação irre- seu tempo, no seu ambiente e no seu sentido primordial.
sistível que o tema cria no seu criador. O que chamo intensidade num conto consiste na elimi-
nação de todas as idéias ou situações intermédias, de
. Cheg~os assini ao fim desta primeira etapa\ dó todos os recheios ou fases de transição que o romancr.
nascimento de um conto e tocamos o umbral da sua
permite e mesmo exige. Nenhum dos senhores terá es-
, criação') propriamente dita. Eis aí o contista, que esco-
quecido "O Tonel de Amontillado", de Edgar Poe. O
lheu um terna, valendo-se dessas sutis antenas capazes
d~ lhe permitir reconhecer os elementos que logo have- extraordinário deste conto é a brusca renúncia a toda
rao de se converter em obra de arte. O contista está descrição de ambiente. Na terceira ou quarta frase esta-
diante do seu tema, diante desse embrião que já é vida mos no coração do drama, assistindo ao cumprimento
implacável de uma vingança. "Os Assassinos", de Hc-
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mingway, é outro exemplo de intensidade obtida me- nhas de Aquiles para maravilha de pastores e viajantes.
diante a eliminação de tudo o que não convirja essen- Mas nesse momento, quando deveria surgir um Homero
cialmente par:i o drama. Mas pensemos agora nos con- que fizesse uma lllada ou uma Odisséia dessa soma
tos de Joseph Conrad, de D. H. Lawrence, de Kafka. de tradições orais, cm meu país surge um senhor para
Neles, com modalidades típicas de cada um, a. intensi- quem a cultura das cidades é um signo de decadência,
dade é de outra ordem, e prefiro dar-lhe o nome de para quem os contistas que todos nós amamos são este-
tensão. I! uma intensidade que se exerce na maneira tas que escreveram para o mero deleite de classes
pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do sociais liquidadas, e esse senhor entende, em troca, que
que conta. Ainda estamos muito longe de saber o que vai para escrever um conto a única coisa que faz falta é
ocorrer no conto, e, entretanto, não nos podemos sub- registrar por escrito uma narrativa tradicional. conser-
trair à sua atmosfera. No caso de "O Tonel de Amon- vando na medida do possível o 10111 falado, os tornt·i, 1~
tillado" e de "Os Assassinos", os fatos, despojados de do falar rural, as incorreções gramaticais, isso que clta-
toda preparação, saltam sobre nós e nos agarram; em mam a cor local. Não sei se essa maneira de escrever
troca, numa narrútiva demorada e caudalosa de Henry contos populares é cultivada cm Cuha; oxal;í não sda,
James - "A Lição do Mestre", por exemplo - sente-se porque cm meu país não deu mais que indigestos voiu-
de imediato que os fatos em si carecem de importância, mcs que não i~1tercssam nem aos homens do campo, que
que tudo está nas forças que os desencadearam, na preferem contmuar ouvindo os contos entre dois tragos,
malha sutil que os precedeu e os acompanha. Mas tanto nem aos leitores da cidade, que estarão em franca d eca-
a intensidade da ação como a tensão interna da narra- dência, mas não deixaram de ler bem lidos os cl~ssirns
tiva são o produto do que antes chamei o ofício de do gênero. Em compensação - e refiro-me também à
escritor, e é aqui que nos vamos aproximando do final Argentina - tivemos escritores como um Roherto J.
deste passeio pelo conto. Em meu país, e agora em Payró, ~m Ricardo Giiiral~es, um Horacio Quirog:1 e
Cuba, tenho podido ler contos dos mais variados auto- um Bemto Lynch que, partmdo também<¼ temas mui-
res: maduros ou jovens, da cidade e do campo, dedica- tas vezes tradicionais, ouvidos da boca de velhos gaúchos
dos à literatura por razões estéticas ou por imperativos como um . Dom Se~undo Sombra, souberam potenciar
esse malcnal e torna-lo obra de arte. Mas Quiroga, ( iiii-
sociais do momento, comprometidos ou não compro-
raldes e Lynch conheciam a fundo o ofício de escritor
metidos. Pois bem, embora soe a truísmo, tanto na
ist~ é, só aceitavam temas significativos, enriquecedores:
Argentina como aqui os bons contos têm sido escritos
assrrn como Homero teve de pôr de lado uma porção de
pelos que dominam o ofício no sentido já indicado.
Um exemplo argentino esclarecerá melhor isto. Em episódios bélicos e mngicos para não deixar scniio aque-
nossas províncias centrais e do Norte existe uma les que chegaram até mís graças à enorme força mítica,
longa tradição de contos orais, que os gaúchos se trans- à ~cssonância de arquétipos mentais, de hormônios p~í-
mitem de noite à roda do fogo, que os pais continuam qurcos como Ortega y Gasset chamava os mitos. Quiltl-
contando aos filhos, e que de repente passam pela pena ga, Giiiraldes e Lynch eram escritores de dimensão
de um escritor regionalista e, na esmagadora maioria universal, sem preconceitos localistas ou étnicos ou po-
dos casos, se convertem em péssimos contos. O que su- pulistas; por isso, além de escolherem cuidadosamente
cedeu? As narrativas em si são saborosas, traduzem e os temas de suas narrativas, submetiam-nos a uma ím-
resumem a experiência, o sentido do humor e o fata- ma literária, a única capaz de transntitir ao leitor toJos
lismo do homem do campo; alguns se elevam mesmo à os v?lores, todo o fermento, toda a projeção em pro-
d•mensão trágica ou poética. Quando os ouvimos da fundidade e em altura desses temas. Escreviam tensa-
boca de um velho gaúcho, entre um mate e outro, sen- mente, mostravam intensamente. Não há outro modo ·
timos como que uma anulação do tempo, e pensamos para que um conto seja eficaz, faça alvo no leitor e crave
que também os aedos gregos contavam assim as faça- em sua memória.

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O exemplo que acabo de dar pode ser de interesse esse escrilor, responsável e lúcido, decide escrever lite-
para Cuba. ~ evidente que as possibilidades que a Re- ratura fantástica, ou psicológica, ou voltada para o pas-
volução oferece a um contista são quase infinitas. A sado, seu ato é um alo de liberdade dentro da revolução
cidade, o campo, a Juta, o trabalho, os diferentes tipos e, por isso, é também um ato revolucionário, embora
psicológicos, os conflitos de ideologia, de caráter; e seus contos não se ocupem das formas individuais ou
tudo isso como que exacerbado pelo desejo que se vê c':l:\ivas_ 9~e adota ~ revoluçãql Contrariamente ao es-
nos senhores de atuarem, de se expressarem, de se co- treito etileno de muitos que confundem literatura com
municarem como nunca puderam fazer antes. Mas tudo pedagogia, literatura com ensinamento, literatura com
isso como há de ser traduzido em grandes contos, em doutrinação ideológica, um escritor revolucionário tem
contos que cheguem ao leitor com a força e a eficácia todo o direito de se dirigir a um leitor muito mais corn-
necessária? E aqui que eu gostaria de aplicar concre- plex~, muito mais_ exigente em matéria espiritual do que
tamente o que venho dizendo num terreno mais abs- u_nagma?1 ~s escntores ~ os críticos improvisados pelas
trato. O entusiasmo e a boa vontade não bastam por si ~1rcu,ns_tanc1as e con~encrdos de que seu mundo pes~oal
só, como também não basta o ofício de escritor por si e o u111co mundo existente, de que as preocupações do
só para escrever contos que fixem literariamente ( isto momento são as únicas preocupações válidas. Repi1:1-
é, na admiração coletiva, na memória de um povo) a 111os, aplicando-a ao que nos rodeia em Cuba, a admi-
grandeza desta Revolução em marcha. Aqui, mais que r.ívcl frase de Hamlet a Horácio: "llá muito mais coi-
em nenhuma outra parle, se requer hoje uma fusão sas no céu e na terra do que supõe tua filosofia_ .. "
total dessas duas forças, a do homem plenamente com- E pensemos que não se julga um escritor somente pelo
i prometido com sua reafülãde nacional e mundial, e a lema de seus contos ou de seus romances, mas, sim. por
' do escritor lucidamente seguro do seu ofício. Nesse sen- - sua presença viva no seio da coletividade,_ pcln fal<> de
tido não há engano possível. Por mais veterano, por mais que o compromisso total da sua pessoa é uma garanlia
hábil que seja um contista, se lhe faltar uma motivação insofismável da verdade e da necessidade de sua ohrn
entranhável, se os seus contos não nasc.eram de uma pro- por mais alheia que esta possa parecer à vista das rir~
funda vivência, sua obra não irá além do mero exercício ~ cunstâncias do momento. Essa obra não é alheia r1 re-
estético. Mas o contrário será ainda pior, porque de volução por não ser acessível a todo o mundo. Ao rnn-
nada valem o fervor, a vontade de comunicar a men-
sagem, se se carecer dos instrumentos expressivos, esti- l trário, prova que existe um vasto setor de leitores cm
potencial que, num certo sentido, estão muito mais

l
lísticos, que tornam possível essa comunicação. Neste separados que o escritor das metas finais da revolução,
momento estamos tocando o ponto crucial da questão. dessas metas de cultura, de liberdade, de pleno gozo da
Creio, e digo-o após ter pesado longamente todos os condição humana que os cubanos se fixaram para admi-
elementos que entram cm jogo, que escrever para uma ração de lodos ns que os amam e os comprcc11dl·111.
', revolução, que escrever revolucionariamente, não sig-
\ Quanto mais ulto apontarem os escritores que nasce1a111
nifica, como crêem muitos, escrever obrigatoriamente para isso, mais altas serão as metas finais do povo a que
acerca da própria revolução. Jogando um pouco com ·f pertencem. Cuidado com a f.ícil demagogia de e, i)!ir
as palavras, Emmanucl C'arbalfo dizia aqui h:'Í alguns uma lileratura acessível a todo o mundo. l\luitos dns
dias que em Cuba seria mais revolucionário escrever que a ap<Íiam não têm outra razão para fazê-lo se11;111 a
contos fantásticos do que contos sobre temas revolucio- da sua evidente incapacidade para compreender uma li-
nários. Por certo a frase é exagerada, mas produz uma teratura de maior alcance. Pedem clamorosamente te-
imp~ciência muito reveladora. Quanto a mim, creio que
, , l o escritor revolucionário é aquele em que se fundem
1
1 mas populares, sem suspeitar que muitas vezes o lcilor,
por mais simples que seja, distinguirá instintivamente

l
indissoluvelmente a consciência do seu livre compro- entre um conto mais difícil e complexo, mas que o
. misso individual e coletivo, e essa outra soberana liber- ohrigará a sair por um momento do seu pequeno 1111111-
dade cultural que confere o pleno domínio do ofício. Se do circundante e lhe mostrará outra coisa, seja o que

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for, mas outra coisa, algo diferente. Não tem sentido o interesse apaixouado que despertam muitos contos e
falar de temas populares a seco. Os contos sobre temas romances nada simples nem acessiveis, deveria fazer O!-
populares só serão hons se se ajustarem, como qualquer partidários da mnl chamada "arte popular" suspeita-
outro conto, a essa exigente e diíícil mecânica interna rem de que sua noção de povo é parcial, injusta e, em
que procuramos mostrar na primeira parte desta pa- último termo, perigosa. Não se faz favor algum ao povo
lestra. Faz anos tive a prova desta afirmação na Ar- se se lhe propõe uma literatura que ele possa nssimilar
gentina, numa roda de homens do campo a que assis- sem esforço, passivamente, como quem vai ao cinema
tíamos uns quantos escritores. Alguém leu um conto ver fitas de cowboys. O que é preciso fazer é educ.í-lo,
baseado num episódio de nossa guerra de independên- e isso é numa primeira etapa tarefa pedagógica e não
cia, escrito com urna deliberada simplicidade para pô-lo, literária. Para mim foi uma experiência reconfortante
como dizia o autor, " no nível do camponês". A narra- ver como cm Cuba os escritores que mais admiro par-
tiva foi ouvida cortesmente, mas era fácil perceber que ticipam da revolução, dando o melhor de si mesmos,
não havia tocado fundo. Em seguida um de nós leu A sem sacrificarem uma parte das suas possibilidades cm
pata do macaco, o conto justamente famoso de W. W. .iras de uma pretensa arte popular que não será útil a
Jacobs. O interesse, a emoção, o espanto e, finalmente, ninguém. Um dia Cuba contará com um acervo de
o entusiasmo foram extraordinários. Recordo que pas- contos e romances que conterá, transmudada ao plano
samos o resto da noite falando de feitiçaria, de bruxas, estético, eternizada na dimensão intemporal da arte, sua
de vinganças diabólicas. E estou seguro de que o conto gesta revolucionária de hoje. Mas essas obras não lerão
de Jacobs continua vivo na lembrança desses gaúchos sido escritas por obrigação, por mandado da hora. Seus
analfabetos, enquanto o conto pretensamente popular, temas nascerão quando for o momento, quando o escri-
fabricado para eles, com o vocabulário, as aparentes tor sentir que deve plasmá-los em contos ou romances
possibilidades intelectuais e os interesses patrióticos de- ou peças de teatro ou poemas. Seus temas conterão
les, deve estar tão esquecido como o escri_tor que o fabri- uma mensagem autêntica e profunda, porque não terão
cou. Eu vi a emoção que entre gente simples provoca sido escolhidos por um imperativo de caráter did.ítico
uma representação de Hamlet, obra difícil e sutil, se ou proselitista, mas, sim, por uma irresistível força C]lle
existem tais obras, e que continua sendo tema de es- se imporá ao autor, e que este, apelando para todM os
tudos eruditos e de infinitas controvérsias. E certo que recursos de sua arte e de sua técnica, sem sacrificar
essa gente não pode compreender muitas coisas que nada a ninguém, haverá de transmitir ao leitor como se
apaixonam os especialistas em teatro isabelino. Mas que transmitem as coisas fundamentais: de sangue a sangue,
importa? Só sua emoção importa, sua maravilha e seu de mão a mão, de homem a homem.
arrouho diante da tragédia do jovem príncipe dinamar-
quês. O que prova que Shakespeare escrevia verdadei-
ramente para o povo, na medida em que seu tema era
profundamente significativo para qualquer um - em
diferentes planos, sim, mns atingindo um pouco de cada
um - e que o trnlamento teatral desse tema tinha a
intensidade própria dos grandes escritores, graças à qual
se quebram as barreiras intelectuais aparentemente mais
rígidas, e os homens se reconhecem e confraternizam
num plano que está mais além ou mais aquém da cul-
tura. Por certo. seria ingênuo crer que toda grande
obra possa ser compreendida e admirada pela gente
simples; não é assim e não pode sê-lo. Mas a admiração
que provocam as tragédias gregas ou as de Shakespeare,

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