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Saúde e democracia: história e perspectivas do relativos às principais questões a serem enfren-


SUS. Nísia Trindade Lima et al. (orgs.). Rio de Ja- tadas hoje, como é o caso do mais recente (déca-
neiro: Fiocruz, 2005, 502 pp. da de 1990) Programa de Saúde da Família.
Para a elaboração do livro, foram realizadas
Lilian Koifman várias reuniões e um seminário, em outubro de
Universidade Federal Fluminense 2004, com a participação dos autores, sobre o
<lilian@vm.uff.br> tema “História e perspectivas do SUS”. Definiu-
se que os objetivos da publicação deveriam ir
Muito tem sido dito e publicado a respeito do além do simples registro das motivações e ações
sistema de saúde brasileiro: o Sistema Único do movimento sanitário recente, considerando
de Saúde (SUS). Em todos os cursos de for- a reforma da saúde à luz de uma perspectiva
mação na área de saúde do país são dedicados histórica mais ampla. Do mesmo modo, consi-
um, dois ou mais semestres a esse complexo e derou-se fundamental analisar, com base nos
original sistema. E o desafio dos professores é princípios norteadores do SUS, as condições e o
sempre o mesmo: como motivar os alunos ao processo de implementação dessa reforma, seus
estudo das políticas de saúde e à compreensão avanços, dificuldades e desafios. Mesmo consi-
da organização do SUS e, principalmente, da derando o SUS como patrimônio da sociedade
importância que esse conhecimento exercerá brasileira, não se optou pela realização de um
em sua prática profissional? texto enaltecendo sua criação, onde as dificul-
Não são raros os momentos em que, pa- dades, tensões, contradições e, ao mesmo tem-
ra discutir com alunos uma situação de saúde po, os caminhos alternativos fossem deixados
vivida nas unidades de saúde, nos cenários di- de lado. Todos os autores trabalham de algum
versificados ou em um hospital universitário, é modo o processo histórico de construção do se-
necessário compreender em maior profundida- tor saúde.
de as origens da Reforma Sanitária, o financia- Vários temas de grande relevância para o sis-
mento do SUS, as relações de trabalho na saúde, tema de saúde brasileiro são abordados neste li-
o modelo de atenção, a participação popular na vro, a saber: a situação da saúde, o financiamento
elaboração de políticas de saúde e tantos outros do SUS, ciência e tecnologia em saúde, trabalha-
temas que perpassam as salas de aula dos cur- dores da saúde no Brasil, descentralização, con-
sos de saúde brasileiros, sejam técnicos ou uni- ceitos de saúde, universalização versus focaliza-
versitários, de graduação ou pós-graduação. ção, o público e o privado, o modelo de atenção
A coletânea Saúde e democracia: história e à saúde e a estratégia da saúde da família.
perspectivas do SUS é um importante instru- A abordagem histórica da coletânea nos
mento de apoio ao desafio cotidiano dos pro- permite constantemente situar e valorizar a
fessores na labuta da formação permanente em originalidade e, ao mesmo tempo, localizar,
saúde. Escrita por 25 autores, todos pesquisa- dentro dos contextos históricos específicos, a
dores e professores com vasta experiência nos construção do SUS. A Reforma Sanitária tem
temas desenvolvidos, foi organizada por Nísia origens profundamente marcadas pelo proces-
Trindade Lima, Flavio Coelho Edler (ambos da so de redemocratização do país, por sua cons-
Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz), Silvia Gers- trução política e acadêmica e pelo extraordi-
chman (da Escola Nacional de Saúde Pública nário processo das Conferências de Saúde. O
Sergio Arouca, Fiocruz) e Julio Manuel Suárez SUS nasce no seio da crise do modelo vigente
(coordenador da área de Desenvolvimento de e na intensa mobilização popular em torno
Sistemas e Serviços de Saúde da Representação da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realiza-
Opas/OMS no Brasil). da em 1986, que determinou o debate sobre
Os organizadores desta coletânea convida- a Constituinte e a elaboração da Constituição
ram pesquisadores atuantes no país para produ- Federal de 1988.
zirem um amplo painel do passado e do presen- A importância da coletânea encontra-se, so-
te da construção do sistema de saúde brasileiro. bretudo, no fato de os artigos que a compõem
Em resultado, o leitor é presenteado com uma enfatizarem facetas cruciais da história da cons-
rica coleção de análises que enfoca os aspectos trução do Sistema Único de Saúde brasileiro em
mais importantes, tanto os históricos quanto os um ambiente orquestrado por um complexo

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processo modernizador, privatista e com claras gação de provê-la a todos os cidadãos: “saúde,
propostas de organização do ‘Estado mínimo’ direito de todos e dever do Estado”.
para toda a América Latina. Sob este preceito constitucional, defendeu-
Diversos autores se referem à criação do SUS se a assistência médico-sanitária integral e de
como a mais bem-sucedida reforma da área so- caráter universal, com acesso igualitário dos
cial empreendida sob um regime democrático. usuários aos serviços, sendo estes hierarquiza-
Em sua criação, pode-se identificar a organiza- dos e sua gestão descentralizada. Com isso se
ção do movimento sanitário da década de 1970, estabelecia algo fundamental: que as ações de
em um contexto fortemente marcado pela re- saúde deveriam estar submetidas ao Executivo
sistência social e política ao regime militar au- com representação paritária entre usuários e
toritário. A Reforma Sanitária brasileira carrega demais representantes (do governo, nas suas di-
uma história que lhe dá, no âmbito legal, uma versas instâncias, dos profissionais da saúde e
conquista, o SUS, e, no âmbito político, um pla- do setor privado), além de se determinarem os
no de lutas, a implementação da Reforma Sani- princípios norteadores do SUS – universalidade,
tária (Ceccim, 2005). integralidade, participação e descentralização.
Na primeira parte, “O Sistema Único de Alguns autores analisam a criação do SUS
Saúde em perspectiva histórica”, os quatro ar- como resultado de um movimento brasileiro
tigos nos esclarecem que aquela não foi a pri- que se apresentou na contracorrente das refor-
meira vez na história da sociedade brasileira mas de saúde de cunho neoliberal na América
em que ocorreu uma significativa politização Latina, baseadas no conceito de ajuste estru-
do debate sobre as condições de saúde. Nesses tural defendido pelo Banco Mundial na déca-
textos, relata-se como, na Primeira República da de 1980. Em 1987, esse organismo divulgou
(décadas de 1950 e 1960), a saúde e o desenvol- um documento no qual criticava duramente os
vimento estiveram no centro do debate político governos que viam a saúde como um direito e
e eram percebidos como determinantes um do tentavam assegurar gratuitamente o acesso uni-
outro. E, levando em conta a continuidade de versal a todos os serviços. A mesma tendência
temas do passado, ressaltamos a originalidade se fez sentir na década de 1990.
e importância do movimento sanitário recente
que se constitui na afirmação do binômio saúde “Ao longo dos anos noventa, as agências in-
e democracia. ternacionais enfatizaram a oferta de idéias
Nesse contexto, a luta pela conquista social sobre quais seriam as políticas mais ade-
do direito à saúde precisa se dar em um duplo quadas para os países em desenvolvimento.
movimento. De um lado, é necessário resgatar a O Banco Mundial conquistou lugar pro-
luta pelas políticas públicas que, para além do eminente nessa oferta de idéias, ao lograr
setor saúde, se voltem para a melhoria das con- apresentar um conjunto de sugestões sobre
dições de vida da população. De outro, é fun- as reformas dos sistemas de saúde e das
damental aprofundar a luta pela conquista do próprias atribuições dos governos no setor”
direito ao acesso universal e igualitário às ações (Mattos, 2001, p. 380).
e serviços de saúde, pautado pela perspectiva
da participação popular e da integralidade das Anos mais tarde, o Banco Mundial passou
ações (Mattos, 2005). a defender que caberia aos governos, muito
Nas outras duas partes, “Temas centrais mais que assumir a prestação dos serviços, in-
para o desenvolvimento do SUS” e “Princípio, centivar a competição entre os provedores, in-
implantação e desafios do SUS”, reconhecemos clusive entre provedores públicos e privados,
as raízes dos debates travados durante o con- com ou sem fins lucrativos, além de defender
texto em que se fortaleceu o movimento de- a oferta de um pacote de serviços e a atuação
mocrático, em oposição ao regime militar, e a reguladora dos governos sobre o mercado de
relação entre saúde e democracia no centro do serviços médicos.
debate político. A caminho dos vinte anos da realização da
Na nova Constituição, afirmou-se a impor- 8ª Conferência Nacional de Saúde, este livro
tância de promover a saúde como direito funda- oferece uma grande contribuição: um convite
mental da cidadania, cabendo ao Estado a obri- à reflexão. Em um esforço coletivo, valoriza a

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pluralidade de perspectivas e o olhar crítico so- MATTOS, Ruben A. de. 2001. As agências interna-
bre as idéias e práticas que vêm acompanhando cionais e as políticas de saúde nos anos 90: um
a implementação do SUS, trazendo um desafio panorama geral da oferta de idéias. Ciências e
para futuras pesquisas. É de se esperar e dese- Saúde Coletiva, v. 6, n. 2, p. 377-389.
jar que, a partir de sua leitura, possa surgir o . 2005. Direito, necessidades de saúde e inte-
aprofundamento de questões para o desenvol- gralidade. In: PINHEIRO, Roseni; (orgs.).
vimento de políticas de saúde coerentes com os Construção social da demanda: direito à saúde,
princípios que norteiam o SUS. trabalho em equipe e espaços públicos. Rio de
Janeiro: Instituto de Medicina Social, Univer-
“A construção do SUS vem acumulando ex- sidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 33-46.
periências e proposições. Novas e velhas OLIVEIRA, Gilson S.; KOIFMAN, Lilian; MARINS,
‘ferramentas’ aumentaram a possibilidade João José N. 2004. A busca da integralidade
de nos mantermos na direção de uma polí- nas práticas de saúde e a diversificação dos
tica de saúde fundada no cuidado e na inte- cenários de aprendizagem: o direcionamento
gralidade. Mas não devemos nos contentar do Curso de Medicina da UFF. In: PINHEIRO,
com isto, apenas ganhamos fôlego para con- Roseni; MATTOS, Ruben A. (orgs.). Cuidado:
tinuar construindo...” (Silva Jr., Alves, C. e as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro:
Alves, M., 2005, p. 86). Hucitec, p. 307-319.
SILVA JR, Aluísio G. da; ALVES, Carla A.; ALVES,
O livro, além de muito abrangente, é um Marcia G. M. 2005. Entre tramas e redes: cui-
profundo e qualificado exercício analítico so- dado e integralidade. In: PINHEIRO, Roseni;
bre o SUS, e certamente dará imensa contribui- MATTOS, Ruben A. (orgs.). Construção social
ção ao seu aperfeiçoamento. da demanda: direito à saúde, trabalho em equi-
É desejável, portanto, que subsidie pro- pe e espaços públicos. Rio de Janeiro: Instituto
postas transformadoras e criadoras de espaços de Medicina Social, Universidade do Estado do
interinstitucionais de negociação pedagógica Rio de Janeiro, p. 77-90.
e do cuidado, entre gestores das escolas e dos
serviços, envolvendo docentes, discentes e
usuários do sistema de saúde, através das ins-
tâncias formais de representação propiciados
pelo Sistema Único de Saúde – sejam eles os
Conselhos de Saúde ou quaisquer outros que a
inventividade humana possa vir a criar (Olivei-
ra, Koifman e Marins, 2004).

Referências

CECCIM, Ricardo B. 2005. Onde se lê: “Recursos


Humanos em Saúde”, leia-se “Coletivos Orga-
nizados de Produção em Saúde”: desafios para
a educação. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS,
Ruben A. de (orgs.). Construção social da de-
manda: direito à saúde, trabalho em equipe e
espaços públicos. Rio de Janeiro: Instituto de
Medicina Social, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, p. 161-180.

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