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Jan. 2023

ARTE DA CAPA:
RAQUEL MATSUSHITA
2 | JANEIRO DE 2023

eduardo ferreira harmonizados sob a batuta de


um organizador incógnito que
TRANSLATO desconsidera não apenas auto-
ria, mas também cronologia e os

EL SUPREMO (1)
próprios limites entre História e
ficção. Essa composição, confor-
me Ezquerro, é destinada “a lei-
desde 8 de abril de 2000
tores que dela devem se apropriar
num ato de leitura ativa e produ-

C
Rascunho é uma publicação mensal
tora de sentido”. da Editora Letras & Livros Ltda.
omeço, com este texto, uma série de A ideia do texto como CNPJ: 03.797.664/0001-11
reflexões suscitadas pela leitura de Yo compilação e como obra coleti- Caixa Postal 18821
el supremo, do paraguaio Augus- va tem interessantes implicações 80430-970 | Curitiba - PR
to Roa Bastos. Especificamente, vou para o estudo da tradução, que,
me referir à segunda edição (1987) da Edicio- na corrente contínua de textos, rascunho@rascunho.com.br
nes Cátedra, com longo estudo introdutório de funciona como elo de transmis-
www.rascunho.com.br
Milagros Ezquerro. O texto é rico em insights são e difusão do original rumo
que podem ser facilmente transportados ao ter- a novos contextos. O tradutor, twitter.com/@jornalrascunho
reno da tradução. nesse sentido, atua ao mesmo facebook.com/jornal.rascunho
Contra um pano de fundo histórico rea- tempo como compilador — ao instagram.com/jornalrascunho
lista, o romance cria cogitações e recria episó- partir não apenas do texto-base,
whatsapp (41) 99109.4352
dios da vida do ditador José Gaspar Rodríguez mas de um conjunto de textos
de Francia, que governou o Paraguai entre que o cercam e ajudam a cons-
1811 e 1840. truí-lo — e autor — ao infundir
EDITOR
A obra exibe uma construção peculiar, em sua escritura parte de suas
Rogério Pereira
muito marcada pela intertextualidade, entrela- ideias e, no fundo, de si mesmo.
çando história e ficção e entretecendo escritos Outro traço marcante de EDITOR-ASSISTENTE
de diversas épocas, origens e autores. O próprio Yo el supremo é a contínua Luiz Rebinski
“compilador”, um dos personagens do roman- tensão entre o ditador e seu a­­
ce, define suas fontes (traduzo eu): “Esta com- ma­­nuen­­se, que se reflete, em EDITOR DE FICÇÃO
pilação foi recolhida — mais digno seria dizer par­­ti­­cular, em tensão entre o Samarone Dias
arrebatada — de uns vinte mil maços, éditos texto oral e a escritura. Trata-se
e inéditos; de outros tantos volumes, folhetos, de uma no­­va visão, não religio- DIRETOR DE ARTE
periódicos, correspondências e toda sorte de sa, da corrupção que se percebe Alexandre De Mari
testemunhos ocultados, consultados, catados, na conver­­são do verbo em texto
espiados, em bibliotecas e arquivos privados e escrito. Milagros Ezquerro, des- DESIGN
Thapcom.com
oficiais”. E ele mesmo complementa, para não taca, nesse contexto, a impor-
deixar dúvidas: “Em lugar de dizer e escrever tância do copista, Patiño, que
IMPRESSÃO
coisa nova, não fez mais que copiar fielmente o funciona como elemento fun-
Press Alternativa
já dito e composto por outros”. damental no “trabalho perpétuo
A propósito da figura do “compilador”, de dito-e-escreves”, o qual deter- COLUNISTAS
Ezquerro comenta que seu protagonismo, em mina o jogo de escritura que o Alcir Pécora
detrimento do “autor”, é uma das característi- romance encena: “a passagem da Eduardo Ferreira
cas desta obra de Roa Bastos, inclusive em ra- palavra oral à escritura com sua Fabiane Secches
zão de “uma postura ideológica bem particular inevitável traição”. João Cezar de Castro Rocha
com relação à escritura e à linguagem [...] [que] De fato, segundo o com- José Castello
supõe que se considere a linguagem e toda obra pilador, trata-se de um livro que José Castilho
de linguagem como bem comum e coletivo, e foi primeiro lido, depois escrito Luiz Antonio de Assis Brasil
não como a propriedade privada e intangível - fato que acrescenta à obra, ain- Maíra Lacerda

de um ‘autor’”. da que no plano puramente fic- Nilma Lacerda


Noemi Jaffe
O texto de Yo el supremo, assim, em mo- cional, um importante elemento
Olyveira Daemon
do de construção coletiva, transparece como re- tradutório, com seus inevitáveis
Ozias Filho
sultado da apropriação de fragmentos diversos traços de inovação, traição e
Raimundo Carrero
de textos de outrem e de outras épocas, que são transformação. Rinaldo de Fernandes
Rogério Pereira
Tércia Montenegro
Wilberth Salgueiro

rinaldo de fernandes
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
Ana Luiza Rigueto
André Caramuru Aubert
RODAPÉ Bruno Inácio
Celso José da Costa

POEMAS INFANTIS DE
Faustino Rodrigues
Giovana Proença
Haron Gamal

CECÍLIA MEIRELES (2)


Jacques Fux
Jonatan Silva
Li-Young Lee
Luciana Tiscoski
Marcos Pasche

P
Paulo Paniago
Renata Belmonte
rosseguindo no comentário de poemas do livro Ou isto ou (ou o caráter inelutável) do tem- Rodrigo Santos
aquilo, de Cecília Meireles, vejamos As duas velhinhas: “Duas po: “‘Ontem eu era pequenina’,/
velhinhas muito bonitas,/ Mariana e Marina,/ estão sentadas diz Marina/ ‘Ontem, nós éramos ILUSTRADORES
na varanda:/ Marina e Mariana// Elas usam batas de fitas,/ Ma- crianças’,/ diz Mariana”. A consta- Amy Maitland
riana e Marina,/ e penteados de tranças:/ Marina e Mariana// Tomam tação da inexorabilidade do tem- Caio Paiva

chocolate as velhinhas,/ Mariana e Marina,/ em xícaras de porcelana:/ po deixa implícita a ideia de que, Conde Baltazar
Denise Gonçalves
Marina e Mariana// Uma diz: ‘Como a tarde é linda,/ Não é, Marina?’/ em sendo já velhinhas, o tempo
Fabio Abreu
A outra diz: ‘Como as ondas dançam,/ não é, Mariana?’// ‘Ontem eu era por viver é parco diante do vivido.
FP Rodrigues
pequenina’,/ diz Marina/ ‘Ontem, nós éramos criança’,/ diz Mariana// Uma questão interessante de rit-
Maíra Lacerda
E levam à boca as xicrinhas,/ Mariana e Marina,/ as xicrinhas de porce- mo: a permuta/deslocamento das Mariana Tavares
lana:/ Marina e Mariana// Tomam chocolate as velhinhas,/ Mariana e palavras “Marina” e “Mariana” nas Miguel Paiva
Marina,/ e falam de suas lembranças,// Marina e Mariana”. A lembran- estrofes — o que confere ao texto Miguel Rodrigues
ça e a passagem do tempo são os temas fortes deste poema. As velhi- um caráter lúdico, recreativo (lem- Oliver Quinto
nhas Marina e Mariana, tomando chocolate numa varanda, de repente brando que as personagens recor- Ramon Muniz
recordam a infância, os tempos idos. E constatam a inexorabilidade dam/evocam a infância). Raquel Matsushita
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NATO BIGIO

6
Entrevista: Celso
12
A vida futura, de
José da Costa Sérgio Rodrigues
Jacques Fux Marcos Pasche

19
O manto da noite,
de Carola Saavedra

14
Bruno Inácio
FABIO ABREU

O antigo
futuro, de Luiz
Ruffato
Renata Belmonte
27
Potlatch, de
Guilherme Gontijo
Flores
DIVULGAÇÃO
Luciana Tiscoski

22
37
FERNANDO RABELO

17
Inquérito
Paiol Literário
Natalia Borges Polesso
A metade fantasma,
de Alan Pauls
Antonio Carlos
Jonatan Silva
Secchin

38
A lama não
cobre tudo
Rodrigo Santos

40
Poemas
Li-Young Lee

LAURA STEVENS

30
Sobrevidas,
de Abdulrazak
Gurnah
Fautino Rodrigues

RAMON MUNIZ
34 A segunda espada,
de Peter Handke
Paulo Paniago
ARTE DA CAPA:
Raquel Matsushita
JANEIRO DE 2023 | 5

josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA

O MOEDEIRO
ISLANDÊS

Ilustração: Mariana Tavares

A
trapalhado com as coroas islandesas, com- rumo a um canto da praça. A es- lobo, nada dizia. Nada dizia, mas tinha uma aparência rústica. Era
pro em uma loja de Akureyri, a 100 km do sa altura, já na segunda caneca de fazia. Descia a rua estreita, aper- o único moedeiro à venda. Era
Ártico, um moedeiro de couro. Um objeto cerveja, o casal se esquecera do bi- tava os passos. Apesar do tempo ele. Perguntei o preço. O velho
simples, sem símbolos ou adornos, só o cou- cho. Além do mais, ele parecia um que perdi diante da livraria, não me apontou o valor anotado no
ro nu e negro, e mais nada. Fazemos uma viagem de animal confiante e civilizado, in- o perdi de vista. “Essa viagem não verso. Não preciso dizer que eu o
carro pela Ring Road, que contorna toda a Islândia. capaz de provocar problemas, ou só me esgotou, me enlouqueceu”, comprei. Sem pensar, como faço
Não me separo de meu moedeiro, embora continue de agredir alguém. pensei. “A Islândia e se imenso va- as melhores coisas.
confuso com as moedas que recebo. Até que o lobo se enfiou em zio me destroçaram a mente.” Eu Voltei às pressas para o res-
Com o moedeiro no bolso da jaqueta, tomo um beco. Veio-me, então, o pen- só pensava em meu moedeiro, e o taurante. Meus amigos já estavam
enfim o voo de volta a Frankfurt. Temos uma co- samento insensato: “Ele quer me cão era só uma isca. preocupados. “Você desapareceu.”
nexão longa na Alemanha e resolvemos fazer uma levar ao moedeiro”. Nós, os ob- Mais alguns passos, ouvi Sorri, não havia o que explicar. O
caminhada. Ainda me lembro que, logo no desem- sessivos — sou um obsessivo clás- gritos às minhas costas. Era o ca- casal alemão ainda tomava sua
barque, peguei o moedeiro para completar o paga- sico —, diante de uma ideia ou sal alemão que, ofegante, vinha cerveja na mesa ao lado. O lobo
mento de um café. Recordo, ainda, do momento em hipótese súbita, afrouxamos os à caça de seu cão. Não entendo me olhava. Seu olhar, agora, era
que o apalpei de volta em meu bolso. Depois disso, freios. Ébrios ou não, nos entre- uma única palavra do alemão, mais sereno. Parecia cansado. Tive
ele desapareceu. gamos. Pedi licença a meus ami- mas percebi que eles chamavam a impressão absurda de que sorria.
Talvez pelo esgotamento de uma noite sem gos, levantei-me e segui o animal. o cachorro de Witt. Saltaram so- Não precisei dizer nada: “O que
dormir, talvez pelo cansaço da longa viagem entre Agora que ele andava, entendi bre o bicho, o ataram a uma co- não se pode dizer não deve ser di-
campos gelados, montanhas nevadas e vulcões, a per- que era bem menor do que eu su- leira, ralharam e retornaram para to”, pensei, encarando Witt.
da do moedeiro, que comprei quase sem pensar, me punha. Mas o porte altivo e a ele- a praça. Congelado — como se Uma amiga, que fala o ale-
abalou mais do que eu poderia supor. Esgotado e um gância o elevavam acima do chão. ainda estivesse em Akureyri —, mão, puxou assunto com o casal.
tanto perdido, nele investi a esperança de um pou- Talvez flutuasse. Talvez não pas- escondi-me atrás de uma coluna. Tinham vindo de Heidelberg pa-
co de ordem e paz. sasse de uma visão. Foram-se, mas ali fiquei, ra um casamento. Jamais se sepa-
Não me abalei pelo que ele continha, só algumas Entramos no beco, o lobo à imóvel. Se o lobo me levou até o ravam do lobo. A festa tinha sido
moedas de euro, mas por ele próprio, o couro macio, frente e eu logo atrás. “Devo ter beco, alguma resposta nele eu de- linda, mas agora vinha a parte tris-
o negro reluzente, sobretudo o sentimento de ter on- deixado o moedeiro cair quan- via encontrar. Olhei em torno, te: no dia seguinte, sacrificariam
de esconder meus segredos. Sentamos para almoçar do mexi no bolso para pagar uma observei as pessoas que passavam o cachorro. Apesar da aparência
em uma praça de Frankfurt. Eu era a própria deses- conta”, pensei. E, ainda mais con- apressadas, turistas chineses baru- saudável, ele sofria de uma doença
perança, nada mais me importava a não ser o moedei- victo, concluí: “O lobo sabe de lhentos, um grupo de árabes. Nada grave, estava desenganado, e tinha
ro perdido. Mas se alguém se preocupava comigo, eu tudo. Não sei como sabe de tudo, mais. Mas, antes que a desesperan- muitas dores. A cerveja na praça
dizia: “É só o sono”. mas sei que sabe”. Obsessivos são ça me dobrasse, eu vi o velho. era, também, uma despedida.
Até que, na mesa ao lado, se acomodou um ca- sujeitos que usam ideias fixas como Estava em uma esquina, Depois que me amiga tra-
sal alemão. Com eles, um imenso cão de uma raça coleiras. Obsessivos são cachorros vestia trajes típicos alemães e ti- duziu a conversa, desolado, não
que desconheço. Parecia uma raposa, talvez um lo- adestrados pelo pensamento. nha diante de si uma mesa. Ven- me contive: ajoelhei na praça e
bo. Só muito vagamente se parecia com um cachor- Na esquina, havia uma li- dia quinquilharias: chaveiros, imãs abracei o lobo. Ele se aninhou
ro. Logo percebi que o lobo — pois só podia ser um vraria. Na vitrine, entre compên- de geladeira, panos de prato. Um em meu peito e chegou a suspi-
lobo domesticado pela família e pela filosofia — me dios e guias turísticos, avistei uma impulso — como um empurrão rar. Creio que foi nesse momen-
encarava. Olhos cilíndricos, pestanas de vedete, pos- biografia de Wittgenstein. Lo- — me conduziu em sua direção. to que, por distração, perdi meu
tura de mestre. Foi com grande temor que passei a go me veio à mente sua sentença Sorridente, passou a ordenar seus segundo moedeiro. Hoje com-
encará-lo também. mais célebre: “Aquilo que não se produtos. Então, no meio deles, eu prei um terceiro, bastante pareci-
Era difícil sustentar o olhar, seus olhos azuis me pode dizer não deve ser dito”. Ca- vi. Sim, vi um moedeiro de couro. do, em uma feira de artesanato no
devassavam, como câmeras secretas. Mas insisti. Até lar, muitas vezes, é o melhor. Fu- Eu sabia que não era meu centro do Rio. Ele está aqui a meu
que, subitamente, o lobo se ergueu, me deu as cos- gir também. Devo fugir do lobo? moedeiro perdido. Era mais arre- lado. Não se batizam moedeiros,
tas e começou a andar. Passos lentos, mas seguros, Também o lobo, por ser um dondado, o couro mais grosso e mas passei a chamá-lo de Witt.
6 | JANEIRO DE 2023

entrevista
CELSO JOSÉ DA COSTA

E
NATO BIGIO

stamos em 1913. Um
aluno um tanto esqui-
sito participa das aulas
do matemático, lógico
e escritor Bertrand Russell, em
Cambridge. No fim do semes-
tre, ele se aproxima do professor
e faz uma pergunta insólita: “O
senhor poderia fazer a fineza de
me dizer se sou ou não um com-
pleto idiota?”. Russell, um tanto
surpreso, disse que não tinha co-
mo saber e questionou o motivo.
O aluno retrucou: “Caso seja um
completo idiota, me dedicarei à
aeronáutica; ao contrário, tornar-
-me-ei filósofo”. Russell propôs
então a escrita de um texto filo-
sófico durante as férias. Quando
recebeu o material, ao ler apenas
a primeira proposição, Russell
exclamou: “Não, você não deve
se tornar um aeronauta”. Esse jo-
vem, Ludwig Wittgenstein, aca-
bou se tornando um dos maiores
filósofos da história.
Estamos em 2022. Um
aluno um tanto excêntrico par-
ticipa de vários dos meus cursos
online. Ele já havia me escrito
dizendo que também era mate-
mático e que se interessava por
literatura. No fim do semestre,
falei de um trabalho que reali-
zo — Leitura crítica de inéditos
— e ele se mostrou interessado.
Dias depois, me contou que ha-
via autopublicado um livro, A vi-
da misteriosa dos matemáticos,
e que também pretendia autopu-
blicar o recente romance que me
enviava para análise crítica. Goo-
glei o Celso José da Costa: gênio
da matemática que resolveu um
problema em aberto por 206
anos. O mundo inteiro o cita
como o descobridor da Superfí-
cie Costa. Pensei: “Ok, tudo bem,
mas e como será a sua literatu-
ra?”. Então, ao ler o primeiro ca-
pítulo, surpreendido, exclamei:
“Não, ele não deve autopubli-
car esse livro”. Propus uma con-
versa, sugeri algumas alterações e
disse que o livro era maravilho-
so, fascinante, com narrativa e
linguagem incríveis e que pode-

Dos números
ria receber um grande prêmio li-
terário. Recomendei a inscrição
no Prêmio LeYa e ele, um pouco
incrédulo, enviou o manuscrito.

às letras
No final de outubro de
2022, Celso José da Costa foi
anunciado como vencedor, por
unanimidade, pelo romance A
arte de driblar destinos. O li-
vro foi descrito pela comissão jul-
gadora como uma “saga familiar
que reflete muito bem, com rit-
mo e vivacidade, o mundo social
do interior do Brasil”.

• Para resolver grandes pro-


blemas matemáticos é preci-
O matemático Celso José da Costa surpreendeu o meio literário ao so de muita juventude, de um
bocado de ousadia e uma (ou
ganhar o prêmio LeYa com o romance A arte de driblar destinos várias) pitada de genialidade.
Pode nos contar um pouco de
você e da descoberta da Su-
JACQUES FUX | BELO HORIZONTE – MG perfície Costa?
JANEIRO DE 2023 | 7

Nasci no interior mais anti- Biblioteca Pública do Paraná, lia • Há uma disputa filosófica entre os que acredi-
go do Paraná, na fazenda Ribeirão no local e trazia livros empres- tam que a matemática é descoberta — uma re-
do Engano. Sou o primogênito de tados com regularidade. Con- velação da natureza das coisas — ou é invenção
uma família de cinco filhos. Du- sumia principalmente clássicos — apenas um jogo divertido. Para você, a mate-
rante minha infância morei em russos e brasileiros como Dos- mática é descoberta ou invenção? E a literatura?
uma cidade bem pequena, onde toiévski, Gogol, Machado de As- Sou pela dualidade, tanto vigora a invenção
me iniciei na escola primária. De- sis e Lima Barreto. Lia também quanto a descoberta. Se bem que prevalece mais a des-
pois mudamos para uma cidade os contemporâneos de então, Ga- coberta, a invenção é a propulsão inicial. Os 10 símbo-
maior, Santo Antônio da Platina, briel García Márquez, Julio Cor- los numéricos foram inventados ao longo da história,
em busca de continuidade nos es- tázar, Miguel Astúrias. Além de o zero sendo a última conquista. Uma vez concluído
tudos. Desde os primeiros conta- leitor dedicado, escrevia um diá- esse passo, um mundo está dado com suas regras de-
tos com os números me apareceu rio, arriscava algumas poesias pa- finidas, e a nós basta descobrir. É como o jogo de xa-
a facilidade: sempre ajudava meus ra consumo próprio, frequentava drez. Foi inventado ou descoberto? Bem, perdido nas
coleguinhas nos deveres da escola o teatro de vanguarda de Manoel brumas do tempo, uma pessoa ou várias inventaram
e explicava as contas mais difíceis. Karam e ia com frequência ver o jogo com suas regras. Depois veio a descoberta das
E nessa trajetória, após os estudos peças e ouvir música no Teatro melhores aberturas, as sequências que podem levar a
secundários, deixei a família no Guaíra. Havia uma vida cultural um xeque-mate, um mundo de possibilidade foi sen-
interior e fui para Curitiba estu- pulsante em Curitiba, no tem- do descoberto e outros tantos ainda restam a descobrir.
dar engenharia. Não me adaptei po dos meus vinte e poucos anos. E como no xadrez, a invenção em matemática não tem
ao curso e mudei para medicina. Então, acho que apesar de todos fim. Por isso, quem se dedica a essa nobre disciplina
Fiquei dois anos na engenharia e os desvios estive sempre próximo nunca fica desempregado. Sobre a literatura também
outros dois anos em medicina. Te- da matemática e da literatura. aqui temos uma atividade híbrida, a invenção e a des-
ve um tempo em que tentei seguir coberta. Mas como na matemática, a invenção está na
os dois cursos, mas terminei por • Se a matemática é para os jo- base primal, o que vem depois é a descoberta. Aliás na
desistir de ambos. Foi nesse mo- vens, a literatura obriga leitura, Biblioteca de Babel de Borges estão todos os livros que
mento de incertezas que encontrei sedimentação, repouso, tem- podem ser escritos, não é mesmo? A literatura nesse
um grupo de estudos em mate- po. Como foi a sua preparação aspecto da invenção ou da descoberta tem sua matriz
mática na Universidade Federal (e sua vontade) para escrever os comparável à atividade do xadrez. Nesse sentido um
do Paraná e terminei vindo pa- dois romances? dos maiores enxadristas de todos os tempos, o russo
ra o Rio de Janeiro fazer um cur- Comecei a me interessar Alexander Alekhine (1892-1946) e o argentino Jorge
so de verão no Impa (Instituto de pela literatura, a narrativa dos li- Luis Borges são galhos da mesma árvore frondosa do
Matemática Pura e Aplicada). No vros, assim que surgiu na minha conhecimento, têm o mesmo DNA.
ano seguinte, estava inscrito no frente a possibilidade. Lembro de
mestrado. O Impa é o principal ter topado na biblioteca da esco- • O seu romance autoficcional tem dois volumes:
centro avançado de pesquisa em la secundária com um livro de o primeiro, vencedor do LeYa, conta da sua infân-
matemática da América Latina, e Mário Palmério, Vila dos Con- cia e o segundo revela a descoberta da Superfície
está entre os principais do mun- fins. O nome e a capa colorida Costa. Pode nos falar um pouco mais sobre o en-
do. Lá fiz o mestrado e o douto- me cativaram. Talvez tenha sido redo do livro premiado?
rado em matemática. Na tese de o primeiro livro encorpado que A arte de driblar desti-
doutorado, descobri as equações li, pois antes gostava muito de re- nos, vencedor do LeYa, reflete
de uma superfície que viria a re- vista em quadrinhos, o Mandra- Desde sempre fui captado minhas vivências perambulan-
solver um problema de matemá- ke, o Tarzan e outros tantos. E do pelo poder da palavra. E no do pelo interior mais profundo
tica com 206 anos de existência. livro inaugural nunca mais dei- do Paraná, até minha chegada
Hoje a comunidade internacio- xei de ler com regularidade. Aos início foi a palavra falada. Meu a Curitiba aos dezenove anos
nal denomina tal superfície-solu- vinte anos já era um leitor con- pai foi um exímio contador (caramba: isso é um spoiler!).
ção de Superfície Costa. Quem se solidado. Agora quanto a escre- Creio que a narrativa reflete de
interessar pela imagem da superfí- ver, lembro-me de ter rabiscado de história. Não tinha modo pícaro e dramático, as
cie pode consultar o google com a
palavra-chave Costa Surface.
um caderno de poemas para uma
menina por quem estava apaixo-
estudo, mas uma capacidade venturas e desventuras de um
menino até o momento de seus
nado, sem ser correspondido (si- extraordinária em descrever.” dezenove anos, em sua trajetó-
• Creio que a dedicação para tuação ideal para um projeto de ria de mudar a própria vida pe-
solucionar um problema de tal poeta!). Foi durante a escola bási- la via do conhecimento. É uma
magnitude tenha sido enorme. ca e felizmente o caderno sumiu caminhada com muitas dificuldades e superação, com
Durante esses anos, você lia os (anos depois, ela, já casada e com destinos paralelos a todo momento aparecendo para
clássicos literários? Literatura filhos, me garantiu que a peça se toldar o objetivo central. Como cenário as pequenas
contemporânea? A literatura te extraviou numa mudança). Tam- cidades do interior com sua singular população de
interessava em qual nível? bém dessa data consta meu hábito personagens, às vezes histriônicas, outras divertidas,
Sim, sem dúvida. Chegar de escrever em diários, de modo imprevisíveis, como o coveiro, o faquir sertanejo, os
ao ponto de resolver um proble- desorganizado, sempre sobre fa- feiticeiros, o médico temerário...
ma com esse nível de sofisticação tos diversos da vida corrente. En-
exigiu um longo caminho e muita tão desde sempre fui captado pelo • Você autopublicou seu primeiro livro, A vida
dedicação. Mas foi uma trajetória poder da palavra. E no início foi misteriosa dos matemáticos, e também está escre-
sem atropelos ou estresse. Minha a palavra falada. Meu pai foi um vendo outros romances. Pode nos contar um pou-
dedicação vinha de longe. Desde exímio contador de história. Não co mais sobre eles?
os meus doze anos estudei mui- tinha estudo, mas uma capacida- A vida misteriosa dos matemáticos pode ser
ta matemática. Meus professores de extraordinária em descrever a enquadrado na esteira do realismo mágico. A história
me emprestavam livros diferen- cena de um fato acontecido. Foi se passa num mundo paralelo, o Aleph, onde os mate-
tes e eu tinha um ritmo constan- o meu primeiro professor de lite- máticos e filósofos de todas as épocas se reúnem para
te de, em média, estudar mais de ratura, ele quase analfabeto, e eu discutir a repercussão de suas descobertas e principal-
quatro horas por dia, até em fim um ouvinte cativado. Então, nos mente as lendas que suportam tais descobertas — a
de semana. Mas, como disse, sem anos maduros que vivo agora, a maçã caiu mesmo na cabeça do Newton? Arquime-
estresse, estudar matemática pa- passagem da matemática — da des, após descobrir a lei da flutuação dos corpos em
ra mim sempre foi uma diversão. qual me distancio em termos de líquidos, saiu nu pelas ruas de Siracusa gritando Eu-
Então passei pelo mestrado, pe- pesquisa — para a produção lite- reka!, Eureka!? E Giordano Bruno? Em que circuns-
lo doutorado e resolvi a tese, por rária foi uma passagem sem gran- tância foi queimado na fogueira da Inquisição, por
assim, dizer, sem sofrer. A ma- de esforço. Há cerca de sete anos o acreditar que Deus criou outros mundos povoados
temática sempre se me apresen- desejo latente se manifestou e pas- de vidas humanas no imenso Cosmo? E foi durante
tou como lúdica. Mas apesar da sei a escrever um livro na vertente a preparação desse primeiro livro que me entusiasmei
imensa dedicação à matemática, do realismo fantástico, narrando a de tal modo com a nova fase de produzir literatura
carregava comigo as palavras. Fui história da matemática, com o fo- que me veio esse A arte de driblar destinos, e simul-
um bom aluno também em por- co nas lendas que fizeram avançar taneamente vieram outros textos, os quais virão à luz
tuguês, e já no início das faculda- essa disciplina. Levei quatro anos nos próximos anos. Desses inéditos o mais avançado
des em Curitiba, morando numa na produção do A vida misterio- — uma espécie de continuidade do livro premiado —
casa de estudantes (mais de 200 sa dos matemáticos. Depois co- tem o nome provisório de A geometria do chapéu do
moradores), tive uma biblioteca mecei a escrever o livro atual [A sambista. Mas tenho ainda dois outros textos a meio
básica com um bom acervo de li- arte de driblar destinos], distin- caminho. Todas essas narrativas são longas e nos pró-
teratura. Também frequentava a guido pelo prêmio LeYa. ximos tempos virão a lume.
8 | JANEIRO DE 2023

NATO BIGIO

• Quais eram (ou ainda são)


seus sonhos matemáticos? Fo-
ram realizados? Quais são (ou
eram) seus sonhos literários?
No universo da matemá-
tica, quero seguir contribuindo
com o ensino dessa disciplina.
Sigo dando palestras lúdicas para
estudantes de todas as idades. É
uma atividade paralela, enquan-
to continuo a escrever romances.
Um veio que pretendo explorar é
o da escrita de romances dirigidos
a jovens estudantes da escola bási-
ca. Romances lúdicos que possam
revelar a beleza da matemática e
servir de estímulo a carreiras cien-
tíficas. Quanto a descobrir novos
teoremas, creio que não voltarei
a empregar minha energia nessa
tarefa. Os sonhos literários, por
ora, são dominantes. Preciso ter-
minar essa série de romances já
iniciados. Mas, lógico, fico aten-
to à chegada da deusa da inspira-
ção: se ela bater à minha porta e
me eleger, posso sim pensar em
um problema matemático de raiz.

• A mente, a labuta e dedicação


do matemático funcionam di-
ferente da mente, da labuta e
da dedicação do escritor? Co-
mo se entrelaçam? Como se
distanciam?
São cartilhas diferentes, en-
tão é preciso se preparar para um
e outro caso. Quando me deci-
di a fazer literatura, tive que ras-
TRECHO
par alguns vernizes encalacrados
em minha formação de matemá- A arte de driblar destinos
A literatura, como a
tico. O rigor, o pensamento diri-
gido para uma única meta vigora
matemática, é uma amante
possessiva. Descobri logo Capítulo 11: O faquir sertanejo
quando nos debruçamos sobre a
folha em branco na faina de pro- isso. Então meu bloco de Eram quase cinco horas da tarde, momentos de suspense diante
var um teorema. Já a literatu- notas segue comigo para
da cova, em minutos iria começar o desenterro do Faquir. Eu
ra é diversidade de assuntos com anotar alguma ideia que
uma lógica outra, mais frouxa, eu estava ao lado de meu pai, junto também Urias e Barril. Meu
me salte à mente, ou na
creio. Inclusive se pode explorar pai trazia um revólver por dentro da camisa; em casa eu tinha
a ambiguidade, as várias cama-
minha frente, seja qual for
a circunstância.” percebido seus movimentos preventivos. Mamãe e Martinha
das, deixando ao leitor a tarefa de
interpretar os fatos, segundo seu não vieram testemunhar o acontecimento, não aprovavam
mundo interior de experiência. aquela encenação, achavam um despropósito a prefeitura gastar
Minha trajetória de passagem do Quando frequento um café, fico dinheiro com essa barbaridade.
mundo matemático para o mun- escutando as conversas na mesa ao
do da literatura foi com muito es- lado e até acontecem casos em que Na hora marcada começou a delicada e demorada operação de
tudo preparatório, intensifiquei as mudo minha trajetória e sigo duas retirar a terra com as ferramentas sem macular o caixão e, depois,
leituras, assisti a muitos vídeos so- ou três pessoas em conversa pela
bre a rotina dos grandes escritores rua, sempre buscando aprimorar com ajuda de cordas, alçá-lo à borda do buraco. Nenhum ruído
e suas técnicas de criação, fiz vá- a dicção dos diálogos. Mas gosto vinha de dentro do esquife e era chegado o momento de suspense
rios cursos de escrita. também de ficar longas tempora- máximo: a abertura do caixão. A consternação foi geral. Lá estava
das em meu sítio na serra de Ma- o homem morto. O corpo estendido de bruços foi saudado por
•  O matemático Henri Poin- caé, um lugar bem isolado, cercado
caré, após longos períodos de pela mata, reescrevendo os textos. murmúrios doloridos. “Ele se debateu antes de morrer”, alguém
estudo, caminhava para pegar É a fase mais deliciosa, reescrever e comentou. “Pobre homem, foi abandonado por São Lázaro e Jesus
o ônibus e tinha seus insights. reescrever em busca das melhores Cristo”, outra voz pranteava. Não era o desfecho desejado!
Você acredita em insights lite- palavras e das melhores resoluções
rários? É no seu sítio, cercado das cenas. E lógico enquanto avan- Mas o corpo de bruços e inerte durante longos segundos era uma
por livros, que você se inspi- ço na escrita tenho meus compa- técnica de suspense, fazia parte da encenação. Pois, vencido
ra/labuta? nheiros de aventura, sempre estou
esse tempo eterno de consternação, o faquir se virou e sentou-se
Sim, os insights podem te lendo, tanto os clássicos quanto os
pegar inesperadamente. É preci- contemporâneos. dentro do caixão, espichou a espinha, estirou os braços e puxou
so ficar ligado o tempo todo. A fundo uma golfada de ar, durante quase um minuto, como se
literatura, como a matemática, é • Inicialmente, você planejava a estivesse recuperando para o corpo todo o ar exaurido embaixo da
uma amante possessiva. Desco- autopublicação de A arte de dri-
terra. Um suspiro geral de espanto escapou das gargantas. Após
bri logo isso. Então meu bloco blar destinos, mas mudou de ru-
de notas segue comigo para ano- mo e conquistou o prêmio LeYa. a respiração primal, recuperado, o faquir soltou um exagerado
tar alguma ideia que me salte à Quais são suas expectativas? bocejo, encerrando, enfim, o sono hibernal de vinte e quatro horas.
mente, ou na minha frente, seja Foi uma felicidade imensa ter Manifestando o desejo de matar a sede, tomou o rumo do bar do
qual for a circunstância. Duran- o livro reconhecido pelo LeYa. Te-
Sendão, levando atrás de si a multidão, como se entoasse uma
te minhas caminhadas pela ma- nho consciência de que o prêmio
nhã na Quinta da Boa Vista, no pode ampliar o número de leitores melodia encantada numa flauta invisível. Depois, com os cotovelos
Rio de Janeiro, (eu moro ao la- dessa história e isso é o que mais apoiados no balcão e sorvendo uns goles de guaraná, a quem
do), vou refletindo sobre as cenas, deseja todo escritor. E sobre o fu- perguntava do seu estado reclamava de uma leve enxaqueca, aliás
vou tentando encontrar o melhor turo, tudo está aberto, vou conti-
prejudicada pela claridade que lhe machucava os olhos, apesar da
título para o livro, mentalmente nuar trabalhando com carinho no
ensaio diálogos, monto uma cena. meu novo livro. mansidão da luz naquele fim de tarde.
JANEIRO DE 2023 | 9

Espelhamentos
ca a Guerra Civil espanhola. Em 2013, Robert Capa
foi tema da matéria “homens que você deveria conhe-
cer #42” da revista Papo de Homem.

e acasos
No segundo, logo na página seguinte, espe-
lhado, lemos:

dizia Gerda Taro.


Gerda Taro foi
atropelada por um tanque de guerra.
Livro da poeta baiana Clarisse Lyra brinca Tanto tempo para São dois dados de sua biografia.
aprender a escrever um
com distâncias, oráculos, temporalidades e poema com hortênsias
Se os destaco e digo que
isso parece querer dizer algo
a noção de que tudo pode ser reescrito CLARISSE LYRA
Jabuticaba
sobre se esforçar e sobre sentir
estarei fazendo uma leitura redutora.
52 págs.
O problema com uma leitura redutora
ANA LUIZA RIGUETO | RIO DE JANEIRO – RJ é que uma leitura redutora é uma leitura injusta.
E por que eu faria isso?
Para ter um poema assinado com meu nome?

P
Gerda Taro, perdão por atrapalhar seu descanso.

arece o chat UOL mas melhor. O Tinder é Aceitávamos, no entanto, Aqui, a poeta também está no futuro — em
um lugar incrível. Entretenimento privado que os nossos corpos continuassem um caminho relação a Gerda Taro, interrompida de seu descan-
e nada personalizado é o que ele te propor- para o qual nós não tínhamos explicação. so eterno por conta de uma leitura redutora ofereci-
ciona: em qualquer momento, sem perder da por seus biógrafos. E poderíamos até pensar em
tempo na Netflix ou fazendo cursos, podendo dar um O peixe chega junto do pirão, do arroz e da Gerda Taro como a amiga endereçada no poema
ghost a qualquer hora, você vai lá, deslizar por um match batata frita. Vocês pensam que o bar talvez não seja E, amiga, eu tô no futuro, para quem são enviadas
dos sonhos ou um match mediano. E com sorte enga- o melhor lugar para lerem poemas assim, à queima- notícias — de um futuro que cheira a macadâmia,
tar uma conversinha fiada sobre signos, opiniões pu- -roupa numa primeira vez. Mas talvez seja só a fo- em que o amor é doce e perfumado, futuro oníri-
blicamente impopulares, profissão ou poesia. Aí você me. Você percebe que está faminta e que quer uma co, diálogo e temporalidade impossíveis mas, no
pode descobrir pessoas que conhecem pessoas que vo- coca-cola, como no poema, e pede. poema, realizáveis.
cê conhece — geralmente é com essas que você sai. Ou Enquanto almoçam e trocam silêncios, você
pessoas que de tão interessadas em você descobrem sua volta a pensar em encontros e em poemas. Pensa que Enfim, a ironia
minibio na internet muito rapidamente — geralmen- o peixe está uma delícia e que coca-cola é bom de- Partindo das definições propostas por Richard
te você sai com essas também e geralmente elas são as mais. Pensa no título do livro de Clarisse Lyra, o que Rorty sobre ironia, Rosa Maria Martelo diz que rees-
mesmas que conhecem gente que você conhece. Sei dis- te faz lembrar que sua mãe ama tirar fotografias ao crever o mundo é uma das atribuições de uma iro-
so porque me contaram. lado de arbustos de hortênsias. Tanto tempo para nista: “Em termos rortyanos, o principal alvo de
Ironicamente, alguém te envia um poema pelo aprender a escrever um poema sobre hortênsias. desconfiança de uma ironista é o senso comum, e,
chat do Tinder e você pensa: meu deus, nem aqui eu Pensando no nome, você tem a sensação de que ele para a ironista, o senso comum é, antes de mais na-
tenho paz, fui dar um match e acabei numa conversa aponta para um trajeto, “tanto tempo”, anterior a da, uma linguagem que só pode ser objeto de dis-
sobre poemas. E calhou que vocês já falaram de Ana si mesmo. Melhor: aponta para os poemas do livro tanciação mediante o recurso a outra linguagem.”
Martins Marques, já falaram de Filipa Leal, já falaram enquanto fala de um trajeto necessário para escre- Isso faria com que estivessem sempre em dúvida os
até de Adília Lopes. A coisa fica tão surreal que você ver um poema “sobre hortênsias”. vocabulários tidos por finais. A poesia ofereceria, as-
pensa que estão armando pra você, ninguém vai pro sim, uma possibilidade de reformular, refazer, esse
Tinder falar de poesia, deve ser pegadinha. Então vo- E, amiga, eu tô no futuro vocabulário final. Martelo continua citando Rorty:
cês marcam um date. E cada um vai levar um livro de E, amiga, eu tô no futuro é o título de um poe- “Neste processo de redescrição, as ironistas nunca se
poemas. Você leva um livro contemporâneo para dar ma de Clarisse. De um poema não, são dois poemas levam completamente a sério porque entendem que
aquele engajamento nas poetas vivas. Você leva Tan- que repetem esse mesmo título, e estão postos lado a ‘os termos em que se descrevem a si próprias estão
to tempo para aprender a escrever um poema com lado, em páginas que se tocam de frente. sujeitos a mudanças, [e] por estarem sempre cons-
hortênsias, da Clarisse Lyra. Finalmente vocês se sen- Um começa assim: “ele cheira a macadâmia e cientes da contingência e fragilidade dos seus voca-
tam no bar em plena luz de meio-dia. E pedem cerve- ervas/ pequenas especiarias fumadas/ e nanquim/ é bulários finais e, portanto, dos seus eus’”.
ja, e pedem um almoço com peixe frito. um pouco frio, então/ jogo uma echarpe clara/ sobre Assim, nos deparamos com a possível ironia
Enquanto esperam, tiram os livros da bolsa. Ele minha blusa”. O outro, tem início parecido, mas com contida em Tanto tempo para aprender a escrever
traz Golgona Anghel, Nadar na piscina dos pequenos, algumas alterações: “ele cheira a célula, macadâmia/ um poema com hortênsias — e voltamos ao date.
e você pensa que isso só pode ser uma piada. E você con- pedras/ você não sabe o cheiro que têm/ essas coisas Você se lembra que tinha começado a pensar
ta que pegou esse livro emprestado ontem mesmo com no futuro/ é um pouco frio, então/ jogo uma galáxia/ em temporalidades e em distâncias, se dá conta do
uma amiga. Então vocês começam pelo livro de Claris- sobre minha blusa”. E terminam desse jeito, respec- bar, do encontro do Tinder, do peixe frito, da co-
se Lyra, é fim de semana e, abrindo aleatoriamente nu- tivamente: “o amor é doce e perfumado/ cristais ca-cola e que having a coke with alguém vai ser
ma página, você lê este poema: de açúcar de fruta/ amanhece devagar, o céu/ pra sempre uma coca-cola com Frank O’Hara.
tem a coloração de maçãs” e “o amor é doce e Levanta a cabeça e vê um homem mastigando
Um final de semana perfumado/ fumaça de nanquim/ amanhece à sua frente, você então sente vontade de pedir
devagar, o céu/ se disfarça de maçã”. a opinião dele sobre o título do livro de Claris-
um final de semana Duplicados e alterados, sem que um se se. “E esse título, heim?” E levanta o livro diante
com você perca do outro porque mantém o mesmo título de si mesma, aproximando a capa do rosto dele.
seria tão bom quanto having e a opção pelo mesmo universo de palavras, sem Ele diz alguma coisa mais ou menos comum so-
a coke with you? grandes mudanças estruturais, são dois poemas que bre o perecível das flores e você rapidamente esque-
A AUTORA
foi o que ela disse guardam em si um percurso — de alterações, edi- ce. Você pergunta onde ele mora e ele diz que no
e eu admiro tanto esse ções que, tornadas aparentes na publicação, deixam CLARISSE LYRA Catete. Você diz que o seu sonho é morar no Cate-
jeito de dizer o desejo à mostra o processo de reescrita. te com ele. Ele ri e você também. Você ri mais ain-
Nasceu em Feira
sem constrangimento O poema, carta endereçada a uma amiga que da por dentro porque de algum modo acredita estar
de Santana (BA),
ao contrário, x, pra fazer carinho está no passado, dá notícias de outro momento. Nós dizendo a verdade. Então, você fica com duas pa-
em 1988. É poeta,
precisa falar com voz de criança — e a amiga — só podemos ler e reler a carta no pre- professora,
lavras na cabeça: tempo e contingência. Duas pa-
assim o ridículo se confunde sente. A poeta faz com que a localizemos à frente no tradutora e lavrinhas que produzem distâncias, pois sustentam
com o ridículo e tempo e, por isso, enquanto lemos, estamos no passa- revisora. Mestra relação entre elementos.
fica tudo bem do. Essa configuração temporal estabelece distâncias, em Letras pela Todas essas são questões recorrentes no livro
reproduzindo o que já vinha anunciado no título do USP. Foi editora de Clarisse Lyra, que não para de produzir relações
Sem dizer nada, ele abre o livro de Golgona, vo- livro, uma marcação de trajetória, reescrita e tempo. no zine Felisberta por meio dos espelhamentos e dos acasos mais ou
cê nunca saberá se foi um poema aleatório ou não, e lê: Esse não é o único par de poemas que repete um tí- e coedita a menos controláveis da escrita — não só pelos títu-
tulo, há outro, Me esforço em ser perfeita para me sen- revista Capivara. los idênticos, mas pela repetição de estruturas com
Ficamos tanto tempo em silêncio, tir invulnerável. O primeiro, um poema em prosa: Organizou e pequenos desvios, pela insistência na temática dos
traduziu, junto
oráculos, pela recorrência de marcações temporais
com Mariana
que conseguimos, dizia Gerda Taro. Gerda Taro foi a mulher que nos poemas, pela dicção próxima da fala da própria
Ruggieri, o
até que enfim, criou Robert Capa. Robert Capa foi a marca que ela e livro Discoteca
Clarisse etc. Esses espelhamentos, modos de reescri-
confundir-nos com a noite. seu marido usaram para vender suas fotografias a veí- selvagem, da ta, podem até deixar a sensação de que os poemas
Vínhamos, é certo, de sonhos distintos culos de imprensa no período entreguerras. Gerda Ta- poeta argentina são inocentes, desprovidos de armadilhas. Mas não.
e ainda não tínhamos aprendido a adormecer ro morreu em 1937 depois de ser atropelada por um Cecilia Pavón Como no fim de E, amiga, eu tô no futuro, em que o
sem que isso não parecesse uma queda no vazio. tanque. Gerda Taro estava fotografando com sua Lei- (Jabuticaba). céu se disfarça de maçã, não é maçã.
10 | JANEIRO DE 2023

Delírio errante
PABLO SABORIDO

O nome, signo que contém


a identidade de um ser, consti-
tui uma problemática para Bal-
domero. Na falta de alguém para
chamá-lo de Babá, ele busca por
uma nova alcunha para a certidão
O breve romance Baldomero, de nascimento: o também inco-
mum Valdomiro. É nesta indeci-
de Leandro Rafael Perez, promete são, que beira a recusa de assumir
muito mas se perde pelo caminho O AUTOR
o nome de batismo, que a fratura
do sujeito se expressa em Baldo-
LEANDRO RAFAEL PEREZ mero, conflito que se repete du-
GIOVANA PROENÇA | TAUBATÉ – SP rante a trama.
Formado em linguística pela
A linguagem do romance,
Universidade de São Paulo (USP),
Leandro Rafael Perez nasceu em 1987
que ora cria a atmosfera irônica
da trajetória de seu protagonis-

Q
e é autor de três livros de poemas
publicados pela Patuá: lança além do ta, ora recai em absurdos, sur-
uando se trata de lite- nos seus vinte e tantos anos. Bus- real só (2011), turnê a meio mastro ge como uma surpresa. Estreia
ratura, o título de uma ca por um namorado ou, na pior (2014) e pau mole (2017). Baldomero de Leandro Rafael Perez na pro-
obra nos antecipa, mui- das hipóteses, alguém com quem (2022) é sua estreia na prosa. sa — ele é autor de três livros de
tas vezes, o que naquele possa dividir a intimidade. Para poemas pela Patuá — o lirismo é
livro pode nos sensibilizar. Co- ele, isso é representado pela per- deixado à parte, com uma poeti-
meça aí o estranhamento que missão de chamá-lo por um ape- cidade que se manifesta no livro
sentimos ao nos deparar com o lido: Babá, dado por um de seus principalmente pela cadência da
curioso e incomum Baldomero. amantes casuais. Nessa trajetó- narrativa, composta por um rit-
A técnica, que consiste no empre- ria sentimental que vem antes do mo que simula o movimento da
go de um nome próprio para ba- surgimento do Grindr — aplica- própria vida errante de Baldome-
tizar o romance, contudo, não é tivo de encontros focado em ho- ro por São Paulo.
nova nas letras, vide Mrs. Dallo- mens homossexuais — podemos Um retrato, repleto de hu-
way, de Virginia Woolf, ou Ma- ver a superficialidade das relações, mor ácido, de um jovem tentan-
cunaíma, de Mário de Andrade. sempre efêmeras e desajustadas, do encontrar o seu lugar no século
De antemão, títulos assim, em- do protagonista. Baldomero te- 21, Baldomero teria muito a ga-
bora envoltos de certo enigma, ria muito a ganhar focando ape- nhar ao centrar-se nesta premissa.
nos informam que estamos dian- nas nessa odisseia sentimental. Os problemas da trama tornam-
te de uma narrativa centrada em A exploração do universo -se evidentes em uma das mais
uma personagem principal, o que LGBT, na época conhecido co- desnorteadoras passagens do ro-
se repete no Baldomero, roman- mo GLS, é um dos pontos po- mance. Incapaz de atender ao pe-
ce de Leandro Rafael Perez. sitivos do romance. Com toadas dido de Fernanda, que desejava o
É este inusitado nome, de de humor, que em certas pas- apartamento só para si na come-
certo pouco usual nos cartórios, sagens beiram o absurdo, Bal- moração do aniversário, Baldo-
que anuncia uma aparente pro- domero navega nos mares dos mero se faz presente, um penetra
posta: apresentar uma narrativa romances passageiros. O desar- na própria casa. Com isso, ele
estranha em relação ao que esta- ranjo se evidencia nos encontros presencia um assassinato cometi-
mos acostumados a encontrar nas sexuais do protagonista, repletos do pela amiga e por sua própria
estantes. Baldomero é uma traje- de desconforto. A performance irmã, uma espécie de vingança fe-
tória errante. Nosso protagonista de masculinidade do persona- Baldomero minista contra um ex-namorado.
é o típico locutor do anjo torto de gem diz muito sobre a socializa- LEANDRO RAFAEL PEREZ Este ponto do enredo fica
Drummond, um gauche na vida. ção do mundo gay, semelhante à Fósforo deslocado do restante da compo-
80 págs.
Mas, nos caminhos do romance, de outros contemporâneos como sição, gerando uma fratura no rit-
surgem muitas armadilhas. o Diga que não me conhece, de mo da narrativa. Sem dúvidas, há
Formalmente, ele flerta Flavio Cafiero. Há também certa uma quebra de expectativa, mas,
com tons experimentais. Con- nostalgia, com o retrato das noi- esta não acrescenta ao romance.
tudo, permanece dentro do que tes entre a Rua Augusta e o Largo O erro repete-se com um suicídio
podemos chamar de narrativa do Arouche no período em que inesperado, fato que mais uma vez
convencional, o que se refere ao o livro se passa, que trazem tons rompe com o tédio cotidiano da
modelo empregado pela maio- de uma outra década. sobrevivência na metrópole, o que
ria dos autores da leva do sécu- Estudante de geografia na parecia nos anunciar Baldomero.
lo 21. Na construção do enredo, Universidade de São Paulo, Bal- Como romance, Baldo-
a problemática é maior. Quando domero vive o aperto típico de mero poderia ser muitas coisas.
se atira em uma louca desvaira- muitos universitários. Mal re- De certo, a trama resvala em to-
da, é preciso guiar o leitor para munerado no emprego de te- das elas, sem se concentrar pro-
dentro desta aventura. Caso con- lemarketing, o jovem enfrenta priamente em uma centralidade,
trário, o que resta é apenas uma dificuldades financeiras, a pon- a não ser a de seu protagonista.
expressão confusa. to de dever o aluguel para a co- Isso não é um problema, de mo-
TRECHO
O título completo do livro lega Fernanda, com quem divide do que, em 80 páginas, Leandro
ajuda a iluminar parte da questão: um apartamento. Isso também o Baldomero Rafael Perez flerta com o cará-
Baldomero (ou Babá, para os afasta da faculdade, colaborando ter multifacetado da forma, que
íntimos, inexistentes). De fato, a para a falta de perspectiva que Baldomero só queria se chamar presta um tributo ao romance
solidão, chamada de o mal moder- ronda o futuro para ele. moderno por excelência — “uma
no, está no cerne da literatura des- Valdomiro. O nome vinha pequena ode ao Ulysses de Joyce
de as suas origens. Mas, do século Desconforto da rua onde nasceu e viveu que tem um pé na viadagem e
20 em diante, o caso se torna ain- Todos os relacionamen- por vinte anos. Baldomero outro nos problemas do século
da mais crônico. Podíamos esperar, tos do protagonista errante são Fernandez. Divisa Diadema. 21”, segundo a editora Fósforo.
assim, que Baldomero fosse uma preenchidos pelo desconforto. A A desvairada de Baldomero
meditação sobre o isolamento em tensão financeira mina a pseudo- À época, sua mãe considerou o funciona melhor quando, apesar
plena década de 2000. Afinal, so- -amizade com Fernanda, ele não nome bonito, único — talvez de seus desvios, consegue guiar o
mos avisados que se trata de uma suporta as divagações de seu su- por falta de figura masculina leitor por suas desventuras. Ape-
história pré-linha amarela — me- posto melhor amigo, Henrique; mais significativa. sar de cair em armadilhas na com-
trô que une o centro de São Paulo as visitas para a mãe na longín- posição de seu enredo, o romance
(desde a Estação Luz) ao Campus qua Região Metropolitana refle- Tinha quem o chamasse de pode ser um bom entretenimento
da Universidade de São Paulo (no tem um estranhamento, e ele é para aqueles que desejam se atirar
Butantã) — cujo início das ativi- marcado pela lembrança dos Val, e teve aquela bichinha, em uma trajetória errante ou ter
dades se deu em 2010. abusos sexuais cometidos por um ah, aquela bichinha, que uma um gostinho do absurdo que é a
Essa solidão ganha novos tio. A intimidade, anunciada no vez o chamou, entre berro e vida no início do século 21. Uma
contornos ao se considerar aspec- subtítulo, parece incapaz de ser sussurro, de Babá, no intervalo coisa é certa: Baldomero é para
tos da sexualidade do protagonis- encontrada, o que marca os vín- os leitores que não temem uma
ta. Baldomero é um homem gay culos do personagem. das mamadas. boa dose de delírio.
JANEIRO DE 2023 | 11

alcir pécora
CONVERSA, ESCUTA

E
Ilustração: Miguel Rodrigues
ntre os lugares-comuns
dos estudos acadêmi-
cos hoje, poucos são
tão dominantes como
os de pós-colonialismo e decolo-
nialismo, que dizem respeito ao
redimensionamento crítico dos
processos de colonização euro-
peia dos demais continentes, o
que inclui a crítica da bibliogra-
fia utilizada para pensá-los. Nes-
se contexto conceitual, a noção de
“patrimônio”, enquanto represen-
tação relevante do legado cultural
de um povo, precisa ser repensada
em novas bases teóricas. É o que
pretende fazer o volume Patrimó-
nios de Influência Portuguesa:
modos de olhar (Imprensa da
Universidade de Coimbra/Fun-
dação Calouste Gulbenkian/
Editora da Universidade Federal
Fluminense, 2015), organizado
por Walter Rossa e Margarida Ca-
lafate Ribeiro, pesquisadores do
Centro de Estudos Sociais (CES),

PATRIMÔNIO CULTURAL EM
da Universidade de Coimbra.
Preocupado em evidenciar
as assimetrias do processo colo-

TEMPOS PÓS-COLONIAIS (1)


nial, os trabalhos aí reunidos se
propõem como um gesto em fa-
vor da integração do patrimônio
das diferentes culturas, países e
territórios envolvidos — notada-
mente em Portugal, Brasil e áreas
dos continentes africano e asiá-
tico —, mas, ao mesmo tempo, tos em favor próprio, reduzindo- mula seria aplicada na redefini- ideologias imperiais se recobris-
com uma clara disposição de recu- -os a um lugar periférico, quando ção da ideia de “comunidade”, de sem de uma plasticidade que lhes
sa de fantasias nostálgicas e auto- não condenando-os à desaparição. modo que a noção de “identida- permitia tomar a forma de even-
ritárias associadas à pressuposição Nesse processo, chamado por Ma- de” — integral, plena, nostálgica tuais ações benevolentes, como as
de identidade “fraternal” desses cedo de “solipsismo de centro”, o — desse lugar a uma nova ideia de supressão da escravatura, do
povos. Além disso, os autores in- papel-chave é atribuído à língua, predominante, a de comunida- tráfico negreiro, e enfim de incor-
cluídos no volume pretendem in- pensada sobretudo como instru- de incompleta, não homogênea e porar nelas motivações religiosas
tegrar à noção de patrimônio a de mento do imperialismo naciona- constituída pela falta. e humanitárias.
“sustentabilidade cultural”, isto é, lista da matriz. Antonio Sousa Ribeiro, da Fecha essa primeira parte
concebê-la como plataforma de O trabalho seguinte, da Universidade de Coimbra, trata a dos estudos, reservada àqueles de
interação entre as áreas de preser- pesquisadora Renata Araújo, da seguir da questão da “memória”, natureza conceitual, o historiador
vação e de ação político-cultural, Universidade do Algarve, discu- tomando a mesma direção con- português Francisco Bethencourt,
num contexto de cooperação en- te os conceitos de “influência”, tra-hegemônica dos trabalhos an- do King’s College. Tematizando
tre os povos e de reconhecimento “origem” e “matriz”. Dos três, ela teriores. Para ele, os estudos da as noções de “colonização” e de
da cultura do outro. supõe no primeiro, que dá títu- memória devem abrigar uma vi- “pós-colonização”, o autor des-
Trata-se, portanto, de um lo do volume, menor investimen- são “transdisciplinar”, atenta aos taca nelas dois processos con-
esforço interdisciplinar análo- to hierárquico e, portanto, maior quadros sociais implicados aí, o comitantes: o de coisificação do
go ao dos critical heritage studies possibilidade de incorporar no- que valorizaria, por sua vez, uma colonizado pelo colonizador, em
[estudos críticos do patrimônio], ções de reciprocidade, assim co- memória pública consciente das que cada um deles habita mun-
presentes nas Universidades an- mo de postular para o patrimônio catástrofes históricas, e, portanto, dos excludentes, e o de interiori-
glo-americanas desde meados dos um futuro que dê menos mar- mais capaz de valorizar o reverso zação da repressão pelo próprio
anos 80, o que proporciona ao gem a mistificações nacionalistas. das histórias triunfais dominantes. oprimido. Compreendendo a
conjunto dos trabalhos uma vi- Na sua perspectiva, uma geogra- Nessa perspectiva, o pesquisador crítica “pós-colonial” como aná-
sada crítica do eurocentrismo e fia de difusão “influente” deveria julga que ganham força os estu- lise de teor marxista de sociedades
uma disposição para compreen- ser mais centrífuga que centrípe- dos da violência e também os es- não europeias, Bethencourt res-
der a noção de “patrimônio” por ta, considerando resistências e hi- tudos pós-coloniais, nos quais se salta ainda a difícil emancipação
meio de uma pluralidade de olha- bridações encontradas nas antigas é obrigado a considerar patrimô- dos povos colonizados da menta-
res distintos. Daí o alerta que os colônias em contraste com os as- nios que foram silenciados, e que lidade de oprimido, bem como
organizadores fazem no sentido pectos mais coercitivos da matriz. existem hoje em formas pratica- as contradições existentes dentro
de que uma concepção renovada Nesse novo registro, as expectati- mente imateriais. das próprias perspectivas anti-co-
de “patrimônio” deve ser enten- vas seriam as de superação do mi- Miguel Bandeira Jeróni- lonialistas, como a desigualdade
dida como um “operador históri- to étnico da origem em favor do mo, outro pesquisador da Uni- na esfera de poder nos países in-
co”, estruturado pela língua que reconhecimento de processos de versidade de Coimbra, trata em dependentes, a apropriação do
vem de Portugal, mas dinamizado contaminação recíprocos, que particular da justificativa usual aparelho do estado por pequenos
por diferentes tempos e geografias, dariam margem a uma verdadei- do colonialismo moderno como grupos, a irrupção de neopatri-
que mais celebram as diferenças ra partilha das heranças. “missão civilizadora” e, portanto, monialismos e clientelismos etc.
existentes numa determinada re- Segue-se o trabalho do pes- como empresa de “elevação mo- Isto posto, o autor considera
de de territórios do que qualquer quisador italiano Roberto Vecchi, ral dos povos atrasados”. Contu- que o termo “influência” não está
essência comum entre eles. da Universidade de Bologna, que do, Jerónimo demonstra como dissociado da ideia de submissão
O veterano crítico portu- trata dos conceitos de “identida- as leis imperiais evidenciavam a alguém que exerce algum direito
guês Helder Macedo abre os tra- de”, “herança” e “pertença”, ressig- um inequívoco “racismo insti- de domínio, de modo que o pro-
balhos ocupando-se das noções nificando-os em termos de relação tucionalizado” a operar como le- pósito de pensar o patrimônio em
de “língua”, “comunidade” e “co- com o “outro”. A partir daí, o pa- galização do trabalho forçado. termos mais igualitários teria de
nhecimento” a fim de destacar o trimônio dos diferentes povos en- A finalidade última de tais leis, ser o resultado de uma luta pela
fato de que o contato com a lín- volvidos no processo colonial seria nada civilizada, seria a sua auto- “memória coletiva” no bojo de lu-
gua de poder tende à manipulação pensado não mais como “igual”, perpetuação, vale dizer, a preser- tas sociais e de projetos políticos
das outras culturas e conhecimen- mas “em-comum”. A mesma fór- vação do Império, ainda que as divergentes.
12 | JANEIRO DE 2023

RENATO PARADA

O AUTOR
direta ou indiretamente. Além dis-
SÉRGIO RODRIGUES so, e de modo principal, o roman-
ce é narrado por Machado de Assis
Nasceu em 1962, em Muriaé (MG). É
e em estilo machadiano, que Sér-
autor, dentre outros, dos romances
gio Rodrigues pastichou com ha-
Elza, a garota (2009) e O drible (2013)
e dos livros de contos O homem que
bilidade, sobretudo na conjugação
matou o escritor (2000) e A visita de de crítica e ironia:
João Gilberto aos Novos Baianos
(2019). Publicou também o almanaque Mas será demasiado pedir que
Viva a língua brasileira! (2016). não sejam mais ingênuos que o habi-
tual? Fazer uma versão simplificada
dos meus livros ultrapassa o vocabu-
lário; há que cortar fundo na carne,
na proporção exata do analfabetis-
mo funcional cultivado com tanto
esmero no corpo do povo. Ocorre que
o mesmo pensamento nu, límpido
embora, é hermético para quem não
aprendeu a pensar. Em caso extre-
mo pode ser de bom alvitre suprimir
a obra de todo, deixando o nome do
autor na capa e um maço de folhas
A vida futura virgens de entremeio; teria sua graça.
SÉRGIO RODRIGUES
Companhia das Letras Inconsistências
168 páginas
Retomo o raciocínio de Ma-
chado de Assis aludido no primei-
ro parágrafo para estabelecer um
TRECHO

Da crítica
paralelo com Sérgio Rodrigues.
A vida futura Assim como o autor de Várias
histórias anotou o sim e o não
Para resumir um caso de algo tão decisivo para a litera-
tura de seu século — a expressão

ao estereótipo
comprido, meditei que um nacional —, o escritor de O dri-
dos defeitos mais gerais entre ble se interessa por observar, com
nós, brasileiros, é achar sério independência intelectual, equí-
o que é ridículo, e ridículo o vocos e contradições em torno de
pautas identitárias.
que é sério. Sabia-o antes de Este subsídio ensaístico é
ser um autor defunto e mais uma das duas chaves de leitura de
A vida futura acerta dos Literatura e política o sei agora. A nata de nossa A vida futura; a outra é forneci-
O enredo de A vida futura se de- da pelo próprio autor em entrevis-
debates em torno da literatura, senvolve tocando em pautas políticas
crítica literária levou sessenta
tas sobre o livro, por ele concebido
anos para começar a quebrar
mas não aprofunda questões muito reverberadas atualmente, e em como investida humorística. É
geral causadoras de contendas quan- o código de meu romance pela conjugação desses dois fato-
identitárias relevantes do transpostas para o campo das artes mais famoso, e hoje querem res que lemos construções do se-
em geral e o da literatura em particular. que ginasianos de joelhos guinte teor, quando Jota narrador
Em certo momento, Machado de As- se dirige a quem acompanha seu
MARCOS PASCHE | RIO DE JANEIRO – RJ sis e José de Alencar, outro personagem ralados e álbum de figurinhas relato: “Não fui prudente, leito-

S
destacado na trama, partem de sua ha- debaixo do braço decifrem ra ou leitora — ou leitore, cousa
e 2022 foi um ano de celebração e de- bitação metafísica rumo ao planeta Ter- tudo antes do bigode. de doudo, como logo aprenderei”.
bate dos cem anos da Semana de Arte ra, para conferirem de perto um plano A circulação contemporânea dos
Moderna, este 2023 agora iniciado as- de reescrita de obras suas, liderado pe- fantasmas de Alencar e Machado
sinala o sesquicentenário da publicação la professora Stella McGuffin Vieira, motiva a elaboração de cenas ca-
do ensaio Notícia da atual literatura brasileira, apresentada pelo narrador como da milicianização da vida carioca e ricaturais, especialmente as que
com que Machado de Assis, embora em ato in- fluminense, elevada a um patamar exibem dificuldades de comuni-
dividual e discreto, também estabeleceu um mar- a principal ativista brasileira da ainda mais forte pelo bolsonaris- cação: “Todes?! Seria um deus nór-
co de reflexão sobre as letras nacionais. Naquela compreensibilidade textual como fer- mo. Afinal, a recreação é ofereci- dico? Logo me perdi”.
oportunidade, o ensaísta reconhecia a procedên- ramenta de inclusão social e plenitude da por Beto Ferrão — “o Rei das Mas justamente nesse pon-
cia do nacionalismo literário para a consolida- cidadã num país de gente semialfabeti- Vans”, e presenciada por um grupo to A vida futura acaba por se trair
ção de uma literatura nacional, mas sublinhava zada — uma gente que ela defendia ter aparentemente heterogêneo, em e contradizer, tornando-se o pró-
o ponto a partir do qual o fator procedente de- o direito inato de saber o que escreveram meio ao qual “deputados federais e prio livro algo caricatural, indo
generava no dogma, quando a retórica laudatória fundadores da nacionalidade como Jota militares de alta patente confrater- pouco além disso como enredo
de certos temas literários se sobrepunha ao exa- e Jota [José de Alencar e Joaquim Ma- nizam com cafetinas consagradas e e como crítica do tempo, por lhe
me efetivo de obras. Machado assim diagnostica- ria Machado de Assis]. Um dia, no clí- talentosos matadores de aluguel”. faltar consistência no desenvolvi-
va o que chamou de “instinto de nacionalidade”, max de sua carreira, lançou o ambicioso Por duas vias, portanto, o mento de personagens, seus des-
exibindo rara capacidade de discernimento, pró- projeto Luta de Clássicos, dedicado a rees- romance de Sérgio Rodrigues se tinos na narrativa e situações em
pria das mentalidades autônomas. Adiante vol- crever linha por linha os principais livros manifesta politicamente. Se por que se inserem. Daí vermos no
tarei a este raciocínio. daqueles autores, ou seja, nós — pondo um lado parece prioritário formu- romance muitas cenas previsíveis,
Chama a atenção que nos últimos anos assim em movimento, embora disso não lar um quadro de curto-circuito como que apostando na redução
uma interpretação da obra e da figura de Ma- pudesse saber, as engrenagens da história entre a procedência de discursos superficial de debates contem-
chado de Assis tem sido feita literariamente, pe- de assombração que aqui se narra. inclusivos e os excessos de algumas porâneos que, mesmo não sen-
la via da ficção narrativa, dentro da qual o autor situações em que são concretiza- do isento de incoerências, são de
consagrado no gênero aparece como persona- A iniciativa escandaliza os faleci- dos, por outro a narrativa aponta inegável importância. Nesse senti-
gem. Nesse sentido, destacam-se os romances dos autores, que se movimentam para sem rodeios para um submundo do, o capítulo Reescrever-me chega
Machado (2016), de Silviano Santiago, e O ho- obstruí-la. Para isso, Alencar e Macha- que está consumado sem disfarces a soar ingênuo, por do princípio
mem que odiava Machado de Assis (2019), de do, ou Jota e Jota, conforme identi- na superfície de nossa vida políti- ao fim se desenrolar como coleção
José Almeida Júnior. ficados no livro, percorrem espaços e ca e social. E o autor assim pro- de estereótipos incompatíveis com
Tal expediente é também praticado por situações ilustrativos da vida contem- cede sem sobrepor o político ao a densidade da pauta em questão
Sérgio Rodrigues, que em 2019, com a publi- porânea, no Rio de Janeiro, desde um literário, porque A vida futura é, e com a experiência do autor. E
cação de A visita de João Gilberto aos Novos ato acadêmico-político na Escola de antes de tudo, uma obra que re- sequer a pretensão humorística
Baianos, deu interessante sinal nessa direção, vis- Comunicação da UFRJ até uma festa flete literariamente sobre debates do livro justificativa o resultado,
ta a presença do conto A fruta por dentro, com na Zona Sul da Cidade. Se no primei- e encaminhamentos em torno da porque tanto o referido capítulo
que reverbera a Capitu de Dom Casmurro. O ro se formula uma cena de julgamen- literatura. Tanto é que, além dos quanto as demais partes correlatas
autor agora aprofunda esse trabalho, porque A to de obras de literatura que não se célebres e já aludidos defuntos- também não se sustentam comi-
vida futura, seu novo romance, tem em Macha- baseia em critérios literários, a segun- -personagens, outros autores do camente. O prejuízo do conjun-
do de Assis seu protagonista e narrador. da sugere um episódio muito próprio cânone ocidental são mencionados to narrativo geral é inevitável.
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“Rogério Pereira é da família dos escritores que estão sempre


remexendo suas próprias feridas, que, singulares em sua
manifestação, transformam-se, por conta da linguagem, em
experiências comuns a um enorme contingente de pessoas.
Pereira nos fornece um texto único, profundo, lírico,
atemporal, que nos arrebata e comove, sem nunca ser piegas.”

Luiz Ruffato – organizador

“Carregamos todos
várias marcas. Tenho
uma cicatriz enorme
na perna direita. O pai
ostenta algumas pelo
corpo — um pedaço
de lenha a voar do
machado, um coice de
um cavalo vingativo. A
mãe tinha um corte que
se estendia pela sola do
pé esquerdo. Meu irmão
já despencou algumas
vezes do telhado onde
tenta ganhar a vida.
Mas não há com que
se preocupar: nenhuma
cicatriz resiste à morte.”
14 | JANEIRO DE 2023

Ao sul da
condição
humana
Em O antigo futuro,
Luiz Ruffato reconta
parte da história
brasileira a partir
das vidas dos seus
personagens

RENATA BELMONTE
| SÃO PAULO – SP

“Q
ue saudade do futu-
ro”, confessou o mi-
neiro Murilo Mendes
no poema Mundo es-
trangeiro. E é a partir deste senti-
mento, ou seja, da constatação de
que uma longa espera, esperança,
se fez irremediavelmente frustra-
da, ou melhor, é justo a partir da
dor da descoberta de que aquilo
que foi tão desejado jamais acon-
tecerá, não importa o que se fa-
ça para tanto, que Luiz Ruffato,
também um escritor mineiro, te-
ce as linhas do romance O anti-
go futuro. Se o Brasil, em algum
momento, foi conhecido como
um país rico e diverso, que pro-
metia um horizonte acolhedor e
próspero para os que o escolhiam
habitar, Ruffato faz questão de
desmistificar tal discurso, deixan-
do claro que grande parcela dessa
narrativa não passou de uma fic- Luiz Ruffato por Fabio Abreu
ção construída a partir do sacri-
fício e sofrimento de toda uma
geração de pessoas pobres.
Assim, logo no início da tra-
ma, somos apresentados à família
Bortoletto, através dos flashbacks
de Alex, um de seus membros.
Descendentes de italianos, os Bor-
toletto vivem em São Paulo, num
prédio erguido por eles mesmos, na
Casa Verde, bairro popular da Zona
Norte paulistana. E é rememoran-
do seu passado, nos breves momen-
tos em que o duro presente lhe dá carrega, bem como o inevitável que os cerca também merece elo-
alguma trégua, que Alex nos conta Luiz Ruffato consegue componente socioestrutural dela. gios. Neste livro, estética e ética se
a sua história. Vítima de um trau- o grande feito de pintar Entre o silêncio penoso derivado confundem, impedindo que as es-
ma profundo, ele é obrigado a dei- da ausência de sua mãe e o amor colhas das palavras se tornem per-
um belo e vívido mosaico
xar o Brasil e partir para Somerville, profundo, mas sem intimidade, formances vazias. Se no romance
nos Estados Unidos, com o objeti- humano, sem recorrer a que Alex devota ao Pai e aos dois Estive em Lisboa e lembrei de
vo de recomeçar a vida e assegurar a expedientes simplificadores irmãos, parece impossível não se você Ruffato já havia discutido as
sobrevivência dos parentes. ou maniqueísmos que até comover com sua trajetória. Ponto dificuldades de ser imigrante, exis-
Deste modo, subsistin- poderiam tornar seu romance para Ruffato, que nos faz mergu- tem tantas diferenças entre estes
do como todo imigrante de ori- mais palatável para um lhar nos sonhos, lutas e desesperos seus livros que quase esquecemos
gem simples, ou seja, submetido a da classe média baixa brasileira de que ambos perpassam o mesmo
grande público sedento por
longas jornadas de trabalho, eco- meados do século 20, sem resvalar tema. Em O antigo futuro, to-
nomizando cada centavo e encon- uma literatura panfletária. em qualquer sentimentalismo ou da uma nova dimensão do assun-
trando dificuldades para construir condescendência infantilizante. to se apresenta e isso se dá justo
relações de afeto, num país com A profunda pesquisa históri- por conta das paisagens íntimas
cultura e língua muito diferentes ca e a escolha por uma linguagem que o autor optou por nos revelar.
das que ele conhece, progressiva- que tanto fala sobre os persona- Ao contrário de o Estive em Lis-
mente, passamos a compreender gens quanto é claramente pro- boa..., nesse seu último romance,
a imensa dor que tal personagem nunciada por eles e pelo mundo quase nenhum espaço resta pa-
JANEIRO DE 2023 | 15

TRECHO
ra qualquer desenvolvimento cô- tratos, este romance é mais bem
mico. Mesmo Tio Gilberto e suas compreendido se contemplado O antigo futuro
“loucuradas”, personagem que frente aos demais projetos ficcio-
promove o contraponto necessá- nais do autor. Eles eram muitos os Caminhou devagar, as pernas
rio para a pouco lúdica realidade cavalos, mas ninguém sabe os seus
dos meninos Bortoletto, é alguém nomes, sua pelagem, sua origem, as- pesadas, até entrever, em meio a
que guarda seus impronunciá- sim proclama Cecília Meireles, na rostos estranhos que obstruíam
veis. Ruffato consegue o grande epígrafe do primeiro romance de a frente da lanchonete, dois
feito de pintar um belo e vívido Ruffato. Para mim, resta claro que corpos tombados, o vermelho
mosaico humano, sem recorrer o norte da bússola artística do au-
a expedientes simplificadores ou O antigo futuro tor mineiro, desde os primórdios, escuro ultrajando o branco do
maniqueísmos que até poderiam LUIZ RUFFATO aponta para a solidão das grandes ladrilho. As vistas anuviaram,
tornar seu romance mais palatá- Companhia das Letras cidades e a memória dos que as cambaleou, alguém o amparou,
218 págs.
vel para um grande público seden- ocupam e sofrem. carregaram-no escada acima,
to por uma literatura panfletária, A grande literatura é aquela
mas que comprometeriam a qua- que sobrevive em qualquer épo- depositaram-no na poltrona
lidade artística do seu texto. Aliás, não é à toa que, no ca, assim como também a que verde, deram-lhe um copo de
mapa de Ruffato, Cataguases e nos permite a possibilidade de água com açúcar, afundou num
Sem soluções fáceis a Itália são sempre lugares contí- enxergarmos, nos personagens silêncio movediço. Avisado,
Antes de tudo, o autor bus- guos, vizinhos. E que, em seu reló- de um outro, um alguém de nós.
ca nos mostrar que o respeito é gio, o verão pode até tardar, mas as Recordo o romance Inferno pro- o tio Gilberto, o Artista,
sempre o afeto mais importan- relações familiares são marco zero visório, que termina com pessoas acompanhou o enterro do
te que devemos ter por aqueles de quase todas as suas narrativas. participando da corrida de São Bruno no cemitério Chora
imaginados por sua caneta. E is- Também não soa aleatória a op- Silvestre, no dia 31 de dezembro Menino, despachou o caixão
so passa por não menosprezar ou ção do autor em numerar seus ca- de 2002, cena que aponta simbo-
supervalorizar seus personagens pítulos do fim para o início, assim licamente para o início de uma do Vânderson para Colatina,
apenas por conta de suas condi- como a de nomear o último deles nova era. Faço isso porque a pu- no interior do Espírito Santo,
ções materiais. Portanto, o que en- de O futuro. Afinal, é dos silên- blicação deste texto coincide com acompanhou a Rivânia por
contramos neste romance não são cios dos desesperançados e, even- a surpreendente volta de Lula à repartições públicas para tratar
soluções fáceis ou dedos aponta- tualmente, ressentidos, que se presidência da República, depois
dos para nenhum espantalho, pois compõe este trabalho. Tampou- de quatro anos de trevas do go- das pensões do marido e do
ainda que enfrentem dificuldades co é gratuita a dedicatória para verno Bolsonaro. E porque pen- concunhado.
semelhantes e compartilhem re- seus descendentes e antepassa- so que tal acontecimento político
ferências, as figuras que Ruffa- dos. Se no início do romance en- permitirá uma inesperada cama-
to nos apresenta são complexas e contramos expressões em inglês, da interpretativa para O antigo
dotadas da inteira gama de senti- língua hoje dominante, nos ca- futuro. Temos mesmo o direito
mentos que compõe a condição pítulos seguintes, ou seja, no fu- de sonharmos tempos melhores?
humana. Universal em suas parti- turo passado, o italiano era que Ou algo está mudando para que
cularidades, O antigo futuro não dava as cartas, procedimento es- tudo continue como está, nos
parece desejar oferecer ao leitor tilístico que traduz perfeitamente moldes do que proclamou Lam-
qualquer promessa ou afago, mas as transformações geopolíticas que pedusa, em O leopardo? Ver-
sua leitura, ainda que densa, re- sustentam nosso cotidiano. Res- dadeiramente, uma nova era de
vela-se surpreendentemente flui- salto tais alicerces do texto porque alterações estruturais se anun-
O AUTOR
da e prazerosa. Assim, para além jamais acreditei que, no exercício cia? A desigualdade fundante
da importante dimensão políti- literário, é possível segregar, de fa- deste país e as tensões que tanto LUIZ RUFFATO
ca da narrativa, destaca-se, espe- to, forma de conteúdo. acompanhamos serão mitigadas?
Nasceu em Cataguases (MG), em 1961.
cialmente, a maestria com a qual Bom, somente o cotejo entre o
Publicou diversos livros, entre eles
o autor desenvolve as subtramas e Solidão e memória que virá e os termos de O an- Inferno provisório, De mim já nem se
os conflitos íntimos daqueles que Tais elementos se fazem tão tigo futuro nos revelará se dias lembra, Flores artificiais, Estive em
povoam suas páginas. igualmente fundamentais para melhores são apenas miragens ou Lisboa e lembrei de você, Eles eram
Se são múltiplos e singulares a consecução de uma boa histó- algo a ser mesmo concretizado. muitos cavalos, A cidade dorme e O
os personagens desta obra, pode- ria que se tornam coisa insepará- De tudo, portanto, resta apenas verão tardio. Suas obras ganharam
mos também destacar o modo es- vel. E penso também que, como uma certeza. É preciso dar con- os prêmios APCA, Jabuti, Machado
colhido por Ruffato para lhes dar quando diante do passar do tem- ta do presente. E, diante de uma de Assis e Casa de las Américas, e
vida. Dividido em cem breves ca- po, em que, por exemplo, não so- obra como esta, a literatura bra- foram publicadas em quinze países.
pítulos, O antigo futuro se anco- mos capazes de perceber seu fluxo sileira contemporânea vai muito Em 2016, foi agraciado com o prêmio
ra na vertigem como estratégia de sem o auxílio de calendários ou re- bem, obrigada. Hermann Hesse, na Alemanha.
compreensão daquilo que está no
nosso entorno e que insistimos ADRIANA VICHI

em nomear de realidade, apesar


da grande parcela do que dela nos
escapa. Também não passa des-
percebida a intenção do autor em
nos fazer assumir certas responsa-
bilidades, diante de um passado
que, se num primeiro momento
se apresentou como farsa, se tor-
nará tragédia certa em qualquer
futuro próximo. Sem determinis-
mos ou adesões cegas, Ruffato nos
recorda lições importantes de um
certo filósofo alemão.
Desse modo, os destinos
tristes dos integrantes da última
geração dos Bortoletto, trabalha-
dores urbanos como tantos ou-
tros, talvez não devam ser mesmo
colocados apenas na conta do aca-
so. É provável que Deus somente
exista quando certas linhas per-
manecem sem serem cruzadas.
Sim, é fato que para todos exis-
tem paraísos e infernos, mas pou-
quíssimos são os que ocupam a
condição de eleitos perpétuos do
céu/olimpo deste nosso país mar-
cado por tanto descaso.
16 | JANEIRO DE 2023

wilberth salgueiro
SOB A PELE DAS PALAVRAS

TRADUZIR, DE
do livro: “Um dos pontos mais altos — concretos —
da poesia recente: o poema Traduzir. Talvez seja o mo-
mento de maior invenção do livro”. Para Dolhnikoff,

CARLITO AZEVEDO
o poema não passa de “uma imitação despudorada de
Augusto de Campos”, e procura apontar semelhanças
— penso que frágeis — entre o poema visado (de Car-
lito) e o imitado (de Augusto).
De certo modo, Dolhnikoff antecipa reflexões
que viriam no também duro artigo intitulado Nega-
tivo e ornamental: um poema de Carlito Azevedo em
(dua s(li ng(u age( de confluiria a cultura poética so- seus problemas (2011), de Iumna Maria Simon e Vi-
nsd) if)e r)en )tes bre ela, num processo constante nicius Dantas. Neste, faz-se uma crítica radical a um
(uma s(on an(t e&a( de desmetaforização e remetafo- poema do escritor carioca, Na noite física, lido como
OUT) ra)a u)se )nte rização (tal aspecto Hugo Frie- paradigmático de um tipo de fazer poesia no Brasil
(lua m(IN gu(a nte( drich desenvolve em seu clássico que, em suma, primaria por efeitos esteticistas em de-
lua) cr)e s)ce )nte Estrutura da lírica moderna, de trimento de uma opção pelo real histórico. Contra

J
1956; no Brasil, em 1978). os argumentos do artigo de Simon e Dantas, Susana
á nas páginas primeiras de seu primeiro Poucos, pouquíssimos es- Scramim escreve A crítica brasileira de poesia contem-
livro, Collapsus linguae, de 1991, e já critores (não só poetas) resistiram porânea: velhos debates, outras máscaras (2012), e sai
premiado com o Jabuti, Carlito Azeve- à tentação de tomar posse da lua em veemente defesa do poema e do poeta Carlito, so-
do dá a ver Traduzir, poema que transi- (feito o Calígula na peça de Ca- bre o qual escreveu o volume da importante coleção
ta entre o verbal e o visual. Se traduzido em versos mus), dar a ela uma forma. Não à Ciranda da Poesia (Eduerj, 2010).
comuns, o poema assim ficaria: duas linguagens/ toa, o antológico Poema de sete fa- Fato é que a obra de Carlito tem atraído a aten-
diferentes/ uma sonante/ e a outra ausente/ lua min- ces (1930, Alguma poesia) termi- ção de grande parte de nossa crítica: além de Susana
guante/ lua crescente — expressivo, mas bem lon- na de modo apoteótico: “Eu não Scramim, críticos do porte de Antonio Carlos Sec-
ge dos efeitos que o poema verdadeiro e original devia te dizer/ mas essa lua/ mas chin, Célia Pedrosa, Flora Süssekind, Heloisa Buar-
provoca. O sinal de parêntesis em movimento, a esse conhaque/ botam a gente co- que de Hollanda, Italo Moriconi, Luiz Costa Lima,
exata distribuição das letras, as palavras em maiús- movido como o diabo”. Antes de Silviano Santiago, Valdir Prigol e Viviana Bosi têm
culo e a paratática homologia entre os versos e seus Drummond, Álvares descrevia a dedicado textos e elogios à obra do poeta e tradutor
componentes dão ao poema um tom inaugural. amada dormindo, “Como a lua formado em Letras pela UFRJ, editor da badalada re-
Seguindo as fases da lua, sigamos o poema: por noite embalsamada”; Alphon- vista Inimigo Rumor e da coleção Ás de colete. Outra
(((( pelos seis versos, os parêntesis se deslo- sus, por sua vez, revelou para on- prova de reconhecimento veio dos próprios poetas:
cam de modo similar e harmonioso, sugerindo o de olhava sua trágica personagem: os 54 poetas convidados pelo Suplemento Literário de
próprio caminhar da lua. Os sinais “)” e “(“, de fe- “Quando Ismália enlouqueceu,/ Minas Gerais, numa edição especial de maio/2013,
cho e abertura, correspondem, iconicamente, às Pôs-se na torre a sonhar…/ Viu a indicarem “um único poema produzido por autor
fases intermediárias da lua (minguante e crescen- uma lua no céu,/ Viu outra lua no nascido a partir de 1960”, escolheram 52 poemas de
te), e não às plenas (cheia e nova); mar”. Já de 1947 é Serenata sinté- 40 autores, e Carlito foi o poeta com mais poemas
)))) cada verso se regula por quatro blo- tica, de Cassiano Ricardo: “Rua/ (cinco) indicados pelos pares.
cos de quatro elementos: três letras e um parên- torta.// Lua/ morta.// Tua/ porta” A abundância de citações e de diálogos intertex-
tesis. Este passa pelas letras, cortando-as, como — sobre o qual há brilhante aná- tuais é, sem dúvida, um traço da poesia contemporânea,
a lua pelas nuvens (ou vice-versa), produzindo lise de José Américo Miranda em e a poesia de Carlito não escapa a esses procedimentos.
inesperadas combinações, o que reforça o efeito Entre o instante e o tempo: um poe- Na última página do livro Monodrama, de 2009, fi-
de estranhamento: age, r)en )tes, s(on, e&a(, u)se, ma de Cassiano Ricardo (1994). nalista do Portugal Telecom (atual Oceanos), há uma
m(IN, (lua / lua), cr)e; Manuel Bandeira surpreende e, lista de “agradecimentos e ‘coro’” com 25 nomes, en-
(((( além desses efeitos, o poema elabora em 1960, publica Satélite. An- tre os quais lemos: Philippe Ariès, Pina Bausch, Samuel
novas dobras ao ressaltar os polos opostos OUT tes, em 1942, Cecília Meireles fez Beckett, Henri Bergson, Philip K. Dick, Hans Mag-
e IN, vindos de dentro dos termos outra e min- Lua adversa, e Vinicius fez Canção nus Enzensberger, Claude Lanzmann, Bia Lessa, Jorge
guante e carregando, bilíngues, os sentidos de fora de ninar meu bem, em 1962. No de Lima, Tzvetan Todorov, Mark Twain, Tristan Tza-
e dentro, qual o movimento em vaivém da lua- campo da canção, como não lem- ra — pequena mostra do imenso paideuma do qual o
-parêntesis no texto; brar Lunik 9 de Gil (1967), e Lua poeta se apropria em sua obra.
)))) se o sentido de “traduzir” é “transpor de lua lua lua de Caetano (1975)? O Se Traduzir é um poema que aciona a heran-
uma língua para outra” e por extensão “explicar, poeta Bith, em Digitais (1990), ça da poesia visual, é também um poema que aciona
submeter a uma interpretação”, o poema Tradu- registrou em modo haicai: “mais um tema (objeto, imagem, metáfora), a lua, tão an-
zir trata de duas linguagens, a verbal e a visual, fa- uma vez: lua/ tão redonda e tanto cestral quanto contemporâneo, e assim, sem citar ex-
zendo dialogar fixidez e movimento, o dentro e tempo/ nem minha nem sua”. No plicitamente um outro poema ou poeta, cita de uma
o fora (OUT/IN), o maiúsculo e o minúsculo, o Rascunho n. 208, de agosto de só vez todos aqueles que, nalgum momento, de al-
minguante e o crescente e, sobretudo, uma lin- 2017, analisei o belo e triste poe- guma forma, lidaram com o signo “lua”. Nesse sen-
guagem que produz som e outra que não: (uma ma de Leminski: “lua à vista/ bri- tido, lembremos outro poema de Leminski, de La
s(on an(t e&a( // OUT) ra)a u)se )nte. Som e si- lhavas assim/ sobre auschwitz?”. vie en close: “celeumas luas/ onde se lê uma/ leiam-se
lêncio. Poema e lua. Os exemplos tendem ao infinito. duas”. No poema do curitibano, o engenho de “tri-
Com esse poema, Carlito passa — desde Ou seja, é sempre um risco partir” o substantivo “celeuma” em “se lê uma” parece
a estreia — a pertencer à imensurável legião de (o risco do bordado, diria Autran) encenar a visão diplópica, enquanto encena também
poetas que se renderam ao fascínio da lua. Italo o poeta lançar-se ao uso de me- a estrutura de uma errata. Considerando, no entan-
Calvino, ao falar de Leopardi em Seis propostas táforas tão recorrentes. Esse ris- to, essa vasta tradição de poemas que falam da lua,
para o próximo milênio, diz que, “Desde que co Carlito não evita, enfrenta-o, e os poemas de Leminski e de Carlito percebem que
surgiu nos versos dos poetas, a lua teve sempre o para fugir à mesmice e ao estereó- uma lua nunca é somente uma lua, nem duas, mas
poder de comunicar uma sensação de leveza, de tipo tem como inspiração o que um complexo signo que incorpora história e mito,
suspensão, de silencioso e calmo encantamento”. diz em Da inspiração, poema que que movimenta ciência e fantasia, que entrecruza lin-
Poucos signos, feito a lua, na história das artes e vem, em Collapsus linguae, logo guagens e repertórios.
da poesia, atravessam e permanecem, incólumes após a Traduzir: “Desconfiar do Nesse entrecruzamento, é plausível supor que o
e por séculos, como fetiche no desejo dos sujei- estalo/ antes de utilizá-lo// mas poema Traduzir de Carlito Azevedo (1991), seja uma
tos, o que leva, inevitavelmente, à produção de sendo impossível/ de todo aboli- espécie de resposta à questão final de Traduzir-se, de
incessantes clichês e de poemas de lesa-lua. Nou- -lo// desconfiar do estalo/ dar ao Ferreira Gullar (Na vertigem do dia, 1980): “Tradu-
tras palavras, é sempre um desafio para os poetas estalo estilo”. Não é o que pen- zir uma parte/ na outra parte/ — que é uma questão/
lidar com signos, imagens, metáforas tão usados, sa, contudo, o poeta e crítico Luis de vida ou morte — / será arte?”. As “duas linguagens
surrados, desgastados. Dolhnikoff, em seu rigoroso ar- diferentes” — uma que é minguante e outra que é cres-
A lua, sua magia e seus segredos noturnos tigo Relendo Carlito Azevedo ou cente, uma que soa e outra destoa (porque ausente),
se tornaram das mais constantes fontes de inspi- Um caso exemplar da poesia brasi- uma lua no céu e outra no papel, uma lua real e outra
ração para os românticos (para não irmos muito leira contemporânea (2009), que, lua na arte — não são ecos de uma pergunta que, sem
longe). A seguir, os modernos (de ponta) a de- a despeito de pontuar que Carli- solução, ecoa sem cessar? Mesmo indiferente a nos-
sinvestiram de seu caráter etéreo, misterioso e au- to “tem talento com as palavras”, sos anseios e fetiches terrenos, a lua é o astro em torno
rático, tratando-a ora como objeto de pesquisa discorda frontalmente do que diz do qual tanta arte, tanta poesia se produz, séculos afo-
científica, ora já localizada num espaço para on- José Lino Grünewald na orelha ra. É lua aqui, lua lá, lua para todo brilho e paladar.
JANEIRO DE 2023 | 17

inquérito
REPRODUÇÃO

ANTONIO CARLOS SECCHIN

ATÉ O LIMITE
Ana à esquerda

C
ANTONIO CARLOS SECCHIN
uriosamente, o poeta Martelo
124 págs.
Antonio Carlos Secchin
queria ser romancista.
Aos 14 anos, já tinha
dois livros em prosa, um pronto e
outro inacabado. “Só depois pas-
sei para a poesia. Em geral, é mais
frequente o roteiro inverso”, reve-
la o autor de Ana à esquerda, li-
vro de narrativas recém-lançado
pela Martelo.
Sétimo ocupante da ca-
deira nº 19 da Academia Brasi- não atravessasse logo o livro todo, potencialmente, 2 milhões de ou- • Qual escritor — vivo ou morto
leira de Letras (ABL), eleito em pediria que ele ao menos conser- tros livros. Hoje, claro, é exemplo — gostaria de convidar para um
2004, Secchin começou a publi- vasse por perto Viva o povo bra- de obra descartável, tornada obso- café?
car no início dos anos 1970. Além sileiro, de João Ubaldo. leta pelo comércio eletrônico. Alguém que topasse rachar a
de vasta obra poética, dedicou-se conta. Os figurões só aceitariam o
também à reflexão da produção de • Quais são as circunstâncias • Que defeito é capaz de des- convite para serem incensados. Os se-
autores como João Cabral de Me- ideais para escrever? truir ou comprometer um li- cundários, os esquecidos, os não bio-
lo Neto e Cruz e Sousa. A ideal é, paradoxalmente, vro? grafados, teriam ótimas histórias para
Com uma vida dedicada a mais aflitiva: a pressão do prazo. A pretensão de “retratar a contar. Como o juízo da posteridade
aos versos, a poesia continua sen- realidade”, como se a linguagem não lhes diz respeito, ficariam à von-
do essencial em sua rotina de lei- • Quais são as circunstâncias literária fosse feita de signos trans- tade para dizer o que quisessem, sem
tor. Ele também revela que sente ideais de leitura? parentes com a função de servir a censura.
mais prazer na reescrita do que Não ter ninguém por perto. algo externo a ela.
na criação e que uma das coisas • O que é um bom leitor?
que o irritam no meio literário é a • O que considera um dia de • Que assunto nunca entraria Todo autor é uma invenção de
“empáfia com que alguns exibem trabalho produtivo? em sua literatura? seu leitor. Bom leitor é aquele que en-
suas certezas sobre como deve ser Aquele cujo resultado eu A questão, para mim, não é sina ao autor que ele é bem diverso do
a ‘verdadeira’ literatura”. não apago na íntegra no dia se- o assunto, mas o tom. Se for pan- que supunha ser.
E se pudesse indicar um li- guinte. fletário, edificante... estou fora. A
vro para o novo presidente do literatura é um manual de maus • O que te dá medo?
Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, • O que lhe dá mais prazer no modos. Perder a autocrítica. Conviver
Secchin indicaria o romance Viva processo de escrita? mal com a decadência, física e mental.
o povo brasileiro, de João Ubal- A reescrita. Refazer o escri- • Qual foi o lugar mais inusi-
do Ribeiro. “Mesmo que Lula não to, operar em sintonia fina, até o tado de onde tirou inspiração? • O que te faz feliz?
atravessasse logo o livro todo, pe- ponto de dizer: não dá mais, estou A asa esquerda de uma bor- Não sou muito exigente. Uma
diria que ele ao menos o conser- no meu limite. boleta da Finlândia. Foi a imagem vitória do Botafogo já está de bom ta-
vasse por perto.” que me ocorreu para representar manho.
• Qual o maior inimigo de um a alienação a-histórica dos estu-
• Quando se deu conta de que escritor? dos literários na década de 1970, • Qual dúvida ou certeza guiam
queria ser escritor? Primeiro, diluir-se na re- quando cursei a Faculdade de Le- seu trabalho?
Muito cedo percebi que não petição de um estilo alheio. Na tras. A certeza de que tudo pode ser
era bom em números, e que po- sequência, liberto do outro, tor- mais bem dito. A dúvida é se de fa-
dia compensar isso com as letras. nar-se prisioneiro de seu próprio • Quando a inspiração não to pelo menos consegui chegar perto
Talvez tenha me tornado escritor estilo. vem... desse melhor dizer.
para fugir da matemática. Aos 14 Respeito a sua ausência. A
anos, já dispunha de um roman- • O que mais o incomoda no inspiração deve ter bons motivos • Qual a sua maior preocupação ao
ce inconcluso e de outro comple- meio literário? para esse sumiço. escrever?
to. Só depois passei para a poesia. A empáfia com que alguns Não relaxar na batalha contra o
Em geral, é mais frequente o ro- exibem suas certezas sobre como lugar-comum.
teiro inverso. deve ser a “verdadeira” literatura.
• A literatura tem alguma obriga-
• Quais são suas manias e ob- • Um autor em quem se deveria ção?
sessões literárias? prestar mais atenção. Sim. Reafirmar que não tem
Tenho obsessão pelo rit- No passado, José de Alen- obrigação nenhuma.
mo, em prosa ou em verso. Ne- car, massacrado por uma cruel,
nhuma frase inimiga da música. injusta, comparação com Macha- • Qual o limite da ficção?
Ainda que dissonante, de vez em do de Assis. Alencar, com todos A ficção começa quando a reali-
quando. os seus equívocos, foi um gran- dade se esvai. Isto é, a todo momento.
de pensador do Brasil, mas hoje Por isso a ficção é ilimitável e inesgo-
• Que leitura é imprescindível quase ninguém o lê. No presen- tável.
no seu dia a dia? te, a lista seria grande. Os poe-
Duas leituras, para mim, tas Adriano Espínola, Emmanuel • Se um ET aparecesse na sua fren-
diárias e inadiáveis: poesia e bo- Santiago e Leonardo Antunes, por te e pedisse “leve-me ao seu líder”,
letos em véspera de vencimento. exemplo. a quem você o levaria?
Responderia: “Serve o vice-lí-
• Se pudesse recomendar um li- • Um livro imprescindível e um der? Nesse momento o Alckmin es-
vro ao presidente Lula, qual se- descartável. A questão, para mim, tá mais disponível”.
ria? No mundo pré-internet, or- não é o assunto, mas o
Primeiro, recomendaria que ganizei um Guia dos sebos de 14 • O que você espera da eternidade?
jogasse fora toda a biblioteca de capitais brasileiras. Para mim, que
tom. Se for panfletário, Cito dois versos de um antigo
seu antecessor, constituída, pare- sou bibliófilo e viajava muito, tra- edificante... estou fora. poema: “Tanto faz minha sorte ou
ce, de uma única obra, do coronel tava-se de um livrinho imprescin- A literatura é um manual meu inferno,/ Não tenho tempo para
Ustra. Depois, mesmo que Lula dível, pois continha dentro de si, de maus modos.” ser eterno”.
18 | JANEIRO DE 2023

josé castilho
LEITURAS COMPARTILHADAS

2023: O ANO DO
ESPERANÇAR

H
á um ano, o título de minha coluna ex-
pressava o sentimento de boa parte da-
queles que não suportavam mais viver sob
o agora ex-mandatário e, ao mesmo tem-
po, resistiam a ele e sua insistência em submeter a
nossa jovem democracia aos lances fascistas de seu
desgoverno. Intitulada 2022: o esperançar das triste-
zas, a coluna procurou saudar o novo ano que che-
gava ainda prenhe de sofrimento cívico e pessoal.
Estavam em pleno desenvolvimento, e pareciam
não ter fim, os horrores que ainda nos atormen-
tam: ataques à democracia, desrespeito aos direitos
humanos, impunidade dos corruptores dos cofres
públicos e dos usurpadores da cidadania, tudo isso
com o incentivo das mais altas autoridades do país.
Pior, vislumbrava-se a possibilidade desse horror se
perpetuar por mais quatro anos nas eleições que vi-
riam em outubro.
Naquele início de ano, onde tínhamos muitas
tristezas acumuladas e poucas perspectivas em supe-
rá-las, foi preciso tirar delas a esperança ativa e, con-
sequentemente, a força para se opor ao projeto do
tirano. Era preciso também procurar saídas que nos
resgatassem as perdas reais, morais e de cidadania
que seguíamos sofrendo desde o golpe antidemocrá-
tico que destituiu uma presidente eleita e sem culpa
de qualquer crime que a levasse ao impedimento de
suas funções constitucionais.
Sintetizei no artigo de janeiro de 2022 o que
havíamos perdido: “perdemos como coletividade,
como nação, valores simples, daqueles que se es-
peram entre conhecidos e amigos, entre vizinhos
de um mesmo território, algo como a confiança
de que podemos falar livremente sem riscos de ser-
mos agredidos. Perdemos a compaixão com os me- Ilustração: Conde Baltazar
nos favorecidos pela sociedade desigual, a empatia
com atingidos pelas enfermidades e pelo desempre-
go, a solidariedade pelos injustiçados, o respeito Aos ativistas que formam mesmo sob dificuldades notórias em todos os quadrantes do Brasil.
aos direitos humanos”. leitores e leitoras em todos os can- pelas quais o país passa, de reer- Lembro aos amigos e ami-
Se esses vaticínios de ano novo infelizmente tos do Brasil caberá uma atividade guer os programas e ações que gas escritores, editores, livreiros,
ocorreram em 2022, igualmente se confirmou a for- diuturna e imprescindível: além formam leitores no país. distribuidores, bibliotecários e tra-
ça e a presença daqueles movimentos sociais que re- de não esmorecer na luta pelo di- Não podemos e não deve- balhadores em bibliotecas, conta-
sistiram e souberam construir saídas no meio do caos reito à leitura para todos e conti- mos deixar somente aos governos dores de histórias, mediadores de
fascista. E essa construção não poderia ter melhor nuar a formar mais e mais leitores a recordação de que é preciso agir leitura, e a todas as associações re-
desfecho do que a derrota do presidente inominá- e leitoras, é preciso também auxi- pela leitura e pelo livro, por mais presentativas do setor, que somos
vel em outubro, com o triunfo da maioria dos vo- liar o novo governo Lula a cum- confiança que tenhamos nas lide- excessivamente silenciosos e pou-
tos populares elegendo o candidato da democracia prir sua promessa de campanha ranças. Caberá sempre à sociedade co nos fazemos ouvir pelos gover-
e dos direitos humanos para a presidência. Escrevi — mais livros e menos armas. Na civil organizada e aos ativistas da nos e pela sociedade, salvo raras
assim há um ano: “A resiliência pulsa, recordemos, e coluna de dezembro, já tratei dos cultura e da educação o dever de e episódicas exceções. É o mo-
2022 é a hora de dar consequência a ela expulsando caminhos a seguir com a reprodu- recordar/reivindicar/cobrar/parti- mento, na retomada democrática
o que nos entristece e recomeçando a reconstruir o ção dos dez pontos que ativistas cipar do processo de reconstrução representada pela eleição do pre-
que nos foi tirado da política pública”. do livro, da leitura, da literatura do novo arcabouço do Estado bra- sidente Lula e por seu ministério
O balanço de 2022, apesar de todos os sofri- e das bibliotecas endereçaram em sileiro e de suas políticas de for- plural que representa a sociedade
mentos, angústias e percalços, é positivo quando Carta aberta ao presidente e a todos mar leitores sob os quatro eixos do brasileira, que gritemos mais alto
constatamos que soubemos, democraticamente, ex- os democratas brasileiros. PNLL, hoje perpetuados na PN- as nossas reivindicações e que es-
pulsar o que nos entristece e recomeçar o Brasil ple- Não é necessário repetir o LE: democratização do acesso ao ses gritos sejam sempre acompa-
no de liberdades, de direitos e de deveres pautados que já foi dito, mas é importan- livro e à leitura em todos os seus nhados da mensagem inequívoca
pela Constituição, pelas leis e pela busca da harmo- te lembrar que se já nos expressa- suportes; incentivo e formação de que um Brasil de leitoras e leitores
nia nos territórios coletivos que toda sociedade mi- mos enquanto ativistas sobre os mediadores e mediadoras de lei- plenos é o mais eficaz instrumen-
nimante organizada conquista. caminhos, é fundamental que au- turas; zelo e incremento ao valor to para a emancipação civilizató-
Portanto, que comece 2023, ano do esperançar xiliemos o novo governo sendo vi- simbólico do livro, das leituras, ria de seu povo. E, antes de tudo,
freiriano, que necessitará ainda e tanto da resiliên- gilantes, participantes e atuantes das literaturas e das bibliotecas; é um direito humano.
cia dos ativistas pelos direitos, pela civilidade e pela em todos os aspectos e desdobra- apoio e incentivo ao desenvolvi- Se a leitura por si só não
liberdades democráticas. Não nos iludamos que se- mentos da regulamentação da lei mento da economia do livro. transforma o ser humano em um
rá fácil a reconquista de um estágio civilizatório que 13.696/2018, da Política Nacio- Se nos últimos anos o ati- democrata antifascista, é certo
começávamos a consolidar após 30 anos do final da nal de Leitura e Escrita/PNLE, e vismo foi de total resistência aos que um leitor ou leitora terá ins-
ditadura de 1964. A divisão do país é mais que evi- da construção do novo Plano Na- ataques fascistas contra o livro e a trumentos mais aguçados, na era
dente, e a parcela da sociedade que está sob as ordens cional do Livro e Leitura/PNLL leitura, evidenciados pela destrui- da super informação e do conheci-
ou sob a manipulação subversiva da extrema direita decenal. Empossado o novo presi- ção das políticas públicas federais mento múltiplo, para compreen-
mostra suas garras violentas com atos terroristas que dente e seus ministros/as da Cul- do setor, o próximo quadriênio se- der e rechaçar as investidas das
agridem e assassinam brasileiros, interrompem o di- tura e da Educação, é importante rá do esperançar que não renuncia a mentiras cotidianas, da violência
reito de ir e vir, queimam propriedades e bens públi- dar consequência às intenções de se fazer ouvir, de exigir planos, pro- social, do autoritarismo opressor
cos, atacam a justiça e a liberdade de expressão e de inclusão de todos e todas à cul- gramas, ações e investimentos do e do lugar dos direitos e deveres
vinculação a partidos ou às causas emancipatórias. tura e à educação e criar meios, Estado para a formação de leitores em uma sociedade organizada.
JANEIRO DE 2023 | 19

Universo onírico
TRECHO
América Latina
Esse pertencimento, aliás, O manto da noite
não se limita apenas à história
contada em primeiro plano, já Eu olho para os meus pais com
que também abrange um sub-
texto tão profundo quanto a desconfiança, serão eles mesmos?
Carola Saavedra explora diferentes gêneros literários em trama principal. Talvez aquilo não passe de
O manto da noite, narrativa sobre identidade e pertencimento Há na prosa ritmada de uma alucinação provocada pelo
Carola Saavedra uma história cansaço, penso. Minha filha,
paralela que se mostra pouco a
pouco, palavra a palavra. Trata- a sua mãe quer te dizer algo.
BRUNO INÁCIO | UBERLÂNDIA – MG
-se de uma mitologia que ho- Sim, o que foi? A mulher que
menageia povos originários, diz ser a minha mãe me lança
CAMILLA LORETA reforça a potência da América um olhar triste, diz: sinto não
Latina e conclama aquele sen-
timento de unidade tão caro a ter sido a mãe que você queria
pensadores como Lélia Gonza- ter tido. Eu olho para o trem,
lez, Darcy Ribeiro, Ángel Rama quase através dele, a paisagem.
e Eduardo Galeano.
Aqui, em meio a mui-
tos outros méritos, a escrito-
ra apresenta um livro que não
se encerra em si. Não se trata,
obviamente, de uma obra a ser
completada por leitores e leito-
ras, mas sim de um texto que
flerta com a complexa história
de uma América Latina que —
assim como a protagonista —
continua a buscar sua própria
identidade.

As seis partes
A divisão do livro em
seis partes (Pré-escrito, Primei-
ros anos, Cordilheira, O diá-
rio carioca, Caliban à deriva e
Pós-escrito) possibilita, além de
transições orgânicas, a abor- Relações familiares
dagem mais profunda de cer- Há ainda uma oscilação
tos aspectos desse universo tão no campo das relações familia-
bem construído. res, com momentos de afasta-
Cada parte recorre à sua mento e desconfiança e outros
própria linguagem e faz contri- de pertencimento e segurança.
buições necessárias à narrativa, Além dos pais, da avó e do ir-

C
sem a pretensão de apresentar mão da protagonista, o concei-
A AUTORA
aminhar por uma obra A narrativa abre espaço pa- verdades inquestionáveis ou en- to de família parece se estender à
de Carola Saavedra é ra a dramaturgia e até esboça uma CAROLA SAAVEDRA tregar respostas fáceis. Os frag- Cordilheira, que em certos mo-
sempre uma delicada ficção científica existencialista, tu- mentos esclarecem um ponto, mentos ocupa um papel de mãe-
É autora de Toda terça, Flores
surpresa. A consagrada do isso sem que o fio condutor do para, logo em seguida, estabe- -ideal, num processo que toma
azuis, Paisagem com dromedário,
autora de Flores azuis (2008) e enredo seja esquecido. Para tanto, O inventário das coisas ausentes,
lecer outra dúvida. forma a partir da transferência.
Com armas sonolentas (2018) estabelece, desde as primeiras pá- Com armas sonolentas, O
Em O manto da noite, A princípio, pode até pare-
parece ter construído um uni- ginas, um clima onírico, respon- mundo desdobrável e Um quarto os personagens ou mesmo a cer que os traumas e conflitos mal
verso ficcional próprio, em que sável por conferir à trama uma é muito pouco. Seus livros já memória, elemento tão perti- resolvidos ficarão reservados ao
múltiplas narrativas se alinham, dinâmica própria de tempo, es- foram traduzidos para o inglês, nente ao enredo, estão distan- plano de fundo da história, ou que
ainda que seus romances não es- paço e ritmo. francês, espanhol e alemão. tes da posição endeusada da serão confessados apenas à Cordi-
tejam ligados entre si. Nessa história em que iden- Certeza. Na quarta parte, por lheira em uma busca desesperada
Há em alguns de seus prin- tidade e ancestralidade se entrela- exemplo, há um esquecimento por aprovação. Nem um, nem ou-
cipais personagens a busca por çam, pessoas desaparecem de uma acidental que mais parece um tro. A autora aborda essas questões
uma autocompreensão tão sub- hora para outra, distâncias imen- ato falho, ainda que a perso- por meio de frases soltas, pequenas
jetiva quanto inalcançável. A es- sas são percorridas em instantes e o nagem central não tenha nota- recusas e lembranças que voltam
critora sabe disso. E, assim, evita que foi pode nunca ter sido. Há es- do isso (ou finge não perceber). à tona. Para isso, faz das muitas
soluções prontas ou epifanias paço para diálogos profundos com E por falar no tom con- possibilidades proporcionadas pe-
transgressoras que só existem em a Cordilheira e até permissão para fessional de O diário carioca, o lo sonho meios para reencontros,
filmes hollywoodianos. que perguntas infantis obscuras se- intervalo entre as datas de cada conversas e despedidas.
Desde seu primeiro roman- jam feitas (e repetidas) em voz alta. acontecimento narrado serve
ce, Carola Saavedra não tem me- O clima onírico é um con- como complemento à história, Reencontro
do de arriscar. Toda terça (2007) vite para sonhar junto, ideia pa- ao permitir uma observação pri- com o passado
é uma referência na construção de recida com a tese defendida pela vilegiada da relação estabelecida O manto da noite caminha
diálogos, enquanto O inventário personagem Nina, de O inven- entre a protagonista e seu diário. por muitos terrenos e não se per-
das coisas ausentes (2014) brin- tário das coisas ausentes, ao São esses intervalos que de em nenhum. Carola Saavedra
ca com a metalinguagem ao se di- explicar por que considera ir deixam subentendida a maneira mais uma vez demonstra origina-
vidir em duas partes: Caderno de acompanhada ao cinema algo que a personagem se sente em lidade, sensibilidade e um olhar
anotações e Ficção. muito íntimo: você fica ali no es- relação ao livro que almeja es- aguçado para questões como
Agora, após explorar gêne- curo, ao lado da pessoa, os dois crever. As diferentes frequências identidade, solidão, memória e
ros como o ensaio em O mun- em silêncio, é como se você dor- servem para expressar empolga- ancestralidade. Sua narrativa flui
do desdobrável (2021) e a poesia misse ao lado dela e sonhasse o ção, foco em outra atividade, sa- e ecoa, abraça e entorpece, apro-
em Um quarto é muito pouco mesmo sonho. tisfação e, por fim, insegurança. xima e desorienta.
(2022), a autora retorna ao ro- E a sensação proporcionada Também merece destaque O romance é uma delicada
mance em O manto da noite. pelas páginas de O manto da noi- a quinta parte do livro, Caliban viagem ao desconhecido e, mais
No entanto, categorizar o te é exatamente essa. É possível ex- à deriva, uma peça que respon- ainda, o reencontro com um passa-
novo livro de Carola Saavedra co- perimentar dúvidas e conflitos, de algumas questões, levanta ou- do que pulsa e ressoa dentro e fora
mo romance é mera formalidade, encarar o passado e, em determi- tras e estabelece, de uma vez por dos sonhos. É um grande exemplo
até porque, mais do que nunca, a nado momento, se deparar com O manto da noite todas, os elementos mitológicos de singularidade e subversão às es-
escritora recorre aos múltiplos gê- um sentimento de pertencimen- CAROLA SAAVEDRA dessa aventura que se apresenta truturas narrativas convencionais,
neros literários para romper bar- to tão intenso e acolhedor quanto Companhia das Letras como um exemplo bem-sucedi- com toda a delicadeza que pede
reiras imaginárias. o mais sincero dos abraços. 156 págs. do de realismo onírico. uma boa obra literária.
20 | JANEIRO DE 2023

O ajuste de contas
Então, A. J. Barros vai tentar responder a esta
pergunta.
A narrativa é dividida em vários livros, que são
estruturados em capítulos, cada um desenvolvendo de
certa forma, a viagem que Maurício, o personagem
principal, empreende através de vários países, dando
Em trama policial muito bem urdida, O portão do não retorno expõe ênfase à África. A história começa com um assassina-
as feridas causadas pelo genocídio dos colonizadores na África to na Irmandade dos homens pretos, uma associação
com sede em São Paulo. Um amigo do protagonis-
ta, que detém um determinado segredo, é morto por
HARON GAMAL | RIO DE JANEIRO – RJ pessoas desconhecidas. A vítima deixa algumas di-
cas ao amigo. Este parte com o objetivo de resolver o
enigma. A partir daí, segue-se uma trama de roman-
ce policial, com vários personagens típicos e situa-
DIVULGAÇÃO ções clichês, que envolvem muitos perigos. Maurício
vai aos Estados Unidos, mais precisamente a Chica-
go, em busca de um famoso professor universitário.
Deste ponto em diante, com a ocorrência de vários
atentados e outras mortes, empreenderá um périplo
por vários países africanos.

Estofo cultural
O pano de fundo do livro é a exposição de várias
etnias e/ou antigas civilizações africanas, mostrando a
superioridade e o esplendor de muitas delas. Cada país
em que Maurício visita, o narrador nos presenteia com
a história local, com um estofo cultural desconhecido
para a maior parte dos leitores.
Dentro do âmbito da narrativa policial, há o
personagem que não é um detetive profissional, mas
maneja a investigação com sorte e com pessoas que
aparecem inesperadamente para ajudá-lo. Aqueles que
são realmente policiais acabam tornando-se coadju-
vante na mão deste homem que sai a campo, per-
correndo todos os locais possíveis, para completar a
profecia sob a qual está submetido e revelar o segre-
do do enigma inicial.
O autor, que já vem de outros romances em que
desenvolve o gênero fantasia, mostra-se competen-

A
te neste seu novo livro, o que se pode questionar é o
O AUTOR
literatura é capaz de fa- O evento era quadro de uma feira caráter exageradamente fantasioso de certas situações
zer o ajuste de contas em literária de periferia, realizada no ADHEMAR JOÃO DE BARROS geopolíticas, todas utilizadas como recursos de argu-
relação às nossas frustra- Rio de Janeiro. Um daqueles jo- mentação. Há diálogos que envolvem o presidente dos
Foi funcionário do Ministério da
ções do dia a dia. Quan- vens, na entrevista à repórter de Estados Unidos, personalidades de outros países, ex-
Fazenda (Receita Federal), onde
do não conseguimos resolver TV, disse que, de início, temeu a desempenhou várias funções antes de
plosões, e mesmo um começo de guerra nuclear. Para
nossos problemas com força fí- literatura. Era ela constituída por se dedicar à literatura. Escreveu dois
a revelação do segredo, descoberto por este exímio in-
sica ou intelectual, apelamos à li- textos de difícil acesso, como poe- livros de sucesso: O conceito zero e vestigador, vale quase o fim de todas as civilizações e
teratura. Se alguém nos derrotou mas clássicos e livros eruditos. O enigma de Compostela. Tem uma também o fim do mundo.
num debate ou mesmo nos aba- Mas, depois, concluiu que não era característica própria: sempre vai ao A linguagem é leve, permitindo ao leitor avan-
teu num confronto físico, que es- bem assim. Encontrou jovens co- local da ação, para observar a região çar sem maiores obstáculos. As tramas são bem amar-
crevamos um romance. Nele, um mo ele e reparou que faziam uma e a sociedade, obtendo assim uma radas e a narrativa consegue manter a curiosidade sobre
dos personagens desempenhará o espécie de literatura marginal. noção realista do que vai escrever. Com o que está por vir.
nosso papel da vida real e, certa- Salvaram-se todos. Seus poemas isso, já viajou por mais de 170 países. Questões como a negritude e a dívida dos países
mente, no âmbito das letras, saire- transmitiam sentimento de revol- ocidentais com as nações africanas são discutidas lon-
mos vitoriosos, viraremos o jogo, ta, eram contra a opressão, contra gamente no livro, deixando entrever que se trata de al-
transformando fracasso em vitó- o racismo, contra a homofobia etc. go praticamente impagável.
ria. No caso de um debate, nos- A partir desses exemplos, Volto, então, ao que disse no início. Trata-se da
sos conceitos que, de modo geral, entende-se que a literatura estará literatura vindo em socorro de uma causa. No entan-
foram refutados com sagacidade sempre disposta a quem dela pre- to, o excesso de peripécias, de perigos que os persona-
pelo adversário, mover-se-ão ao cisar, venha a injustiça de qual- gens enfrentam, a quantidade de vítimas e um tipo de
avesso por meio de investidas li- quer lugar. O romance O portão impossibilidade final nos levam a crer que o autor se
terárias. No romance, seu autor do não retorno, de A. J. Barros, municiou de alta dose de ironia. Talvez seu objetivo
não estará no ardor da discus- inscreve-se nesta filiação. Através seja mostrar que se trata de uma causa — nos moldes
são, mas no aconchego de um de uma trama policial muito bem em que se apresenta no enredo — quase impossível
lar, ou na luminosidade de um urdida, o autor expõe as feridas de ser resolvida. Entretanto, como diz na nota inicial,
escritório. Terá então mais tem- do genocídio empreendido pelos mais vale um romance do que uma explanação didá-
po e conforto para pensar, poderá colonizadores às populações afri- tica. No romance, são livres autor e leitores. E nin-
consultar compêndios de retóri- canas. No início, temos a seguin- guém é dono da verdade.
ca, que ensinam a arte da vitória. te nota do autor:
Vivemos num mundo injusto e
cheio de perigos, onde os espertos Nas minhas viagens pela
se saem bem, enquanto o homem África, fui descobrindo lugares his-
honesto, trabalhador, estudioso, tóricos e cheios de simbolismo que TRECHO
dedicado, muitas vezes se deixa me motivaram a registrar em um
O portão do não retorno
lograr. A literatura, esta senhora livro essas observações. Não quis,
bem-vestida, elegante, mulher de no entanto, me limitar a uma des-
formas harmoniosas, inteligente crição didática, e me ocorreu criar Antes cônscias do seu poderio bélico e tecnológico,
e ainda com certo frescor, surge um enredo que motivasse a leitura as grandes potências estavam agora humilhadas e
então ao nosso socorro. e desse ao leitor a oportunidade de
humildes. Embora fosse a mais chocante e ultrajante
Outro dia, vendo uma ma- conhecer melhor a riqueza daque-
téria na TV, reparei jovens prati- le sofrido continente. [...] Quando de todas as projeções, com aquela humilhação da
cando slam, um espaço livre para se estuda a escravidão, a pergunta rainha aos pés do rei negro, outras projeções se
se falar o que quiser, muitas vezes que fica sem resposta é: como um ge- espalharam pela Europa e Estados Unidos, exigindo
marcado pela rima, pela poesia. nocídio que sacrificou mais de cem O portão do não retorno
a devolução de todos os tesouros africanos, como o
Cada autor adiantava-se e recita- milhões de seres humanos, com re- A. J. BARROS
va o seu texto, decorado, com flo- quintes de crueldade, pode ter caí- Geração Editorial busto de Nefertiti, a esposa de Aquenaton, guardada
reios, todos deixavam o seu recado. do no esquecimento? 361 págs. no Neues Museum, em Berlim...
JANEIRO DE 2023 | 21

rascunho recomenda
Em O guardião de nomes, personagens e narrativas estão O guardião Neste romance do colaborador do
intrincados em uma elaborada trama, que tem o ato de nomear de nomes Rascunho Haron Gamal, o narrador passeia
como o centro dos acontecimentos. O barão Álvares Corrêa LEONARDO pelas ruas do Rio de Janeiro e de Paris,
está exultante por descobrir que a esposa aguarda um sétimo GARZARO enquanto discute com seus amigos e recém-
Rua do Sabão
filho, e avalia o melhor nome para a criança, certo de que se conhecidos sobre a possibilidade de haver
476 págs.
trata da última gestação. Senhor de vasta propriedade, faz uma fórmula infalível para o convencimento.
questão de dar nome a tudo que germina em suas terras: batiza Em meio à leitura de autores do passado,
os potros e bezerros, os filhos dos empregados, rearranja os do presente e da vivência cotidiana na
sobrenomes das famílias que se mudam para a região. Com qual nos insere de forma quase viva, suas
os seis primeiros filhos, não foi diferente. O nome do sétimo reflexões se desdobram da literatura para a Sophie e os cervos
filho é a assinatura em sua obra: está decidido a acertar na filosofia, transitando de uma possível função HARON GAMAL
escolha da palavra e na criação do menino. A esposa, contudo, desta arte feita de palavras à plena beleza. Cajuína
tem outros planos. Por conta de um sonho profético, defende Voltando-se novamente sobre a realidade, 304 págs.
que a criança se chame Antônio, que é o mesmo nome de um o narrador insinua que o próprio livro em
antigo pretendente, com quem quase se casou. Mês após mês, a nossas mãos fornece a experiência necessária
gravidez será marcada pela disputa do casal em torno do nome, para tal empreitada.
ele empilhando argumentos, ela resistindo.
DIVULGAÇÃO
As personagens das 18 histórias desta
coletânea de contos transitam entre a
infância e a vida adulta. Crianças que
lutam para atravessar o cinismo dos mais
velhos, e estes últimos, por fim, em uma
batalha para recuperar alguma inocência.
O espaço narrativo é o Oeste catarinense,
lugar onde a autora foi criada. As narrativas
se desenvolvem em cidades como Palmitos,
Tigrinhos, Flor do Sertão, Chapecó e Marinheira de açude
Maravilha. O livro traz histórias familiares MICHELLI PROVENSI
e apresenta vidas que nunca foram Reformatório
atravessadas pelo urbano, pela celeridade 112 págs.
de uma grande cidades ou pelos códigos
mercadológicos das grandes metrópoles.

Em Heresia, a consagrada autora Betty


Milan aborda o tema da morte assistida
e questiona até que ponto é legítimo o
prolongamento da vida pela ciência e de
uma existência orgânica na qual a memória
e a própria subjetividade já se extinguiram.
Autobiográfico, o livro trata da morte
da mãe da autora, com Alzheimer, e do
prolongamento de sua vida em decorrência
da proibição cultural, e legal, de buscar a Heresia
morte assistida. Manuel da Costa Pinto, na
BETTY MILAN
orelha do livro, escreve: “Essa tensão entre o Record
real e o ficcional se torna ainda mais aguda 112 págs.
quando aquilo que é representado toca o
nervo exposto de dilemas éticos e emocionais
— como neste romance de Betty Milan”.

Publicado apenas em folhetim em 1882, O


Cura-me, senhor O drible da vaca
mameluco, romance de Amélia Rodrigues
IVANA ARRUDA LEITE MÁRIO PRATA
(1861-1926), ganha uma primeira edição em
Abarca Record
142 págs. 384 págs.
livro pela paraLeLo13S. Apresentado pela
doutora em Literatura e Cultura Brasileira
Milena Britto, que assina também um ensaio
Em seu novo livros de contos, Ivana Arruda Há algum tempo vem caindo por terra o sobre a obra no mesmo volume, a narrativa é
Leite traz narrativas dos milagres de Jesus Cristo clichê de que não há em nossa literatura bons ambientada em uma fazenda do Recôncavo
intercaladas pelas desventuras, nada sagradas, livros de ficção sobre futebol. O mais recente baiano. O livro situa as discussões raciais da O mameluco
de uma mulher que apesar dos tombos, nunca romance do mineiro Mário Prata ajuda a época e traz a mestiçagem brasileira para um AMÉLIA RODRIGUES
perde a fé — ou quase nunca. São episódios que enterrar de vez essa premissa. Entre o real e o debate aprofundado, além de jogar luz na Boto-cor-de-rosa e para-
se confundem com a própria biografia da autora imaginário, mesclando personagens históricos violência que foi a Guerra do Paraguai, pano LeLo13S
em um testemunho sincero de vida pessoal e e fictícios, Mario Prata transporta o leitor para de fundo para o romance. 220 págs.
espiritual. Sem deixar de destilar seu humor a Universidade de Cambridge, na Inglaterra
arguto e irônico, tão característico, Ivana oferece de 1859, usando como narrador um tal John
um livro com histórias que atravessam tempo e H. Watson — ainda apenas um professor de Duas vezes vencedora do Prêmio São Paulo
espaço, trazendo a religiosidade para o centro do Educação Física, mas que anos depois ficaria de Literatura, Ana Paula Maia realiza um
debate. Autora de livros infantis e infantojuveis, mundialmente conhecido como o futuro misto de romance de aventura e narrativa
Ivana também publicou livros de poemas e os parceiro de Sherlock Holmes. Revelando psicológica em De cada quinhentos uma
romance Hotel Novo Mundo, Alameda Santos detalhes sobre os primórdios do futebol que alma. O protagonista é Edgar Wilson,
e Breve passeio pela história do homem. O livro nem os britânicos conhecem, e turbinando- que trabalha recolhendo animais mortos.
traz texto de apresentação de Marcelino Freire, os com privilegiado senso de humor, O drible Ele é responsável por levar as carcaças até
em que o pernambucano destaca a produção da vaca combina imaginação livre e pesquisa um grande depósito, onde um triturador
da autora. “Pela volta de Ivana Arruda Leite à profunda, inspiração e transpiração de um dizima os despojos. Contudo, quando o
publicação. Ave nossa! Fazia tempo. Um pecado dos autores brasileiros mais destacados. O país entra em colapso e começa a enfrentar De cada quinhentos
essa demora. Sem explicação. Uma autora feito livro também marca os 60 anos de carreira do situações cada vez mais inusitadas, ele acaba uma alma
ela, a meu ver. No mesmo altar em que ponho escritor, que desde muito cedo transitou pelo usando seu conhecimento para tentar dar ANA PAULA MAIA
Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Andréa Del jornalismo, pelo teatro, pela televisão, pelo sentido ao caos e encontrar uma forma de Companhia das Letras
Fuego, Jarid Arraes, Maria José Silveira.” cinema e, claro, pela literatura. sobreviver à barbárie. 112 págs.
22 | JANEIRO DE 2023

MINISTÉRIO
DO TURISMO
APRESENTA

DIVULGAÇÃO

Natalia
Borges
Polesso
N
o segundo encontro da • Por que ler
11ª edição do Paiol Li- Para mim a literatura sempre
terário, a gaúcha Na- foi uma coisa tão corriqueira, que
talia Borges Polesso nunca parei para pensar na impor-
conversou sobre sua carreira com tância dela. Não consigo imaginar
o escritor e editor do Rascunho, minha vida apartada das letras, sem
Rogério Pereira, em um bate-pa- produzir e consumir literatura. Por-
po transmitido ao vivo pelo canal que isso me ajuda, de algum modo,
do projeto no YouTube. a formar minha visão de mundo, o
Nascida em Bento Gonçal- que penso sobre as coisas, sobre as
ves, no interior do Rio Grande do pessoas. A literatura serve para isso.
Sul, Natalia ficou conhecida na- Mas claro que serve para fruir tam-
cionalmente após a publicação bém, se divertir e tal. Tem esse exer-
de seu terceiro livro, a coletânea cício de olhar para o mundo por
de contos Amora, em que perso- meio de outros olhos. Para mim isso
nagens gays são perpassadas pelas é o mais importante.
mais diferentes questões existen-
ciais. O livro venceu o prêmio • Formação
Jabuti em 2016 e deu maior visi- Não fui uma criança e uma
bilidade à autora, que viajou pe- adolescente que lia tanto. Mas não
lo Brasil e por diversos países para era por não gostar de literatura, e
divulgar a obra. sim por conta do acesso aos livros.
No entanto, a perspectiva Minha casa não era uma casa com
gay de seus livros, explica a auto- livros circulando. Minha família é
ra, não serve como um elemen- de não leitores. Eu tinha — bizarra-
to limitador de suas histórias. mente — uma enciclopédia médi-
“Não escrevi especificamente a ca em casa, mas ninguém da família
respeito de lésbicas, escrevi vá- era da área da saúde. Lembro de três
rias coisas atravessadas por essa coisas muito marcantes em minha
questão”, diz. “Tomo uma de- vida relacionadas à literatura. Uma
cisão consciente, que é sempre delas é que morei um pedaço da mi-
levar pessoas não binárias, mu- nha infância com minha avó e com
lheres lésbicas, transexuais, bis- meu avô, enquanto meus pais se • Drummond • Letras
sexuais para a literatura para que mudaram para outra cidade. Nesse Até que um dia foi parar lá em casa um livro Entrei com 17 anos na facul-
elas falem sobre o que quiserem e período, minha avó toda noite me com uma capa azul, que não tinha título, porque dade de Letras. Mas antes queria
não só sobre sexualidade.” contava uns causos, porque ela é do o livro se despedaçou e alguém fez uma capa nova muito ser médica ou fazer educação
Natalia escreveu ainda ou- interior de Vacaria, no Rio Grande para ele. E era uma coletânea de poemas, que tra- física. Só que duas coisas me impe-
tros dois livros bastante elogiados do Sul. Coisas sobre a vida no cam- zia um poema do Carlos Drummond de Andrade, diram: medicina, eu sabia que era
pela crítica e que angariaram mui- po, correr das vacas, etc. E eu acha- Lira do amor romântico ou a eterna repetição. Quan- um curso muito caro e não teria co-
tos leitores: os romances Contro- va aquilo fascinante. Esse foi o meu do li esse texto, acho que foi a primeira vez que ti- mo ir para uma capital para fazer o
le (inspirado em letras da banda primeiro contado com uma histó- ve vontade de escrever. Eu estava na quinta série e curso em uma federal. E também
inglesa New Order) e A extinção ria, aí me dei conta do que era con- pensei que talvez pudesse escrever algo parecido. não posso ver sangue porque des-
das abelhas, que figurou entre os tar uma história. maio. E a educação física, queria
cinco finalistas da mais recente • Verissimo fazer porque gostava muito de es-
edição do prêmio Jabuti. • Mudança Depois, quando abriram a biblioteca para os porte. Só que nasci com um pro-
A autora, que desde 2007 Depois me mudei para Cam- alunos, o primeiro livro adulto que li foi Inciden- blema cardíaco — e acabei fazendo
lançou sete livros, atualmente po Bom, cidade na qual meus pais te em Antares, do Erico Verissimo. E para mim cirurgia só depois de adulta. Minha
prepara uma nova coletânea de foram morar. E a biblioteca da esco- foi uma mudança de paradigma ter encontrado es- terceira opção era o curso de letras,
contos. Durante o Paiol, ela falou la era fechada aos alunos, você tinha se livro. Aquela primeira parte superviolenta, com mas não por conta da literatura, mas
mais sobre seu processo criativo e que dizer o título que queria na por- brigas familiares, vinganças. Fiquei meio assusta- porque eu gostava muito de inglês.
comentou questões da realidade ta e a bibliotecária te passava o livro. da. Já a segunda parte, com os mortos no coreto, E pensava que indo fazer o curso,
brasileira, como os anos difíceis Então eu não sabia que livros exis- achei mais legal. Todos esses primeiros eventos me poderia ser professora de inglês —
passados recentemente por con- tiam lá. Por algum tempo, a bibliote- marcaram bastante. Fui começar a ler mais quan- o que fui por muitos anos e ainda
ta da pandemia de covid-19, o ca foi assim e líamos obras indicadas do frequentava a biblioteca pública e, principal- hoje traduzo por conta da faculda-
governo Bolsonaro e as expecta- pela professora ou por colegas... E eu mente, quando entrei na faculdade, porque tinha de. E é engraçado, porque minhas
tivas para o futuro com uma no- não me interessava muito por aquela acesso mais direto aos livros, com professores fa- melhores notas eram em literatura.
va gestão no país. literatura da biblioteca. zendo indicações. Não eram em português.
JANEIRO DE 2023 | 23

REPRODUÇÃO/ YOUTUBE

próximo encontro
10/janeiro
19h30
Carol Bensimon

• Na universidade • Não é só escrever


Sempre fui muito curiosa em relação aos livros. Sei que a literatura não se
E também já gostava de escrever antes de entrar na fa- faz exatamente no pós, mas gos-
culdade. Ensaiava uns poeminhas em cadernos, algu- to muito disso [de divulgar os li-
mas histórias. Mas nunca imaginei que isso pudesse vros], porque vamos aprendendo
virar uma profissão. Isso foi uma coisa mais recente a falar sobre o nosso trabalho.
até. Sempre imaginava que iria escrever algumas coi- Não acho que seja em vão. Às ve-
sas que talvez seriam publicadas — ou não. A relação zes, confesso, é cansativo. Muitas
com a literatura mudou sim na faculdade, mesmo vezes estou cansada, mas assumi
sendo uma formação bastante clássica, no sentido de um compromisso e preciso divul-
ser eurocentrada, masculina e branca, acho que foi gar um evento. Acho antipático
também um modo de aproximação e leitura de auto- Tomo uma decisão consciente, que não divulgar. Preciso ir lá, fazer
res de quem tinha curiosidade de conhecer. Por exem- é sempre levar pessoas não binárias, stories ou post no Instagram, fa-
plo: fiquei muito marcada por Orlando, da Virginia lar com as pessoas. Porque, afi-
Woolf. Lembro até hoje eu indo para a faculdade, no mulheres lésbicas, transexuais, nal, eu me comprometi a estar
frio em Caxias do Sul, e lendo no romance aquela ce-
na da neve. Então, tinha uma curiosidade de leitora
bissexuais para a literatura para que em um lugar pra conversar, en-
tão vou divulgar. Porque hoje a
que foi nutrida pela universidade. Tanto é que traba- elas falem sobre o que quiserem e gente, além de escritora, passa a
lhei com linguística e fui para a teoria crítica femi-
nista no mestrado.
não só sobre sexualidade.” ser também administradora do
tempo, divulgadora, pensando
nas redes sociais. E claro que mu-
• Profissão da você estar em uma grande edi-
Sempre fico na dúvida do que escrever quan- DIVULGAÇÃO
tora ou em uma editora não tão
do pedem para eu identificar minha profissão: escri- grande, como a Dublinense, mas
tora, tradutora, pesquisadora, etc. Mas quando casei, que tem uma distribuição bastan-
no cartório coloquei escritora, na certidão de casamen- te boa. Mas, mesmo assim, inde-
to. Sempre tive um pouco de dúvida quanto a isso... pendentemente de estar em uma
até porque escritor que vive da escrita é uma coisa um grande ou pequena editora, hoje
pouco recente. E digo até em relação à construção so- o autor tem esse trabalho de estar
cial dos escritores. Pegando como exemplo aquele tra- presente online para fazer a divul-
balho da professora Regina Dalcastagnè, que faz um gação de seus trabalhos.
levantamento do perfil dos escritores e personagens da
literatura brasileira: 72% são héteros, brancos, moram • Método de
nas grandes cidades e têm profissões estáveis, como jor- trabalho
nalista, médico, advogado, etc. Então, acho que tem Eu demoro para escrever.
uma abertura de campo mesmo, em que outras pessoas Acho que nenhum dos meus li-
começaram a participar desse metiê. Começou a plu- vros escrevi em menos de um
ralizar, com mais editoras, mais editais e a profissão co- ano, sempre levei uns dois anos
meça a ficar visível aos nossos olhos mais romantizados. para concluí-los. E os romances
são mais demorados ainda. Tra-
• Início da carreira balho em um horário em que as
Terminei a graduação em 2007. Naquele ano es- pessoas não estão nas redes sociais.
tava escrevendo algumas coisas, estava instigada com Acordo muito cedo. Agora, es-
as leituras da faculdade. Nos intervalos, escrevia con- tou escrevendo um novo livro de
tos, anotava ideias, ia criando algumas imagens que contos. São coisas que eu já ha-
achava interessantes para depois usar em algumas his- via escrito. Mas preciso dar a es-
tórias. Aí mandei esses contos para um concurso lá se material uma unidade. Então
de Caxias do Sul, ganhei e foram parar em uma co- estou acordando todos os dias às
letânea. Depois disso, em 2010, fiquei sabendo que 5h, 5h30, faço meu cafezinho, ar-
existia um projeto chamado Financiarte. Era um edi- rumo as coisas prosaicas da casa,
tal em que as pessoas ganhavam dinheiro para publi- e sento para escrever até a meta-
car seus livros ou viabilizar projetos de música, dança, de da manhã. Mas preciso me or-
etc. Um amigo havia publicado um livro pelo edital e ganizar muito para que eu tenha
achei aquilo muito interessante. Em 2012, inscrevi o esse espaço. Porque, em geral, es-
Recortes para álbum de fotografia sem gente, meu crevo quando dá. Porque sempre
primeiro livro, publicado em 2013. Então, pensar nis- tenho muito trabalho.
so mais profissionalmente foi por causa de um ethos
mesmo, de coisas que aconteciam ali na cidade, que eu • Dupla jornada
podia ver. Eu também fazia algumas oficinas de escrita Publiquei todos os meus
com o pessoal das Letras, e aquilo foi me interessando. livros enquanto estava no mes-
trado, no doutorado e no pós-
• Publicação -doutorado. Sempre trabalhei
E vejo que hoje é muito mais fácil de publicar com a pesquisa junto. A extin-
do que há dez anos, quando eu quis publicar o Re- ção das abelhas, por exemplo, foi
cortes. E eu, na minha ingenuidade, mandei esse li- um livro que comecei em 2016.
vro para a Companhia das Letras, pensando que eles Quando fui contatada pela Com-
pudessem querer publicar. Para minha surpresa, eles panhia das Letras, mandei esse li-
me responderam com uma cartinha bem querida, di- vro, mas foi negado porque ainda
zendo que não publicariam porque já estavam com estava muito incipiente. Eles en-
a grade cheia... O processo literário é isso, essa busca tão perguntaram se eu não tinha
outro material. Aí mandei o Con-
• Movimento da literatura por esse tesouro, as coisas que quero trole. Minha vida gira em torno
Hoje em dia é desesperador para um leitor
acompanhar o que está acontecendo. É muito livro
falar, mostrar, são esses os meus da escrita, porque ou estou tradu-
zindo, pesquisando ou escrevendo
sendo publicado. Fiz doutorado na PUC, e lá au- desejos estéticos, são esses os meus artigo... Por exemplo, agora tenho
mentou muito o número de alunos de graduação em
escrita criativa. Isso é um sintoma dessa ideia de pro-
desejos políticos, porque também há esse livro de contos para entregar,
mas também estou escrevendo ou-
fissionalização. esse atravessamento.” tros dois. Mas tem um momento
24 | JANEIRO DE 2023

DIVULGAÇÃO

da escolha. Comecei A extinção das abelhas em


2016. Mas ele começou a tomar forma em 2019 e
eu o terminei no início de 2020. E naquele ano, or-
ganizei minha vida para trabalhar todas as manhãs
em A extinção das abelhas. Estava fazendo pós-
-doc. E acho que é isso que faz a diferença, quan-
do você já tem um material para trabalhar. Que é
o que está acontecendo agora com o meu livro de
contos. Tenho um contrato, então estou com a ca-
beça nessas histórias.
Amora
• Outros livros NATALIA BORGES POLESSO
E agora, nos últimos meses, até troquei de Dublinense
256 págs.
projeto. Estou escrevendo Corpos secos 2, por-
que há prazo para entregar. Também estava escre-
vendo um livro chamado Penélope obscura, desde
a pandemia, sobre sonhos, uma espécie de thriller
psicológico, mas aí veio a sequência da campanha
eleitoral e fiquei muito mal, não tive condições de
escrever um livro que tinha assassinato, desapare-
cimento, etc. Então pensei, vou pegar meu projeto
de contos, pois são histórias mais sobre sentimen-
tos e utopias. E estou desde a metade de 2022 con-
centrada em terminar esse livro.

• Amora
A presença de personagens homossexuais no
Amora foi um elemento fundamental para eu pen- A extinção das abelhas
sar para onde queria levar os contos. Porque há vá- NATALIA BORGES POLESSO
rios temas. A questão é que todos os temas do livro Companhia das Letras
308 págs.
são apresentados por protagonistas lésbicas. Por
exemplo, em um dos contos, a relação lésbica que
se coloca é da avó e da neta se descobrindo. As tias
também traz a questão da finitude, da morte. Por-
que esse corpo, esse indivíduo, essa lésbica, vai ser
atravessada por outros tipos de problema. zer algo que seja completo em ter- nho. Gosto muito das oficinas de Acompanhe
mos de representatividade, acho escrita e acho que são lugares em no canal do
• Protagonistas que isso é um projeto furado. que podemos experimentar, ou- YouTube do
Quando pensei em escrever o Amora, deci- Mas sempre vou tentar colocar vir uma pessoa que está ali para Paiol Literário
di colocar todas as protagonistas lésbicas para ver essas personagens porque elas fa- te orientar e você pode compar-
para onde as histórias me levavam. E olha como o zem parte do meu modo de ver o tilhar tudo com os outros alunos.
pós é importante às vezes. Quando terminei de es- mundo. E também são uma apos- As oficinas são interessantes nes-
crever o livro, uma professora me perguntou: ago- ta estética para os problemas que se sentido, porque a gente conse-
ra você já escreveu sobre lésbicas, então não pode quero criar nas narrativas que es- gue conversar um pouco sobre os
mais se repetir. Vai escrever sobre o quê? Aí eu pen- tou propondo. A representativi- nossos processos e às vezes solu-
sei, cara, mas não escrevi especificamente a respei- dade você tem que pensar mesmo ciona dúvidas.
to de lésbicas, escrevi várias coisas atravessadas por de fora. Como os críticos e os lei-
essa questão. Aí tomo uma decisão consciente, que tores vão ver isso. • Prêmios
é sempre levar pessoas não binárias, mulheres lés- Antes do Amora, eu tinha o
bicas, transexuais, bissexuais para a literatura para • Literatura é Recortes para álbum de fotogra-
que elas falem sobre o que quiserem e não só sobre branca fia sem gente. Depois ele foi para
sexualidade. Que as histórias não orbitem apenas Lembro até hoje da primei- a Dublinense, mas antes foi publi-
na sexualidade dessas personagens, mas que isso se- ra Flip de que participei, quando cado por uma editora muito pe-
ja um elemento que cria algum tipo de estabilidade encontrei a Conceição Evaristo. quenininha que tinha distribuição
nas narrativas. E para mim isso tem funcionado, as- Ela havia sido jurada do Jabuti e só na minha cidade e em algumas
sim como isso funciona para o Samir Machado de elogiou muito o Amora. Mas ela livrarias de Porto Alegre. E ele ga-
Machado, que tomou a mesma decisão. Com uma me perguntou se eu tinha a inten- nhou o Açorianos, que é um prê-
diferença, ele não mata suas personagens gays, que ção de ter colocado alguma per- mio do Rio Grande do Sul. E isso
sempre vivem em suas histórias. sonagem negra no livro. Falei que já mudou um pouco a dinâmica
minhas personagens não tinham do interesse das pessoas pelo livro
• Questões nenhuma descrição física muito e também do interesse por mim
Trabalho muito com questões. No Recortes, detalhada porque eu queria que enquanto escritora. Eu estava na
minha questão era estética. Queria criar imagens, os leitores pudessem imaginar o PUC fazendo doutorado quando
explorar tensões imagéticas. Tanto é que o Recortes que quisessem. Aí ela falou para publiquei o Recortes. E circulava
não tem muitas histórias marcantes. É quase poe- mim, mas você sabe que a leitu- bastante com o pessoal de escri-
sia. O Amora e o Controle, que foram escritos na ra é branca. Assim como você fez ta criativa, apesar de ser de outra
mesma época, têm a preocupação de desenvolver questão de colocar personagens área. Mas quando publiquei e ga-
personagens lésbicas, bissexuais, LGBTQIA+ mul- lésbicas, porque a leitura é héte- nhei um prêmio, acabei ficando
tifacetadas. Por exemplo, no Controle, tem a Nan- ro, a leitura também é branca. Aí em uma vitrine. Quando você ga-
da e ela é epilética também, mora em uma cidade fiquei com isso na cabeça. Depois nha um prêmio as coisas mudam,
do interior e cresceu nos anos 1990. Então que- do Amora, sempre tento também sim. Primeiro porque você tem o
ria trabalhar com isso, como fiz no Amora, só que contemplar outras questões. reconhecimento dos seus pares. O
com mais fôlego, em um romance. Já em A extin- Jabuti, por exemplo, é o prêmio de
ção das abelhas as questões são outras, que dizem • Criação de contos mais prestígio no Brasil, as pessoas
respeito ao colapso do mundo, de como a gente Para mim, tudo começa nas param para ver quem ganhou o Ja-
está vivendo em sociedade, como estamos aparta- personagens. É algo importantís- buti, vão buscar os livros finalistas. Jamais quero ser
dos da natureza. Então o processo literário é isso, simo, quem está no centro da his- a pessoa que tenta
essa busca por esse tesouro, as coisas que quero fa- tória? Não precisa nem pensar no • A extinção das
lar, mostrar, são esses os meus desejos estéticos, são narrador, mas acho que o narrador abelhas dar cabo, fazer algo
esses os meus desejos políticos, porque também há
esse atravessamento.
é um segundo ponto que precisa
imaginar — e tentar se distanciar
Agora, com A extinção das
abelhas, que esteve entre os cin-
que seja completo
para compor esse narrador, quem co finalistas do Jabuti, teve mui- em termos de
• LGBT está contanto a história, de qual ta gente que veio me procurar e
representatividade,
A representatividade LGBT na minha obra ponto de vista. Calcular todas es- até mesmo postar nas redes sociais
tem mais a ver com a decisão que tomei de trazer sas questões ajuda talvez em traba- que estava lendo o romance. Um acho que isso é um
essas personagens para diversos tipos de situações.
Jamais quero ser a pessoa que tenta dar cabo, fa-
lhos um pouco mais complexos. E
talvez isso não possa ser feito sozi-
prêmio acaba mudando o cami-
nho do livro.
projeto furado.”
JANEIRO DE 2023 | 25

• Viajando com
Amora
• Preconceito
Queria escrever um livro em
raimundo carrero
O Amora já tinha uma vi- que as personagens existissem e que LUTA VERBAL
da mesmo antes de ganhar o Jabu- eu não tinha visto ainda na litera-

MORRE O
ti e o Açorianos. Mas depois que tura. Meu desejo era esse. E as pes-
ganhou os prêmios, foi uma coisa soas também estavam desejosas de
muito doida, porque teve a tradu- ler esses personagens. E talvez eles

PROTAGONISTA;
ção para o inglês, com publicação fizeram disso uma bandeira. O que
nos Estados Unidos e Inglaterra, recebi de mensagens de pessoas que
rolaram vários convites também. leram e se identificaram, de filho

CHEGA O
Nunca fui uma pessoa que teve que deu para a mãe, de mãe que
grana para viajar para um monte deu para o filho, de mulher que
de lugares, e por conta do Amo- deu para o esposo por conta do fi-

COLETIVO
ra eu viajei muito, fui para vários lho, ou de psicólogo que indicou
lugares do Brasil que não imagi- para paciente. Isso é uma forma de
nei que iria. Ele também é um fazer da literatura um instrumen-
livro que circula muito na acade- to para pensar o mundo e como a
mia. Há vários trabalhos a respei- gente pode ser e se relacionar.
to, TCC, trabalhos de mestrado e

Q
doutorado. Visitei muitas univer- • Pandemia
sidades no Brasil. Teve também o Comecei a escrever A extin- uando Jorge Amado resolveu matar o protago-
Bogotá 39, uma lista com os escri- ção das abelhas em 2016 e o en- nista literário no romance Suor, transformou
tores mais destacados da América treguei à editora antes da pandemia um pardieiro do Pelourinho, em Salvador, em
Latina com menos de 39 anos. Por porque ia viajar com minha mãe. personagem central, com seus pedintes, esmo-
conta disso, acabei viajando qua- E aí veio a pandemia e a gente teve leres e desempregados, chamados popularmente de
se que pela América Latina intei- que voltar correndo. O livro ficou arraia miúda, uma gente a que hoje chamamos de in-
ra. A literatura me fez literalmente parado na editora uns seis meses. visíveis, sem direito a auxílio ou qualquer programa go-
viajar. Fui para a China por cau- Quando passou um tempo, pe- vernamental, num tempo em que nem se falava nisso.
sa do Amora. Ele mudou minha di o livro de volta para fazer algu- Com a vantagem de que naquele lugar abjeto, pa-
vida. Mas, claro, havia momentos mas inserções sobre a pandemia. E ra a sociedade bem comportada, surgiam figuras como
em que eu estava pensando no alu- aí me dei conta de como a derroca- o mendigo Cabaça, Chico, Linda e Julieta, apresenta-
guel do meu apartamento enquan- da, a destruição de tudo, já vinha das numa cena cruel e dolorosa como esta que chega
to estava na China hospedada em de antes. Tivemos esses movimen- com estas duas criaturas do fosso social:
um hotel de luxo. Não tinha cachê, tos protofascistas, com as manifes-
mas tinha passagem, hospedagem tações de 2013 pelo passe livre, em Bateram na porta. Pancadas íntimas de quem não
e a experiência... Mas o dinheiro que surgiram as bandeiras do Bra- espera consentimento para entrar. E Julieta entrou de com-
do aluguel eu não tinha. sil, para teoricamente demonstrar binação.
um movimento apartidário, de- — Estou assim por causa do calor.
• Recepção crítica pois passamos pelo impeachment Sentou-se na cama. As coxas abertas, escandalosas.
O Amora não teve muita re- da Dilma, pelo governo Temer, Espiou o fogareiro, pegou no vestido.
cepção crítica nos grandes veículos que começou a destruição da An- — Que cheiro de chulé, hein, Linda?
do Brasil. Mas teve críticas mui- cine, do MinC, e que vem na esca- Como a resposta não veio, continuou:
to boas nos veículos dos Estados lada da campanha do Bolsonaro e — Também nessa bilosca mora gente de toda laia...
Unidos e da Inglaterra. E uma coi- da ascensão do bolsonarismo, por- Já reparou na vizinha dos fundos, dona Risoleta? Caga
sa muito legal é que fui convida- que são coisas distintas. E, por mais em papel de jornal pra não esperar que a latrina se esva-
da para participar de um clube de que depois de 31 de dezembro não zie. Juro que não limpa a bunda. E nunca desceu pra to-
leitura que se chama “One book tenhamos mais o “saco de bosta mar banho...
one Bronx”. Um clube de leitura entupido” como presidente, o bol- — É uma mulher muito trabalhadora.
do Bronx, quase 50 pessoas parti- sonarismo vai continuar. — Pudera! Pra dar comida ao malandro do filho...
cipando, a maioria negras e mais Um homem daqueles, de dezenove anos, gordo como um
velhas. Então fiquei imaginando • Futuro burro, que não faz nada....Passa o dia todo socado com as
como isso ia bater: um livro que é Primeiramente, espero dig- raparigas do Tabuão ou então matando o bicho. Só vem
a cara dos anos 2000, escrito por nidade social e política. A gente em casa comer e buscar dinheiro. Que calorão, puxa!
uma guria do interior do Rio Gran- está sem dignidade. Foram anos
de do Sul, lido por habitantes de vergonhosos de relações políticas. Uma cena direta, incisiva, com a crueza de duas
uma grande metrópole em que os Eu me esforço para entender quem mulheres fortes, reveladas mais na ação dos diálogos de
movimentos sociais e o movimen- ainda apoia o governo Bolsonaro, forma a somente aí mostrar a ambientação do roman-
to LGBT aconteceram muito antes mesmo depois de tudo o que acon- ce sem recorrer a cenários, colocando o leitor imedia-
de chegar lá em Campo Bom, on- teceu. Mas a primeira coisa que tamente na grave denúncia social com seres humanos
de me constituí como ser humano. espero do novo governo é restabe- transformados em agonia social. Um pardieiro onde vi-
Mas sabe que as pessoas se sentiram lecer a dignidade, que as pessoas vem aqueles rejeitados pela sociedade.
profundamente identificadas. Elas possam comer. Para depois come- Vem daí o interesse em ser agudo e forte, sem os
se sentiram compartilhando daque- çar a conversar sobre as outras coi- cenários luxurientos que deslustram a cena ativa. Só
les problemas narrados no livro. sas. Mas sinceramente espero que a uma palavra para tipificar Julieta: escandalosa. Pos-
gente diminua o uso de agrotóxico, sivelmente definida pelo olhar crítico e julgador de
• Presença da proíba algumas coisas, não dá para Linda. O mesmo olhar que julgaria o filho de dona
universidade continuar como está. Espero tam- Risoleta. Neste caso a técnica do olhar do persona-
E teve uma coisa que me cha- bém que se crie o ministério dos gem é cirúrgico.
mou a atenção, que nunca haviam povos originários. Quero muito Basta aqui, portanto, a palavra diante do outro
comentado no Brasil. Alguém fa- que tenha um ministro ou minis- diálogo. É algo distinto e forte. Temos então o discurso
lou: “Nossa, tem muito universi- tra do meio ambiente que consiga verborrento de Linda para definir o caráter de um per-
tário no seu livro. Explica pra nós visualizar essas pautas e dar a aten- sonagem que nem sequer apareceu em cena. E o que se
por que tanto aluno e professor”. E ção que elas merecem, porque é a chama de personagem de criação indireta, ou persona-
aí fiquei pensando e contabilizan- partir daí que a gente anda daqui gem que passa a existir sem a intervenção do narrador.
do as pessoas do livro que estavam pra frente. Se não fizermos alguma Mas Linda continua falando e julgando muito.
na faculdade e realmente era verda- coisa, não existe a possibilidade de Muitíssimo.
de. E isso tem muito a ver comigo. continuar com a vida na terra. E,
Fui fruto dessa abertura da univer- claro, espero que voltem as polí- Pegou na combinação e acudiu-a para ventilar
sidade, da possibilidade de muitas ticas públicas para a cultura, para as coxas.
pessoas estarem lá, com bolsas. Vivi o livro e literatura. Quero muito E esse vestido, hein, dona Risoleta? A senhora devia
isso. Entrei na graduação em 1999 fazer um concurso. Estou aí, dou- era mandar aquela espanhola pras profundas... Feia co-
e saí em 2007, justamente porque tora, com pós-doutorado, e desem- mo uma jararaca e querendo vestido de mocinha. Garanto
ainda não haviam bolsas boas. Mas pregada. Porque as pessoas que se que quer botar os chifres em seu León... Quanto ela paga?
acho que a minha vida foi muito qualificaram, fizeram doutorado,
marcada por esse processo e talvez não têm emprego hoje na univer- Percebe-se, agora, que as duas têm a missão de
eu não estivesse aqui hoje como es- sidade. Há demanda, alunos, mas trazer os personagens para o romance. Sobretudo atra-
critora e pesquisadora. é preciso uma reforma. vés dos caracteres.
26 | JANEIRO DE 2023

olyveira daemon
SIMETRIAS DISSONANTES

A IMERSÃO
humano. Na maior parte do ro- No decorrer da história, ou- Quarta: No plano polí-
mance, acompanhamos o atrito tros fenômenos até mais surpreen- tico há a opressão do nefasto
às vezes epidérmico, às vezes pro- des farão o narrador onisciente, Regime, essa conjuração mas-

FUTURISTA
fundo, que aquece a coreografia da estarrecido, concluir que “a irra- sacrante orbitada pelos neo-or-
equipe do cargueiro espacial. cionalidade dos eventos implica- todoxos e pela Milícia Maxila.
Os personagens — suas va na ideia de que o absurdo era As digressões de Felipe Parente
idiossincrasias, habilidades e in- uma das muitas possibilidades do sobre necropolítica e tecnofas-
quietações — são muito bem universo”. cismo são lúcidas e aterrorizan-
desenhados pela mão segura do Agora, darei a vocês treze ra- tes. (Aviso importante do autor:
romancista, mas dois se destacam: zões pra lerem o romance mais re- “Não creio em distopia. O que
El futhuro será extraño, o capitão Mravinsky e a inteligên- cente do autor, Pantokrátor: existe em oposição à utopia é o
byzarro, maravylloso, cia artificial A.N.N.A. Primeira: É uma narrativa que chamamos de realidade, não
o no será el futhuro. Fã confesso de Moby Dick cyberpunk com DNA nosso. O uma categoria literária”.)
Sofia Soft e Vinte mil léguas submarinas, cenário é a Cidade Maravilhosa Quinta: A citação inter-

N
Ricardo Labuto Gondim, além modificada pelo apocalipse digi- textual e a alusão a figuras his-
enhum dos seis livros de exercitar uma escrita minu- tal. Não é uma repetição de Neu- tóricas e mitológicas colorem o
do teólogo e ficcionista ciosa, rica em detalhes técnicos e romancer ou Ghost in the shell enredo. A linguagem é elegante,
Ricardo Labuto Gon- psicológicos, muito apreciada pe- ou Westworld ou Blade runner inteligente e, repito, carismática
dim foi comentado, los melhores escritores realistas 2049. Vai além. Transcende essas e bem-humorada. Ricardo Labu-
até o momento, nas páginas deste do século 19, se inspirou em dois referências já tão manjadas. to Gondim é nosso Rabelais tro-
incansável e incomparável perió- grandes capitães da literatura uni- Segunda: O principal prota- pical. Nosso Swift brasilis.
dico. Chegou a hora de pôr um versal, Ahab e Nemo, para criar gonista, Felipe Parente Pinto (ava- Sexta: Os personagens
ponto final nessa injustiça. Mes- seu Mravinsky, um oficial enérgi- tar de Philip Kindred Dick), é um coadjuvantes são tão bons que
tre Gondim é bom demais na fic- co e culto, apreciador de literatu- dos tipos mais interessantes da li- mereciam protagonizar um ro-
ção especulativa, e merece toda a ra e música eruditas. teratura brasileira contemporânea. mance cada um: Simão, o mago
nossa atenção. A serviço da Corporação Felipe é um golem. Ou seja, um golem; Andvari, o anão hiperge-
Por onde começar? que investiu pesado em sua cons- androide. Ou seja, uma marione- nético; Lisístrata, a lésbica solip-
Suas obras mais ambicio- trução, o sistema neuromórfi- te dos acontecimentos. Mas uma sa solipsista; Laura II de Vison,
sas são os romances Corrosão co A.N.N.A. e a espaçonave são marionete carismática, com senso rainha das technodrags; Kublai-
(2018) e Pantokrátor (2020), uma coisa só, corpo e mente en- de humor. O segundo protagonis- -chan, a diva do mercado finan-
publicados pela Caligari. Reco- trelaçados produzindo um magní- ta, professor Carlos Capek (avatar ceiro; Alfred Jingle, o filósofo
mendo que vocês comecem por fico veículo autoconsciente. de Karel Capek), é um pesquisa- pós-metafísico. (Pensando bem,
elas, curiosos leitores. O comportamento lógico dor acadêmico que tenta defender cada um dos coadjuvantes já re-
Corrosão é uma podero- da IA, nos momentos em que o sua privacidade da invasão inven- presenta mais uma boa razão pra
sa narrativa de confronto e desco- comportamento biológico da tri- cível conduzida pelos algoritmos. você ler Pantokrátor).
berta, feita de camadas que vão se pulação humana é tingido por Terceira: O antagonista, Sétima: Os diálogos são
sobrepondo devagar, com vigoro- traços emocionais, produz um cujo nome eu não posso revelar sensacionais. As descrições são
sa elegância. contraste muito bem-vindo. Oni- pra não roubar parte do prazer da sensacionais. A hiperviolência é
O cargueiro Nikola Tesla, presente, A.N.N.A. interage com leitura… Veja bem, o que a gen- sensacional.
com duzentos e oitenta metros de os nanorrobôs na corrente sanguí- te mais encontra por aí, na litera- Oitava: Die Nibelheim.
casco, é o triunfo da engenharia nea dos tripulantes, com o com- tura e no cinema, são antagonistas Um tecnoinferninho futuro,
espacial do século 22. Conduzi- partimento criogênico, com os chinfrins, que não honram seu sa- “materialização intangível de
do por uma sofisticada inteligên- grandes reatores e propulsores da lário. Por quê? Simplesmente por- uma alucinação” assombrada pe-
cia artificial, dezenas de robôs e nave etc. que não são astutos. Às vezes são la genialidade audiovisual de Ri-
apenas seis tripulantes humanos Enquanto isso, lá fora… A poderosos (força física, superpode- chard Wagner.
altamente treinados, sua primeira carcaça do Titanic. Tão fantasma- res), mas jamais astutos. O anta- Nona: A imersão digi-
missão é viajar até as imediações górica quanto a baleia branca do gonista criado por Ricardo Labuto tal integral (IDI), oferecida
de Plutão, interceptar um grande romance de Melville. Gondim é poderoso e astuto. pela companhia Kopf des Jo-
asteroide e extrair dele um óxido chanaan, é imbatível. Além
precioso inexistente na Terra, com disso, as drogas sintéticas psico-
propriedades supercondutoras. Ilustração: Caio Paiva délicas são absurdamente sedu-
Mas nas proximidades de toras. Se você procura o sentido
Júpiter surge uma anomalia as- da vida, junte as duas experiên-
tronômica que chama a atenção cias e viva num paraíso artificial
primeiro do sistema de bordo do que deixaria Baudelaire orgu-
Nikola Tesla, depois de sua tripula- lhoso e comovido.
ção: uma vasta nuvem vermelha de Décima: A trilha musical do
hidrogênio, anelar, contendo uma romance foi composta por uma
nuvem verde de metano e enxofre, galera peso-pesado: Stravinsky,
elíptica, por sua vez contendo na- Schönberg, Webern, Berg, Rach-
da mais nada menos que o lendário maninov, Ravel e outros.
Titanic, duzentos e quarenta anos Décima primeira: O anel
depois do seu naufrágio. do nibelungo, a monumental
Obviamente a grande ques- tetralogia de Richard Wagner,
tão que impulsiona o enredo é: de tem um papel importante na
que maneira o maior transatlântico trama. A ópera Parsifal também.
de seu tempo se deslocou do fundo Décima segunda: Há os
do oceano para as proximidades de mediaones e a consciência algo-
Júpiter? Essa situação insólita mo- rítmica. Há o tecnopoder autoté-
biliza o controle da missão, na Ter- lico. Há a volição da consciência
ra, e os tripulantes do Nikola Tesla. no tempo. Há um cemitério-ilha
O raríssimo óxido do asteroide não de navios naufragados ou quase-
é mais prioridade. -naufragados. (Mas assim são
Nas mãos de um ficcionista quatro razões, certo?)
mediano, esse mistério seria, sozi- Décima terceira: Pantok-
nho, o centro do sistema narrativo. rátor e Corrosão, e meia dúzia
Mas nas mãos de Ricardo Labuto de contos avulsos que também
Gondim ele é, digamos, uma das endossam a epígrafe de Sofia
estrelas de um sistema estelar bi- Soft, tornaram Ricardo Labuto
nário. Interagindo com o misté- Gondim um dos autores mais
rio do Titanic existe outra intensa importantes de toda a ficção
força de atração literária: o drama científica brasuca.
JANEIRO DE 2023 | 27

Desterro
ou de paixão é essa sombra ina-
preensível, essa riqueza que entre-
gamos à destruição. Uma dádiva
sem contrapartida, sem contra-

compartilhado
dom, a não ser nossa finitude e
a dilapidação de nossa rique-
za (diga-se, a poesia ou o corpo)
em troca de uma suposta (e pa-
tética) glória. E conforme Batail-
le, “depois de toda contradição e
ambiguidade, dos usos da energia Potlatch

O ritmo dos poemas de Potlatch parece evocar excedente pelos ricos, da derrisão GUILHERME GONTIJO FLORES
Todavia
e das mentiras”.
um instrumento de percussão longínquo, Na contracapa da primei- 128 págs.

intensificando a experiência de transe ra edição de Amavisse (1989),


Hilda Hilst aparece em uma fo-
to com o editor Massao Ohno, e te que crianças morram de fome
LUCIANA TISCOSKI | FLORIANÓPOLIS – SC logo abaixo, seu poema que dei- ou em campos de concentração
xa clara a afinidade com Geor- após o cerco às montanhas na Ba-
ges Bataille, também proclamada talha de Kozara e que o sofrimen-
em outras ocasiões. Os versos da to da doença psicossocial seja um

P
segunda estrofe do poema anun- dos tantos efeitos do colonialis-
otlatch, de Guilherme Gontijo Flores, é di- de prestações totais de tipo agonísti- ciam a despedida da “literatura mo, como no poema a partir de
vidido em quatro partes, A parte da perda, co, no livro Ensaio sobre o dom séria” e inauguram “as adorá- Frantz Fanon, intitulado É supér-
Colheita estranha, Três estáticas e Cantos pra ou Ensaio sobre a dádiva, publi- veis bandalheiras” que têm iní- fluo acrescentar que, aqui, não se
árvore florir. Após o último poema, além de cado em 1925. Segundo ele, a dá- cio com O caderno rosa de Lori trata de contratura histérica.
uma citação de Agostinho de Hipona, há notas que si- diva da riqueza exigiria sempre a Lamby (1990). O escritor, “cola- Como contradom, contra-
tuam brevemente os leitores na desorientação causada obrigação absoluta de retribui- do à própria sombra” vem dizer partida da riqueza, resta-nos a co-
pela profusão de referências e vertigens que, com certe- ção, sob pena de se perder o “ma- adeus: “Poupem-no o desperdí- lheita estranha: “[...] eis a nossa
za, sofreram aqueles que se deixaram levar pelas línguas na” conferido pela dádiva, sendo cio de explicar o ato de brincar/ A política/ de troca, contradom/ na
e os rituais de perda e de excesso da poesia de Potlatch. a fonte dessa riqueza ou “mana”, dádiva de antes (a obra) excedeu- lida dos palhaços:/ você e eu as-
Talvez até “deixar-se levar” seja um eufemismo. A a própria autoridade. Dá-se então -se no luxo./ O Caderno Rosa é sinalados/ pelo acaso dos lados/
leitura desses poemas exige um esforço corporal, uma uma intrincada relação de trocas apenas resíduo de um ‘Potlatch’./ que cabem a cada um,/ colhen-
atenção concentrada, uma disposição para ser irreme- de dádivas em retribuições, dila- E hoje, repetindo Bataille:/ ‘Sin- do aqui o fruto/ do golpe sobre
diavelmente afetado e confrontado com o fato de que pidação e destruição (incluindo to-me livre para fracassar’”. O a carne”. Valeria ainda citar Fou-
“nada no tempo garante um depois.” Ao lado do tem- assassínios de escravos e animais) resíduo do potlatch de Guilher- cault quando ele discorre sobre a
po, a morte, com todas as suas alegorias e todo seu ima- que parece não ter fim. me Gontigo Flores, com a publi- vida kinikós, a vida de cão que é
ginário, guia nossa leitura desde o poema Wega, escrito cação deste livro de poemas, é a reversão escandalosa, violenta, po-
a partir de cantos funerários do povo sul-africano xona, Escoar o excesso perda sem contrapartida, um dis- lêmica da vida reta, da vida que
transcritos pelo etnólogo cubano Jesús Fuentes Guerra. Continuando no desvio, pêndio de criação, camadas e ca- obedece à lei e que, no entanto,
O último poema traz o título do livro, no qual o dom trago outro estudioso do assun- madas de histórias, de línguas, de tem a coragem da verdade, ex-
se entrega à terra e ao dispêndio, em vãos contradons to: Georges Bataille, alguém com corpos e de palavras que se avolu- põe o escândalo cínico e arrisca-
dos ancestrais “cedendo tudo que ganhou,/ desfaz-se muito mais proximidade de uma mam formando ruínas, ossamas, -se expondo a própria vida na fala
tudo, menos carne,/ como um avô vem de outro avô,/ leitura do potlatch que nos conec- tumbas e dentes soltos. franca da poesia, opondo-se às leis
concede até chegar no cerne”. ta à literatura e ao Potlatch de divinas, às leis humanas e a toda
A lapidação no elaborar de cada verso, o cuida- Gontijo Flores. Segundo Batail- Terceira metade forma de organização social tradi-
do com o escandir e enlevar com um ritmo próprio são le, a instituição tão estranha — e cionalmente estabelecida. Mas is-
marcas indeléveis desses poemas. Refiro-me novamente no entanto, tão familiar — des- Dar por perdido so se houvesse tempo aqui para o
ao estado corporal requerido em alerta (quase agônico). se sistema contratual de trocas de o perdido, dar excedente e o dispêndio.
Condição, no entanto, suavizada pela maestria do ges- dádivas, pode ser encontrada em por perdido, né? Os poemas de Potlatch
to poético de Gontijo Flores. O ritmo dos poemas pa- várias de nossas condutas nos tem- et quod uides nos trazem um inventário de se-
rece evocar um instrumento de percussão longínquo, pos contemporâneos. O problema perisse perditum res impossíveis, mas plausíveis nu-
causando uma sensação de atrito e choque, contempla- colocado por Bataille é o do dis- ducas, por perdido, ma Pasárgada de um “só-presente
ção e pacto, intensificando a experiência de transe. É pêndio do excedente de energia na dar por perdido de agoras sem consolo”. Os seres
como se o autor nos convocasse a uma espécie de dan- Terra, que supera os limites da uti- chaves, dedos, se multiplicam e as imagens inu-
ça ritualística primeva, como se, de fato, participásse- lidade prática da vida no plane- dias, viço, chances, sitadas expelem versos. Há peixe
mos de uma cerimônia estranha familiar de potlatch. ta. Por isso, devemos dar, perder isn’t hard to master compelido, águia mutilada, cade-
As orelhas do livro apresentam um brevíssimo ou destruir, para dar conta de es- é? dar por perdido, la de beco sem saída e há uma li-
comentário sobre o significado do título. Ainda assim, coar o excesso. Mas não é tão sim- the art of losing, turgia infinda de órgãos, vísceras,
considero importante discorrer um pouco mais sobre ples quanto parece. É preciso que contas, corpos, chagas, raiz, ramo, galho, rama-
determinadas conexões que se estabelecem a partir do o gesto de dar reverta em poder. perdido, amores, lho, cordas umbilicais, secreções,
conceito de potlatch. Trata-se de um cerimonial iden- “A riqueza efetuada no potlatch dar por cansaço carne, ossos, costela, asco, ilhas
tificado entre tribos indígenas norte-americanas, mas — no consumo por outrem — só perdido tudo fantasmas que guardam beijos de
também praticado por alguns outros povos, como os tem existência de fato na medida em tudo que carvão, museus naturais incen-
melanésios e polinésios. Muito grosseiramente resu- em que o outro é modificado pe- se perde é sim diados, dias excedentes, dentes,
mindo — porque é um conceito com infinitas ambi- lo consumo.” A glória obtida por metade da arte, dentaduras frouxas, mandíbulas
guidades e complexidades de saberes antropológicos, dar e destruir é expressa na des- o mais difícil. esmigalhadas num sorriso, dedos
etnológicos, sociológicos e filosóficos —, o ritual con- pesa de energia sem medida e al- e palavras Em lascas sobre a língua:
siste em práticas comerciais que culminam em batalhas cançada desde que atinja o outro Ao miserável “Se adensadas em treva,/ espessas
nas quais o suposto representante da tribo vencedora (sendo, no âmbito literário, possi- O autor de O erotismo afir- boca adentro,/ decaem em ple-
dilapida sua riqueza, e pode chegar à destruição dos velmente representado pelo públi- ma que a literatura é o mal e — no peso/ feito pedras e hoje fei-
bens acumulados, para humilhar seu adversário. Es- co leitor, mercado editorial e/ou trazendo-nos um panteão de tas/ coisas, as palavras vêm/ negar
ta prestação essencialmente usurária de dispêndio dos sistema político-cultural). autores representantes desse mal, o mundo que antes apontavam,
bens teria como “contrapartida” apenas uma suposta E o que isso tem a ver com como Jean Genet, Kafka, Emily o mundo que/ fundavam a cada
glória, um prestígio ou honra, em suma, uma autorida- poesia? Ainda conforme o autor Brontë, Sade e outros — assegura instante/ em nossos dedos e den-
de. Marcel Mauss, antropólogo e sociólogo francês, foi de A parte maldita, o que chama- que “o verdadeiro luxo e o profun- tes [...]”. Cabem no livro muitos
o primeiro a aprofundar os estudos sobre esse Sistema mos de poesia, de profundidade do potlatch de nossa época cabem nomes, antinomes e rios, poe-
ao miserável, àquele que se esten- mas dentro de poemas, poemas
de sobre a terra e despreza”. E espelhados, chamadas em códi-
“[...] a mentira (dos ricos) desti- go morse, vozes esquizofrênicas e
O AUTOR na a exuberância da vida à revol- ecolalias, sensualidade tensa e aris-
ta — o esplendor dos farrapos e ca em recíproca mordida, além de
GUILHERME GONTIJO FLORES
o obscuro desafio da indiferença”. Lázaros, escapulários, batistérios,
Nasceu em Brasília (DF), em 1984. Poeta, tradutor e ensaísta, O poeta cínico expõe a miserável “Um deus mortal em tudo” e a
recebeu os prêmios APCA e Jabuti por sua tradução de A anatomia glória de se saber preso e refém de certeza de que tudo termina e de-
da melancolia, de Robert Burton. É autor de, entre outros, carvão um mundo em que a indiferença termina o interminável desterro
: capim (2018) e História de Joia (2019). Mora em Curitiba (PR). concebe queimar museus, permi- nosso de cada dia.
28 | JANEIRO DE 2023

nilma lacerda e maíra lacerda


CALEIDOSCÓPIO

S A LITERATURA
ilviano Santiago publicou há algum tem- Afinal, quem somos nós? De onde viemos? Para on-
po um pequeno artigo em que se referia de vamos? Os indígenas são aqueles que de fato pertencem
às etiquetas apostas à literatura, para mar- ao lugar. Nativos, como dizem. Gente da terra, com a qual

DOS POVOS
car a presença de novos atuantes em cena. mantêm uma relação de profunda dependência, interação,
Necessárias e passageiras, deveriam ser abandona- respeito e parentesco. Índio, caipira, caboclo, caiçara, ribei-
das tão logo a produção assim marcada se incor- rinho, quilombola, camponês, interiorano — cada qual

ORIGINÁRIOS
porasse à cena literária. Literatura feminina, negra, sob sua cultura. [...] Embora sejam brasileiros, os dez es-
homossexual eram alguns dos exemplos citados. critores que assinam as narrativas desta coletânea são antes
No presente, pode-se constatar o acerto do crítico. Mebengôkré Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapu-
Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Caio Fernan- ya Waikhana, Balatiponé Umutina, Taurepang, Umuko
do Abreu fazem literatura sem adjetivos. Masá Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurá-Bakairi.
No caso da literatura dos povos originários
ou indígenas, tal etiqueta tem ainda sua conveniên- Os indígenas brasileiros não são um bloco mono-
cia. Apesar do lugar de fala indígena mostrar-se lítico, mas povos tão distintos entre si quanto os diver-
cada vez mais, há em circulação uma enorme quan- sos povos da América. Reconhecer-se e ser reconhecido
tidade de obras em que autores de origem variada em sua singularidade tem sido objetivo do projeto de
recontam narrativas das quais se apropriaram e pas- literatura indígena. Em um país miscigenado, cuja tra-
saram a reproduzir, nem sempre com a atenção de- dição cultural é resultado de confluências e absorções,
vida. Ao agir como substitutos das vozes originais, como negar ao indivíduo a sensação de pertencimento,
não alcançam a complexidade de representação de por meio de uma ilustração, uma prática, um rol de pa-
um mundo cujas versões passavam, até bem pouco lavras? Em experiência de implantação de biblioteca na
tempo, pelo olhar e pela voz do colonizador. Com cidade de Açailândia, no Maranhão, a leitura do con-
as recentes perspectivas de um olhar deconoliza- to Hariporia: a origem do açaí, escrito por Tiago
dor, a produção cultural de povos autóctones Hakiy, do povo Sateré-Mawé, deixou patente
chama a si legitimidade e valor, alcançan- no público a emoção de se ver representado
do visibilidade e demandando novos pa- no verbo e no traço. Em outra cidade, em
radigmas de compreensão. que a população indígena vinha da aldeia
A cuidadosa obra Literatura próxima para o curso, a representação
indígena brasileira contemporânea: pictórica que Graça Lima escolheu pa-
criação, crítica e recepção, de Julie ra a taba, em A boca da noite, de Cris-
Dorrico, Leno F. Danner, Heloi- tino Wapichana — tomada do
sa Helena S. Correia e Fernando alto e mergulhada no
Danner, aborda múltiplos aspectos sol do ocaso —, cau-
desse projeto e suas reali- sou impacto no gru-
zações. No Brasil, a ur- po, com exclamações:
gência de politizar a luta “É assim, nossas casas são
indígena no país, como assim, a aldeia é assim”.
reação aos projetos de ex- Esses exemplos ratificam
pansão socioeconômica di- as palavras de Maurício Negro,
namizados pelos governos que se refere a uma sabedo-
militares nas regiões nor- ria antiga, cujos ecos ainda
te e centro-oeste, pro- estão por aí pedindo reforço
picia a organização em palavras e imagens, pro-
para a luta políti- posta plenamente alcança-
ca, vinculada ne- da nos textos verbais e nas
cessariamente às ilustrações que remetem
questões de identidade, à xilogravura, nas quais
memória e expressão. estão presentes apenas o
A literatura para crian- vermelho e o negro, cores
ças e jovens foi importante das tradicionais tinturas indígenas
porta de entrada para tal e ca- obtidas do urucum e do jenipa-
be a Daniel Munduruku um dos princi- po,. Fernando Vilela utiliza-se de
pais papéis na articulação entre autoria e uma paleta contida e forte nas
publicização da literatura indígena. Escri- xilos para o magnífico Sabedo-
tor, publicou, em 1997, Histórias de índio, obra ria das águas, de Munduruku, em
sucedida por fluxo ininterrupto de relatos que dis- que, à beira do rio Tapajós, Koru vive o imemo-
seminam a poética e os valores culturais indígenas rial dilema de Fausto.
por leitores infantis e juvenis de todo o país. O livro A tentação do herói de Goethe é a tentação e o
ilustrado, espaço de diálogo entre os campos verbal pecado do colonizador: dominar o espaço-tempo dos
e visual, objeto lúdico e provocador por excelência, Ilustração: Colagem digital de Maíra Lacerda colonizados, o que resulta no sequestro da alma des-
fomenta a produção de significados no processo de a partir de ilustrações de Fernando Vilela ses povos. Koru renuncia ao desejo fáustico ao saber
leitura, deslocando o leitor de posições anteriores, do preço a pagar por ele, e ouve a voz do enorme ga-
oferecendo a ele um novo lugar na compreensão do vião-real:
mundo. Alcança-se, no tempo de toda infância, is-
to é, no tempo aiônico da experiência, a constru- Viste seres que não são deste mundo no qual te mo-
ção de diversa mentalidade, construída na recepção ves. [...] São viajantes solitários pelo espaço-tempo do
aos valores dos povos originários. As cosmogonias, cosmo. Têm poder, mas não mandam em ninguém. Têm
a força do elemento fantástico, o aspecto sagrado prestígio, mas não têm como usufruí-lo. Eles fizeram a
do mito, as histórias de origem carregam posições escolha a que hoje renunciaste por amor a teu próprio es-
fundadoras e identitárias que sensibilizam crianças paço-tempo.
e jovens. Configura-se, portanto, um país feito de a uma profusão de belos e consis-
alteridades e de consideração às verdades históricas tentes livros, com robusta premia- Entre a criação dos fantasiosos I-Juca-Pirama, Pe-
na interpretação de sua memória. ção nacional e internacional. ri, Ubirajara e outros, sem compromisso com a realida-
Em parceria com a Fundação Nacional do Nós – Uma antologia de de dos povos originários, e o consistente protagonista de
Livro Infantil e Juvenil, Munduruku amplia o es- literatura indígena, coletânea Maíra, advindo da experiência antropológica de Darcy
paço para escritoras e escritores indígenas, por meio de 2019, organizada e ilustrada Ribeiro, os indígenas tomam a si dizer da própria iden-
de seminários específicos e da criação de um con- por Maurício Negro, é uma des- tidade, em toda sua complexidade. O povo Guarani
curso literário voltado exclusivamente a obras dessa sas obras. Na acepção de Viveiros Mbyá chama de belas palavras a uma linguagem ritual,
autoria. Um passo seguinte é a criação do Instituto de Castro, nós tem o valor de um extremamente elaborada, ayvu porã, [...] revelada pelas di-
Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual. O pronome cosmológico, em refe- vindades aos dirigentes espirituais e pronunciadas em oca-
fortalecimento de uma produção literária, que de- rência ao grupo. Na introdução, siões especiais, a partir de um vocabulário e conceitos muito
mandava etiqueta e se mostrava incipiente, conduz o esclarecimento essencial: próprios: o povo brasileiro está aberto a ouvi-las.
JANEIRO DE 2023 | 29

rascunho recomenda INFANTOJUVENIL HQS

O vestido de Afiya foi publicado


originalmente na Inglaterra e em 2020
eleito um dos melhores livros infantis
do ano pelo jornal The New York Times,
que o descreveu “como uma combinação
de história poética com arte expressiva”.
Na história, o vestido da menina grava
as memórias de seus dias, de rosas em
cachos a pombas em revoada, de tigres O vestido de Afiya
no zoo a folhas cadentes do outono. Uma JAMES BERRY
A tragédia da princesa celebração da infância escrita pelo poeta Ilustração: Anna Cunha
Rokunomiya Trad.: Marcos Marcionilo
jamaicano James Berry e ilustrada pela
Olho de Vidro
KUNIKO TSURITA artista brasileira Anna Cunha. 28 págs.
Trad.: Alice Nogami
Veneta
504 págs. Márcia Leite escreve para crianças e
jovens há mais de 25 anos. Tem livros
publicados por diversas editoras brasileiras,
Kuniko Tsurita é uma artista alguns deles premiados, como a coleção
pioneira dos quadrinhos. Historinhas bem..., em parceria com o
Quebrando regras e rompendo escritor Caio Riter, que ganhou o Prêmio
tabus, tornou-se a primeira Açorianos de Literatura na categoria
mulher a publicar regularmente infantil. Castelos de areia é uma memória
na legendária Garo, a revista que escrita e visual, sobre “lembranças salgadas
liderou os mangás de vanguarda que trazem o cheiro dos dias de sol perto Castelos de areia
no Japão. Tsurita não apenas foi do mar, o barulho das ondas e o som
MÁRCIA LEITE
aquela que melhor retratou a das risadas das crianças”. Um retrato das Ilustração: Odilon Moraes
cena underground do Japão dos histórias contadas, das férias de verão, da ÔZé
anos 1960, mas também uma efemeridade e passagem do tempo. 48 págs.
pioneira que, por exemplo, ousou
retratar amores explicitamente
lésbicos. Misturando influências Amanhã apresenta ao leitor três narrativas
da literatura francesa (Sade, Jean entrelaçadas. A primeira história resgata
Genet, Le Clézio, Céline, Camus) as memórias da autora e leva ao ambiente
com outras das artes plásticas e rural onde ela viveu, descrevendo seu
o psicodelismo de artistas como percurso até a escola. A segunda também se
Tadanori Yokoo e Aquirax Uno, passa no Brasil, durante a Segunda Guerra
os quadrinhos de Tsurita são de as primeiras histórias publicadas na Garo até a última, Mundial, quando o governo brasileiro
tirar o fôlego, impressionantes em Flight, que, entre outras coisas, fala de voar sobre a proibiu o uso da língua japonesa, fechando
sua ousadia e beleza. A tragédia floresta amazônica. A edição conta inclusive com escolas, desautorizando a circulação de
da princesa Rokunomiya é uma um texto de Naoyuki Takahashi, viúvo de Tsurita, a periódicos e impedindo os imigrantes e Amanhã
ampla coletânea que reúne desde respeito do interesse que a artista tinha pelo Brasil. seus descendentes de viajarem livremente. LÚCIA HIRATSUKA
Por último, somos apresentados ao relato Pequena Zahar
de Orie, imigrante japonesa, cuja infância 64 págs.
no Japão inspira a terceira narrativa.
O pequeno astronauta Árduo amanhã
JEAN-PAUL EID ELEANOR DAVIS Autora de livros de História e biografias,
Trad.: Renata Silveira Trad.: Érico Assis Lilia Moritz Schwarcz volta seu olhar para o
Nemo Tordesilhas
público infantil nesta narrativa. Alvo é um
152 págs. 152 págs.
garoto cheio de energia. Ele mora com a
família em um bairro elegante, vai à escola
todo dia pela manhã e, a despeito de ser
um garoto curioso, pouco percebe sobre
o mundo à sua volta, tão diferente do seu.
Ebony adora fazer amigos e contar histórias.
Quando Alvo e Ebony se encontram, uma
Óculos de cor — ver
Todos os anos, Juliette faz sua peregrinação de Em Árduo amanhã, a personagem Hannah jornada especial tem início na vida dos e não enxergar
bicicleta até o bairro onde cresceu. Este ano, tem trinta e poucos anos, trabalha na área de dois. Neste caminho, Alvo se dá conta
LILIA MORITZ SCHWARCZ
em frente ao antigo apartamento da família, saúde domiciliar e é ativista antiguerra. Seu de que o mundo é muito mais diverso Ilustração: Suzane Lopes
há um cartaz: “Vende-se — Open House”. Ao marido, Johnny, é um maconheiro que passa do que ele imaginava e de que é possível Companhia das Letrinhas
passar pelas portas da casa de sua infância, as os dias em casa trabalhando na construção “ver e enxergar” além das nossas próprias 144 págs.
memórias vêm à tona. Os amigos, as pequenas de uma nova casa antes que o frio do inverno existências e com muito mais cores.
alegrias, mas acima de tudo a lembrança chegue. Eles moram na traseira de um
avassaladora de seu irmão Tom, um pequeno caminhão, à espera de uma gravidez que parece
astronauta que mudou a vida de todos. O que nunca virá. Com as pernas para cima para Em Histórias cansadas, o uruguaio
pequeno astronauta, de Jean-Paul Eid, é uma maior chance de concepção, Hannah Mario Levrero retoma de forma
uma ode à vida, por meio da narrativa sobre a vasculha os Reddits de fertilidade enquanto irreverente a tradição de contar histórias
chegada de uma criança com uma deficiência Johnny sonha com uma grande e variada horta para os pequenos na hora de dormir.
grave. Tom não anda nem fala, mas seu sorriso para garantir que tenham sustento suficiente Escrita na forma de um roteiro de teatro,
mudo é uma prova de sua felicidade e dará caso o fim dos tempos chegue, o que, dada a encontramos apenas o diálogo entre uma
sentido à vida de toda uma família. Famoso frágil democracia em que vivem, não parece criança chamada Nícolas e um adulto
quadrinista da região canadense do Quebec, algo tão distante. Ajudando Hannah na luta que encontra as saídas mais absurdas para
Jean-Paul Eid nasceu no Líbano. Filho de mãe por um futuro melhor está sua melhor amiga conseguir, enfim, deitar um pouquinho e Histórias cansadas
belga e de pai libanês, sua família imigrou Gabby, uma naturalista que ela idolatra e tirar um cochilo. Em suas histórias, surge
MARIO LEVRERO
para o Canadá quando ele tinha três anos. que a adora. E Johnny, em sua missão de um senhor que também busca um lugar Ilustração: Diego Bianki
Em 1985, depois de estudar artes visuais e construir a casa, conta com a ajuda de Tyler, para repousar e ele faz isso, mesmo que Trad.: Antônio Xerxenesky
desenho, começou a trabalhar com HQs e um teórico da conspiração obcecado por sua cama seja um guarda-chuva virado ao FTD
ilustrações. Foi colaborador da revista Croc, na suas próprias noções nebulosas da realidade. contrário ou que tenha que se espichar todo 29 págs.
qual a premiada série Les aventures de Jérôme Árduo amanhã concilia momentos de como um elástico, por distâncias enormes,
Bigras foi publicada. O autor gosta de renovar profunda conexão humana a outros de medo, até conseguir colocar cada partezinha de
a relação entre HQ e leitores. ameaças e insegurança. seu corpo exausto na cama para dormir.
30 | JANEIRO DE 2023

Colonialismo Em Sobrevidas, o tanzaniano Abdulrazak


Gurnah, ganhador do Nobel de literatura 2021,

revisitado
expõe o cinismo europeu na África

FAUSTINO RODRIGUES | BELO HORIZONTE – MG

A
inda que seja um tanto nho, optando por expressar singu-
desconhecido do públi- laridades e, consequentemente, a
co brasileiro, Abdulra- capacidade de elaboração e inter-
zak Gurnah possui uma pretação das experiências vividas
consolidada obra literária. O No- por parte dos africanos — a partir
bel de literatura, outorgado em de agora, tomemos cuidado com a
2021, apenas coroa uma trajetó- palavra “colonizado”, que perde o
ria a conferir-lhe uma notoriedade seu sentido no livro. Enfim, não há
a ponto de iniciar os processos de preocupação em apresentar respos-
tradução de seus livros para o nos- tas, em reivindicar algo, em forne-
so idioma, dando-nos acesso a um cer uma espécie de reação a todo
material até então exclusivo, preso um agressivo processo social, polí-
nas mãos de especialistas. Sobrevi- tico e cultural que prevaleceu por
das, de 2020, é o seu primeiro li- mais tempo do que deveria.
vro editado no Brasil. Sobrevidas realça o cinismo
Abdulrazak Gurnah nasceu europeu ante a dominação trajada
no arquipélago de Zanzibar, atual de missão emancipadora e desen-
Tanzânia, em 1948. Ainda mui- volvimentista. A visão colonizado-
to jovem, devido aos conflitos em ra, datada e, portanto, anacrônica,
seu país, emigrou para a Inglater- orienta-se pela suposta incapacida-
ra, onde vive até hoje. Durante es- de de os “colonizados” compreen-
se tempo, manteve uma relação derem aquilo que realmente lhes
muito próxima com a cultura de faria bem. A isso, como sabemos,
seu país e o continente de origem, tem-se a desconsideração das ex-
sobretudo a África Oriental. Fir- periências pessoais e, por sua vez,
mou-se como professor universitá- das singularidades envolvidas nos
rio, ministrando aulas de literatura processos relacionais ali evidentes.
na Universidade de Kent. Gurnah afia a lâmina de sua críti-
Foi durante o exercício da ca ao demonstrar a preocupação
docência que iniciou os seus passos quanto às relações sociais, às tro-
na escrita. Diferentemente de ou- cas culturais, sempre presentes em
tros autores consagrados, confor- uma determinada sociedade. Em
me nos diz em algumas entrevistas, seu caso específico, a Tanzânia, tais
quando jovem, não sabia que um relações ocorrerão com o que lhes
dia se tornaria escritor. A sua for- estiver posto à mesa.
mação literária ocorre em paralelo Por isso que não é somente a
à acadêmica, revelando traços sin- resistência ao movimento colonialis-
gulares de sua escrita, mesclando ta que se torna algo importante para
Definitivamente, o
a necessária curiosidade do pes- Gurnah — embora a sua relevân-
quisador com a capacidade nar- cia seja inquestionável. Nas mesmas colonialismo é importante
rativa do escritor — evidenciada proporções, a própria conivência, ou para o entendimento da
pela construção de diálogos en- mesmo ingenuidade, de alguns que, África de Sobrevidas.
tre diversos autores africanos bas- durante aquele período, foram en- Através das experiências
tante influentes em sua produção, tusiastas da dominação europeia, e dos personagens fica
como Chinua Achebe, Ngũgĩ wa no caso de Sobrevidas, da domi-
Thiong’o, entre outros.
nítido o impacto da
nação alemã e inglesa, também são
Ao ser laureado pela Acade- importantes. O que fica, indepen- violência da dominação
mia Sueca, foi sublinhada a capaci- dentemente do que seja, não pode europeia, operando em
dade do autor em descrever, falar, ser negligenciado enquanto fator pa- um plano mais profundo.
pelos imigrantes na Europa — te- ra a construção de uma história, ou
mática bastante presente em sua de várias histórias.
obra, cujo expoente neste sentido é
Paradise, ainda sem tradução pa- Mistura cultural
ra o português. Simultaneamente, Sobrevidas inicia com Kha-
frisou-se a atenção dada aos efei- lifa, um trabalhador comum que
tos do processo de colonização na tenta ganhar a vida honestamente.
África, com destaque para a Tan- Pela apresentação, sabemos que
zânia. Sobrevidas exemplifica es- ele tem origens indiana e africa-
te último ponto. na, sugerindo a existência de uma
mistura cultural na Tanzânia —
Sobre vidas importante entroncamento co-
Gurnah não se furta à crí- mercial no Oceano Índico. Mais
tica ao colonizador. Poderia fazer do que a valorização da essência
isso por meio de uma afinada iro- de uma identidade cultural ou ou-
nia, como forma de subestimar ou tra, importa, aqui, o que de fato
ridicularizar os europeus na Áfri- está presente.
ca; ou mesmo por meio de uma Khalifa se casa com Bi Asha,
escrita quase toda repleta de ele- sobrinha de seu patrão, o merca-
mentos exclusivos das culturas dor Amur Biashara. Posteriormen-
africanas, esforçando-se por reme- te, conhece Ilyas, de quem se torna
ter a uma secular autenticidade, à grande amigo, adotando a sua ir-
originalidade e riqueza, reforçan- mã caçula após a ida para a guer-
do o quanto disso foi destruído pe- ra, iludido que se encontrava com
la ganância ocidental. a dominação alemã — tratam-se Abdulrazak Gurnah por
Contrariamente, o autor de de conflitos alemães decorrentes Ramon Muniz
Sobrevidas segue por outro cami- da Primeira Guerra Mundial.
JANEIRO DE 2023 | 31

Na calma narrativa de Gur- A despeito de seu conheci- Assim sendo, Gurnah fi-
nah, despontam os acontecimen- mento do idioma alemão, pratica- ca à vontade para desfazer qual-
tos e como eles são assimilados mente o único uso que Hamza faz quer tipo de expectativa e noção
pelas pessoas envolvidas. O fato disso é a transcrição de um poema de final feliz como recompen-
de Ilyas se alistar voluntariamente de Schiller para a sua amada. Eis sa por tudo o que foi vivido. Is-
entre os temidos askaris (uma es- uma interessante metáfora quan- so porque, normalmente, o final
pécie de mercenários locais), para to ao fato de nada de sua história feliz poderia ser admitido como
lutar ao lado dos alemães, não nos ficar para ser escrito, permanecen- o coroamento de uma trajetó-
induz a um julgamento de seu ca- do no silêncio, mesmo na relação ria, muitas vezes repleta de desa-
ráter. Contrariamente, o escritor com os mais próximos, restan- fios. Trata-se de uma herança da
apresenta as razões que o fizeram Sobrevidas do unicamente a oralidade co- literatura ocidental que, duran-
seguir este caminho, mostrando o ABDULRAZAK GURNAH mo fonte primordial para que se te parte significativa dos sécu-
quanto da própria personalidade Trad.: Caetano W. Galindo tenha acesso às experiências sin- los 19 e 20, admitia, em nome
Companhia das Letras
em questão foi moldada por cir- gulares dos africanos com o colo- de uma noção muito precisa de
333 págs.
cunstâncias construídas ao longo nialismo dos séculos 19 e 20. missão a ser cumprida, que de-
de sua história. safios deveriam ser enfrentados
Em momento seguinte, a Os protagonismos ante uma lógica previamente es-
narrativa fica centrada em Ham- Sobrevidas não foca o co- tabelecida de bem e correto a se-
za, também recrutado pelos ale- lonizador. A atenção está nas re- rem buscados.
mães, na Schtztruppe (a tropa lações entre mundos e culturas Claro, o caminho traçado
oficial dos germânicos na região), distribuídos nas inúmeras partes em Sobrevidas não é novida-
com os guerreiros askaris. Por sua dos muitos territórios africanos. de na literatura contemporânea.
vez, ele vem a ocupar um cargo Por isso o silêncio de Hamza se Mas, definitivamente, sugere a
doméstico, de serviçal, junto ao faz importante. Seguindo na ter- ruptura com uma perspectiva de
Oberleutnant, um oficial, atuan- ceira pessoa, o autor produz um interpretação da trajetória oci-
do como seu assistente particular efeito de insinuação, fazendo- dental de colonização que, em
— gerando diversos comentários -nos pensar o tempo inteiro so- se tratando especificamente do
preconceituosos entre os demais bre o que se passa na cabeça de continente africano, tem Cora-
recrutas que se encontram na li- seus personagens. Ao leitor, pre- ção das trevas como referência
nha de combate. so em uma instigante curiosida- para boa parte do ocidente mo-
É por exigência de seu ofi- de, resta prosseguir com a leitura derno. Gurnah revira Conrad do
cial que Hamza aprende alemão. de maneira a ficar em evidência a avesso, reposicionando o foco do
Chega a ler Schiller no original. TRECHO complexidade de cada um deles. tema tal qual ele deve ser tratado.
E, a despeito da posição ocupa- Sobrevidas
Uma complexidade, a partir de O dualismo civilização e barbá-
da, Gurnah não deixa de insinuar tal insinuação, que valoriza as ex- rie é vivido pelo próprio africano
a violência existente no domínio periências individuais e, por sua a descobrir o coração da África.
europeu no continente africano, Uma tarde, Hamza entrou vez, suas histórias. Eis o motivo pelo qual
seja pela condicionada subser- no escritório com o café e Isso fica claro nos momen- Gurnah fornece uma grande
viência à qual Hamza se encon- cumprimentou o comandante tos em que Khalifa, sujeito des- aproximação com os persona-
tra submetido, seja pela finalidade confiado e com certo amargor gens. Através disso, projeta uma
com a qual o aprendizado de ou- em alemão como devia, mas adquirido com o passar do tem- consciência quanto a sua escrita,
tro idioma lhe é imposto. ele estava tão compenetrado po, interroga Hamza, contentan- quanto ao tema tratado, porque
Mas, claro, a violência físi- no que lia que não respondeu. do-se com o silêncio na resposta. o narrador, em terceira pessoa,
ca existe. Concomitante à derrota Os papéis que tinha na mão Existe sempre a expectativa de al- poderia, de antemão, ser deten-
alemã, Hamza é gravemente feri- go a ser dito, justificado. Mas a tor de um conhecimento sobre
do durante o ataque de raiva de pareciam um documento importância quanto ao que deve a situação vivida e que ali se en-
um oficial. Retirado do conflito, oficial, e Hamza viu o ser dito, justificado, encontra-se contra descrita. Entretanto, é ele
transfere-se para um acampamen- emblema do governo no alto toda sobre os personagens. quem exige do leitor o constan-
to a fim de se restabelecer, retor- da página. Por fim, o oficial te envolvimento com a trama
nando, depois, a Zanzibar, onde, Tanta coisa tinha sido arran- apresentada.
enfim, encontra Khalifa, passan- percebeu a presença de Hamza cada de sua vida que ele às vezes fi- Desde o primeiro livro pu-
do a trabalhar com ele e o merca- e fez um sinal para ele sair do cava paralisado por uma sensação de blicado, em 1987 (já com quase
dor Biashara. escritório, e não o chamou para inutilidade diante de tudo o que pu- 40 anos), até os dias atuais, Ab-
Aqui, Gurnah nos entrega a aula de conversação de meia desse desejar fazer. Era uma sensação dulrazak Gurnah escreveu dez
um belo senso de humanidade e que ele combatia diariamente e que romances. Produção significa-
solidariedade logo após a descri- hora que normalmente tinham. a oficina e o trabalho com a madei- tiva, demonstra o nosso desco-
ção dos conflitos que feriram Ha- ra, além da benéfica companhia co- nhecimento quanto a obras desse
mza. Isso porque Khalifa o acolhe tidiana do carpinteiro, de alguma quilate. O escritor tanzaniano é
em sua casa, mesmo nada saben- maneira, ajudavam a dissipar. o primeiro de seu país a ser lau-
do sobre o seu passado e o que o reado com o Nobel de literatura.
levou até ali. Como consequência Definitivamente, o colonia- Ao todo, dos 119 ganhadores, o
da guerra, Hamza permanece cala- lismo é importante para o enten- continente africano teve apenas
do — chega a temer que saibam de dimento da África de Sobrevidas. cinco premiados: antes dele, Wo-
seu conhecimento do idioma ale- Através das experiências dos per- le Soyinka, Naguib Mahfuz, Na-
mão, sob a pena de ser identificado sonagens fica nítido o impacto dime Gordimer e J. M. Coetzee
como um colaborador, tendo em da violência da dominação euro- — os dois últimos, brancos.
vista a dominação, agora, inglesa peia, operando em um plano mais Mais do que celebrar a en-
sobre o país. Na convivência en- profundo. A mudança da perso- trada de Abdulrazak Gurnah para
tre os dois, conhece e se apaixona nalidade de Khalifa, com o passar um seleto rol de maiores escrito-
por Afiya, irmã de Ilyas, perdido dos anos, tornando-se uma pessoa res da história, a premiação deve
no conflito e criada como se fos- mais amarga, deixa isso bastante servir para que obras como as suas
se uma filha de Khalifa e Bi Asha. evidente — serve até mesmo para sejam popularizadas, de maneira
Chama atenção a importân- demarcar a passagem do tempo. que cheguem ao grande público e
cia da oralidade na obra de Gur- Isso denota a vulnerabili- a países que não se encontram no
nah. São muitas as remissões a dade dos personagens do livro, centro das decisões sobre a pro-
conhecimentos de povos locais e desprovidos de heroísmo e re- dução e o consumo cultural no
passagens do Alcorão, atestando o denção. Não estão ali para ser re- mundo. Se Gurnah, com sua nar-
seu vínculo cultural com a região. verenciados, contemplados. Isso rativa potente, conseguiu inverter
Entretanto, o autor não confere é um claro artifício do autor pa- a lógica do entendimento quan-
O AUTOR
um tom de exotismo ou excen- ra fazer com que diferentes vozes to ao processo de compreensão
tricidade a este fato, pontuando-o ABDULRAZAK GURNAH se manifestem revelando as suas do colonialismo na África, talvez
até mesmo como referência para experiências com a África colo- esteja aberto agora o preceden-
Nascido em 1948, em Zanzibar,
que se compreenda o lugar ocu- nial e o subjugo europeu em seu te para que se inverta igualmen-
na Tanzânia. Em 1994 foi finalista
pado pela cultura do colonizador do Booker Prize, com Paradise.
intenso processo exploratório. te o eixo dessa produção cultural,
ao longo do processo de domina- Foi professor de literatura na
Não há uma visão única, mas, desmanchando o seu centro e es-
ção. Sobrevidas está longe de ser Universidade de Kent e recebeu o sim, uma polifonia, decorrente palhando focos para diversos ter-
um livro contemplativo. prêmio Nobel de literatura em 2021. de vivências diferenciadas. ritórios do mundo.
32 | JANEIRO DE 2023

tércia montenegro
TUDO É NARRATIVA

LUZ
quinze quilômetros. A impossi- sos exemplos de retoques, encena- mais diversas, como comida, lixo ou
bilidade de enterros apropriados ções ou montagens são revelados, diamantes. O lado trabalhoso e de-
favorecia o risco de epidemia, e as- em obras bastante conhecidas. morado do processo artístico — que

DA VIDA
sim foi preciso calcinar as ruínas Embora seja cabível discutir os li- tão bem se percebe num vídeo sobre
com lança-chamas, além de mu- mites éticos de tais procedimen- o processo criador de Teun Hocks,
rar abrigos provisórios. tos no caso de fotos documentais, por exemplo — talvez esteja em de-
O que Richard Peter pai viu em nenhuma outra ocasião as edi- cadência, nos artistas da geração Y
e viveu (vamos tomá-lo como sím- ções de imagens devem ser julga- ou Z. Com a facilidade dos progra-

S
bolo de tantos) é inclassificável. das negativamente. Criticar um mas de edição que produzem ima-
Saber que tantas pessoas estavam fotógrafo por aperfeiçoar sua obra gens já absolutamente desprendidas
e todo retrato é um re- ali, sob os escombros, algumas vi- é tão absurdo quanto censurar um do real, através de montagens qua-
torno do morto (con- vas mas sem chance de resgate e, escritor por reescrever um origi- se automáticas, vindas de um acervo
forme dizia Roland portanto, condenadas a perecer no nal: o trabalho de revisão integra do próprio software, o passo seguin-
Barthes em A câmara fogo antes que seu corpo espalhas- qualquer arte e, quando o autor te é a desmaterialização da própria
clara), por outro lado também é se doenças... apenas essa escala de sabe o que está fazendo, o resul- obra. Isso se realiza em negociações
uma forma de refletir sobre a vi- horror deve ter preservado a men- tado tem maior qualidade que a de produtos não-fungíveis, os tais
da e suas circunstâncias. O volu- te do absoluto desespero. Porque versão “bruta”, inicial. NFTs, feitos para consumo digital,
me Photo Icons, publicado pela os que perderam tudo mas esta- Descobrimos ainda como sem dimensão empírica, por assim
Taschen sob organização de Hans- vam vivos ainda eram sortudos. E, uma belíssima fotografia de mo- dizer. A luz se torna, em tais ima-
-Michael Koetzle, trouxe uma boa então, o que poderiam fazer? Re- da, Corset Mainbocher, de Horst gens, o único elemento sensitivo pe-
oportunidade para isso, ao co- construir a cidade, refazer a pró- P. Horst, pode ensejar uma discus- lo qual podemos desfrutá-las.
brir uma história da fotografia de pria identidade. Uma fotografia, são política, na medida em que a A fotografia se afasta cada vez
1827 a 1991. Não se dedica aos junto com o seu contexto, traz peça de roupa exibida na ima- mais do mundo e dos aprisiona-
tempos mais recentes, da chama- uma preciosa lição acerca de re- gem, em 1939, já era considera- mentos referenciais, para se tornar
da pós-fotografia — mas para tan- cuperar os eixos. É preciso tomar da um “vestígio da época feudal” um recurso de inventividade. Na
to podemos consultar os livros de uma atitude prática em prol das e um acessório agressivo à saúde impossibilidade de citações exaus-
Joan Fontcuberta, que já citei nes- melhorias, nem que seja um ges- das mulheres. Entretanto, um es- tivas, trazemos somente mais um
ta coluna, algum tempo atrás. to mínimo por dia, e é preciso não partilho fotografado à beira da Se- autor — Joel-Peter Witkin —, que
A publicação de Koetzle a desistir da beleza, não deixar que o gunda Guerra sem dúvida pode inclusive dialoga com vários outros.
cada capítulo parte de uma foto ódio a substitua. representar algo mais que a repres- Koetzle comenta que “é principal-
icônica, por assim dizer, e faz sua Através da análise de va- são em torno de um único corpo... mente como uma revolta contra a
análise incorporando curiosidades, riantes de fotos — como, por Com Sandy Skoglund, te- tradição da iconoclastia judia e con-
dados técnicos e informações sobre exemplo, na obra de Man Ray mos um exemplo da tendência tra o tabu que representam o corpo
o autor. Com esse método aparen- —, acompanhamos o processo de, a partir dos anos 1980, a foto- e o erotismo na religião cristã que se
temente simples, segue numa pro- pelo qual um artista chega à per- grafia se tornar cada vez mais per- deve ler sua obra”.
gressão cronológica que, ao final, feição. Quem vê somente Noi- formativa. Os autores, em vez de Conhecido como o Bosch da
constrói um panorama da própria re et blanche aprecia o equilíbrio encontrar seus temas na realida- fotografia, Witkin coloca em cena
história humana nesse período dos rostos (o de Kiki de Mont- de, capturando-os sem interven- personagens desviantes: anões, gi-
(claro, sob uma perspectiva ainda parnassse e o de uma máscara ção ou manipulação, começam gantes, siameses, transexuais antes
eurocêntrica, podemos criticar). africana), em posições, tons e for- a praticar “staged photography”, da cirurgia, além de “todos aque-
Recordamos situações extre- matos tão complementares, que ou seja, “fotografia posta em ce- les que nasceram sem braços, sem
mas que talvez hoje tenham sido pode ser levado a pensar que foi na”. Skoglund constrói esculturas pernas, olhos, seios, órgãos genitais,
pacificadas na memória, e no en- fácil compor a cena. Mas o que de papel machê, gesso ou poliés- orelhas, nariz, lábios”. O interesse
tanto foram grandes tragédias. O parece hoje evidente surgiu após ter, para ambientar suas instala- por corpos excepcionais lembra a
fotógrafo Richard Peter pai, que um longo processo de testes, uma ções fotográficas. estética de Diane Arbus, embora o
registrou a destruição de Dresden busca confusa em que o autor sa- Revenge of the goldfish e Ra- estilo de retrato seja bem diferen-
pelos nazistas, perdeu nos bom- bia, sim, desde o princípio que dioactive cats são duas de suas fa- te (Arbus preferia as poses frontais,
bardeios seus arquivos, milha- os dois rostos juntos seriam capa- mosas obras com essa proposta. com poucos ornamentos, ao passo
res de placas, negativos e provas zes de gerar uma boa foto — mas O aspecto manual de uma cons- que Witkin monta cenários elabo-
que representavam trinta anos de não alcançou de imediato a me- trução prévia de artefatos para rados, com releituras do repertório
trabalho. Ao seu redor, centenas lhor maneira de criar a imagem. serem fotografados lembra Vik iconográfico). A proximidade com
de vítimas mortas ou queimadas Aliás, a falsa ideia de que Muniz, na medida em que este outro fotógrafo do grotesco, Jan
— e a maioria não pôde ser reti- a fotografia depende de um es- artista brasileiro (não citado no li- Saudek, é notável — mas, para além
rada dos escombros, porque a de- pontaneísmo pode ser dissipada vro trabalhado aqui) adota, para destes nomes mais modernos, o seu
vastação da cidade se estendia por com a leitura desse livro. Diver- compor suas figuras, matérias as trabalho referencia clássicos como
Giotto, Velázquez, Goya, Rem-
Ilustração: Miguel Paiva brandt, Archimbold e Delacroix.
Ao tematizar corpos alterna-
tivos, Witkin, por um lado, é acu-
sado de oportunismo escandaloso
— mas, por outro, é defendido por
seus próprios modelos, que afirmam
ter posado para ele numa atmosfe-
ra de respeito e dignidade. Para es-
tas pessoas, habitualmente postas
num lugar à margem, invisível do
comum social, serem fotografadas
em sua identidade “ganha uma força
metafísica”. Como o próprio autor
ressalta, episódios de sua infância
fizeram com que ele se interessasse
pela gente excluída, e isso, de acordo
com Hal Fisher, estimulou em sua
obra algumas ideias filosóficas extre-
mamente complexas, “uma misce-
lânea de pensamentos oriundos da
cabala judaica, da fé católica, da fi-
losofia oriental e da cultura under-
ground moderna”. Esse amálgama o
inspirou a buscar a “expressão divi-
na” em retratos, à primeira vista, re-
pulsivos. E quem dirá que aí não se
revela uma verdadeira luz da vida?
JANEIRO DE 2023 | 33

luiz antonio de assis brasil


O CÂNONE NA MOCHILA

OS BELOS
dignava a morrer, faziam projetos
de viagens, compras extravagan-
tes, mansões, e nisso apostavam

E MALDITOS
seu futuro. Milionários, poderiam
discutir mais detidamente sua re-
lação, levando-a a um “novo acor-
do”, talvez mais sincero, talvez
mais apaixonado, coisa que, natu-
ralmente, nenhum leitor acredita.
O destino — esse nome que da-
1. mos ao que não nos agrada pensar
O período mais gracioso, in- — por fim agiu e, a partir de certo
teligente e criativo do malfadado momento a vida de ambos foi um
século 20, foi aquele dos anos 20. parque com diversões, mas onde
Saía-se da Primeira Guerra Mun- havia uma gigantesca montanha-
dial e dava-se adeus ao monótono -russa que os elevava aos píncaros
e burguês século 19 e, para maior e logo os deixava no chão, para lo-
ganho, não se adivinhava, ainda, go recomeçar.
a hecatombe que estava por eclo-
dir. Nessa época, tudo era possível, 6.
inclusive amar livremente, cantar O capítulo correspondente
e dançar, assumindo uma inocen- ao final tem um título: Não im-
te frivolidade, e ao mesmo tem- porta!. Essa sentença, com sua es-
po, abriam-se as portas para todas trondosa exclamação, simboliza e
as experiências artísticas. Os ho- significa um espírito leve e cíni-
mens abandonavam os bigodões co, de que nunca Patch abdicou,
retorcidos e as mulheres desco- e que ele compartilhava com uma
briam, além da liberdade sexual, geração inteira. Um verdadeiro
a possibilidade de inventar figuri- dandy nunca se dá mal; mesmo
nos sexy; eram as flappers que, no que derrotado várias vezes, não se
Brasil, chamávamos de melindro- considera vencido.
sas. Claro, estamos a falar apenas
da classe média, branca, estuda- 7.
da e viajada. As pérfidas exclusões E agora, o que nos diz Os
permaneciam intocadas, especial- belos e malditos? Antes de tudo,
mente no nosso país. é a demonstração de um eficien-
te artesanato de novela, que esta-
2. belece um foco e o persegue até o
A literatura não podia pas- fim, dando lições a quem escreve,
sar ao largo dessa ebulição, e den- e a principal delas é a superflui-
tre os ficcionistas mais notórios dade de uma mudança da perso-
que repercutiam o espírito situa-se nagem ao final; Anthony Patch
F. Scott Fitzgerald. O nome lem- termina a história tal como a co-
bra de imediato sua obra mais ce- meça. Sua perspectiva da vida não
lebrada, O grande Gatsby, levada se altera, embora os sucessivos re-
várias vezes ao cinema e ao teatro. vezes e glórias — algo que perce-
Digamos: Fitzgerald consagrou-se bemos, também, no Alex, de A
como autor-metonímia do perío- laranja mecânica. Quando ve-
do. Claro que o Gatsby é, sem re- jo iniciantes preocupados com
toques, uma novela exemplar por o famigerado twist do final, a di-
sua relevância literária, absoluta, ta virada na personagem, costu-
mas também e principalmente, Ilustração: Amy Maitland mo recomendar esses dois livros.
pela representação implacável de Também recomendo pelo refina-
um magnata que enriqueceu por Anthony Patch é um dandy que belos e de suas faces a tornavam mento das construções das per-
meios discutíveis. Com isso, uma circula em alto estilo, vive de ren- a pessoa mais viva que ele jamais sonagens, especialmente do casal;
novela como Os belos e maldi- das e sua profissão é esperar a mor- vira”. Mau começo, que levaria o cada qual tem sua individualida-
tos quase desaparece numa visão te do avô, que lhe deixaria uma casal a uma vida de altos e baixos, de, e mesmo suas brigas não ficam
retrospectiva de vida e obra, mas montanha de dinheiro. Tem, por com direito a discussões perver- no gratuito que parecem osten-
estou por dizer que se iguala artis- essas virtudes, relações próximas sas, das quais não excluíam bebe- tar, mas radicam justamente nes-
ticamente ao Gatsby, que, à dife- com a alta sociedade nova-ior- deiras e bordoadas. A imaginação sa distinção entre ambos. Não
rença de Os belos... trata de um quina, da qual extrai o melhor, e de Fitzgerald era inegável, e muito são opostos, mas semelhantes —
caso singular, centrado numa fi- seu caso de amor, embora vitrió- próxima: na vida real, Gloria Gil- eis o grande desafio do ficcionis-
gura emblemática e suas circuns- lico e brutal, não o impede gozar bert era a tumultuosa Zelda, sua ta. Sendo iguais, não há conflito;
tâncias. Já quanto à novela sob as modas e costumes, bem como brilhante esposa, fulminante em se são opostos, a relação é de uma
exame, esta traz um título plural, a frequência à vida artística, à mú- todas as áreas em que se metia, reles luta livre. No plano extra-
que funciona como um programa sica popular e aos shows dos caba- jazz-baby, mas dotada de um gênio literário, a novela de Fitzgerald
para sua interpretação: é uma clas- rés. Seu único contraponto a esse de arrasar pirâmides, que acabou também nos fala do efêmero das
se inteira que está denunciada em estilo são seus patéticos diálogos vítima de esquizofrenia e interna- construções culturais e sociais
suas páginas. Belos, sim, que ti- com um escritor fracassado, que se da num sanatório. Viver na corda que, enquanto acontecem, pa-
nham na beleza exterior sua mais transforma numa relação de ami- bamba amorosa era a especialidade recem eternas mas, que, passada
visível glória; malditos, sim, por- zade e ódio, já que o mesmíssimo de Fitzgerald e, visto bem de per- uma década, já não valem mais.
que degradavam-se por seus mé- Patch tinha veleidades de escritor, to, habituara-se a essas tempesta- Os Roaring Twenties, anos de exal-
todos cheios de falsidade e rancor. envolvido eternamente num fan- des temperadas a álcool. tação à vida, foram, na década se-
tasmagórico livro sobre os papas guinte, substituídos pela ascensão
3. do Renascimento. 5. dos regimes autoritários de direi-
Os belos e malditos saiu Se John Marcher, de A fera ta, responsáveis pelo maior hor-
a público quando Fitzgerald ti- 4. na selva, viveu toda a vida à espera ror a que assistiu a Humanidade.
nha apenas 24 anos e já era tido A relação sentimental dá-se de um acontecimento metafísico Assim, diz-nos Fitzgerald, vamos
como celebridade e se declarava, com uma certa Gloria Gilbert, por — o bote da fera na selva —, que aproveitar a paz e a democracia,
sem nenhuma modéstia, como quem Patch se apaixona desde lo- viria a mudar sua existência, o ca- mas sem descuido das forças sem-
o melhor escritor a escrever so- go por sua beleza — a pior forma sal Gloria Gilbert e Anthony Patch pre a postos para solapá-las. Por
bre sua geração, o que não é pou- de apaixonar-se —, dizendo dela vivia à espera dos dólares de uma tudo isso, a novela Os belos e
co. Vejamos do que trata o livro: que “a luminosidade de seus ca- herança. E enquanto o avô não se malditos vai para a mochila.
34 | JANEIRO DE 2023

A
Peter Handke por Oliver Quinto
epígrafe do livro é uma
citação do evangelista
Lucas que menciona a
necessidade de os discí-
pulos levarem consigo pelo me-
nos uma espada quando forem
viajar. Eles, porém, apresentam
logo duas. “É o suficiente”, reco-
nhece o Senhor. Ou seja, desde a
abertura, a história narrada pelo
austríaco Peter Handke se anuncia
como violenta, ou pelo menos po-
tencialmente violenta. Mas A se-
gunda espada: uma história de
maio, livro publicado na esteira
do prêmio Nobel de literatura,
que recebeu em 2019, é no fun-
do uma história de Peter Handke,
ou seja, reflexiva, analítica, ponde-
rada, bastante descritiva e muito
digressiva, em que a violência fica
restrita ao anúncio das intenções
e não vai muito mais além.
“Então essa é a face de um
vingador!” A afirmativa de aber-
tura do livro é cheia de promes-
sas. Porém, trata-se de uma forma
expansiva de iniciar o roman-
ce e talvez atrair a atenção do lei-
tor desavisado, que pode ir cheio
de sangue nos olhos ao pote e ser
desencaminhado a seguir para o
mundo das decepções. A não ser
que se trate de leitor contumaz,
que acompanha a carreira de
Handke desde que ele se associou
ao cineasta Wim Wenders para
adaptar o roteiro do livro O me-
do do goleiro diante do pênalti,
e que nos anos oitenta do século
passado mobilizava toda uma ga-
ma de discussões profundas sobre
os meandros da alma brasileira,
não tão distinta da alma europeia
ou da alma do mundo, ou algo pa-
recido com tudo isso. À medida
que chegaram aos leitores brasilei-
ros as traduções de textos como A
tarde de um escritor foi possível
perceber que Handke pertence a
uma linhagem cada vez mais es-
pessa de escritores que transitam
entre ficção e não ficção, borran-
do a linha de fronteira de maneira
ostensiva, para afirmar que tudo
é um pouco mais complicado do
que os rótulos convencionais dei-
xam entrever (certo J. M. Coetzee
— aliás outro ganhador de Nobel
— e todo o G. W. Sebald vão por
esse caminho, por exemplo). Nos
últimos tempos, aliás, a editora de
Handke no Brasil, que já foi a ca-
rioca Rocco e tornou-se a paulis-
ta Estação Liberdade, tem lançado
vários pequenos textos de caráter
ensaístico, o quarteto Ensaio so-

Vingança
bre o dia exitoso, Ensaio sobre
o cansaço, Ensaio sobre o lou-
co por cogumelo e Ensaio so-
bre a jukebox. O título dessas
pequenas obras não deixa dúvida
a respeito da filiação de Handke

de escritor
com as ideias, embora certo tre-
cho recente da vida do escritor es-
teja marcado por certa polêmica
justamente nesse campo. Expli-
ca-se: em 2006, ele apoiou publi-
camente o ex-presidente do que
continuou sendo chamado de Iu-
goslávia (uma junção de Sérvia e
A segunda espada, de Peter Handke, lançado após a polêmica do Montenegro), o sérvio Slobodan
Milošević, e, para fazer isso, des-
Nobel de literatura 2019, concentra-se em prosa digressiva e atenta qualificou o genocídio de bósnios
de que o ditador vinha sendo jul-
gado pelo Tribunal Penal Interna-
PAULO PANIAGO | BRASÍLIA – DF cional, em Haia, ao morrer, nesse
JANEIRO DE 2023 | 35

O AUTOR
ano. Handke falou no funeral, o Diante de uma delas, num paletó novo, Armani. “Respeitá-
que desceu quadrado na comuni- meio-dia silencioso de alto verão, di- vel”, comenta, lacônico, o escritor. PETER HANDKE
dade intelectual. Além disso, em go e escrevo que tive uma visão um A televisão está ligada, exibe um
Considerado um escritor
2014, cinco anos antes de receber tanto apocalíptica, ou de terror, ao jogo da liga inglesa, ou espanho-
de vanguarda no fim dos
o principal prêmio literário do imaginar que estava sobre o solo tão la, e ele também se atenta à clien- anos 1960, o austríaco
planeta, ele tinha declarado que sozinho quanto ela, sob sua mira, a tela. Depois conclui, a respeito de Peter Handke participou
o Nobel devia ser abolido porque mira daquela águia gigantesca, co- si: “Eu tinha o hábito de sempre de grupos de escritores
não passava de circo. Bem, os de- mo último ser humano, visível atra- desviar os olhos dos acontecimen- e chegou a manter
tratores evidentemente não se es- vés da claraboia celeste, aqui, sobre a tos internos para os externos, tão uma editora com outros
quivaram da piada a respeito de superfície terrestre. distantes quando possível, menos colegas na Alemanha,
quem seria o palhaço, portanto, para os céus do que para o chão e para onde havia se mudado.
quando ele resolveu aceitar ser re- É assim a prosa de Handke: a terra”. E então a conversa deriva Aliás, ele se mudou bastante, de
cipiente do prêmio. meticulosa, minuciosa, a explo- para a vingança. É preciso matar cidade dentro de um mesmo país, ou de país. Além
É sempre bom, nesses ca- rar um presente eterno que parece uma pessoa. Ele joga conversa fo- de Alemanha e Estados Unidos, morou, aliás mora,
na França, embora tenha passaporte iugoslavo desde
sos, saber separar o cidadão civil, se arrastar indefinidamente, num ra, sugere ao léu que poderia pa-
o fim da década de noventa. Colaborou com Wim
geralmente um cretino, daqui- modelo de sintaxe que cascateia gar um bom dinheiro para algum Wenders em vários roteiros, inclusive do seu livro O
lo que ele consegue produzir em entre conceitos articulados, em- interessado que se encarregue de medo do goleiro diante do pênalti, mas também nos
termos de literatura. Também bora distintos. O leitor deve saber matar alguém por procuração. originais Movimento em falso e Asas do desejo. Envolto
nesse caso Handke não está so- que é o trajeto, a reflexão, os miú- É nesse ponto que o leitor em controvérsias ao exibir posicionamentos políticos,
zinho. Louis-Ferdinand Céline, dos pormenores o que mais inte- chega à informação do que ele de- ele ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2019 por
Mario Vargas Llosa e Jorge Luis ressa. Se tiver essa disposição, tudo seja se ver vingado. Uma pessoa “explorar a periferia e a especificidade da experiência
Borges, por exemplo, lhe fazem bem, a obra o supre com elegân- ofendeu sua mãe, por meio de pa- humana”, conforme a declaração da academia sueca
companhia, por diferentes moti- cia e de maneira contínua com re- lavras. O ato solicita nada menos que concede o prêmio. Antes disso, acumulou várias
vos, mas dentro do mesmo mo- flexões que a certa altura parecem que vingança. Mas o interlocutor, outras premiações, inclusive muitas que levam nomes
delo esquizofrênico de separação intermináveis. de origem árabe, portanto supõe- de escritores, como o prêmio Georg Büchner (1973), o
Thomas Mann (2008), o Kafka (2009) e o Ibsen (2014).
entre autor e obra que o leitor às O narrador, portanto, permi- -se que conheça os pormenores
vezes se vê compelido a fazer em te ponderar a respeito da ausência mais violentos que envolvem vin-
benefício da literatura e em detri- de barulho dos contêineres de li- ganças, lhe adverte e sentencia:
mento à vida pedestre. Basta um xo na madrugada, ou barulhos que “Você mesmo é que tem de fazer
pouco de leitura do novo roman- surgem à distância mas são mais ou isso”. Um novo anúncio é feito: A segunda espada:
ce de Handke para verificar como menos indistintos, para depois in- a vingança é contra uma mulher. uma história de maio
isso funciona na prática. troduzir uma velha história bíblica Quando alguém se adianta e se PETER HANDKE
a respeito de um homem arrastado oferece para executar o serviço, o Trad.: Luis S. Krausz
Justiça que tarda pelos cabelos para longe de seu lu- escritor recua, diz que estava ape- Estação Liberdade
A segunda espada se anun- gar de nascimento, por Deus ou por nas de brincadeira. Mas evidente 176 págs.
cia como história de vingança, um outra força superior. Ele tem certa que não desistiu da ideia da vin-
dos temas mais óbvios e recorren- inveja do sujeito, “desejava ser agar- gança. Volta para casa, dorme,
tes não só da literatura, mas de ex- rado por trás, pela minha cabeleira, reflete mais um pouco. Está deci-
tensa cinematografia, e no entanto levado pelos ares, graças a alguma dido. Quando vai sair novamente,
não se trata em absoluto disso no força misericordiosa, para longe”. pensa a respeito de que livro levar
livro, mas do período de prepara- Do lugar em que estava? Não exata- consigo, Os trabalhos e os dias,
ção daquilo que se anuncia como mente, apenas do aqui e agora. Sem de Hesíodo? Um Simenon? O a vingança convencional, não o derramamento de
vingança. O vingador, no entanto ter quem o puxe, puxa-se ele mesmo Evangelho Segundo Lucas? Não, sangue, a morte brutal, violenta, não esse tipo de
— e o liame entre narrador e au- pelos cabelos, dirige primeiro a vio- livro algum pode ser levado como violência, mas outro, a violência das palavras, a re-
tor também é difícil de se pentear, lência contra si, antes de assestá-la a companhia, afinal, para essa mo- cusa por exemplo a nomeá-la, a conceder-lhe um
nesse livro —, se atém a refletir alguém distinto. Depois comenta a dalidade de tarefa. nome dentro da narrativa. Em outras palavras, o
a respeito da vontade de vingan- respeito dos vizinhos, ou da mulher A hesitação a respeito da que está em andamento é uma típica vingança de
ça, nos idos de maio, um mês re- que entrega cartas e que anuncia pa- presença ou ausência de um livro escritor. “Para ela, a malfeitora, assim como para
corrente na obra do escritor, talvez ra breve a aposentadoria. Trivialida- numa potencial cena de crime dei- seus semelhantes, não havia lugar na história, nem
por ser o auge da primavera no des da vida cotidiana, enfim, com as xa claro que esse sujeito jamais vai nessa nem em qualquer outra”, ele anota, enquanto
continente europeu. quais ele parece se deleitar grande- cometer vingança, por mais que se sonha que o lápis da mulher vai se partir em dois e
Como sempre, o livro avan- mente. Pode ser o ruído de um gra- creia resoluto e determinado. Es- isso a impedirá de seguir tomando notas. Ele nem
ça não por texto contínuo, mas veto, o detalhe visual de uma cena, se é claramente o sujeito da pa- mesmo a confronta. Basta essa vingança elegante,
por blocos fixos, sem entrada de o despertar da imaginação: “Aqui e lavra, não da ação. Lá adiante se a contrapelo das expectativas anunciadas.
parágrafo, como se fossem real- ali, também ali e mais ali, abria-se a fornecem mais detalhes a respei- O que parece claro, à parte as controvérsias
mente anotações ainda em estágio perspectiva de um novo início, feliz- to do que efetivamente aconte- políticas em que Handke tem se engajado nos úl-
fragmentário do que será depois mente indefinível, mas, ainda assim, ceu e despertou a suposta fúria timos anos, é que o mesmo modelo de prosa se so-
alinhavado como texto fluente, alguma perspectiva, graças à qual o do narrador. Trata-se de uma mu- lidifica nele, cada vez mais. Muitos vão chamar a
mas o estágio nunca é efetivamen- ar fresco haveria de soprar”. Mas afi- lher que escreveu artigo de jornal isso de ter estilo (e é preciso mantê-lo em exercí-
te alcançado e portanto restaram nal, está a se perguntar o leitor mais contra o escritor, mas trouxe para cio). Mas a verdade é que essa redundância siste-
blocos de anotação sincopada, da- aflito, é de esperança que se trata? dentro da discussão a mãe, e isso, mática, a certa altura, provocará cansaço, mesmo
dos à condescendência do leitor. A De olhar minucioso? E onde fica a há de se convir, não se faz. Acusa- no leitor mais benevolente, que julgava encontrar
contemplação no espelho do pró- danada da vingança, o derramar do -a de ter festejado a anexação da em passagens de A tarde de um escritor ideias
prio rosto, o desejo de vingança sangue, a honra lavada? Calma, pri- Áustria pela Alemanha, de ter sido realmente originais, como aquela que menciona o
“de longa data devida”, o discurso meiro, tem um bar no caminho, o membro do partido nazista. Não é papel de uma “escuta adicional” que surge em de-
que chega a preparar para o mo- Bar dos Viajantes, com seu séqui- acusação simples, como se consta- corrência de lançar o olhar para dentro de si, e que
mento de despejá-lo contra o opo- to mal ajambrado de bebuns con- ta. Acresce-se, para quem conhe- o leva a propor um modelo de simbiose entre a es-
nente, tudo isso demora muito e tumazes, com os quais é preciso ce a vida pessoal do escritor, que cuta e a coescrita, “como uma tradução, na qual a
se apresenta ao leitor em ritmo confraternizar, na companhia ain- sua mãe cometeu suicídio, no iní- questão era usar uma secreta fala original em lu-
lento, ponderado, quase exausti- da da mulher do Departamento de cio da década de setenta. E não há gar de um modelo visível”. Naquela época, parecia
vo, mesmo que o narrador esteja Assistência Social, que também se motivo aqui para se separar narra- haver consistência no texto e no que ele pretendia
ao longo do texto em permanente incorpora aos deserdados do mun- dor de autor, nada indica que essa dizer. O de agora se ressente de outra coisa. Parece
deslocamento pela malha urbana do, ainda nos degraus que dão aces- separação convencional deva estar resultar de uma reciclagem persistente de si mes-
da cidade, com citações a metrô, so ao bar. E então, depois de tanto em cartaz, no caso. Não era uma mo e, quanto mais acumula prêmios, comendas,
ônibus, estações, bondes, trens. observar e descrever, ele se dá conta acusação menor ou lateral, na re- títulos de doutor honoris causa, mais difícil é per-
Não é a vingança em si o de que falta algo, e percebe que esse portagem, porque houve também ceber o que é realmente talento, o que é cansaço
que interessa, nem mesmo sua algo que falta é a continuação. Mas uma fotomontagem que localiza a (lembre-se do título de um dos livrinhos da série
motivação algo sinuosa, ou pelo continuação do quê? Não está claro, mãe dele numa multidão que re- Ensaio sobre). O cansaço não é só de uma época,
menos mantida sob sigilo por boa talvez não precise estar, cada leitor cebeu Hitler em júbilo, em mar- é do próprio escritor, do limite e do esgotamento
parte do texto. O que interessa é preencha com o que achar melhor, ço de 1938, no centro de Viena. de suas ideias a respeito do mundo, mesmo que
a reflexão a respeito nem mesmo escritores não existem para formular apareçam sob a nova capa da controvérsia polí-
do teor da vingança, mas do mo- respostas, mas para fazer novas per- A caminho da exaustão tica. E o fato de ser política aponta para talvez
mento que o escritor atravessa. Ele guntas, do tipo inquietante, é talvez Ainda assim, é difícil acredi- os limites mesmo da atuação da literatura num
fala do subúrbio a sudeste de Paris o recado subjacente do texto. tar na execução da vingança, da- mundo que cada vez mais parece precisar menos
onde reside, dos latidos de cachor- Quando anoitece, ele se diri- da a natureza digressiva do autor e (ou se iludir de que é assim) de literatura. Nem
ros, da paisagem, mesmo de cer- ge a outro bar, o Bar das Três Esta- sua demasiada demora em colocar a tradução se oferece mais para salvá-lo de um
tas águias que sobrevoam a região: ções, onde o dono lhe mostra um o plano em prática. Ou bem, não mundo em ruínas.
Revolução BAIXE
dos Bichos G R ÁT I S
O clássico de Orwell em
uma edição exclusiva. gazetadopovo.com.br/revolucaodosbichos
JANEIRO DE 2023 | 37

DIVULGAÇÃO
O AUTOR
Dessa obsessão, nascida do A metade fantasma
ALAN PAULS tédio e da impossibilidade de olhar ALAN PAULS
a si mesmo como alguém ativo no Trad.: Josely Vianna Baptista
Nasceu em Buenos Companhia das Letras
mundo, Savoy joga para escanteio
Aires (Argentina), 322 págs.
o que ainda lhe resta de vida. Aos
em 1959. É
escritor, professor,
cinquenta anos, está completa-
roteirista e crítico mente deslocado do tempo, exis-
de cinema. Mais tindo em um lapso tão íntimo que
conhecido por seus é incapaz de incorporar os avan-
livros de ficção, ços sociais. Pauls retrata esse des-
como O pudor do locamento em um objeto banal de
pornógrafo (1985), seu protagonista: um celular velho, entre a ficção criada deliberada-
Wasabi (1994) e O ultrapassado para os padrões mo- mente como espaço de manobra
passado (2003) dernos. (O próprio Pauls é, na ver- da vida e as memórias inventadas.
— vencedor do dade, um náufrago digital: possui Esses traços de um mundo
Prêmio Herralde
uma conta no Instagram, fechada fugidio e de uma vida sem muito
—, Pauls publicou
também os livros
e pouco atualizada.) atrativo vão levando Savoy a uma
de ensaios O fator Se Savoy é esse sujeito ain- espécie de apatia diante de tudo o
Borges (2000) e da preso ao século 20, Carla é o que o cerca. Seus pontos de con-
A vida descalço oposto, aquilo que podemos cha- tato entre a realidade mais ime-
(2006). Atualmente, mar de nômade digital. A cone- diata e um contexto mais amplo
graças a uma xão mais próxima entre dois, além se perdem pouco a pouco. Em de-
bolsa de criação da internet — via Skype —, é a terminada cena, em que está co-
literária, vive em relação estranha com casas: Carla nectado com Carla via Skype,
Berlim (Alemanha). cruza o mundo para ser uma es- Savoy duvida da identidade da
pécie de cuidadora de moradias, amante por desconhecer o am-
sem qualquer laço sentimental ou biente em que ela está. Não o ros-
fixo que a prenda ao lugar em que to dela, sua voz e quaisquer outros
está. Essa alheação, que, em algu- pontos comuns que conferem a

Buenos
ma medida é necessária para o seu ela a sua individualidade, mas os
trabalho, passa também para a for- objetos que a cercam.
ma com a qual se relaciona com as Nesse sentido, seriam, por-
pessoas. Seu contato inicial com tanto, os objetos — esse delírio
Savoy é intermediado pelo com- silencioso de Savoy — o verda-

Aires blues
putador — Savoy, claro, em uma deiro, e talvez único, contato do
máquina que muitos podem cha- protagonista com a sua realida-
mar de rudimentar — e, quando de. Mais uma vez, o autor escon-
finalmente deixa de ser virtual, de uma conclusão fechada atrás
não consegue suportar o peso da de uma narrativa elíptica que vai
realidade, a força do caos do en- construindo uma complexa rela-
Em A metade fantasma, o argentino contro de dois corpos à deriva. ção centrífuga. Savoy, por certo, é
É a partir dessa tensão, ora prisioneiro do seu próprio mun-
Alan Pauls narra a saga de um homem superficial, ora um mergulho do, enfiando até a cabeça em suas
deslocado, perdido em si mesmo mundo adentro, que A metade paranoias e devaneios. Tanto alija-
fantasma se sustenta. Pauls con- mento não poderia produzir outro
segue tratar, sem ser sisudo, de te- efeito que não fosse o isolamen-
JONATAN SILVA | CURITIBA – PR mas que estão na nossa cara e, ao to e a devastação social. A solu-
mesmo tempo, não os traveste de ção, a única possível, era suportar
urgentes ou necessários, como se o mundo dopado.

C
tornou praxe na literatura, prin-
omo confiar em uma coleciona objetos cuja utilidade cipalmente, a literatura brasileira Numa sexta-feira, por exem-
cidade que dá as cos- é, no mínimo, duvidosa. contemporânea. O escritor argen- plo, a piscina era pura psicodelia.
tas para o seu rio? A Uma leitura mais atenta à tino trabalha a sua história com Brilhos, reflexos ondulantes, cores
pergunta, com que es- psicanálise diria que o problema naturalidade e desejo de contar que vibravam. Uma cortina de he-
tampa o narrador de Medianeras, de Savoy teria a ver com questões uma boa história. xágonos luminosos caía a quarenta e
um dos filmes indie da sétima ar- da infância não resolvidas. Pauls cinco graus. Escamazinhas de luz a
te portenha, parece ser também a não dá um indício certeiro dessa Passado, presente e futuro tilintar na água como lentes de con-
gênese de A metade fantasma, ro- interpretação, porém, deixa pistas A metade fantasma con- tato perdidas. Savoy lamentou —
mance mais recente de Alan Pauls. que possibilitam essa lógica. firma a predileção de Pauls pe- primeira vez que lhe acontecia isso
Tanto o longa de Gustavo Toretto la memória e pela resolução de na piscina — não ter ido chapado.
quanto o livro de Pauls tratam de Uma vez cismou com um des- mistérios ancestrais e imediatos.
um tema similar: a internet como ses abajures infantis inspirados nos O passado, talvez sua obra mais Ao fim e ao cabo, A meta-
mediação das relações, ou como antigos zootrópios, em cujas cúpulas conhecida por aqui — e que ga- de fantasma é um dos livros mais
no slogan de Medianeras, Buenos cilíndricas se projetam os prodígios da nhou filme dirigido por Babenco interessantes e ambiciosos de Alan
Aires na era do amor virtual. cinética popularizados pelo primeiro e estrelado por Gael García Bernal Pauls, e também um dos retratos
Savoy, o protagonista de cinema: trens a todo o vapor, atletas —, foi publicado há duas décadas, mais pungentes de uma socieda-
A metade fantasma, não é co- correndo, cavalos acompanhados em porém já tratava dessas relações si- de doente, incapaz de lidar com
mo Martín, o encabulado per- pleno salto. Por mais apressada que nuosas entre passado e presente. seus sintomas e cicatrizes. Savoy é
sonagem do filme; e, claro, Carla fosse, a referência a uma pré-histó- A trilogia das histórias — Histó- o paciente terminal desse sistema
não tem quase nada de Maria- ria mítica da imagem em movimen- ria do choro (2007), História do ca- de vida. E, mesmo sabendo que
na, a futura parceira de Martín, to — e o súbito laço íntimo entre a belo (2010) e História do dinheiro é impossível sair dessa, faz da sua
ainda assim, existe algo que cru- infância da indústria audiovisual e (2013) — também já se colocava deriva, e de seus pedaços, uma sal-
za esse double date: a solidão das a de um menino, um menino du- de cabeça nas contradições entre vação ao seu modo.
metrópoles — o tal do não lugar, plamente menino, porque imagina- realidade e lembrança, história e
o espaço antropológico de invisi- do sempre prestes a dormir — tocava memória, pessoal e coletivo.
bilidade das grandes cidades. Sa- em algum ponto fraco de Savoy (…). Imenso devedor de Ricar-
voy, Carla, Martín e Mariana são do Piglia, que influenciou boa LEIA TAMBÉM
todos peças soltas do xadrez urba- Que ponto fraco seria es- parte dos romances de Pauls,
no, dos esquemas capitalistas de se, se é que existe? Na verdade, em A metade fantasma a rela- O passado
vidas vazias, preenchidas somente o protagonista Savoy está muito ção mais próxima, na verdade, ALAN PAULS
por um escape fortuito. No caso mais fechado em si mesmo do que parece ser com outro portenho, Trad.: Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras
de Savoy, a fuga é sair por Buenos possa parecer. Seja por ser e estar Manuel Puig, em especial, O
606 págs.
Aires visitando casas e apartamen- vulnerável, seja por um cansaço, beijo da mulher-aranha —
tos para alugar, praticando um imposto pela sociedade, Savoy es- também transformado em filme
voyeurismo do espaço que, ou- tá totalmente perdido e obcecado, por Babenco. Molina e Valentin,
trora, pertenceu e abrigou outras lançado ao mar aos seus próprios personagens de O beijo da mu-
existências. Ao mesmo tempo, tubarões e turbulências. lher-aranha, vivem como Savoy,
38 | JANEIRO DE 2023

A LAMA NÃO
COBRE TUDO
RODRIGO SANTOS
Ilustração: Denise Gonçalves

P
assava um pouco das nove da manhã, e
Anderson já deitava uma long neck na
loja de conveniência do posto de gaso-
lina. Quando queria sair do tumulto da
cidade, ia pra lá. Pegava uma cerveja e observava
os caminhões rasgando a estrada. Madeira, borra-
cha, cimento, e às vezes até animais vivos.
Tinha saudades do mar.
— Bugalu?
Anderson nem virou.
— Não ouço esse nome há anos.
— Porque ninguém aqui te conhece como
eu conheço. Posso me sentar?
Anderson fez um meneio de cabeça e indi-
cou a cadeira vazia com o queixo. Sabrina sentou,
e colocou a mochila em cima da mesa.
— Você nunca bebia antes das dez. Di-
zia que um pescador de Arraial do Cabo tinha
te ensinado isso.
— É, mas não pretendo pescar hoje mesmo.
Virou a long neck e se levantou, sumindo
pela porta da loja. Voltou com mais duas cerve-
jas, uma água com gás e um bombom Serena-
ta de Amor.
— Obrigada. Pela lembrança.
— Você está muito longe de casa, Sabrina.
— E não é? — Bebeu a água de uma vez,
comeu o bombom e depois abriu a cerveja, gi-
rando a tampinha com ajuda da camisa. — Não
sou a única, né? Qual é o teu carro, é aquela ca-
minhonete ali?
— Não, é o Sandero cinza.
— Ora, ora, quem diria. Bom, à nossa.
As garrafas se tocaram, de maneira tímida.
— Como você me achou?
— Ah, cara... Eu sempre soube que você es-
tava vivo. Foi tipo um pavê de improbabilidades,
né? Seu corpo nunca foi achado.
Anderson bebeu mais um gole.
— Nem o meu, nem tantos outros que fo-
ram soterrados.
— Ao mesmo tempo, teve o lance da esco-
la... Claro que o Instituto Abel, o grande colégio
católico de Niterói, não ia deixar vazar, né? Mas
eu tava lá, Bugalu. Todo mundo sabia que tinha
dado merda. Eu só liguei os pontos.
— Você ainda usa a aliança.
Sabrina olhou para o dedo anelar da mão
direita.
— É, ela ainda cabe. Mas não usei esse
tempo todo não. Afinal, doze anos, né? Só co-
loquei para vir te encontrar. Vejo que você não
usa nenhuma.
— Não me casei, não. Vivo sozinho nesse
fim de mundo.
Sabrina olhou para a estrada, para os ca-
minhões.
— Mas não vive duro, né?
Anderson fez um muxoxo.
— Não posso me queixar.
Ela riu.
— Caralho, Buga. Você roubou a mensa-
lidade de todos os alunos! É muito aluno, e to-
dos pagando caro! Você veio pra Corumbá com
a burra cheia de dinheiro, enquanto a gente espe-
rou meses pra ganhar um apartamentinho fudido
JANEIRO DE 2023 | 39

onde era o 3º BI. Como você fez? — Você deveria ter sido o Entraram na casa quase se engolindo. Anderson
— O quê? meu primeiro. — Anderson arre- mal conseguia respirar, a língua de Sabrina passeava
— Como você conseguiu galou os olhos. — A gente se guar- por sua boca, suas bochechas, seu pescoço. Ela nem
desviar todos aqueles boletos? dando, toda aquela pegação no tinha tirado a mochila das costas, suas mãos aperta-
Bebeu a cerveja, suspirou. sofá da tua casa, e eu antecipando vam os ombros dele, as unhas se encravando na pele.
Que mal havia? Doze anos já. o momento maravilhoso de você Anderson recebia todo aquele carinho com o
— Eu alterei o código de ser o meu primeiro homem. Um amor guardado, interrompido pela tragédia. Mais de
barras. menino trabalhador, inteligente, uma década ele a esperou. Não havia um dia que não
— Você o quê? que me trazia bombons Serenata acordava e pensava em voltar a Niterói para buscá-la,
— Alterei o código de bar- de Amor, fazendo faculdade com apesar do medo de ser preso. Investiu a maior parte
ras. Eu era o responsável pela bolsa, enquanto eu limpava aque- do dinheiro, tinha bastante coisa guardada, no banco
emissão dos boletos, daí alterei las salas, sabe? Aquelas salas imun- e em casa, mas não tinha aquele beijo. Aquelas mãos.
os códigos de barras para que to- das, com aquele monte de papel Subiram para o quarto.
dos os pagamentos fossem para de bala e chiclete jogados pelas — Vai se preparando, preciso mijar antes. Liga
uma conta fantasma. No dia que crianças ricas e mal-educadas. Eu o som, quero ouvir música. E alto, pra ninguém ou-
a barreira do Bumba caiu, eu não imaginava a gente junto a vida in- vir mais nada. — Ela disse, com um sorriso lascivo,
estava em casa, tinha ido sacar o teira, filhos brincando nas ruas, e entrou no banheiro.
dinheiro pra fugir. Eu sabia que você voltando do trabalho, todas Anderson tirou a roupa, ficando apenas de cue-
ia dar merda, mais cedo ou mais essas coisas. Comendo bombons ca. Ligou o som, colocou em uma rádio local. Era
tarde seria pego. Eu estava na rua, juntos, na cama. Eu sabia que vo- um bairro residencial e proletário, seus vizinhos de-
com a mala, quando vi pela TV. cê queria mais, era ambicioso, e eu viam estar trabalhando, mas ele aumentou o som as-
Foi a vez da Sabrina levantar imaginava que é por isso que você sim mesmo. Tirou a cueca, achou que era demais,
e pegar mais duas cervejas, e outra estudava depois do trabalho. Lem- colocou a cueca de novo. Sabrina demorava, e ele se
água mineral. Dessa vez ela bebeu bro do dia em que você largou o sentou. Olhou pela janela e sorriu. Ao longe, os ca-
primeiro a cerveja. futebol. “Sábado de manhã, Bina. minhões passavam na rodovia, quase no horizonte.
— Aí tu meteu o pé, foi da- Dá pra mim não, faculdade e tra- Tinha demorado, mas finalmente tudo daria
do como morto, e pronto, né? balho, eu fico acabado”, você dis- certo. Doze anos naquela cidade, uma vida discreta,
Cara, a tua mãe e teu irmão mor- se. E eu acreditei. apenas uma preparação para este momento, e ele veio.
reram ali. Meu padrasto. Teu par- — Eu vi que o campo foi Sabrina saiu do banheiro vestida, ainda. E com
ceiro Badureco também, e toda destruído no soterramento tam- uma arma na mão.
a família dele. E alguns amigos bém, né? — Cadê o dinheiro?
do futebol de sábado. Porra, até — Foi, mas a prefeitura fez Anderson ia se levantando, ela atirou em seu
o Johnny! outro depois. — Sabrina bateu joelho. Ele caiu no chão, gritando e tentando segu-
— Johnny era um cachor- com a mão no ar, como se espan- rar o ferimento.
ro maneiro. tasse uma muriçoca. — Eu criei — Cadê a porra do dinheiro, Bugalu?
— Até o Johnny morreu so- todo esse mundo na minha cabeça, — Sabrina... Eu achei que-
terrado por aquela lama toda! Eu e daí você desaparece debaixo da — Achou o quê? Que eu te amava? Que eu ia
ainda consegui tirar a minha mãe lama. Chorei, claro. Chorei pra ca- pesquisar, colocar detetive, viajar esse tempo todo, só
e meu irmão, e só. ralho. Achei que minha vida tinha pra dar pra você?
Anderson suspirou, e olhou acabado ali. Até descobrir o golpe Anderson se contorcia de dor.
para a ponta dos próprios pés. da mensalidade. Porra, Anderson, — Depois que a mídia perdeu interesse nos
— Sua mãe, como está? eu sabia que tinha sido você! To- desabrigados do Morro do Bumba, eu fui demitida,
— Está bem, tirando o pro- do esse tempo eu te cacei. Namo- Buga. Trabalhei como manicure, como depiladora,
blema da pressão, que só piorou. rei, dei pra uns filhos da puta que trabalhei em casa de família. O tempo todo sabendo
Agora deu pra beber escondido a não mereciam nem ter tomado que você estava rico em algum lugar, e eu sem um pu-
cachaça da pomba-gira pra gen- uma cerveja comigo. Quando es- to no banco. Você tem ideia do que é isso?
te não reclamar. Depois, tome-lhe tava ali, na cama, olhando pro te- — Mas você disse... Disse que queria que eu ti-
furosemida e captopril. to e esperando que o infeliz da vez vesse sido seu, seu primeiro homem...
Anderson riu. Corumbá era acabasse logo, eu só pensava nisso. Sabrina sorriu.
quente àquela época do ano. O ca- Você deveria ter sido meu primei- — Você deveria ter sido o meu primeiro. Não
lor refletido no asfalto gerava mi- ro. Primeiro e último. foi, e agora com certeza não será meu último. Onde
ragens distorcidas, e os veículos Anderson deitou a garrafa você guarda a grana?
levantavam a poeira fina quando de cerveja boca adentro, e não ti- Anderson começou a se levantar, e Sabrina o
passavam. nha mais nada. Ele não teve co- empurrou com a sola do pé.
— Eu estava voltando pra ragem de levantar e pegar outra. — Diz onde tá o dinheiro, e eu te deixo vi-
te buscar — falou, quase em mur- — Doze anos depois, eu te ver. Você ainda tem seus investimentos, pode conti-
múrio. acho. Deu trabalho, mas achei. nuar aqui nesse fim de mundo, e rico. Eu só quero
Sabrina virou a cabeça, e a Aí chego aqui, achando que você dinheiro.
apoiou com a mão esquerda, fi- era algum barão da soja, mas não. Anderson apontou para o armário, para a parte
xando o olhar em Anderson. Uma casa mais ou menos, de dois de cima. Sabrina foi até lá, e viu várias caixas de bom-
— Eu estava voltando pra andares, um carro merda, e cinza. bons, amarelas. Bombons da Garoto. Ela abriu a pri-
te buscar, a gente ia começar uma Você odiava carro cinza, dizia que meira caixa, e estava até a tampa de dinheiro.
vida nova, longe daquela mer- era carro de locadora. Devia ter umas doze caixas ali. “Uma para ca-
da. Depois eu via o que ia fazer, — Tenho que voar abaixo da ano”, ela pensou.
buscava minha mãe, sua mãe, o do radar. Andou até Anderson, que gemia.
Johnny, sei lá. Mas eu tava can- — Entendo, entendo. Mas — Bina... Leva tudo. Você está. Está certa.
sado de ser fudido, Bina. Tinha me espanta, né? Lembro de você Sabrina riu.
pesquisado, dá pra ganhar um falando naquele sofá que queria — Eu sempre estou. O problema é que, de vez
bom dinheiro investindo em ga- um dia ter uma picape, uma Pa- em quando, eu dou uma pirada.
do sem ser dono de nada, sabia? jero, não é esse o nome? Então. O tiro atravessou o tórax de Anderson, que
Mas quando vi aquelas imagens Chego aqui e você tem um... Um imediatamente parou de respirar, com os olhos ar-
na TV, pessoas conhecidas cho- Sandero! 1.0! regalados.
rando, com o rosto cheio de la- Os dois riram, e Sabrina foi
ma... Sei lá. Dei uma pirada. pegar as cervejas. As garrafas já se
— Deu uma pirada ou viu acumulavam na mesa.
a oportunidade perfeita? Dessa vez, ela voltou sem a
— Não sei. As duas coisas. água. Mas com um bombom.
— E largou todo mundo — Depois de dias de via-
pra trás, né? Inclusive eu. gem, eu te encontro.
Anderson pegou na mão A moça entregou a cerveja,
de Sabrina, que recuou como se eles abriram e brindaram. RODRIGO SANTOS
sentisse as patas pegajosas de um — E te encontro solteiro. Tem 46 anos. É um escritor de São Gonçalo
sapo. Ele suspirou, e se ajeitou Olhava fixamente para An- (RJ). Pai, marido, flamenguista, escritor,
na cadeira, virando-a de frente professor, roteirista e corredor de rua
derson, enquanto bebia a cerve-
assintomático. Autor de Macumba, Carcará e
pra ela. ja. Ela abriu o bombom, e comeu, Fogo nas encruzilhadas, entre outros. Já jogou
— Bina... em duas mordidas. bola com Zico e já viu um peixe-lua.
 
40 | JANEIRO DE 2023

LI-YOUNG LEE Pillow

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert There’s nothing I can’t find under there.
Voices in the trees, the missing pages
of the sea.

Everything but sleep.

And night is a river bridging


the speaking and the listening banks,

a fortress, undefended and inviolate.

You must sing There’s nothing that won’t fit under it:
fountains clogged with mud and leaves,
He sings on his father’s arms, sings his father the houses of my childhood.
to sleep, all the while seeing how on that face
grown suddenly strange, wasting to shadow, And night begins when my mother’s fingers
time moves. Stern time. Sweet time. Because his father let go of the thread
they’ve been tying and untying
asked, he sings; because they are wholly lost. to touch toward our fraying story’s hem.
How else, in immaculate noon, will each find
each, who are so close now? So close and lost. Night is the shadow of my father’s hands
His voice stands at windows, runs everywhere. setting the clock for resurrection.

Was death giant? O, how will he find his Or is it the clock unraveled, the numbers flown?
father? They are so close. Was death a guest?
By which door did it come? All the day’s doors There’s nothing that hasn’t found home there:
are closed. He must go out of those hours, that house, discarded wings, lost shoes, a broken alphabet.

the enfolding limbs, go burdened to learn: Everything but sleep. And night begins
you must sing to be found; when found, you must sing.
with the first beheading
of the jasmine, its captive fragrance
Você deve cantar rid at last of burial clothes.

Ele canta nos braços do pai, canta para levar o pai


ao sono, observando, naquele rosto, Travesseiro
algo estranho a crescer, e jogado no lixo das sombras,
o tempo corre. Tempo severo. Tempo doce. Porque seu pai Não há nada que eu não possa encontrar lá
debaixo.
pediu, ele canta; porque estão totalmente perdidos. Vozes nas árvores, as páginas do mar
De que maneira, no imaculado meio-dia, um encontrará que estavam faltando.
o outro, eles que são tão próximos? Tão próximos e perdidos.
Sua voz, nas janelas, avança em todas as direções. Tudo, exceto o sono.

Seria a morte um gigante? Oh, como ele encontrará seu E a noite é rio que numa ponte liga
pai? Eles são tão próximos. Seria a morte uma visita? as margens de quem fala e de quem ouve,
Por que porta ela entrou? Todas as portas do dia
estão fechadas. Ele precisa sair daquele tempo, daquela casa, uma fortaleza, indefesa e inviolada.

os membros, envolventes, carregam o peso de aprender: Não há nada que não se encaixe sob ele:
você deverá cantar para ser encontrado; e quando encontrado, fontes entupidas com lama e folhas,
deverá cantar. as casas da minha infância.

E a noite começa quando os dedos de minha mãe


vão soltando os cordões
que vinham amarrando e desamarrando
para tocar na bainha de nossa desgastada história.

Furious versions (#7) Versões em fúria (nº 7) A noite é a sombra das mãos de meu pai
ajustando o relógio para a ressurreição.
Tonight, someone, unable Esta noite, alguém, incapaz
to see in one darkness, de ver numa escuridão, Ou será o relógio desvendado, os números a
has shut his eyes fechou os olhos flutuar?
to see into another. para ver numa outra.
Among the sleepers, he is one Entre os que dormiam, ele é Não há nada que não tenha encontrado um lar ali:
who doesn’t sleep. o que não dorme. asas descartadas, sapatos perdidos, abecedário
Know him by his noise. Sei quem é pelos ruídos. quebrado.
Hear the nervous Ouço o nervoso
scratching of his pencil, rabiscar de seu lápis, Tudo, exceto o sono. E começa a noite
sound of a rasping com o som de uma lima
file, a small áspera, uma leve com a primeira decapitação
restless percussion, a soul’s e incessante percussão, uma alma do jasmim, sua fragrância cativa
minute chewing, mastigando minuciosamente, livre, por fim, das roupas de enterro.
the old poem o velho poema
birthing itself dando à luz a si
into the new neste novo
and murderous century. e sanguinário século.
JANEIRO DE 2023 | 41

LI-YOUNG LEE
Nasceu em Jacarta (Indonésia), em 1957. Sua família, de origem chinesa, outrora poderosa (o avô
foi presidente), caiu em desgraça com o regime comunista (o pai foi prisioneiro político). Depois
de uma longa peregrinação (Indonésia, Hong Kong, Macau, Japão), a família chegou aos Estados
Unidos, onde Lee vive desde os sete anos de idade. Sua poesia mescla, com uma linguagem
muito pessoal, a herança clássica chinesa e a contemporaneidade norte-americana.
DIVULGAÇÃO

Night mirror

Li-Young, don’t feel lonely,


when you look up
into great night and find
yourself the far face peering
hugely out from between
a star and a star. All that space
the nighthawk plunges through,
homing, all that distance beyond embrace,
what is it but your own infinity.

And don’t be afraid


when, eyes closed, you look inside you
and find night is both
the silence tolling after stars
and the final word
that founds all beginning, find night,

abyss and shuttle,


a finished cloth
frayed by the years, then gathered
in the songs and games
mothers teach their children,

Look again
and find yourself changed
and changing, now the bewildered honey

falling into your own hands,


now the immaculate fruit born of hunger.
Now the unequaled perfume of your dying.
And time? Time is the salty wake
of your stunned entrance upon
no name.

Espelho noturno

Li-Young, não se sinta só,


quando olhar para cima
para dentro da grande noite e perceber
que é um rosto distante a espiar
Nativity Natividade a imensidão que há
de uma estrela a outra. Todo aquele espaço
In the dark, a child might ask, What is the world? Na escuridão, uma criança pode perguntar, O que é o mundo? através do qual mergulha o falcão da noite,
just to hear his sister apenas para ouvir sua irmã regressando, toda aquela distância para além do abraço,
promise, An unfinished wing of heaven, garantir, É uma ala não terminada do paraíso, e o que é aquilo senão o seu próprio infinito?
just to hear his brother say, apenas para ouvir seu irmão dizer,
A house inside a house, É uma casa dentro de uma casa, E não sinta medo
but most of all to hear his mother answer, mas, na maioria das vezes, para ouvir sua mãe responder, quando, de olhos fechados, olhar para dentro de si
One more song, then you go to sleep. Só mais uma canção e você vai dormir. e descobrir que a noite é tanto
o silêncio a badalar pelas estrelas
How could anyone in that bed guess Como poderia qualquer um naquela cama saber quanto a palavra final
the question finds its beginning que a questão encontra seu começo que fundou o início de tudo, que encontra a noite,
in the answer long growing na resposta que lentamente cresce
inside the one who asked, that restless boy, dentro de quem perguntou, aquele menino inquieto, abismo e transporte,
the night’s darling? o queridinho da noite? e um pano despedaçado
desgastado pelos anos, e depois reunido
Later, a man lying awake, Mais tarde, um homem desperto, deitado, nas canções e jogos
he might ask it again, poderia perguntar novamente, que as mães ensinam aos seus filhos.
just to hear the silence apenas para ouvir o silêncio
charge him, This night atingi-lo, Esta noite Olhe novamente
arching over your sleepless wondering, que se arqueia sobre seus pensamentos insones, e veja como você mudou
e mudando, e agora o mel, perplexo,
this night, the near ground esta noite, o solo próximo,
every reaching-out-to overreaches, ultrapassado a cada tentativa de alcançá-lo, escorre até suas mãos,
e agora o imaculado fruto que nasceu da fome.
just to remind himself apenas para ser lembrado E agora o inigualado perfume de sua morte.
out of what little earth and duration, que para além de qualquer minúsculos terra e tempo, E o tempo? O tempo é o despertar salgado
out of what immense good-bye, que para além de qualquer imenso adeus, de seu ingresso, aturdido, onde
não se tem nome.
each must make a safe place of his heart, cada um deverá fazer de seu coração um lugar seguro,
before so strange and wild a guest antes que um visitante estranho e selvagem,
as God approaches. como Deus, apareça.
42 | JANEIRO DE 2023

ozias filho
QUEM EU VEJO QUANDO LEIO

RUY
VENTURA
RUY VENTURA
Nasceu em Portalegre (Portugal), em 1973. É poeta, ensaísta, investigador
e historiador de arte. Recebeu, em 1997, o Prémio Revelação de Poesia, Leia mais em
da Associação Portuguesa de Escritores. Desde 2000, editou mais de rascunho.com.br
uma dezena de obras poéticas, agora reunidas na antologia Criptopórtico
(Porto, Officium Lectionis, 2022), além de livros de ensaio, como A chave
de Sebastião da Gama. Está traduzido em espanhol, inglês, alemão e
italiano, com poemas editados em Espanha, Itália, Alemanha, Brasil,
México e Estados Unidos da América. No Brasil, editou a antologia Rua
da outra rua. Dirige com Nuno de Matos Duarte a Devir – Revista Ibero-
Americana de Cultura.
JANEIRO DE 2023 | 43

rogério pereira nutos pela revelação — uma pala-


vra que nos dizia muito pouco em
O cabelo está repartido ao meio. Uma orelha parece
muito maior que a outra, como se a qualquer momento
SUJEITO OCULTO todos os sentidos. a cabeça fosse tombar à esquerda. Estou sério e concen-
Sentamos num banco de trado, nenhuma nesga de sorriso escapa dos lábios. Logo

CARPAS E
madeira, o pai comprou um pa- abaixo do pescoço, camisa, gravata e paletó desenham um
cote de pipocas, com uns pedaços homem de brincadeira — uma espécie de playmobil exe-
esturricados de bacon. O pacote cutivo. Mas o que mais me chama a atenção é o olhar. Não

ESPANTALHOS
de papel cinza logo impregnou-se sei por que olho para cima, sem mirar de frente a câmara
de volumosas gotas de gordura. O do lambe-lambe. É um olhar meio perdido, talvez sonha-
sal na ponta dos dedos tentava dis- dor a vislumbrar algo na copa das árvores ou na jaula dos
farçar o ranço dos grãos. Ao final, macacos. Jamais comentei com o pai a estranha sensação
terminei por atirar o restolho aos causada por aquela simples fotografia.
pombos que bicavam o piso de ci- Também nunca mais voltei com ele ao Passeio Públi-

B
mento. Um banquete em meio a co. Não tínhamos motivos para passear pela cidade. Sem-
ailam na água suja sob M. está encantada com as macacos e araras presos em jaulas pre fomos apenas uma espécie de acidente genético. Um
a ponte centenária. Na carpas coloridas. A saída fica a ao nosso redor. O Passeio Públi- encontro ocasional no meio da jornada. Aprendemos que
extremidade oposta poucos metros. Noto que ela re- co abrigava uma selva tristonha de nossos caminhos se bifurcariam ao infinito, mesmo agora
nos observa o busto do siste a abandonar os peixes à soli- animais na região central de C., quando ele está ao meu lado com o corpo definhando em
príncipe dos poetas remelado pela dão da noite e de insossas pipocas. por onde os ônibus passavam en- direção a um final previsível.
astúcia certeira de pombos vadios. Deixo-a admirar o atabalhoado furecidos feito jiboias famintas. M. lamenta não ter pipocas para atirar às carpas. Ba-
Os olhos de M. arregalam-se dian- balé ciprinídeo. E aguardo meu Tenho até hoje aquela es- lança o corpo magro e serelepe como se a gravidade não a
te do colorido dos peixes gordos pai que vem ao meu encontro do tranha fotografia que durante atirasse de encontro aos meus ossos. Sinto certo descon-
em busca frenética por pipocas outro lado da rua. Agora, o dia e muito tempo estampou a iden- forto, mas não reclamo. M. está feliz no Passeio Público.
atiradas pelas crianças. M. reme- a luz do sol guiam nossos passos. tidade, com informações sobre a O carrossel segue girando lotado de crianças. Outros es-
xe-se no cangote. Sinto os ossos Carrega-me pela mão, num minha equivocada ancestralida- pantalhos zanzam alegres na multidão, que aos poucos se
impúberes pressionando meu cor- gesto meio indolente, desprovido de. Sobrenome trocado, cidade dispersa. A árvore de Natal ficará ali a iluminar a rua das
po magro. O pés a beliscar meu de cuidado e afeto. Temos de tirar de nascimento errada. Talvez dia prostitutas. Uma certa mansidão espraia-se quando boa
peito. Formamos um estranho es- a foto para a minha identidade. e ano de nascimento estejam cor- parte das pessoas toma o caminho da saída. Consigo con-
pantalho urbano de duas cabeças, Logo, começaria a trabalhar com retos. Mas não posso confiar nos vencer M. a também ir para casa.
quatro braços e alguma graça. carteira assinada. Afinal, já tinha trôpegos passos do pai nos con- Olho para cima e a vejo agarrada ao meu cangote.
Quando chegamos para assis- 13 anos, estudava à noite, fuma- fins do mundo até o cartório para Somos um amoroso espantalho.
tir ao auto de Natal já havia muita va escondido e espelhava o pai registrar o segundo filho. Enfim,
gente circulando pelo Passeio Pú- em porres de cachaça ordinária. sou um equívoco documentado
blico. A noite cobria as árvores e um Era um pequeno, magro e angus- e carimbado.
barulhento carrossel girava a ilumi- tiado homem. Havia no Passeio
nar a escuridão. Nas ruas laterais, Público, no centro de C., naque-
prostitutas tentavam fisgar clientes le início dos anos 80, casinhas de
indiferentes ao fim de ano que tenta fotógrafos — quase um pombal
arrastar fugazes alegrias e esperan- — especializadas em fotos 3 x 4.
ças corroídas. No pórtico de entra- Sentava-se numa cadeira puída,
da, M. ganha um balão iluminado colocava-se um simulacro de pa-
e sorri feliz por carregar também a letó e gravata (não entendo por
luz do Natal — agora abandonada que o ridículo traje) e era proibi-
no canto do sofá da sala. do sorrir em caso de foto para al-
Quando a pequena ilha se gum documento. Naquela época Ilustração: FP Rodrigues
ilumina, Cristo passa sobre a bar- não era uma preocupação: não tí-
ca anunciando tempos de bonan- nhamos quase motivos para sorrir.
ça e amor. Um coro de vozes (não Depois, esperavam-se alguns mi-
sei se afinadas) canta a história do
seu nascimento. Entremeio a uma
fumaça rala, camelos com rodinhas
e anjos suspensos nos galhos com-
pletam o cenário. O espetáculo é
rápido, bonito e, para alguns, emo-
cionante. Uma enorme árvore na-
talina brilha ao redor de carrinhos
de pipoca. Sinto a impaciência de
M. sobre meus ombros doloridos.
Outros pais também amparam
suas crias e espantalhos passeiam
e sorriem na escuridão do Passeio
Público. Já podemos ir para casa.
MINISTÉRIO DO TURISMO APRESENTA

11ª
temporada

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