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Texto 2/PGM 2: LINGUAGEM DA DANGA: ARTE E ENSINO Em situagdes de ensino e aprendizagem da danga, nem sempre ela & entendida como linguagem, as vezes tampouco como arte. Ao contrério, a danca é constantemente compreendida por alunos, pais, professo- res e gestores como um repertério, ou seja, como “dangas prontas que devemos apren- der”, Neste texto, conversaremos sobre a danga como linguagem artfstica na constru- 40 de referenciais para o ensino de danca nas instituigdes de ensino, partindo dos re- ferenciais das dancas de repertério. Nao comegarei este artigo, portanto, pelo conceito de linguagem, mas sim pelo de re- pertério. Chamo de repert6rios as “coreogra- fias” jd estabelecidas de danga: eles vio de Giselle, repertério famoso do balé classico, as dangas das bandas de axé, televisionadas. Sao repertérios conhecidos do universo das escolas a Quadrilha, o Maracatu, 0 Coco, a Ca- poeira, 0 Frevo, o Samba, o Forré. introduzidos Isabel Marques pelos alunos, ha dezenas de fragmentos de danas cujas origens se encontram em DVDs, programas de TV ou em bandas de musica. ‘Além desses, ainda existem os repert6rios de companhias ligados a coreégrafos espect- ficos ou a tradicao da danga cénica: Lamen- tation € um repertério da Martha Graham Dance C , dos Estados Unidos; Parabelo & um repertério do Grupo Corpo, companhia de danca brasileira, e assim por diante. Do ponto de vista do senso comum, coreo- grafias sao sequéncias, conjuntos de pasos em uma determinada ordem que acompa- nham uma misica. Isso nao deixa de ser correto, mas podemos ir além do senso co- mum: as “coreografias” sao articulacées de signos, sao escolhas pessoais e/ou da tradi- go que sao in(corpo)radas e corporeificadas pelos intérpretes dangantes para produgao de sentidos. As coreografias podem ou nao ser acompanhadas por miisicas, e nem sem- 1 Escritora, diretora e coreégrafa de danga. Graduada em Pedagogia pela USP; mestre pelo Laban Centre for Movement and Dance, Londres; doutora pela Faculdade de Educacao da USP em 1996. Redatora dos Parametros. Curriculares Nacionais (Danga) e de documento de Danga para América Latina. Fundou e dirige com Fabio Brazil © Caleidos Cia. de Danga e o Instituto Caleidos, em S4o Paulo, SP. Autora dos livros Ensino de Danga Hoje (6%. e¢.), Dancando na Escola (6%. ed.) ¢ Linguagem da Danca: arte e ensino. Consultora da série. 16 pre se configuram como sequéncias preesta- belecidas de passos conhecidos ou decora- dos a priori. Os diferentes repertérios de danga s4o como livros: necessitamos deles para a fruicao da arte, para o aprendizado, para a produ- 40 pessoal e/ou coletiva de novos textos. Conhecemos de longa data o inestimdvel valor da leitura de livros, mas nem sempre estamos conscientes da importéncia de lei turas de coreografias, os “textos da danca’. Ou seja, ha muito tempo a escola re- jeita a reprodugao ("decoreba”) de tex- tos escritos como processo de ensino € aprendizagem da linguagem — verbal Os professores ja nao aceitam mais - pelo menos em tese ~ processos de leitu- ras que nao estejam voltados para compre- ensdes criticas dos textos lidos e produzidos. ‘Ao contrério disso, na grande maioria das escolas em que a danca é ensinada, crian- gas, jovens e adultos continuam “decoran- do textos”, ou seja, aprendendo repertorios de danga de forma mecanica, superficial, acritica, por meio de cépia e reproducao de sequéncias de passos preestabelecidas. Por mais significative que um repertério seja em Os diferentes repertorios de danga sao como livros: necessitamos deles para a fruigdo da arte, para o aprendizado, para a os produgao pessoal e/ou coletiva de novos textos. seu contexto - por exemplo, os repertérios das dancas brasileiras -, se ele for ensinado de forma mecanica e acritica, pouco esta- 14 de fato contribuindo para a educagao de nossos alunos e alunas. Cada repertério de danca - cada “texto” de danga - é um recorte de uma época em re- lagdo a um dado contexto sociopolitico cultural, cada “texto” de danga é um modo de ver e entender o mundo. Assim, ao dangé- los, temos também a oportunidade de com- preender em nossos corpos essas épocas, espacos, pessoas, re- lagdes. Para que isso acontega, no entan- to, 6 necessério que repertérios de danga sejam ensina- dos com amplitude, profundidade e cla- reza. Em situacdo escolar ou educacional, antes que sejam lidos pelas criancas, jovens e adul- tos, 0s textos de danga ~ seus repertérios - deve ser cuidadosamente escolhidos. Essa escolha deveria passar pelos mesmos cri rios que temos na escolha de livros para os alunos e alunas. Em primeiro lugar, os re- pertérios devem ser escolhidos em funcao de sua importancia e significado enquanto arte - devem ser ricas fontes de aprendizado da arte da danca. Em segundo, devemos nos Wy questionar o quanto os repertérios sugeri- dos permitem que os alunos aprendam no corpo algo sobre si mesmos e também sobre ‘© mundo em que vivem. Os repert6rios a serem aprendidos e ensina- dos nas escolas devem também ser ricos le- ques de tempos, espacos e relagdes; devem propiciar a ampliagdo de conhecimento e, enfim, ser interessantes fontes de compo- nentes da linguagem. Conversaremos sobre esses componentes e suas contribuicdes nas leituras significativas da dangajmundo a se- guir. Desde que Ana Mae Barbosa, conhecida arte- educadora brasileira, formulou sua “Aborda- gem Triangular para o ensino da Arte” (vide Barbosa 1991, 1992, 2010), o ensino de reper- t6rios de danga em algumas escolas passou a considerar também a histéria dessas dangas como contetidos a serem trabalhados. Com a incluso da Historia da Danca no apren- dizado de repertérios, almeja-se uma con- textualizago mais ampla daquilo que esta sendo dangado, pretende-se a criagao de re- lagdes entre tempos e espacos das dancas e dos dangantes. Isso, sem divida, é bastante interessante e amplia consideravelmente os processos de ensino e aprendizagem dos re- pertérios. Sabemos que (.) @ compreensao da histéria, das origens, das préticas culturais locais {de repert6rios de dana} sem davida acrescentaria ingrediente indispensdvel ao aprendizado das dancas. Na maioria das vezes, no entanto, esta histéria se presta somente para “melhorar” a interpreta- ‘¢do dos passos (..). Nem sempre o conhecimen- to da histéria da danca ou das dancas garan- te aos alunos tracar caminhos préprios ¢ que intervenham e contribuam para participagao critica do individuo na sociedade contempora nea. A hist6ria que ndo serve como interlocu- tora entre a danga ea sociedade atual, a danca ea pessoa que danca, entre a danca e 0 meio em que esta danca estd sendo interpretada é indtil em um processo que se pretende critico e transformador (MARQUES, 2003, p. 160). Para realmente aprendermos os repertorios de danga, nao é suficiente que os contextu- alizemos por meio de conversas, pesquisas, investigagées, ainda que isso seja extrema- mente importante. Sabemos que o aprendi- zado da danga passa necessariamente pela incorporacao e pela corporeificagao da mes- ma, ou seja, pelo ato efetivo de dancar. A compreensao corporal daquilo que se danga € ponto fundamental para que nos torne- mos também coautores das dancas que dan- amos. Em outras palavras, compreender teoricamente tempos e espacos das dangas 2 A compreensio corporal implica a compreensdo mental, da qual é indissociével, pois mente e corpo sao indissociavels (RENGEL, 2008) e nao devem ser entendidos separadamente nos processos de ensino e aprendizagem da danga, 18 & somente uma etapa dessa coautoria nos processos de ensino e aprendizagem da dan- ga nas escolas (MARQUES, 2010). Paulo Freire dizia que “educar & impregnar de sentidos cada ato cotidiano” (In: GADOT- TI, 1998). As dangas de repertério ensinadas e aprendidas de forma mecanica (cépia e reprodugao) sao geralmente desprovidas de significado e de significagao, acabam nao fazendo sentido, portanto, nao estariam, a rigor, educando. Mas, entdo, como poderia- mos impregnar de sentidos os processos de ensino e aprendizagem dos repertérios de dangas trabalhados nas escolas? Para ampliarmos, aprofundarmos e real- mente compreendermos os diferentes re- pertérios de danca em nossos corpos e em nossas vidas, seria necessério sabermos como essas dancas se processam nos corpos dos alunos: o que sentem? 0 que percebem? © que sabem sobre/na danca em si (e nao somente de seus contextos espaco-tempo- rais)? Como essas dancas foram construidas € que didlogos corporais sao possiveis de se estabelecer com elas? Voltemos ao conceito inicial de “coreogra- fia” tratado no inicio desse texto: as “coreo- grafias” sdo articulacées de signos, escolhas pessoais e/ou da tradi¢ao que sao incorpora- das pelos intérpretes dancantes. Ou seja, as dangas “prontas” que hoje se apresentam, um dia, foram criadas a partir de elementos da linguagem (signos) escolhidos por coreé- grafos conhecidos ou pela tradicao (muitas vezes, autores andmimos). Para compreendermos melhor esse concei- to, tomemos como exemplo inicial as Artes Visuais: para compor uma pintura, artistas devem escolher cores, linhas, texturas, for- mas etc. Um artista da danga, ou seja, um coreégrafo, para realizar um repertério (“co- reografia”), deve escolher elementos da dan- ga que digam respeito ao corpo, ao espaco, as qualidades de movimento etc. Corpo, es- aco, qualidade de movimento sao, entre ou- tros, os elementos da linguagem da danca. Mas 0 conhecimento da linguagem e de seus elementos nao é necessario somente aos artistas: ele € de extrema importancia também para os fruidores (apreciadores) da dancajarte. Da mesma forma que para compreendermos/lermos uma pintura é necessirio que conhegamos as cores, as li- nihas, as formas e que para lermos um livro & necessdrio que dominemos o vocabulario, a ortografia, a gramética, para que compre- endamos com profundidade os repertérios de danga, ou seja, para que possamos “Ié- los", precisamos conhecer seus elementos (signos): 0 corpo, o espago, as qualidades de movimento etc. Vejamos, como exemplo, alguns repertorios de balé classico. A tradigao do balé, por di- ferentes razées que nao trataremos aqui, escolheu, entre outros, para compor suas coreografias, um corpo articulado (pernas e 19 bracos), 0 peso leve, o espaco verticalizado (nivel alto do espaco). J4 a capoeira, de ori- gem afro-brasileira, tradicionalmente ele- geu para a composicao das dancas um corpo mais integrado, com peso firme, que alcan- Ga 0s diferentes niveis do espaco. Diferentes repertérios so compostos por uma selecéo de diferentes signos da linguagem da dan- ga. Assim, ao compreendermos no corpo (ou seja, efetivamente dancando) as rela- ges entre os elementos/signos da lingua- ensino e aprendizagem da linguagem, pois a danca nao € sé repertério, é, sobretudo, linguagem artistica, Nao estamos aqui afir- mando que o ensino de repert6rios nas es- colas deva ser esquecido ou abandonado, seria 0 mesmo que dizer as criangas que abandonassem os livros. No entanto, a me- nos que compreendamos a danca como lin- guagem, nossos alunos ¢ alunas serdo inca- pazes de realmente compreender, perceber ¢ ler criticamente os repertérios que estdo gem presentes nos diferentes repertérios, _dangando. estaremos também tendo a possibilida- A danga ensinada e A linguagem, por de de impregnar de sentidos os repert6- rios que dangamos. leituras de repertério Em suma, para que possamos dancar compreendendo, percebendo e lendo criticamente os re- pertérios das mais distintas dancas, 0 aprendizado dos signos da linguagem é extremamente importante. E necessério que nos apropriemos (incor: poremos) os componentes da linguagem da danga, para que possamos compreendé-la de forma critica, consciente, provida de sen- tidos. ‘Aqui entramos em outra seara do ensino de danca: 6 importante que 0 ensino da dan- ga nas escolas seja focado nos processos de aprendida como linguagem pode permitir, além das pelos intérpretes e pelos apreciadores, a producao de textos de danca. definigao, 6 um “sis- tema de signos que permite a producao de significados”. Ao pensarmos a danca como um sistema, queremos dizer que “a danca é um con- junto partilhavel de possibilidades de combinagao e arranjo dos campos de signi- ficagao...” (MARQUES, 2010, p. 102), a danca 6 uma rede de relagdes. 0 signo é tudo aquilo que quer dizer alguma coisa para alguém - a palavra “mesa”, por exemplo, é um signo. 0s signos produzem diferentes significados, pois cada ser humano atribui ao signo um ‘ou mais sentidos além do sentido conven- cional. Por exemplo, no que se refere a pala- vra “mesa”, a depender do momento hist6- rico e da sociedade, ha variantes de sentido. 20 Por essa razio, dizemos que a linguagem - qualquer que seja - nao espelha o mundo, ela 6 uma agao sobre 0 mundo. A arte, com- preendida como linguagem, portanto, tam- pouco espelha o mundo, ela é, isto sim, acdo sobre ele. Nessa linha de argumentacio, a danga, compreendida como linguagem artis- tica - e ndo somente como repertério - tem © potencial de agir sobre o mundo. 0 jogo articulado entre os signos da danga é que permite as criancas, jovens e adultos a des- coberta de suas proprias possibilidades cor- porais, em didlogo com as possibilidades do sistema da danca. Se entendermos a danca como linguagem em situacao escolar, esta- remos aprendendojensinando nossos alunos 2 agir sobre o mundo de forma consciente, critica e ética. ‘A danca ensinada e aprendida como lingua- gem pode permitir, além das leituras de re- pertério pelos intérpretes e pelos apreciado- res, a producao de textos de danga. Ou seja, a0 conhecerem os elementos da linguagem, alunos e alunas podem “escrever seus pré- prios textos", compor, coreografar. Conhe- cendo os elementos da linguagem, criangas, jovens e adultos serao capazes de criar suas préprias dancas, tornando-se leitores autores, protagonistas dos processos educacionais. Para concluirmos, o importante aqui é en- tendermos que a danca nao pode se resumir a0 aprendizado de repertérios, mesmo que esses sejam escolhidos com critérios e ensi- nados com amplitude e profundidade. Nao podemos, como professores, nos limitar a “repassar” repertorios - precisamos fazer com que nossos alunos e alunas se tornem leitores criticos ¢, sobretudo, produtores, autores da danca. Com isso, poderao ser também leitores e cocriadores do mundo (MARQUES, 2010). REFERENCIAS BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte, Sao Paulo: Perspectiva: 1991. Modernidade ¢ pés-modernidade no ensino da arte. MAC Revista, v.t, n. 1, p. 6-15, abril, 1992. BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda (orgs.). Abordagem triangular no ensino da arte e cultura visual. S40 Paul ‘ortez, 2010. GADOTTI, Moacir. Programa de radio “Paulo Freire, andarilho da utopia”, parceria entre a Radio Nederland e o Instituto Paulo Freire, 1998. MARQUES, Isabel. Dangando na escola. Sao Paulo: Cortez Editora, 2003. Linguagem da danga: arte e ensino. Sao Paulo: Digitexto, 2010. RENGEL, Lenira. Os temas de movimento de Rudolf Laban. Sao Paulo: Annablume, 2008. a

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