Você está na página 1de 14

LEVANTE EPISTÊMICO: RETOMADA DO PLANO ENQUANTO

LUGAR DE FALA

Marina Nogueira 1

(...) O caminho da consciência é lugar de


desassossego. Onde a mais banal notícia já me
tira do lugar e a mente perturbada busca pelo
aconchego lendo Sueli Carneiro a Morena
Mariah. A que importa estudar a existência de
Kush? E de que a filosofia grega descende da
africana (...) quando entende que sua cor faz
parte da base de um sistema. Um sistema que
sem base não teria se erguido. Compreende
que é inocência achar que o instrumento do
opressor vai ajudar a libertar o oprimido.
Existe uma barreira após cada obstáculo e
sobre essa armadilha Aza Nijeri vai dizer: O
genocídio é como um monstro grande, cheio de
tentáculos e a uma certa altura um deles atinge
você. (...) Essa metáfora do mostro nos ensina
que não tem escapatória para o racismo, que é
tão bem estruturado. É preciso está lúcida do
caos vivido (...) Ter na mente o maior número
de livros lidos. Contar em rodas essas
histórias e ouvir atenta quem despertou para
lucidez muito antes de nós (...) Eu falo da
ilusão e da tristeza que invade. Porque eu
entendo que a clareza dessa nocividade é o que
permite nos reconhecer na passividade. Para
resgatarmos todos juntos nossa humanidade e
reunirmos energia para algum dia alterar a
realidade.
.
“Lucidez” – Luciene Nascimento

Começar com a reflexão sobre a forma como nos relacionamos com arte e com
imagem será o caminho principal a ser trilhado neste artigo. Compreender outras formas

1 “Oyěwùmí é uma acadêmica nigeriana feminista, professora associada de sociologia na Stony Brook
University nos Estados Unidos. Ela cresceu na Nigéria, frequentou a Universidade de Ibadan e mais tarde
se mudou para os Estados Unidos para estudar em Berkeley. Oyěwùmí é uma das figuras mais famosas
do pensamento feminista africano subsaariano. Ela foi colocada no mapa com a publicação do seu The
Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses (1997), no qual ela
oferece uma crítica feminista pós-colonial ao domínio do Ocidente na produção do conhecimento
africano, focando especificamente nas relações de gênero entre as pessoas iorubás da Nigéria” (ROCHA,
2018, p. 11 apud COETZEE, 2016, p. 01).

1
não-hegemônicas de diálogo e escrita sobre a Arte, com o intuito de refletir sobre as
questões que envolvem a construção da história da arte será a forma de promover a
retomada e as reparações possíveis ao pensamento produzido por culturas periféricas,
em especial, na África e na América, países que sofreram a prática incidente da
colonização. Essa é uma tentativa, portanto, de contribuir com as transformações
necessárias para o campo teórico da arte.

Sabe-se que no decorrer da história da humanidade e consequentemente, na


história da arte e da filosofia há registros constantes da destruição do pensamento
africano e do pensamento produzido por mulheres negras. Assumir o plano enquanto
lugar de fala é uma tentativa de propor um espaço de tradução do pensamento filosófico
africano através da arte. A fim de estabelecer de que maneira as questões epistêmicas,
estéticas, estruturais e interseccionais podem ser reparadas com a filosofia africana e os
trabalhos de mulheres negras na arte moderna e contemporânea afro diaspóricas, ao
incentivar amplas traduções dos trabalhos de intelectuais negras.

Para tanto, iremos assumir a pintura como recorte a ser analisado, que segundo
Felinto (2021) “ao contrário das profecias pessimistas, a pintura seguiu o seu curso
permitindo que uma diversidade enorme de artistas passassem a usá-las como meio de
expressão”, o que abriu espaço a temas até então pouco tratados, como é o caso das
temáticas étnico-raciais que passaram a ocupar lugar central na poética de alguns
artistas (FELINTO, pág,11, 2021).

Quando um artista tenta representar algo real de três


dimensões por meio da pintura, ele apenas faz uma tradução do real.
“se quisermos criar uma imagem sobre uma superfície plana, tudo o
que podemos fazer é realizar uma tradução – isto é apresentar
algumas das características estruturais essenciais do conceito visual
por recursos bidimensionais” (Arnheim, 2002, p. 99).
Como cita, Desirée Santos2 (2021) “traduzir é uma prática muito mais ampla, é
também transformar, é (re)criar a partir de uma ideia já estabelecida textualmente ou
não.”. Nesta nova representação abre-se a oportunidade para a criação de uma nova
narrativa, de novos olhares para uma representação petrificada em nosso consciente
imagético. Á exemplo da tradução do artista visual, escritor e dramaturgo negro Yhuri
Cruz (2020), denominada Anastácia Livre, que considera uma tradução no sentido de

2 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Teoria e História da Arte na UFBA. Possui


bacharelado em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e licenciatura em Artes
Visuais pela Universidade Internacional de Curitiba - Uninter.

2
cura, emancipação e magia na qual Cruz (re)cria a figura de Anastácia sem o colar de
ferro e a máscara facial (SANTOS, 2021, p. 61-62).

Figura1:https://redesoberania.com.br/anastacia-simbolo-da-via-crucis-das-mulheres-
negras-da-escravidao-aos-dias-atuais/
Esta tradução de Yhuri Cruz me faz lembrar bastante dos
debates de bell hooks em seu livro Olhares negros: raça e
representação (1992) traduzido para o português brasileiro por
Stephanie Borges em 2019. Neste livro bell hooks incita um
novo olhar, um olhar insurgente para as artes de modo geral, nos
desloca o sentido para a confrontação de um olhar colonizado
que podemos ter ainda nos dias de hoje, fruto do que nossa
linhagem hereditária já vivenciou. É como se nós devêssemos
nos ater a todas as brechas colonialistas que sempre nos fizeram
enxergar o belo no outro e nos fizeram odiar a nós mesmas, ou
como se percebêssemos a função do olhar não somente para a
visão, mas percebêssemos, também, as epistemes visuais e os
controles que são estabelecidos sobre o direito de olhar. O
próprio artista noticiou, em sua rede social, que Anastácia Livre
fará parte de materiais didáticos de História a partir de 2020 e
pelos próximos cinco anos, isso já indica o quão revolucionária
se torna esta tradução. (SANTOS, 2021, p.64 apud CRUZ,
2020)
Se estabelecermos uma relação aqui da tradução no plano bidimensional da arte
com a tradução dos textos de filosofia africana, podemos chamar a atenção para a
proposta deste artigo e ao que Spivak (2005) em Tradução como cultura, nos alerta: a
“tradução é uma reparação” (ROCHA, 2018, p.50 apud SPIVAK, 2005, p. 45).
“Assim, afirmo que o que produz a tradução dos textos de filosofia africana é o
enfrentamento de imagens racistas e ‘a reparação que se dá ao verificar a realidade’”

3
(ROCHA, 2018, p. 50 apud SPIVAK, 2005, p. 46) de invisibilidade do que se produziu
e se produz no continente africano e na diáspora.

Privilegiar, portanto, o pensamento da epistemóloga africana Oyéronke


Oyewúmi (2004)3 será o fio condutor do diálogo que faremos da arte com a filosofia
africana, a fim de pensar outras formas possíveis de se relacionar com a imagem, a
partir do conceito de cosmopercepção elaborado pela filósofa. Desse modo, expor um
lugar de fala – que todos nós ocupamos – significa combater a neutralidade dos
discursos epistemológicos. Oyěwùmí em The Invention of Women (1997) afirma:

Sou iorubá. Nasci em uma grande família, e as idas e vindas das


minhas muitas relações constituíram uma importante introdução aos
modos de vida iorubá. Em 1973, meu pai ascendeu ao trono e tornou-
se o ßõún (monarca) de Ògbömõsö, uma importante unidade política
Oyó-Iorubá de certo significado histórico. Desde então, e até o
presente, ààfin ßõún (o palácio) tem sido o lugar que chamo de lar
(ROCHA, 2018, p. 17 apud OYĚWÙMÍ, 1997, p. xvi).

Segundo Ribeiro (ROCHA, p. 17, 2018 apud RIBEIRO, 2017, p. 58), lugares de
fala “foram sendo moldados no seio dos movimentos sociais, muito marcadamente no
debate virtual, como forma de ferramenta política e com o intuito de se colocar contra
uma autorização discursiva”. Nesse sentido, lugar de fala se refere à visão a partir de um
local, e é um conceito muito utilizado em contraposição ao silenciamento mobilizado
pelos discursos hegemônicos. Reconhecer o lugar de fala é essencial para
compreendermos onde nossa fala se situa nas hierarquias, sendo uma localização tática
frente a uma fala universalizante da hegemonia.

A partir dessa introdução, é importante situar as referências teóricas, que são


primordiais para a temática que estamos tratando, ao reparar milênios de dominação e
epistemicídio do conhecimento produzido por pessoas negras. Assumir o Levante
Epistêmico como ferramenta teórica, a fim de honrar o conhecimento produzido por
nossos ancestrais, que vieram antes e abriram caminho para que pudéssemos defender a
legitimidade do pensamento africano é a forma de resistência para que essas vozes não
sejam silenciadas e sigam ecoando nesse momento crítico da democracia e acesso ao
conhecimento.

Portanto, o pensamento de intelectuais da ordem de Sueli Carneiro (2016),


Djamila Ribeiro (2017), Rodney William (2019), Carla Akotirene (2018), Silvio
3 Publicação do artigo Traduções Oríentadas na Revista Apotheke, n.7, p. 62-63, 2021.

4
Almeida (2018) e o pensamento africano de Oyoronké Oyewúmi (2004) serão
apresentados, a fim de considerar as contribuições atuais que conceitos como
Epistemicídio, Lugar de Fala, Apropriação Cultural, Racismo Estrutural,
Interseccionalidade, Cosmopercepção são primordiais aos debates atuais para uma
transformação efetiva da sociedade brasileira marcada pelo histórico da violência
colonial e do racismo, e que a partir das políticas públicas dos governos anteriores de
esquerda puderam ser democratizados.

Cosmopercepção – uma crítica epistêmica africana a história da arte

Os últimos cinco séculos, descritos como era da modernidade,


foram definidos por uma série de processos históricos, incluindo o
tráfico atlântico de escravos e instituições que acompanharam a
escravidão, e a colonização europeia de África, Ásia e América
Latina. A ideia de modernidade evoca o desenvolvimento do
capitalismo e da industrialização, bem como o estabelecimento de
estados-nação e o crescimento das disparidades regionais no sistema
mundo. O período tem assistido a uma série de transformações sociais
e culturais. Significativamente, gênero e categorias raciais surgiram
durante essa época como dois eixos fundamentais ao longo dos quais
as pessoas foram exploradas, e sociedades, estratificadas.
(OYĚWÙMÍ,2004, p. 01)
Considerando, que nosso olhar é formado por meio da arte ocidental pelas culturas
hegemônicas, é importante ressaltar o fato de que a história da arte é uma construção
repleta de parcialidade. Muitos artistas importantes podem ter sido deixados de fora da
história da arte que conhecemos, daquela que chega até nós por meio de livros e
exposições em galerias e museus. Nesse sentido, as obras consagradas pela história da
arte são produtos de uma escolha – e toda escolha pressupõe que algo teve de ser
descartado ou apropriado. Se o olhar ocidental é construído tendo como base a arte
clássica grega, e que as obras de arte posteriores se referem, seja para afirmá-la, seja
para revisitá-la, como no caso do Renascimento, ou para negá-la. É difícil, portanto, que
se produza arte no Ocidente sem que se faça referência, de alguma forma a esse
momento.

A respeito disso, Sueli Carneiro (2016) traz o conceito de racismo epistêmico,


“que consiste na inferiorização dos conhecimentos produzidos pelas populações negras
e o continente africano”. Sobre África ainda incidem imagens negativas em relação a
sua população como desprovida de humanidade, história e filosofia, é por essas razões
que o questionamento “sobre a existência da filosofia africana é, fundamentalmente, um
questionamento acerca do estatuto ontológico dos seres humanos africanos” (ROCHA,

5
2018, p 50. apud RAMOSE, 2011, p. 08). Ou seja, uma inquirição racista e
eurocentrada sobre a sua capacidade de produção de conhecimento.

Com isso, compreendo ser fundamental olhar as


produções de artistas negras no atual momento da arte
contemporânea a partir dos debates decoloniais e da teoria
feminista negra. Nesse sentido, é importante refletir sobre a
possibilidade das práticas artísticas e curatoriais de maneira a
constituir novas políticas do ver, oportunamente de forma
conjunta ao sistema mercadológico das representações culturais
e construindo novas imagens e imaginários sociais que,
posteriormente, junto à linguagem, fornecerão as bases
epistêmicas necessárias para a formação do sujeito protagonista.
(OLIVERA; REVGNET, p. 162, 2021)
Oyěwùmí em The Invention of Women (1997), identifica que a lógica do
pensamento ocidental está alicerçada em um privilégio do visual sobre os demais
sentidos. Este privilégio visual organiza os modos de conhecer, conforme podemos
perceber em Aristóteles, no início do livro I da Metafísica:

Todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento.


Isso é indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos, pois
independentemente dos usos destes, nós os estimamos por si mesmos,
e mais do que todos os outros, o sentido da visão. Não somente
objetivando a ação, mas mesmo quando não se visa nenhuma ação,
preferimos a visão – no geral – a todos os demais sentidos, isto
porque, de todos os sentidos, é a visão o que melhor contribui para o
nosso conhecimento das coisas e o que revela uma multiplicidade de
distinções (ROCHA, pag.43 2018 apud ARISTÓTELES, 2006,
980a22-980a25, p. 43).
Ao longo da história do Ocidente, alimentando a sua cosmovisão, a noção que
está vinculada com a produção do conhecimento, traz constantemente a metáfora da
visão como sua marca, que deve ser utilizada para se pensar todos os povos do mundo
em relação com o conhecimento. Porém, através de uma compreensão dos usos
universais da noção de cosmovisão, Oyěwùmí (2004) cria o conceito de
“cosmopercepção” para marcar a distinção, desde os povos iorubás, em relação a
produção do conhecimento e a percepção da realidade. Segundo Oyérònke (2004)
"apenas para os ocidentais a noção de cosmovisão é mais ampla do que áudio-sensação,
tato-sensação, palato-sensação, etc." Se a visão é uma metáfora, por que um povo
guiado por outros sentidos deve necessariamente segui-la, em vez de cunhar outra
palavra que dê conta – de forma mais inclusiva – de seu próprio conhecimento e
heranças históricas? (ROCHA, p. 36, 2018)

6
Sabe-se que são incontáveis os processos de apropriação cultural 4 e saqueamento
estético no decorrer da história do conhecimento produzido pelos povos africanos.
Modificações radicais foram promovidas ao se retirar dos seus sentidos simbólicos
originais objetos, símbolos e práticas, a partir da ideia de cosmovisão. Para a presente
análise ampliaremos o diálogo do pensamento de Oyérònke (2004) a referências
culturais africanas, além da iorubá, que podem corresponder ao pensamento da filósofa.
A crítica de Oyèronké (2004), ao sistema filosófico das culturas africanas passou a ter
novos sentidos dentro da cultura ocidental, sobretudo, quando a questão bio-lógica
passou a ser adotada como forma de definir hierarquias.

A concepção que a biologia fornece subsídios para a


organização do mundo social, “no qual representamos papéis”
(CARNEIRO, 2005, p. 23), cujos roteiros são produzidos pela própria
bio-lógica que determinará as hierarquias sociais a partir de
(dis)posições corporais ontologizadas, na qual negros são inferiores a
brancos, a categoria “mulher” sempre atuará como coadjuvante em
relação a outra categoria: homem – o ator principal. Nesse teatro
(ocidental), a cor da pele, a presença ou ausência dos órgãos sexuais,
são indispensáveis ao propósito de circunscrever os sujeitos de acordo
com a diferença corporal, privilegiando alguns, em detrimento de
outros. (ROCHA, 2018, p.44)
Recuperar a humanidade dos povos africanos e afro diaspóricos é uma forma de
romper com os modelos ocidentais centrados na questão bio-lógica, ao considerar como
cita Obenga (2004) “um preconceito acreditar que a época filosófica da humanidade
começa primeiro entre os gregos no quinto século a.E.C.2 Esse preconceito implica que
outros povos antigos não se engajaram no pensamento especulativo.” Portanto, o que se
convencionou chamar de Ocidente teve origem na Mesopotâmia e no Egito, isto é, na
Ásia e na África. O Egito inspirou fortemente toda a civilização grega.

Documentos hoje conhecidos pela sociedade revelam que apesar das suas
finalidades práticas os egípcios possuíam um elevado nível de conhecimento. Dois
documentos importantes merecem destaque são o Papiro de Rhind e o Papiro de
Moscou.

4 Necropolítica é a capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está
legitimada. Para Mbembe, a necropolítica não se dá só por uma instrumentalização da vida, mas também
pela destruição dos corpos. Não é só deixar morrer, é fazer morrer também. A necropolítica sofistica e
aprofunda os conceitos de biopoder, do filósofo Michel Foucault, e estado de exceção, de Giorgio
Agamben. Embora robustos, eles não dão conta das formas de controle de vida e morte produzidas a
partir dos processos colonizadores.

7
Figura 1: Papiro de Rhind Disponível em: http://de.academic.ru/dic.nsf/dewiki/928928. Acesso
em abril de 2016
O problema da quadratura do círculo, bem como a primeira solução dada para
este está no Papiro Rhind ou Ahmes segundo alguns autores é considerada a fonte da
matemática egípcia mais compreensiva. Segundo Garbi (2006):

(...) Ahmes merece nosso maior respeito porque, além de ter sido o
primeiro autor cujo nome a História registrou, ele é a primeira pessoa
de quem temos notícia a demonstrar encantamento com aquilo que
aprendeu em geometria (GARBI, 2006, p. 13).
A geometria egípcia teve suas origens na medição de terras. Nas fontes
históricas matemáticas da civilização egípcia há problemas relacionados à medição de
terras e a partir de uma necessidade de calcular áreas de terrenos e volumes, havia um
sentido prático para tais coisas. Vários historiadores mostram que diante dessa
necessidade de calcular capacidades, são encontrados métodos egípcios para calcular a
área do círculo.

Na linguagem dos padrões simbólicos, o círculo e o quadrado são considerados


formas perfeitas e até sagradas. Foi com base na ideia arquetípica da quadradura do
círculo que Marcus Vitruvius Pollio, comumente conhecido como Vitrúvio, definiu um
sistema de proporções destinado à construção de templos.

Em sua obra De Architectura – um tratado teórico e técnico detalhado


sobre arquitetura, composto de dez livros e possivelmente escrito entre
os anos 35 e 25 a.C. - ele recomenda que os templos, deveriam ser
construídos tendo como analogia o corpo humano bem formado
que, segundo ele, existe uma harmonia perfeita entre todas as
partes. Ele observa que a altura de um homem bem formado é
igual ao alcance de seus braços estendidos na horizontal. Essas
duas medidas formam um quadrado que encerra o corpo inteiro,
enquanto que as mãos tocam o círculo que tem seu centro no
umbigo.()
Quando a Renascença redescobriu o legado clássico da Grécia e de Roma, Leonardo
da Vinci ilustrou a versão desta ideia de Vitrúvio com seu famoso desenho, que ficou
conhecido como homem vitruviano. Observa-se na figura que a área do círculo é
idêntica à área do quadrado, remetendo à ideia arquetípica da quadratura do círculo

8
egípcia. O pentagrama humano de Da Vinci é considerado uma representação da
estruturação geométrica do corpo humano e, por extensão, de todo o Universo, tendo se
transformado em ícone da cultura ocidental.

Figura 2: Quadratura do Círculo

Figura 3: Homem Vitruviano

A presença da figura humana masculina como cânone da arte ocidental


renascentista, que representa a medida da proporção perfeita do corpo humano com a
arquitetura, está diretamente relacionada com os paradigmas ocidentais que
renascimento recuperou da arte clássica greco-romana. A partir desse simbolismo,
podemos estabelecer a relação com os processos de expansão do pensamento europeu
ocidental e considerar as questões apontadas pela crítica de Oyérènke Oyewúmi (2004)
acerca da relação com o corpo biológico no ocidente ser determinante na definição de
hierarquias, eugenias, eliminações, poder e com atual necropolitica 5 são as

5 A apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera
de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais
elementos. É uma estratégia de dominação que visa apagar a potência de grupos histórica e
sistematicamente inferiorizados, esvaziando de significados todas as suas produções, como forma de

9
justificativas para Oyěwùmí (2004) pensar a centralidade do corpo nos discursos
ocidentais. Pois “em qualquer direção que se olhe vê-se um corpo” (ROCHA, 2018,
p.46 apud OLIVEIRA, 2007, p. 111).

Ainda que haja crítica a arte renascentista em outros momentos da história da


arte, as contribuições do pensamento africano de Oyérònke Oyewúmi (2004), apontam a
questão principal presente, especialmente, na imagem do homem vitruviano - a relação
biológica como fundamento epistemológico para compreender o biopoder. Portanto,
“não é por acaso que homem é uma palavra que designa a humanidade: o geral é
masculino porque o sujeito é masculino” (ROCHA, 2018, p. 36 apud gabriel, 2010, p.
96). Essa é uma das razões que justifica por que é tão difícil a utilização da linguagem
inclusiva em nossa escrita. Contudo, é necessário questionar o domínio do falo, cabe-
nos indagar: como ler, escrever e falar sem reforçar os sistemas de dominação?

Práticas etnocêntricas de apropriação cultural

Podemos considerar que as questões apresentadas pelo modernismo na arte,


tentaram estabelecer uma crítica a arte e a representação do corpo. Ao fragmentar o
corpo e estabelecer a colagem como técnica e influência principal ao cubismo, os
movimentos de vanguardas apresentavam uma outra forma de relação com a imagem,
que não tinha a mesma preocupação do renascimento. Ao enfatizar o seu caráter
inovador com a proposta de transgredir o conceito de arte que se amparava na ideia de
representação do real, o modernismo representou, segundo Danto (2006) a principal
contribuição para a história da arte:

A meu ver a principal contribuição artística da década foi o


surgimento da imagem apropriada – a apropriação da imagem com
sentido e identidade estabelecidas conferindo-lhes um sentido e uma
identidade novos, como qualquer imagem poderia ser apropriada,
segue-se imediatamente que poderia haver uniformidade estilística
perceptual entre imagens apropriadas. (DANTO, p.20, 2006)
Temos nesse fragmento, contudo, uma questão importante a ser refletida acerca
do modernismo. Pensando em termos conceituais, ao romper com ilusionismo da
pintura, com a ideia de uma representação fiel da realidade, através da apropriação de
imagens e objetos pertencentes a cultura africana, a arte moderna operou uma dos

promover seu genocídio simbólico. Apropriação cultural e racismo são temas imbricados”. (WILLIAM,
2019, p.)

10
maiores saqueamento estéticos da história da humanidade. Ainda que se propusesse a
apresentar no próprio plano do quadro as diversas perspectivas, os vários pontos de
vistas que poderiam se ver melhor nos planos e volumes, ao romper com a perspectiva
renascentista, é importante se fazer uma leitura de como etnocentrismo serviu de
apropriação cultural para a perpetuação de práticas violentas de extermínio da
identidade cultural de povos africanos, que ao serem retirados objetos dos seus lugares
de origem, perderam parte o seu significado simbólico.

Afetos Políticos: relações das produções artísticas de mulheres negras

Carregamos nossas diferenças inscritas em nossos corpos, elas


são visíveis, obedecem a uma lógica visual que permite a divisão
social através das categorias de raça, gênero e classe, “sistemas de
poder entrelaçados que moldam a vida de todos porque estão
incorporados nas estruturas da sociedade” (OYĚWÙMÍ, 2018, p. 10),
que é binária. Segundo Foucault (2010, p. 43), “uma estrutura binária
perpassa a sociedade”, e a estrutura fundamental do binário, é o
racismo. Isto é, “a construção da diferença; [...]. Estas diferenças
construídas estão inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos. O
indivíduo não é apenas visto como ‘diferente’, mas esta diferença
também é articulada através de estigma, desonra e inferioridade
(KILOMBA, 2010, p. 42). Assim, as categorias de raça, gênero e
classe são signos que estão diluídos em oposições binárias e
hierárquicas. (ROCHA, 2018, p.47)
Segundo Gunlanda (2021), “antropologia africana e afro-diaspórica o corpo não
é visto como inferior ao espírito-razão, tal como no pensamento europeu cartesiano, mas
é lido a partir da coexistência horizontal de suas dimensões.” Um corpo que é espírito,
que é carne, que é linguagem, que é movimento, sem qualquer hierarquia entre essas
dimensões. (GUNLANDA; ZZANELLA, 2021, p.162).

Quando pensamos, portanto, no plano enquanto lugar de fala, é uma


possibilidade de fazer a tradução do pensamento africano de Oyérònke (2004) e
apresentar outras possibilidades de relação com a arte e com a imagem, que não estejam
associadas ou reforcem os modelos ocidentais da cosmovisão bio-lógica do corpo.

O apelo à visão e ao corpo como estruturantes do conhecimento ocidental, definem


questões interseccionais como possíveis formas de combater o plano traçado pelo
pensamento ocidental patriarcal. A partir da sensibilidade analítica da
Interseccionalidade é possível compreender as dinâmicas hierárquicas moldadas pelo
patriarcado e como tentar promover o desmantelamento dessas estruturas. Segundo,

11
Akotirene (2018) "a interseccionalidade permite as feministas criticidade política a fim
de compreenderem a fluidez das identidades subalternas."

Na presente investigação, escolhemos apresentar o lugar de fala como


possibilidade de tradução decolonial em romper com o estatuto ocidental do homem
como figura central na arte e na imagem. Ao trazer o lugar de fala, a partir do conceito
de afetos políticos, considero que reconhecer a ruptura e o lugar de fala de artistas
negras no campo da arte que tentaram não obedecer a lógica ocidental, como Rosana
Paulino (1995) pioneira em denunciar as estruturas racistas na arte e na sociedade são
essenciais para a abertura de espaços para o pensamento produzido por artistas negras.

Contudo, apesar de constantes as tentativas das instituições em dialogar com os


efeitos da discriminação racial na sociedade brasileira, são poucas as estratégias
construídas pelas mesmas para superar as dificuldades dos problemas estruturais, como
a entrada e permanência de corpos negros e indígenas em posições e instâncias decisória
de produção de narrativas. Por mais que pautas como essas estejam sendo levantadas
pelas instituições, o racismo ainda prevalece em suas estruturas. Neste sentido, podemos
pensar nos museus enquanto espaços de falas e na forma como é por quem são
estruturadas as agendas oficiais de debates e exposições.

Desse modo, não podemos deixar de reconhecer o trabalho que vem sendo
desenvolvido em várias instâncias por artistas negras modernas e contemporâneas, que
procuram estabelecer um outro modelo de relação com a imagem de pessoas negras,
valorizando o papel social de artistas negras, enquanto espaço de poder. Nesse sentido, é
importante salientar as releituras de artistas contemporâneas como Kika Carvalho
(2020), que produzem traduções do pensamento africano em seus trabalhos, relativos à
senioridade, reconhecendo a ancestralidade de artistas da ordem de Yêdamaria, que foi
pioneira na arte moderna baiana, abrindo espaço, portanto, para outras mulheres negras
assumissem o lugar de fala em ambientes, nos quais são subalternizadas.

12
Encontro com Yêdamaria, Kika Carvalho, 2021

Os afetos políticos, portanto, ao trazer o amor como transformação política, como cita
bell hooks (2021), propõe a relação das políticas de afetividade, demonstrando o seu
papel na comunidade. Os afetos políticos através da relação das produções artísticas,
que incluam artistas negras são estratégias que rompem com as imagens de controle,
como cita Patrícia Hill Collins (FELINTO, 2012, p. 13 apud COLLINS, 2019, p.135) e
possibilitam outros olhares para o corpo de mulheres negras. Sendo, portanto,
trincheiras no combate de práticas voluntárias ou involuntárias do racismo cotidiano.

É a partir dessas práticas de cuidado que podemos romper com bolhas, através de um
diálogo permanente e com ferramentas de conhecimento, que compreendam que o
racismo é um problema de todos e não apenas de pessoas negras. É nesse sentido que a
base epistêmica é necessária para potencializar a produção intelectual, que estendidas ao
campo da arte possam promover as transformações em diversas instâncias da sociedade.

Referências Bibliográficas

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? São Paulo, ed. Pólen, 2019.


FERREIRA, Mariana de Lima. Uma análise dos métodos empregados pelos egípcios
para a quadratura do círculo/ Mariana de Lima Ferreira - João Pessoa, 2016
OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos
conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Tradução para uso
didático de: OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric
Foundations of Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African
Gender Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender
Series. Volume 1, Dakar, CODESRIA, 2004, p. 1-8

13
OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: KWASI,
Wiredu (ed.). A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell
Publishing, 2004, p.31-49.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. São Paulo, ed. Pólen, 2017.
ROCHA, Aline Matos da. A corporal(idade) discursiva à sombra da hierarquia e poder:
uma relação de Oyérònke e Foucault.
UDESC Apotheke e-periódico [recurso eletrônico] / Universidade do Estado de Santa
Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. v. 3, n. 2
(2016)
Sites:
Disponível em < http://artenarede.com.br/blog/index.php/o-homem-vitruviano-e-o-
numero-phi-a-matematica-da-beleza/ > acesso em 08 de dezembro 2021
Disponível em <https://www.significados.com.br/apropriacao-cultural/> acesso em 08
de dezembro 2021

14

Você também pode gostar