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Sob o

OLHARseu
Prólogo
Eu trabalho para o diabo. 
Mas não esse que te contam nas capelas e igrejas da cidade, com chifres e pele
vermelha e não, ele também não tem rabo -talvez uma linda bundinha- o garfo
vermelho. 
Esse diabo é diferente.
Usa os mais caros ternos e bebe das mais caras bebidas, enquanto arrasta multidões
de mulheres para o inferno, o seu inferno. 
César Antoniou. 
O diabo encarnado.
Pecado e tentação fartamente distribuídos em um corpo que certamente deu
trabalho aos céus. 
Afinal os mais belos anjos são os caídos. 
Capitulo 1
Nos contos de fadas da minha infância, as manhãs de segunda seriam as bruxas más
e os despertadores seus fies ajudantes, destruindo o bibidi bobidi bu dos fins de
semana, das princesas indefesas, bravamente salvas e socorridas pelos príncipes
encantados e fadas madrinhas, as chamadas, folgas de meio de semana.
Isso é claro se você for a Bela ou a Cinderela, uma funcionária Rass não tem príncipe,
nem fada madrinha, só o diabo.
E essa, a pobre plebeia indefesa, sou eu, a secretária de Lúcifer.  
Ligue 0800 central do inferno, digite 2 e fale comigo.  
Helena Alves, uma filha da puta azarada.
A única mulher viva que entende a Mégara, Hades é realmente cruel.
Pagando em uma só vida pecados para duas ou três encarnações, isso é claro se eu
acreditasse em vida pós morte... 
-Nana...- pequenos dedinhos tentam abrir meus olhos- Nana é o se celulá-
As cortinas abertas levam o sol em direção aos meus olhos tornando ainda mais
difícil a tarefa já tão odiada, Miguel estava de pé entre minhas pernas, ainda
estendendo o telefone em minha direção. Seu rostinho sujo de leite e os dinos de seu
pijama repletos de farelo me dão uma prévia do estado da cozinha.
-Quem? - pergunto com a voz arrastada encaixando o telefone no ouvido, enquanto
o olho atravessado questionando sem dizer o que ele estava fazendo, antes que o
pestinha saísse correndo.
-Não sabia que minha empresa fazia uso do home-office senhorita Alves- a voz rouca
e levemente alterada diz do outro da linha. O diabo estava nervoso e isso não era
bom para o meu bolso já furado- Meia hora Helena. A senhorita tem meia hora para
estar aqui em sua mesa agindo como a secretária que é- César suspirou alto, talvez
ponderando se valeria ou não a pena me demitir a poucas semanas da nova edição.
Eu podia ver, César passando a mão nos cabelos em puro ódio, me xingando em
silencio.
-Eu estou contando os minutos Helena! 
Uma olhada para o relógio e todos os planos já escritos no livrinho "Como matar o
filho da mãe desgraçado do seu chefe" surgem em minha mente. Folga.
Hoje era a minha segunda de folga.
Sob o seu olhar

-O que caralhos você está fazendo aqui? - o sussurro estridente de Amanda se


assemelha e muito com a vozinha que grita na minha cabeça desde o momento em
que pus os pés fora de casa.
Depois de longos três meses eu finalmente consigo uma folga que não seja de
domingo - domingo esse dedicado a oração "Senhor Jesus por favor que ele se
enforque com a gravata, e eu case com um rico gostosão. Mais gostosão que rico,
por gentileza"- e a coitada é revogada sem explicação.
-O diabo Amanda- uma risada escapa de sua boca- o diabo ele é um filho da puta...- a
risada alta ecoa por todo o lobby da empresa em completa sintonia com o bater dos
meus saltos em direção ao último andar. Quinze andares previamente calculados
para que eu possa liberar um pouco de ódio em cada parada. César sabia que era a
minha folga, ele me deu folga então ao menos que ele estivesse falindo, agora, nesse
exato momento eu o mataria, sem pensar duas vezes.
-Atrasada senhorita Alves- Senhor Antoniou diz sem ao menos se virar, me dando a
sensação de que ele talvez possa farejar ódio. As grandes pilhas de papel bagunçadas
sobre a mesa rapidamente explicam a revogação da minha folga, três faculdades, um
mestrado e ainda sim incapaz de se localizar em sua própria sala. Eu o olho com a
testa enrugada em uma clara demonstração de impaciência recebendo um riso
frouxo como resposta, César me desafiava a responder, sabendo o quanto me doía
não o xingar com todas as “palavras feias” que eu conseguisse lembrar.
- O contrato da modelo russa, não o encontro em lugar algum- Ele me encara como
se puder ver todos os meus segredos, inclusive as vezes em que o matei na minha
imaginação, a taça em sua mão me diz que hoje seria um belo dia para entregar a
carta escrita a dois anos e escondida entre minhas calcinhas, porque o diabo
bebendo seu mais caro vinho as 8:00 da manhã é sinal de problemas no inferno. 
-Mais alguma coisa senhor? - César suspira, enquanto encosta a taça e seus lábios,
seus dedos pressionam o encosto da cadeira e seus olhos se fecham por um breve
segundo. Gostoso, é única palavra que passa em minha cabeça, jogando longe – por
poucos segundos- as ideias de assassinato. Eu me aproximo em busca da pilha mal
organizada de contratos aproveitando o curto momento de distração. 
-Sim! - seus olhos escuros me encontram e eu travo por um momento com receio de
ter feito algo - Seu filho... com quem está? -César me fita com curiosidade, esperando
por uma resposta e eu me sinto como Miguel quando Edgar o questiona sobre algo
de errado que o mesmo tenha feito.  
-Filho? - sussurro a pergunta de volta me equilibrando sobre a mesa me busca de sua
agenda, os olhos curiosos de Antoniou continuam sobre mim esperando uma
resposta, sua taça já no fim indica que meu tempo em sua sala está acabando assim
como seu calmante- Não tenho filho senhor. Não que eu saiba.
-O menino que me chamou de... moço... como ele disse mesmo? - ele apoia a taça
sobre a pilha de papeis em meus braços enquanto desvia os olhos como se tentasse
lembrar de algo, o que eu e a Barra da Tijuca inteira sabemos ser cena,
desorganizado sim, esquecido jamais, Antoniou provavelmente sabe de cor cada
título e ano de cada revista que lançou sem ao menos hesitar em dizer, assim como
tem na cabeça todas as vezes em que ameaçou me demitir. 
- A sim, moço malvado da Nana. – Ele solta um sorriso sarcástico- Isso, malvado da
Nana- com uma nova garrafa em mãos Antoniou volta a encher a taça sobre os
papeis em meus braços sem tirar os olhos de mim. Meu rosto queima sob o seu olhar
e meus saltos parecem tão altos quanto o mais alto prédio do rio ao ponto de me
fazerem tremer. Odiá-lo não me torna imune.
- Eu sou Nana? O seu moço malvado? - 
O cheiro da framboesa contra o meu rosto acentuava o quão perto estávamos, mais
dois centímetros, talvez três, e eu conseguiria distinguir qual perfume teve hoje o
prazer de envolvê-lo.  
César Antoniou é tentação, e eu preciso começar a frequentar mais a igreja.
-O contrato senhor- Estendo a folha em sua direção dando dois passos para trás
ainda equilibrando pilhas de outros contratos- Afilhado, ele é meu afilhado senhor. 
Me afasto ainda sentindo o cheiro de seu perfume, esperando que ele pegue a folha
estendida e distribua mais uma de suas ordens. César respira uma última vez antes
de beber todo o vinho em sua taça e puxar de forma brusca o contrato. Frustração.
Era o que definia o homem a minha frente, noite ruim, manhã estressante, fim de
edição, combo perfeito para fazer o diabo tirar sua máscara de bonzinho e buscar o
"garfo" no armário. 
-Helena- eu o encaro a dois passos da porta- Não disse que podia sair, sente-se. -Ele
aponta a cadeira à sua frente e eu me sento como uma criança obediente -ou um
cachorrinho adestrado diria Edgar-.
-Preciso que marque duas reuniões, para hoje após o almoço, uma com os Alencar e
outra com a criação. De prioridade aos Alencar, é um contrato importante. Também
chame Sávio e Afonso para mim, diga que é algo sério, Sávio costuma ser muito...
relapso com compromissos que não envolvam suas bebidas. E marque uma vista ao
estúdio oito, preciso que você verifique as capas que estão sendo montadas estamos
sem tempo para erros estrupidos - Antoniou começou a ditar suas ordens andando
por toda a sala, ainda buscando contratos espalhados e ignorando completamente o
insuportável toque do seu celular.
Antoniou não atende ligações, nem mesmo as de sua “adorável” mamãe. Quem quer
que seja não faz ideia dessa informação, me levando a crer que César havia voltado a
distribuir cartões de visita a suas fodas casuais.
“Barrar entrada de mulheres sem hora marcada. No andar. Empresa, toda”
Eu me estico um pouco ainda anotando os pedidos do dia, relembrando os
compromissos já firmados e anotando a nova medida de segurança contra golpes da
barriga, na intenção de ler o nome na tela. “Alana”. Alev me encara com a testa
franzida e eu dou um sorriso forçado, como uma criança pega no pulo, enquanto fico
de pé. A sortuda chegou longe dessa vez, número salvo é algo novo.
-Helena, não deixe que de maneira alguma entrem na minha sala hoje.
- Muito menos minha mãe, sem tempo para sermões hoje- Alev responde ao ver o
discreto levantar da minha sobrancelha esquerda. Eu aceno em concordância
enquanto me retiro.
- Senhor, a ligação? – pergunto sem conseguir segurar- Retorno? – Antoniou me olha
sem paciência e eu seguro o riso brincando com o perigo, a taça volta aos seus lábios
e ele sorri minimamente revirando os olhos antes de me responder – Não conheço
nenhum César Antoniou.
Capitulo 2
-Almoço gata, bora- Amanda diz dando palmadinhas na minha bunda enquanto me
arrastava para fora da empresa, tagarelando sobre seu fim de semana e sobre como
os caras se tornam mais brochantes a cada dia.
Amanda é definição de faz tudo dá advocacia da Rasa, café, anotação, agenda,
despacho de mulher iludida e de quebra ainda faz serviço de babá de marmanjo
velho. Mantendo tudo anotado para um -possível/provável- processo. Uhul, vai
desvio de função!
-Amiga, alguém tem que avisar ao Sávio.... - Amanda começa.
-Senhor Rabello- Corrigi enfiando uma batata frita na boca. Ela me olhou com pouco
caso, me imitando sem emitir som antes de continuar a despejar toda sua irritação.
- Irrelevante, Sávio ou Rabello tudo se refere a mesma bosta- qualquer um que visse
o joguinho de gato e rato concordaria comigo ao dizer que tudo não passa de puro
tesão incubado.
Amanda e Sávio eram um caso mal resolvido. Trepada de uma noite só, que teimava
em ser repetida toda vez que ficassem cinco minutos sozinhos. Em qualquer lugar,
vide filmagens apagadas do lado norte do estacionamento a dois meses atras.
- Como eu estava dizendo antes de ser interrompida pelo alecrim dourado do mundo
profissional- eu jogo uma batata em sua direção- Alguém devia avisar ao moçoilo que
eu trabalho para o Afonso e não para ele. Fala sério amiga, com a de hoje essa já é a
quinta vez que eu expulso uma menina da sala dele esse mês. Tem o que? Mel? 
-Eu não sabia nem que ele tinha sala. 
-Tem mas é só um sofá impuro, que deviam mandar queimar, e uma mesa furreca-
eu dou risada das caretas feitas por Amanda ao dizer "sofá impuro". 
-Olha se você quiser pode pegar o meu cargo. Todinho seu  
-Amor trabalhar para o advogado e o carcereiro até vai, mas entregar minha alma
pro de baixo? Eu so crente Helena- Amanda junta as mãos em forma de oração e eu
gargalho alto. 
-Crente do rabo quente só se for. Porque todo mundo naquela empresa sabe que
essa sua implicância com o Rabello tem nome e sobrenome. 
-E eu posso saber qual? 
-Vontade de sentar- Amanda cospe toda sua bebida de volta ao copo antes de me
olhar -de novo, mais uma vez. Eu só espero que seja no estacionamento de novo,
ninguém é obrigado a ver a bunda branca do Sávio exposta daquele jeito.
Ela protesta, ainda rubra de vergonha dizendo que a bunda dele era bonitinha antes
de desconversar, falando sobre um show que aconteceria na Malum em alguns dias.
O celular de Amanda toca e a resposta malcriada seguida de um rosnado nada
normal são o suficiente para saber que Sávio estava ligando e pedindo mais alguma
coisa, ou precisando ajuda para fugir de alguém.
- Eu fui uma bruxa muito má em outra vida. A bruxa má do Oeste e levei os
sapatinhos prateados- levanto a sobrancelha em um mudo questionamento,
ganhando um rosnado como resposta. Sávio precisava mais uma vez de ajuda.
Amanda sai com a promessa de recompensar o almoço perdido outro dia enquanto
corre com o celular em mãos xingando até a última geração de Rabellos que não
virão ao mundo.
“40 minutos para prepara a reunião. Contando”
-Henrique Alev

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