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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Direito Penal I

O direito penal é o conjunto de normas que estabelece, para determinados pressupostos, para determinada
previsão normativa, certas consequências jurídicas, as sanções criminais, que podem ser penas ou medidas de
segurança. É, portanto, o conjunto de normas que descrevem certos factos – os crimes – e estatuem certas
consequências – as sanções criminais.

Há, assim, três elementos constantes das normas penais:

a) Previsão – crimes;
b) Estatuição – penas e medidas de segurança.

Não se pode dizer que existe um Direito Penal da União Europeia, mas apenas aquilo que é o reduto da
soberania nacional.

É importante ter a noção de que o crime e a pena são entidades produzidas por instâncias sociais antes de
serem moldadas pelo legislador como tais. Há uma vinculação (embora não rígida) entre a noção de “crime”
dos diversos grupos sociais e a definição legislativa. Assim, as representações sociais comuns sobre o que é
uma atividade criminosa são normalmente reproduzidas pelo legislador. E, por outro lado, a aceitação das
decisões legislativas depende da receção das representações sociais dominantes por aquelas decisões.

 Definição material de Direito Penal: que factos podem ser caracterizados como crimes?

Possíveis respostas:

1- Todos os que são objeto de uma sanção criminal – é circular, numa perspetiva de fundamentação,
pois não caracteriza os factos que uma norma deve caracterizar como crimes. Mais correto seria
afirmar que só é criminoso o comportamento que mereça uma pena;
2- Todos os que têm uma certa gravidade moral – contudo, este critério não é suficiente. Até porque
muitos casos que envolvem gravidade moral estão relacionados com problemas de consciência e não
com a relação com outros. Fundamenta, mas pressupõe que a moral é um critério de Direito ou com
que confunde com o Direito;
3- Todos os que revelam perigosidade do agente – também não parece ser um critério suficiente, pelo
menos sem que haja demonstração de algum ato lesivo. Desloca a caracterização do facto para a
personalidade ou qualidades do agente. Há factos irrelevantes que podem revelar perigosidade e
factos habitualmente considerados crimes que não revelam perigosidade por serem esporádicos ou
revelarem uma situação-limite vivida pelo agente;
4- Todos os que são danosos numa certa medida para a sociedade – requer que haja uma densificação
do conceito de dano, para além de que há muitos factos danosos que são acidentais.

O que é então necessário para definir o crime, de modo satisfatório?

a) A gravidade das sanções criminais relativamente às restrições dos direitos fundamentais só é


justificável por factos proporcionadamente danosos desses direitos ou bens de grande valia
constitucional.
b) Há uma relação de gravidade da sanção de gravidade da sanção com o facto estabelecido através da
Constituição – lógica do Estado de Direito, princípio da necessidade da pena (art. 18º/2).

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☼ Contrato social

Os filósofos do contrato social:

→ A tradição liberal individualista de LOCKE:

Entende o Estado como guardião dos direitos individuais, mas não como o seu criador. O fundamento do
poder é então a própria proteção de direitos. Associa a justificação do Direito Penal à sanção de
comportamentos que afetam os direitos individuais.

O crime é uma ofensa a direitos que justifica pela sua gravidade a restrição de direitos fundamentais.

Para LOCKE, os indivíduos, no seu estado de natureza, estão todos em pé de igualdade, sendo que, se o seu
direito natural é atacado, cada indivíduo pode defendê-lo.

Ou seja, o poder punitivo será legítimo se servir para defender e garantir o exercício dos direitos naturais.

→ A tradição democrática de ROUSSEAU:

A vivência dos direitos só é possível num Estado. A associação dos indivíduos no Estado permite o seu
desenvolvimento pelo desenvolvimento da vontade coletiva, a realização da igualdade. O coletivo é condição
de realização dos indivíduos. As pessoas cedem a sua liberdade, uma vez que aquilo que cedem é aquilo que
recebem.

Um aspeto importante em ROUSSEAU é que o contrato social não leva à perda dos direitos individuais, pelo
contrário; através do Estado, os indivíduos podem desenvolver as suas qualidades individuais.

O crime é uma ofensa à vontade coletiva da qual depende a igualdade dos direitos e o desenvolvimento
individual.

Para ROUSSEAU, ao contrário do que pensa LOCKE, existem desigualdades, a nível económico e outros, o que
leva a que haja conflitos. E será nessa medida que existirá o Estado.

O Tratado Social tem por fim a conservação dos contraentes. Quem quer o fim, quer também os meios, e estes
meios são também inseparáveis de alguns riscos e até mesmo de algumas perdas.

O cidadão deixa de ser o juiz das circunstâncias de perigo a que a lei o obriga a expôr-se e, quando o soberano
lhe diz que é razão de Estado que ele morra, ele deve morrer, porque não foi senão com essa condição que
ele viveu em segurança até então, e porque a sua vida já não é apenas um dom da natureza, mas um direito
condicionado pelo Estado.

A pena de morte que se inflinge aos criminosos pode ser encarada mais ou menos do mesmo ponto de vista:
é para não sermos vítimas de um assassino que consentimos morrer se um dia viéssemos a sê-lo.

→ KANT e o Contrato Social

Para KANT, a restrição do livre arbítrio de cada um justifica-se na medida da articulação da liberdade de cada
um com a liberdade dos outros (Metafísica dos Costumes). É a racionalidade do ser humano como ser moral,
é o seu interesse racional que legitima qualquer restrição da liberdade e nunca a realização dos seus interesses
naturais ou a produção de felicidade.

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KANT desenvolve então muito a ideia de interesse racional, que é o que legitima qualquer restrição da
liberdade. Procura então aproximar a racionalidade da aceitabilidade de um interesse racional.

No contrato social, concebido como conjugação de interesses particulares, nunca se poderia justificar a pena
de morte relativamente a crimes graves. KANT tenta demonstrar que não é essa a vontade associada ao homo
phaenomenon de que fala. Quando se formula uma lei penal contra si mesma é o homo noumenon que está
em causa, isto é, “a razão pura juridicamente legisladora em mim”. O que KANT defende é que quando alguém
pratica um crime está a agir contra o seu interesse.

O contrato social não é portanto um negócio atual entre os cidadãos e o governo. A vontade, por outro lado,
não é a escolha arbitrária, mas sim a razão prática, e esta inclui a subordinação à lei e ao Estado. Não é o
interesse individual que justifica a subordinação ao Estado, mas o Direito justificado como a liberdade para
todos (relação com a vontade geral de Rousseau).

KANT é o filósofo que, apesar do seu contexto religioso, procura fundamentos para além da religião. Contudo,
afirma que existe um dever moral de obediência à lei.

Justifica o poder do Estado num benefício para a liberdade de cada pessoa, não no sentido de uma liberdade
arbitrária, embora aceite e reconheça a importância da ideia de autonomia, na medida em que a liberdade é
a consagração da pessoa como um fim em si mesmo.

KANT afirma ainda que, se uma sociedade fosse passar a deixar de existir, se fosse dissolver, ainda assim
alguém que tivesse praticado algum crime que fosse objeto de pena de morte teria de ser, antes da dissolução
da sociedade, condenado e teria de se executar a pena de morte, para que o sangue derramado pelo
condenado não contagiasse as restantes pessoas dessa sociedade que ia deixar de existir. É uma ideia sedeada
no Antigo Testamento.

» Conceções contemporâneas do contrato social

➢ JOHN RAWLS – Uma Teoria da Justiça

Se no contrato social há uma ideia de racionalidade = interessa racional e a aceitação de algo em troca, no
pensamento de RAWLS, que procura uma teoria da justiça não utilitarista, procura-se uma conceção de
racionalidade desligada de uma ideia de interesse imediato, associando a ideia de que o interesse racional
conduz a que haja instituições justas numa sociedade. Assim, o primeiro grande interesse racional é que as
instituições estejam organizadas e orientadas por princípios de justiça, estabelecer como conseguimos
alcançar racionalmente os princípios de justiça à volta dos quais funciona a sociedade.

Apela a uma racionalidade de interesses que justificaria na posição original, em que cada pessoa decidiria
coberto por um véu de ignorância, a escolha dos princípios de justiça. Nesta posição original coloca-se a
questão de saber o que é que uma pessoa, que não sabe que lugar vai ocupar na sociedade futuramente, na
distribuição dos bens, dos cargos públicos etc, escolheria como os princípios de justiça dessa sociedade. Assim,
a escolha dos princípios de uma sociedade está associada a uma ideia de imparcialidade.

Em RAWLS não se prescinde totalmente de uma visão utilitarista do interesse, mas a justificação da
subordinação ao Estado está numa escolha racional dos princípios de justiça.

Chega-se então aos grandes princípios da justiça, associado à maior proteção das liberdades individuais; ao
princípio da igualdade, mas associado à diferença; e ao princípio da distribuição social equitativa.

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A tese de RAWLS relaciona-se com o Direito Penal, na medida em que as penas nunca podem invadir a esfera
das liberdades individuais. Para além disto, as penas são justificadas na dimensão do dano social, e sofrer uma
pena tem que ser algo que redunde no proveito da sociedade, da vítima (em alguns casos), mas sobretudo do
próprio criminoso.

Há uma crítica feita a RAWLS, que reside no facto de este autor não conseguir justificar racionalmente os
princípios de justiça.

» Consequências para o Direito Penal do pós-contratualismo

A restrição de direitos através das penas deve ancorar na realização de interesses tidos como fundamentais,
mas numa perspetiva pós-contratualista, tal como foi inaugurada por KANT e se revela em RAWLS, mas
também em NUSSBAUM – é preciso justificar as penas. Não se trata do preço do contrato, mas da escolha
racional dos princípios de justiça que regem uma sociedade. Os factos que justificam as penas devem ser
especialmente atentatórios desses princípios de justiça.

» Conceções contemporâneas críticas do contrato social tradicional

 MARTHA NUSSBAUM – Capabilities Approach.

Critica a tese de RAWLS, pelo facto de, na escolha dos princípios que irão reger a sociedade, nem todas as
categorias de pessoas estariam presentes (nomeadamente, mulheres, deficientes). Esta autora não nega a
teoria criada por Rawls, mas afirma que esta só resulta e só faz sentido para as categorias para as quais está
pensada.

O que se quer é, na realidade, um Direito penal que assegure e proteja as capacidades de cada um. O
cumprimento de uma pena deve servir para garantir aos restantes cidadãos espaço para desenvolver as suas
capacidades e, ao mesmo tempo, permitir ao agente que cometeu o crime que este possa vir a ser reintegrado
na sociedade.

Seriam as capacidades humanas o critério de uma escolha justa. As capacidades são apresentadas como a
fonte dos princípios políticos numa sociedade liberal pluralista.

A teoria das capacidades apela ao chamado consenso por sobreposição, na medida em que a diferenciação
das capacidades ou do modo do seu preenchimento conduz à possibilidade de uma conjugação de interesses
baseado em diferentes motivações.

» Fundamento do Direito Penal numa Teoria da Justiça

A gravidade do facto não se define apenas pela tradição ou pela moral dominante, nem pela vontade da
maioria. É necessária uma relação com os fins do Estado e os seus princípios de justiça.

Os critérios de necessidade e de utilidade só são aceitáveis na medida em que se articulem com os princípios
de justiça.

O Direito Penal que serve a proteção das capacidades não é um Direito Penal retributivo, mas reintegrativo,
justificado pelo melhor desenvolvimento tanto das possibilidades das potenciais vítimas como dos próprios
agentes.

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A afirmação de que um comportamento constitui um crime porque é punido deve ser substituída pelo
reconhecimento de que só é criminoso o comportamento que mereça uma pena. Este reconhecimento apela
à legitimação constitucional do Direito Penal.

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Criminologia e Direito Penal

Os estudos científicos não jurídicos sobre o crime como fenómeno social ou psicosocial podem ser
genericamente definidos como Criminologia. Quando se procura uma definição operatória de crime, recusa-
se uma formulação jurídico-formal e apela-se às “forças não jurídicas do controlo social do comportamento
humano”, definindo-se, por exemplo, o crime como comportamento “anti-social” (Mannheim), através da
confluência da Ética, da Moral e do próprio Direito.

A característica da anti-socialidade ou da irregularidade social, porém, é sempre referida às valorações sociais


dominantes. Tradicionalmente, a Criminologia é uma ciência de base descritiva e não normativa, isto é, não
pretende mostrar nem o que deve ser crime nem como se deve responder com justiça ao crime, mas pretende
apenas compreendê-lo e explicá-lo.

Segundo a organização de HASSEMER, distinguir-se-ão conceções que identificam o crime:

1) Com deficiências do agente (biológicas ou psicológicas);


2) Com deficiências da socialização ou mesmo da estrutura social (sociologia do crime);
3) Com a natureza social e até funcional do crime, rejeitando analisá-lo como uma deficiência ou um
fenómeno puramente objetivo, alterando o estatuto epistemológico do estudo sobre o crime
(sociologia do crime).

Esta sistematização deverá, no entanto, ser relacionada com três perspetivas metodológicas diferenciadas:

a) A perspetiva do crime como acontecimento individual que reúne as conceções biopsicológicas


tradicionais e as teses cognitivistas da psicologia contemporânea;
b) A perspetiva do crime como acontecimento social, baseado em padrões sociais de ação, segundo uma
lógica behaviorista ou psicosociológica;
c) A perspetiva do crime como fenómeno significativo e comunicacional, na linha das teses
interacionistas. Esta última perspetiva foca o objeto da Criminologia nos próprios sujeitos que definem
o crime, nas instituições de controle e nos processos de interação social que definem o crime e a
delinquência.

Para as duas primeiras perspetivas, que aceitam o crime como um fenómeno identificável objetivamente, o
crime é sempre visto como uma alteração de um padrão de comportamento tido como normal, seja como
fenómeno individual seja como fenómeno social.

PSICOLOGIA DO C RIME
As teorias que se concentram na deficiência do agente procuram identificar causas biológicas de uma
diferença, colocando no centro da investigação a pessoa isolada do meio. Assim, no princípio do séc. XX,
algumas teorias criminológicas tal como consta da obra de LOMBROSO, propondo que os criminosos seriam
delinquentes natos, próximos dos primitivos que, independentemente do meio social, não poderiam deixar
de cometer crimes, ou seja, estariam predispostos à prática de crimes – determinismo biológico. Os
criminosos poderiam ser reconhecidos através de certos traços biológicos, sendo que um dos traços
caracterizadores dos criminosos seriam as tatuagens.

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Como críticas a LOMBROSO:

Críticas metodológicas:

1- A comparação dos crânios não incluía os não criminosos, partindo dos condenados;
2- Repercutia os preconceitos da sua época e sociedade relativamente a certas pessoas como as
prostitutas;
3- Esta teoria baseava-se numa interpretação deficiente dos dados empíricos, dado que não confrontava
devidamente a população dos condenados com os outros grupos da sociedade, bastando-se a análise
de pessoas vivendo no meio isolado das prisões sem considerar fatores sociais que poderão ter
conduzido ao crime, embora posteriormente viesse a considerar o papel da educação na prevenção
da criminalidade.

Criticas empíricas:

1- Goring, um médico inglês, estudou 3000 condenados, tal como Lombroso, alguns anos após a morte
de Lombroso e não chegou aos mesmos resultados.

Ainda assim, estas teorias correspondem à procura de uma base biológica do comportamento criminoso, que
tem tido continuidade em certas indagações, como as que levaram à identificação do cromossoma da
violência, a duplicação do cromossoma y, em meados dos anos 70 e, mais recentemente, às conexões que o
estudo do cérebro pela neurociência pode sugerir quanto a certos tipos de comportamento.

As conexões entre o fucionamento do cérebro e o comportamento humano pela sua complexidade não
permitem, no entanto, concluir que haja uma causalidade linear entre fenómenos registados no cérebro e os
concretos comportamentos, pelo menos sem a presença de outros fatores relacionados com o meio e a
cultura.

Papel de LOMBROSO

a) Fundou a antropologia criminal e o método empírico no estudo do crime;


b) Pôs em causa a escola clássica segundo a qual o crime era um produto do livre-arbítrio;
c) Procurou a identificação de causas do crime para a prevenção.

Surgem ainda outras teorias que tentam explicar a prática de crimes no psiquismo individual de uma pessoa:

1) Teorias psicodinâmicas: problemas de infância – defendidas por FREUD. O crime estaria relacionado
com a fraqueza do ego. Há um sentimento de culpa anterior ao crime e que motiva o próprio crime.
2) Teorias comportamentais: modelação social do comportamento – pretende compreender os
esquemas comportamentais. O objeto da investigação é, em função de determinado estímulo, saber
os comportamentos que estão associados.
3) Teorias cognitivas – seguem duas vias: o desenvolvimento moral (PIAGET, KHOLBERG) e o processo
informacional. KOHLBERG defende que todos temos um desenvolvimento que passa por várias fases
(fase pré-convencional, fase convencional e fase pós-convencional). A teoria de KOHLBERG baseia-se
no desenvolvimento moral com abstração do comportamento e da interação social.
4) Teorias da personalidade.
5) Teorias focadas na inteligência.

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SOCIOLOGIA DO C RIME
A segunda grande conceção, de base sociológica, radica o crime na deficiência da socialização dos indivíduos
e, por isso, acentua os padrões sociais de relação entre o indivíduo e os grupos sociais ou a própria estrutura
social na génese do crime.

A linha de força destas conceções é a orientação de DURKHEIM, segundo o qual o crime seria uma expressão
do funcionamento normal de todas as sociedades. Seria, em certo sentido, útil ou funcional, na medida em
que permitiria sinalizar quais as regras dominantes e necessárias, exprimindo inovações comportamentais
inerentes à evolução social, nomeadamente às conceções éticas dominantes.

Esta modificação do paradigma de compreensão do crime, desde a personalidade deficiente até uma espécie
de normalidade social, instaura uma linha de pensamento que entende o crime como puro facto social e o
analisa como uma função social e não como uma projeção da experiência subjetiva.

A tradição de DURKHEIM na análise do crime acentuou os fenómenos de indiferença às normas (anomia)


suscitadas pela organização das sociedades, nomeadamente pela divisão do trabalho social, e a raiz dos
comportamentos anti-sociais na natureza das estruturas sociais.

Ou seja, para DURKHEIM, o crime era:

1. Normal;
2. Necessário;
3. Funcional:
a) Permitindo afirmar as regras;
b) Exprimindo inovações comportamentais, inerentes à evolução social.

Por outro lado, a influência do pensamento de MEAD orientou a Sociologia para a compreensão dos
fenómenos de interação e de resposta do indivíduo ao meio, que estão subjacentes a teorias da aprendizagem
dos comportamentos criminosos e à construção de si e da personalidade delinquente. E, igualmente, abriu
caminho às possibilidades de reconstrução de si mesmo como são propostas pelas teorias da psicologia
cognitiva-comportamental.

Outros nomes importantes da valorização do interacionismo e da relação do crime com a deficiente


socialização são:

◊ SUTHERLAND, que defende que o crime se explica pela intensidade, frequência e precocidade de
certos contactos sociais.
◊ MATZA e SYKES, que evidenciaram que, no fenómeno do crime, estudando sobretudo a delinquência
juvenil, se revelam técnicas de neutralização normativa, pelas quais os agentes superariam conflitos
normativo-comunicativos.
◊ COHEN, que realça na criminalidade os fenómenos de conflito de valores culturais e de substituição
dos valores dominantes por outros valores e pautas normativas, que originariam as subculturas
delinquentes
◊ MERTON que, desenvolvendo o conceito de anomia de Durkheim, explicaria o crime pelo
desfasamento entre as metas sociais gerais e as vias para as alcançar.

 O crime como processo social de criminalização de conduta – Labeling Approach:

A explicação do crime muda de paradigma racionalizador através da chamada conceção do labeling approach,
que conduz a lógica interacionista da escola de Chicago para uma alteração do objeto de análise e para uma
alteração metodológica do estudo do crime.

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Esta conceção veio retirar ao conceito estático de crime qualquer função de objeto científico, para em seu
lugar colocar os processos sociais de criminalização de condutas. O crime e a criminalidade como fatos
sociológicos seriam o resultado de um processo de seleção social, segundo o qual o legislador, a polícia, os
tribunais, e todas as chamadas instâncias formais de controlo elegeriam algumas condutas e não outras como
criminosas ou apenas certas pessoas como delinquentes. Também os grupos sociais (família, vizinhos,
colegas), como instâncias não formais de controlo, etiquetariam certas pessoas como potenciais ou efetivas
autoras de crimes.

Encetando esta via, a Sociologia Criminal admitiria, contudo, o total relativismo quanto ao que é designado
socialmente como crime e renunciaria de certo modo à explicação do sentido e função social do
comportamento delinquente e da sua génese – deixaria de pretender explicar por que motivo certos
comportamentos são designados ou eleitos como crimes segundo as representações sociais dominantes, para
se preocupar fundamentalmente com os processos de seleção social e a arbitrariedade dos mesmos.

Através desta última perspetiva, a tese de DURKHEIM, segundo a qual os crimes são “parte integrante da
sociedade sã”, determinados pela própria estrutura social (e variáveis segundo ela), tornar-se-ia menos
interessante para as ciências do crime.

Na verdade, a teoria do labeling approach não dá total relevância à tese de que um certo modo de organização
social gera “necessariamente” certos crimes e, em suma, à função social do crime (como defende DURKHEIM),
condensando antes nos processos de seleção dos criminosos toda a problemática sociológica da criminalidade.

 Mas a herança de MEAD conduziu a perspetivas metodológicas mais profundas, em que os


comportamentos sociais seriam o produto de configuração por uma interação simbólica dos
significados sociais e da construção da realidade, incluindo, porém, o mundo interior dos indivíduos.
Diferentemente, a perspetiva do funcionalismo estruturalista reduziu o objeto de estudo às relações
entre elementos do sistema social, às disfunções e aos mecanismos de adaptação, relativizando a
relevância dos padrões subjetivos de comportamento.

HOWARD BECKER, no seu livro Outsiders, dizia mesmo que a déviance não é uma qualidade interna dos factos
sociais, mas antes o produto dos grupos sociais que criam as regras cuja violação a suscita e que aplicam com
sucesso (estigmatização) a qualificação de déviant aos que violam as normas. É, assim, uma pura criação social.

Por outro lado, o estudo dos processos de etiquetagem conduz a ideias-chave desta corrente de pensamento
como a déviance secundária, a que se referia LEMERT. Esta corresponderia aos papéis desencadeados pela
atribuição primária do comportamento criminoso, como uma resposta ou modo de lidar com a própria
estigmatização.

Conclui-se, assim, que nos antípodas do interacionismo simbólico, ressurge a ideia da escolha racional num
aparente regresso ao paradigma da velha escola clássica, mas agora com referências pragmáticas, que
concebe o crime como o produto de uma decisão útil para o próprio indivíduo. A perspetiva de uma escolha
racional adequa-se a políticas penais preventivas e à própria atuação tradicional dos sistemas penais
retributivos e preventivos, correspondendo à elevação a critério científico de convicções de senso comum,
que podendo oferecer, em certos casos, resultados positivos na intervenção sobre o crime e na redução da
criminalidade, não conseguem, porém, uma resposta global e uma atuação sobre os aspetos mais profundos
do comportamento criminoso.

Pese embora a excessiva abstração dos modelos propostos por estes estudos, eles permitem
simultaneamente explicar as causas do crime e elaborar ações para o seu controlo pela sociedade. Mas esta
pretensão de operatividade pressupõe uma identificação pré-jurídica (e não formal) do crime.

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A Criminologia, ao investigar os problemas do crime, terá assim de utilizar uma noção pré-legal de crime,
eventualmente crítica das soluções legais e capaz de debater as questões de descriminalização e de
neocriminalização.

Qual é então o interesse da Criminologia para o Direito Penal? A resposta passa por uma análise prévia do
conceito material de crime conduzida no pensamento penal sobretudo no quadro dos princípios
constitucionais e considerando várias discussões de filosofia penal ao longo dos séculos. O que deva ser
considerado crime legitimamente não pode ser um tema que abstraia das condicionantes socio-psicológicas,
em que se produz a definição socialmente vigente.

A Criminologia vai-nos dar dados empíricos suficientes para se densificar quais os valores que na sociedade
são tidos como algo a proteger, o que não quer dizer que os interesses das minorias não sejam protegidos. A
Criminologia vai-nos ajudar a compreender a adequação das penas, se as normas têm dignidade punitiva, se
existe nesse caso um determinado bem jurídico-penal que carece de tutela penal, se a medida é adequada e
se existe ou não alguma alternativa.

Ou seja, o princípio da necessidade da pena diz-nos que:

1. Tem de haver um bem jurídico-penal;


2. Esse bem tem de carecer de tutela penal;
3. A norma tem de ter dignidade punitiva;
4. A medida tem de ser adequada;
5. Não pode haver outra alternativa para assegurar esse bem.

FINS DAS PENAS

Para estabelecermos critérios de argumentação sobre a validade da eleição de certos comportamentos como
crimes, teremos de pensar no próprio sentido da pena, que é indissociável do crime.

A pena tem uma conotação sagrada que lhe foi conferida pelo processo histórico e que ainda hoje persiste,
revelando-se sempre como imposição de um mal para a pessoa do criminoso e para a sua honra (e não apenas
para o seu património).

Três grande conceções surgiram neste domínio: a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial.

a) As teorias retributivas foram, nas suas primeiras formulações, teorias absolutas, por justificarem a
pena pela compensação do mal do crime, independentemente de qualquer fim pragmático. KANT
assume o pensamento retributivo, justificando a pena independentemente de quaisquer fins, no
exemplo da punição do último condenado à morte numa ilha em que o Estado se dissolveu. HEGEL,
por seu turno, considera a pena como um modo de honrar o criminoso e não como um instrumento
ao serviço da sociedade, através do qual a dignidade do criminoso como pessoa possa ser prejudicada.
A pena é, em Hegel, uma consequência lógica do crime, pois sendo a negação deste constitui a
reafirmação dialética do Direito.

A ideia retributiva não abandonou o pensamento contemporâneo, mas tende a justificar-se hoje pela eficácia
preventiva-geral do Direito Penal, perdendo a pureza de uma teoria absoluta da pena. Com efeito, a defesa
da ideia retributiva faz-se sobretudo na perspetiva de que a retribuição é o único modo de demonstrar a
eficácia das penas e garantir as expectativas dos cidadãos relativamente à punição dos criminosos.

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Críticas:

A primeira crítica deriva da indemonstrabilidade dos seus pressupostos. A teoria retributiva parte de uma ideia
de responsabilidade individual baseada no liberum arbitrium indiferentiae que o conhecimento científico não
permite comprovar. Apenas é aceitável presumir que as pessoas são livres na medida em que a sociedade e o
Direito reconhecem a responsabilidade individual.

A liberdade de decisão é, para muitos, algo que se convenciona existir e nada mais. E mesmo que se
reconhecesse, em abstrato, a liberdade da vontade, ter-se-ia de negá-la na maior parte dos criminosos que
chegam ao crime por um processo social conhecido da Criminologia. De qualquer modo, um pressuposto tão
controverso não será suficiente para legitimar uma teoria retributiva radical.

A segunda crítica provém do terreno jurídico-constitucional. A retribuição tem tido um pressuposto – a culpa
ética – surgindo como sua consequência necessária. Ora, a intervenção do Estado investido do seu poder
punitivo não pode servir para sancionar automaticamente esta culpa. Na verdade, nem os meios do processo
penal podem atingir este nível profundo, nem a própria pena é adequada a uma intervenção na personalidade
de casa criminoso.

Para HEGEL, para que a pena supere o plano da vingança e, por isso, o do próprio crime, é necessária uma
transformação da vontade de particular e subjetiva em universal, em princípio universal. A pena conduz,
assim, necessariamente à moralidade objetiva, própria das comunidades históricas e do Estado. Só no Estado
se superaria o particularismo e a subjetividade de uma perspetiva moral e a moralidade se situaria num plano
meramente objetivo.

De um ponto de vista moral, só o perdão resolveria bem o conglito gerado pelo crime e elevaria a consciência
de quem julga a uma libertação do crime. Não há, assim, para HEGEL, lugar à moralização da pena, a qual deve
pertencer exclusivamente à racionalidade do Estado.

No pensamento de KANT, a negação do direito alheio é sempre uma negação do Direito geral, o que abrange
os direitos dos próprios criminosos. Assim diz “aquele que rouba torna insegura a propriedade de todos os
demais, portanto priva-se a si mesmo da segurança de toda a possível propriedade”.

Concluindo, o que há de universal e objetivo na pena é a ideia de reafirmação do Direito perante a sua violação
e não uma retribuição historicamente concebida. Deste modo, a crítica relevante à retribuição não é apenas
a que consiste em associá-la à promoção de uma perspetiva moral determinada, mas antes o reconhecimento
de uma confusão concetual entre retribuição e reafirmação do Direito.

b) Uma outra perspetiva sobre os fins das penas é a prevenção geral. Na sua versão mais comum, a
prevenção geral justifica a pena pela intimidação dos cidadãos na sua generalidade relativamente à
violação da lei penal. Ou seja, a pena seria um instrumento político-criminal, destinado a afastar os
cidadãos da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação
e da efetividade da sua execução. Segundo o autor FEUERBACH, a pena serviria para impedir
(psicologicamente) quem tivesse tendências contrárias ao Direito de se determinar por elas.

A atuação estatal sobre a generalidade das pessoas assume uma dupla perspetiva:

➢ Prevenção geral negativa – a pena é concebida como forma estatalmente acolhida de intimidação
das outras pessoas através do sofrimento que com ela se inflige ao delinquente e cujo receio as
conduzirá a não cometerem factos puníveis;
➢ Prevenção geral positiva – a pena é concebida como forma de que o Estado se serva para manter e
reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de
bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal.

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Críticas:

As principais críticas contra a prevenção geral dirigem-se à sua legitimidade, enquanto fundamento e medida
exclusiva das sanções criminais.

A primeira crítica observa que o interesse público não pode justificar que se inflija ao agente qualquer pena.
A pessoa não é, em caso algum, um meio de serviço de fins sociais. O art. 1º da CRP, ao consagrar a essencial
e igual dignidade da pessoa, inibir-nos-ia de adotar esta posição sobre os fins das penas, se uma tal perspetiva
não fosse já cultural e eticamente indefensável.

Uma outra crítica salienta que este pensamento não consegue justificar a atribuição da pena ao criminoso por
algo que ele tenha feito e com base na medida da gravidade do facto – a pena deixaria de poder ser vista como
consequência do crime.

c) Finalmente, a prevenção especial considera que o fim das penas é a intervenção sobre o cidadão
delinquente, através da coação psicológica, inibindo-o da prática de crimes ou eliminando nele a
disposição para delinquir. Neste sentido, deve falar-se de uma finalidade de prevenção da
reincidência (FIGUEIREDO DIAS).

Também aqui se pode falar em:

➢ Prevenção especial negativa – a prevenção especial só poderá dirigir-se à intimidação individual do


delinquente, uma vez que a sua “correção” é uma utopia. O que se pretende é a neutralização do
agente infrator.
➢ Prevenção especial positiva – pretende dar à prevenção individual a finalidade de alcançar a reforma
interior (moral) do delinquente ou de tratamento das tendências individuais que conduzem ao crime,
exatamente no mesmo plano em que se trata um doente.

O pensamento preventivo-especial sedia-se no entendimento filosófico de que a virtude se aprende e ensina


(PROTÁGORAS). Mas o desenvolvimento global e coerente desta conceção só foi possível a partir do séc. XVII,
com uma nova visão da pena privativa de liberdade e com a fundamentação do Direito do contrato social, wue
levou a procurar como sentido da pena a sua necessidade estrita.

Já no séc. XIX, LISZT distingue, conforme a personalidade do agente, três funções preventivas-especiais da
pena: a intimidação, o melhoramento e a eliminação do criminoso.

Críticas:

Também a prevenção especial é inaceitável como fim exclusivo das penas.

Em primeiro lugar, conduz a consequências difíceis de aceitar, tanto no plano ético como no plano jurídico-
constitucional. Crimes muito graves poderiam ficar impunes se não existisse perigo de reincidência e crimes
menos gravdes poderiam justificar a prisão perpétua ou a morte.

Em segundo lugar, a investigação empírica não permite apoiar em dados absolutamente seguros a prognose
sobre a delinquência futura. Por outro lado, a pena é criminógena, de modo que as príprias condenações
aumentam as probabilidades de reincidência. Consequentemente, a prevenção especial tende a menosprezar
o princípio da necessidade da pena (art. 18º/2 CRP).

Por outro lado, até é discutível que justifique a criminalização de condutas. Se a recuperação ou intimidação
do delinquente são falíveis, a legitimidade de utilizar meios tão gravdes para a realização incerta desses fins
pode estar efetivamente em causa.

12
Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

» No Direito Português:

O CP de 1888, revisto em 1954, consagrava uma conceção ético-retributiva da pena. Embora a pena visasse a
prevenção dos crimes, não deixava o legislador de afirmar que ela também tinha por objetivo reprimir
(retribuir) o crime praticado e, sobretudo, era bem claro ao estabelecer que a medida da pena dependia da
medida da culpa do infrator.

Posteriormente, o CP de 1982 empreendeu uma evolução legislativa, dado que, embora continue a atribuir-
se à culpa o papel fundamental na determinação concreta da pena, não deixa de se acrescentar que o juiz
deve atender também às exigências de prevenção. Assim, pode dizer-se que este CP acolheu uma conceção
ético-preventiva da pena.

Finalmente, a revisão de 1995 do CP de 1982 culminou a evolução legislativa sobre o fundamento e as


finalidades da pena, concluindo e consagrando uma conceção preventivo-ética da pena. Na verdade, segundo
o art. 40º, as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas,
desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena.

Resulta, então, do atual art. 40º/1 e 2, que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a
prevenção, geral e especial, e que a culpa do infrator apenas desempenha o papel de pressuposto e limite
máximo da pena a aplicar, por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim, temos uma
conceção preventivo-ética da pena: preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção;
ética, porque tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

» ROXIN:

Adota uma teoria preventiva.

Afirma que o Direito penal se realiza em 3 etapas:

1. O primeiro momento em que o Direito penal intervém é o da cominação penal (associar a um


determinado comportamento uma sanção), ou seja, da determinação da medida da pena. Para tal, é
necessário saber que a função do poder estatal é a de criar e garantir a um grupo reunido, interior e
exteriormente, no Estado, as condições de uma existência que satisfaça as suas necessidades vitais.
Concretamente, os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum concretizam-se nos
bens jurídicos, sendo que o Direito penal tem de assegurá-los.

Contudo, o Direito penal é de natureza subsidiária, e por isso apenas se podem punir as lesões de bens
jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social se tal for indispensável para uma vida em comum
ordenada. Neste âmbito, o que se tem em vista nas disposições penais é a prevenção geral.

2. O segundo momento é o da aplicação e graduação da pena. Neste momento, a aplicação da pena


serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual, de bens jurídicos e de
prestações estatais, através de um processo que salvaguarde a autonomia da personalidade e que, ao
impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa. Assim se conserva o princípio da prevenção geral,
reduzido às exigências do Estado de Direito, e completado com as componentes de prevenção
especial da sentença mas que, simultaneamente, através da função limitadora dos conceitos de
liberdade e culpa.
3. O último momento é o da execução. Servindo a pena exclusivamente fins racionais e devendo
possibilitar a vida humana em comum e sem perigos, a execução da pena apenas se justifica se
prosseguir esta meta na medida do possível, isto é, tendo como conteúdo a reintegração do
delinquente na comunidade – prevenção especial. Contudo, a ideia de função ressocializadora não
justifica por si só o Direito penal e, por isso, não se podem descurar as etapas precedentes, nas quais

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

pode não ser eficaz. Pelo contrário, os esforços de ressocialização apenas são legítimos e bem
sucedidos sob todos os aspetos, dentro dos limites atrás traçados.

Para este autor, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (encontra-se aqui o único resquício da
retribuição). Deste modo, a culpa serve para limitar o poder penal do Estado, e tal é possível e necessário
porque os conceitos de dignidade humana e autonomia da pessoa que presidem à Lei fundamental e à tradição
ocidental pressupõem o homem como ser capaz de culpa e responsabilidade, que conforma a sua vida em
comum com os restantes segundo projetos conformes a um sentido, cuja justeza não se prova com recurso
aos métodos científicos, mas cuja legitimidade se deve à decisão da sociedade para criar uma ordem livre e
conforme ao Estado de Direito.

Assim enquadrado, o conceito de culpa tem a função de assegurar ao particular que o Estado não estenda o
seu poder penal, no interesse da prevenção geral ou especial, para além do correspondente à
responsabilidade de um homem concebido como livre e suscetível de culpa. Deste modo, evita-se a má
consciência que existiria que se se utilizasse a culpa para justificar medidas retributivas, já que esta utilização
do conceito de culpa para coartar o poder da autoridade atua exclusivamente a favor do cidadão e das suas
possibilidades de desenvolvimento.

Assim, a culpa constituirá um meio de manter dentro de limites aceitáveis os interesses da coletividade face à
liberdade individual.

Em relação ao instituto da suspensão da execução da pena, este poderá ser permitido e até necessário,
segundo o princípio da solidariedade, se no caso concreto se restaurar a paz jurídica com sanções menos
graves.

» CONSELHEIRO SOUSA E BRITO

Para o Conselheiro, o comando de determinar a medida da pena em função da culpa do agente implica
também a proibição de pena inferior à medida da culpa (que só se pode excetuar quando a medida mínima
da pena ainda correspondente à culpa torna impossível a prevenção especial).

Além disso, implica também a prioridade metódica em função da culpa, só depois se seguindo a variação
resultante de ter em conta os fins preventivos.

Estas consequências não se fundamentam suficientemente na letra da lei, mas serão deduzidas do sistema da
CRP e do CP.

Este autor considera que do art. 40º/2 resulta que a pena visa retribuir a culpa, mas que a culpa é fundamento
ou pressuposto essencial (ou seja, sem culpa não há pena), e só por isso também limite da pena. A culpa só é
retribuída na medida necessária à proteção dos bens jurídicos.

Em rigor, será impossível obedecer à proibição de a pena ultrapassar a medida da culpa sem medir a pena
pela culpa. Medir a pena pela culpa é o conteúdo essencial da ideia de retribuição. Dizer que a pena é medida
pela culpa quer dizer que a prestação da pena segundo a unidade de medida que a caracteriza é tanto maior
quanto maior for a culpa e inversamente e que não existe pena sem culpa.

Nem a teoria da prevenção especial nem a da prevenção geral determinam a escolha e a medida das
prestações de prevenção especial devias pelo criminoso em termos idênticos entre si ou idênticos com a
determinação que resulta da reparação da culpa no direito penal de Estado de direito. A consequência, quando
se considera a prevenção especial como fim da pena, é a de que se termina a pena segundo tipos de criminoso
e não segundo tipos de facto.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Ou seja, o Conselheiro constrói a moldura penal com base na culpa, e, dentro desta moldura, vai escolher-se
qual é a medida ótima com base na prevenção especial. Há, no entanto, duas exceções:

1- Tendo em conta que a pena deve ser ajustada à culpa, nos casos em que a pena sendo ajustada à
culpa conduza a uma solução em que não é garantida a prevenção especial (terá um efeito
dessocializador), terá de ser abdicada de uma parte da pena, para garantir um efeito socializador do
agente.
2- Se a pena definida de acordo com uma prevenção especial não garantir um mínimo de prevenção
geral positiva, esta mesma prevenção geral positiva poderá “subir” a pena, de forma a garantir que o
OJ não é totalmente descredibilizado.

» FIGUEIREDO DIAS:

No momento da determinação da pena, o Prof. tenta articular todos os tipos de prevenção. Tem de se criar
uma moldura para o caso concreto – dentro da moldura (imposta pela lei) vai-se construir o espaço que seria
aceitável em termos de prevenção geral positiva.

O aplicador do direito é chamado, em primeiro lugar, a fazer um juízo das necessidades de tutela e das
expectativas comunitárias no caso concreto. Assim, o que resulta do art. 40º/1 é que a pena não visa retribuir
a culpa, mas antes que, tendo outros fins, a prevenção geral na forma de proteção dos bens jurídicos e a
prevenção especial na forma de reintegração do agente na sociedade, está limitada no seu máximo pela culpa.

» PROF. FERNANDA PALMA:

Nenhuma das teorias dos fins das penas logra, pelas suas forças exclusivas, dar uma resposta satisfatória ao
problema da legitimidade da pena. As teorias sobre os fins das penas pretendem resolver um problema mal
colocado – o dos fins “ideais” das penas.

O ponto de partida da discussão, deve pois ser a realidade da pena e não aquilo que ela idealmente deveria
ser. A Prof. FERNANDA PALMA afirma então que não terá cabimento proclamar que a pena não deve ser
retributiva onde a primeira necessidade humana que a pena pública satisfaz é a da substituição psicológica da
vingança privada. O problema fundamental será então saber se a pena poderá cumprir aquele destino
racionalmente e de forma juridicamente aceitável e ser instrumento de efeitos sociais úteis, para além das
razões ancestrais da sua instituição.

É certo que a existência da comunidade social tem uma sedimentação mais profunda do que a tradicional
lógica contratualista (que proclamava a necessidade da pena: só a pena necessária é legítima) supõe. As
necessidades que justificam a comunidade estatal não se reconduzem à liberdade individual enão são livre e
renovadamente discutíveis por cada indivíduo sempre e a todo o tempo, dependendo antes de consensos
temporários ou de maiorias contingentes.

A substituição psicológica da vingança privada que a pena assegura enquanto retribuição racionaliza-se
através de dois princípios constitucionais:

o Princípio da culpa, derivado da essencial dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP).


o Princípio da necessidade da pena (art. 18º/2 CRP).

A pena retributiva só será legítima se for necessária preventivamente.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Ou seja, na pena está sempre inerente uma ideia de reparação, de retribuição. Contudo, trata-se hoje de uma
retribuição moderna, em que a pena é entendida como uma pena retributiva justificada preventivamente.

A prevenção geral só será, contudo, critério racional de definição dos fins das penas se se basear num efeito
objetivo constatável, de alguma forma mensurável – a intimidação – mesmo que ele seja alcançado pelos
mecanismos psicanalíticos da crença na validade da norma violada.

A Prof. entende a culpa não só como pressuposto, mas também como fundamento – é a culpa que nos vai
dizer, no caso concreto, como é que o agente deve ser responsabilizado. O agente só deve ser punido se se
provar que houve outras alternativas de ação, e o agente optou pela ação que gerou o dano (?).

 As antinomias entre os fins das penas e os modelos de política criminal

À controvérsia clássica entre as teorias dos fins das penas sucedeu o confronto entre os modelos de política
criminal. A política criminal é o conjunto das soluções normativas ou puramente estratégicas tendentes a uma
otimização do controlo do crime (KAISER).

Entre nós, FIGUEIREDO DIAS apresenta uma história dos modelos de política criminal: a um modelo
fundamentalmente retributivo (modelo azul), em que a política criminal se ocultava sob a linguagem ética,
sucedeu um modelo preventivo-especial (modelo vermelho), e as estes dois, sucedeu a própria descrença e a
desorganização dos modelos de política criminal.

Na realidade, contestada a conceção penal retributiva, assente numa conceção metafísica da pena, por ser
inadequada aos fins legítimos da intervenção penal, e frustrada a via preventiva-especial por ter sido
simultaneamente inoperante e atentatória da dignidade da pessoa humana, assoma na crise da política
criminal o que FIGUEIREDO DIAS designa como paradigma emergente, o modelo verde, fortemente apoiado
na prevenção geral positiva, que organiza o controlo do crime a partir de uma teia de princípios constitucionais
(legalidade, culpa, necessidade da pena) e de uma estratégia de descriminalização, desjudiciariazação,
socialização e diversificação (substituição da pena de prisão por sanções alternativas).

Gene do Crime

Crítica metodológica e perspetiva normativa:

i. Não há demonstração empírica de uma relação causal entre o Cromossoma XYY e a prática de
crimes violentos, já que os condenados que evidenciavam essa alteração não eram na sua maioria
autores de crimes violentos.
ii. Tal como Lombroso já entendera, existem sempre outros fatores que potenciam uma
predisposição para a prática de crimes, no meio e na interação social.
iii. Nunca há suficiente comparação com população que não comete crimes.
iv. A conceção legal de crime é geralmente o pressuposto das investigações.

Consequências normativas:

a) Exclusão da responsabilidade, aumento do âmbito da inimputabilidade;


b) Eugenismo e seleção social dos seres humanos;
c) Penas incapacitantes;
d) Substituição do modelo normativo do Estado de Direito.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

A Neurociência e o Crime

A neurociência vem colocar a questão da mente humana numa base naturalista, rejeitando que seja algo de
diferenciado na sua natureza do corpo (rejeição do dualismo alma-corpo cartesiano). Sem corpo não haveria
mente. Por exemplo, certas lesões pré-frontais que se concentram no setor ventromedial afetam a solução de
dilemas morais (A. Damásio).

→ Críticas às teorias reducionistas da neurociência

Estas incorrem numa falácia mereológica.

→ Importância da neurociência para a explicação do crime

A neurociência pode ajudar a compreender como são tomadas as decisões que levam ao crime.

→ A explicação psicológica

O crime explicar-se-ia pelo funcionamento psicológico individual.

CONCEITO MATERIAL DE CRIME

O pensamento jurídico tem procurado definir materialmente o crime, ou noutros termos, o ilícito criminal,
diferentemente da Criminologia, que aceita uma definição genérica de crime que abrange a violação de regras
morais, ou até, como é explícito em Becker, acentua que nada define o crime como uma categoria específica
de comportamentos antes de alguém ser estigmatizado num processo de interação social como delinquente.

A divergência teórica que mais se repercute é entre:

a) Aquela que define o objeto da infração criminal como violação de certos direitos subjetivos
(FEUERBACH) – trata-se da estrutura liberal-contratualista que somente justifica a intervenção penal
onde os direitos humanos básicos queo contrato social visa assegurar foram violados. Dissolve a
infração criminal na proteção da liberdade individual.
b) Aquela que define o objeto da infração criminal como violação de determinados bens jurídicos
(BIRNBAUM) – a referência legitimadora do Direito penal é uma estrutura estatal, a comunidade e os
seus valores. Define a infração criminal pela lesão objetiva de valores da comunidade. Segundo
Birnbaum, o Direito vincula-se a elementos objetivos, mas simultaneamente pré-positivos ou de
direito natural. Apesar de acentuar a objetividade, Birnbaum não deixa de procurar uma
fundamentação da proteção jurídica que merecem certos bens nos fins do Estado.

Quanto à definição de bem jurídico:

 BINDING – reduz o bem jurídico aos valores ou condições de vida da comunidade jurídica, tal como
são definidos pelo legislador, numa perspetiva de puro positivismo legalista.
 VON LISZT – o bem jurídico é um interesse humano vital, expressão das condições básicas da vida em
comunidade. No seu entendimento, o bem jurídico é um conceito legitimador do Direito penal (e do
Direito em geral), descomprometido com a norma legal. Para este, o conceito de bem jurídico tem
ainda, no entanto, um conteúdo individualista liberal.
 A esta perspetiva de Von Liszt contrapor-se-á uma outra que, baseada também numa delimitação
objetivista do fundamento da infração criminal, a refere já a bens ou valores supra-individuais. Na
verdade, a consideração do bem jurídico pode permanecer no quadro de referência do modelo de
Estado liberal, ou ser transposta para uma conceção de Estado e de Direito supra-individualista ou
mesmo transpersonalista. Esta última conceção, representada pelo Estado hegeliano e mais

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

recentemente pelas ideologias totalitárias, considera que os valores da personalidade e do indivíduo


estão necessariamente ao serviço dos valores coletivos. Os bens jurídicos são protegidos pelo
interesse que representam para a comunidade.

Impacto do Funcionalismo Sistémico na Definição de Crime:

» O funcionalismo no pensamento penal partiu das conceções de LUHMANN sobre a análise das
sociedades humanas como sistemas sociais. A teoria dos sistemas diz que a sociedade não é um
fenómeno pura e simplesmente político; a sociedade é antes um sistema social, isto é, a sociedade
desempenha determinadas funções, cuja análise permite caracterizá-la como um sistema.

Essas funções consistem na institucionalização da redução de complexidade, de estabilização das


expectativas: o conjunto das relações sociais organiza-se em diversos níveis autónomos, de acordo com as
respetivas funções, progressivamente diferenciadas, como por exemplo as relações sexuais, as familiares, as
ligadas à escola e à política. Todos esses níveis (subsistemas) se interrelacionam, gerando grande
complexidade nas relações sociais.

Finalmente, a sociedade seria a última função social concebível, da qual resultaria que a enorme complexidade
da interrelação dos agentes sociais – proveniente de as condutas humanas se processarem em diversos níveis
– fosse reduzida, assegurando-se assim a própria interação social.

Nas sociedades modernas, as formas de interajuda dos seus membros para a satisfação das respetivas
necessidades são substituídas pelo crédito financeiro, assegurado juridicamente, através do qual novas
espécies de combinações com riscos e vantagens mais elevados são possíveis.

A função de auxílio social desvincula-se da interajuda familiar ou da vizinhança, passando a existir um sistema
diferenciado para cumprir essa função. Com uma tal diferenciação de funções, tornam-se mais complexas as
relações sociais e mais difícil a previsão pelos agentes dos comportamentos dos outros agentes. É então
necessário reduzir esta complexidade, institucionalizando condutas que podem ser geralmente aceites e
assegurando juridicamente a sua prática. Com isto garante-se então a interação social.

Assim, a partir de uma nova conceção de sociedade, chega-se a uma nova definição de Direito – o Direito não
é um “dever moral” ou um “imperativo político”, mas apenas a institucionalização de expectativas de ação.

Em face disto, toda a conduta desviada em relação à norma surge como uma frustração das expectativas de
comportamento asseguradas juridicamente. Como conduta associal, ela é uma consequência das decisões
básicas variáveis do sistema social.

» Esta conceção da função do Direito conduz à função simbólica da pena e do Direito Penal de JAKOBS
– funcionalismo radical. O ponto de vista de que o Direito penal visa proteger bens jurídicos é
substituído pela função de estabilização contrafática das expectativas geradas pela violação de uma
norma incriminadora. A função do Direito penal é manter padrões de ação que organizam as
expectativas sociais sobre o comportamento alheio, ou seja, o Direito penal não protege bens
jurídicos, mas sim a vigência da norma.

A aplicação da pena é vista como a oportunidade de controlar a interação social. Assim, o funcionalismo, a
versão de JAKOBS, destrói a legitimação do Direito penal num conceito material de crime, porque refere os
bens jurídicos aos fins definidos pelo sistema e porque atribui ao Direito penal uma função ideal ou simbólica
de controlo social.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Em resumo: a visão funcionalista não anula absolutamente a função crítica interna ao sistema do conceito
material de crime, pela referência de toda a legitimidade da proteção jurídico-penal aos fins sociais. E, na
medida em que a definição destes fins não é produto de uma arbitrária decisão normativa, mas surge apenas
como efeito objetivo da ação dos indivíduos, o funcionalismo como teoria não exclui a discussão sobre o objeto
da infração criminal, mas apenas reduz a fundamentação da validade a uma adequação das decisões
legislativas a uma ideia de funcionalidade sistémica, racionalizando através desse parâmetro a avaliação
crítica.

 O estado atual dos modelos de política criminal em conexão com os modelos de fundamentação do
Direito penal

O Direito penal, nos seus primórdios, tinha uma matriz liberal. Mais tarde, o Direito penal assume uma
vertente expansionista, em conformidade com um modelo liberal-garantista, em que as restrições públicas
da liberdade só podem ser justificadas pela própria necessidade de garantir a liberdade. Ou seja, a intervenção
pública punitiva só poderia ser justificada em função da proteção de direitos e interesses individuais. Esta
visão garantista pressupõe sumultaneamente que o interesse racional de cada pessoa é fundamentalmente
idêntico ao das outras e que uma comunidade é uma conjugação de vontades.

Há determinadas matérias que vêm por em causa esta dicotomia, e assumem um desvio ao modelo liberal-
garantista:

◊ Importância das vítimas no Direito penal – chama a atenção para o facto de um discurso garantístico
não dar, muitas vezes, importância ao sofrimento das vítimas. O protagonismo da vítima altera, em
última análise, as dimensões lesivas do bem jurídico, relativizando a importância do desvalor da ação
do agente, ou standartizando os momentos subjetivos do crime. Se o dano da vítima é o fulcro do
sistema incriminador-positivo, então não só a chamada imputação objetiva (enquanto atribuição de
um resultado ao comportamento do agente) se tende a bastar com a criação do risco do mesmo, como
também a imputação subjetiva (a qualificação jurídica da direção subjetiva da vontade perante o
facto) tenderá a equiparar dolo e negligência. Também a culpabilidade será dissociada de momentos
de capacidade concreta de ação e decisão.

◊ Segurança coletiva – levou a modelos como o Direito penal do inimigo (JAKOBS). Este tema relaciona
as matérias tradicionais do Direito penal das garantias com temas como a segurança interna (e
externa) e de defesa. Esta realidade altera a singela realidade da visão individualista contra a visão
supraindividualista.

◊ Sociedade de risco – um sociólogo chamado ULRICH BECK equacionou esta ideia, como expressão de
um conjunto de relações e de uma forma de organização da atividade social numa sociedade moderna,
como resultado de uma sociedade mais próxima de riscos. A segurança e a prevenção de riscos são
aqui um ponto central. Isto leva a que se criem incriminações sem ser necessária a demonstração de
um dano, dado que o que se pretende é precisamente a prevenção de riscos/danos; o que é necessário
é que haja uma conexão entre o comportamento e um perigo para um bem jurídico. A segurança,
como valor objetivo e por vezes simbólico, passa a ser condição fundamental da intervenção penal.
Os crimes de perigo abstrato (em que não há sequer perigo efetivo para os bens jurídicos) tornam-se
o paradigma das normas incriminadoras.

◊ Crimes contra animais – a Regente não considera que as normas incriminadoras dos crimes contra os
animais ou o abandono, a serem inconstitucionais, sejam uma “grande inconstitucionalidade”. Isto
porque dar conteúdo à dignidade da pessoa humana integra, como apanágio do desenvolvimento de

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

cada um de nós, vertentes de responsabilidade pelos outros: incluindo a natureza. Acha admissível,
sobretudo nos casos mais graves de desrespeito por outros seres vivos, sobretudo dos mais análogos
e dos que contribuiram para a vida humana, haja incriminação. Considera, todavia, que por vezes o
legislador é excessivamente punitivo. Não pode haver punição superior a crimes com animais em
relação a crimes com os seres humanos.

Tem-se assistido, consequentemente, nos últimos anos, à criação de novas incriminações ou agravações, que
obedecem a três linhas de rumo:

1- A conexão do Direito penal com novos direitos ou com novas perspetivas sobre direitos – gerou
novos crimes na área da violência doméstica e dos maus tratos, das intervenções e tratamentos
médico-cirúrgicos que violem regras da Medicina, da propagação de doenças contagiosas, da
discriminação racial e sexual, do abuso sexual de menores, da pornografia com menores e da utilização
informática para praticar burlas ou devassas da vida privada. Por outro lado, conduziu também à
agravação de vários crimes contra vítimas especialmente indefesas (crianças, pessoas idosas e
deficientes e mulheres grávidas). Por fim, determinou a criação de novas incriminações tendentes à
promoção da essencial dignidade da pessoa humana pelo Estado contemporâneo, em áreas como o
ambiente ou o tráfico de pessoas.

2- A utilização do Direito penal para aperfeiçoar a organização política e económica do Estado –


assenta no reconhecimento de que a deterioração da estrutura institucional ou económica do Estado
pode impedir uma participação democrática dos cidadãos, com igualdade de oportunidades,
tornando-se, por isso, indispensável impedir quaisquer formas de abuso de poder ou comportamentos
que afetem os recursos coletivos. O alargamento do âmbito da corrupção, a criminalização do tráfico
de ingluência e a criação de crimes de responsabilidade política, que chegam a englobar a violação de
regras orçamentais e o uso de dinheiro público em fins públicos diversos do projetado, enquadram-se
nesta segunda orientação. E o mesmo sucederá em relação à criminalidade económica e financeira
mais grave, ao tráfico de drogas e de armas, à pirataria e ao terrorismo, que podem destruir os
próprios fundamentos do Estado de direito.

3- Uma alteração do tipo de condutas que, segundo o Direito penal clássico, poderiam ser
consideradas criminosas, antecipando a tutela de certos bens jurídicos – levou à intervenção do
Direito penal na área de condutas que apenas põem em causa remotamente a segurança dos bens
jurídicos, antecipando a tutela penal. O incremento de crimes de perigo e de violação de dever, em
detrimento dos chamados crimes de dano, exprime esta orientação. A comercialização de produtos
alimentares e farmacêuticos e a circulação rodoviária são apenas alguns dos domínios em que o
legislador criou crimes de perigo. Contudo, a tipificação de crimes de perigo abstrato (nos quais se
presume de forma tendencialmente inilidível o perigo, a partir da descrição da conduta típica) só deve
ser admitida a título excecional, como sucederá, por exemplo, no caso de condução sob o efeito de
álcool ou da libertação de substâncias radioativas.

Tem de existir uma estrutura comportamental objetiva mínima, com alguma referência causal à lesão de bens
jurídicos, para que as pessoas possam direcionar o seu comportamento no sentido de evitar essa lesão. Só
assim a norma incriminadora poderá cumprir a sua função preventiva de determinação das condutas.

Por seu lado, os crimes de violação de dever não podem ser entendidos como meras desobediências,
carecendo de um conteúdo material, sob pena de inconstitucionalidade, por ausência de bem jurídico
protegido e violação do princípio da necessidade da pena.

20
Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Ora, é obrigatório perguntar se as novas incriminações e agravações são legítimas à luz do Estado de direito
democrático, ou se até podem contribuir para assegurar novas e relevantes funções a esse Estado.

Síntese da Evolução do Modelo Garantista:

Numa primeira síntese construtiva, poder-se-ão conceber as seguintes linhas condutoras da evolução do
modelo garantista:

a) Primado do princípio da igual consideração do interesse de cada pessoa como participante numa
comunidade de pessoas livres como parâmetro de fundamentação do Direito penal. Por exemplo, não
incriminação de manifestações de liberdade de consciência, de culto, de religião, da violação da
moralidade sexual.
b) Primado do princípio do reconhecimento do outro – legitimidade para incriminação de
comportamentos discriminatórios, de ódio racial, de género, de religião.
c) Primado da ideia de necessidade da pena como princípio de articulação de direitos, desvinculação da
necessidade da pena de fins de instrumentalização política.
d) Reconstrução do espaço pessoa-mundo, considerando no entanto a questão da libertação do Direito
penal do controlo total da vida – questão da incriminação do aborto e em geral da política penal
sexual.
e) Função construtiva do Direito penal – reintegração como reatamento do vínculo social.
f) Utilização das ciências do crime como critério de análise de relevância constitucional, numa procura
de controle e redução de um normativismo não apoiado nas solicitações da realidade social –
argumento criminológico.
g) Função preventiva de meios alternativos à pena, a partir de um critério não repressivo de
reafirmação do Direito.

 Conceito e função do bem jurídico

» A discussão sobre a necessidade de proteção do bem jurídico surge a propósito da incriminação de


condutas meramente contrárias à Moral, segundo as representações sociais dominantes.

A homossexualidade, por exemplo, não atinge qualquer bem indispensável à preservação da sociedade, na
medida em que seja praticada em privado e por adultos. As condições fundamentais de organização da
sociedade não são afetadas por aqueles comportamentos se eles não interferirem no desenvolvimento e na
maturação sexual de crianças ou adolescentes, isto é, se não prejudicarem a liberdade sexual e o acesso às
condições de livre escolha da expressão da sexualidade (tal como aconteceria igualmente com idênticos
comportamentos praticados por heterossexuais relativamente a menores).

Como sustenta ROXIN, a proteção de normas éticas só se justificaria, no Estado de Direito, para evitar efeitos
danosos para a sociedade. No entanto, esta argumentação de cariz liberal é necessariamente reformulada
com a perspetiva de que a CRP protege a livre orientação sexual (art. 13º). Assim, a questão da ausência de
bem jurídico não tende a ser hoje o topos fundamental da ilegitimidade de certas incriminações oriundas da
moralidade sexual tradicional, mas sim a perspetiva de novos direitos protegidos constitucionalmente.

» Há outras condutas que, embora possam afetar bens jurídicos (necessários à preservação da
sociedade), não carecem de cominação penal, uma vez que tais bens são protegidos eficazmente (ou
mais eficazmente) de outra forma. Será o caso, por exemplo, do consumo de droga, incriminado pelo
DL 15/93 de 22 de janeiro, e descriminalizado posteriormente, se for entendido que esse consumo

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

gera perigo para bens alheios, mas se se concluir que existem outros meios mais eficazes para proteger
a sociedade, como veio a ser espelhado na Lei 30/2001 de 29 de novembro.

» A exigência de relevo ético prévio bastante das condutas impedirá também que condutas tidas como
eticamente neutras e normalmente aceites de acordo com hábitos sociais, como fumar, sejam
incriminadas, se não existir conexão com um prejuízo mais amplo com repercussões difíceis de
controlar de ordem pública, como acontecerá nos casos em que se fuma num avião.

» E ainda, a necessidade de amplo consenso deverá obstar a que o Direito penal se torne arma política
da maioria e ignore as perspetivas de parte da população, incriminando por exemplo, sem exceções
de qualquer espécie, o aborto ou, inversamente, liberalizando-o em absoluto (art. 140º CP)

O conceito de bem jurídico tem vários significados para a delimitação do conceito material de crime e para a
função e legitimação do Direito penal. São os seguintes:

 A ideia de bem jurídico tem expressado uma relação do objeto de proteção da norma com um
interesse individual ou com um interesse coletivo assumido pelo Estado de Direito como condição
essencial da incriminação.
 A ideia de bem jurídico sugere uma ideia de necessidade intersubjetiva que carece de ser protegida.
 A ideia de bem jurídico convoca a ideia de lesão e de dano objetivo ou objetivamente representado
e não uma função meramente simbólica de um interesse subjetivo protegido pelas normas.
 A ideia de bem jurídico apela a uma lógica de eficácia direta na proteção e prevenção e não se basta
com efeito reflexo e antecipado das normas incriminadoras relativamente a potenciais lesões.
 A ideia de bem jurídico questiona normas incriminadoras que apenas preveem violações de deveres
de comportamento sem uma real conexão empírica com eventuais danos.

Bem jurídico corresponde, assim, a um interesse essencial inter-individual, protegido com alguma
substancialidade, que corresponde a uma necessidade e que é suporte de valores essenciais.

Bem jurídico é apresentado, não como produto de uma norma, mas sim como algo que tem valor na vida
social, correspondendo a interesses e necessidades, e que é relevante pré-juridicamente, ou seja, apenas é
reconhecido pelo Direito.

Tem que ter um peso que se impõe ao Direito, mas não quer dizer que não sejam produtos da interação social
e que sejam realidades meramente interativas.

 Legitimação das normas incriminadoras pelos princípios do Direito penal

1- Princípio da Legalidade

A racionalidade das normas que constituem o Direito penal e o modo da sua aplicação estão de tal forma
condicionados por este princípio, que se poderá dizer que ele é a proposição jurídica fundamental do sistema
penal, impregnadora do conteúdo de outros princípios.

Segundo o princípio da legalidade, os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções penais sem lei anterior
que as preveja (nulla poena sine lege) e a não aplicar as sanções previstas sem que se realizem determinados
pressupostos, igualmente descritos na lei: a perpetração de uma determinada conduta considerada crime ou,

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

no caso das medidas de segurança, reveladora de perigosidade criminal – trata-se da máxima nullum crimen
sine lege (arts. 29º/1 e 3 CRP e 1º CP).

Assim, este princípio não é somente uma exigência de utilização de padrões legais para a qualificação de um
facto como merecedor de sanção e para a aplicação de sanção, mas também a exigência de vinculação total
do ato de aplicação de uma sanção, no caso concreto, a uma decisão já tomada previamente, com um certo
grau de concretização, pelo legislador.

Consequentemente, o controlo das decisões do poder não se limita ao tribunal, mas começa pelo próprio
legislador, como se poderá inferir da exigência de leis prévias que prevejam os crimes e as correspondentes
sanções. O legislador vincula-se a não criar leis penais retroativas (arts. 2º CP e 29º/4 CRP).

Contudo, este processo de aplicação da lei penal, meramente subsuntivo, não é viável em absoluto, dado que
entre o caso da lei e o real não poderá haver mais do que uma semelhança ou analogia. O condicionamento
da decisão limita-se a exigir que se considere possível essa analogia e que se demonstre uma certa similitude
entre o caso da lei e o real.

Assim, aquilo que na verdade acontece não é uma “automatização” do ato de decidir, mas a vinculação do ato
de aplicação da pena a uma demonstração ou justificação argumentativa de que a lei “quereria” aplicar-se ao
caso concreto.

A proibição da analogia, corolário do princípio da legalidade (arts. 1º/3 CP e 29º/1 e 3 CRP) deve assim ser
entendida num sentido mais profundo do que a proibição da utilização de raciocínios analógicos contra reo na
operação de decidir: deve ser entendida como a proibição de que se faça uma “assimilação” do caso concreto
pelo da lei, sem que determinados argumentos sejam possíveis.

O princípio da legalidade pode criar, deste modo, duas situações extremas:

(a) A da fixação rígida às palavras da lei, como sucedia no crime de burla em situações em que a vítima
era levada à prestação de um serviço e não necessariamente à entrega de dinheiro, no antigo CP;
(b) A da libertação do condicionamento das palavras e a conclusão de que cabem, na expressão vaga e
simbólica da leii, situações em que não existe verdadeira igualdade material, como aconteceria se se
entendesse que é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou preversidade do homicídio (art.
132º/2 CP) a motivação por ódio familiar, analogamente à motivação por ódio racioal,
religioso,político, sem compreensão de qual o tipo de ilícito.

A conclusão relevante para a legitimação das normas incriminadoras consiste em que a função de controlo
pressupõe sobretudo que a aplicação da lei resulte de um processo lógico “identificável”, dirigido à
descoberta do sentido da lei, isto é, à delimitação dos valores positivos e negativos que explicam a
incriminação de um determinado comportamento. Trata-se, de acordo com o art. 29º/1 CRP, da punição de
ações ou omissões com identidade reconhecível pelo intérprete e em geral pelos destinatários da norma
incriminadora.

2- Princípio da Culpa

Este princípio não é objeto de uma formulação legal tão nítida como o da legalidade. Ao nível da CRP, ele é
deduzido da essencial dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (arts. 1º e 27º). No CP, só é
expressamente indicado como fator de determinação da medida da pena (arts. 40º/2, 71º e 72º), mas a
doutrina tem-no utilizado como fundamento de outras consequências mais profundas.

Atualmente, o princípio da culpa costuma assumir três significados:

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

a) Como fundamento da pena – contudo, o princípio da culpa não é unanimemente aceite como
fundamento da pena. O argumento principal que se opõe resulta de o princípio da culpa pressupor
uma ideia de responsabilidade penal alheia aos fins do Estado de Direito democrático e social (ROXIN).
b) Como fator da determinação da medida da pena;
c) Como princípio da responsabilidade subjetiva.

Relevante e essencial para a legitimação das normas incriminadoras é que os comportamentos incriminados
tenham uma configuração que os torne aptos a que no processo de atribuição de responsabilidade sejam
cumpridas estas funções do princípio da culpa.

3- Princípio da Necessidade da Pena

Este princípio traduziu historicamente a ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais deve ser
limitada, ou mesmo excecional, só se justificando pela proteção de direitos fundamentais. Tratou-se, então,
de uma reação contra a utilização discricionária das penas pelo poder político, ao serviço de quaisquer fins.

Então, este princípio diz-nos que a incriminação será legítima quando:

1. Esteja em causa um bem jurídico-penal;


2. Esse bem careça de tutela penal;
3. A conduta tenha dignidade punitiva – coloca-se numa dupla dimensão:

Negativa – a incriminação não pode ser, ela própria, um modo de coartar um direito fundamental, através de
uma previsão que atinja os limites imanentes desse direito.

Positiva – a incriminação tem de se dirigir à proteção de bens jurídicos essenciais, respeitantes às condições
de liberdade da pessoa e de funcionamento do Estado de direito democrático, que legitimam o exercício do
poder punitivo do Estado. Tem de haver uma ressonância ética penal negativa.

A dignidade punitiva requer sempre uma demonstração empírica, a partir do funcionamento da sociedade,
da necessidade da incriminação para resolver um problema de desproteção de direitos ou bens essenciais.

4. A medida seja adequada e proporcional ao fim que visa obter e à proteção dos bens jurídicos que a
justificam – é necessária, pelo menos uma probabilidade de elevada de que se produza o efeito de
proteção do bem jurídico e não deve haver efeitos colaterais que neutralizem ou contrariem as
vantagens da incriminação.
5. Não haja outra alternativa para assegurar esse bem – numa vertente de necessidade, implica que não
haja outros meios disponíveis menos gravosos do que as penas públicas para assegurar a proteção do
bem jurídico. A medida alternativa até pode ser menos eficaz, mas restringir menos os direitos
fundamentais. Tem sempre de haver uma ponderação.

4- Princípio da Igualdade Penal

A igualdade, consagrada no art. 13º CRP, orienta as soluções do sistema penal, apesar de não ser um princípio
específico do Direito penal. Para além de proibir a discriminação entre pessoas, é a igualdade que subjaz à
ideia de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e da pena e é a igualdade que sustenta a medição da
pena pela culpa.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Da proporcionalidade não se deverá extrair, porém, qualquer exigência automática de parificação das penas,
onde os princípios da culpa ou da necessidade da pena recomendarem que certo facto seja punido menos
gravemente apesar de a sua danosidade ser idêntica à de outros mais severamente punidos.

A igualdade só se expressa na igualdade de direitos ou na igualdade de deveres, se esta última for necessária
à satisfação de direitos alheios. Ora, não é concebível um direito a que outrem seja mais gravemente punido
como expressão do princípio da igualdade.

Idêntica necessidade de punir e idêntica culpa justificarão idênticas penas – ou, pelo menos, o direito a que
não se seja mais gravemente punido.

A igualdade justifica ainda a seleção de novos bens jurídico-penais, que se podem designar como bens de
igualdade. A proteção em geral dos mais fracos na estrutura social – menores, idosos, deficientes, mulheres
– conduz à agravação de crimes clássicos devido à qualidade da vítima e à criação de novos crimes em função
da essencialidade da não discriminação do Estado de Direito democrático e social.

Deve concluir-se que este princípio não prevalece sobre o princípio da necessidade da pena.

5- Princípio da Humanidade

Expressão da ideia de responsabilidade social pela delinquência e disposição de rejeitar e recuperar a pessoa
do delinquente. Este princípio justificaria a rejeição de sanções atentatórias do respeito pela pessoa humana
como a pena de morte, a prisão perpétua, a tortura e as penas cruéis e degradantes – arts. 24º/2, 25º/2 e
30º/1, 4 e 5 CRP.

6- Princípio da Socialidade

Explica que a lógica impiedosa e vertical do sistema punitivo ceda a soluções que a flexibilizam por causa da
noção de uma supremacia social de certos interesses individuais, aos quais outros interesses se deveriam
sacrificar.

Justificará então, por exemplo, causas de exclusão da ilicitude, como o direito de necessidade (art. 34º CP) e
uma orientação geral sobre as penas que inclua a solidariedade social com a vítima e com o criminoso,
reinserindo-o socialmente.

➢ Fazendo um “apanhado geral”, conclui-se que a incriminação tem de ser indispensável para promover
a defesa de bens jurídicos essenciais (princípio da necessidade), a conduta incriminada deve possuir
ressonância ética negativa (princípio da culpa) e a criminalização, sempre resultante de lei formal,
deve reunir o consenso da comunidade (princípio da legalidade).

Argumento criminológico

Duas perspetivas podem ser consideradas na utilização do argumento criminológico:

a) A confirmação empírica de conceções valorativas sobre a necessidade da pena e a adequação da


política criminal do Estado (argumento criminológico dependente ou enfraquecido)
b) A interferência efetiva das ciências empíricas do crime e do comportamento humano na compreensão
e configuração jurídica do crime (argumento criminológico em sentido restrito).

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Focando neste último, e considerando o labelling approach ou, em geral, as abordagens da Criminologia que
se inserem na Escola de Chicago, em que o ponto de partida é a definição interacionista da realidade, o
argumento criminológico poderá levar a concluir que certas configurações legais das condutas criminosas
podem ser criminógenas ou introduzirem distorções no sistema abstrato e geral de valores adequado a uma
integração social de certas pessoas ou grupos de pessoas.

Concluindo, a argumentação criminológica inserida no discurso jurídico consistiria na procura dos modos de
realização empírica ilustradores dos valores penais, na procura da explicação criminológica da realidade que
o Direito utiliza como referência e na adequação entre o plano lógico-valorativo e os processos de geração ou
definição social do crime.

Ou seja, o argumento criminológico procura introduzir esta componente empírica na própria análise da
decisão do legislador. Não é só um comando de validade material que está em causa, é também atender aos
estudos empíricos sobre os efeitos da pena, sobre os efeitos da criminalização em abstrato, sobre todo o
significado social que tem esta intervenção.

 Fundamentos da punição no sistema penal português: interpretação do art. 40º CP

A norma mais exemplar da organização do sistema é o art. 40º CP que estabelece as finalidades da punição.
Este preceito foi introduzido na reforma penal de 1995 como norma orientadora quanto às penas, numa fase
em que se pretendeu ultrapassar as rotinas judiciais retributivas.

Tal preceito prosseguia o desígnio de estabelecer que o fundamento da punição seria a prevenção geral na
dimensão de proteção de bens jurídicos (coadjuvada pela prevenção especial) e que a culpa-retribuição
apenas conteria uma função restritiva, como resulta do art. 40º/2.

Da leitura do art. 40º sobressai uma interpretação que parece apontar para que nunca haverá lugar ao
afastamento da pena perante a persistência das exigências mínimas de prevenção geral, mesmo que as
exigências de culpa apontassem para um limite inferior, fixando abaixo dos mínimos de prevenção a
culpabilidade do agente.

Assim, o se da pena dependerá sempre e exclusivamente da prevenção geral positiva e a culpabilidade do


agente apenas controlará a medida da pena, como expressão das conceções éticas dominantes sobre a
censurabilidade dos comportamentos.

A Prof. FERNANDA PALMA defende, contudo, que esta leitura tem dificuldades sistemáticas:

→ O próprio CP estabelece que a culpa do agente é critério fundamental da medida da pena, que justifica
a sua variação entre o máximo e o mínimo (art. 70º), o que coloca logo a objeção de o critério da
medida judicial da pena poder ser de natureza diversa do fundamento legal da punição.
→ Poderá ainda questionar-se como que é que a culpabilidade do agente, que é um elemento do
conceito de crime e um pressuposto essencial de toda a atribuição de responsabilidade (nullum crimen
sine culpa), bem patente na teoria geral do crime e expressa nos arts. 17º, 3º/, 35º e 37º CP, pode ser
reduzida a um critério restritivo, acessório, de uma responsabilidade baseada na prevenção geral
positiva coadjuvada pela prevenção especial.

Ora, a tese do caráter restritivo de culpabilidade no fundamento da punição tem debilidades. O princípio da
culpa é, com efeito, expressão de uma consideração plena da igualdade dignidade da pessoa bem como da
igual consideração dos interesses de todos e da justa oportunidade de cada pessoa de orientar o seu
comportamento pelas normas penais, deduzidas dos arts. 1º, 13º e 27º CRP.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Esta dimensão nada tem a ver com a ideia de retribuição, mas sim com a ideia de uma relação punitiva justa
a partir de comportamentos que só são verdadeiramente dignos de tutela penal porque os seus autores
tiveram as devidas condições para se reconhecerem como responsáveis, tendo assim cabimento um juízo de
censura pessoal pela prática de tais comportamentos.

A exigibilidade ética de certos comportamentos não é algo posterior às decisões legislativas de incriminação,
mas a própria consideração da atribuilidade de uma censura penal é condição de legitimidade constitucional
da incriminação de certos comportamentos, ou da sua negação, num plano abstrato-normativo.

Os reflexos desta análise do art. 40º implicam que sejam contraponíveis diferentes modelos de relação entre
o nº 1 e o nº 2 deste artigo, ou de relação entre a prevenção geral positiva, a prevenção especial e a função
da culpabilidade do agente na fundamentação judicial da punição:

 No primeiro modelo, a culpabilidade não tem papel determinante na decisão sobre o se da pena,
apenas opera a posteriori na determinação da medida judicial concreta e apenas para evitar que se
ultrapasse um certo ponto-limite ainda justificável preventivamente ou, quando muito, uma certa
moldura entre um máximo e um mínimo baseada em critérios de culpabilidade média, para evitar
excessos preventivos. Neste modelo, a culpabilidade é um princípio restritivo, funcionando no
quadro da prevenção.
 No segundo modelo, a culpabilidade opera desde logo, à partida, condicionando os critérios de
necessidade, não a partir de uma ideia retributiva, mas a partir da consideração do merecimento da
conduta do agente. A culpabilidade não restringe a necessidade, mas apenas a reconfigura,
estabelecendo um limite inultrapassável, não podendo a pena concreta nem a decisão de punir
superar esse limite. Isto significa que a moldura penal é fixada em função desse limite. A prevenção
geral e a especial podem determinar uma pena, mas nunca superior a esse limite. E as razões de
prevenção geral positiva ou de prevenção especial não poderão justificar a punição se a culpabilidade
for excessivamente baixa ou exígua. Neste modelo, a prevenção é um princípio restritivo,
funcionando no quadro dos limites máximo e mínimo da culpabilidade que o comportamento justifica.
No entanto, a culpa não é alheia à prevenção.

Matérias atuais:

Na Irlanda, retirou-se da Constituição e do Código Penal a criminalização da blasfémia. Numa vertente positiva,
a norma incriminadora colidiria com direitos, como o direito à liberdade de pensamento e de expressão.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Teoria da Lei Penal

❖ PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – art. 1º CP

Não é só uma ideia orientadora, mas é também uma norma positiva e um princípio geral (na opinião de
Castanheira Neves).

Este princípio, na sua origem histórica, foi-se concebendo ao longo de séculos, procurando-se controlar ou
conter o poder punitivo detido pelo poder político, até se chegar a uma fase em que se pôde considerar como
decisivo que houvesse uma redução das fontes de Direito penal (nomeadamente, do costume e da
jurisprudência), para se atribuir à lei o papel de fonte por excelência do Direito penal (art. 29º/1 CRP). Há,
contudo, determinados casos em que o costume internacional pode ser fonte de Direito penal, justificados
pela realidade histórica do séc. XX, em que a perversão do poder político gerou uma legalidade permissiva da
perpetração de factos lesivos de direitos humanos fundamentais: crimes lesivos de valores universais, como
o genocídio, apesar de não serem legalmente reconhecidos por certos Estados, conduziram à
responsabilidade penal dos seus autores nos tribunais internacionais de Nuremberga e Tóquio – art. 29º/2
CRP.

Contudo, o recurso a estes costumes terá de ser feito com recurso aos limites da lei interna: valerão, em
primeiro lugar, os limites gerais das penas estabelecidas no CP (arts. 40º e 46º); e as penas concretas serão
determinadas necessariamente por raciocínios de analogia com crimes identicamente graves previstos na lei,
tendo-se sempre presente a exigência da proporcionalidade entre o crime e a pena.

O princípio geral é então o de que só a lei pode ser fonte de Direito penal, estabelecendo-se uma reserva
relativa de competência da AR no art. 165º/1 c) CRP.

Este percurso, com o objetivo de retirar da esfera do poder político o poder de sentenciar criminalmente,
culminou na conclusão de que a aplicação das penas tem de estar subordinada à lei.

Não basta, contudo, existir uma lei anterior a prever a pena, para se poder punir o agente; é também
necessário que a própria lei anterior articule uma certa pena com um certo comportamento que é punido –
art. 29º/1 e 3 CRP. Assim, a formulação correta do princípio da legalidade é o que se refere tanto ao crime
como à pena, articuladamente.

O objetivo último deste princípio é o de prevenir a arbitrariedade do poder de sentenciar criminalmente. Mas
este princípio tem de ser ainda mais especificamente justificado: o que está em causa, também, é uma
necessidade de assegurar a separação de poderes e a vontade da maioria democrática.

A interpretação das leis assume aqui um papel relevante. Não obstante a interpretação não poder ser
totalmente livre, os juizes não podem ser apenas as bocas que pronunciam as palavras da lei, estes têm de ter
uma fundamentação objetiva baseada na lei.

O que se procura, então, com o princípio da legalidade, é a subordinação da sentença criminal à lei, enquanto
a lei é emanada dos representantes da vontade democrática.

Este princípio não abrange apenas as penas, mas também, e como resulta da CRP, as medidas de segurança
(mesmo a inimputáveis), em que o fundamento da sanção é impedir a perigosidade ou o seu desenvolvimento.
Temos aqui que o fundamento do princípio da legalidade não se basta com a culpa, nem com uma conceção
retributiva da pena.

Para ser analisado em detalhe, este princípio pode ser estudado através de uma sistematização,
consubstanciada nas suas consequências/corolários:

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

 Scripta: Exigência de uma restrição das fontes do Direito penal – exclusão de outras fontes que não
sejam a lei em sentido formal, sendo que existe uma reserva relativa de lei neste âmbito da AR - art.
165º/1 c) CRP. Esta exclusão das restantes fontes acontece quanto às normas penais positivas
(incriminadoras), mas não quanto às normas penais negativas (desincriminadoras), uma vez que
nestas já não vigora a exigência estrita de subordinação ao princípio da legalidade, porque não são
normas que venham restringir a liberdade (ainda que o Tribunal Constitucional tenha vindo a admitir
a necessidade de reserva de lei para as normas desincriminadoras também).
 Stricta: O princípio da legalidade visa também impedir que os tribunais possam eles criar a lei e
subverter a separação de poderes, ou seja, proíbe a analogia.
 Praevia: Proibição da retroatividade das normas penais (arts. 29º/1 e 3 CRP e 1º/3 CP).
 Certa: Comando sobretudo dirigido ao legislador – ao formular as leis incriminadoras, deve ser
exaustivo na determinação dos comportamentos tidos como crimes e na determinação das penas –
princípio da tipicidade (art. 29º/1 e 3 CRP).

Corolários:

☼ Reserva de Lei

Existe uma reserva de lei relativa da AR quanto às normas incriminadoras (normais penais positivas) – art.
165º/1 c) CRP. Quanto às normas desincriminadoras (normas penais negativas), o TC tem vindo a admitir que
para estas também seja necessária uma reserva de lei da AR; mesmo que não seja por via do art. 165º/1 c),
será por via da alínea b) do mesmo artigo, uma vez que o princípio da legalidade se integra no elenco dos
direitos, liberdades e garantias fundamentais.

O objetivo de tal imposição é assegurar a separação de poderes.

Coloca-se a questão de saber se as circunstâncias que agravam a responsabilidade (ainda normas penais
positivas) ou as circunstâncias eximentes ou atenuantes (normas penais negativas) se incluirão na previsão
constitucional do art. 165º/1 c) CRP:

➢ As circunstâncias agravantes definem o concreto facto criminoso, sendo abrangidas pela previsão
constitucional. Isto sucede nitidamente no caso das circunstâncias modificativas (ex: art. 132º CP) –
que podem alterar a moldura penal, no sentido de permitir que o crime deixe de ser simples e passe
a ser qualificado. Mas também no caso das circunstâncias agravantes simples (que não alteram a
medida legal, mas somente a medida concreta da culpa), o facto criminoso, de ilicitude ou culpa
agravadas, é sempre diverso daquele em que a ilicitude ou a culpa são menos graves. Assim, as razões
justificativas da reserva de lei favorecem a aplicação da alínea c) do art. 165º/1 a todas as
circunstâncias agravantes.

Contudo, verifica-se que as circunstâncias agravantes gerais (art. 71º CP), que funcionam para agravar a pena,
mas dentro da moldura legal, estão previstas de forma não taxativa. Tal atipicidade parece ser incompatível
com a reserva de lei, por postular a criação jurisprudencial de novas circunstâncias. Porém, a previsão daquele
preceito apenas pode significar a valoração de um aspeto do ilícito ou da culpa de um determinado crime que
revele maior intensidade.

Assim, poderá um Tribunal, ou o próprio Governo, sem autorização legislativa, vir erigir um determinado
critério de agravação? A resposta é não: ou terá de haver uma relação da circunstância com a capacidade de
motivação pela norma, ou se a agravante quiser apenas impedir o juiz de fazer considerações no caso
concreto, aí já haverá violação da reserva de lei.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

➢ Atenuantes e eximentes:

Uma lógica simplificadora diria que as circunstâncias eximentes – excluidoras da responsabilidade – e as


atenuantes da responsabilidade criminal não estão submetidas à reserva de lei por não afetarem as
expectativas de segurança e a liberdade individual dos destinatários das normas penais. Deste modo, por
considerarem permitidos factos que de outra forma não o seriam, ou desculpáveis os seus agentes, aquelas
circunstâncias não exigiriam um controlo direto pelos representantes da vontade democrática.

Contra este argumento poder-se-á dizer que as circunstâncias eximentes de responsabilidade podem alterar
a delimitação dos direitos dos cidadãos entre si. Assim, no que respeita às causas de justificação do facto ou
de exclusão da ilicitude, a liberdade criada pela permissão de certas condutas diminuirá a liberdade de todos
os que se pretenderem opor às mesmas – ex: se passar a ser permitido lesar, ao abrigo do direito de
necessidade (art. 34º CP), interesses jurídicos de valor igual aos que se salvaguardam, o titular dos interesses
lesados deixará de poder reagir em legítima defesa à agressão, dado que a agressão passará a ser considerada
lícita.

Na opinião da Prof. FERNANDA PALMA, as eximentes não estão, em regra, e quando decorram de um princípio
geral da OJ, sujeitas a reserva de lei, uma vez que estas não são restritivas da liberdade e de direitos; pelo
contrário. Contudo, admite exceções, dado que, sendo as eximentes uma autorização excecional de exclusão
da responsabilidade, permitindo certas condutas que em geral são proibidas, abrem uma exceção, de modo
que a sua previsão pode afetar as expectativas gerais e diminuir a liberdade e a segurança dos cidadãos, e,
nestes casos, poderão estar sujeitas a reserva de lei.

Quanto às atenuantes a Prof. FERNANDA PALMA afirma que, ainda que não considere que as atenuantes
estejam sujeitas à reserva de lei (pois não são suscetíveis de promover uma restrição indireta dos direitos das
vítimas de crimes), pode, contudo, haver colisão entre a determinação de um determinado fator como
atenuante e a CRP, nomeadamente com o princípio da culpa. Assim, as atenuantes não podem ter uma total
liberdade para a sua definição, mas apenas quando sejam um desenvolvimento do princípio da culpa.

É verdade que o art. 72º/2 CP estabelece uma cláusula de atipicidade quanto às circunstâncias atenuantes,
mas temos de ter em conta que o julgador não pode criar circunstâncias atenuantes que ponham em causa os
princípios latentes do sistema (Estado de Direito democrático, princípio da culpa, entre outros).

➢ Normas penais em branco:

A reserva de lei penal origina uma especial conformação da técnica legislativa e da interpretação, de modo a
permitir que as normas penais se apliquem estritamente de acordo com a sua definição legislativa – princípio
da determinação das normas penais incriminadoras.

Segundo este princípio, todos os pressupostos da incriminação e da responsabilidade têm de estar descritos
na lei, não sendo admitidas as leis penais em branco. Este conteúdo das normas penais implica que estas sejam
descrições de figuras ou tipos, isto é, determinações do conteúdo de certas imagens sociais relativamente
concretas de comportamentos humanos, que prefigurem com exatidão o âmbito do proibido e a respetiva
consequência (sanção).

O mesmo princípio justifica que nenhum comportamento humano possa ser considerado criminoso se não
corresponder a um tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito legal. A tipicidade é exatamente
essa exigência de adequação do facto a um tipo legal de crime.

Contudo, a violação dos princípios da tipicidade e da determinação não se dá logo que o utilizador utilize
conceitos menos precisos ou que o intérprete exceda um sentido puramente lógico-formal das palavras. Tal

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

violação dá-se quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal de crime
deixa de existir. Ou seja, a violação da reserva de lei começará onde a linguagem normativa permitir a total
manipulação do conceito para fins incontroláveis e onde for impossível uma perceção da descrição legal pelos
seus destinatários coincidente com os resultados de uma interpretação teleológica.

Uma decorrência da reserva de lei é a proibição de normas penais em branco – normas remissivas, que
transferem a definição do conteúdo da sua previsão ou da sua estatuição para uma fonte de Direito de caráter
hierarquicamente inferior ao da lei da AR, como acontecerá nos casos de leis penais que remetam para
regulamentos (ou leis do Governo sem autorização legislativa).

Atente-se, todavia, que estas normas só violarão a reserva de lei quando o núcleo do comportamento proibido
pela norma dependa totalmente da norma para a qual se remete, não sendo previsível para os destinatários
sem essa norma o que deles se espera.

Nestes casos, não só há uma violação da reserva de lei, como há uma violação do princípio da culpa, dado
que não orienta suficientemente os destinatários das normas quanto às condutas efetivamente proibidas – o
agente precisa de conhecer a proibição legal para aceder à consciência da ilicitude da sua conduta, sendo que
essa consciência constitui o primeiro pilar do juízo da culpa.

Isto não se confunde com os casos em que a remissão é puramente para um critério técnico, não estando o
objeto da norma remissiva (o interesse fundamental protegido) dependente do conteúdo concreto deste
critério o que se pretende é uma regulação mais técnica. Exemplos destes casos:

(a) Acórdão 427/95 do TC – é um caso em que há uma norma incriminadora que prevê a proibição de
inclusão de aditivos num produto alimentar (que desvirtuem a qualidade do alimento) e que remete
para uma portaria que fixa as substâncias que, apesar de serem aditivos, não são proibidos. O TC
entendeu que não havia aqui violação da reserva de lei, uma vez que a proibição estava contida na
primeira norma, enquanto proibição de aditivos, e a segunda meramente excluía certas substâncias
do âmbito da proibição; ou seja, tinha uma delimitação negativa e não extensiva. Respeitou-se assim
uma reserva de certeza e de previsbilidade na norma incriminadora: esta dava informação suficiente
sobre o que era o comportamento proibido; a Portaria apenas vinha acrescentar informações técnicas
sobre o que não seriam aditivos proibidos.
(b) Acórdão 115/2008 – questionou-se a constitucionalidade do art. 277º CP, que remete para normas
regulamentares ou técnicas, ao configurar o comportamento típico de violação de regras de
construção de que resulte perigo para a vida, integridade física ou propriedade de terceiros. Nesse
caso, também o legislador pretendeu assegurar um efeito de regulamentação, consistente em
relacionar o perigo produzido com a violação de leges artis da construção, na medida em que estas
correspondem às boas práticas de controlo de riscos. A proibição contida na norma remissiva refere-
se ao não respeito por estes critérios.

Em suma, podemos ter normas remissivas que não violam a reserva de lei (e consequentemente o princípio
da legalidade), mas apenas quando existe na regra incriminadora um conteúdo do ilícito suficientemente
explícito, que apenas remete para regras técnicas que apenas orientam o Tribunal na definição do direito no
caso.

Relativamente à inconstitucionalidade das normas penais em branco:

MFP – em matéria de penas, de incriminações ou de medidas de segurança, as normas penais em branco são
inconstitucionais.

FIGUEIREDO DIAS – as normas penais em branco só são inconstitucionais em relação às penas.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

☼ Interpretação da Lei

1. Proibição da analogia (art. 1º/3 CP):

O art. 1º/3 CP proíbe expressamente a analogia quanto às normas de que resulta o facto como crime, a
definição de um estado de perigosidade e a determinação da pena ou medida de segurança correspondentes.

O fundamento desta proibição reside na exclusividade de competência da AR (ou do Governo com


autorização legislativa) na formulação de normas incriminadoras. Se os tribunais pudessem utilizar a analogia,
formulariam normas incriminadoras que deixariam de ser objeto de controlo democrático, podendo ser
utilizadas para a perseguição criminal de determinadas pessoas. Por outro lado, o caráter fragmentário do
Direito penal impede que comportamentos análogos aos expressamente previstos, na perspetiva da lesão do
bem jurídico violado, tenham o mesmo merecimento penal.

 Interpretação analógica vs interpretação extensiva

A proibição da analogia não deve, porém, ser confundida com a proibição de raciocínios analógicos na
aplicação da lei penal. A delimitação entre a analogia proibida e outras técnicas de interpretação tem sido
formulada a propósito das fronteiras entre interpretação extensiva e analogia.

a) O que as distingue?

Interpretação extensiva – é uma forma de interpretação onde ainda há uma fundamentação no pensamento
do legislador. Assim, quando o legislador tenha apenas exprimido imperfeitamente a intenção de regular o
caso, haverá interpretação extensiva. Nestes casos, o texto legal não acompanha plenamente o pensamento
do legislador, sendo este alcançável através de outros elementos da interpretação, em conjugação com o
elemento literal, sendo o resultado da interpretação ampliado na interpretação extensiva ou restringido na
interpretação restritiva.

Por exemplo, quando o legislador se refere ao “veneno” como meio de perpetração do homicídio (art. 132º/2
i) CP) pretende abranger não só as substâncias designadas como tal, mas também aquelas que, em concreto,
produzam os efeitos tóxicos próprios do veneno – tal como o excesso de açúcar para os diabéticos.

Interpretação analógica – segundo o pensamento tradicional, o que está em causa é comparar um conjunto
de situações previstas no texto legal com situações que não estão previstas nem no texto legal nem no
pensamento do legislador. Estas segundas situações denominam-se casos omissos/lacunas. Ou seja, existe
um défice de regulamentação de situações similares. Há, contudo, que ter em atenção que:

(a) Há situações em que é compreensível que o legislador não quis efetuar nenhum tipo de
regulamentação – aí não se poderá dizer que existe uma lacuna.
(b) Existem situações em que, por razões de igualdade, justiça e natureza do problema, justifica-se a
aplicação a um caso omisso de um regime previsto na lei para outras situações.

Todavia, é uma questão controvertida, hoje em dia, o que se pode considerar que seja analogia.

A distinção tradicional entre estes dois tipos de interpretação assenta numa perspetiva da interpretação
jurídica como subsunção, segundo a qual seriam separáveis os momentos de pura investigação do sentido e
âmbito da lei e da sua aplicação aos casos concretos. Este modelo, contudo, é criticável, pois pressupõe que a
interpretação jurídica nunca é constitutiva ou criativa e que a própria analogia é subtraída ao pensamento
inspirador do caso legal, como se a integração de lacunas não se socorresse afinal de um fundamento jurídico
derivado da própria lei que abrange os casos semelhantes.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Assim, torna-se necessária a interpretação jurídica da proibição legal da analogia com todos os instrumentos
do pensamento jurídico que permitam compreender a sua ratio e a sua possibilidade. Deste modo, para
interpretarmos a lei, temos de desenvolver um conjunto de raciocínios analógicos que nos permitam
perceber se aquele comportamento em concreto se pode integrar no comportamento que o legislador
pretendeu proibir.

Quando se descobre que a razão de ser da proibição da analogia se prende com a segurança jurídica e com o
controlo democrático da aplicação da Lei penal, consubstanciando-se num comando dirigido ao intérprete de
não se substituir ao legislador, chega-se à conclusão de que a distinção entre interpretação extensiva e
analogia não permite traçar rigorosamente as fronteiras da interpretação que não ofende a segurança
jurídica.

É por isto que FERNANDA PALMA sustenta que, em vez de se proibir a interpretação extensiva ou analógica,
dever-se-ia antes, ao interpretar o art. 1º/3 CP, tentar perceber as situações em que tais interpretações não
serão permitidas, à luz dos princípios constitucionais do Direito penal. Isto porque, na sua opinião, há situações
de interpretação extensiva que não são proibidas, porque não são contra legem nem praeter legem e que,
por isso, não causam insegurança.

Assim, por exemplo:

» Não é de excluir que a destruição de ninhos de cegonhas ou outras aves selvagens se inclua num plano
puramente semântico (lógico e objetivo) no tipo legal que incrimina, na lei da caça, a destruição de
ninhos e ovos sem referência expressa às espécies de aves, isto é, sem qualquer restrição literal da
proteção legal conferida às espécies cinegéticas. Todavia, essa possibilidade semântica que seria uma
interpretação extensiva ou até apenas uma interpretação declarativa lata, não será juridicamente
incontestável, na medida em que a lei da caça é, em princípio, um instrumento de proteção de
espécies cinegéticas e não desenvolve diretamente uma política ambientalista. Assim, não
corresponderá a qualquer expectativa média que o proprietário de uma herdade que mande abater
árvores em que existem ninhos de cegonhas esteja a violar a lei da caça, cometendo um crime de caça
(como no caso em que uma senhora foi julgada por crime de caça por ter mandado abater na sua
propriedade uma árvore que tinha um ninho de cegonhas). Neste caso, FERNANDA PALMA defende
que, ainda que o caso concreto se pudesse reconduzir ao comportamento descrito e proibido pela lei,
deveria haver uma redução da incriminação ou do sentido possível das palavras, pela essência do
ilícito.
» Diferentemente, se a lei previsse a conduta de “captura”, “comercialização”, etc., de um animal
selvagem sem prever expressamente o “abate”, por manifesto lapso, a interpretação que concluísse
pela abrangência do abate não seria proibida, pois manter-se-ia nos limites juridicamente
controláveis da concretização do direito penal ou do direito de mera ordenação social, também
subordinado ao princípio da legalidade.

Relativamente à analogia, a Regente defende a inclusão possível do caso concreto no caso legal, de acordo
com um sentido possível das palavras.

→ Analogia das eximentes a casos não previstos – existe alguma tolerância quanto ao seu alargamento,
todavia, há um conjunto de casos que devem ser impedidos: aqueles casos em que o alargamento da
eximente vai ter um efeito de restrição da liberdade (ex: o alargamento da permissão excecional de
interceções telefónicas e de comunicações pela internet no âmbito do processo penal para um
conjunto de crimes em que esta possibilidade não seja prevista).

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Conclusão:

1. A proibição da analogia não permite concluir que a interpretação extensiva seja proibida ou permitida.
O que a prática jurídica permite concluir é que não pode haver interpretação sem raciocínios
analógicos, sendo que haverá situações em que ainda se poderá falar de interpretação extensiva, mas
estar-se-á a fazer uma criação do Direito entre várias soluções possíveis, não se lesando por isso a
separação de poderes e a vontade democrática.
2. Papel do elemento literal (sentido possível das palavras) na delimitação da interpretação proibida –
divergência entre FERNANDA PALMA e CASTANHEIRA NEVES:

- CASTANHEIRA NEVES defende que o texto legal é o produto da interpretação; não é o ponto de partida. A
ideia de interpretação como a determinação do sentido do Direito no caso concreto impede que se faça uma
distinção tradicional entre interpretação e aplicação (uma vez que esta não é desempenhada pelo legislador).
Para este autor, o objeto da interpretação deixa de ser o texto, para se tornar os critérios jurídicos,
apreensíveis nos textos legais, da decisão dos casos concretos. O caso concreto é que suscita a interpretação
e o produto da interpretação é a formulação de uma norma para o caso concreto (texto legal). FERNANDA
PALMA critica este modelo, sustentando que a supressão, na interpretação, de um momento determinante
de compreensão do significado do texto normativo enfraquece o processo lógico de fundamentação da
decisão jurídica, não protegendo as garantias dos destinatários das normas.

A interpretação permitida será não só aquela que caiba no sentido logicamente possível das palavras da lei,
mas também a que revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir e seja compatível com outros valores
do sistema e com a unidade do Direito definida pelas instâncias que a devem assegurar.

- FERNANDA PALMA dá mais importância ao texto legal que CASTANHEIRA NEVES (que considera que o
elemento central da interpretação será uma espécie de essência jurídica, que é uma ideia que resulta do
trabalho cooperante de todas estas funções, através da qual se vai produzir o texto legal). A Prof. defende que
de facto temos de recorrer a uma ideia jurídica, mas não desvaloriza a importância do texto no Direito penal,
uma vez que é este que define os limites da comunicação e é onde se plasma a compreensão de qualquer
destinatário da norma – o texto tem assim uma função de garantia. Terá de se atender ao sentido possível
das palavras, no contexto da comunicação estabelecida pelo legislador com os destinatários das normas,
como elas são comummente apreendidas (seguindo a ideia de HABERMAS). Sendo importante a essência
jurídica do proibído, a Prof. só a encontra como um critério de delimitação do próprio sentido possível das
palavras, ou seja, o sentido possível do texto delimita-se também pela adequação do texto à essência do
proibido, de acordo com as valorações do sistema que a norma diretamente exprime ou pretende exprimir.

É possível que o sentido normativo em que a norma revela a expressão concretizada do sistema seja contrário
às normas ou princípios constitucionais. Nesse caso, estaremos apenas perante uma interpretação proibida
com fundamento na CRP e não perante a proibição da analogia do art. 1º CP.

b) Redução teleológica – a proibição da analogia incluirá redução teleológica incriminadora?

A redução teleológica exclui do âmbito da lei casos que a sua letra abrangeria, por tais casos não deverem ser
abrangidos pelos fins essenciais que a lei prossegue, embora ainda pudessem ser referidos ao pensamento do
legislador. A redução teleológica será incriminadora quando a exclusão de casos se referir a normas que
delimitam negativamente a tipicidade.

Se no art. 142º/1 CP, relativo à exclusão da punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, se se


interpretasse a restrição da incriminação nos casos de aborto terapêutico (art. 142º/1 b)) excluindo do

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

conceito de grave e duradoura lesão para a saúde psíquica uma situação de grave depressão, por exemplo,
estar-se-ia a ampliar o âmbito da incriminação prevista no art. 140º.

Se a redução teleológica não for incriminadora, não será proibida. Porém, se da sua aplicação se levar ao
alargamento da responsabilidade, por exemplo, já será proibida. A vinculação ao texto jurídico, como fator
predeterminante de interpretação, conduzirá a uma rejeição da redução teleológica incriminadora, pois
também corresponde ao sentido possível das palavras a sua utilização no sentido comunicacional mais amplo,
isto é, englobando todas as possibilidades de entendimento.

c) Não proibição de analogia e de redução teleológica das normas permissivas

Quanto às normas permissivas, não é proibida necessariamente a analogia, na medida em que tais normas
não são descrições típicas das condutas permitidas, mas um mero afloramento dos princípios ou critérios
gerais de solução de conflitos de interesses ou direitos. Nelas, o texto jurídico não é predeterminante como
nas normas incriminadoras.

O recurso à analogia, quando justificado pela necessidade de concretizações das legalmente previstas, a partir
dos princípios reguladores dos conflitos de interesses ou direitos, é permitido, mesmo que se ultrapasse o
sentido possível das palavras. Todavia, é fundamentalmente a analogia iuris que é admissível, pois a norma
permissiva, ao particularizar uma intenção normativa mais vasta, concretiza critérios ou condições de
permissividade não abrangentes de outras condutas que merecem ser permitidas segundo o mesmo princípio
geral.

Todavia, a analogia iuris, que envolve o apelo aos princípios fundamentadores da justificação, não será
legítima nos casos em que a norma permissiva é de direito excecional e não de direito geral (CAVALEIRO DE
FERREIRA). Assim, por exemplo, as autorizações legais contidas no CPC destinadas a assegurar a obtenção da
prova com vista à satisfação do princípio da verdade material não são suscetíveis de alargamento a situações
análogas, na medida em que são intervenções excecionais na liberdade dos indivíduos.

Relativamente à redução teleológica de normas permissivas, podemos dizer que também existe um efeito
incriminador mediato derivado da redução teleológica de uma norma permissiva. Mas esse efeito não está
necessariamente subordinado às garantias que justificam a proibição da analogia de normas incriminadoras.

Considere-se, por exemplo, uma redução teleológica do art. 32º CP que retire do seu âmbito “as defesas
necessárias elevadamente desproporcionadas à gravidade insignificante da agressão” com fundamento no
princípio geral de que a legítima defesa implica concretizações em que a defesa do Direito é menos valiosa do
que a preservação da dignidade da pessoa do agressor. Nesse caso, o efeito incriminador não consiste num
alargamento da norma incriminadora, mas na limitação do conteúdo da norma permissiva, cuja prevalência
sobre a norma incriminadora deixa de existir no caso concreto. O alargamento das possibilidades de
incriminação, na hipótese proposta, baseia-se, contudo, na ponderação de valores subjacente à norma
permissiva e no conteúdo do direito de defesa que o Direito penal não pode autonomamente prever, mas que
resulta de ponderações de valores do sistema. Somente a consideração das causas de justificação
reconhecidas no Direito penal como direitos impediria raciocínios deste tipo.

No entanto, as causas de justificação positivadas não conferem necessariamente, a partir da sua configuração
penal excludente da punibilidade, direitos de intervenção. Não se poderá, por exemplo, falar materialmente
de um direito ao aborto por indicação eugénica, mas apenas na exclusão da sua punibilidade.

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☼ APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO

1. Proibição da Retroatividade in Pejus

O critério para definirmos a retroatividade no Direito penal está estabelecido no art. 3º CP – o momento da
prática do facto. Há retroatividade quando a Lei nova procura regular um facto que ocorreu antes dessa entrar
em vigor. Nas situações de omissão, o momento da prática do facto é o momento em que o agente devia ter
agido.

Há situações mais complexas:

a) Crime permanente – situações em que certas ações ou omissões não ocorreram num momento
instantâneo, mas pelo contrário houve uma perduração no tempo da ação ou da omissão (ex: casos
de rapto). Nestes crimes, se a meio da duração da ação houver uma alteração da Lei penal mais grave,
aplicar-se-á, uma vez que a prática do ato ainda não terminou e, por isso, a prática do facto ainda não
se consumou. Ou seja, a lei nova que vier agravar o crime permanente (o rapto, neste caso), vem
abarcar todo o ato, porque o ato ainda está em consumação quando a lei nova entra em vigor, sendo
essa mesma lei a regular todos esses factos (mesmo os anteriores, a não ser que sejam
autonomizáveis).

b) Situações em que o crime se consome instantaneamente (ex: furto), mas os efeitos do crime
perduram no tempo. Nestes casos, se a agravação da Lei penal se der quando o crime já se consumou,
mas os efeitos desse crime perduram, a lei mais grave não regulará esse crime, uma vez que este já
se consumou, ainda que os efeitos do mesmo tenham perdurado no tempo.

c) Crime continuado (art. 79º) – todas as condutas são consideradas um único crime continuado. O art.
79º estabelece que é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que
integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior.

O crime continuado é uma figura muito próxima do crime permanente. Corresponde à sucessão de atos
criminosos, de natureza essencialmente semelhante (ex: furtos), em que há uma circunstância exterior que
favorece a repetição, de modo que a esta circunstância leva à unificação dos vários crimes num só, exigindo
a lei que haja uma atenuação da responsabilidade como sendo uma mera acumulação de crimes. A existência
da figura do crime continuado apenas se justifica por esta circunstância atenuante da responsabilidade.

O agente é assim punido pela pena correspondente ao facto mais grave por ele praticado (ex: um agente
praticou dois crimes de furto simples e um de furto qualificado: vai ser punido com a pena de furto
qualificado).

Imaginemos que diversas leis vigoram ao longo da continuação, havendo uma mais grave ou uma mais leve:

1. Há uma sucessão de furtos e a última lei que rege os furtos é mais favorável (há uma atenuação da
pena). Neste caso, sendo a lei mais favorável, não podemos subverter as regras da aplicação da lei
mais favorável ao agente (art. 29º/4 CRP). Se a última lei que vem reger o facto praticado é mais
favorável, então é essa que se aplica.
2. Há uma sucessão de furtos simples e qualificados e a última lei vem agravar a pena dos furtos simples
e qualificados: no caso de o último facto da continuação criminosa ser um furto qualificado: o último
facto está abrangido pela lei mais grave que agrava os furtos qualificados. À imagem do crime
permanente, a lei aplicável seria a última vigente em relação ao furto qualificado, ainda que seja
agravante em relação às outras leis. Pode questionar-se é se se pode desfazer a continuação: não,

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

porque tenderá a ser mais favorável para o agente ser punido apenas por uma lei, ainda que mais
gravosa, do que ser punido pela soma de todas as penas relativas aos restantes crimes (ainda que
essas penas sejam individualmente mais favoráveis); mas atenção, pode haver uma alteração nas leis
de tal modo que leve a que punir o agente apenas pela lei mais grave do que pela soma de todas as
penas dos restantes crimes seja muito mais gravoso para o agente, caso em que aí se poderá desfazer
o crime continuado.

O princípio geral da não retroatividade das leis assume no Direito penal a natureza de uma proibição
constitucional de retroatividade das normas penais que criem ou agravem a responsabilidade penal.

Esta proibição abrange tanto as penas como as medidas de segurança:

(1) Quanto às penas e às normas incriminadoras esta proibição não suscita problemas – o fundamento
da proibição da retroatividade é aqui os princípios da culpa e da segurança jurídica: a possibilidade
de uma conduta ser retroativamente incriminada contradiria uma responsabilidade penal
fundamentada na livre determinação do agente pela norma jurídica – a culpa jurídica – e destruiria a
garantia das expectativas dos cidadãos quanto ao que é proibido – segurança jurídica.

(2) Quanto às medidas de segurança restritivas da liberdade – no passado, entendia-se que a


perigosidade do agente, entendida como sintoma, era simultaneamente o fundamento e pressuposto
da medida de segurança, de modo que não existiria qualquer retroatividade desde que a lei que
criasse ou modificasse uma certa medida de segurança fosse contemporânea de um estado de
perigosidade já anterior e duradouro. Enquanto existisse perigosidade no presente, embora já
manifestada no passado, não se poderia conceber uma verdadeira retroatividade da lei que agravasse
a medida. Esta perspetiva era justificada pela convicção de que a proibição da retroatividade se
baseava no princípio da culpa.

Por este motivo, alguma doutrina (FIGUEIREDO DIAS e MARIA JOÃO ANTUNES) pronuncia-se no sentido de
que a proibição de retroatividade nas medidas de segurança seria excetuada no momento da formulação pelo
Tribunal do juízo de perigosidade, aplicando-se a lei vigente no momento da formulação do juízo de
perigosidade, dado que o momento do preenchimento dos pressupostos para a aplicação da medida de
segurança refere-se ao estado de perigosidade, que é definido pelo Tribunal (no momento da sentença). A lei
intermédia que vem redefinir os pressupostos do estado de perigosidade aplicar-se-á, pois apesar de poder
ser posterior ao facto, é anterior à averiguação do estado de perigosidade, que apenas acontece em tribunal,
no momento da sentença criminal.

FERNANDA PALMA afirma que esta posição é uma redução teleológica do art. 2º/1 CP, contra o arguido, uma
vez que a chamada tese diferenciadora excluiria, na prática, da proibição da retroatividade os factos
reveladores da perigosidade que justificam a medida de segurança, com o argumento de que os referidos
pressupostos são essenciais para escolher a medida adequada à perigosidade do agente no momento em que
é condenado. No entanto, quebrar-se-ia a conexão dos indícios de perigosidade, com o pressuposto que é a
prática de um facto típico e ilícito, admitindo-se desse modo uma medida de segurança para uma perigosidade
desligada do facto típico e ilícito.

Com efeito, a retroatividade das medidas de segurança é hoje proibida pelos arts. 29º/1 e 3 CRP e 2º CP. O
fundamento da proibição da retroatividade não é essencialmente a culpa, mas sim a segurança dos
destinatários do Direito própria de um Estado de Direito democrático. Quer a alteração agravante de uma
medida de segurança quer a sua criação afetam a segurança, na medida em que permitam uma intervenção
sem controlo do poder punitivo na liberdade dos cidadãos.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

A Prof. FERNANDA PALMA, interpreta os arts. 1º/2 e 2º/1 CP e o art. 29º/1 e 3 CRP de forma literal – se, depois
de uma pessoa inimputável ter praticado um crime, surgir uma nova lei depois desse acontecimento que
venha alargar os prazos das medidas de segurança, que venha flexibilizar os critérios de aplicação das medidas
de segurança, essas alterações não poderão vir-se a aplicar a posteriori a factos anteriores a essa alteração.

O TEDH tem vindo a pronunciar-se no sentido de que mesmo as medidas de segurança estão sujeitas ao
princípio da legalidade.

 Acórdão (perguntar Bernardo) – faz um resumo da jurisprudência do TEDH sobre o princípio da


legalidade e, mais especificamente, sobre a proibição da retroatividade. Suscita o problema de saber
se a proibição da retroatividade abrange a própria jurisprudência. Neste caso, sob a vigência da
mesma lei, que estabelecia que haveria um desconto na pena de prisão em função do trabalho na
prisão, os tribunais espanhóis entenderam que, em caso de cúmulo jurídico (vários crimes), em que
as penas são definidas conjuntamente (como no art. 77º CP), a pena máxima seria cerca de 30 anos
para as situações de cúmulo jurídico; o desconto, quando havia cúmulo jurídico, fazia-se na pena
conjunta para todos os crimes.

Quando a recorrente começa a trabalhar, tem em vista o desconto na pena nesses termos. Acontece que
entretanto há uma alteração da jurisprudência, na vigência da mesma lei, no sentido de retirar eficácia a
este desconto quando houvesse múltiplos crimes. Assim, o pedido de desconto invocado pela recorrente
é negado nos termos pelos quais ela o invoca.

A recorrente vem assim invocar a proibição da retroatividade. O TEDH veio considerar que a recorrente
tinha razão e condenar o Tribunal Espanhol.

Ora, o TEDH foi sempre muito influenciado pela case law e, num sistema onde a jurisprudência é fonte de
Direito, esta resolução é justificada. Porém, num sistema como o português, onde a jurisprudência não é
fonte de Direito, uma decisão como esta do TEDH substancia uma forma de irreversibilidade das decisões.

(Note-se que a desvalorização do texto que resulta da perspetiva de CASTANHEIRA NEVES tende a implicar
que a proibição de retroatividade abranja as próprias mudanças de orientação na jurisprudência incriminadora
e punitiva, pois como este diz “a decisão concreta em que essa mudança se verifique significa decerto a
imposição a um comportamento ou a um caso situados no passado de uma solução jurídica que então não
estava definida e não se reconhecia”. FERNANDA PALMA sustenta que uma tal conclusão seria excessiva, pois
levaria a que toda a jurisprudência errada se consolidasse).

A REGENTE defende que o caminho que o TEDH seguiu poderia ter sido trilhado de outra forma. Houve uma
redução teleológica da lei agravante, que retirou o efeito útil aos destinatários. Essa jurisprudência vai para lá
do sentido útil da lei. Há aqui um problema de expectativas, de segurança: a recorrente começa a trabalhar,
com a expectativa de vir a beneficiar de um certo desconto à luz da jurisprudência do momento, e depois de
ter executado esse trabalho, apercebe-se de que, devido a uma alteração da jurisprudência, já não virá a
recebê-lo.

 Outro caso que está a criar uma grande discussão é o caso de Alcochete, que tem levantado o
problema de saber se este consubstancia ou não um crime de terrorismo (ver Lei de Combate ao
Terrorismo), como o MP parece admitir. Não há, ao nível da doutrina internacional, uma definição
consensual de terrorismo; ter-se-ia também de distinguir o terrorismo internacional do terrorismo
nacional. Nessa perspetiva, a Lei, no art. 2º e 4º, ao definir as organizações terroristas e os atos de
terrorismo, vem admitir como atos de terrorismo, tanto comportamentos que são contra o Estado de
Direito, como comportamentos que se destinam a intimidar certas pessoas ou tipos de pessoas. É
neste último sentido que se pronuncia o MP.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

A REGENTE rejeita esta interpretação do caso: efetivamente há um objetivo de intimidar certo grupo de
pessoas e, assim, o elemento literal (sentido possível das palavras) está verificado; contudo, parece faltar
o elemento teleológico – o que pode estar em causa é que estes atos graves, que talvez merecessem um
tratamento específico pelo legislador, não parecem ter como finalidade última uma repercussão na
própria sociedade ou nas instituições ou na ordem do Estado, ou seja, não parece que o seu objetivo tenha
sido uma alteração ou subversão do Estado de Direito democrático. A Prof. admite assim que o MP esteja
a fazer uma interpretação praeter legem, o que é compreensível uma vez que a lei não regula
especificamente este tipo de comportamentos.

O princípio da proibição da retroatividade não tem exceções, apesar de tal parecer acontecer no art. 29º/2
CRP. Este art. é praticamente a reprodução de um art. da CEDH que fala nos princípios das nações civilizadas.
Na opinião de FERNANDA PALMA, esta norma não é uma exceção ao princípio da proibição da retroatividade,
mas apenas uma exceção à reserva de lei: apesar de a fonte não ser a lei do Estado, o costume internacional
pode ser fonte do Direito penal internacional. A ideia é a de que não podia haver, no momento em que foram
praticados os factos, lei interna que os incriminassem mas que, ainda assim, não podem deixar de ser
considerados fatos criminosos. Ainda que os agentes pudessem ter a expectativa, quando praticaram o facto,
de não vir a ser incriminados, essas expectativas não são válidas.

Já o art. 292º CRP parece constitucionalizar uma exceção ao princípio da retroatividade. É a norma que se
refere à constitucionalização das normas de 1975 que incriminaram os agentes da PIDE DGS. Neste caso, vai-
se pra além daquilo que a tradição internacional tinha previsto. Estas leis passaram a constar da CRP e não se
pode dizer que exista aqui alguma inconstitucionalidade.

 Proibição da Retroatividade vs Prescrição:

A prescrição é a extinção de um direito ou de um poder pelo decurso do tempo. No que diz respeito ao Direito
penal, este instituto está previsto nos arts. 118º e ss. CP e está relacionado com a extinção do poder do Estado
de exercer o poder punitivo.

Há dois institutos fundamentais da prescrição:

(a) Suspensão da prescrição (art. 120º) – é o deixar de contar o prazo por um período de tempo por força
dos factos presentes no art. 120º.
(b) Interrupção da prescrição (art. 121º) – o prazo não só se deixa de contar, como quando termina a
vicissitude processual, há uma renovação do prazo (volta ao início), ou seja, é reafirmada a
necessidade do procedimento criminal. De acordo com o nº 3 deste artigo, a prescrição do
procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de
suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de
disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição
corresponde ao dobro desse prazo (sem prejuízo do disposto no art. 118º/5).

Há, assim, uma situação em que não se pode aplicar a Lei nova mais grave por proibição da retroatividade –
quando há extinção da responsabilidade criminal (ou seja, quando há prescrição), dado que não se pode fazer
ressuscitar a responsabilidade do agente sem a prática de um ato novo.

Nos casos em que não há ainda extinção da responsabilidade criminal do agente, mas esta está prestes a
extinguir-se, também aqui, por razões de Estado de Direito, se deve aplicar Lei antiga mais favorável
(REGENTE). O Estado de Direito não pode deixar em aberto possibilidades de manipulação, da perseguição
criminal de qualquer pessoa. Mas a Prof. não admite que haja um direito à prescrição.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

É uma consequência do princípio da legalidade, que se fundamenta na liberdade dos destinatários, que não
podem ser surpreendidas por uma incriminação retroativa, do princípio da separação de poderes e da
segurança democrática. Isto porque, se não houvesse esta proibição, o Estado poderia manipular as leis para,
nomeadamente, perseguir determinadas pessoas.

 Leis Processuais Penais e o Direito de Queixa:

Uma lei não é processual ou materialmente penal por estarem no CPP ou no CP.

Doutrina tradicional – às normas penais aplicam-se todas as regras penais que vimos e às normas processuais
aplica-se a lei em vigor no momento em que o ato processual foi praticado. Problema: há normas processuais
que na verdade são materialmente penais.

 Regime do art. 5º:

Do art. 5º/1 CPP resulta a aplicabilidade imediata da nova lei processual penal. O nº 2 do mesmo art. limita a
aplicabilidade imediata da lei nova aos processos iniciados anteriormente à sua vigência:

(a) Nos casos de agravamento sensível da situação processual do arguido;


(b) Nos casos de quebra de harmonia e unidade dos vários atos do processo.

Há, assim, limites à aplicabilidade imediata resultantes diretamente do princípio constitucional da proibição
da retroatividade e do próprio subprincípio contido no art. 5º/2.

O primeiro tipo de limites exclui a aplicabilidade imediata de todas as normas do Processo Penal que não se
possam caracterizar como puras normas processuais, mas sim como sendo de natureza substantiva penal
numa conexão fundamentadora da responsabilidade do arguido. A aplicabilidade imediata justifica-se apenas
relativamente a normas que regulem o modo de proceder dos tribunais na definição concreta do Direito
penal, e não já relativamente a normas que se refiram às condições de procedibilidade ou causas de extinção
do procedimento criminal, como acontece com as normas que regulam os prazos prescricionais, na medida
em que estas delimitem direta e exclusivamente a relação jurídica punitiva.

Assim, as normas que dilatem os prazos de procedimento prescricional, embora não afetem verdadeiramente
um direito subjetivo dos autores dos crimes a não serem perseguidos após o decurso de um certo lapso de
tempo, revelam uma alteração da necessidade de punir e uma intensificação da dignidade punitiva
comparativamente com a vigente no momento da prática do crime. A aplicação imediata do prazo
prescricional revelaria, deste modo, uma apreciação, à luz do presente, da necessidade de punição de um
crime praticado no passado. Uma tal solução enfraqueceria a limitação do Estado pelo Direito que criou num
determinado momento, não assegurando a autolimitação própria do Estado de Direito.

Os limites previstos no nº 2 do art. 5º referem-se a normas processuais que, embora não afetando a existência
da relação jurídica punitiva nem a modificando substancialmente, atingem a possibilidade de o
comportamento do arguido realizar os direitos que lhe são reconhecidos no processo penal, como por
exemplo o direito de defesa.

➢ Conversão de crime particular ou semipúblico em público

Também é de rejeitar a aplicação imediata da lei que transforma um crime particular ou semipúblico em
público, de modo que o facto criminoso cometido no passado contra o qual não foi deduzida queixa possa vir
a ser objeto de processo penal.

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Neste caso, não haverá igualmente um direito do autor do facto criminoso a não ser submetido a processo
penal, ou pelo menos um direito subjetivo construído como proteção de um bem em atenção às finalidades
da pessoa. No entanto, a aplicação imediata da lei, se não tiver sido deduzida queixa antes de ela ter entrado
em vigor, não garantiria suficientemente o princípio da objetividade e a vinculação do Estado ao seu Direito.
A solução deste tipo de casos deve ser, diferentemente, a aplicação da lei antiga (FERNANDA PALMA).

TAIPA DE CARVALHO – conclui no mesmo sentido, embora com referência exclusiva ao art. 29º/1 CRP.

ROXIN – contra a doutrina e jurisprudência dominantes, defende a proibição de retroatividade da lei posterior
que suprima uma exigência de queixa particular: “se a exigência de queixa é retroativamente eliminada e se
pune sem queixa, então só nesse momento é que é constituído um direito de punição do Estado”.

➢ Conversão de crime público para semipúblico ou particular

Aqui, o princípio do Estado de Direito não será critério decisivo da solução jurídica, se o referirmos apenas à
perspetiva do arguido, isto é, se dele pretendermos extrair exclusivamente garantias de que o Estado se
vincule ao seu Direito para não agravar, arbitrária e inesperadamente, a posição do arguido.

Também a lógica da proteção da segurança jurídica não é decisiva se apenas for lida na perspetiva do arguido.

Todavia, é ainda o princípio do Estado de Direito (como regra de objetividade, de previsibilidade e segurança
jurídica geral) que impõe, neste caso, que as expectativas do titular do direito de queixa não sejam
defraudadas, dando-se-lhe oportunidade processual de exercer o seu direito após a entrada em vigor da lei
nova.

➢ Direito de queixa

Esta solução não parte de qualquer aplicação a este tipo de casos do art. 5º/1 CPP, isto é, do critério da
aplicação imediata da lei processual penal, pois o direito de queixa tem uma valia extraprocessual e até
extrapenal. A função do direito de queixa não justifica a referência das normas que o regulam à ratio legis do
nº 1 do art. 5º - a adaptação do processo a soluções novas mais eficientes, instrumental da realização da
justiça.

O direito de queixa é influenciado pelo princípio vitimológico, segundo o qual compete ao Direito assegurar
a reparação dos danos do crime sofrido pela vítima em toda a sua dimensão jurídica, nomeadamente através
da utilização do processo penal. Este princípio pressupõe que a proteção penal de um bem de que alguém é
titular, embora relevante para toda a sociedade, deve ser deixado à disponibilidade do ofendido em situações
em que o valor da disponibilidade pelo seu titular seja prevalecente.

A anterior argumentação demonstra que a lei da qual resultem alterações do direito de queixa, embora regule
uma condição de procedibilidade, não é apenas uma lei penal no sentido do Direito penal como conjunto de
normas direta ou indiretamente incriminadoras e dos seus meios de aplicação processual.

A natureza do direito de queixa também não permite referir integralmente as normas que o regulam ao
princípio da retroatividade in melius (arts. 29º/4 CRP e 2º/4 CP). Já TAIPA DE CARVALHO resolve estes casos
apenas com base no art. 29º/4 CRP.

2. Retroatividade in Melius – aplicação da lei penal mais favorável (arts. 2º/2 e 4 CP e 29º/4 CRP)

A ideia é a de que é proibida a retroatividade, mas é obrigatória a retroatividade favor do arguido. Ou seja,
será a lei de conteúdo mais favorável que será aplicável ao caso. O fundamento é o princípio da necessidade
da pena: no momento em que a pessoa é condenada e sentenciada, se a lei é alterada, deixou de ser

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necessário cumprir-se pena ou cumprir uma pena tão gravosa; e o princípio da igualdade: se a lei penal
posterior suprimir uma norma incriminadora, será injusto que agentes de factos idênticos recebam
tratamento radicalmente diferente (punição e não punição), conforme tais atos sejam perpetrados antes ou
depois da revogação da norma, e também não será necessário na perspetiva da prevenção geral um
tratamento diferenciado.

O art. 2º CP distingue duas situações (ao contrário da CRP que prevê apenas uma solução):

a) Quando há uma despenalização, cessam imediatamente os efeitos penais da condenação e, mesmo


que já esteja a cumprir pena, se é descriminalizado o seu ato, cessam os efeitos – art. 2º/2.
b) Se houver uma sucessão de leis, aplicar-se-á a lei de conteúdo mais favorável. Se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a
parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior. O
art. 371º-A CPP permite ao condenado requerer a reabertura de audiência para se verificar qual é a lei
de conteúdo mais favorável. Para sabermos se existe uma verdadeira sucessão de leis, temos de atentar,
nomeadamente, ao bem jurídico que é tutelado pelas normas e a estrutura das mesmas.

Nos casos do art. 2º/4 2ª parte, o condenado poderá requerer a uma reabertura de audiência, nos termos do
art. 371º-A CPP:

a) Nas situações em que é preciso determinar qual é a lei mais favorável;


b) Para efeitos de aplicação ao condenado do regime mais favorável, reatualizando se necessário a
medida da pena, em termos de proporcionalidade com a nova medida da pena.

O art. 29º/4 CRP parece sugerir que a aplicação retroativa da lei penal mais favorável se poderia deter perante
o trânsito em julgado, na medida em que se refere a “leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.
Todavia:

(1) Uma eventual restrição pelo trânsito em julgado não se adequa ao fundamento do princípio da
retroatividade in melius. Uma restrição do alcance desse princípio não se justificaria se não por uma
lógica exterior de segurança e estabilidade das instituições que executam as penas.
(2) A referência a “arguido” não é sinónima de “caso julgado”, na medida em que após o “caso julgado”,
a qualidade de arguido persistirá se o processo for reativado.

 Delimitação da Sucessão de Leis no Tempo:

A retroatividade in melius pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo, isto é, que as normas penais
sucessivas possam fundamentar a decisão dos mesmos casos, embora de forma diversa.

Essa unidade do pressuposto normativo das leis sucessivas exige a previsão de uma factualidade típica
idêntica ou referida a condutas humanas idênticas, nas várias leis que se confrontam. Não haverá, assim,
verdadeira sucessão de leis se o comportamento que é objeto de juízo de ilicitude for parcialmente
reproduzido na lei posterior, sendo, todavia, concebível a manutenção da sua punição em concurso efetivo ou
até mesmo aparente com a do comportamento previsto na lei posterior.

Ou seja, a sucessão de leis depende de o comportamento anteriormente contemplado não implicar


necessariamente a verificação da conduta prevista na lei posterior, havendo, assim, pelo menos uma
revogação tácita.

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Deve notar-se que a identidade do facto típico não é constituída apenas naturalística ou socialmente,
dependendo igualmente da essencial intenção normativa das leis. A situação de sucessão de leis não se
verificaria se a lei posterior visasse a proteção de bens jurídicos diversos da anterior.

De qualquer forma, a diferente finalidade da lei ou da sua essencial intenção normativa não pode justificar,
artificialmente, a autonomia das factualidades típicas. Onde a conduta humana referente não seja socialmente
distinta, haverá violação do non bis in idem, pela utilização do concurso ideal: este concurso ideal de infrações
verifica-se sempre que a mesma conduta (pelo menos em sentido naturalístico) lesa vários bens jurídicos
(concurso heterogéneo) ou o mesmo bem diversas vezes (concurso homogéneo).

➢ Conversão de crime em contraordenação – aplicação do art. 2º/2 ou 2º/4 CP?

A delimitação da verdadeira sucessão de leis é um pressuposto essencial da resolução dos problemas de


substituição da punição de certos factos no âmbito penal pelo seu sancionamento através do Direito de Mera
Ordenação Social. O problema que se coloca é saber se nesses casos houve uma alteração de regime punitivo
(art. 2º/4), ou antes um fenómeno de despenalização (art. 2º/2).

Na segunda solução (art. 2º/2), a conversão dos crimes em contraordenações implicaria a extinção pura e
simples de qualquer responsabilidade jurídica, de modo que o desaparecimento da incriminação
corresponderia a uma extinção de toda e qualquer responsabilidade pelo facto passado. Esta solução
implicaria apenas a substituição de uma forma mais grave de responsabilidade por outra menos grave e a
correspondente substituição de uma pena por uma coima.

Ora, a solução do dilema apela a uma compreensão valorativa da substituição de regimes.

FERNANDA PALMA e FIGUEIREDO DIAS: Embora numa aparente e estrita lógica formal se pudesse concluir
que a diferença qualitativa do ilícito penal relativamente ao de mera ordenação social impediria uma
verdadeira sucessão de leis no tempo, pois os critérios valorativos de um ilícito de outra natureza suscitariam
um facto jurídico novo e diferente, tal construção desconheceria que o sentido do apelo à autonomia
qualitativa do ilícito é apenas evitar a plena utilização dos custos e vantagens dos critérios de
responsabilização penal e do respetivo processo e permitir a introdução de critérios de aferição da
responsabilidade justificados por objetivos sociais menos centrais e mais instrumentais.

É incorreto, deste modo, defender a extinção em absoluto da responsabilidade jurídica em tais situações,
quando não existir uma explícita vontade legislativa de extinção de toda a responsabilidade pelos factos
passados.

Por outro lado, nestas situações existe na realidade um comportamento humano referente essencialmente
idêntico, que assegura a unidade do facto e a continuidade normativa. Não há qualquer afetação da
previsibilidade pela punição do direito mais favorável: não há nenhum problema ao nível das expectativas dos
destinatários, uma vez que no momento da prática do crime eles sabiam que era crime e, por isso, à partida
não será prejudicial para eles a conversão do crime em mera contraordenação.

No art. 2º/4, haverá então uma continuidade no facto proibido – era crime, passa a ser contraordenação, mas
é o mesmo facto. As contraordenações podem atingir factos que não tenham dignidade punitiva, mas poderão
vir a impedir a prática de um crime. Neste sentido, as contraordenações auxiliam a perspetiva de uma política
criminal.

Por estes motivos, FERNANDA PALMA sustenta a aplicação do art. 2º/4 aos casos de conversão de crime em
contraordenação, nos casos em que efetivamente haja uma unidade essencial (continuidade) do facto
proibido, não vindo esse art., nestes casos, pôr em causa princípios constitucionais penais, como a proibição

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da retroatividade, como alguma doutrina entende (nomeadamente, TAIPA DE CARVALHO, que se apoia na
alteração qualitativa do ilícito).

Os Tribunais vieram entender que só seria possível aplicar-se o art. 2º/4 CP se existisse um regime transitório
que determinasse a retroatividade da lei contraordenacional (Ac. TR Évora), caso contrário, o agente é
despenalizado, uma vez que não pode ser punido nem pela lei antiga nem pela lei nova. FERNANDA PALMA
defende que, efetivamente, é melhor que haja uma norma transitória, mas que os argumentos apresentados
pelo Tribunal são contraditórios: por um lado, tem como pressuposto que a proibição da retroatividade não
se aplica no Direito de Mera Ordenação Social por imposição constitucional, mas simultaneamente sustenta a
sua argumentação a favor da aplicação do art. 2º/2 na subordinação do Direito de Mera Ordenação Social ao
princípio da legalidade. Ora, não se pode aceitar simultaneamente que o ilícito de mera ordenação social está
sujeito ao princípio da legalidade e admitir a subtração ao mesmo princípio de um qualquer regime transitório.

TAIPA DE CARVALHO – se perspetivarmos a distinção entre o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação
Social como uma mera diferença de gravidade, então é uma diferença apenas ao nível das consequências,
havendo aqui uma continuidade, e, por isso, uma verdadeira sucessão de leis no tempo, aplicando à conversão
de crime em mera contraordenação e aplicar o 2º/4 CP. Contudo, se considerarmos que efetivamente existe
uma diferença qualitativa entre estes dois ramos do Direito, então não existe uma verdadeira sucessão de leis
no tempo e por isso, à partida, haverá uma despenalização, tendo de se aplicar o art. 2º/2 CP. O Prof. diz que
nos casos de conversão de crime em contraordenação das duas uma:

a) Ou o legislador, quando converte o crime em contraordenação diz expressamente que os agentes


continuam a ser punidos pela contraordenação (estabelece um regime transitório);
b) Ou aplica-se a norma geral, e, deixando o facto de ser penalizado, fica o agente impune.

➢ Conversão de contraordenação em crime:

FERNANDA PALMA: terá de se aplicar o regime mais favorável ao arguido. Segunda questão: aplica-se ainda
assim o regime contraordenacional? Por uma questão de igualdade, sim.

TAIPA DE CARVALHO: Deveria haver uma norma geral que diria que nestas situações, as pessoas não são
punidas pelo crime, mas continuam a ser punidas pela contraordenação. Mas até existir essa norma, das duas
uma: ou o legislador, quando converte, diz expressamente que os agentes continuam a ser punidos pela
contraordenação, ou aplica-se a norma geral: deixou de ser penalizado, ficando o agente impune.

➢ Conversão de um crime de perigo abstrato em crime de perigo concreto e vice-versa

Os crimes de perigo são aqueles em que, da descrição do crime está apenas a possibilidade de uma lesão de
um bem jurídico.

- Crimes de perigo abstrato – dispensa-se a necessidade de prova de que efetivamente houve a possibilidade
de ocorrer uma lesão do bem jurídico. O perigo é o motivo da incriminação e não tem de haver uma ligação
entre o comportamento e a lesão de um bem jurídico.

- Crimes de perigo concreto – ex: exposição ao abandono. O comportamento proibido implica uma efetiva
probabilidade de lesão do bem jurídico, tendo de se provar que houve efetivamente a possibilidade de ocorrer
uma lesão do bem jurídico.

Os crimes de dano são aqueles em que da descrição de crime está a lesão efetiva de um bem jurídico.

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(i) Conversão do crime de perigo concreto em crime de perigo abstrato:

Ex: o crime do art. 291º é um crime de perigo concreto. Vamos supor que este crime passa a ser um crime de
perigo abstrato. Ora, não se pode aplicar a lei nova retroativamente, uma vez que anteriormente não se exigia
uma conexão de perigo (uma prova) e a lei nova exige. Assim, tem de aplicar a de conteúdo mais favorável,
que é a lei antiga.

(ii) Conversão do crime de perigo abstrato em crime de perigo concreto

Há duas soluções que se defendem, opostas:

1. Se o crime era de perigo abstrato e passou a ser de crime concreto (que é mais exigente, exigindo
prova), vindo a lei nova a acrescentar um novo elemento à lei antiga, preenchendo a conduta do
agente a previsão de ambas as normas, teremos de ver se o aditamento tem natureza especializadora
ou especificadora: se a lei nova é especializadora, vindo a adicionar um elemento novo à lei antiga,
então não há uma verdadeira sucessão de leis no tempo, e por isso há uma despenalização e por isso
aplica-se o art. 2º/2; quando a lei nova é especificadora, ou seja, o legislador vem como que
explicar/esclarecer o que pretendeu dizer na lei antiga, não havendo introdução de um novo
elemento, aplicando-se aí o art. 2º/4. Esta é a posição de TAIPA DE CARVALHO.
2. Se o facto praticado anteriormente já regista que alguém ficou em perigo (ou seja, aquele caso
concreto seria concretamente um crime de perigo concreto dentro de um crime de perigo abstrato –
ex: art. 292º, no caso de a condução em estado de embriaguez, que é um crime de perigo abstrato,
naquele caso concreto pôs efetivamente em causa um bem jurídico) e a nova lei é mais restritiva, mas
abrange o facto registado anteriormente, há uma continuidade normativa e punitiva. Apesar de a lei
nova ser mais gravosa, a descriminalização não vai ao ponto de excluir a incriminação do facto
registado como crime concreto e, por isso, aplica-se a lei de acordo com o estabelecido no art. 2º/4
(FERNANDA PALMA). Se a lei nova for mais gravosa, aplica-se a lei nova com os limites da lei antiga.

➢ Conversão de crimes públicos em semipúblicos:

Haverá nestes casos uma sucessão de leis para efeitos de aplicação do art. 2º/2 e 4 CP? A pergunta justifica-
se por se poder entender que uma não aplicação retroativa da lei penal posterior mais favorável aos factos
que foram cometidos antes da sua vigência, violaria aquelas normas.

Porém, a dimensão normativa dos preceitos que alteram o direito de queixa não é estritamente penal: a
normação do direito de queixa não é inequivocamente lei penal no sentido dos arts. 2º/4 CP e 29º/4 CRP.

Sendo justificada a retroatividade in melius pela igualdade na aplicação da pena e pela necessidade da mesma,
o âmbito do conceito de lei penal é aferido por essa ratio legis, de modo que as alterações do direito de queixa
não estão necessariamente contempladas. Isto é, a exigência de exercício do direito de queixa para o
desencadeamento do processo penal não significa diretamente a diminuição da necessidade de punir
relativamente à fase anterior, nem pretende necessariamente favorecer a posição do autor do crime, embora
esses efeitos possam ser reflexamente produzidos.

Com efeito, a despublicização de crimes pode ter um fim de mera proteção da vítima ou então revelar um
desinteresse do Estado pela iniciativa processual, devido a razões de política criminal. Nesses casos, a
fundamentação normativa do direito de queixa seria negada com uma aplicação retroativa da lei posterior
que levasse a um automático arquivamento dos processos e à total impossibilidade do exercício do mesmo
direito.

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Nesse sentido, nunca se poderia dizer que tais casos se submeteriam exclusivamente ao art. 29º/4 CRP: onde
não haja qualquer sentido desincriminador (relacionável com a necessidade de punir da despublicização), o
art. 29º/4 CRP tem difícil aplicação na sua plenitude lógica. Já nos casos em que a despublicização revele uma
menor intensidade do direito de punir, seria mais compreensível uma decisão segundo o art. 29º/4 CRP sem
que, no entanto, essa aplicação pudesse ser absolutamente limitativa dos direitos do ofendido.

MFP:

(a) Assim, tanto nos últimos casos como nos primeiros (em que o art. 19º/4 CRP não estaria em causa), a
solução jurídica mais harmoniosa será a da atribuição ao ofendido da oportunidade processual para
o exercício do direito de queixa. Nos casos de despublicização do crime para proteção da vítima (que
não se submetem plenamente à ratio dos arts. 29º/4 CRP e 2º/4 CP), a ultratividade da lei anterior
(crime público) levaria a uma desigualdade entre os arguidos pelos mesmos crimes antes e depois da
despublicização, se não se viesse a exigir o exercício do direito de queixa.

(b) Nos outros casos, em que se divisa um sentido relativamente descriminalizador (uma menor
necessidade de punir), a aplicação retroativa da lei que despubliciza implicaria uma desproteção dos
titulares do direito de queixa que o art. 29º/4 não pode em rigor produzir, impondo-se uma contenção
do seu alcance pelo princípio do Estado de Direito democrático (art. 2º CRP).

(c) Por estas razões, impõe-se uma única solução jurídica para estes casos: a atribuição da oportunidade
de exercício do direito de queixa. O seu fundamento não decorre direta e exclusivamente do art.
29º/4, mas sim dos princípios jurídicos que a esta subjazem – igualdade e necessidade da pena,
articuladamente com a proteção da confiança emanada do Estado de Direito democrático. Justifica-
se, simultaneamente, a aplicação imediata da lei nova e a proteção do exercício do direito de queixa.

 Leis Intermédias:

O princípio da aplicação da lei mais favorável vale ainda mesmo relativamente às leis intermédias, isto é, às
leis que entram em vigor depois da prática do facto, mas que não vigoram ao tempo da apreciação judicial
deste – ex: a punição vigente no momento da prática do facto foi substituída por uma menos grave, mas esta
foi revogada entretanto por se ter considerado demasiado leve e repõe-se a punição anterior.

FERNANDA PALMA: esta situação é coberta pelo art. 29º/4 2ª parte CRP:

(a) Igualdade – se assim não fosse, estar-se-ia a tratar de forma desigual situações iguais, uma vez que,
imagine-se, A e B praticaram o facto no mesmo dia ao abrigo da L1; dia 5 entra em vigor a L2. O
julgamento de A é dia 6. Dia 7 entra em revoga-se a L2, entrando em vigor a L3 que repõe a punição
anterior mais gravosa. B é julgado dia 8.
(b) Elemento literal – as leis intermédias são ainda assim posteriores à prática do facto.
(c) Proibição da retroatividade – se se aplicasse a B a L3 estar-se-ia a aplicar a mesma retroativamente,
o que é proibido.
(d) Expectativas do arguido – o agente criou expectativas válidas de que a sua conduta iria ser punida
pela lei de conteúdo mais favorável, tendo o Estado que ter em conta essas expectativas que cria nos
indivíduos.

Surgem algumas dificuldades quanto à determinação do regime mais favorável ao agente. A jurisprudência
portuguesa ocupou-se deste assunto, e chegou às seguintes conclusões:

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(1) Deve entender-se que uma multa (mesmo elevada) é em princípio mais favorável do que uma pena
de prisão (mesmo leve), ainda que deva haver uma consideração das circunstâncias concretas do caso.
(2) Como solucionar a situação em que a L1 é mais favorável relativamente a um aspeto e a L2 é mais
favorável relativamente a outro, sendo mais gravosa no aspeto em que a L1 é mais favorável? Neste
caso, temos duas teorias:
a) Conceção diferenciada (TAIPA DE CARVALHO) – faz-se uma ponderação concreta diferenciada,
isto é, avalia-se disposição a disposição de cada lei e assim se determina o regime mais
favorável. Depois aplica-se a parte mais favorável de cada uma das leis. Isto porque, se
aplicássemos em bloco a lei posterior, estaríamos a aplicar retroativamente uma lei
parcialmente mais desfavorável (o que violaria o princípio da proibição da retroatividade e o
princípio da culpa) e, com a segunda lei, o legislador vem afirmar que a vertente da necessidade
é menor, ou seja, há um novo juízo de necessidade.
b) Conceção unitária (maioria da doutrina) – faz-se uma ponderação concreta unitária, ou seja,
avalia-se cada uma das leis em bloco e pondera-se qual delas fixa o regime mais favorável para
o agente. Depois aplica-se em bloco a lei considerada mais favorável.

 Leis Temporárias e de Emergência:

A retroatividade da lei penal de conteúdo mais favorável não abrange as leis temporárias e de emergência.

As leis temporárias são aquelas em que a própria lei fixa um prazo para a sua vigência. As leis de emergência
não fixam um período de vigência, mas são previstas para um específico período de emergência, associado a
crises.

O art. 2º/3 CP prescreve que quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser
punível o facto praticado durante esse período, subtraindo aparentemente essas situações à retroatividade
in melius.

Todavia, o conteúdo normativo deste art. não pretende referir-se a uma sucessão de leis penais em sentido
próprio. A doutrina a que o preceito se refere considera que a lei posterior que descriminaliza a conduta (ou
que lhe atribui uma pena menos grave) não inclui entre os seus elementos típicos a situação de crise ou
excecional, havendo uma alteração essencial no ilícito típico, entre as duas leis temporalmente sucessivas,
mas não sucessivas segundo critérios jurídicos.

Uma tal doutrina explica melhor a solução legal para as leis de emergência do que para as leis temporárias. É,
na verdade, discutível que a intenção manifestada pelo legislador quanto à vigência temporária de uma lei
baste para legitimar a ultra-atividade da lei e a não aplicação do princípio da retroatividade in melius. O tempo
seria, no caso de tais leis, um elemento típico essencialmente constitutivo do ilícito penal, que orientaria as
expectativas dos destinatários para a ultra-atividade antecipadamente. Não haveria aqui expectativas que
merecessem ser tuteladas.

Esta doutrina considera então que estas leis são ultra-ativas: uma vez não estando já em vigor, os factos
praticados sob a sua vigência são ainda assim julgados, podendo os agentes que praticaram esse facto ser
punidos, ainda que a lei já não esteja em vigor (no caso das leis temporárias, porque terminou o prazo de
vigência previsto; no caso das leis de emergência, porque já não se verifica a situação de emergência que
justificou a lei). Ou seja, veem nestes casos uma exceção ao princípio da retroatividade in melius.

FERNANDA PALMA: Todavia, a exceção ao princípio da retroatividade in melius determinada pelo caráter
temporário das leis não é uma restrição constitucionalmente indiscutível, em face do art. 29º/4. O caráter
temporário que não esteja associado a uma excecionalidade historicamente objetiva da situação típica

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prevista pelo legislador não se subtrai pela sua própria natureza aos princípios da necessidade da pena e da
igualdade, que delimitam o conteúdo do art. 29º/4.

Assim, o art. 2º/3 não pode ultrapassar aqueles princípios constitucionais apenas apoiado na prevalência da
intenção legislativa quanto ao caráter temporário de uma lei. Assim como o legislador ordinário não pode
legitimamente decretar que a retroatividade in melius não se aplica quando descriminaliza, também a
atribuição de caráter temporário a uma lei, em situações em que subsista uma verdadeira sucessão de leis,
tem de ser disciplinada pelos princípios da igualdade e da necessidade da pena.

Por outro lado, em situações de sucessão de leis de emergência, a aplicação retroativa da lei mais favorável
deve impor-se sempre que persista como elemento constante do tipo incriminador a mesma situação de
excecionalidade. Fora desses casos, porém, a sucessão de leis de emergência cabe na previsão do art. 2º/3.

Concluindo, deverá sempre fazer-se uma análise do caso concreto, e determinar se estamos perante uma
verdadeira sucessão de leis no tempo ou não. No caso de estarmos, não haverá qualquer exceção ao princípio
da retroatividade in melius, e ter-se-á de aplicar a lei de conteúdo mais favorável ao agente.

 Situações em que a lei posterior mais favorável é considerada inconstitucional:

Esta situação não está prevista na CRP. O art. 282º/1 CRP, que regula os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, refere-se a outro tipo de situações: em geral (para todas as leis – penais ou não), uma
vez declarada a inconstitucionalidade e a ilegalidade com força obrigatória geral, desde a entrada em vigor da
lei, ela deixa de ter validade (e não existência – MFP); para que não se crie um vazio normativo, define-se uma
repristinação da lei anterior que regulava a situação. Nestes casos, não há contudo uma verdadeira revogação
da lei nova: o que acontece é que, se há uma lei inconstitucional, ela na verdade não revoga realmente a lei
anterior, uma vez que é inconstitucional; não se trata da revogação prevista no art. 7º CC (em que se prevê
que uma lei inconstitucional revoga outra).

Para além deste princípio geral (aplicável a todas as leis: penais ou não penais), o nº 3 afirma que se ressalvam
os casos julgados, mas com uma exceção: salvo decisão em contrário do TC, quando a norma respeitar a
matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.
O legislador pensa aqui apenas nos casos em que a lei inconstitucional posterior é de conteúdo menos
favorável.

Ora, o que acontece verdadeiramente é que temos um conflito de princípios: por um lado, o art. 204º CRP
obriga os tribunais a julgar segundo o disposto na Constituição, e por outro, o art. 29º/4 CRP obriga a aplicar
o regime mais favorável.

Na resolução do conflito, na opinião de MFP, deve aplicar-se a segunda norma: o dever de julgar segundo a
CRP impõe o respeito pelos princípios constitucionais, incluindo o do favorecimento do arguido;
materialmente, pesará mais a consideração das expectativas legítimas dos cidadãos.

Podemos pensar em duas soluções, quando a lei posterior inconstitucional seja de conteúdo mais favorável:

1. Se já tivesse havido caso julgado, como forma a regra do art. 282º CRP, aplica-se a regra geral: é
inválida a lei, mas há salvaguarda do caso julgado (o único caso em que não há salvaguarda do caso
julgado é quando a lei posterior é de conteúdo menos favorável) – art. 282º/1 e primeira parte do nº
3 CRP.
2. Se não tiver havido caso julgado, terá de se repristinar a lei anterior e aplicar essa lei anterior
repristinada de conteúdo menos favorável. Esta seria a solução mais lógica. Mas tem de se dizer mais:
o art. 29º/4, que enumera um princípio de necessidade e de igualdade, não tem aqui cabimento, uma

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

vez que aqui se trata de uma sucessão de uma lei inconstitucional a uma lei válida e não de uma
sucessão de leis válidas.

Esta solução tem, todavia, contra si algumas posições:

- O TC veio decidir num acórdão que se aplica a lei repristinada de conteúdo menos favorável, mas dentro
da moldura penal da lei mais favorável inconstitucional.

- RUI PEREIRA entende que se deve aplicar a lei repristinada de conteúdo menos favorável (uma vez que
a obrigação de aplicar exclusivamente normas constitucionais precede e conforma a obrigação de aplicar
as normas de conteúdo mais favorável), mas através do regime do erro, que permite uma atenuação da
culpa, podendo até levar a que o agente não seja punido ou a que a pena seja atenuada, uma vez que o
agente quando praticou o ato, sabia da vigência de uma lei nova de conteúdo mais favorável,
desconhecendo a sua inconstitucionalidade (sendo o agente um jurista, já será difícil defender esta
solução), havendo por isso que tutelar esta expectativa legitima do agente.

- JORGE MIRANDA defende que nos casos em que a lei nova inconstitucional vem despenalizar o ato, não
se poderia aplicar a lei repristinada porque esta estaria a ser aplicada retroativamente. Nas situações de
uma lei posterior em que a medida da pena é mais favorável, deve aplicar-se a lei repristinada menos
favorável, mas a lei inconstitucional tem um papel limitativo: não se pode aplicar a medida legal da pena
posterior inconstitucional mais favorável (vai ao encontro da posição defendida pelo TC). MFP entende
que nos casos de descriminalização, JM acaba por criar uma situação de falta de lei; na segunda situação
também não concorda, porque “ter em conta uma lei inconstitucional” é jogar com as palavras: o que se
está a fazer verdadeiramente é a aplicá-la.

- FERNANDA PALMA defende a aplicação da lei posterior inconstitucional de conteúdo mais favorável:

a. Por analogia do art. 282º relativamente ao caso julgado: se é sempre salvaguardada a aplicação da
lei mais favorável (ainda que quando seja constitucional), mesmo no caso de a lei ser
inconstitucional, se tem conteúdo mais favorável, deve ser salvaguardada a sua aplicação.
b. A norma tem de ser interpretada à luz dos princípios prevalecentes (princípio da necessidade da
pena, do Estado de Direito), e, por isso, esses princípios devem prevalecer relativamente a uma
situação de lei menos favorável numa sucessão de leis, embora uma seja inconstitucional,
resolvendo-se a questão à luz de um princípio da confiança dos destinatários. Quando o Estado
emite uma lei mais favorável, discriminalizadora ou atenuante, cria em geral nos destinatários uma
confiança na alteração dos critérios valorativos do sistema, da intervenção do direito penal nesses
casos e, por isso, à luz deste princípio, justificar-se-á a aplicação da lei inconstitucional.

☼ APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO

A conformação do sistema estadual de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos princípios e
num certo modelo da sua combinação. Estes princípios não assumem, todos eles, igual hierarquia, antes
existindo um princípio-base e princípios acessórios ou complementares.

1. Princípio-base da territorialidade

O art. 4º/a) estabelece o critério da territorialidade – salvo tratado ou convenção internacional em contrário,
a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados:

a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Segundo este princípio, então, o Estado aplica o seu direito penal a todos os factos penalmente relevantes
que tenham ocorrido no seu território, com indiferença por quem ou contra quem foram tais atos cometidos.

Há várias razões que justificam o princípio da territorialidade como regra geral:

(i) Razões jurídico-internacionais e de política estadual – a assunção do princípio da territorialidade


como base do sistema de aplicação da lei penal no espaço é a via que facilitará em maior medida
a harmonia internacional, o respeito pela não ingerência em assuntos de um Estado estrangeiro.
Se a generalidade dos Estados aceita este princípio, está então descoberto o melhor caminho para
que não se gerem conflitos internacionais de competência interestadual.
(ii) Razões jurídico-penais e de política criminal – deve dar-se ênfase à circunstância de ser na sede
do delito que mais vivamente se fazem sentir as necessidades de punição e de cumprimento das
suas finalidades, nomeadamente, de prevenção geral punitiva. É a comunidade onde o facto teve
lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e que exige por isso que a sua confiança no OJ
e as suas expectativas na vigência da norma sejam estabilizadas através da punição.
(iii) Razões processuais – o lugar do facto é também o lugar onde melhor se poderá investigá-lo e
fazer melhor a sua prova e onde, por conseguinte, existem mais fundadas expectativas de que
possa obter-se uma decisão judicial justa.

 Sede do delito:

Como se determina o lugar da prática do facto? A resposta é dada pelo art. 7º/1: o facto considera-se
praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente
atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não
compreendido no tipo de crime se tiver produzido. Este artigo fixa então um critério bilateral alternativo:
basta que qualquer um desses factos se dê em Portugal.

Com este critério pretende-se evitar os conflitos negativos de competência, de onde poderiam resultar
lacunas de punibilidade. Por exemplo, Portugal só dá relevância à conduta (critério da conduta) e Madrid só
dá relevância ao resultado (critério do resultado típico): se a vítima tivesse comido um bolo envenenado em
Madrid, mas só viesse a morrer em Portugal, nenhuma das leis se aplicaria e o agente não seria punido.

A revisão do CP de 1998 veio aditar ao art. 7º duas conexões:

a) Local onde se produziu “o resultado não compreendido no tipo de crime” – diz respeito a:

- Aos chamados “crimes tipicamente formais mas substancialmente materiais”, que atingem a
consumação típica sem que todavia se tenha verificado ainda a lesão que, em última análise, a lei quer
evitar, proporcionando assim uma tutela antecipada do bem jurídico (ex: crime de fraude na obtenção de
crédito, que se consuma com a prática da conduta fraudulenta, independentemente da efetiva obtenção
do crédito).

- Aos chamados “crimes de atentado”, ou de “empreendimento”, que, embora pressuponham um


resultado que transcende a factualidade típica, se consumam no estádio da tentativa (ex: crime de
alteração violenta do Estado de direito, punido pelo art. 325º).

- Aos resultados ou eventos agravantes nos denominados “crimes agravados pelo resultado”.

Em todos estes casos, a ocorrência em território português do resultado não compreendido no tipo de crime
fundamenta a competência da lei portuguesa.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

b) Em caso de tentativa, o local onde o resultado se deveria ter produzido “de acordo com a
representação do agente” (art. 7º/2) – deste modo, cai sob a alçada da lei portuguesa o envio por
agente estrangeiro, a partir de país estrangeiro, de uma carta armadilhada destinada a explodir em
Portugal e a matar um cidadão aqui residente, que é todavia desativada pelas autoridades do Estado
estrangeiro. De toda a forma, no plano dogmático, não deixa de ser estranho considerar como local
da prática do facto o lugar onde o facto não chegou efetivamente a praticar-se (FIGUEIREDO DIAS).

» Problemas particulares:

Apesar da aparente clareza do critério bilateral, alguns problemas ficam ainda em aberto:

(a) Crimes continuados (art. 30º/2) – uma pluralidade real de factos (que podem ser cometidos em países
diferentes) é juridicamente considerada uma unidade normativa. Na linha da teleologia e da
funcionalidade do critério bilateral, e suficientemente coberta pelo texto do art. 7º, está a solução de
que nestes casos deve considerar-se bastante que um dos factos se encontre abrangido pelo princípio
da territorialidade (FIGUEIREDO DIAS).
(b) Comparticipação (art. 7º/1) – está também expressamente coberto pelo art. 7º pelas razões atrás
referidas, o caso da comparticipação, que tenha lugar em Portugal sob qualquer forma, num facto
praticado no estrangeiro, bem como na hipótese inversa de o facto se verificar em Portugal mas a
comparticipação ter lugar no estrangeiro.

Relativamente às formas de comparticipação referidas no art. 7º/1, estas estão previstas nos arts. 26º e 27º
do CP:

(i) Autoria (art. 26º) – este artigo prevê as seguintes situações:

- Autoria material – o autor executa o crime pelas suas próprias mãos;

- Coautoria – o autor age em colaboração com outro agente, “dividindo as tarefas”;

- Instigação – uma pessoa determina dolosamente outra pessoa à prática de um crime, havendo execução ou
começo de execução.

(ii) Cumplicidade (art. 27º).

(c) Duvidosa é a solução que por vezes se aponta para o caso dos chamados delitos itinerantes ou de
trânsito – factos que, pelo seu modo específico de execução, se põem em contacto com diversas OJ
nacionais (ex: uma missiva injuriosa é escrita em Portugal, expedida de Espanha e anda perdida em
França antes de chegar ao seu destinatário na Bélgica). Uma certa doutrina entende também aqui que
qualquer das OJ contactadas se torna aplicável em nome do princípio da territorialidade.

» Critério do pavilhão:

O princípio da territorialidade sofre um alargamento que se contém no art. 4º/b) e parifica com os factos
cometidos em território português os que tenham lugar a bordo de navios ou aeronaves portuguesas. Fala-
se a este propósito de um “critério do pavilhão”, justificado pela consideração tradicional de que aqueles
navios e aeronaves são ainda, se não faticamente, pelo menos para efeitos normativos, “território português”.

Parece, todavia, dever entender-se que, sempre que o navio ou aeronave estejam surtos em porto ou
aeroporto (em águas ou espaços aéreos territoriais) de país diferente do do pavilhão, isso não retira
competência à lei do lugar em nome do princípio-base da territorialidade; o que só favorecerá a necessidade

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

eventualmente imperiosa, de intervenção imediata de autoridades policiais ou mesmo judiciárias. Quando tal
suceda, dar-se-á, no máximo, um conflito positivo de competências.

2. Princípio complementar da nacionalidade

O art. 4º não é o único que atribui competência aos tribunais de Portugal. Há critérios
complementares/subsidiários, a que se pode recorrer quando o art. 4º não atribua competência aos
tribunais portugueses.

Esses critérios estão no art. 5º: apesar de o facto se considerar praticado fora do território português, os
tribunais portugueses ainda assim poderão ser competentes. Note-se que basta o preenchimento de uma das
alíneas do art. 5º para que se atribua competência aos tribunais portugueses: não são de verificação
cumulativa.

O princípio da nacionalidade encontra-se consagrado no art. 5º/1 b) e e) e tanto releva na vertente ativa
como na vertente passiva:

- Nacionalidade passiva (vítima) – é necessário que o facto tenha sido praticado contra um cidadão
português. Justifica-se pela necessidade sentida pelo Estado português de proteger os cidadãos nacionais
perante factos contra eles cometidos por estrangeiros no estrangeiro e, neste sentido, a proteção de
interesses nacionais.

- Nacionalidade ativa – justifica-se pela máxima internacionalmente reconhecida da não extradição de


cidadãos nacionais nos casos de factos cometidos por um seu nacional no estrangeiro. Se não os extradita,
então os princípios da convivência internacional devem conduzir a que, uma vez que eles se encontrem
de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional os puna.

A al. b) configura uma manifestação do princípio da nacionalidade (FIGUEIREDO DIAS). Esta alínea serve para
impedir a impunidade dos casos em que um português se dirige ao estrangeiro para aí cometer um facto que,
ainda que seja lícito segundo a lei local, constitui, todavia, um crime segundo a lei nacional (do agente).

Para TAIPA DE CARVALHO, só se aplica esta alínea quando o agente português se tenha deslocado ao território
estrangeiro com a intenção de praticar o crime.

Para FIGUEIREDO DIAS também se atribui competência aos tribunais portugueses por esta alínea nos casos
dos agentes que não vão com a intenção preordenada de praticar o crime ou que não conhecem a lei
estrangeira.

Outra questão que se coloca no âmbito deste art.: será que se aplica quando uma portuguesa vai ao
estrangeiro para abortar (depois de ultrapassadas as 10 semanas)? FERNANDA PALMA diz que sim, mas há
que ter em atenção se esta não será uma analogia proibida (o feto, mesmo que seja uma pessoa, não é ainda
um cidadão).

A alínea e) configura mais uma vez este princípio da nacionalidade, de acordo com o qual a lei penal
portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional, por portugueses (princípio da
personalidade ativa) ou por estrangeiros contra portugueses (princípio da personalidade passiva), sob uma
tríplice condição:

(1) Os agentes serem encontrados em Portugal;


(2) Os factos forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando
nesse lugar não se exercer poder punitivo;

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

(3) Os factos constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a
não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de
cooperação internacional que vincule o Estado Português.

3. Princípio complementar da defesa dos interesses nacionais

Trata-se da específica proteção que deve ser concedida a bens jurídicos portugueses, independentemente da
nacionalidade do agente, de os crimes terem sido cometidos no estrangeiro, e mesmo do que a seu respeito
disponha a lei do lugar. O fundamento para esta extensão do ius puniendi reside em que o próprio agente
estabeleceu a relação com a ordem jurídico-penal portuguesa ao dirigir o seu facto contra interesses
especificamente portugueses.

Este princípio complementar está consagrado na alínea a) do art. 5º. Esta alínea, contudo, levanta alguns
problemas:

(a) Alguns destes crimes, pela sua própria natureza, só fazem sentido quando são praticados contra o
Estado português (normas espacialmente autodelimitadas), como a falsificação ou contrafação de
moeda. Ex: um espanhol é apanhado a fabricar dólares falsos em Portugal – isto é crime, porque a lei
não aponta nenhuma distinção quanto à moeda que está a ser falsificada (art. 255º/d)). Contudo, a
questão nem se prende com saber se é crime ou não, mas se a lei portuguesa será aplicável a esse
crime ou não; neste caso, sendo o facto praticado em Portugal, aplicar-se-á a lei portuguesa (arts. 7º
e 4º).
(b) Mas situação diferente é quando um espanhol falsifica dólares em Espanha e é apanhado em Portugal.
Aqui, até se pode tratar de um crime à luz da lei portuguesa, e até pode parecer que a lei portuguesa
se aplica por via do art. 5º/a). Mas há doutrina (INÊS FERREIRA LEITE) que defende que deveria haver
aqui uma redução teleológica do art. 5º/a), uma vez que tal situação não abrange interesses
portugueses carentes de proteção. O Prof. PEDRO CAEIRO discorda, afirmando que o bem jurídico em
causa será a intangibilidade do sistema monetário legal, que pode ser posto em causa mesmo se a
moeda for estrangeira.

4. Princípio complementar da universalidade

Este princípio visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam
contra bens jurídicos carentes de proteção internacional ou que, de todo o modo, o Estado português se
obrigou internacionalmente a proteger. Assim, o princípio deve valer independentemente da sede do delito e
da nacionalidade do agente.

Este princípio está plasmado no art. 5º/1 c) e d): só se aplica estas alíneas se o agente seja encontrado em
Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção
europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.

Fonte deste princípio pode ser ainda o direito internacional convencional a que Portugal se tenha obrigado.
Nesse sentido, dispõe o art. 5º/2 que a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do
território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.
Por exemplo: casos de luta internacional contra a pirataria aérea, o terrorismo, a falsificação de moeda, etc.

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5. Princípio complementar da administração supletiva da justiça penal

A al. f) foi introduzida na revisão do CP de 1998 e veio colmatar uma lacuna existente até aí. Com efeito, podia
suceder que um cidadão estrangeiro, tendo praticado um crime, normalmente grave, no estrangeiro, viesse
buscar refúgio a Portugal onde, por um lado, não podia ser julgado (dada a ausência de uma conexão relevante
com a lei portuguesa) e de onde, por outro lado, não podia ser extraditado (dadas as proibições de extraditar
em função da gravidade da consequência jurídica impostas pelo sistema nacional).

Segundo o princípio da administração supletiva da justiça penal, a lei penal portuguesa será então aplicável a
factos cometidos por estrangeiros no estrangeiro, desde que:

a) O agente seja encontrado em Portugal;


b) A sua extradição haja sido requerida;
c) O facto praticado constitua crime que admita a extradição e esta não possa ser concedida ou seja
decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.

» A alínea g) refere-se aos crimes praticados por pessoas coletivas. Tem como objetivo evitar que as
empresas se sediem em Portugal para escapar à criminalização.

NOTAS:

1. Quando as pessoas mudem de nacionalidade, deve prevalecer a aplicação do princípio da legalidade:


o momento que releva é o da prática do facto.
2. Para saber se os tribunais portugueses são competentes por alguma alínea do art. 5º temos de
recorrer ao art. 6º. A aplicação do art. 6º pressupõe a aplicação do art. 5º.

LEIS IMPORTANTES:

 Lei de combate ao terrorismo – 52/2003 e 17/2012.


 Lei 31/2004 – art. 5º.
 DL 254/2003 alterado pelo DL 208/2004 – art. 4º.

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Cooperação Judiciária Internacional

A Lei aplicável nesta matéria é a Lei 144/99. Duas normas enquadradoras são os arts. 6º e 7º (que se refere à
cooperação de Portugal com o Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade).

A cooperação judiciária internacional pressupõe o reconhecimento do Direito penal de outros estados. Esta
cooperação não pode, contudo, descaracterizar o sistema jurídico português, ao nível dos direitos
fundamentais consagrados – ex: pena de morte (proibida no art. 24º/2 CRP) e a pena perpétua (proibida pelo
art. 30º CRP): a consagração destas medidas violaria o direito fundamental à dignidade da vida humana.

 Pena de morte:

Portugal não poderá, assim, cooperar com um país em que, de acordo com o seu Direito, venha a ser aplicada
a pena de morte ao agente cuja extradição se requer – art. 33º/6 CRP.

O art. 6º/2 a) da Lei 144/99, relativamente à pena de morte, só será compatível com a CRP na medida em que
se entenda que esta al. prevê uma espécie de uma alteração do Direito penal do caso (concreto).

 Pena de prisão perpétua:

Em relação à pena perpétua, o art. 33º/4 CRP vem estabelecer que só é admitida a extradição por crimes a
que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou
restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado
requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de
que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada.

O art. 6º/2 b) da Lei 144/99 já é mais difícil de compatibilizar com a CRP, uma vez que tem uma formulação
mais flexível. Se por “garantias” se entender garantias meramente diplomáticas ou políticas, não estaremos
numa situação de concordância entre este art. e a CRP: esta dependerá de uma redução teleológica deste art.
(MFP), no sentido de entender que as “garantias” prestadas estejam previstas em convenção internacional
em que Portugal e o outro país sejam parte.

 Relação entre o art. 33º/4 e o art. 33º/6:

O nº 6 (relativo à pena de morte) exige uma espécie de alteração do direito interno em função do caso
(vinculação jurídica interna a que não se aplique a pena de morte – garantia jurídica). Já o nº 4 (relativo à pena
de prisão perpétua) é uma vinculação jurídico-internacional, e, por isso, mais fraca, uma vez que não se trata
de uma alteração no plano da lei interna, mas sim da responsabilidade internacional do Estado por vir a violar
uma obrigação daí decorrente.

 Artigo 33º/5 CRP:

Este art. vem afetar um princípio da cooperação judiciária internacional, consagrado no art. 33º/3 CRP, que é
o princípio da não extradição dos cidadãos nacionais.

O art. 33º/3 CRP vem estabelecer que a extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é
admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo
e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre
garantias de um processo justo e equitativo.

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Direito Penal I Leonor Branco Jaleco

Ora, ao nível do mandado de detenção europeu, que está salvaguardado pelo art. 33º/5, este princípio não
prevalece. A Lei 65/2003 relativa ao mandado de detenção europeu baseia-se não no princípio que está
subjacente à cooperação judiciária internacional (articulação da soberania dos Estados um com os outros),
mas sim num princípio de integração. A ideia é a de que deve haver um aprofundamento e um
reconhecimento mútuo das decisões judiciais: deste modo, pretende-se alcançar uma harmonização entre os
Direitos dos vários Estados.

Em relação à cooperação judiciária internacional vigora o princípio da dupla incriminação: Portugal só


extradita um agente quando o facto por ele praticado também seja punível pela lei penal portuguesa.

Contudo, em relação ao mandato de detenção europeu, prescinde-se da dupla incriminação, em alguns casos
(art. 2º/2 Lei 65/2003). Nestes casos, mesmo que a lei penal portuguesa seja mais restrita, menos gravosa,
haverá uma execução do mandado de detenção europeu, que não é restringida aos cidadãos estrangeiros, ou
seja, inclui os cidadãos nacionais. Apenas se admite, em relação a estes, uma recusa facultativa da execução
do mandado de detenção europeu, no art. 12º/1 g) desta Lei, quando a pessoa procurada se encontrar em
território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de
detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português
se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

 Limitações constitucionais:

a) À extradição:

o Quando se pretenda aplicar ao agente a pena de morte (arts. 33º/6 CRP e 6º/2 a) Lei 144/99);
o Quando se pretenda aplicar ao agente a pena de prisão perpétua (arts. 33º/4 CRP e 6º/2 b) Lei
144/99);
o Quando o pedido de extradição resulte de motivos políticos. O art. 7º Lei 144/99 ainda acrescenta os
crimes militares que não sejam simultaneamente previstos na lei penal comum;
o Quando o pedido de extradição resulte de infração de natureza política ou infração conexa a infração
política segundo as conceções do direito português (art. 7º/1 a) Lei 144/99). O nº 2 do art. 7º vem
fazer uma delimitação negativa das infrações de natureza política. MFP entende que se deve fazer
uma redução teleológica da al. g).

 Relação entre os arts. 2º/3 e 12º Lei 65/2003

O art. 2º/2 prevê que não é necessário que haja dupla incriminação quanto ao mandado de detenção europeu
nos casos ali contemplados. Já o nº 3 prevê que no que respeita às infrações não previstas no número anterior
só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de
detenção europeu constituírem infração punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus
elementos constitutivos ou da sua qualificação.

Já o art. 12º/1 a) parece dizer o contrário: a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada
quando o facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infração punível de
acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infração não incluída no nº 2 do art. 2º. Ora, este art. 12º
vem dizer que Portugal pode recusar: ora, Portugal não pode recusar, mas sim deve. MFP: temos de fazer uma
interpretação ab-rogante do art. 12º/1 a), ou estar-se-á a restringir as garantias dos destinatários. Não resulta
de uma leitura do art. 2º/3 que esta seja uma mera recusa facultativa.

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 Art. 7º Lei 144/99:

O art. 7º/a) L 144/99, que se refere à proibição de extradição no caso de infração de natureza política ou de
natureza conexa, apela a uma caracterização objetiva dos factos. É diferente daquilo que está previsto no art.
33º/6 CRP, quando se refere a “motivos políticos” que remete para uma avaliação feita pelo Estado, sendo
aqui a questão fundamental a da motivação (evitar a perseguição política).

Tem assim de se fazer uma interpretação extensiva do art. 7º/a) de modo a abranger na “natureza política”
razões motivacionais, nos termos da CRP, compatibilizando as duas leis (MFP).

NOTA: o art. 33º/6 CRP vincula a interpretação do mandado de detenção europeu, estando este sob o domínio
deste art.

 Art. 13º/1 a) Lei 65/2003:

Art. 13º/1 a) – esta norma basta-se com garantias de revisibilidade. Está em contradição com o art. 33º/4 CRP,
mas não temos de fazer a compatibilização do art. 13º/1 a) com o art. 33º/4, tendo de fazê-la apenas com o
nº 5, que nos diz que o nº 4 não prejudica o mandado de detenção europeu. Assim, o art. 13º/1 a) não viola a
CRP, uma vez que está coberto pelo art. 33º/5; contudo, a interpretação do nº 5 no sentido de permitir
exceções ao nº 4 (exigindo este a vinculação do Estado requerente a que não seja aplicada uma pena de prisão
perpétua) é uma interpretação que viola os limites materiais da revisão constitucional (art. 288º/a CRP).

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