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Aprendendo através de transições: o papel das instituições

ZITTOUN, 2008

Em uma abordagem à psicologia que admite a irreversibilidade do tempo e a constante


mutabilidade das pessoas e seu ambiente, os pesquisadores desenvolvimen stas precisam definir
objetos de pesquisa nos quais os processos de mudança se tornam par cularmente salientes. Há
uma longa tradição na psicologia para estudar momentos de mudança ou rupturas (Dewey, 1910;
Peirce, 1877; Schutz, 1944), crises (Erikson, 1975) ou desequilíbrio (Piaget, 1974), às vezes baseado
em referência a sistemas dinâmicos. (por exemplo, Van Geert, 2003). A idéia básica é que, em uma
situação de funcionamento regular, uma ruptura dos processos usuais catalisa o ajuste e exige a
produção de novidades. Novas formas de conduta podem assim surgir. Em alguns casos, isso pode
envolver uma reestruturação de todo o sistema. Processos que seguem rupturas parecem
par cularmente interessantes para os psicólogos: eles estudam a resolução de tarefas, a resolução
de conflitos, o enfrentamento, a resiliência, a construção de novos esquemas, etc. Aqui, chamarei
esses processos, processos de transição; estes são minimamente orientados para uma nova forma de
equilíbrio ou renovado funcionamento regular.

Os psicólogos do desenvolvimento que estudam essa superação de crises ou reequilíbrio


geralmente sustentam suposições sobre que po de resolução é "mais desenvolvimen sta". Como
frequentemente apontado, a própria noção de "desenvolvimento" sugere algum desdobramento, em
direção a um estado "melhor". Qualquer psicólogo do desenvolvimento trabalha assim com algumas
suposições norma vas segundo as quais alguns padrões de mudança são melhores que outros
(Valsiner, 1989; Valsiner & Connolly, 2003). Admito que a qualidade de uma mudança deve ser
avaliada de modo a levar em conta tanto o bem-estar da pessoa (seu senso de agência, seu estado
emocional) quanto sua rela va adequação ao seu ambiente social. Eu suponho que uma mudança
que permita mudanças adicionais seja de desenvolvimento. Uma mudança que leva a pessoa à
alienação do mundo social, ou de si mesma, limita outras mudanças e, portanto, será considerada
como não-desenvolvimen sta.

Fora do laboratório, na realidade socialmente compar lhada, as rupturas podem ser


causadas por eventos que têm escalas diferentes, ou, como pode ser analisado após Doise (1982),
que dependem de vários níveis de análise do mundo social. Algumas rupturas são causadas por
grandes mudanças sociais, como quando uma nova doença é descoberta (AIDS, como estudado por
estudiosos de representações sociais, Aggleton, Hart, & Davies, 1989), quando uma guerra começa,
ou quando há uma importante mudança polí ca , como nos países pós-comunistas. As rupturas
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podem ser causadas pela realocação social de uma pessoa e pela mudança do quadro de a vidade,
por exemplo, quando se muda de casa, se inicia um novo emprego ou se seu local de trabalho é
reestruturado. Uma ruptura pode vir de uma alteração em relacionamentos significa vos, como
separação ou nascimento, ou pode ser por razões intrapessoais, como quando alguém decide
abandonar a religião. Neste ar go, vamos nos concentrar em rupturas devido a uma mudança de
quadro de a vidade. No entanto, embora a maioria das pessoas seja afetada pela realocação social,
algumas pessoas estão muito acostumadas a se movimentar pelo mundo e essas mudanças fazem
parte de suas ro nas. Portanto, causas aparentes de mudanças - do ponto de vista de um observador
- não são necessariamente percebidas como rupturas por uma pessoa em estudo.

Como psicóloga do desenvolvimento, considero a pessoa em sua singularidade, pois ela tem
uma interioridade (uma zona de pensamentos e sen mentos dinâmicos e dialogantes, desejos,
esperanças, lembranças, que pertencem ao seu senso de si e são inacessíveis aos outros). uma
necessidade básica de auto-con nuidade e consistência. Essa pessoa é um agente intencional e
precisa conferir sen do ao que acontece com ela. Essa pessoa também está localizada no campo
social, onde ela interage com os outros e objetos; essas interações podem ser analisadas como
trocas de natureza semió ca (Valsiner, 1998). As configurações das interações são, elas próprias,
social e simbolicamente reguladas, e localizadas em um determinado tempo e espaço
(Perret-Clermont, 2004). Essas situações e a pessoa estão, assim, agindo em um tecido complexo de
correntes semió cas. Com tais pressupostos básicos, a mudança psicológica é interessante, desde
que isso afete a conduta potencial da pessoa - sua capacidade de sen r, pensar, agir e interagir.
Como consequência, examinaremos aqui as rupturas que parecem relevantes da perspec va da
pessoa.

Rupturas e transições: três processos interdependentes

Este ar go examina eventos que são percebidos como rupturas pelas próprias pessoas e foca
nos processos de transição que se seguem. Na pesquisa de aprendizado e desenvolvimento, três
processos interdependentes de mudança são geralmente dis nguidos: processos de iden dade,
aquisição de conhecimento e criação de sen do, que eu considero processos de transição
(Perret-Clermont & Zi oun, 2002; Zi oun 2006a, b; Zi oun, Duveen Gillespie, Ivinson e Psal s,
2003).

Em primeiro lugar, as transições envolvem mudanças nas esferas social, material ou simbólica
da experiência. Transições implicam processos de reposicionamento, ou realocação da pessoa em
seus campos social e simbólico (Benson, 2001; Duveen, 2001). Cada um desses movimentos pode
criar novos obje vos, orientações, possibilidades, restrições de ação ou perdas (Baltes, 1997;
Valsiner, 1998; Valsiner & Lawrence, 1997). As deslocalizações levam a pessoa a ocupar posições
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anteriormente ocupadas por outros (Gillespie, 2007); eles também confrontam uma pessoa com
outros, cujas reações espelham a localização alterada da pessoa. Assim, através da própria apreensão
e da mediação de outros, o reposicionamento implica transformações de iden dades. A mudança de
iden dade é enfa zada pela análise de crises e desenvolvimentos subsequentes de Erikson (1968).

Em segundo lugar, a relocação de pessoas pode necessitar de formas de conhecimento e


habilidades sociais, cogni vas e especializadas. Viver em um novo país exige falar uma nova língua,
tornar-se mãe exige habilidades parentais, trabalhar em uma nova empresa requer a compreensão
das regras sociais informais, etc. Estudos abordando a iden dade em termos de posição e
interessados na construção de membros, tais como a análise de Berger e Luckman da socialização
secundária (1966), o trabalho de Coulon (1997) sobre se tornar um estudante, mostra as habilidades
necessárias para ser capaz de se comportar como um membro de um determinado grupo, e ser
validado como tal por outros. Ao contrário, as abordagens sociocogni vas à aprendizagem
mostraram as profundas interconexões entre iden dade e conhecimento. Por exemplo, os
pesquisadores podem manipular o desempenho das tarefas dos alunos manipulando seu status de
iden dade e visibilidade (Monteil, 1989); O compromisso das crianças e dos adultos com a
aprendizagem e a resolução de tarefas também pode depender do seu status social mutuamente
reconhecido (Muller & Perret-Clermont, 1999; Perret-Clermont & Nicolet, 2001) ou gênero (Psal s &
Duveen, 2006).

Em terceiro lugar, através destas deslocalizações, encontros com outros e aprendizagem, a


pessoa pode ser levada a envolver-se na construção de sen do, isto é, conferir sen do ao que
acontece com ela (Bruner, 1990, 1996; West, 2006). A construção de sen do compreende processos
de elaboração de emoções e experiências através da mediação de sinais, entre os quais, mas não
apenas, a linguagem verbal (Zi oun, 2006a).

Processos de iden dade, aprendizagem e criação de sen do estão necessariamente ligados e


estão presentes em todas as transições que seguem rupturas percebidas como tal. As dificuldades de
aprendizagem podem ser frequentemente analisadas em termos de tarefa sem sen do (Rochex,
1995) ou de iden dades conflitantes. Por sua vez, para apoiar a aprendizagem de adultos, técnicas
baseadas na elaboração de histórias de vida visam precisamente dotar novos conhecimentos com
um sen do pessoal (Dominicé, 1985).

Um modelo para analisar rupturas situadas

Que modelos temos para representar os processos de transições de uma pessoa, de modo a
capturar suas dimensões significa vas? A pessoa que vive rupturas é aqui considerada em seus
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mundos sociais - em interações com os outros, objetos materiais e elementos simbólicos.


Classicamente, dois pos de modelos representam essa sociabilidade da conduta humana.

Por um lado, por um século, uma metáfora comumente usada em uma psicologia do
desenvolvimento consciente da inserção social da mudança humana é o triângulo, ar culando
pessoa, outro e objeto (Mead, 1932; Moscovici, 2003, etc.). A metáfora foi expandida de várias
maneiras pelos psicólogos que sentem suas limitações, que adicionaram pólos para descobrir
ferramentas, sinais ou comunidades (ver Zi oun, Gillespie, Cornish & Psal s, 2007, para uma visão
crí ca). Em nosso trabalho, propusemos transformar o triângulo em uma metáfora do prisma
semió co com quatro cantos: a pessoa, um outro (real ou imaginário, específico ou geral), um objeto
simbólico (que geralmente tem um significado socialmente compar lhado) e o sen do pessoal desse
objeto para a pessoa (Zi oun, 2006b). Esse modelo tenta representar rapidamente processos
interpessoais e intrapessoais (ou intrapsíquicos), já que a mudança psicológica é possibilitada
principalmente pela dinâmica que ar cula processos interpessoais e pessoais (Valsiner, 1998;
Vygotsky, 1934; Zi oun et al., 2007). O modelo comprime a dinâmica que pode ser implantada ao
longo do tempo. No modelo, a dinâmica interpessoal é representada pelo vetor indo de pessoa para
outra e de pessoa para objeto. Os processos intrapessoais são representados pelo vetor que liga a
pessoa ao sen do do objeto da pessoa. A ideia é que a pessoa tenha que adotar posições diferentes,
oscilando no tempo. A par r de uma posição inicial, a pessoa se envolve em processos de
descentralização que podem levá-la a conferir sen do ao objeto. Ela também tem que se distanciar
do objeto, para poder nomear, significar e, eventualmente, comunicar seu significado para outro.
Finalmente, esse modelo representa as três dimensões dos processos de transição: o
posicionamento de iden dade está relacionado ao eixo pessoa-outro; o saber está relacionado ao
eixo pessoa-objeto; e a produção de sen do está relacionada com o sen do da pessoa no eixo do
objeto. Além disso, como veremos, o eixo do outro-objeto representa significado (significado
socialmente compar lhado do objeto), e o sen do do outro-objeto representa reconhecimento, isto
é, como outra pessoa dá a legi midade para sen r ou pensar seus pensamentos.
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Por outro lado, os autores tentaram explicar a inserção social da conduta humana,
representando os campos inclusivos. Bronfenbrenner (1977) propôs um modelo de um sistema de
esferas inclusivas de ações; autores inspirados pelo trabalho de Goffman (1975) ou Lewin (1951)
tomaram consciência do quadro ou da configuração de uma interação, pois são parte integral da
conduta que está ocorrendo (Grossen, 2000; Grossen e Perret-Clermont, 1992). Perret-Clermont
(2001, 2004) propôs a metáfora do "espaço do pensamento" para designar as dimensões que entram
na elaboração do sen do por uma pessoa, que todas podem ser capacitadoras ou constrangedoras.
O espaço de pensamento representa a pessoa em interação com os outros, mas também o quadro
no qual essas interações ocorrem, e o "quadro do quadro", feito de ins tuições, tradições, culturas,
que estão moldando o quadro, e interações, papéis, iden dades, processos de conhecimento que
estão ocorrendo. As ins tuições, tradições, cultura, não são entendidas como "caixas" entre si, mas
como quadros de onde teias semió cas específicas cruzam e cons tuem o tecido do espaço do
pensamento. As tradições produzem teias semió cas duradouras e afetam muitas pessoas que têm
pouco poder para mudá-las. Em contraste, uma dada relação interpessoal é moldada por trocas
semió cas que dizem respeito a algumas pessoas que podem negociá-las constantemente. A
metáfora designa, assim, um espaço social e mental.

Tentamos localizar nosso prisma em tal enquadramento, de modo a descobrir sua necessária
cons tuição social. Em tal modelo, onde ocorreria a mudança? A mudança pode ser vista como
ligada à reconfiguração dos elementos cons tu vos do prisma semió co e de suas respec vas
relações - uma mudança da relação da pessoa para com a outra, a transformação do sen do da
situação para a pessoa e, conseqüentemente, do objeto para ela, etc. (veja, por exemplo, Psal s
2005, para a idéia de reconfiguração). Através de tais reconfigurações, algo radicalmente novo
também pode emergir. Assim, nos limites desses modelos (prisma e quadros), se uma ruptura pode
ser vista como uma mudança no cenário da conduta humana dada, então as transições designam os
processos pelos quais uma configuração de prisma situado para uma pessoa é transformada em
outra.
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Em tal modelo, esses dois estados do prisma são dois momentos de uma figura lenta e em
constante evolução, através da transformação de pólos e relações. No entanto, algumas
configurações têm rela va estabilidade: as pessoas têm relações mediadas recorrentes com certas
pessoas específicas (por exemplo, um bom amigo com quem compar lham uma paixão pelo cinema)
ou com uma outra generalizada (por exemplo, professores de ciências, para quem a pessoa pode
sempre se sen r estúpida ao abordar equações). Com base em tal modelo, nosso obje vo é
aprofundar nossa compreensão dos processos que ocorrem nas transições, isto é, dinâmicas que
levam a reconfigurações do prisma ou ao surgimento da novidade. Uma mudança de
desenvolvimento seria uma mudança que é parte de um movimento gerador - reconfigurações levam
a novas reconfigurações, etc. No entanto, restrições em tais processos podem ser devidas a qualquer
cons tuinte da situação: a presença de um outro, a aceitação dele do senso de objeto para a pessoa,
a capacidade da pessoa de transferir alguma compreensão ou relacionamento de um ambiente para
outro, etc. Em par cular, como estamos aqui interessados em aprender e educar, vamos ques onar o
papel do enquadramento, em configurações ins tucionais par culares, nessas reconfigurações.

Neste ar go, consideraremos uma série de estudos de caso: o de ex-alunos que


abandonaram a escola iniciando uma formação profissional, a dos jovens religiosos que chegam à
vida secular e a de uma jovem tornando-se trabalhador da terra em uma época de guerra. Vamos
primeiro analisá-los com o modelo proposto aqui e, assim, perguntar: Quais são os cons tuintes das
situações? O que está mudando? O que é que facilita essas reconfigurações? O que os constrange?
Em segundo lugar, tentaremos destacar o papel das ins tuições formais nos processos de facilitação,
impedimento ou transição.

Estudos de caso para construção de conhecimento

Metodologicamente, estudar transições levanta uma questão clássica: como capturar


mudanças? Aqui, queremos considerar a realocação da vida real, que envolve a reconfiguração de
prismas emoldurados com outros sen dos de outros objetos. Os estudos de caso foram
documentados através de duas técnicas principais disponíveis: coleta de dados em tempo real e
reconstru vas (isto é, obje vando recons tuir eventos em evolução no passado com base em traços
semió cos). Para o abandono escolar, a etnografia escolar permi u observações em tempo real e é
combinada com entrevistas reconstru vas; entrevistas com jovens religiosos são reconstru vas e
completadas pela par cipação da comunidade judaica; e usamos o diário do trabalhador como
dados. Uma terceira técnica, não usada aqui, consiste em registrar as interações e decompô-las em
seus microprocessos (ver, por exemplo, Saint-Georges & Fillie az, este número; Grossen &
Oberholzer, 2000; Psal s & Duveen, 2006). Processos localizados no tempo, portanto, só podem ser
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abordados, não capturados. Completamos esses dados com informações adicionais, sobre os outros
sociais imediatos de uma pessoa, o real ambiente material e simbólico em que ela está, etc.

Estudos de caso permitem a observação de situações complexas; eles autorizam o


ques onamento teórico, expandindo e construindo. Quando uma série de estudos de caso é reunida
com base em sua equivalência teórica, uma teoria precisa ser transformada de modo a ser capaz de
explicar esses casos, tanto em termos de suas especificidades quanto de suas semelhanças. É claro
que, em algum grau de generalização, um modelo assim construído perde alguns aspectos de casos
complexos. No entanto, casos bem documentados oferecem dados ricos que estão disponíveis para
pesquisadores interessados (S les, 2005; Valsiner & Connolly, 2003). A seguir, dada a restrição de
espaço, descreverei cada uma das três configurações, destacarei os processos de transição de um
jovem e tentarei entender o papel específico da estrutura ins tucional.

Caso 1: Pré-Aprendizagem

Na Suíça, os jovens em situação de insucesso no final do ensino obrigatório, do 9º ano, com


15 anos, têm como única opção ingressar no mercado de trabalho como trabalhadores não
qualificados. Em um país em que 80% da população tem formação profissional e onde a educação
con nuada é altamente incen vada, a compe ção é alta; para um jovem, é preferível entrar no
mercado de trabalho depois de um aprendizado. Um aprendizado é um treinamento vocacional
cer ficado em um modelo dual, durante o qual um aluno passa 40% da semana na escola para
aprender disciplinas técnicas e básicas (matemá ca, idiomas etc.) e os 60% restantes em uma
empresa. Para entrar em tal treinamento, um estudante deve ter concluído com sucesso o ensino
obrigatório e ter sido aceito como aprendiz em uma empresa. Assim, os estudantes que falharam na
escola compulsória não podem começar tal treinamento, e as empresas não gostariam de levá-los
como estagiários. Como úl mas tenta vas de evitar a exclusão social desses jovens, muitas inicia vas
locais propõem um 10º ano de educação, uma úl ma chance de melhorar suas notas. No entanto,
tais inicia vas geralmente têm resultados ruins, em parte porque os jovens que veram um
"caminho de fracasso" não têm interesse em inves r mais um ano na escola.

Nos anos 90, anos de recessão econômica na Europa, a situação de tais abandono escolar era
ainda mais arriscada, porque as empresas tendiam a se tornar muito sele vas em aceitar pessoal. Os
jovens não qualificados estavam, portanto, em alto risco de exclusão social. Nesse contexto, fomos
contatados pelo Centro de treinamento profissional do litoral de Neuchâtel (CPLN), que desenvolveu
um programa de um ano que teve resultados surpreendentemente bons - 80% de seus alunos
poderiam realmente começar um aprendizado, isto é, elevaram suas notas e foram escolhidos como
aprendizes antes de outros jovens com trajetória escolar muito melhor. Nos  pediram  que 
analisássemos  esse  sucesso. Passei cerca de um ano na escola e nas salas de aula, entrevistei o
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coordenador do setor escolar, o psicólogo, o diretor, os professores, além dos atuais e ex-alunos. O
quadro seguinte surgiu (ver Zi oun, 2004, 2006a).

O programa de um ano, chamado de "pré-aprendizado", foi concebido como uma "úl ma


chance" e apenas os estudantes que não veram outras chances de iniciar um aprendizado foram
aceitos. O coordenador, que reorganizou o setor, achou que a única maneira de mobilizar os alunos
para a aprendizagem era provocar uma ruptura com a experiência escolar anterior, durante a qual os
maus alunos carregavam sua reputação de ano para ano, sendo ignorados pelos professores, e
progressivamente abandonado pelos pais. Assim, antes do início do ano le vo, os professores exigem
que os alunos encontrem um local de estágio antes mesmo de iniciar o programa. Frequentemente,
os alunos são pela primeira vez colocados em uma situação desafiadora e portanto, eles chegam à
escola com esse primeiro sucesso (como esses trainees são aceitos pelas empresas será descrito
abaixo).

No início do ano le vo, o coordenador impõe explicitamente o seguinte: nenhum dos


professores tem acesso aos arquivos e às notas anteriores dos alunos. Nenhum estudante é assim
julgado com base em sua reputação passada. O coordenador explicita a inversão de valores que sua
escola propõe: "as pessoas sempre lhe disseram que você não era bom em assuntos escolares; agora
é a sua chance de mostrar em que você é bom!” Um quadro social altamente definido e estruturado
é então estabelecido: os cronogramas, as regras comportamentais são tornados extremamente
explícitos. O modelo é o das empresas: os alunos começam muito cedo pela manhã e têm exigentes
dias de escola; o cronograma anual é constantemente lembrado. No entanto, nesse contexto, uma
rede relacional de alta qualidade é estabelecida: oportunidades de reunião e canais de comunicação
permitem que cada professor tenha informações sobre as experiências dos alunos em outras salas de
aula, no local de trabalho ou nas famílias. A escola tem o cuidado de envolver os pais no treinamento
de seus filhos, por exemplo, traduzindo as comunicações nas muitas línguas faladas por eles,
encorajando-os a ligar para os professores, pedindo que ajudem os alunos a encontrar um local de
aprendizado no ano seguinte, etc. Ainda, esse quadro tem mais duas especificidades.

Em primeiro lugar, o coordenador e o diretor fazem um importante trabalho de conexão com


as empresas da cidade. Eles apresentam seu programa para associações de empresários locais, como
os clubes Kiwanis. Eles também o apresentam através da mídia - TV, rádio e jornais. A mensagem é,
portanto, "dar uma úl ma chance" a esses jovens. É graças a essas redes com o meio econômico que
os estudantes acabam encontrando seu lugar de treinamento. Em segundo lugar, o coordenador
perguntou sobre as habilidades exigidas pelos empregadores em potencial. Ele conta que
inicialmente perguntou aos chefes de empresas o que eles estavam procurando ao contratar
aprendizes; eles responderam: notas. Assim, a escola fez algum esforço para elevar a nota dos
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alunos, sem sucesso em termos de contratação como aprendizes. O coordenador percebeu então
que as firmas analisavam a conduta real dos jovens quando iam visitar a empresa ou como
estagiários: como estavam "à mão", como causavam boa impressão, quanta inicia va nham ...
muito mais do que quão bem eles sabiam matemá ca ou alemão! Então a escola decidiu reforçar
essas habilidades em jovens. Dentro do quadro rígido do currículo nacional, a escola reorganizou os
cursos oferecidos aos alunos. Os professores, assim, estabeleceram a vidades com o obje vo de
desenvolver conhecimento social implícito, habilidades técnicas e heurís cas de pensamento. O
conhecimento social implícito refere-se a códigos implícitos aos quais esses jovens muitas vezes não
têm acesso devido a seu histórico familiar: não falar com um adulto quando mascar chiclete, usar
roupas limpas antes de uma entrevista etc. Esse conhecimento foi parcialmente desenvolvido no
contexto de um adolescente. curso em "técnica de escritório" através de drama zação, comentários
de colegas, piadas informais, etc. As habilidades técnicas incluem como preparar e servir um café
adequado, ou como trocar papel e nta na copiadora, e foram ensinadas por especialistas
convidados. A heurís ca do pensamento diz respeito à capacidade de elaborar cenários “como se”,
que ajudam a se preparar para o futuro. Durante as supervisões individuais, o coordenador orientou
os procedimentos de raciocínio, por exemplo, orientando a preparação do aluno para uma consulta
de emprego: a que horas é necessário estar lá, então a que horas é preciso sair de casa para pegar o
ônibus. quando alguém chega à empresa, etc. E quanto ao conhecimento da escola clássica? Em vez
de tentar levar os alunos a uma compreensão plena dos assuntos, a escola privilegia a eficiência nos
exames: os professores propõem treinamentos repe vos de respostas corretas e, muitas vezes,
ensinam "truques" que permitem que os alunos não sejam desqualificados. A eficiência do programa
parece assim localizada em vários níveis: os alunos aprendem a se comportar adequadamente no
local de trabalho e a dominar o conhecimento implícito (habilidades); isso desencadeia
reconhecimento por adultos; e, por sua vez, suporta a autoconfiança dos alunos (iden dade). Com
isso, os jovens tornam-se progressivamente capazes de esboçar um projeto profissional realista, que
pode estar ligado à experiência passada e pode levar a uma ação viável (sen do). Veja, por exemplo,
a narra va do aluno a seguir.

Ta ana vai começar um aprendizado como assistente de hotel. Ela explica que inicialmente
queria se tornar uma fotógrafa, mas percebeu a dificuldade de encontrar um emprego. No final da
escola obrigatória, ela foi treinando como recepcionista em um hotel e disse para si mesma: "esse é
o meu sonho, me tornar uma recepcionista". Essa experiência poderia, de fato, estar ligada ao seu
passado, "é verdade, eu amo o luxo desde que eu sou criança; foi um sonho". Pode também ter
algum valor em relação ao gosto da jovem atual:
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É o único trabalho em que você está o tempo todo em contato com muitas pessoas, onde você pode
viajar (...) Eu amo trabalhar à noite, ter manhã, ter horário irregular; ser livre quando os
outros trabalham, trabalhar nos finais de semana, mas ainda assim poder dançar depois.

Ta ana começou seu pré-aprendizado pensando que isso a levaria a se tornar uma
recepcionista, um objeto que fazia sen do para ela, ligado ao seu passado e gostos. No entanto,
durante o programa de um ano, ela foi levada a perceber - provavelmente por um professor - que o
cargo de recepcionista exigia algum treinamento adicional na escola secundária que estava fora de
seu alcance. Assim, ela teve que reajustar seus sonhos às restrições reais e, assim, decidiu iniciar um
estágio de assistente de hotel que não exige treinamento adicional. No entanto, essa reconfiguração
forçada não impede Ta ana de conferir um novo sen do a esse novo objeto:

eu queria fazer um breve aprendizado, para poder fazer muitas coisas depois. Isso dura dois
dias e depois você pode subir. Você nunca fica no fundo. Por exemplo, o diretor de um
grande hotel foi inicialmente um cozinheiro - isso é loucura!

Como podemos entender a transição que ocorreu aqui? Temos pouca informação sobre
Ta ana; mas podemos propor que em um cenário anterior, ela foi levada em um prisma ligando-a ao
seu treinamento como recepcionista de hotel (objeto), e possivelmente, uma outra idealizada Como
podemos entender a transição que ocorreu aqui? Temos pouca informação sobre Ta ana; mas
poderíamos propor que, em um cenário anterior, ela foi levada em um prisma ligando-a ao seu
treinamento como recepcionista de hotel, e possivelmente, uma outra idealizada - uma recepcionista
que vive em luxo e viaja pelo mundo, fazendo assim sen do em relação aos seus sonhos de infância.
No entanto, no novo quadro proposto pela escola, poderíamos fazer a hipótese de que o prisma foi
reconfigurado graças à intervenção de outros - coordenador, professores, empregador. Esses outros
levaram-na a perceber o descompasso entre as demandas sociais (significado) da formação
profissional (objeto). O objeto é assim subs tuído por outro, "assistente de hotel", para o qual as
habilidades de Ta ana parecem validadas. Esse objeto, menos pres gioso do que o recepcionista,
não é, no entanto, prejudicial à sua auto-iden dade. Ao contrário, Ta ana é capaz de vincular esse
projeto a outro novo - o diretor de hotel que inicialmente era cozinheiro - e assim, através da
imaginação, dar um sen do pessoal a essa mudança: ainda se adapta a seu es lo de vida
pré-enviado.

Nessas reconfigurações progressivas, o ambiente ins tucional desempenha um papel


essencial de capacitação. Ele é projetado para criar uma ruptura; é fortemente estruturado,
permi ndo um espaço de pensamento acolhedor, no qual os adultos ajudam a jovem a adaptar seus
sonhos às demandas da realidade socialmente compar lhada; Por fim, estabelece pontes para o
mercado de trabalho para facilitar a concre zação de projetos. Não é apenas o ambiente
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ins tucional projetado para apoiar as transições, mas também, Ta ana parece ser capaz de usá-lo
como um recurso social essencial: ela pode confiar nele, adaptar-se a ele e é acompanhada por ele
quando tem que deixá-lo.

Caso 2: Retornando da Yeshiva

Um segundo exemplo é dado pelo caso de jovens religiosos judeus entrando em um


programa universitário secular, depois de terem estado por um ou dois anos em uma escola rabínica
em Israel (Zi oun, 2006c). Os dados foram coletados através da minha par cipação nas a vidades de
uma comunidade judaica universitária, bem como entrevistas com jovens no âmbito de uma
pesquisa sobre "o lugar da cultura em transições" (Zi oun, 2006b). Os jovens aqui considerados
cresceram em comunidades religiosas judaicas na Inglaterra, rela vamente protegidos de
não-judeus. Depois da escola secundária, eles passaram um ou dois anos em Israel, numa escola
rabínica, como faz a maioria dos jovens e algumas moças de sua geração de seu meio social. Tal
educação inclusiva é totalmente organizada em torno do estudo dos textos da tradição [a Torá (a
Bíblia), o Talmud (legislação religiosa e seus comentários)], orações, bem como as realizações de
boas ações. Para uma pessoa religiosa, estudo e oração são maneiras de melhorar e honrar a Deus.
Dias, semanas e meses são estruturados pela vida religiosa: oração e tempo de estudo, descanso e
refeições, rituais e feriados. A Yeshiva também oferece um forte sen mento de comunidade de fé e
des no, apoio emocional e emulação; questões prá cas - cozinha, lavanderia, etc. - são atendidas
por outras pessoas. Assim, nesse cenário, as pessoas recebem um espaço para viver de acordo com
seu conjunto de crenças e compromissos.

Depois de um ou dois anos neste ambiente protegido, os jovens são chamados de volta à
Inglaterra por suas famílias, que querem que eles estudem na universidade para conseguir uma
profissão. Os jovens religiosos que conheci descreveram essa mudança para a Inglaterra como uma
"separação", uma experiência que permaneceu dolorosa por muito tempo. Chegar à vida secular e
aos estudos pode, assim, ser iden ficado como ruptura; é percebido como forte por essas pessoas.
Isso pode ser por vários mo vos. Em primeiro lugar, muitos jovens não queriam deixar a Yeshiva, mas
o fizeram sob o pedido de seus pais; em segundo lugar, foi relatado que alguns rabinos à frente da
Yeshiva estavam encorajando os jovens a ficar lá (para se tornarem eruditos). Em terceiro lugar,
embora a Yeshivoth tenha ins tuído todo um ambiente acolhedor para os recém-chegados, parece
não se preparar para todos os jovens para deixá-los (Shaffir, 1997, 2000).

Vir estudar em uma universidade secular, baseada no cris anismo, implica primeiramente
uma mudança de ambiente sico. Lá, os judeus que retornam têm que aprender a acomodar sua
vida religiosa a um ambiente secular, a combinar estudos seculares com estudos religiosos e a ser
uma minoria em uma população muito diversa. Quais processos de transição foram necessários para
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se ajustar a esse novo cenário? Em primeiro lugar, a comunidade judaica e o capelão criaram
a vidades co dianas e semanais compar lhadas - orações, estudo, refeições - que criaram um
quadro difuso reminiscente da Yeshiva e também criaram um "espaço protegido" dentro da
sociedade secular. Em segundo lugar, se temessem que viver em um mundo secular pudesse colocar
em risco sua iden dade religiosa, os jovens perceberam que suas prá cas religiosas estavam na
verdade reforçando sua iden dade.

Como eles notaram, pra cando rituais e orações, a pessoa se torna uma pessoa religiosa. Um
jovem viu sua heurís ca do pensamento iden ficada por um professor como especificamente
"legalista", que é de fato o que a argumentação talmúdica é. Uma jovem percebeu que nha uma
a tude dis nta em relação ao conhecimento: a literatura era abordada com a mesma a tude
epistemológica que os textos religiosos, isto é, com a ideia de que o texto sempre tem algo a ensinar.
O conhecimento religioso poderia, assim, reforçar a iden dade, especialmente enquanto os contatos
com outros judeus fossem man dos, mas também, quando confrontados por não-judeus: os jovens
aprendiam a administrar sua diferença e a explicar a especificidade de seus hábitos alimentares. No
entanto, a principal questão sobre a qual eles nham que conferir sen do é a própria ruptura; e, por
isso, parece que o conhecimento religioso não poderia ser mobilizado. Isso foi uma surpresa para
mim, porque a tradição fornece às pessoas uma infinidade de histórias como metáforas úteis e com
um conjunto de regras hermenêu cas que permitem ligar qualquer evento a uma situação bíblica.
Nossa interpretação aqui foi que alguns dos chefes ortodoxos dos Yeshivas haviam condenado o
retorno dos jovens a uma vida secular e, assim, haviam invalidado a possibilidade de ligar objetos
como textos religiosos, com questões relevantes para o jovem. Curiosamente, quando os jovens
foram ques onados sobre outros elementos culturais que eventualmente facilitaram sua transição
para a vida secular, esses jovens mencionaram livros ou romances de auto-ajuda. Por exemplo, Eli
havia sido ques onado sobre suas escolhas literárias:

agora, eu estava falando sobre esse po de dificuldade para conseguir um equilíbrio entre todos os
aspectos da vida. The Glass Bead Game [por Herman Hesse] - (...) basicamente, há uma
espécie de faculdade em uma colina, completamente isolada de tudo o mais, onde as
pessoas lá estão muito envolvidas em um po de aprendizado esotérico, que é di cil para
entender, o que é e que po de impacto tem em qualquer outra coisa, e depois novamente
no mundo externo, obviamente. E há um personagem nele, que está realmente firme em um
mundo, e ele sente a tensão entre o mundo único e o outro mundo. (...) E isso, quero dizer,
eu realmente li que, em termos de ter ido à Yeshiva e vindo para a Universidade, obviamente
não havia paralelos exatos, mas eu podia me relacionar com isso muito fortemente. Erm - e,
eu não acho que o livro realmente ajudou a resolver o conflito, o conflito real, ele realmente
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não ajudou, mais ou menos, demonstrou as diferenças, eu acho - mas ajudou. É bom saber
que outras pessoas estão pensando as mesmas coisas que você. (Eli)

No Glass Bead Game, o personagem principal tem sido um estudante brilhante escolhido
para entrar em uma escola remota, onde um conhecimento obscuro, mas esotérico, é estudado. O
personagem principal acabou decidindo retornar ao mundo mundano, e há um longo caminho para
ele definir seu lugar ali, e o status de seu conhecimento especial. Semelhanças podem ser
encontradas entre a história de Eli e o romance: estruturalmente (a história de retorno),
seman camente (sendo escolhido para ser o detentor de um conhecimento raro) e emocionalmente
(ansiedade, orgulho e solidão) uma forte ressonância entre vida e texto pode Ser criado. O texto
pode ser inves do emocionalmente e fornece à Eli sua estrutura transformadora. Assim, o texto
oferece uma linha narra va que liga dois mundos divididos. O texto aparece como um recurso
simbólico usado por Eli para elaborar sua experiência de voltar.

Neste segundo estudo de caso, ao contrário do primeiro caso, o cenário ins tucional da
Yeshivá não facilitou a saída do jovem, em primeiro lugar, não fornecendo os recursos prá cos ou
sociais que poderiam facilitar isso, e segundo, fazendo o conhecimento em si não u lizável. No
cenário da Yeshiva, os jovens estão lidando com um objeto, o texto religioso, com a validação do
rabino, o outro, que o ajuda a fazer um sen do pessoal dele, sen do que está harmonizado com as
demandas situacionais, que de se tornar um religioso, Deus honrando o judeu. Com a mudança de
cenário, os jovens ainda têm como objeto os textos religiosos ao abordarem a questão a que têm
que conferir sen do - vivendo no mundo secular. No entanto, as figuras interiorizadas desses rabinos
condenam tais questões, porque condenam o cenário secular. Portanto, o outro invalida o uso do
objeto religioso para conferir sen do à ruptura. Somente depois de um certo tempo no novo
cenário, depois que o capelão da universidade criou uma estrutura e um relacionamento
suficientemente bons com os jovens religiosos, o capelão poderia ocupar o lugar anteriormente
ocupado pelos ex-rabinos como outro significa vo. Graças a seus usos "modernos" de textos
religiosos, ele ensinou e autorizou jovens religiosos a usar textos religiosos para ques onar questões
seculares pessoalmente relevantes. Além disso, depois de um certo tempo, os jovens poderiam,
como Eli, se sustentar através de suas transições, alterando os objetos, subs tuindo textos religiosos
por literatura. Com estes, eles eram muito mais livres para ques onar e conferir sen do a qualquer
coisa relevante para eles e não cobertos pela Bíblia como eles costumavam entender. Finalmente,
tais relacionamentos com novos objetos de conhecimento permi ram que alguns judeus religiosos
repensassem seu relacionamento com os outros e consigo mesmos - isto é, sua iden dade. Eli,
portanto, explica que ele percebeu que a tradição judaica também encorajou um equilíbrio entre a
vida religiosa e secular, e a abertura para diferentes pessoas e outras formas de conhecimento.
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Assim, não mais uma ameaça de iden dade, o novo sen do conferido a outra alteridade torna-se um
enriquecimento de iden dade. Nesse segundo exemplo, então, o primeiro ambiente ins tucional,
altamente estruturado, parece impedir transições. A segunda é recriar parte da condição estrutural
da primeira, estando também aberta para o exterior. Além disso, uma vez que eles estão em uma
ins tuição que permite a exploração pessoal, os jovens encontram recursos simbólicos adicionais
para suas transições para completar o que é fornecido pelo ambiente.

Caso 3: Vivendo com guerra

A guerra impõe grandes rupturas na vida das pessoas. Durante a Segunda Guerra Mundial,
uma jovem recolheu seus pensamentos em seu diário que enviou ao projeto de Observação em
Massa com o obje vo de documentar a vida das pessoas na Inglaterra (Bloome, Sheridan & Street,
1993) e analisamos como parte de um projeto colabora vo ( Gillespie, Cornish, Aveling e Zi oun,
2008; Zi oun, Gillespie, Cornish, & Aveling, 2008). Em tal situação de ruptura criada por um governo,
muitos elementos culturais e suportes sociais são intencionalmente criados para facilitar a vida das
pessoas: panfletos oficiais sobre questões específicas de guerra (ataques aéreos, abrigos),
propaganda através de cartazes, rádio e filmes des nados a reforçar a moral, educação de adultos
(WEA) e a vidades de lazer para jovens, como bailes e teatro. A jovem, que chamamos de June, é
bastante recep va a esses vários discursos, mas realmente se envolve apenas com alguns desses
elementos culturais, que ela usa como recursos para facilitar suas próprias mudanças. Além disso, o
intercâmbio social e a intensa discussão com suas comunidades veram um papel importante em
suas transições (Gillespie et al., 2008).

June costumava morar em uma comunidade unida na costa leste da Inglaterra, com a irmã e
a mãe, onde trabalhava na garagem da família. Seu lazer era gasto na praia, jogando tênis ou lendo.
Quando a guerra começa, seu envolvimento no projeto de Observação em Massa junto com sua irmã
a localiza imediatamente como uma "observadora em massa", uma posição que ela manterá durante
a maioria dos períodos da guerra. Essa posição é definida em relação à figura meio real e meio
imaginária de Tom Harrison, um dos líderes da Mass Observa on, de quem ela leu a biografia e
acompanhou cada intervenção pública. Sua presença também legi ma ações realizadas como
diaristas de guerra, como falar com estrangeiros, visitar lugares, etc. Juntamente com essa
iden dade está o projeto enraizado na família de June de que uma guerra só é jus ficada se ela
pretende acabar com todas as guerras futuras; e uma das maneiras, embora isso possa ser feito, é a
educação - é aqui que a guerra pode fazer sen do. Assim, June se engaja nas aulas de WEA e cursos
de verão, onde aprende sobre a história da Alemanha e da Itália, polí ca européia, etc. Aqui, a
ruptura inicial que é a guerra se torna aceitável uma vez que a iden dade da pessoa mudou se
tornando uma observadora em massa. na 'presença' da figura de Tom Harrison. A história da Europa
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e suas guerras, assim como a história atual (criada pela observação em massa) tornam-se recursos
que conferem sen do à atual experiência de guerra de June, sendo ligadas a uma história
transgeracional, mediada pela figura de Harrison idealizada.

Mais tarde, a guerra foi concre zada para June, como para todas as mulheres na Inglaterra,
através da obrigação de se juntar ao esforço de guerra, e após extensas discussões com sua
comunidade; June tornou-se uma trabalhadora da terra em jardins agrícolas, longe de casa. Apesar
de June ser exposta a propaganda jus ficando tal mudança de cenário, que pode ser usada para
torná-lo significa vo, June encontra apoios em livros que empresta de bibliotecas locais. Ela começa
a apreciar textos literários que descrevem a beleza das paisagens, ela lê sobre agricultura,
desenvolvendo seu conhecimento teórico que acompanha as ações em que ela está agora envolvida.
É através do confronto com os outros, que estão mais próximos de quem ela costumava ser, que June
toma consciência do seu reposicionamento de iden dade. Por exemplo, como ela trabalha como
jardineira, torna-se mais di cil frequentar a EA. conferências. No entanto, ela finalmente atende a
um par destes e comentários:

Nós resolvemos sair à noite, então peguei o ônibus para G & fui para um W.E.A. classe. Economia na
[sic] Reconstrução. Esta aula foi sobre Produção e terminou com condenação por atacado do
governo e falhas de guerra. Havia cerca de 15 na turma uma amostra mista de moradores da
cidade. Entramos em nossos uniformes de trabalho e causamos bastante sensação com a
lama do solo ainda presa aos nossos sapatos (02.42).

A maneira como June fala sobre essas conferências contrasta com seus comentários
anteriores. Assim, W.E.A. o conhecimento, para o qual sua posição mudou, torna-se um recurso para
refle r e realizar sua nova iden dade como mulher trabalhadora da terra, no confronto com outros,
não trabalhadores. A par r de um discurso inicial, abstrato e orientado para o futuro, sobre o fim de
todas as guerras, June tem agora um discurso muito mais preocupado com a posição das mulheres.
Assim, ela relata uma reunião com outros trabalhadores:

As mulheres jardineiras parecem, em geral, aparentar piores que as professoras. Havia cerca de 25
presentes. Foi bastante interessante, principalmente sobre a necessidade de unidade nas
mulheres trabalhadoras da terra agora preparadas para depois da guerra. Embora tenha sido
acordado que os homens que retornam das forças precisariam de uma primeira consideração
pelos empregos, etc. as mulheres não devem ser esmagadas na cultura agro-hor cola
(01.43).

De fato, muitas novas experiências vividas por June ques onam suas expecta vas iniciais
sobre o que é a vida, valores, trabalho e relacionamentos normais de uma mulher com os homens
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(Zi oun, Aveling, Gillespie e Cornish, no prelo). Esse grupo de discussões pode estar desencadeando
o surgimento de uma nova narra va e projetos para a vida pós-guerra. Neste terceiro estudo de caso,
é menos a guerra como um todo que é sen da como ruptura, do que as diversas realocações sociais
e geográficas através das quais ela se torna concreta na vida de June. Estes requerem importantes
mudanças de a vidade e de rede social, e através destes, posição social, iden dade, orientação de
vida e sen do conferidos aos eventos. Para a primeira transição, como a guerra interrompe a vida
normal da comunidade, uma primeira configuração é estabelecida, que imediatamente confere a
June uma iden dade de observador em massa, sob a outra que é a diretora da Mass Observa on, e
que a leva a a vidades de aprendizado e escrita ( objetos) que todos contribuem para o sen do que
ela confere à guerra. No caso da segunda transição, a reconfiguração começa com o fato de que, em
seus novos cenários, June trabalha principalmente nos campos e, assim, desenvolve novos
conhecimentos agrícolas, objetos que subs tuem em parte seus objetos de conhecimento anteriores
preferidos. Através de confrontos com outros novos, ela percebe que seu relacionamento com seus
objetos de conhecimento do passado mudou e que sua iden dade é diferente; então o senso de
guerra também é diferente.

O que facilitou tais transições? Embora o governo ofereça muitas formas de conhecimento
cultural des nadas a facilitar o ajustamento das pessoas à guerra, os recursos de June são bastante
sele vos. Sua primeira transição - decorrente da guerra que atrapalhou a comunidade local - é
parcialmente apoiada pelas intensas discussões de June com sua rede relacional. Além disso,
conhecimentos históricos, romances e filmes são usados como recursos simbólicos. A segunda
transição é parcialmente apoiada por usos de recursos simbólicos, usados de diferentes maneiras: o
conhecimento histórico é usado como um recurso para ques onar a posição social de alguém. Além
disso, as discussões compar lhadas apoiam a criação de sen do alterado. Além disso, os dados aqui
apresentados baseiam-se no diário de uma jovem mulher: é provável que escrever um diário, quase
diariamente ao longo dos cinco anos da guerra, seja em si um recurso importante. Fornece a June
um "espaço de pensamento" e um senso duradouro de con nuidade além das rupturas; apóia seu
pensamento sobre passado e futuro; através da escrita, permite a simbolização e o distanciamento
da experiência e, portanto, a autorreflexão etc. (Wiener, 1993).

Instituições em transições

Tentamos descrever três pos de transição em termos semelhantes. As pessoas estavam


enfrentando rupturas que, de alguma forma, foram impostas - um programa educacional para
desistentes, voltando da Yeshiva, vivendo em guerra -, mas em face do qual as pessoas nham
alguma margem de liberdade em termos de reinterpretação: optando por se comprometer. um ano
de estudos, aceitando abrir-se para o mundo secular, ou escolhendo suas posições e compromissos
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diante da guerra. Essas transições ocorrem dentro e fora das ins tuições de ensino nos dois
primeiros casos, e dentro do espaço social e suas ins tuições estatais no terceiro caso. A primeira e a
segunda ins tuições têm semelhanças estruturais: ambas provavelmente exigem que as pessoas
experimentem a ruptura quando entram na ins tuição; elas proporcionam um ambiente coeso, um
forte sen mento cole vo, adultos significa vos comprome dos, e um ambiente simbólico e de
tempo fortemente regulamentado - o primeiro não sendo, no entanto, abrangente - e forte ligação
emocional entre os par cipantes. Eles, portanto, fornecem principalmente dois pos de recursos. A
estrutura simbólica de um ambiente social (suas regras, ritos e ro nas) pode se tornar um
importante recurso social, pois dá um quadro externo no qual se pode sen r protegido enquanto
muda e que pode ser parcialmente internalizado (Grossen & Perret-Clermont, 1992). Várias
modalidades de interação podem ocorrer em discussões em grupo e relações específicas com outras
pessoas significa vas: co-construção, imitação, emulação, etc; tais dinâmicas podem promover o
trabalho de transição, como o trabalho de iden dade e a aprendizagem, e são, portanto, outros
recursos sociais. A diferença radical entre as ins tuições apresentadas nos dois primeiros casos é que
a primeira é abertamente e principalmente organizada em torno da próxima transição das pessoas
(isto é, sua entrada no mercado de trabalho), enquanto a segunda é organizada de forma a reter
tanto quanto possíveis pessoas dentro de uma comunidade. O terceiro caso tem em comum com o
primeiro seu obje vo de facilitar as transições das pessoas - aqui, lidando com as rupturas e
mudanças impostas pela guerra. As ins tuições do Estado, assim, fornecem às pessoas vários
recursos que são mais ou menos formais (propaganda, informação, educação de adultos, meios de
comunicação de massa) que visam claramente apoiar as iden dades das pessoas, capacidades para
agir e fazer sen do. Estes, como os romances do segundo caso, podem se tornar recursos simbólicos
(Zi oun, 2006b).

Podemos dar um passo à frente e tentar entender o que, nessas três ins tuições, facilita ou
restringe os usos de recursos que facilitam a transição. Em primeiro lugar, elementos culturais que
podem se tornar recursos simbólicos estão disponíveis e mais ou menos alcançáveis em um
determinado contexto. A pré-aprendizagem escolar criou cursos para fornecer aos alunos
habilidades que eles não teriam ganho de outra forma; June lê romances e encontra conforto neles,
desde que ela tenha acesso a bibliotecas públicas durante os tempos de guerra. Além disso, as duas
primeiras ins tuições tendem a promover um discurso, um conjunto de elementos culturais,
enquanto no tempo de guerra, as ins tuições do Estado difundem muitos discursos. Essa pluralidade
de vozes convida a uma maior refle vidade e uso consciente dos recursos (Zi oun et al., 2008). Em
segundo lugar, para ser realmente usado, esses elementos muitas vezes precisam ser mediados:
formas específicas de relacionamentos podem, portanto, torná-las acionáveis (Cornish, 2004). O
coordenador dos pré-aprendizes orienta e valida todo o seu progresso; June discute com toda a sua
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comunidade sobre os panfletos de guerra oficiais para decidir como usá-los; ela dirige seu diário para
a figura internalizada de Tom Harrison, que legi ma seu empreendimento de escrita. Em contraste,
os rabinos Yeshivá não permitem simbolicamente usar textos religiosos como recursos além da
Yeshiva, pois eles não legi mam a vida secular. Estas validações por um outro endereço significante
sempre, ao mesmo tempo, a posição de iden dade da pessoa (por exemplo, você pode ser um
observador em massa, você não pode ser um judeu assimilado, você pode começar uma carreira a
par r da base da escala ). A avaliação de um outro importante pode ser internalizada e interpretar a
iden dade e o sen do da pessoa conferidos aos eventos. Esses processos de iden dade também
afetam de maneira importante as habilidades subsequentes que a pessoa exibirá ou desenvolverá
em conexão com um objeto específico de conhecimento: ler romances que apóiem a autorreflexão,
engajar-se nas prá cas reais de aprendizado para iniciar um aprendizado, aprender a agricultura em
uma escola de verão em Cambridge. Finalmente, esses vários efeitos intera vos e de
enquadramento, bem como a dinâmica de iden dade e sen do, podem apoiar ou não os pos de
processos necessários para a transferência de habilidades ou conhecimentos de um ambiente para
outro. De fato, as transições sócio-espaciais podem requerer a a vação de habilidades desenvolvidas
em outro referencial: os pré-aprendizes aprendem nas habilidades escolares a servir café no local de
trabalho, e depois precisam usá-los lá; os estudantes religiosos aprendem habilidades hermenêu cas
nas aulas religiosas, mas o desafio é que eles realizem essas habilidades em outros pos de textos.

Assim, as dinâmicas ins tucionais desempenham aqui um papel fundamental: todo o


ambiente de pré-aprendizado é organizado para levar os estudantes ao mundo profissional, e isso
através das próprias modalidades de suas a vidades diárias; Em contraste, como ins tuição, uma
Yeshiva geralmente é aberta ao mundo externo quando visa acolher recém-chegados e facilita suas
transições dentro da escola, mas é organizada de modo a desencorajar as pessoas a sair. Isso tem
consequências no acesso direto das pessoas ou na capacidade de usar recursos para suportar
processos de transição.

Transições no desenvolvimento

Se há uma longa tradição de estudar rupturas na vida das pessoas para ter acesso a
processos de desenvolvimento, este trabalho se concentrou na dinâmica de transição que pode ser
desencadeada por tais rupturas. Propõe-se ver a mudança no nível de reconfiguração das relações
semió cas em constante movimento, unificando a perspec va de uma pessoa sobre um objeto, o
sen do que ele adquire para ela e o significado que ele pode ter para outra pessoa, presente ou na
mente. Tais reconfigurações também implicam constantes reajustamentos da iden dade e
habilidades da pessoa. As dinâmicas interpessoais e intrapessoais envolvidas em tal reconfiguração
estão sempre ocorrendo em locais sociais e ins tucionais específicos, que podem materialmente e
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simbolicamente restringir e guiar a mudança da pessoa. Assim, se as transições são, em úl ma


análise, os processos através dos quais a mudança e o desenvolvimento podem ocorrer, então as
ins tuições cujo obje vo é apoiar a aprendizagem e o desenvolvimento dos jovens devem prestar
atenção às formas em que apoiam ou não os processos de transição dentro de suas estruturas, para
seus quadros, ou fora deles.

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