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QUARESMA CARTUSIANA

(Por um cartuxo)

Finalidade da Quaresma

Para o monge cartuxo, aliás como para todo e qualquer cristão, a finalidade última de toda a Quaresma é
ser uma preparação para a Páscoa. Não para um simples ver, recordar e presenciar em espírito a Paixão e
Ressurreição do Senhor, senão para ter nelas uma vivificante “participação”, uma real “comemoração”, que nos
permita retomar a vida cristã, se porventura estava perdida ou cortada, ou intensificá-la ao máximo se vivida com
sinceridade.

A meta dessa vital “comemoração” será uma “vida nova” com Cristo, que ficará plasmada: numa maior
intimidade com Ele, numa efectiva renúncia a Satanás, às suas obras e pompas e numa fidelidade sempre
crescente a Cristo. É por isso que no cume da Grande Vigília Pascal renovaremos as nossas promessas baptismais
e votos monásticos.

Normas estatuárias

Para compreendermos a vivência quaresmal cartusiana, nada melhor do que lembrarmos alguns pontos dos
Estatutos em que se expressa a dimensão cristológica do monaquismo cartusiano. A vida do monge não pode ficar
numa mera e pessoal contemplação admirativa do Mistério de Cristo, embora se pense que ela está cheia de amor.
Não basta só a contemplação interior. Esta deve manifestar-se também externamente para que tenha realmente
uma dimensão cristológica. É por isso que os Estatutos Cartusianos vão traçando desde o começo até o fim
aspectos concretos da nossa vida e observância em que devemos imitar a Cristo.

A respeito da nossa vivência quaresmal, mencionemos só estes pontos claves:

- “O próprio Jesus, cuja virtude não podia encontrar apoio no retiro nem obstáculo na sociedade dos homens,
contudo, para nos instruir com o seu exemplo, antes de começar a sua pregação e os seus milagres, quis submeter-
Se em certo modo a uma prova de tentações e jejuns na solidão. dEle refere a Escritura que, deixando a multidão
dos discípulos, subia sozinho ao monte para orar. E, quando já estava iminente o tempo de Paixão, deixou os
Apóstolos para orar a sós, dando-nos com isto o melhor exemplo de quanto a solidão favorece a oração, pois não
quer orar acompanhado, nem sequer dos seus Apóstolos” (Est. Prólogo, n. 9).

- “Não devemos passar aqui em silêncio um mistério que merece toda a nossa atenção: foi ele, o Senhor e
Salvador do género humano, que Se dignou mostrar-nos em sua própria pessoa o primeiro modelo vivo da nossa
Ordem, quando, a sós no deserto, Se entregava à oração e a exercícios da vida interior, macerava o corpo com
jejuns, vigílias e outros frutos de penitência e vencia as tentações do inimigo com as armas do espírito”(Ib. n. 10).

- “Cristo sofreu por nó, deixando-nos o exemplo, para que sigamos os seus passos. Assim fazemos quando
aceitamos as provas e angústias da vida e quando, na liberdade dos filhos de Deus, abraçamos a pobreza e
renunciamos à vontade própria. Mas, segundo a tradição monástica, devemos também seguir a Cristo no seu
jejum do deserto, castigando o corpo e mantendo-o em servidão, para que a nossa alma resplandeça com o desejo
de Deus” (Est. c.7. n. 1).

- “Observamos a penitência corporal não apenas para obedecer aos Estatutos, mas sobretudo para que, libertos dos
desejos carnais, possamos seguir mais prontamente o Senhor” (Ib. n. 3).

A Quaresma cartusiana

Embora os textos transcritos deixem bem traçado o caminho que o monge cartuxo deve percorrer durante a
sua Quaresma, todavia digamos duas palavras sobre essa Quaresma cartusiana; não no sentido que esta seja
diferente da Quaresma de todo o cristão, mas sim pelo facto que ela traz todos os anos uma peculiar “mensagem
litúrgica” para quem a vive intensamente.

De facto, é daqui que brotaram as diversas práticas quaresmais nas Ordens monásticas de todos os tempos,
proporcionando ou impondo aos monges meios especiais para essa tarefa: retiro mais intenso, leituras, orações
especiais, abstenção de visitas e correspondência epistolar, penitências corporais, mortificação interior…Se a
santidade foi e é sempre incompatível com a satisfação dos sentidos e apetites, é evidente que a mortificação
corporal e espiritual impõe-se a todo o aspirante à santidade. Pretender santificar-se doutro modo seria uma ilusão,
uma quimera.

Práticas cartusianas

Na Cartuxa, os Estatutos encarregam-se de dar certas normas práticas para a vivência quaresmal. Assim
por exemplo, como especial oração quaresmal recitamos todos os dias o sete Salmos Penitenciais com as
Ladainhas dos Santos, e cada dia, menos aos domingos, recitamos, nas Vésperas, o salmo 50, eminentemente
penitencial. No plano dos jejuns, temos o “jejum da Quaresma”. Este consiste em tomar uma só refeição forte, ao
meio-dia e uma ligeira colação pela tardinha. Nas sextas-feiras o jejum é pão e água para aqueles que podem fazê-
lo. Além da abstinência perpétua de carne, na Quaresma acrescentamos a abstinência de lacticínios, quer dizer, do
leite e seus derivados.

Não é preciso dizer que todos devem estar abertos à inspiração do Espírito Santo, para o caso de Este sugerir ou
pedir algo especial. Contudo, a tradição monástica sempre teve em conta o inconveniente que pode existir nas
penitências voluntárias não regulares e nos fervores indiscretos. De facto, o demónio não tenta o monge só com
coisas más, mas também com coisas boas: mais rigor, mais mortificação, maiores penitências corporais… Os
Estatutos cartusianos, seguindo nisso as normas de Cassiano e depois aceites pela Regra do Mestre e de São
Bento, advertem claramente: “Nenhum de nós se entregue a exercícios de penitência além dos indicados nestes
Estatutos, sem o conhecimento e a aprovação do Prior. Mas, se este quiser fazer a algum de nós uma concessão
em alimento, sono ou qualquer outra coisa, ou impor algo duro e penoso, não temos o direito de recusar, não
aconteça que, resistindo-lhe, estejamos a resistir, não a ele, mas ao Senhor, de quem ele faz as vezes junto de nós.
Por numerosas e variadas que sejam as nossas observâncias, não esperamos delas qualquer proveito sem o bem da
obediência” (c. 7. n. 8).

A colaboração pessoal

Na almejada transformação quaresmal, a parte principal, não era preciso indicá-lo, pertence a Deus, à
acção do Espírito Santo. Contudo, essa acção divina não prescinde, antes reclama a colaboração ascética do
monge. Em consequência, este procurará a purificação:

- da mente, através duma oração mais intensa, para entrar melhor no pensamento de Deus; quer dizer, na aceitação
do Seu querer a respeito de nós. É a “metanóia” que pregava o Baptista como preparação para o reino de Deus;

- do coração, mediante a abnegação de nós mesmos e a mortificação das nossas tendências pecaminosas. É do
coração donde sai todo o mal que fazemos (cf. Mt 15. 18-19);

- do corpo, através da mortificação corporal que nos ajuda a nos libertar da lei do pecado que vive em nós. Esta
mortificação está reclamada também pelos pecados dos membros do Corpo Místico a que pertencemos.

O melhor meio quaresmal.

“O monge é um “ser litúrgico”, não pelo seu “fazer”, senão pelo seu “ser”; quer dizer, não por seguir passo
a passo o desenvolvimento exterior da Liturgia, senão por assumir interiormente o mistério litúrgico como
conteúdo total da sua vida e modelo da sua contemplação” (A Igreja em plenitude, p.198).

Por isso dizemos que o melhor meio para viver a Quaresma é a íntima vivência da liturgia quaresmal. Os
Estatutos lembram-nos: “Em todas as celebrações litúrgicas Cristo ora por nós, como nosso Sacerdote, e em nós,
como nossa Cabeça, de tal modo que reconhecemos n’ Ele as nossas vozes, e em nós a Sua” (Est. 3. 7). “Os
monges, quando celebram o Oficio divino, são a voz e o coração da Igreja. É ela que, por eles, apresenta ao Pai,
em Cristo, o culto de adoração, louvor, suplica, e humildemente pede perdão para os pecados. Esta função de
tanta importância, os monges exercem-na em toda a sua vida; mas a um título mais explícito e público, na santa
Liturgia”(Id. 21. 8). “O propósito da nossa vida monástica compromete-nos a estarmos sempre vigilantes na
presença de Deus; eis porque a nossa vida inteira é como uma liturgia que, em certos momentos se torna mais
manifesta, quer levemos diante de Deus a oração oficial da Igreja, quer sigamos o movimento do nosso coração. É
sempre o mesmo Senhor que, em nós, exerce o seu sacerdócio, rezando ao Pai no único Espírito” (ib. 15).

Os elementos da liturgia quaresmal cartusiana (antífonas, responsórios, leituras, melodias, etc.) formam
realmente uma obra de arte, uma jóia do carisma oracional da Igreja. Nós conservamos a celebração do Ofício
Divino tal como no-la legaram os nossos fundadores (1084), com os seus esquemas e formulários, mas com
preciosos enriquecimentos aportados com a renovação litúrgica do Vaticano II, principalmente pelo que se refere
as leituras.

A respeito destas, três semanas antes da Quaresma iniciamos já a leitura do Pentatéuco, como princípio da
História da salvação, até a primeira semana da Paixão. Nas duas semanas da Paixão, em que a celebração litúrgica
contempla em cheio o mistério redentor no aparente triunfo das forças do mal, lemos o livro de Jeremias e as
Lamentações. No último sábado de Paixão, a liturgia cartusiana evoca e revive a presença de Maria SS. na Paixão
do seu Filho mediante uma festa especial com rito de 12 leituras, em honra da Mãe Dolorosa: é chamada
“Compaixão de Nossa Senhora”.

As leituras são 12 aos domingos e três nos dias ordinários e cada uma tem um Responsório tirado das
diversas histórias apresentadas nas leituras. É um abundante alimento espiritual que encontra o seu complemento
nas preces e diversas orações das diferentes Horas canónicas. No rito cartusiano conservamos todas as Horas
menores.

Na alegria do espírito.

Nosso Senhor dizia: “Quando jejuardes, não mostreis um ar tristonho” (Mt 6. 16). Talvez daí brote este
detalhe interessante da Quaresma: a frequente advertência de que a alegria cristã deve acompanhar toda nossa
travessia quaresmal. Com efeito, são muitas as orações ou colectas em que a Igreja pede para seus filhos “uma
alegre penitência”, um “jejuar com alegria” e outras numerosas expressões semelhantes. É que a penitência cristã
vai acompanhada da alegria do espírito que gera uma doce e tranquila confiança na misericórdia do Senhor. E a
Quaresma cria uma dupla alegria: a alegria do dever cumprido, dedicando a Deus de modo especial este tempo
quaresmal a Ele consagrado; e a alegria da esperançosa Páscoa que esperamos como triunfo da vida de Jesus e
como vitória da graça divina sobre o mal que reside em nós. É certo que a Quaresma não deixa de ser “um
sacrifício”; mas por ser “voluntário” e oferecido com amor e generosidade, torna-se “em santa e alegre devoção”.
Aliás, sendo a Páscoa a fonte da alegria cristã, é natural que nos aproximemos dessa fonte com gozo e que
percebamos já um gosto antecipado da mesma.

O cartuxo não vive a sua Quaresma como “tempo de tristeza”, mas sim de alegria e esperança porque,
como filho de Deus, coloca n’ Ele a origem, a fonte de toda a sua felicidade. Se a Liturgia quaresmal nos leva
pelo caminho da Cruz, é para nos ensinar que esse caminho é também o nosso. Cristo tem vencido na Sua luta
contra o pecado e a morte, e o poder vitorioso da Sua vida e do Seu amor nos é comunicado na celebração
sacramental do seu Mistério renovado na Liturgia.

Temos razão em nos gloriarmos na Cruz de Cristo. O rosto exprime o gozo que vai no coração, e o ardor
do coração penetra todo o homem e lhe comunica forças “para dar com alegria” a observância quaresmal: “Deus
ama a quem dá com alegria” (2 Cor 9.7). E assim se prepara o cartuxo para tomar parte na Ressurreição do seu
Senhor. “Vem, Senhor Jesus” (Ap 22. 20).

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