Você está na página 1de 7

Ensaio sobre a loucura

ENSAIO SOBRE A LOUCURA

Essay About Madness


Carla Regina Françoia1

Resumo
Esse ensaio tem como objetivo apresentar uma breve passagem sobre as várias formas de entendimento da
loucura, desde seus eventos na Antiguidade, sua visada trágica, seus aspectos demoníacos até chegar no que
hoje se traduz por uma compreensão orgânica do estatuto do mental. Ao final desta trajetória, incluir o
entendimento de Jacques Lacan no que se refere à possibilidade da constituição humana e sua relação com
o evento da loucura. Esta, na teoria desse autor, passa a ser vista como o sentido que o homem pode dar
ao mundo que o cerca e, também, como uma expressão exagerada daquilo que compõe a gênese do eu no
homem, a saber: a identificação a uma imagem que, a princípio, o aliena e, depois, o constitui. A conclusão
deste ensaio será apresentada pelo viés da atual concepção de loucura e como isto interfere na possível
reforma psiquiátrica que o sistema de saúde brasileiro quer promover.
Palavras-chave: Loucura, Lacan, psiquiatria, gênese do eu, história.

Abstract
This essay intends to present a short passage about all of the ways of the understanding of madness, since
its events on the ancient times, its tragic sought, its demonic aspects until its evolution to what, nowadays,
can be understood as an organic comprehension of mental statute. In the end of this trajectory, its intended
to include Jacques Lacan’s understandings, which are related to human constitution’s possibility and its
connexion with the event of madness. This, in its author’s theory, becomes to be seen as the explanation men
can give to the world around him, and also, as an exaggerated expression of what composes the “me” genesis
in the men: the identification of a image that first makes him alienated and after, gives him a support. The
conclusion of this essay will be presented by the oblique directions of actual conception of madness and how
it interferes in the possible psychiatry reform that Brazilian’s Heath System intends to provide.
Keywords: Madness, Lacan,psychiatry, me genesis, history.

1
Psicanalista, Especialista em Filosofia pela UFPR; Mestranda em Filosofia pela UFPR.
Endereço para contato: R: Senador Xavier da Silva, 488 cj. 204 – Centro Cívico – Curitiba-PR. CEP 80530-060.
E-mail: carrefran@hotmail.com

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005. 45


Carla Regina Françoia

Muito se discute, nos dias de hoje, com a corpo, tudo era poder divino; segundo, o homem
reforma do sistema psiquiátrico, o que fazer com assumia a responsabilidade pelas suas ações, e,
pacientes que estão encerrados nestes espaços, até, punia-se por elas, por mais que tivessem sido
anteriormente denominados asilos, pois não ha- por interferência dos deuses. “Cada ato insensato
verá, fechando tais hospitais, onde confiar o louco é produto de uma atê causada, produzida por Zeus,
e a sua loucura. É impressionante o rechaço que o derivada dele como uma filha” (Pessotti, 1995, p.
homem sofre, desde outros tempos, caso seja por- 17). O comportamento louco tinha como etiologia
tador de síndromes, transtornos, manias, depres- a mitologia que explicava a influência das entida-
são, entre outras formas da manifestação louca, des divinas, ou outras entidades a serviço dos deu-
que transforma toda a estética da vida num horror ses, na causa dos eventos que levava ao delírio,
para quem olha e, por isso, precisa ser tirado do suicídio, homicídio, transgressão das normas soci-
alcance do olhar. Houve, no entanto, um momen- ais entre outros comportamentos desajustados.
to em que a loucura era desígnio divino, efeito Grosso modo, pode-se inferir que o homem aceita-
demoníaco ou obra de arte e cada uma destas for- va seu desígnio, seu destino, afinal, era a vontade
mas de explicá-la traz consigo uma época diferen- dos deuses e homem algum escapava desta fúria.
te, mas a mesma característica no que concerne à Seguindo o desenvolvimento dos fatos,
resistência em relação a aceitação do homem lou- houve uma importante alteração epistemológica
co. É o que privilegia este ensaio: menos um le- em relação a esta concepção mitológica do louco.
vantamento histórico e mais um apontamento – Os trágicos acrescentaram ao desígnio divino os
deveras humilde, pois se trata de um ensaio e isto conflitos passionais. Surge um modelo psicológi-
já trás, em si, seus limites – da posição em que se co-passional, como afirma Pessotti (1995), de per-
encerrava o louco nas diferentes épocas e, a poste- ceber o alienado. Isto quer dizer que o homem
riori, como a atualidade lida com esse efeito de passou a ser visto como um ser que traz em si os
causas tantas vezes já discutidas. Com efeito, será eventos, furiosos ou medrosos, como resultado dos
trabalhado, mais pormenorizadamente, um artigo seus apetites. A vontade divina ainda atuava sobre
de Jacques Lacan que apresenta, exclusivamente, a sorte do homem, mas a loucura como comporta-
uma forma outra de compreensão da loucura – mento – como efeito de uma causa tal como ciú-
isso não quer dizer que a psicanálise lacaniana me, ódio, homicídio, entre outros – acontecia por-
será tratada no presente ensaio, apenas esse artigo que o homem passou a ser compreendido como
citado que guiará nosso entendimento atual da um ser dotado de capacidades psicológicas. Já com
loucura. as formulações de Hipócrates (460 – 377 a.C.) gran-
Na Antiguidade a loucura era vista, no de médico da Antiguidade, houve uma exclusão
comportamento humano, devido a uma vontade total da explicação mitológica da loucura e o lou-
dos deuses, todavia, esse período governado pelo co passou a ser compreendido – por uma doutrina
Olimpo apresentava uma contradição no que se que terá influência durante muito tempo na com-
refere ao homem e a sua obediência ao divino. preensão da loucura – como portador de um de-
Pois, as vontades divinas interferiam nas atitudes sarranjo da sua natureza orgânica em conseqüên-
humanas na mesma proporção em que o homem cia do desequilíbrio das forças das condições am-
assumia a responsabilidade pelo descontrole emo- bientais. Dessa forma, nasceu uma visão organi-
cional. Segundo Pessotti (1995), os deuses agiam cista da loucura que se tornou uma doença do
“(...) decidindo soberana o curso das coisas e dos cérebro, surgindo, com isso, um método clínico e
homens (...) forçando as ‘iniciativas’ humanas (...) nosográfico de tratar e caracterizar a loucura. Mas,
Roubando dos homens a razão. A loucura seria, essa visão organicista que visava a uma melhora
então, um recurso da divindade para que seus pro- da doença, transformou-se com o advento do cris-
jetos ou caprichos não sejam contrastados pela tianismo. O homem foi inserido num contexto que,
vontade dos homens” (p. 14). O homem antigo segundo Pessotti (1995) “não há dois mundos em
pode ser compreendido por dois modos distintos conflito, cada um é obra de um criador, o mau e o
e simultâneos: primeiro, os deuses tiravam-lhe a bom, o demônio e Deus” (p. 84). O louco era um
capacidade de compreensão, pois este homem não homem que estava ou possuído pelo diabo ou
era dotado de autonomia no que se refere a seus sofrendo tormentos constantes por parte deste,
afetos, decisões e, até mesmo, na condução do causando, em conseqüência destas situações, delí-

46 Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005.


Ensaio sobre a loucura

rios, mania, melancolia, obsessões, somatizações entanto, uma saída para este impasse, que será
histéricas. Essa doutrina demológica da loucura é um retorno à psicologia. Mas, novamente, um ou-
bem explicitada em uma obra intitulada Malleus tro dilema se abre para a psiquiatria. Pelo fato da
Maleficarum escrita em 1484, baseada na Summa psicologia não oferecer uma base segura à psiqui-
Theologica de Santo Agostinho e o Segundo Livro atria – como, por exemplo, a fisiologia oferece a
das Sentenças de Santo Tomás de Aquino e que medicina – esta se torna uma aliada constante da
era utilizada para ajudar os inquisidores a identifi- medicina, aderindo a uma visão organogenética
car casos de possessão. Na época moderna, com o de doença e perdendo o mental que é o seu obje-
surgimento da noção de consciência com Descar- to. Assim, o psíquico fica defasado em relação ao
tes, a loucura passa de um referencial demoníaco corpo e a conseqüência desse evento para o diag-
para um outro em que a razão e desrazão não nóstico das patologias psíquicas é posto que o fe-
podem ao mesmo tempo estar num mesmo lugar. nômeno mental é uma resposta de uma disfunção
A consciência passa a ser o lugar do homem e o orgânica.
pensamento determina sua existência. Quando, Enfim, surge um psiquiatra de, por incrí-
então, os eventos no homem começam a aconte- vel que pareça, formação tradicional que em 1932
cer por ele mesmo nascem as ciências naturais. defendeu sua tese de doutoramento intitulada “Da
Isto é, os eventos externos não têm mais poder de psicose paranóia em suas relações com a persona-
causa sobre o homem, ele tem como referencial o lidade”, e em 1946, num congresso de psiquiatria
seu eu que é um eu racional. organizado por Henri Ey – seu antigo colega de
Pinel – em 1973 foi o mártir do aconteci- residência médica - para discutir sobre a psicogê-
mento do grande internamento que retirou das ruas nese, afirma que não é a loucura uma disfunção
todos aqueles que tiravam as situações de uma neuronal, ou um déficit orgânico, mas sim, uma
ordem estabelecida – soltou as amarras dos sifilíti- questão de sentido. O sentido que o homem dá ao
cos, velhos, vagabundos e prostitutas, mas, em seu mundo e para si mesmo. Lacan subverte a
relação aos loucos, passou a observar seus com- compreensão em pontos importantes no que tan-
portamentos classificando-os dentro de uma visão ge à loucura, por estar ele em 1946, com um pro-
nosográfica. Solto das amarras, o alienado passou jeto de reformular a Psicologia para que esta pu-
a ser controlado pelo olhar e depois pelo discurso desse respaldar tanto a Psiquiatria quanto a Medi-
médico que fez nascer o saber psiquiátrico, uma cina, ou melhor, um projeto de constituir uma ci-
mutação do que era conhecido como loucura à ência suficientemente concreta da subjetividade
doença. Com essa passagem de um estatuto para que, ao mesmo tempo, não tomasse a subjetivida-
outro, abriram-se vários questionamentos em rela- de como algo absoluto no homem - como rezava
ção à forma com que se lida com a doença mental a psiquiatria fenomenológica de Jaspers – e desca-
e uma delas é: como a psiquiatria enquadra-se racterizar a concepção organicista de doença men-
dentro de uma explicação organicista da doença, tal, da psiquiatria clássica, trazendo, o sujeito, para
sendo seu objeto o mental? Canguilhem (2002) dentro da loucura. Assim, essa nova vertente para
afirma que os fenômenos patológicos “nada mais a loucura, a de tirar o déficit neuronal e incluir o
são do que variações quantitativas, para mais ou sujeito, transformará, mais uma vez, todo um modo
para menos, dos fenômenos fisiológicos corres- de se compreender o homem. Vale ressaltar que
pondentes” e, a psiquiatria adere a esse princípio nesse momento, Lacan ainda não estava atrelado
quantitativo da doença, para garantir um lugar no à Psicanálise como uma teoria eleita para respon-
campo da ciência, mais especificamente da ciên- der às questões humanas. Muito pelo contrário.
cia médica. Entretanto, pelo menos no que diz res- Esse período da obra de Lacan é marcado por um
peito a um objeto da psiquiatria, um dilema é tra- certo repúdio pelo conceito de inconsciente – en-
zido à baila: a relação corpo e mente. Pois, o obje- tre outras noções metapsicológicas – considerado
to da psiquiatria é o estatuto mental, e para per- como uma noção inerte e impensável. Por isso, a
tencer a uma ciência que respaldasse suas formu- psicologia ainda era a ciência que Lacan tentava
lação em relação à loucura, colocou-se o corpo organizar, projeto este que teve como primeiro
como substrato da doença mental, tirando com- autor Politzer – um autor que não aceitava a forma
pletamente esse mental da sua posição de causa, com que a psicanálise lidava com suas noções
sendo apenas um efeito de superfície. Surge, no metapsicológicas, isto é, o substancialismo de seus

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005. 47


Carla Regina Françoia

conceitos era inaceitável por Politzer, enquanto que significações” (Lacan, 1998, p. 167) e não como
a técnica da psicanálise não sofria tão árdua crítica um conjunto de signos ou como significante, en-
por parte deste teórico da psicologia. Voltemos ao tretanto, pode-se compreender como um esboço
louco. de sua tese futura – e diz que “o sentido como
Em 28 de setembro de 1946, no Con- sentido, que para se descobrir, tem de ser desvela-
gresso de Bonneval, Lacan vai propor uma forma- do” (Lacan, 1998, p. 168). Segundo Simanke (2002)
lização radical do problema da causalidade psí- “(...) o sujeito pode apreender claramente o senti-
quica num debate colocado por Henri Ey sobre a do de um discurso, mas enquanto ele não se reco-
psicogênese. O nosso autor abre a reunião imedia- nhecer nesse discurso, quer como autor, quer como
tamente criticando a teoria de Henri Ey, denunci- objeto, a sua significação maior permanecer-lhe-á
ando-a como “... incompleta e falsa, e que se de- desconhecida”.
signa a si mesma em psiquiatria pelo nome de Para dar um exemplo do que está que-
organicismo” (Lacan, 1998, p.153). Essa concep- rendo implantar como forma de conhecimento do
ção denominada de organo-dinamismo remete, na louco e da loucura, Lacan utiliza-se do caso Ai-
fala de Lacan, o distúrbio mental a um mau funci- mée, que permite relacionar desconhecimento e
onamento do corpo. Essa crítica da concepção de loucura. Ou melhor, demonstrar que o sujeito dá
Henri Ey, Lacan a faz para delimitar a fronteira um sentido próprio para o mundo em que vive,
entre eles e circunscrevê-la em oposição “as fun- um sentido todo particular sem reconhecer que
ções da idéia verdadeira” (Lacan, 1998, p.154). E esse sentido é uma interpretação sua da realidade,
mais adiante, Lacan continua: “a questão da ver- conhecendo a sua maneira o mundo circundante.
dade condiciona, em sua essência, o fenômeno da Lacan enuncia a capacidade literária de significa-
loucura e, ao se querer evitá-la, castra-se esse fe- ção subjetiva apresentada pela paciente Aimée nos
nômeno de significação, por onde eu penso mos- romances que escrevia e que foi por onde seu
trar-lhes que ele se atém ao ser mesmo do ho- médico, após analisá-los, pode constatar a feno-
mem” (Lacan, 1998, p.154). É preciso notar que menologia completa da loucura. O diagnóstico da
tanto uma definição de homem e até mesmo da paciente foi investigado por meio das suas “rela-
loucura entra num estatuto de sentido que é por ções com a totalidade dos antecedentes biográfi-
onde Lacan demonstrará a sua definição em opo- cos, das intenções confessas ou não da doente...
sição ao organicismo delimitado por Ey. motivos percebidos ou não, que destacam da situ-
Lacan apresenta a contradição da obra ação contemporânea de seu delírio... em suas re-
de Ey, ou melhor, o fracasso dessa teoria, a saber: lações com a personalidade” (Lacan, 1998, p.171).
“o limite da neurologia e da psiquiatria (...) Refiro- Após elencar os acontecimentos históricos e deli-
me à loucura” (Lacan, 1998, p. 155). Definindo de rantes da paciente em questão, Lacan aponta o
outra maneira a colocação de Lacan: quem é o evento do desconhecimento como algo observá-
paciente neurológico e qual o psiquiátrico na teo- vel desde o princípio em sua paciente e acrescen-
ria de Henri Ey? Lacan pergunta: “haverá alguma ta logo em seguida: “Seguramente, pode-se dizer
coisa que distinga o alienado dos outros doentes, que o louco se acredita diferente de quem é...”
a não ser pelo fato de o encerrarmos num asilo, (Lacan, 1998, p. 171). – como Aimée que se acredi-
enquanto hospitalizamos estes últimos?” (Lacan, tava vítima de um complô para lhe tirarem o filho,
1998, p. 155). então, foi preciso acabar com as ameaças que es-
A reflexão de Lacan se dá da seguinte tava recebendo de uma atriz francesa e para tanto
maneira: a loucura é um fenômeno de conheci- atacou tal atriz na entrada de um teatro...
mento, condição que sempre esteve atrelada às Então, o sujeito desconhece que a sua
formações delirantes, estabelecendo que “a loucu- loucura é uma construção de sentido que faz do
ra é vivida no registro do sentido... o fenômeno da mundo, é o sentido que o sujeito dá a seu mundo.
loucura não é separável do problema da significa- Mas o que parece surpreendente nesse momento
ção para o ser em geral, isto é, da linguagem para é que Lacan denuncia que esse desconhecimento
o homem” (Lacan, 1998, p.166). A loucura, na fala que está atrelado à questão da loucura é nada além
de Lacan, é tirada do estatuto de doença e inserida daquilo que o homem vive na sua constituição
no registro do sentido e da linguagem – nesse como homem, como um eu: “se um homem que
momento a linguagem é entendida como “nó de se acredita rei é louco, não menos o é um rei que

48 Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005.


Ensaio sobre a loucura

se acredita rei” (Lacan, 1998, p. 171). O sujeito não duz um sujeito, demonstrar a questão do ser e do
louco, ou melhor, aquele que não é encerrado num eu pelo viés da imago, tentando constituir uma
asilo, que não se diagnostica como louco, possui ciência nova para dar conta da constituição huma-
no cerne do seu ser o fenômeno que é caracterís- na. Lacan define que “a história do sujeito desen-
tico de uma manifestação da loucura. volve-se numa série mais ou menos típica de iden-
Até aqui o que se viu foi a relação entre tificações ideais que representam os mais puros
desconhecimento que está na base da loucura e o dentre os fenômenos psíquicos por eles revelarem
sentido que o sujeito dá a esse desconhecimento; essencialmente a função da imago” (Simanke, 2002,
e nesse momento para deslindar tal condição, a p. 179).
respeito da loucura e sua convergência à realida- Na psicanálise freudiana, o eu está iden-
de própria do homem, Lacan introduz um novo tificado ao sistema percepto-consciente reanimado
conceito: a identificação. A loucura não se dá num ao mundo pelo princípio de realidade, ou carac-
acidente que ocorre por um mau funcionamento terizado por aquele que realiza a síntese. Não, não
dos neurônios, mas a partir “das identificações que é nada disso, diz Lacan, é outra coisa. Por um
o homem engaja simultaneamente sua verdade e método fenomenológico, nosso autor construiu sua
seu ser” (Lacan, 1998, p. 177). Em outras palavras, teoria do eu, pelo caminho do conhecimento pa-
o que Lacan está tentando trazer a luz é que aqui- ranóico, que o levou a um parentesco com a no-
lo que qualifica a loucura num desconhecimento ção de transitivismo que se expressa a princípio
de si mesmo está na origem do homem, aplica-se como “matriz da Urbild do Eu” a fase mais arcaica
ao “desenvolvimento dialético do ser humano” do eu e que nunca se elimina da vida do homem
(Lacan, 1998, p. 173). O processo identificatório é por completo. O transitivismo é compreendido
o momento fecundo do desenvolvimento huma- como o momento em que, mediante brincadeiras
no, pois é a partir dele que o infans passa da con- entre duas crianças, pode-se concluir uma “verda-
dição de desconhecimento de si para a possível deira captação pela imagem do outro” (Simanke,
realização em si da condição humana. Lacan é 2002, p. 182). Ambas estão identificadas, sendo que,
concludente nesse momento ao dizer que “o ser quando uma cai, as duas sentem o tombo; uma
do homem não apenas não poder ser compreen- bate na outra e sente o seu próprio golpe entre
dido sem a loucura, como não seria o ser do ho- outros eventos. Do ciúme até as primeiras mani-
mem se não trouxesse em si a loucura como limite festações de simpatia, aparecem no espelho lacani-
da sua liberdade” (Lacan, 1998, p. 177). Nas pala- ano, na medida em que “o sujeito se identifica, em
vras de Simanke (2002): seu sentimento de si, com a imagem do outro, e
que a imagem do outro vem cativar nele esse sen-
Se a loucura é imanente à realidade humana, timento” (Simanke, 2002, p.182), o sentimento de
é porque esta identificação imediata, primá- si. Esse fenômeno de si misturado ao outro se dá
ria, que está na sua origem, é um momento antes de um ano de idade: o acontecimento da
logicamente necessário na edificação do su- alienação ao outro pelo desejo e pelo desconhe-
jeito e, portanto, os alicerces da subjetividade cimento. Eis aqui o primeiro efeito da imago: “a
estão enraizados num solo tipicamente para-
alienação do sujeito. É no outro que o sujeito se
nóico de identificações perfeitamente consti-
tutivas, das quais o estádio do espelho busca
identifica e até se experimenta no princípio” (Si-
fornecer o modelo (Simanke, 2002, p.239). manke, 2002, p. 182). Em seu Seminário 1 - alguns
anos à frente desse Congresso, Lacan diz que a
Lacan fará um percurso para desvelar de forma do outro é assumida, está no seu interior, o
onde vêm tais identificações, ou melhor: “apreen- “fora do dentro, por meio de que o sujeito se sabe,
der a modalidade de forma e de ação que fixa as se conhece como corpo (...) É na troca com o ou-
determinações desse drama (...) identificável com tro que o homem se apreende como corpo; mas
o conceito de imago” (Simanke, 2002, p.179). E, não só: também o desejo, é só no outro que ele
para tanto, Lacan buscará respaldo, a partir do aprenderá a reconhecê-lo” (Lacan, 1986, p.197).
conceito de imago – da sua concepção de estádio Lacan refaz uma pequena análise de seu
do espelho tema que permite compreender a cons- trabalho da fase do espelho para demonstrar as
tituição humana nos seus primórdios – para de- relações imaginárias de uma determinada fase do
monstrar como o processo de identificação pro- desenvolvimento humano. Isto é, a assunção triun-

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005. 49


Carla Regina Françoia

fante da criança aos seis meses de idade frente ao nese e que permeia a sua produção teórica como
espelho levando a uma ação identificatória pela uma tentativa de criar uma psicologia concreta que
imago, isso acompanhado de mímicas jubilatórias tenha um objeto respaldado por uma condição de
da criança frente a essa novidade que a capta. Essa cientificidade. Para isso, Lacan foi do fenômeno
determinação imaginária acontece na formação da loucura para a formação do eu, demonstrando
humana por ser o homem dotado de um atraso do que o desconhecimento intrínseco da loucura tam-
desenvolvimento do neuro-eixo considerado pelo bém é condição da constituição da subjetividade.
embriologista um ser prematuro em seu nascimen- Ou melhor, a condição da alienação ao outro que
to. Então, como em toda falha da natureza há uma coloca o infans num desconhecimento de si e, desta
compensação, o que surge no infans é um desen- forma, identificando-se com essa imago que o cap-
volvimento acelerado da percepção visual; de um tou, constituindo-se como um sujeito. Lacan che-
lado um corpo que não pode responder adequa- ga ao conceito de imago que dá substrato ao mo-
damente e de outro uma estrutura visual avantaja- mento da realização em um bebê pela identifica-
da que impõe, à criança, sua entrada no mundo ção apontando que, o eu que se crê si mesmo, é
imaginário, formando, como chamado pela psica- um outro, tal qual o louco que crê ser o que não é.
nálise, seu narcisismo. Perde-se, nessa produção lacaniana, a linha que
Lacan chega onde quer: definir a cau- separava a normalidade e loucura, deixando esta
salidade psíquica que tem relação com a gênese entrelaçada à vida como mais uma das grandes
do eu, ou melhor, com a fase do espelho, que é possibilidades da condição humana. Dessa manei-
resultado de uma identificação, perpassando pelo ra, não é a loucura um mau funcionamento do
desconhecimento e a alienação constitutivos da corpo que resulta num mental desprovido de ra-
realidade humana. zão, mas o exagero da constituição humana, o sen-
tido que se é possível dar ao mundo. Lacan busca
Funda-se uma forma de causalidade que é a com esta explanação sobre a loucura reintroduzir
própria causalidade psíquica – a identifica- o sujeito nos transtornos mentais, isto é, um sujei-
ção, que é um fenômeno irredutível -, e a to e, conseqüentemente, uma subjetividade.
imago é a forma definível, no complexo es- A loucura, essa tal perda da capacida-
paço-temporal imaginário, que tem por fun- de racional, em Lacan, não é compreendida pelo
ção realizar a identificação resoluta de uma
viés da falta, da perda, mas pelo excesso. A loucu-
fase psíquica, ou, em outras palavras, uma
metamorfose das relações do indivíduo com
ra é entendida como a expressão excessiva daqui-
seu semelhante (Lacan, 1998, p. 189). lo que constitui o homem: a identificação a algu-
ma coisa, tornando-se essa coisa. O louco era en-
A imago torna-se, assim, o tão esperado tendido a partir dos deuses, destes passou a ser
objeto para uma psicologia científica, tal qual a compreendido pela possessão demoníaca, do dia-
matéria o é para a física. E aqui onde nos encon- bo ao olhar e saber da ciência para sair como o
tramos na trama lacaniana o que possibilita essa senhor de seu sentido. Sendo assim, é possível
fundação, pela causalidade psíquica, é a identifi- afirmar que o louco é uma construção da época
cação pelo estatuto mesmo do processo de forma- em que vive, um ser que hoje é, já não mais com
ção que provém da imago. Lacan observa, por conta as amarras que Pinel soltou, mas controlado pela
da condição humana, a ameaça que caminha lado vergonha de uma sociedade que não suporta se
a lado com homem: “se nada pode garantir que reconhecer neste lugar dito alienado e, portanto,
não nos percamos em um movimento livre rumo deve afastar, senão por explicações divinas, dia-
ao verdadeiro, basta um nadinha para nos assegu- bólicas ou médicas, o homem insano da sua res-
rar de que transformemos o verdadeiro em loucu- ponsabilidade. Lacan transforma essa vertente em
ra” (Lacan, 1986, p.193). responsabilidade, pois o louco é responsável pela
Resumindo o esquema lacaniano. Lacan sua loucura. Há um sujeito que enlouqueceu e não
faz uma crítica do organo-dinamismo de Henri Ey apenas um fenômeno externo ou uma disfunção
num congresso que tinha como tema a psicogêne- metabólica que tirou o homem da sua razão. Há
se. Essa crítica ele a introduz para trazer a sua um homem, não por trás da loucura, mas na pró-
formulação do que se pode entender por psicogê- pria loucura.
Afinal, vivemos, atualmente, num mun-

50 Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005.


Ensaio sobre a loucura

do em que os princípios morais e a sua prática Referências


andam em lados opostos em nome de uma ideo-
logia individualista que envolve apenas o bem Canguilhem, G. (2002). O normal e o patológi-
pessoal a todo custo, e, não nos resta muita alter- co. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
nativa gritar, como loucos, pelos poros da vida,
um grito, no entanto, silenciado pela evolução far- Lacan, J. (1198). Formulações sobre a causali-
macológica, pois, é preferível esconder a reconhe- dade psíquica: in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
cer. Zahar.
Contudo, não adianta travestir o horror Canguilhem, G. (2002). Os escritos técnicos de
que se tem da loucura e do louco com reforma Freud. Seminário 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
que, supostamente, visam a reabilitar o homem e 1986.
a sociedade que o esconde sem apresentar solu-
ções suficientemente concretas que estejam de Pessotti, Isaias. (1995). A loucura e as épocas.
acordo com a condição socioeconômica da popu- São Paulo: Editora 34.
lação precisada. Senão, é como falar em miséria, Simanke, R. T. (2002). Metapsicologia lacania-
sem querer sanar a fome, em educação sem ofer- na, os anos de formação. São Paulo: Discurso;
tar livros, em saúde, sem leitos à disposição. Fica Curitiba: Editora UFPR.
apenas um discurso sem ação. E, sendo assim, o
que devemos esperar, nós homens e loucos, do
novo século? Recebido em/ received in: 26/05/2004
Aprovado em/ approved in: 27/08/2004

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 43 p. 45-51, out./dez. 2005. 51

Você também pode gostar